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Ciberpublicidade: ensaio de Sociossemiótica
Guilherme Nery Atem1
Sandro Tôrres de Azevedo2
Introdução: login “Bem longe de dizer que o objeto precede o ponto de vista,
diríamos que é o ponto de vista que cria o objeto.”(Ferdinand de Saussure)
Este capítulo intenciona ensaiar uma abordagem sociossemiótica da campanha
publicitária da Motorola, intitulada “Ajude o Selton”, a ser detalhada mais abaixo. Em
linhas gerais, a campanha da Motorola – criada, produzida e veiculada em 2011 – reúne
todas as condições de ser analisada semioticamente. Ela se enquadra perfeitamente no
contexto sociocultural do que chamamos Capitalismo Semiótico (cognitivo e imaterial) e
das novas práticas mercadológicas da Publicidade, notadamente das que se utilizam dos
novos dispositivos digitais e se difundem em regimes de interação pela Internet (aqui
chamada de Ciberpublicidade).
Como explica Eric Landowski (1992, p. 103): “Nessa perspectiva, o discurso
publicitário nada mais é que um discurso social entre outros e que, como os outros,
contribui para definir a representação que nós nos damos do mundo social que nos rodeia”.
O autor explica que as mensagens publicitárias falam de objetos, sim, mas que os
apresentam do ponto de vista de seus valores potenciais para os sujeitos. Ou seja, a
linguagem publicitária busca “constituir a identidade de seu público, o que fará oferecendo
ao leitor – de maneira reflexiva, desta vez – a suposta imagem de seu próprio ‘desejo’”
(LANDOWSKI, 1992, p. 105).
No primeiro subcapítulo, contextualizaremos o Capitalismo Semiótico. Nossa
intenção é a de estabelecermos o quadro social, antes de trazermos a Sociossemiótica.
Diagnosticamos uma série de transformações sociais e subjetivas que dão conta de uma
completa reconfiguração dos regimes de produção de sentido vigentes hoje. As novas
relações com as instituições sociais – especialmente o mercado de consumo – precisam ser
mapeadas minimamente, para que as questões da Sociossemiótica façam mais sentido aqui.
No segundo subcapítulo, abordaremos algumas das principais características da 1 Doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ. Publicitário e professor da UFF. 2 Doutorando em Letras pela UFF. Publicitário e professor da UNESA.
Cibercultura. Após o contexto mais geral, olhamos para a cultura digital, tão presente nas
práticas sociais atuais. Como a mídia selecionada para este livro é a Internet, pontuar a
Cibercultura se faz também necessário.
O terceiro subcapítulo direciona os dois anteriores para as práticas concretas da
Ciberpublicidade. Já há um histórico mínimo de ações e critérios da Publicidade na
Internet, e eles são sumariamente resumidos, de modo a auxiliar-nos no enquadramento do
nosso objeto de análise.
O quinto subcapítulo busca fundamentar teoricamente a Sociossemiótica,
principalmente a partir do pensamento de Eric Landowski (1992; 2002), mas também
lançando mão de diversos outros autores, de domínios conexos à Sociossemiótica, mas que
nos parecem pertinentes para o enriquecimento do diálogo com a Sociossemiótica
landowskiana. Basicamente, o caráter pragmático da Sociossemiótica permite tanto tais
diálogos quanto a explicitação do agenciamento entre as teorias social e semiótica.
As diferentes práticas sociais produzem diferentes regimes de sentido, e tais regimes
de sentido, por sua vez, tornam cognoscíveis e compreensíveis as práticas sociais. Tal
relação se mostra materializada nas mais variadas interações sociossemióticas, e a Internet
se faz hoje uma mídia bastante propícia à pesquisa neste campo do saber.
As enunciações circulantes na Internet são sincréticas, o que demanda uma
abordagem complexa, multidisciplinar. A imanência da materialidade discursiva em suporte
digital é fascinante, posto que se faz na fronteira do material (máquina) com o imaterial
(sentido). Portanto, é preciso ter em mente um dos maiores postulados da Cibercultura: o da
hibridação entre homem e máquina.
Como um imenso e acentrado tabuleiro de xadrez3, a Internet distribui lugares e seus
sentidos. Para lidarmos com tal complexidade, é preciso pensarmos os agenciamentos entre
o semiótico e o histórico (ver FIORIN, 2011). Trata-se de tomar numa só e mesma
imanência texto e mundo, enfatizando suas determinações mútuas, bem como seus efeitos
de sentido e de poder.
O contexto sociossemiótico A filosofia é um inclinar-se para o vento das coisas.”
3 Metáfora utilizada por Saussure (1970) e por Wittgenstein (2005), para explicarem, respectivamente, os conceitos de “valor” e de “jogos de linguagem”.
(Merleau-Ponty)
Nossa atualidade se configura de modo a explodir as referências, os fundamentos, as
representações e os sentidos tradicionais: Estado, religião, trabalho, família, experiência do
tempo, grandes narrativas (coletivas), sujeito, etc. Nomes não faltam para isso:
modernidade tardia; pós-modernidade; hipermodernidade; neo-modernidade. O fato é que
estamos diante de um mundo que mistura traços objetivos e subjetivos da tradição moderna
e das promessas e ameaças contemporâneas. A Cibercultura em geral e a Internet em
particular têm grande influência nessa reconfiguração atual.
O excesso, a aceleração e a fragmentação das narrativas sociais e culturais acabam
por configurar uma crise do sentido (uma era das incertezas). Este é o diagnóstico. Como
remédio, o mercado nos oferece o consumo – que é apresentado como bálsamo para as
insatisfações do cotidiano. Se a falta é constitutiva do humano e o desejo está na nossa
natureza – como queriam Freud e Lacan – a Publicidade, então, não produziria nem
necessidades nem desejos. Ela produziria, sociossemioticamente, o hábito de vincularmos o
desejo a um produto, serviço ou marca que dariam conta dessa falta. Lacan dizia que o
desejo não tem objeto – é desejo de desejar. Mas o mercado, via Publicidade, nos
ensi(g)naria a procurar suprir essa falta com seus objetos de consumo (tangíveis ou não).
“De fato, nenhum discurso é inocente, e menos ainda quando, como no caso da publicidade
institucional, se trata de propor não somente bens e serviços, mas também os vínculos
estreitos de uma ‘parceria’”” (LANDOWSKI, 1992, p. 113).
Nessa espiral do consumo cotidiano, buscamos “suplementos de alma”
(LANDOWSKI, 1992, p. 108), “salários mínimos espirituais” nas ocasiões de consumo. O
mundo em geral, e as mídias em particular, não páram de nos mostrar o quanto estamos
atrasados, defasados com relação ao que poderíamos ter e ser. Hoje, o maior pecado é o de
não poder consumir. Novas formas de inclusão via consumo são inventadas pelo
Capitalismo Semiótico (imaterial e cognitivo). O imperativo categórico atual não é mais o
do “dever” (kantiano), e sim o do “poder”. Se posso, por que não o faço? Uma das
conseqüências é que não suportamos a distância entre o desejo (publicitariamente colado a
algo) e a satisfação dele (via consumo).
Como os ansiolíticos e os antidepressivos, que nos ajudam a sermos funcionais na
sociedade (ao preço de impedirem a temporalidade mínima para a elaboração psíquica da
dor de existir), os bens de consumo nos ajudam a sermos funcionais no mercado (ao preço
de velozmente não nos darem tempo para semanticamente elaborarmos o que estamos nos
tornando – “dor de não ser”, incluindo nela a nova “dor de não ter” – ver os estudos
recentes de Maria Rita Kehl (2007).
O mundo nos promete que não precisamos conter nossos impulsos (inclusive de
consumir). Gilles Lipovetsky (2007) diz que quanto mais reina a ideia de que nenhuma
vontade deve ser reprimida (o que vai de encontro ao interdito social, que nos sociabiliza),
mais cresce a nossa incapacidade de lidarmos com as insatisfações. Jean Baudrillard (2002)
já falava que a frustração e a gratificação são a dupla instância da integração na sociedade
(de consumo) e no sistema dos objetos significantes. Mas como trazer tal diagnóstico para
uma abordagem sociossemiótica da Ciberpublicidade?
Trata-se um problema metodológico: como pensar o entrelaçamento entre
historicidade e discurso? Fiorin (2011, p. 7) explica: “Estudar a historicidade inerente a um
texto é, assim, analisá-lo do ponto de vista das relações que um texto mantém com o outro.
Isso é que é integrar a história sob o primado da forma”. Como este autor nota, a História
não é exterior ao sentido. É preciso definir tanto uma conjuntura sócio-histórica como as
marcas de enunciação referentes a tal conjuntura. Entretanto, como estabelecer as
correlações estruturais entre ambas? Assim explicou Landowski (1992, p. 168):
A resposta cabe em três palavras, ‘condições de produção’: a conjuntura e a posição social, política, institucional etc. do locutor condicionam (influenciam? determinam?) as posturas lingüísticas adotadas pelo sujeito enunciador e fornecem, com isso, um meio de compreendê-las, enquanto ‘reflexos’ da estrutura das relações intersubjetivas ‘reais’ (fossem essas deformadas ou mesmo invertidas no plano discursivo).
O autor propõe substituirmos a concepção de “contexto referencial” pela de “contexto
semiótico”, que daria conta melhor do conjunto dos traços (lingüísticos e extra-linguísticos)
constitutivos de uma atribuição de significação ao ato de enunciação considerado. Como
afirma Landowski (1992, p. 171):
O que chamamos de contexto semiótico seleciona no ‘real’ (referencial) precisamente os elementos significantes que entram, caso a caso, na colocação de tais formalismos eficazes: o próprio enunciado, claro, mas também a maneira como o enunciador se inscreve (gestualmente, proxemicamente etc) no tempo e no espaço do seu interlocutor, do mesmo modo que todas as determinações semânticas e sintáxicas que contribuem para forjar a “imagem” que os parceiros enviam um ao outro no ato da comunicação (...) mas todas [as determinações] concorrem para produzir
um só e único efeito global de encenação dos actantes do discurso (...).
Landowski tem toda razão ao ressaltar a pertinência do viés pragmático, no que tange
à busca de uma articulação entre o histórico e o semiótico. O próprio autor aponta, então,
para o interesse da noção pragmática de “ilocutório” – como veremos sumariamente mais à
frente.
Eric Landowski (1992) tratou o discurso a partir de sua capacidade de “agir” e “fazer
agir”, ou seja, a partir de uma abordagem pragmática, configurando e reconfigurando as
relações sociossemióticas entre os sujeitos. Como o autor mesmo diz, uma “semiótica da
ação” (LANDOWSKI, 1992, p. 148). Tal caráter pragmático se encontra no campo de
conhecimento notabilizado por outros autores – além do próprio Landowski – como
veremos agora, com o intuito de enriquecermos sua conceituação.
A visão pragmática postula que a linguagem seria menos para designar ou referir do
que para transmitir “palavras de ordem”, comandos. Diversos autores e escritores também
abordaram a linguagem por este prisma, tendo em comum “ne plus considérer l’énoncé
comme message isolé mais comme véhicule d’une relation” (HELBO, s/d., p. 82). Vamos a
eles.
Em Spengler (1932), o homem é animal de rapina, e as suas frases expressam menos
um juízo do que uma ordem – seus efeitos são os de concentrar a vida ativa em formas
fixas; os diálogos são jogos de poder: comando e obediência; “Toda linguagem é, por
natureza, prática; sua base é o pensar da mão” (SPENGLER, 1932, p. 69 – tradução nossa).
Em Canetti, desde pequeno, o homem acostuma-se às ordens; “A cada ordem seguida,
renova-se uma antiga vitória” (CANETTI, 2005, p. 305); a ordem é impulso e aguilhão.
Para Serres, a obediência reflete, em todos os tempos e lugares, a imagem do comando
(SERRES, 1993).
Para Roland Barthes (1993), todas as instituições sociais são “máquinas lingüísticas
de repetição”: redizem as mesmas estruturas semânticas. A língua, segundo Barthes, é
fascista, se entendermos que o fascismo não é aquilo que nos impede de dizer, e sim aquilo
que nos “obriga a dizer”. A língua, então, implicaria uma “relação fatal de alienação”, diz
ele, na medida em que impõe coerções e coações aos seus falantes.
Segundo Roman Jakobson (s/d.), toda enunciação é necessariamente social. A
enunciação se compõe de agenciamentos coletivos. Não há “linguagem pura”,
descontaminada do social ou da natureza. Vê-se tal vinculação com o social nas seis
funções da linguagem, definidas por Jakobson: emotiva (emissor); conativa (receptor);
fática (canal); referencial (contexto); metalingüística (código); poética (mensagem). Nesse
autor, Lingüística e Comunicação são indissociáveis.
Deleuze e Guattari (1995), por sua vez, dizem que o enunciado (unidade elementar da
linguagem) é a palavra de ordem, a qual sempre carrega consigo uma pequena sentença de
morte – um “veredito” (em Kafka), uma “ameaça” (em Canetti). Eis a forma fundamental
da linguagem: o comando, a produção-testemunho de obediência, a asserção, enfim,
relações de poder infra-jurídicas. A função de informação-comunicação seria o meio
mínimo que viabilizaria as ordens, os comandos (como se os fins justificassem os meios):
estamos no caminho já de um poder que procede mais por “permissões” (de acessos ou não
às informações) do que por “restrições” ou “coerções” (pela violência). Na verdade, tratar-
se-ia mais de uma violência simbólica do que física... A lingüística, portanto, para eles, não
seria nada fora da Pragmática (semiótica ou política).
Todo discurso carrega algum grau de persuasão, mais ou menos explícito. Todo
discurso quer fazer crer, no mínimo, em sua veracidade. As assertivas, de valor constativo,
requerem verificação no real. A adequatio (em Tomás de Aquino) imperava no modo
discursivo entre o real e o dito. Esse foi o sentido explorado por Ludwig Wittgenstein, em
sua obra de primeira fase: Tractatus Logico-Philosophicus (1994).
No entanto, se levarmos em conta a segunda fase deste pensador – nas
Investigações Filosóficas (2005) –, bem como a teoria performativa/perlocutória da
linguagem (“atos de fala”), de John Austin, e também o conceito de “ilocutório”, em
Ducrot, chegaremos à noção de linguagem construída pela Pragmática, a partir da estrutura
sociocultural do cotidiano: o que se faz ao dizer algo? Mais ainda: ao dizer, não apenas
faço, mas faço com que façam – neste sentido, trata-se da linguagem como palavra-de-
ordem (ver respectivamente KERBRAT-ORECCHIONI, 2005, e DELEUZE; GUATTARI,
1995).
Segundo Oswald Ducrot (1972), o pensamento do século XX se acomodou em
uma comparação demasiado cômoda: aquela da linguagem com um código – o que nos
levou a pensar que a função principal da linguagem seria a de “transmissão de
informações”, ou seja, de “comunicar”. Porém, nem tudo o que a linguagem realiza é
explícito. Para Ducrot, o traço mais contundente da linguagem é que ela permite aos
interlocutores que instituam, entre si, uma rede de relações implícitas-ilocutórias.
Considerar a “comunicação” como sendo a função linguageira fundamental, seria
admitir que a palavra, por “vocação natural”, fosse “palavra para outrem”, e que a
linguagem só se cumpriria na medida em que fornecesse um lugar de entendimento aos
indivíduos (uma concepção demasiado aristotélico-habermasiana). Ao contrário disso,
como mostra Ducrot, a língua revela todo um quadro institucional; revela-se, ela mesma,
uma instituição reguladora. Então, a linguagem não pode mais ser somente o lugar de
encontro dos sujeitos – ela impõe a esse encontro algumas formas bem determinadas: a
língua perde sua inocência.
Retornando ao objeto deste capítulo, como podemos pensar as transformações
materiais e de sentido promovidas pela Ciberpublicidade? Se as mídias tradicionais,
massivas, já estimulavam o consumo desenfreado, o que poderemos dizer da Internet?
Quais as novas potências e impotências de consumir, de enunciar e de existir, que são
trazidas pela cultura digital?
Da Cibercultura à Ciberpublicidade “A Rede é nossa forma de infinito, só que não
como extensão desmedida que explode o lugar,mas como possibilidade de conexões e caminhos.”
(Paulo Vaz)
Podemos afirmar a constituição horizontal e acentrada das Novas Tecnologias de
Informação e Comunicação (NTIC’s). Não se trata de recortar a tecnologia pelo viés
“apocalíptico” (como Baudrillard e Virilio) – nem ser deslumbrado ou integrado (como
Lévy). O mais importante será reconhecer como as NTIC’s produzem em nós novas
potências e impotências de existir; novos modos de ampliar nosso poder de afetar o mundo,
a partir da potência de sermos afetados por este.
Gaston Bachelard dizia que um instrumento é uma teoria materializada, e que uma
ciência, por sua vez, tem a idade de seus instrumentos de medida. Para Alain Finkielkraut, a
essência da técnica estaria tanto nos objetos como em nosso modo de vê-los. Pensando
nisso, podemos reconhecer que a Modernidade trouxe a busca frenética pelas certezas do
conhecimento. São fabricados inúmeros objetos técnicos, instrumentos, que passariam a
“mediar” as relações dos indivíduos entre si, e dos indivíduos com a coletividade.
Ao hibridar-se com os objetos técnicos, o homem pôs em cheque o mundo e a si
mesmo. Quando seus olhos passaram a poder ver a novas distâncias; quando seus ouvidos
pareceram “super-sônicos”, e tudo isso num tempo instantâneo do “aqui-e-agora”, por
intermédio de Novas Tecnologias de Comunicação e Informação, aquelas oposições
clássicas, ou modernas, embaralharam-se: “local e global”; “aqui e lá”; “público e privado”;
“potência e direito”. Todas estas – e muitas outras – fronteiras vêm sendo redimensionadas
pelas NTIC’s, especialmente a Internet.
Este “novo corpo” é tanto investido de novas potências como investido de novas
impotências, pois ele se oferece para ser uma “modulação de prazer e dor”. Isso se torna
especialmente interessante, se pensarmos nos regimes de interação “em presença”
ressaltados pela Sociossemiótica.
Uma mesma pessoa produz informações enquanto consome outras. Diz Paulo Vaz
(2012, p. 8): “A Rede é nossa forma de infinito, só que não como extensão desmedida que
explode o lugar, mas como possibilidade de conexões e caminhos”. Trocando em miúdos, o
conceito de “lugar” torna-se secundário. A “desterritorialização” é total. Na cibercultura,
todo e qualquer usuário das NTIC’s é, ao mesmo tempo, emissor e receptor de informações.
Uma mesma pessoa produz informações enquanto consome outras. Isso faz de cada pessoa
um equivalente de um “banco-de-dados afetivo”, e é por isso que o Marketing já está
falando de “Marketing de experiências” – do qual nosso objeto neste capítulo faz parte.
Tradicionalmente, a Publicidade tem sido a instância que otimiza a “tradução” de
tudo aquilo que é produzido em tudo aquilo que é consumido, na mesma quantidade
(excesso) e na mesma velocidade (aceleração). Assim, a Publicidade é um dispositivo de
estímulo ao Capitalismo, econômica e culturalmente.
A Publicidade e as vendas pela Internet visam alcançar um desejo antigo do mercado
capitalista: (re)conhecer cada consumidor por seu nome e afeto de consumo. A Publicidade
online tornou-se uma ferramenta indispensável a praticamente todas as marcas de produtos
e/ou serviços. Ela não substitui as estratégias massivas, centradas nas mídias tradicionais,
mas as complementa (cross media).
A partir de 1993, o uso comercial da Internet foi liberado. Entre 1994 e 1995, iniciou-
se o uso comercial efetivo, no ambiente online: a AT&T, a IBM e a PepsiCo. A nova mídia
trouxe novas oportunidades e modos de fazer negócios e Publicidades. A cultura livre
estava livre para vender e comprar, segundo as regras do Capitalismo Semiótico.
O formato mais básico, desde o início, foi o banner, de cerca de 7,5cm X 2,5cm,
contendo uma mensagem curta e gráficos simples. Sua interatividade era pequena, mal se
distinguindo de uma mera “participação” do consumidor4. O design tem ali valor central na
construção e sustentação de uma marca forte, e sua estratégia deve levar em conta:
identidade visual (que confere o diferencial da marca); impacto (valor-notícia do site ou
anúncio); audiência (ligada à capacidade de satisfazer cada target); competitividade (jamais
parar de se fazer presente na mente do target).
Os banners evoluíram, de simples e estáticos (com baixo grau de interatividade) para
complexos e dinâmicos (com alto grau de interatividade). Para se determinar o custo de um
banner, usa-se o Custo Por Mil (CPM), ou seja, variando de acordo com a quantidade de
vezes em que o banner é visto/clicado, isto é, aparece em uma página acessada pelo
internauta.
Enfim, a natureza da Publicidade e das vendas online é determinada por algumas
condições a serem cumpridas (PINHO, 2000, p. 271-274): 1) potencial para a
individualização; 2) inovações para o branding on-line; 3) potencial para a fidelidade de
marca; 4) pré-segmentação dos sites; 5) o fator-custo; 6) transformação de prospects em
consumidores permanentes; 7) diminuição da distância entre branding e marketing direto;
8) facilidade de interação; 9) mecanismos próprios de resposta; 10) mensuração de
resultados. Percebemos que tais condições são também as objetivadas pela campanha
online “Ajude o Selton”, nosso objeto de estudo aqui. Mergulhemos um pouco na
transformação trazida pela Ciberpublicidade.
Os séculos XIX e XX viram surgir e se consolidar um modelo de prática publicitária
caracterizado pela destinação de suas mensagens efetivada através de meios de
comunicação de massa – panfletos, cartazes, jornais, revistas, cinema, rádio e, enfim, TV
configuravam-se como espaços básicos de enunciação do discurso publicitário. De maneira
sintética, a lógica desse modelo (que tomaremos por modelo de publicidade tradicional)
implica a comunicação persuasiva de marcas, produtos e serviços que avança de maneira
4 Interatividade é quando o consumidor pode interferir ativamente na construção de uma narrativa midiática. Consideramos, inicialmente, a diferença entre “mídias interativas” (digitais) e “mídias participativas” (massivas). Posteriormente, passamos a considerar como “mídias interativas” todas aquelas que buscam, por seus conteúdos e tecnologias, algum grau de envolvimento do consumidor. Portanto, haveria diferentes graus de “interatividade” em diferentes mídias.
praticamente unidirecional por sobre o público consumidor, já que, afora eventuais
pesquisas mercadológicas (de naturezas quali e quantitativa), de forma geral, o único
feedback dado pela massa acontece pelo maior ou menor resultado nas vendas – assim
ocorre, pelo menos, sob o ponto de vista das estratégias e táticas empreendidas pelas
instâncias comprometidas com o marketing e a Publicidade de marcas.
Apesar de todas as complexidades próprias de uma prática comunicacional que
amadureceu e se impôs enquanto manifestação sociocultural da modernidade, as narrativas
da Publicidade tradicional obedecem a uma lógica básica, largamente abordada em diversos
manuais técnicos e sintetizada na fórmula AIDA (sigla para atenção, interesse, desejo e
ação). Esse conhecimento de natureza empírica, em linhas curtas, relaciona o sucesso de
uma campanha publicitária à potência que ela desenvolve em chamar a atenção de seu
público-alvo, despertar seu interesse, para daí motivar um desejo que, consequentemente,
acaba por orientar uma ação (de aquisição, de contratação, de anuência ou de conformação,
de acordo com a natureza e com os objetivos das campanhas).
No processo deste modelo, a mensagem enunciada, obviamente sempre sobreguiada
por impulso manipulador, é distribuída pelos diversos canais de comunicação de massa
(mídias impressa, radiofônica, televisiva), sempre de forma que cada meio explore
determinada faceta da estratégia comunicativa, de acordo com suas próprias características.
Os Estudos de Linguagem, em todas as suas escolas, inclusive a Semiótica,
principalmente na segunda metade do século passado (e até os dias de hoje), se ocuparam
intensamente em analisar o discurso dessa publicidade tradicional, identificando e se
posicionando, em termos genéricos, diante das características que implicam o percurso do
sentido que aí se desenrola. De maneira análoga, as Ciências da Comunicação também se
ocuparam, em associação com todos os campos do saber com os quais normalmente
intercambia, na crítica da Publicidade enquanto fenômeno da cultura de massa.
Depois da implantação e consolidação da Internet, esse modelo tratado aqui por
tradicional começou a sofrer transformações mais que importantes. Se, num primeiro
momento, na fase denominada Web 1.0, as empresas começam uma corrida para ocupar
espaço na cena virtual, através de sites institucionais e promocionais, agora no século XXI,
a tão comentada Web 2.0 requer outro tipo de postura por parte das empresas no que tange
sua comunicação e marketing. Numa época em que se dá a liberação do pólo emissor e
potencialmente todos passam a ser criadores, produtores, editores e distribuidores de
conteúdos (SANTAELLA, 2004, p. 82), a Publicidade vem tendo que rever o seu esquema
de interação com o público consumidor, considerando o papel que este passa a
desempenhar no cenário da comunicação contemporânea.
O acesso facilitado às tecnologias que antes eram restritas aos conglomerados de
comunicação, tal como ocorre com câmeras digitais, softwares e gadgets de toda natureza,
bem como a popularização dos sistemas de conexão com a Internet, retira a massa de seu
lugar anterior – passiva diante dos conteúdos que ocupavam a cena da comunicação social
–, para torná-la franca enunciadora midiática (ver ANDERSON, 2006; JENKINS, 2008).
Vale ressaltar que isso, no mínimo, se verifica claramente na proliferação exponencial de
blogs, microblogs, redes de compartilhamento de vídeos, além de toda sorte de postagens e
comentários em redes sociais. Esse aspecto extremamente considerável para a consolidação
da Cibercultura acaba, naturalmente, por forçar uma nova postura por parte de anunciantes
(e seus implicados – departamentos de marketing, agências de Publicidade, bureaux de
mídia etc.) na hora de estruturarem estratégias de persuasão e vendas.
A escolha do objeto de análise observado mais à frente se constitui justamente como
um esforço que empreendemos para desvendar mais os aspectos, características e
fundamentos que regem essa nova publicidade acrescida do radical “ciber”.
De fato e de antemão, parece-nos óbvio que, ao invés de rivalizar com essa nova
massa enunciadora, o que obviamente instauraria um antagonismo entre comunicação
oficial de marcas, de um lado, e comunicação espontânea sobre marcas, de outro, os
anunciantes têm desenvolvido estratégias poderosas de monitoramento e engajamento dessa
massa produtora de conteúdos, o que acaba por forçosamente transformar o consumidor
num aliado para a disseminação de mensagens positivas sobre a marca.
Nesse novo contexto, o esquema atenção-interesse-desejo-ação, apesar de não
abandonado, torna-se insuficiente. Acrescenta-se a essa fórmula a tríade interatividade-
relevância-experiência. Ora, num mundo hiperacelerado como o contemporâneo, em que o
tempo-espaço dura um clique, essa massa consumidora de marcas e produtora de conteúdos
precisa ser afetada numa perspectiva de troca (a interatividade como paradigma da
comunicação digital), de importância (não há tempo para se perder com o que não é
relevante) e de êxtase (o frisson da troca intensa daquilo que é virtualmente importante cria
um contexto de Experiência – na ótica de Pfeiffer, 1994).
Então, diferente do modelo tradicional de Publicidade, a Ciberpublicidade não vai
emitir uma determinada mensagem “em bloco” através de diversos canais diferentes, para
esperar uma reação final do público-alvo. Essa nova fase do diálogo entre marcas e
consumidores inspira uma abordagem que considera as novas características dessa massa
pró-ativa, que, engajada, multiplica a potência da persuasão que se instaura na cena
enunciativa.
Os atuais canais digitais, então, servem aos anunciantes como meios para o
lançamento de conteúdos que, de acordo com a reação do público consumidor (nessas
mesmas mídias digitais), podem ser sobreformulados ou reformulados. Uma nova premissa
de diálogo se desenvolve de tal forma que a lógica hipertextual, menos baseada em textos
fixos e mais regulada por variáveis (SANTAELLA, 2004, p. 93-94), pontua a experiência
midiática digital contemporânea e se expande, transformando o enunciado publicitário
numa “mensagem em circuito”, que vai ter sua significação construída exatamente no
resultado da “troca” entre anunciante e consumidores, num processo de intensa alteridade
entre a dicotomia enunciador-enunciatário. E esse processo não pára de crescer...
Segundo matéria publicada no jornal O Globo (05/03/2012), assinada por Gilberto
Scofield Jr., o mercado publicitário brasileiro cresceu 8,5% em 2011, tendo movimentado
R$ 39,03 bilhões, segundo o Projeto Inter-Meios, que é coordenado pelo grupo
Meio&Mensagem e pela PricewaterhouseCoopers. O mais interessante é notar que,
segundo a pesquisa, o segmento Internet foi o que mais cresceu no ano: R$ 1,4 bilhão em
investimentos publicitários, ou seja, um aumento de 19,6% com relação a 2010. Em
segundo lugar, vem o crescimento publicitário em TV por assinatura (R$ 1,1 bilhão, ou alta
de 17,8%). O presidente do grupo Meio&Mensagem, José Carlos Salles Neto, diz ter a
expectativa de que a Internet continue crescendo acima da média, em Publicidade, nos
próximos anos.
Estes dados são pertinentes aqui, porque Internet e TV por assinatura foram os dois
meios utilizados pela campanha “Ajude o Selton”, da Motorola. Agora, passemos à teoria
que norteia este estudo: a Sociossemiótica, de Eric Landowski.
A Sociossemiótica: teoria e método “Ali onde cresce o perigo,
cresce também o que salva.”(Friedrich Hölderlin)
Agenciando as perspectivas sociológica e lingüística, a Sociossemiótica trata a
produção dos efeitos de sentido como um fenômeno social, através das lentes da
pragmática. As relações entre linguagem e ideologia se expressam nos modos sociais de
produção e uso dos sistemas semióticos. Tais relações são, desde Bakhtin, complexas: nas
práticas sociais, todo signo carregaria conteúdos ideológicos, e toda ideologia expressar-se-
ia por meio de signos. Desta forma, a Sociossemiótica e a Comunicação Social têm muitas
possibilidades de agenciamento, e algumas dessas possibilidades serão exploradas aqui,
mais adiante, por meio da Ciberpublicidade.
Por um lado, a Sociossemiótica evidencia as relações de poder (desiguais) entre
sujeitos, em suas relações intersubjetivas, numa “arena de disputa” que é tão política quanto
discursiva. Em geral, há um discurso que se põe numa posição central (aproveitando-se de
uma estrutura sociossemiótica que reproduz a desigualdade) e que, assim, distribui lugares
de enunciação periféricos para os discursos diferentes ou contrários. Tal disputa revela toda
a tensão das relações intersubjetivas.
Por outro lado, não se trata apenas de jogos de poder no sentido da dominação de uma
identidade sobre suas diferenças. A Sociossemiótica também trabalha com as perspectivas
de resistência, de transformação ou mudança social, adotando em grande parte a
perspectiva das minorias – aproximando-se, com isso, da Análise Crítica do Discurso, de
Fairclough (2001): “Tratar-se-á, portanto, da perspectiva dos excluídos e marginais de toda
espécie, uns infelizes, outros satisfeitos por sua diferença real ou suposta (...)”
(LANDOWSKI, 2002, p. 35). As estruturas significantes de um sistema sociossemiótico
explicam tanto os mecanismos de dominação e reprodução social como os mecanismos de
resistência e transformação (ver a sentença do poeta Hölderlin, na epígrafe deste
subcapítulo).
A Semiótica da Cultura (Escola de Tártu-Moscou), por exemplo, enfatiza as relações
de interpenetração “produtiva” (antropofágica) entre uma cultura e as suas “não-culturas” –
o que revela certa visão otimista, quase idílica, de tais relações. Em contrapartida, a
Sociossemiótica enfatizará o que há de tensão e conflito em tais relações, acentuando os
jogos de poder empiricamente perceptíveis, tanto entre sujeitos como entre sujeitos e
instituições sociais. A Sociossemiótica toma o discurso como arena de relações de poder.
A Sociossemiótica mantém a abordagem estrutural, que pensa os discursos como
totalidades significantes – mas não estáticas. Assim, Landowski (1992, p. 149) afirma
pensar o sujeito “agido” não como “um simples paciente”, mas como um “autêntico
sujeito”, com seus modos de interação, em presença, múltiplos, multimodais (bem
adequadamente ao meio Internet). E é nos regimes de interação que se configuram as bases
da Sociossemiótica.
Os regimes de interação entre um “eu” e seus “outros” instauram relações de poder e
processos de subjetivação. Segundo Landowski (1992, p. 13), a Sociossemiótica buscaria
uma “análise semiótica da dinâmica das relações intersubjetivas, constitutiva da mudança
(micro ou marco) social”. Nessas relações, entrevê-se que um sujeito só descobre seu “si” a
partir do “entre-si”. Vejamos o que diz Landowski (2002, p. 4):
Com efeito, o que dá forma à minha própria identidade não é só a maneira pela qual, reflexivamente, eu me defino (ou tento me definir) em relação à imagem que outrem me envia de mim mesmo; é também a maneira pela qual, transitivamente, objetivo a alteridade do outro atribuindo um conteúdo específico à diferença que me separa dele.
O autor explica que cada sujeito vai incorporando em si, nas interações com o meio,
traços dos diferentes modos de ser, desenhando o que esse sujeito parece para os “outros”, e
vice-versa. Para Landowski, “ser” é necessariamente “ser para o outro”; é ser “classificado
em algum lugar, em função de certas categorias que organizam o espaço social (...)”
(LANDOWSKI, 2002, p.42). Essa ideia já aparecia, em meados dos anos 1960, em
Benveniste (2005, p. 286):
É na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito; porque só a linguagem fundamenta na realidade, na sua realidade que é a do ser, o conceito de “ego”. A “subjetividade” de que tratamos aqui é a capacidade do locutor para se propor como “sujeito”. (...) A consciência de si mesmo só é possível se experimentada por contraste. Eu não emprego eu a não ser dirigindo-me a alguém, que será na minha alocução um tu. Essa condição de diálogo é que é constitutiva da pessoa, pois implica em reciprocidade – que eu me torne tu na alocução daquele que por sua vez se designa por um eu. (...) A polaridade das pessoas é na linguagem a condição fundamental, cujo processo de comunicação, de que partimos, é apenas uma consequência totalmente pragmática.
É na dialética do eu/tu que, segundo Benveniste, se descobre a fundamentação
lingüística (e pragmática) da subjetividade. Quando um sujeito toma para si a enunciação,
além de lançar mão da estrutura de sua língua, coloca-se na posição de um eu, e distribui
posições de tu. Mas ao fazê-lo, parte de uma idealização do tu, como atividade
paralinguística que participa do sistema de restrições semânticas (e cujos efeitos são
decididamente pragmáticos). A partir daí, construirá marcas dêiticas (espaço-temporais)
para que a instituição dessa relação intersubjetiva seja cognoscível5. Diz Benveniste (2005,
p. 292): “A enunciação identifica-se com o próprio ato”.
Este autor entende a enunciação como a colocação da língua em funcionamento por
um ato individual de utilização (BENVENISTE, 2006, p. 82). Como o conceito de
enunciação envolve o linguístico e o histórico, ultrapassa o conceito de fala – com este não
se confundindo – e apontando para a transformação da língua em discurso. Benveniste
(2006, p. 83) chama de “semantização da língua”, a qual conduz a uma teoria do signo. “Na
enunciação consideraremos, sucessivamente, o próprio ato, as situações em que ele se
realiza, os instrumentos de sua realização” (idem). Para produzir sua enunciação, o locutor
deve apropriar-se do aparelho formal da língua, mas desde o início em intenção de um
alocutário, visando influenciá-lo, fazê-lo fazer, ou crer etc.
As diferentes situações de comunicação instauram diferentes regimes de sentido, e
distribuem os “lugares de fala”. Neste ponto, esta teoria também se aproxima da Análise do
Discurso de Patrick Charaudeau (s/d.), que teoriza a partir das diferentes situações de
comunicação empíricas, instaurando “contratos de comunicação”. O “real” seria
sociossemioticamente construído pelas condições específicas das interações, como na
Sociologia do Conhecimento (BERGER; LUCKMANN, 1998). Tal ancoragem do sentido
no social e vice-versa, portanto, é a base desta teoria.
Ao mesmo tempo, o sentido é produzido pelos sujeitos da relação social e esses
sujeitos são produzidos por tal relação sociossemiótica. Isso se enquadra perfeitamente no
atual contexto de Capitalismo Semiótico, no qual se diz que os sujeitos “se produzem”
(como sujeitos), enquanto produzem (riqueza; capital; sentido).
5 “(...) os procedimentos de espacialização e de temporalização que, de fato, parecem condicionar toda e qualquer forma de apreensão de nosso estar no mundo enquanto mundo significante.” (LANDOWSKI, 2002, p. 69). De Kant à Semiótica Tensiva, cada qual à sua maneira, espaço e tempo são as categorias irredutíveis do pensamento, são condições de possibilidade para haver conhecimento (“em presença”).
Com relação aos regimes de visibilidade, Landowski os vê como
fenomenologicamente constitutivos das relações intersubjetivas e de produção e
compartilhamento de sentido. Produzir-se-ia a partir deles um “consenso escópico”, o qual
poderia ser acomodado (meios de comunicação de massa; relação exibicionista/voyeur),
transgredido (espionagem) ou ignorado (a “não-cultura”). Para Landowski (1992, p. 147),
trata-se de pensar o contexto não antes nem depois da linguagem, “mas no âmago da
linguagem”. Nós “editamos” sem parar o mundo (o “outro”) e, assim, o enquadramos e o
mantemos em nossa zona de conforto. Sociossemioticamente, uma identidade tenta
domesticar suas diferenças.
Se “a percepção é o lugar não-linguístico onde se dá a apreensão da significação”,
como postulou Greimas a partir de Merleau-Ponty, restaria pensarmos sobre quando e como
o lingüístico compareceria nessa apreensão. Fiorin (2011, p. 8) diz que, na hipótese de
Whorf, “o mundo é um fluxo caleidoscópico de impressões, que são organizadas pelo
sistema linguístico”. Contudo, Fiorin mesmo atenta que, se o real é inacessível fora dos
quadros da linguagem, não há antecedência entre estes termos, mas concomitância. E o
“estar em presença” do real, se dele se diz cognoscível, já é significá-lo, recortar-lhe um
sentido finito, a partir de sua inesgotabilidade dada (FRAYZE-PEREIRA, 1997).
Em Merleau-Ponty, a Fenomenologia não faz aparecer um “ser previamente
existente”, e sim fundaria o ser (FRAYZE-PEREIRA, 1997). É como se a estrutura fosse o
sentido encarnado, anterior ao pensamento. Ao instaurar a estrutura simbólica, o corpo
ultrapassaria a oposição entre objetividade e subjetividade. Fiorin (1997, p. 14) diz que “o
sentido do gosto radica no corpo”: “Na sua forma mais abstrata, o gosto é o
estabelecimento da descontinuidade na continuidade, da diferença na indiferenciação”
(FIORIN, 1997, p. 15). Podemos estabelecer que a diferença é, na maioria das vezes,
semioticamente eufórica; a indiferenciação é disfórica. “É a paixão da diferença” (FIORIN,
1997, p. 17).
Landowski (1992, p. 166), por sua vez, põe a questão sobre como a significação
ganha existência real, e como essa existência real advém aos sujeitos. E desdobra
(LANDOWSKI, 1992, p. 167):
Como o postulado é que a significação não está “nas coisas”, mas resulta da sua colocação em forma (que só pode ser efetuada do ponto de vista de um observador competente), tudo depende, no que concerne à resposta, da
maneira de conceber tanto a relação entre essas duas instâncias (o sentido, o sujeito), quanto o estatuto que lhes pode ser atribuído enquanto termos resultantes.
Tal agenciamento – sujeito/sentido – é definitivamente pragmático: o sujeito não
“recebe” o sentido, e sim o “fabrica”, o faz existir, tanto subjetiva como objetivamente. É o
seu “fazer-ser sentido”, como diz Landowski (1992, p. 167). Trata-se de um ato
(pragmático) semiótico, ou seja, gerador do sentido. E a enunciação será “o ato pelo qual o
sujeito faz o sentido ser” (idem); já o enunciado será “o objeto cujo sentido faz o sujeito
ser” (idem ibidem).
Em Merleau-Ponty, a realidade corpórea é inesgotável, bem como só se poderia falar
de essência tomando-a como encarnada no mundo. Ao percebê-la, o sujeito deveria
suspender seu juízo, colocando o mundo entre parênteses. Bergson precisou criar seu
método filosófico da “intuição” (não-verbal), para aproximar-se disso. Trata-se de um
método filosófico e semiótico, sim, mas também da busca pelo frescor da relação entre o
mundo e o pensamento, ou, como dizia Paul Valéry (1991), trata-se de um “ver mais do que
se sabe”; ou ainda para Merleau-Ponty, de um “inclinar-se para o vento das coisas”. É o que
a Sociossemiótica chama de “regime de apreensão imediata do sentido enquanto presença”
(LANDOWSKI, 2004, p. 98), ou ainda de “um arrebatamento não totalmente às cegas”
(idem, p. 101).
A Sociossemiótica buscará fazer a análise dos regimes de interação presentes em
quaisquer situações concretas. Contudo, ela corre um sério risco, segundo Landowski
(2004, p.111): “o mundo ‘significa’, mas o sujeito se separa dele, classifica-o, etiqueta-o e
renuncia a senti-lo, a ‘compreendê-lo’ na sua alteridade fundamental”. Ou como nos diz
lindamente Terry Eagleton (1993, p. 21), vindo na mão contrária:
Desde Baumgarten até a fenomenologia, é sempre a razão desviando-se, dobrando-se sobre si mesma, fazendo um desvio através da sensação, da experiência, da “experiência ingênua”, como Husserl a qualifica na conferência de Viena, para não sofrer o embaraço de chegar ao seu telos de mãos vazias, cheia de sabedoria, mas muda, surda e cega em relação ao que vale a pena.
A Sociossemiótica precisava retomar a Fenomenologia para pensar o “em presença”
(o fenomênico). Eric Landowski (2002) diz que o sentido se produz “em presença” (no
aqui-e-agora), trazendo efeitos pragmáticos concretos. É por isso que o método da
investigação sociossemiótica busca primeiro o “outro”, a alteridade, a diferença, antes de se
fixar no “eu”, no mesmo, na identidade. O “eu”, portanto, é formado por sua relação com o
“outro”; é relacional (HALL, 2002). É das relações dinâmicas que se individua o estável – e
não o contrário.
O problema político surge, aqui, quando um grupo social se apodera do “centro
simbólico”, projetando seus “outros” para espaços sociossemioticamente “periféricos” –
providencialmente esquecendo-se de que o seu “eu” é necessariamente “o outro de seus
outros”. Tais construções são sociossemióticas, e não “naturais”. Como lembram Deleuze e
Guattari, as noções de “maior” e “menor” (em Lingüística e em Política) não definem duas
essências, e sim dois modos de significação política e semioticamente comprometidos.
“Maior” (dominante; majoritário; central) e “menor” (dominado; minoritário; periférico)
são designações políticas (mais do que ontológicas), que produzem efeitos de sentido
distribuidores de “lugares” nas relações de poder, nas interações intersubjetivas. Esta é a
maneira de Landowski (2002, p. 33) explicar a mesma coisa:
A hipótese que vai nos guiar é que, qualquer que seja a perspectiva que se adote, a do grupo que se coloca e se comporta como ocupante natural e legítimo – por assim dizer, como proprietário – do espaço social considerado, ou aquela dos “outros” cuja imagem ele projeta à sua volta, nenhuma das posições de que falamos é, para nenhuma das partes implicadas, inteiramente dada por antecipação nem, a fortiori, fixada de maneira imutável. Na verdade, nada de radicalmente necessário as fundamenta.
A lição dos antigos filósofos estóicos é aquela que afirma que as transformações
físicas (interações entre os “corpos”) produzem novas relações de sentido (“expressos
incorporais”), mas estas não alterariam em nada a essência dos “corpos”, ontologicamente.
As ditas “transformações incorporais” se dariam na relação entre o sentido e o
Acontecimento (ver DELEUZE, 1994): como em qualquer Semiótica, o sentido eclode na
diferença. Quando há uma diferenciação na trama dos corpos (Acontecimento), produz-se
um novo sentido. “É mudar se não ‘a vida’, em todo caso, o sentido de sua própria vida”
(LANDOWSKI, 2002, p. 93).
Aquela filosofia estóica ainda teria muitas contribuições a dar para a Sociossemiótica,
mas deixaremos isso para uma outra oportunidade. Por agora, resta-nos trazer o objeto
escolhido para este texto: a campanha da Motorola “Ajude o Selton”, da Chleba Agência
Digital.
A Motorola e sua campanha: “Ajude o Selton” “Ao tocar o produto pela linguagem publicitária, os
homens lhe dão sentido e transformam assim o seu simples uso em experiência do espírito.”
(Roland Barthes)
Apesar de a conta da Motorola ser da agência Ogilvy, esta campanha ficou com a
Chleba Agência Digital, que assim a explica (http://www.chleba.net/Case-Motorola-Ajude-
o-Selton-Mello/d135/ ):
“A Motorola Mobility precisava levar toda a inovação de seus aparelhos para a internet, com uma campanha que se aproximasse do público jovem e conectado e que fosse tão surpreendente quanto seus lançamentos: o tablet MOTOROLA XOOMTM e os smartphones MOTOROLA ATRIXTM
e MOTOROLA DEFYTM.”
A agência, então, decidiu-se pela estratégia de abordar o público jovem através de
uma linguagem descontraída, em tom de humor. O objetivo era fazer com que o
consumidor interagisse com a marca, mais do que apenas saber da existência de seus
produtos, ou mesmo comprá-los. Para isso, a tática definida foi criar um concurso cultural,
estrelado pelo ator Selton Mello.
O início da campanha se deu com um comercial de 30 segundos, veiculado em TV
fechada e em grandes portais da Internet, para alcançar enorme visibilidade. Naquele
primeiro vídeo, o ator diz que foi contratado pela Motorola, mas que, ao receber os
smartphones e o tablet para conhecer, ficou tão entusiasmado que propôs aos consumidores
um concurso: estes deveriam criar uma ideia e um vídeo comercial sobre a Motorola e o
enviariam para o site da campanha (www.ajudeoselton.com.br ). Em troca, os melhores
comerciais dos consumidores-internautas seriam premiados com os smartphones, e até um
carro zero. Ao acessar o hotsite da campanha, o consumidor-internauta encontrava ainda
mais três vídeos, cada um falando de um dos aparelhos da campanha, com Selton Mello
dando “dicas” de como atuar num comercial da Motorola.
Os 100 melhores vídeos ganhariam, na primeira fase da campanha, smartphones
Motorola Defy ou Motorola Atrix. Dos mais votados na primeira fase, os 3 melhores seriam
regravados por Selton Mello, e postos novamente em votação, na segunda fase. Destes, o
grande vencedor receberia um carro zero km, um Toyota Rav4 e mais um tablet Motorola
Xoom – além do smartphone que o vencedor já haveria recebido, na primeira fase do
concurso. Ao final, o vencedor foi o consumidor-internauta Andrew Case
(http://www.meioemensagem.com.br/home/comunicacao/noticias/2011/12/07/Motorola-
escolhe-filme-para-Selton-interpretar.html ).
Em menos de um mês, a campanha teve milhares de vídeos inscritos, mais de 4
milhões de views e 120 mil votos. Em setembro e outubro de 2011, o canal da Motorola foi
o mais visitado do Youtube. A campanha ficou entre os 15 finalistas da Campanha do Ano
2011, do jornal especializado Meio&Mensagem.
Como o corpus desta pesquisa é uma campanha, por um lado, e como uma análise
semiótica deve se debruçar sobre a materialidade textual de seu objeto, por outro lado,
decidimos focar nos quatro vídeos da campanha – especialmente no primeiro, de
lançamento, por ser o que apresenta a campanha aos alocutários –, mas incluindo nas
análises as informações coletadas no case dessa campanha. Tais informações, como
aprendemos com a Sociossemiótica, não são “extra-discursivas”. Muito pelo contrário: são
discursivizadas basicamente nos dois sites, que contam as origens, os percursos e as
conseqüências da campanha: o site da Chleba Agência Digital (http://www.chleba.net/Case-
Motorola-Ajude-o-Selton-Mello/d135/) e do jornal de Publicidade e Marketing mais
tradicional e credível do País, o Meio&Mensagem
(http://www.meioemensagem.com.br/home/busca/resultado.html). Entretanto, tais
discursivizações não aparecem nos vídeos, claro.
Tal opção metodológica nos parece pertinente nesta análise, pois respeita as
prerrogativas da Sociossemiótica, no sentido de tratar a historicidade e o sentido como um
agenciamento, sem que um anteceda necessariamente o outro (ver o conceito de “contexto
semiótico”, já tratado aqui). Vamos à análise.
O primeiro vídeo veiculado pela campanha – em TV fechada, para seu lançamento –
traz o ator Selton Mello em primeiro plano. A primeira sequência de imagens,
acompanhada por um fundo musical de banda de rock, traz Selton mostrando um cartaz
com a logomarca da Motorola. Desde o início da abordagem publicitária, a marca se
mostra, e o faz junto da imagem do celebrado ator. Selton Mello está sentado e fala ao
alocutário – consumidores-telespectadores – de modo inteiramente descontraído, simulando
a naturalidade de uma conversa corriqueira. A cenografia é de uma sala de estar de um
apartamento, o que demonstra o principal modo de exploração do “consenso escópico”: a
acomodação – aqui entendida como grande “extensidade”, segundo a Semiótica Tensiva
(FONTANILLE, 2007).
Como estratégia discursiva, o ator logo estabelece os aspectos dêiticos que ancoram
sua enunciação circunstancialmente no presente: ele diz que a Motorola o chamou para
fazer o comercial – ele narrativiza o passado, a partir daquele momento (tempo; agora) e
lugar (espaço; aqui). No início do comercial, Selton deixa claro que estava previamente em
disjunção com os objetos tecnológicos da Motorola – “manter distância” é uma das “duas
maneiras de viver nossa relação com o mundo sensível” (LANDOWSKI, 2004, p. 98).
“Misturar-se às coisas” é a segunda maneira. Selton vai rapidamente da primeira maneira à
segunda, para poder conferir à campanha a mesma credibilidade de que ele mesmo goza.
Quando se explica o motivo de se fazer algo, como participar de um comercial, dá-se
um tom de preocupação com a inteligência do alocutário. Começa por deixar claro que está
ali por razões profissionais, o que pretende angariar a simpatia do alocutário, já que, ao
mostrar-se aberto e honesto em suas intenções, mostra-se “verdadeiro”. Ele foi chamado ali
para fazer um anúncio, para ajudar a Motorola a vender. Então, ele conheceu os aparelhos e
se encantou (plano patêmico do desejo). Não haveria subterfúgios, mas clareza e
honestidade. Num contexto de tantas mensagens, e tão implícitas em suas intenções, tal
estratégia já se torna diferente (portanto, significativa) de tudo o que se vê no “contexto
semiótico” da Publicidade atual.
Rapidamente, Selton passou do passado (o início do seu trabalho naquele comercial)
para o presente, quando, “em presença” dos alocutários, diz que ele mesmo já não pode
mais viver sem aqueles aparelhos (nesse momento, ele segura um tablet). Ele diz que, com
aqueles aparelhos, “você” (o alocutário) pode tudo. Segundo André Helbo (s/d., p. 83):
“Des verbes du type vouloir, pouvoir, devoir expriment une tension forte (...) La notion de
tension est utilisée dans les médias pour faire du discours un acte”.
Ele passa a apresentar rapidamente cada um dos três aparelhos novos da Motorola – o
tablet Motorola Xoom, o smartphone Motorola Atrix e o smartphone Motorola Defy – , as
estrelas dos próximos três vídeos, que seriam veiculados na Internet. Percebemos o
estabelecimento, via contrato comunicacional, do “sujeito do fazer”: o alocutário
(consumidor) precisará saber fazer e poder fazer.
Selton procura seu Defy e o encontra na boca de seu cão. Simpaticamente, ele brinca
com isso, dizendo que aquele smartphone é resistente a riscos, a água e a baba (de cão) 6.
Ouve-se um sinal sonoro e o ator, mostrando-se impressionado, diz que o jogo eletrônico já
baixou em seu smartphone (exibindo a extrema velocidade do dispositivo). Se pensarmos
que vivemos hoje num tempo de sucesso de jogos eletrônicos, bem como do imperativo da
velocidade (VIRILIO, 1996), observaremos a ágil dinâmica discursiva do comercial
televisivo, que lança mão de uma “aspectualização do ator”, estilizando o modo de
conjunção entre o ator da narrativa e seus objetos (euforizados).
Em seguida, Selton passa ao texto da promoção proposta pela Motorola (mas o faz
como se a ideia tivesse sido naturalmente dele). Ele explica que se inicia ali um “concurso
cultural”: o espectador deve ter uma ideia “fabulosa” para um filme comercial da Motorola,
filmar e postar no site da empresa. A recompensa indicada são os aparelhos, para os vídeos
mais votados. Selton ainda menciona um “presentaço”. O alocutário interessado deverá
acessar o site da campanha e descobrir quais são os prêmios – nesse ponto, o vídeo se
hibrida com a técnica do teaser (fazendo mistério, enigma que será decifrado pelo
consumidor na continuidade da campanha).
Selton termina dizendo o slogan da campanha (tag line): “Com Motorola você pode”.
Por fim, a assinatura do comercial traz a logomarca da empresa, com a frase: “Life.
Motorola powered”. Estas amarrações prometem “poder” ao consumidor-usuário. Ele
(sujeito da narrativa) pode, já agora, com Motorola. Pode conquistar prêmios; pode ficar
famoso pela visibilidade conquistada (objetos da narrativa); pode fazer mais. Sua vida é
intensificada, com Motorola (adjuvante), desde que adquira a devida competência para tal
(uma ideia “fabulosa”; o domínio mínimo de uma câmera e, talvez, de técnicas de edição de
vídeo, se for o caso). Sua não-competência se torna um opositor.
Ao contrário do que pode parecer a priori, há tensões, sim, entre os sujeitos
envolvidos ali. Para os alocutários daquela enunciação sincrética, participar ou não do
concurso significa passar a fazer parte da lógica tecnológica da interatividade com as
marcas, além de significar para si (ou não) o lugar sociossemiótico hoje chamado de
“prossumer” (consumidor pró-ativo). Essa distribuição de lugares estabelece as posições
“maior” (prossumer) e “menor” (consumidor passivo), que também podem ser pensadas
6 As letras miúdas, entretanto, ressalvam: “O Motorola Defy não é a prova d’água. Quando todas as proteções de entradas do fone de ouvido e carregador estiverem totalmente fechadas, o aparelho será resistente a chuva, respingos e outros tipos de exposição moderada a água”.
como “eu” e “tu”. Quem quer ser o “outro” (“menor”, disforizado) daquilo que é positivo
(“maior”) e semioticamente euforizado?
A enunciação da campanha busca primeiro um fazer-crer: são estabelecidos de
antemão os valores eufóricos da tecnologia, da velocidade, da interatividade, das
recompensas e, por extensão cognitiva, da própria marca Motorola. Como Saussure (1970)
ensinou pelo conceito de “valor”, tal posicionamento cria seu “valor” na oposição a
elementos diferentes de si (empresas concorrentes da Motorola, e seus usuários).
Depois de realizar uma enunciação do fazer-crer, a campanha busca um fazer-fazer:
incitando o prossumer à interação com a marca, via Internet, a campanha lança sua função
pragmática mais visível. Se em Austin “dizer é fazer”, na Motorola “dizer é fazer com que
façam” (ver KERBRAT-ORECCHIONI, 2005). Mais uma vez, gostaríamos de chamar a
atenção para o fato de que o principal “fazer” aqui – como em toda Ciberpublicidade – não
é o comprar (do consumidor tradicional), e sim o interagir digitalmente com a marca (do
prossumer, via brand experience).
A partir desse primeiro comercial de lançamento, os três vídeos seguintes, todos
veiculados pela Internet, no site da campanha, dão “dicas” para o consumidor-internauta
participar do concurso cultural. As “dicas” de atuação diante das câmeras não poderiam ser
dadas por melhor ator: Selton Mello.
O segundo vídeo da campanha, então, dá a “Dica 1: deixe a rapidez para o Motorola
Atrix e fale devagar no seu vídeo!”. O ponto de exclamação sublinha o tom efusivo e
descontraído da enunciação nesse vídeo, embora seus verbos estejam no modo imperativo,
com função conativa – o que não conota tanta descontração quanto se desejava. Neste
ponto, a tradição imperativa da linguagem publicitária comparece, de certa forma traindo-
se, denunciando-se.
Selton Mello brinca com a dica e com sua própria interpretação, acelerando e
desacelerando sua fala, enquanto arrola os conteúdos de excelência do produto, incluindo
sua versatilidade e facilidade para plugar-se em computadores. Brincando
metalinguisticamente com a direção do comercial, Selton solta uma frase que chama a
atenção: “Com o Atrix eu posso tudo”. Você pode falar rápido ou devagar, já que você pode
tudo.
No terceiro vídeo, temos a “Dica 2: esteja preparado para qualquer emoção, como o
Motorola Defy”. Selton começa simulando empolgação, para, em seguida, baixar o tom da
voz e falar com “propriedade” sobre aquele produto.
A promessa tecnológica do produto em questão é a de que ele “não impõe ao usuário
limites”. Tal texto aponta para o caráter fáustico das novas tecnologias (no dizer do
sociólogo Hermínio Martins). A ausência ou a superação dos limites humanos surge, na
Cibercultura, como promessa encantatória, definidora do imaginário tecnológico
contemporâneo. Desse modo, a campanha – e, por extensão cognitiva, a marca Motorola –
se mostra “em presença” dos seus alocutários como “antenada”, atualizada com a sociedade
tecno-digitalizada.
Max Weber havia postulado que a modernidade levou a racionalidade administrativa
ao extremo, o que acabou por produzir (nós diremos, sociossemióticamente) um
“desencantamento do mundo”. A razão científica se degenerou em razão instrumental, para
usar uma expressão da Escola de Frankfurt, e o mundo teria perdido seu encanto.
No entanto, a contemporaneidade cibercultural (re)produz extensiva e intensivamente
novos dispositivos tecnológicos de mediação intersubjetiva, povoando e reconfigurando o
imaginário tecnológico com suas novas ameaças e suas novas promessas, com seus novos
medos e suas novas esperanças. Dessa forma, a contemporaneidade tecnocibercultural
“reencantou o mundo”. Tal é a promessa/esperança fauticamente trazida pelo smartphone
Motorola Defy: “o Defy não te impõe limites”, diz Selton Mello. Parece-nos o “adjuvante
ideal”.
Enfim, chegamos ao quarto vídeo, que traz a “Dica 3: tenha a presença de palco do
Motorola Xoom”. A cenografia e o fundo sonoro são os mesmos de todos os três vídeos
anteriores, o que dá unidade à campanha, do ponto de vista semiótico (no plano de
expressão). O próprio nome do produto (escrito “Xoom”, mas pronunciado “Zoom”)
carrega o sentido socialmente compartilhado de aproximação, de poder de fazer ver melhor.
Selton Mello começa esse vídeo como se estivesse terminando de ler. Ele diz que
adora ler, e isso deixa a forte impressão de que tal alta tecnologia da Motorola não rivaliza
com antigas tecnologias (o livro, por exemplo). Trata-se de um expediente tradicional, em
Publicidade, buscar um fiador, um testemunhal que garanta a legitimidade do que se diz. O
alucutário dessa enunciação específica (último vídeo) percebe, pelo texto dito pelo ator, que
é possível “ser tecnológico” (tendo um Xoom) e “ser inteligente” (gostando de ler), ao
mesmo tempo.
É bem típico da Cibercultura não constranger os sujeitos a terem que escolher,
alternativamente, entre duas ou mais opções disponíveis no mercado (subjetivado e
subjetivante): pode-se ser um pouco de tudo, a qualquer momento. Stuart Hall (2002)
chamou a esse sujeito fragmentário e descontínuo de “pós-moderno”. Eric Landowski tem
algo a dizer sobre essa subjetividade (2002, p. 40):
(...) nossos animais sociais, ao mesmo tempo que, sem dúvida, obedecem a certas leis que comandam sua gravitação, possuem, por sua vez, pelo menos parcialmente, o domínio dessas leis, e por isso estão em condições, se o desejarem, de desviar-se de seu roteiro, de mudar de órbita e, por isso mesmo – até certo ponto –, de “identidade”.7
Entremeando as características objetivas do produto (memória etc) com as
características de uma boa atuação diante das câmeras, Selton fala da campanha, mostrando
bem que o importante ali não é vender o Xoom, mas envolver o consumidor-internauta com
a marca Motorola, através da estratégia ciberpublicitária da “experiência de marca” (brand
experience). A campanha definitivamente esbanja (semioticamente) atualidade
(socialmente).
Considerações finais: logoff “Dorme o futuro das coisas quedoerão em mim, desprevenido.”(Carlos Drummond de Andrade)
Como vimos, o lançamento da campanha foi feito na TV paga (mais seletiva do que a
TV aberta, e mais massiva do que a Internet), mas sua continuidade seria toda pela Internet.
Essa estratégia é recente na Publicidade, e típica da Ciberpublicidade: cria-se uma narrativa
transmidiática (ver JENKINS, 2008), em que a narrativa global de uma campanha, como
essa, só se completa para o consumidor-usuário quando este percorre diferentes mídias
(cada uma lhe conta uma parte da narrativa, como num quebra-cabeças)8.
Todo processo de geração de sentido depende da imanência de um texto e de um
7 Pode-se falar da subjetividade pós-moderna como Clinamen. Na antiga filosofia epicurista, Clinamen era o conceito que caracterizava o comportamento dos átomos. Epicuro pensava que os átomos descreviam trajetórias inesperadamente desviantes, e isso por duas razões: os átomos teriam a potência desviante e o desejo de fazê-lo. 8 Por ser uma análise sociossemiótica de uma narrativa transmidiática – uma campanha publicitária recente – se nos ativéssemos a apenas um vídeo, ou a um site, perderíamos a visão de conjunto da narrativa global.
sujeito intérprete competente. No entanto, a geração do sentido fica explicitamente
dependente da cognição do consumidor-usuário, pois não está em um “lugar” só, em uma
mídia só, mas no cérebro do sujeito-alocutário, que deve percorrer as diferentes mídias (TV,
Internet, celular/câmera), para conseguir compreender o sentido da campanha. É em um
“entre-lugar” – como na própria lógica acentrada da Internet – que se dá a geração do
sentido, aqui. Dizendo de modo mais sociossemiótico, é no regime de interação acentrado
que se constrói o sentido da campanha interativa da Motorola.
E mais: não apenas se constrói o sentido daquela campanha, mas também, e não
menos importante, se constrói o sentido de/para seus usuários (no caso analisado, os
consumidores-internautas). Não apenas se atribui sentido às coisas, mas também aos
sujeitos da interação virtual. Ao se classificar as coisas, classifica-se sujeitos (FIORIN,
1997). Tal é a lição da Semiótica, em geral, e dos estudos sobre a produção de
subjetividades, em particular. Como numa estética da existência, o sujeito vai sendo
“esculpido” por regimes de interação sociossemióticos, cuja linguagem envolvida não pode
ser menos do que sincrética – cuja enunciação constitui uma totalidade, um único efeito de
sentido global (LANDOWSKI, 2004; TEIXEIRA, 2009). Sobre a relação entre Publicidade
e subjetividade, diz Landowski (1992, p. 106):
Nessa óptica e levando-se em conta a relação necessária que liga a existência dos valores à dos sujeitos capazes de “valorizar” as coisas, toda modulação no registro da constituição dos valores “objetivos” vai logicamente acarretar um certo número de variações correlativas no plano das configurações representativas das subjetividades – tanto na imagem de quem oferece valores (o anunciante), como na posição de quem os “pede” (o público).
A fase após o lançamento televisivo, portanto, até o fim da campanha (com as
premiações e a avaliação da campanha em números) foi feita pela Internet, usando e
abusando dos poderes de interatividade do meio digital e dos alocutários. Ademais, não se
tratou apenas de interações entre alocutários individuais e a marca Motorola, mas sim,
também, de interações múltiplas entre milhares de alocutários entre si – pois cada
internauta votava nos seus vídeos preferidos, feitos por outros internautas.
Pensamos que há um aspecto perverso a ser notado, tanto no Capitalismo Semiótico
em geral como na (Ciber)publicidade em particular: hoje o mercado de consumo trabalha
incorporando singularidades que surgem espontaneamente, diminuindo consideravelmente
a potência política revolucionária dos cidadãos (ver GUATTARI; ROLNIK, 1986) – desde
então, reduzidos a meros consumidores exaltados. Tais singularidades deixam de ser
espontâneas, ao serem sociossemioticamente reproduzidas e incorporadas à lógica do
consumo, por parte das marcas anunciantes. Assim, na mesma “cajadada” a
Ciberpublicidade cala conflitos e faz com que os consumidores-internautas colaborem na
construção da identidade das marcas. Isso acontece porque o Capitalismo (Semiótico ou
não) sempre se recompõe, conforme as resistências que encontra.
Desta forma, vemos que a Motorola buscou produzir nos consumidores-internautas o
desejo de pertencimento. Há nessa campanha uma promessa de “comunidade”, o que
carregaria a sensação de conforto e acolhimento – uma retórica poderosa, num mundo tão
concorrido e apressado. O sentimento de pertença a uma “comunidade” desacelera, acalma,
tal como uma “ilha de sentido”, rodeada de caos por todos os lados. Sem falar que a
retórica da Motorola, na campanha analisada, intenciona fazer com que seus alocutários
busquem sair da posição sociossemiótica de “outrem” para a de “nós”.
Tais considerações nos remetem àquilo que Landowski chamou de “contexto
semiótico”: pensar o histórico e o semiótico como encrustados um no outro. Assim, a marca
em questão se expandiu exponencialmente, por ter dado “voz” e lugar (eufórico) aos seus
consumidores atuais e futuros. A Motorola, enquanto marca (intangível), conseguiu atingir
seu objetivo de proporcionar aos consumidores-internautas uma “experiência de marca”
sólida, interativa e simpática. Para usarmos uma expressão do sociólogo Erving Goffman,
diríamos que a Motorola construiu para si, por meio de um ethos discursivo, uma “face
positiva” aos olhos de seus alocutários. E isso não tem preço (mas significa um bocado).
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