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Como eu descobri a cultura portuguesa: acaso, cinema, amor, penitência e outras histórias i Christine Choffey Descobri a cultura portuguesa por acaso há mais ou menos sete anos. Até lá só tinha conhecido Lúcia Teixeira por ser a minha colega de 3ème 2 no colégio Jeanne D´Arc. Só me lembro da sua cara tímida e dos seus mollets um pouco redondos. [cinema...] Um dia, fiz férias em Portugal com uma amiga que tinha visto Der Stand der Dinge e que andava à procura do que ela chamava l´hôtel de l´état dês choses. O hotel, finalmente, encontramos, mas as coisas já tinham mudado de estado (a piscina partida, do melhor efeito, já tinha sido reparada com o dinheirão ganho). Além desse hotel, o segundo desejo de minha amiga era ver filmes de reis-e-cordeiro- joão-botelho-manoel-de-oliveira. Ela dizia assim como se fosse um só nome. E com o sotaque francês de quem tudo ignora da pronúncia do português padrão. Não sei se foi por causa disso ou por o público os ignorar, mas ninguém nos soube responder salvo um empregado da Cinemateca. Nem José Teixeira nem Lino Não-sei-quê, nem Tremblement de terre, rapaz de

Christine Choffey_Como descobri a cultura portuguesa [versão revisada]

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texto de Christine Choffey publicado originalmente em Jornal de Letras (Portugal), 23 de julho de 1991

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Como eu descobri a cultura portuguesa: acaso, cinema, amor, penitência e outras históriasi

Christine Choffey

Descobri a cultura portuguesa por acaso há mais ou menos sete anos.

Até lá só tinha conhecido Lúcia Teixeira por ser a minha colega de

3ème 2 no colégio Jeanne D´Arc. Só me lembro da sua cara tímida e

dos seus mollets um pouco redondos.

[cinema...]

Um dia, fiz férias em Portugal com uma amiga que tinha visto Der

Stand der Dinge e que andava à procura do que ela chamava l´hôtel de

l´état dês choses. O hotel, finalmente, encontramos, mas as coisas já

tinham mudado de estado (a piscina partida, do melhor efeito, já

tinha sido reparada com o dinheirão ganho). Além desse hotel, o

segundo desejo de minha amiga era ver filmes de reis-e-cordeiro-

joão-botelho-manoel-de-oliveira.

Ela dizia assim como se fosse um só nome. E com o sotaque francês

de quem tudo ignora da pronúncia do português padrão. Não sei se

foi por causa disso ou por o público os ignorar, mas ninguém nos

soube responder salvo um empregado da Cinemateca. Nem José

Teixeira nem Lino Não-sei-quê, nem Tremblement de terre, rapaz de

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duffle-coat que anunciava um terremoto pior que do

de 1755, encontrados “por acaso” na esplanada da

Suiça (dois anos depois assisti à mesma cena com os

rapazes no mesmo papel e turistas alemãs no nosso).

A nossa excursão cinéfila não pôde evitar o Texas Bar

e mandei a todos os meus amigos postais em branco:

“Comme tu vois, Il s´agit d´une errance dans la ville

blanche”, prova de que eu também não era

totalmente virgem de imagens lisboetas.

[amor...]

No comboio de volta encontramos três jovens

portugueses que iam para a Suíça de férias. Falavam

francês. Tinham latas de bom atum na mala.

Alguns meses depois, voltei para Lisboa. Achava-me

apaixonada por um dos rapazes do comboio. Foi assim

que, ao pé duma cama de filho de família

provavelmente salazarista, ouvi falar de Fernando

Pessoa como um dos maiores poetas do século. Vale a

pena às vezes achar-se apaixonada.

Voltada novamente para a França, consegui arranjar uma tradução de Tabacaria, mas tive de o encomendar directamente ao editor (Editions Unes). Em

1985 ainda não se encontrava nada na maioria das livrarias. Hoje, mesmo na livraria em que trabalho, que é mais supermercado do que livraria, o patrão

enorgulha-se de ter nas estantes as obras completas desse “gênio da NOSSA literatura mundial”.

Li Tabacaria. Gostei. Ofereci-me à volta de mim. Gostaram. Os quatro primeiros versos tornaram-se o nosso santo e senha.

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[penitência]

Foi um tempo de imensa culpa de ter vivido ao

lado de Lucias Teixeiras sem nem sequer

suspeitar que tinham língua, história e cultura.

Começaram então anos de penitência: resolvi

aprender língua portuguesa com uma brasileira

que morava ao lado de Montparnasse.

Já não sei se foi por penitência ou se para

agradar ao meu amante. Talvez fosse por amor

que descobri a cultura portuguesa. Os

princípios sendo difíceis, tomei uma decisão:

deixar o meu trabalho estúpido em um

escritório (jornalista) e ir para Portugal

aprender a língua de Fernando Pessoa. Na

época já podia dizer a língua de Fernando

pessoa e Lobo Antunes, cuja Cus de Judas acaba

de sair numa tradução francesa e que me

oferecia uma série de imagens que cabiam bem

com as lembranças do meu amor já acabado:

imagens de soldados bêbados num bar de

Madra onde ele me tinha levado para comer

um bife, que sobrenadava numa quantidade incrível de molho de manteiga, imagens de Lisboa à noite, nos bares, na Marginal a escutar histórias de

mercenários portugueses contratados por via de tracts publicitários para combater em Angola e que voltavam meses depois totalmente malucos.

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Totalmente maluco era também esse tipo de alcunha Le fou, que trabalhava numa

oficina de mecânica automóvel e que morava com seus pais num prédio de luxo mal

acabado tipo nouveaux riches com ouro de todos os lados, num subúrbio da cidade.

Lembro-me dele me mostrando com imenso orgulho as fotografias do seu serviço

militar que tinha feito nos pára-quedistas. E ainda a imagem desse homem que

trabalhava numa agência de publicidade, que tinha posto em cima de sua mesa de

trabalho a sua própria sepultura e que dizia ter voltado “morto” de Moçambique.

[e outras histórias...]

Mas, na hora da partida, preferi esquecer essas imagens de pesadelo. Preferi partir

com uma lembrança que me parecia como um bom presságio: o encontro, em

Orléans, de Ricardo Reis em carne e osso, num tal Jean Louis Langlois que,

provavelmente até hoje, ignora ser o que é, mas que pronuncia com exactidão as

palavras do heteronômio: “Mois tu désires, plus tu es libre” dizia esse campeão do

“mol abandon à l´heure fugitive”. Ao fim das contas, não se sabe bem se eu não

tentei escapar à depressão, fugindo para Portugal. O que é certo é que me inscrevi

logo na Faculdade de Letras de Lisboa (em que existe um departamento de letras e

cultura portuguesa para estrangeiros). Estrangeiros encontrei muitos: Olá Sourou!

Olá Christine K! Olá Máximo! Olá Shue Pei! Olá Mamadou Mané!

Havia lá estrangeiros do mundo inteiro para conhecer melhor a cultura portuguesa.

Havia quem tinha chegado lá por amor, por acaso, por casamento, para fugir ou mais

seriamente por motivos universitários ou profissionais.

Língua e cultura também havia (Obrigada J.M. Magalhães, obrigada Cleonice...)

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Desses tempos em Portugal, lembro muito bem da

sombra de Fernando Pessoa. Na altura, não tinha ele

ainda uma estátua no Chiado e o Martinho da Arcada

não tinha ainda essa configuração.

Fui viver numa casa em São João do Estoril que pertencia

a uma Dona Riqueta, com estudantes estrangeiros.

Fiquei ignorante da celebridade da dona da casa até que

um dia a mulher a dias me explicou que o armário em

que o professor da Cambridge School punha os seus

resultados de cricket tinha pertencido a Ele. Como? A

menina não sabia? A senhora dona Riqueta é mesmo

irmã d´Ele, meia, sim, mas irmã ainda mais.

Na minha memória, há também uma cama de casal em

que ele dormia, mas talvez seja já invenção pura.

Há acontecimento na vida que fazem pensar que a gente

está mesmo no bom caminho, isto é, o da cultura

portuguesa.

A outra coisa que me fez muita impressão durante a

minha estada foi o que eu chamava na altura o mistério

“nós, portugueses, somos...”. Era o meu assunto preferido quando, na Faculdade, tínhamos de entregar um trabalho escrito livre. Começava sempre assim:

“O que me admira mais em Portugal é essa maneira que têm os portugueses de usar o deictico ‘nós’. Não digo que não existam franceses que não usem o

‘nous’ para falar deles, mas em Portugal é generalizado.”

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Os estrangeiros nunca poderiam compreender os portugueses porque eles – “nós” – eram

pessoas muito especiais etc etc – e vinha irremediavelmente essa história de saudade que

também nós não podíamos perceber por ser também uma coisa muito especial. Achei muito

interessante esse “ser português” e passei quase dois anos à procura dele. Não vi passar o

tempo, mas chega um dia em que se há-de voltar à realidade, que se chama França, e voltei.

Mas não acabou assim a minha descoberta de Portugal. Voltava com muitas coisas na mala,

não só bom atum, flan Chino, chá Lungo, choriço caseiro e broa de milho. Havia lá versos de

Alexandre O´Neill (“Um Adeus português”), Ruy Bello (“Esplendor na relva”) Ruy Cinatti ( “Eu

comi uma inglesa”) e Herberto Hélder (“Amo devagar os amigos que são tristes...”), havia

também versos de poetas brasileiros, os de João Cabral, os de Manuel Bandeira (“Boi morto,

boi morte” e “Recife bom, Recife do meu avô”...) e ainda um Fernando Pessoa de papel “à

fabriquer soi-même”, cadernos pretos da papelaria Fernandes, pedacinhos de azulejos, pacotes

de Português suave, SG, Definitivos, Provisórios, também evidentemente, Santa-Maria,

Kentucky, que levava só para eu os olhar, que não consegui fumar, janelas de Amadeo Souza

Cardoso e Miqués e Paula Rego, um pequeno ex voto de santo Antônio roubado por Luis à tia,

um de Santa Rita encontrado em Évora, postais da feira de Ladra entre os quais o deliciosos

Saudade dos olhos negros mandado por Yvette Gentil “lutin nantais” à sua “correspondente”

portuguesa. Havia, pois, muito mais coisa, mas fazer hoje o inventário é começar com certeza

um romance.

É com essas malas que cheguei à Bretanha com a decisão de as abrir o mais depressa possível.

O que fiz. Na Universidade de Rennes. Descobri uma outra face da cultura portuguesa, a de

viagens na minha Terra, de Frei Luis de Souza (drama ou tragédia?) que continuou no ano

seguinte pela questão da Peregrinação, romance ou aventura?

Vou andando, não me canso apesar das questões chatas e da saudade que tenho de uma outra

cultura que conheci em Portugal, a viva.

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i Publicado originalmente em Jornal de Letras, Lisboa, Portugal, 23 de julho de 1991, p. 30.