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CIDADANIA COMO JUSTIÇA: UMA ANÁLISE DA “FUNÇÃO SOCIAL” DO PODER JUDICIÁRIO NO BRASIL. PAULO CESAR CAVASIN LEANDRO 1 RESUMO: A Constituição Federal de 1988 é o marco jurídico e político do Estado Democrático de Direito no Brasil, modelo de Estado que pressupõe a participação popular em sua condução, bem como a salvaguarda dos direitos fundamentais. O presente artigo tem o escopo de levantar questionamentos e dados acerca do papel do Poder Judiciário no Estado Democrático de Direito, partindo de uma concepção democrática da cidadania. Para tanto, realiza, primeiramente, uma pesquisa bibliografia acerca do entendimento do conceito de cidadão para a teoria política contemporânea e, tendo como marco teórico o neoconstitucionalismo, traça um panorama da relação entre a função social do Poder Judiciário e a problemática da falta de acesso à justiça no Brasil contemporâneo. PALAVRAS-CHAVE: Cidadania, Poder Judiciário, Estado Democrático de Direito. 1 Bacharel em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Dr. Júlio de Mesquita Filho”; especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários; mestrando em Ciência Política pela Universidade Federal de São Carlos; e-mail: [email protected]

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CIDADANIA COMO JUSTIÇA: UMA ANÁLISE DA “FUNÇÃO SOCIAL” DO PODER JUDICIÁRIO NO BRASIL.

PAULO CESAR CAVASIN LEANDRO1

RESUMO: A Constituição Federal de 1988 é o marco jurídico e político do Estado Democrático de Direito no Brasil, modelo de Estado que pressupõe a participação popular em sua condução, bem como a salvaguarda dos direitos fundamentais. O presente artigo tem o escopo de levantar questionamentos e dados acerca do papel do Poder Judiciário no Estado Democrático de Direito, partindo de uma concepção democrática da cidadania. Para tanto, realiza, primeiramente, uma pesquisa bibliografia acerca do entendimento do conceito de cidadão para a teoria política contemporânea e, tendo como marco teórico o neoconstitucionalismo, traça um panorama da relação entre a função social do Poder Judiciário e a problemática da falta de acesso à justiça no Brasil contemporâneo. PALAVRAS-CHAVE: Cidadania, Poder Judiciário, Estado Democrático de Direito.

1 Bacharel em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Dr. Júlio de Mesquita Filho”;

especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários; mestrando em Ciência Política pela Universidade Federal de São Carlos; e-mail: [email protected]

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I. Introdução

A intenção deste artigo é levantar questões e dados (tanto teóricos quanto

empíricos), descrevendo-os, para que sirvam de pano de fundo para a tese que será

elaborada durante o mestrado no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da

UFSCar, qual seja, a legitimidade das decisões judiciais dentro do Estado Democrático

de Direito.

Essas questões giram em torno do conteúdo do Estado Democrático de Direito,

modelo adotado pelo Brasil na Constituição “Cidadã” de 1988, e do papel de seu

elemento mais importante, o Cidadão, em especial no que diz respeito à necessidade

premente de participação popular na condução das questões públicas; outra questão é

o papel do Direito e da Justiça na concretização de um Estado Democrático de Direito;

por fim, serão consideradas as polêmicas em torno da aparente contradição entre o

evidente protagonismo do Poder Judiciário em questões tradicionalmente tidas como

políticas e a já citada necessidade de participação popular.

Uma vez especificado o escopo do artigo, cumpre-nos informar quais os

passos a serem percorridos na análise do objeto, que é a função social do Poder

Judiciário, para que seja possível levantarmos proposições sobre o papel deste na

democracia brasileira.

Em primeiro lugar, trataremos de contextualizar o marco teórico sobre os quais

se darão as análises acerca do conceito de cidadania e o papel do Poder Judiciário no

Estado Democrático de Direito brasileiro. Este marco teórico será denominado de

neoconstitucionalismo, justificando tal recorte pela familiaridade do autor com teorias

do direito, ao passo que os estudos sobre a teoria política (em especial a teoria crítica)

encontram-se em um estágio inicial, não constituindo, ainda, terreno firme para

sustentar as proposições aqui levantadas.

Em um segundo tópico, analisaremos o conceito de Cidadania à luz da teoria

política contemporânea, o que se justifica pelo fato de que é premissa deste autor que

a pessoa humana deve ser o fim máximo do Estado.2

2 Sobre o assunto, Carlos Ayres Britto (2012, p 20), destaca que: “De fato, o desenrolar do

tempo tem situado o gênero humano no centro do universo. Da proclamação de que “o homem é a medida de todas às coisas” (Pitágoras) ao „cógito‟ de René Descartes, passando pela máxima teológica de que todos nós fomos feitos à imagem e semelhança de Deus, o certo é que a pessoa humana passou a ser vista como portadora de uma dignidade inata. Por isso que titular do „inalienável‟ direito de se assumir tal como é: um microcosmo. Devendo-se-lhe assegurar todas as condições de busca da felicidade terrena.”

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Nas terceira e quarta partes, abordaremos, respectivamente, a questão da

“função social” do Poder Judiciário, ou seja, qual seria o seu papel no Estado

Democrático de Direito à luz do conceito de Cidadania anteriormente estabelecido,

apresentando, por fim, algumas considerações sobre o problema (da falta) do acesso

à justiça, entendido como as barreiras que os Cidadãos hipossuficientes encontram

para apresentar demandas ao Poder Judiciário para proteção de seus direitos

fundamentais.

Percorrido este caminho, esperamos poder apontar, na conclusão, premissas,

argumentos e hipóteses que possam servir de pano de fundo para uma investigação

futura acerca da legitimidade das decisões judiciais no Estado Democrático de Direito

brasileiro.

II. Delimitação e justificativa

O processo de reconstitucionalização ocorrido na Europa após a segunda

guerra mundial pode ser visto como o inicio de um amplo conjunto de transformações

no Estado e na maneira de entender o papel do Direito (BARROSO, 2006). A esse

fenômeno, os juristas deram o nome de teoria material da constituição ou

neoconstitucionalismo, apontando seu marcos, histórico, filosófico e teórico

(BARROSO, 2006; BONAVIDES, 2003; LENZA, 2011).

Quanto ao marco histórico, este se refere a uma maneira de organização

política que implica necessariamente em uma democratização do Estado, em outras

palavras, refere-se à premente necessidade de implementação de Estados

Democráticos de Direito (também denominados de Estados Sociais Democráticos de

Direito ou Estados Constitucionais de Direito), em substituição aos modelos anteriores

de Estado de Direito (Liberal e Social).

No que diz respeito ao marco filosófico, este corresponde a uma teoria

denominada de pós-positivismo, caracterizada por um processo de normatividade dos

princípios de direito, pela “reabilitação da razão prática e da argumentação jurídica” e

pelo “desenvolvimento de uma teoria dos direitos fundamentais edificada sobre o

fundamento da dignidade da pessoa humana” (BARROSO, 2006, p. 485).

Finalmente, o marco teórico do neoconstitucionalismo se trata do

reconhecimento da força normativa da Constituição3, da supremacia da Constituição –

com consequente aumento de importância da jurisdição constitucional – e a

3 Cf: HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição - Tradução de Gilmar Ferreira

Mendes, Porto Alegre: Editora Sérgio Antônio Fabris, 1991.

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necessidade de elaboração de novos métodos hermenêuticos para a interpretação das

normas constitucionais.

No Brasil, a promulgação da Constituição Federal de 1988 é o marco jurídico e

político do neoconstitucionalismo. Destaca-se que ela surge em um contexto histórico

sui generis da política brasileira, com grande mobilização e participação popular.4

Houve uma clara mudança de paradigma de organização política e social, uma vez

que, logo no artigo 1º, ficou estabelecido que o Brasil se constituísse em um Estado

Democrático de Direito, no qual “todo poder emana do povo” que o exerce “por meio

de seus representantes eleitos ou diretamente”,5.

Igualmente, a sociedade brasileira estabeleceu dentre seus objetivos a

conquista de uma sociedade livre justa e solidária, bem como a erradicação da

pobreza e das desigualdades,6 o que deve ser conquistado pela garantia e efetivação

de direitos civis, políticos e sociais7, através da atividade de todos os Poderes8 e com

a participação efetiva do povo, uma vez que, como aponta Emilio Crosa (1946, p 25), a

adoção de um modelo democrático de Estado não se esgota na formação das

instituições representativas.

Concomitantemente, a Constituição de 1988 inaugura no Brasil um fenômeno

denominado por Tate e Vallinder (1995) de “expansão global do Poder Judiciário”, que,

segundo Boaventura de Sousa Santos (2010, p 22) é uma situação na qual o Poder

4 Nesse sentido, a Assembleia Nacional Constituinte de 1987 foi um marco evolutivo da política

no Brasil, haja vista que, mesmo não havendo ruptura, o quadro constituinte de 1987 marca uma mudança muito grande na estrutura da sociedade brasileira que se encontrava “profundamente rebelada contra o mais longo eclipse das liberdades públicas”, devido “aquela noite de 20 anos sem parlamento livre e soberano, debaixo da tutela e violência dos atos institucionais, indubitavelmente um sistema de exceção, autoritarismo e ditadura [...]”. O primeiro indicativo de mudança pode ser constatado no fato de que, no dia 15 de novembro de 1986, os brasileiros puderam ir às urnas para eleger os membros da Assembleia Constituinte. Ademais, como apontou Ulysses Guimarães em seu discurso de promulgação da Lei Maior, houve a apresentação de 61.020 emendas, das quais 122 eram populares – algumas com mais de um milhão de assinaturas – bem como ocorreu a presença diária de cerca de 10.000 pessoas, de todos os setores da sociedade, em livre trânsito pelas dependências do Congresso Nacional durante os 18 meses pelos quais se estenderam os trabalhos dos constituintes. Tudo isso em um país no qual as demais Constituições foram elaboradas com discussões de, no máximo, três meses, envolvendo não mais que uma centena de pessoas de um mesmo grupo hegemônico nos melhores momentos. (com exceção da Constituição Federal de 1946), nos melhores momentos. (ANDRADE, BONAVIDES, 1991, p 451-470) 5 Sobre o assunto, José Afonso da Silva (2005, p.119), entende que está norma não se trata de

uma promessa de “organizar tal Estado, pois a Constituição aí já está proclamando e fundando”, o que não significa dizer que o simples fato de enunciar esta regra garanta que ela passe a provocar efeitos no mundo real.” 6 Art. 3º da Constituição Federal de 1988

7 Como os elencados no Título II, da Constituição Federal, Dos Direitos e Garantias

Fundamentais. 8 “Art. 2º da Constituição Federal de 1988: São Poderes da União, independentes e harmônicos

entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.”

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Judiciário entra em confronto com os outros Poderes do Estado (Executivo e

Legislativo), ao assumir-se como poder político. Este fenômeno se manifesta em três

campos: o “garantismo de direitos”, o “controle de legalidade e dos abusos do poder” e

a “judicialização da política”.

Nesse panorama, é possível apontar um aparente paradoxo entre a

necessidade de efetivação da participação popular no Estado Democrático de Direito e

o protagonismo da atuação do Poder Judiciário em questões políticas (como

implementação de políticas públicas e reconhecimento de minorias).

Esta tensão ocorre por diversos motivos, destacando-se o argumento de que

não existe uma participação direta do povo nas deliberações do Poder Judiciário, a

começar pelo fato de que seus membros não são escolhidos pelo voto popular9, o que

provocaria um déficit de legitimidade na intervenção deste poder em questões

políticas.

De outro lado, visando apresentar respostas para estes problemas,

apresentam-se diversas teses, como a eleição dos membros do judiciário (como

ocorre nos EUA); a alegação de que a atividade do Poder Judiciário se funda, não em

bases democráticas, mas em critérios técnicos-jurídicos, que garantam a aplicação

dos direitos fundamentais que possuem como núcleo a dignidade da pessoa humana,

entre outras teorias (AVILLA, 2011; BOBBO, 1999 e BONAVIDES, 2003).

Em resumo, contrapõem-se duas posições antagônicas sobre o papel do Poder

Judiciário em relação aos demais Poderes, quais sejam, a autocontenção10 e o

ativismo judicial11.

9 Sergio Fernando Moro (2004, p 14) aduz que: “com efeito, a adoção da jurisprudência

constitucional importa na prática, em outorgar a corpo de profissionais do Direito – que não são elevados aos seus postos pela vontade popular, nem estão sujeitos à aprovação dela em sufrágios periódicos – o poder de formular políticas públicas e mesmo de obstaculizar a implantação de políticas formuladas por outras instituições mais democráticas, como o parlamento.” 10

Sergio Fernando Moro (2004, p 204) aponta, ainda que, de acordo com a autocontenção: “o juiz constitucional deve se conformar com seu papel secundário, embora relevante, em uma democracia. Cabe aos representantes eleitos pelo povo a primazia na formulação das políticas públicas, o que eles fazem principalmente por meio de atos legislativos.” 11

Luís Roberto Barroso (2008) aponta que “a idéia (sic) de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes. A postura ativista se manifesta por meio de diferentes condutas, que incluem: (i) a aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário; (ii) a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição; (iii) a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público, notadamente em matéria de políticas públicas.” i.

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Assim, justifica-se a problematização levantada pelo artigo – como se dá a

relação entre a necessidade de participação plena e dialética dos Cidadãos na tomada

de decisão envolvendo questões públicas (imprescindível no Estado Democrático de

Direito) e o protagonismo das decisões judiciais nas questões políticas.

III. O conceito de Cidadania na Teoria Política Contemporânea

Definir o significado de cidadania é uma tarefa tão necessária quanto difícil,

pois se trata de um termo polissêmico – assim como, aliás, a maioria dos conceitos

seja na Ciência Política seja no Direito.

É tarefa necessária, pois a concepção de cidadania está intrinsicamente

relacionada ao modelo de Estado, sendo certo que, quanto mais abrangente,

consolidada e participativa esta for, mais próximo estaremos de um verdadeiro Estado

Democrático de Direito.

Igualmente, trata-se de uma difícil missão, pois muitas são as abordagens

sobre o significado de cidadania, haja vista que, ao longo da História, o termo já

assumiu diversas roupagens.

A título de exemplificação, na Grécia Antiga, Aristóteles definia a cidadania

como uma categoria privilegiada de um seleto grupo dirigente da Cidade-Estado

(BARBALET, 1989). Esta concepção, entretanto, era conivente com grandes

injustiças, posto que a participação política dos (poucos) cidadãos dava-se à custa da

escravidão e da exclusão da grande maioria da população, o que não parece ser

compatível com as sociedades democráticas contemporâneas.

Por este motivo, neste artigo, a análise do conceito de cidadania dar-se-á

partindo da sua concepção sociológica tradicional, segundo as considerações de T. H.

Marshall (1967) devido ao reconhecimento da importância de suas considerações

outros grandes autores, como Nancy Frasier (1994, p.92)12 e Bryan S. Tunner (1994, p

201)13

Para Marshall (1967) a cidadania corresponde a uma condição (status) –

conquistada de maneira “etapista” ao longo da História – que possui um indivíduo ao

tornar-se membro integral de uma sociedade, através da formalização de direitos civis

(que se referem às denominadas liberdades individuais – por ex. pensamento,

12

“Our touchstone is T. H. Marshall‟s brilliant 1949 essay, „Citizenship and social class‟, the source for all discussions of „social citizenship‟. Marshall was the first to conceptualize and defend social citizenship as the crowning stage in the historical development of modern citizenship.” 13

“The initial idea for this theory of citizenship was developed in „Citizenship and social class‟ in 1949 (Marshall 1963).”

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locomoção, propriedade), políticos (que dizem respeito à participação no exercício do

poder – votar e ser votado) e sociais (direitos de bem-estar, que são, grosso modo,

expressões da necessidade coletiva de participação nas riquezas de uma determinada

sociedade – por ex. saúde e educação).

Esta condição (de Cidadão), segundo referido autor, deve ser universalizada

com o objetivo de promover a igualdade em uma determinada sociedade. Destaque-se

que, no seu entendimento, a simples formalização (positivação) dos direitos – civis,

sociais e políticos – teria o condão de eliminar as desigualdades sociais, até mesmo,

eliminando os conflitos de classe.

Não obstante, é importante salientar dois aspectos do conceito elaborado por

Marshall, que são muito criticados por outros pensadores sobre o assunto: (i) as

características da universalização apontada e (ii) ao que se refere à igualdade na

concepção tradicional de cidadania.

Primeiramente, a universalidade da cidadania, para Marshall, se dá no sentido

de que o status de Cidadão deve ser progressivamente expandido para abarcar

diversos setores da sociedade (em especial o que diz respeito às classes

trabalhadoras), e não mais retratar uma condição especial (privilégio) de uma casta ou

estamento. No entanto, como destaca Angus Stewart (1995), esta universalização está

adstrita aos limites de determinado Estado-nação, que, através de um vínculo

jurídico arbitrário, determina quem serão seus Cidadãos.

No que diz respeito à igualdade, no conceito tradicional de cidadania, esta se

refere a uma condição formal (igualdade perante a lei) uma vez que todos aqueles que

possuíssem o status de cidadão teriam os mesmos direitos e deveres,

independentemente de suas condições materiais.

Nesse sentido, Nancy Fraiser aponta que:

“When questions about gender and race are put at the center of the enquiry, key elements of Marshall´s analysis become problematic. His periodization of the three stages of citizenship, for example, fits the experience of white working men only, a minority of the populations. His conceptual distinctions between civil, political and social citizenship presuppose, rather then problematize, gender and racial hierarchy. Finally, his assumption, continued in later social-democratic thought and practice, that the chief aim of social citizenship is erosion of class inequality and protection from market forces slights other key axes if inequality and other mechanisms and arenas of domination”

14

(FRAISER: 1994, p 93)

14

Tradução nossa: “Quando questões sobre gênero e raça são colocadas no centro da problematização, alguns elementos-chave da análise de Marshall tornam-se insuficientes. A periodização dos três estágios da cidadania, por exemplo, encaixa-se somente na experiência

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Uma prova de que a crítica levantada por Fraiser – de que a concepção

tradicional de cidadania, ao valorizar os aspectos formais na implementação dos

direitos em detrimento dos aspectos materiais, fomenta situações de injustiça – está

correta, é a grande oposição de autores, que se alinham a correntes marxistas, ao

pensamento de Marshall.

Estas críticas, resumidamente, argumentam que a expansão do status de

Cidadão não seria suficiente para provocar alterações estruturais nas desigualdades

sociais, sendo, em verdade, uma barreira para essas mudanças. Nesse sentido

Michael Mann (1987), critica o evolucionismo na teoria de Marshall defendendo que,

na verdade a cidadania é sempre uma estratégia da classe dominante para manter o

controle da sociedade, uma vez que a concessão dos direitos (civis, políticos e sociais)

serviria para apaziguar as crises sociais, desmobilizando a classe trabalhadora sem,

contudo, possibilitar a efetiva participação das classes desprivilegiadas na condução

da sociedade, o que culminaria na superação do modelo capitalista.

Conquanto seja pertinente – uma vez que, principalmente no que diz respeito

aos direitos sociais, a concepção tradicional de cidadania deixa muito a desejar,

principalmente por se restringir a uma concepção retributiva, ou seja, o cidadão teria

direito de participar da riqueza da sociedade na medida em que contribuísse para a

formação desta, acaba desembocando em situações de injustiça social – a crítica

marxista nos parece um pouco exagerada já que, como aponta Barbalet (1989),

estudos realizados por Levine demonstram que o aparecimento do sufrágio entre os

homens adultos (classe trabalhadora) levou sim a alterações nas estruturas de

desigualdades.

Nesse contexto, são relevantes os posicionamentos de Angus Stewart (1995) e

Herman Van Gunsteren (1994), que são reticentes em relação à análise de Mann, uma

vez que valorizam mais o papel da ação política, ou seja, a pressão exercida pela

organização popular sobre o Estado, da qual a conquista da expansão dos direitos de

cidadania (civis, políticos e sociais) é uma etapa.

Stewart (1995), ademais, levanta uma discussão importantíssima para a

elaboração de um conceito contemporâneo de cidadania. Referido autor aponta que a

dos homens brancos, uma minoria das populações. Sua distinção conceitual entre cidadania civil, política e social pressupõe, ao invés de questionar a hierarquização pelo gênero e pela raça. Finalmente, sua suposição, que a socialdemocracia levou adiante na prática e no pensamento, de que a cidadania social poria fim as desigualdades de classe e protegeria das forças do mercado, despreza outros eixos da desigualdade além de outros mecanismos e arenas de dominação”

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cidadania pode ser entendida através de duas concepções: (a) cidadania como status

e (b) cidadania como democracia.

A cidadania como status, a exemplo de tudo que foi exposto até o presente

momento, refere-se a um vínculo jurídico de pertencimento a determinado Estado-

nação, que deve fornecer o acesso aos direitos mediante a contraprestação de

deveres. Já a “cidadania como democracia” valoriza o aspecto da participação do

individuo em uma comunidade política.

Essa segunda concepção, diga-se, aproxima-se muito daquilo que Antje

Wiener (1992) denomina de um “entendimento aberto e dinâmico de cidadania”, que

seria embasado na evolução permanente da cidadania através do tempo bem como

no entendimento de que a cidadania é uma prática e não uma condição.

Assim, não seria o Estado – através do estabelecimento arbitrário de um

vínculo jurídico – que delimitaria quem são os Cidadãos, mas sim os próprios

indivíduos que, através de uma prática de participação efetiva na comunidade política

que integram, seriam responsáveis por delimitar o que é ser Cidadão. É o que

defendem Engin F. Isin e Patricia K. Wood (1999), ao afirmar que a cidadania pode ser

descrita como um conjunto de práticas (culturais, simbólicas e econômicas) somado a

um pacote de direitos e deveres (sociais, políticos e civis), que definem o individuo

como membro de uma ordem política e participante de uma comunidade.

Devemos destacar que, no debate tradicional sobre a cidadania, diversas

discussões relevantes são deixadas de lado, como a insuficiência de uma concepção

formal de igualdade e a universalidade adstrita somente a determinado Estado-nação,

face aos complexos problemas das sociedades contemporâneas, como a questão de

identidade/minorias e a globalização.

Portanto, o conceito contemporâneo de cidadania, sem a pretensão de esgotar

o assunto, seria aquele que, partindo do pressuposto de que Cidadão é aquele que

participa nas tomadas de decisões da comunidade política a qual integra, garanta o

gozo dos direitos humanos e dos direitos fundamentais de maneira integral,

promovendo uma igualdade material (que reconheça as diferenças e atue no sentido

de amenizá-las, sem a descaracterização das minorais, no que diz respeito às

questões de identidade).

Esta nova cidadania exige, portanto, a conjugação de duas atuações, que as

instituições estatais sejam democráticas e permeáveis à participação popular e a

formação de uma cultura de participação popular na tomada de decisões relativas à

República.

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No que diz respeito à Constituição Federal de 1988, podemos observar que o

conceito de cidadania é recepcionado tanto no seu sentido sociológico tradicional,

quanto no sentido contemporâneo (democrático).

No artigo 14, ao estabelecer que a cidadania inicia-se com o alistamento

eleitoral e no artigo 23 inciso XIII, que restringe a competência para legislar em

matéria de nacionalidade, cidadania e naturalização à União, encontramos exemplos

de um tratamento formal e restrito à cidadania, uma vez que importante parcela da

sociedade fica a margem desta definição – nota-se que, principalmente por motivos

culturais e econômicos, não são cidadãos aqueles que não possuem título eleitoral, as

crianças e os adolescentes, bem como os imigrantes ilegais.

Como aponta José Roberto Fernandes Castilho (2008) nessa situação fica

claro que a categoria cidadania é tomado no “sentido restrito ou formal” o que não é

compatível com a ampliação dos direitos inerentes à construção da cidadania na

democracia, tendo, na verdade identificação com a “idéia (sic) liberal sem situá-la no

tempo e no espaço”.

De outra maneira, ao analisarmos os artigos 1°, com seus incisos e parágrafo,

por exemplo, notaremos que esta norma fundamenta a República Federativa do Brasil

nos princípios da soberania, da cidadania, da dignidade da pessoa humana, dos

valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, e do pluralismo político. Também o

artigo 5º15 estabelece a proteção da vida, liberdade, igualdade, segurança e

propriedade aos estrangeiros.

Portanto, nestes casos, fica evidente que o cidadão é compreendido de

maneira mais abrangente possível, em relação mutualística com os demais princípios.

Assim entende Castilho (2008) ao afirmar que, a “cidadania aqui tem o sentido forte de

direito de acesso concreto e efetivo aos direitos públicos subjetivos: é o oposto da

exclusão social”.

Fixado o conceito contemporâneo de cidadania à luz do ordenamento jurídico

pátrio, passaremos agora a uma breve análise sobre a função social do Poder

Judiciário, à luz de um entendimento dinâmico e democrático da cidadania.

IV. A função social do Poder Judiciário

15

“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)”

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Antes de ingressarmos na análise da função do Poder Judiciário no Estado

Democrático de Direito, cumpre-nos realizar alguns esclarecimentos a cerca da opção

pela terminologia “função social”.

Foram nas Constituições do México de 1917 e da Alemanhã de 1919 (Weimar)

que surgiu a terminologia “função social” que, como muito bem apontado por Viviane

Perez16, referia-se, inicialmente, à superação de uma visão individualista de sociedade

propriedade. Assim, é possível concluir que o conceito de “função social” está

relacionado com a utilização de um direito de modo que toda a sociedade seja

beneficiada e não só o indivíduo (é o que ocorre no caso da “função social da

propriedade” e da “função social do contrato”).

Assim, de maneira retórica, iremos nos apropriar do termo “função social” para

indicar que o papel do Poder Judiciário no Estado Democrático de Direito nunca pode

ser o de uma atuação em benefício de si mesmo, da sociedade governamental, ou de

elites econômicas hegemônicas, mas, sim, deve dar uma resposta para a sociedade,

sempre objetivando o bem-comum, expresso na diminuição de desigualdades e da

pobreza, bem como no respeito à dignidade da pessoa humana, o que passa pelo

reconhecimento da identidade das minorias.

Dito isto, cumpre-nos esclarecer que a função típica do Poder Judiciário é a

jurisdição17 e que ele possui algumas características, dentre as quais as principais são

a existência de uma lide (ou pretensão resistida), a inércia e a definitividade (LENZA,

2011).

Evidencie-se, portanto, que, a análise do Poder Judiciário não envolve somente

as questões acerca do seu desenho institucional. Isto porque o Poder Judiciário é um

cenário de atuação política que envolve não somente o papel do juiz (conquanto este

seja, na realidade, um protagonista, pois detém o poder de decisão definitiva), mas,

16

In: Função Social da Empresa. Disponível em: <http://www.lrbarroso.com.br/shared/download/funcao-social-empresa.pdf> acesso em: 03/05/2013 17

A jurisdição é “uma das funções do Estado, mediante a qual este se substitui aos titulares dos interesses em conflito para, imparcialmente, buscar a pacificação do conflito que os envolve, com justiça. Essa pacificação é feita mediante a atuação da vontade do direito objetivo que rege o caso apresentado em concreto para ser solucionado; e o Estado desempenha essa função sempre por meio do processo, seja expressando imperativamente o preceito (através de uma sentença de mérito), seja realizando no mundo das coisas o que o preceito estabelece (através da execução forçada)” In: CINTRA, Antônio Carlos de Araujo; GRINOVER, Ada Pellegrini e DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 12ª ed. São Paulo: Malheiros. p. 129. 1996.

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também, a atuação de diversos atores, em razão, principalmente do princípio da

inércia18.

Como uma análise detalhada sobre o desenho institucional do Poder Judiciário

e a atuação política dos diversos atores (cidadãos, empresas, órgãos públicos,

advogados, membros do ministério público, defensores públicos, etc.) não encontra

espaço (físico e temporal) neste artigo, fixaremos, de maneira didática, dois

parâmetros para analisar a sua “função social”, sempre à luz do conceito

contemporâneo de cidadania.

O primeiro parâmetro refere-se a qual tem sido a intensidade de atuação do

Poder Judiciário na diminuição das desigualdades e promoção da dignidade da

pessoa humana.

Ainda que de maneira superficial, esta variável será medida pela atuação do

judiciário na efetivação de políticas públicas e em questões que outrora só eram

discutidas nos Poderes Executivo e Legislativo, uma vez que, para o

neoconstitucionalismo, está é uma condição inerente ao Estado Democrático de

Direito.

A segunda variável, a ser debatida no próximo item, refere-se ao acesso ao

Poder Judiciário pelas camadas hipossuficientes da sociedade, estabelecendo-se que

quanto maior o acesso mais democrático será o poder judiciário

Dito isto, devemos destacar que se ao longo da História brasileira, o Poder

Judiciário permaneceu alheio às disputas pelo poder, isto porque, historicamente, o

Poder Judiciário sempre foi entendido como um órgão técnico (por sua linguagem e

instrumentos particulares), o que o distanciaria da arena política. (RICARDO

FERNANDES, 2010).

Não obstante, é impossível negar que, atualmente, o Poder Judiciário

brasileiro, em especial ao que diz respeito ao Supremo Tribunal Federal, assume uma

outra postura ativa em relação a temas políticos, de grande relevância social.

Nesse sentido, diversos são os assuntos politicamente relevantes discutidos no

Supremo Tribunal Federal, como a taxação dos aposentados (ADI 3105), o aborto de

fetos anencefálicos (ADPF 54), a pesquisa com células troncos embrionárias (ADI

3519), o racismo em face da liberdade de expressão (HC 82424), a legitimidade das

18

O princípio da inércia é expresso pela máxima latina “nemo judex sine actore, ne procedat judez ex officio”, que significa, em poucas palavras, que o Poder Judiciário só atuará se for provocado (vide artigos 2º do Código de Processo Civil e 24 do Código de Processo Penal)

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cotas sociais como ações afirmativas (ADPF 186) bem como a possibilidade de união

estável homoafetiva (ADI 4277 e ADPF 132).

Também na seara das políticas públicas o Poder Judiciário já não se furta ao

conflito com os outros Poderes (Executivo e Legislativo), impondo-lhes medidas que

garantam o acesso da população mais carente, principalmente no que diz respeito à

saúde, educação e moradia.19

É importante ressaltar que este artigo não tem o escopo de valorar o

protagonismo do Poder Judiciário nas discussões de importantes questões políticas,

mas, sim, de constatá-la, pois, segundo o neoconstitucionalismo, esta é uma das

premissas do Estado Democrático de Direito.

19

“É possível ao Poder Judiciário determinar a implementação pelo Estado, quando inadimplente, de políticas públicas constitucionalmente previstas, sem que haja ingerência em questão que envolve o poder discricionário do Poder Executivo.” (AI 734.487-AgR, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 3-8-2010, Segunda Turma, DJEde 20-8-2010. – No mesmo sentido: ARE 725.968, rel. min. Gilmar Mendes, decisão monocrática, julgamento em 7-12-2012, DJE de 12-12-2012; ARE 635.679-AgR, Rel. Min. Dias Toffoli, julgamento em 6-12-2011, Primeira Turma, DJE de 6-2-2012.); "A controvérsia objeto destes autos – possibilidade, ou não, de o Poder Judiciário determinar ao Poder Executivo a adoção de providências administrativas visando a melhoria da qualidade da prestação do serviço de saúde por hospital da rede pública – foi submetida à apreciação do Pleno do STF na SL 47-AgR, rel. min. Gilmar Mendes, DJ de 30-4-2010. Naquele julgamento, esta Corte, ponderando os princípios do „mínimo existencial‟ e da „reserva do possível‟, decidiu que, em se tratando de direito à saúde, a intervenção judicial é possível em hipóteses como a dos autos, nas quais o Poder Judiciário não está inovando na ordem jurídica, mas apenas determinando que o Poder Executivo cumpra políticas públicas previamente estabelecidas." (RE 642.536-AgR, rel min. Luiz Fux, julgamento em 5-2-2013, Primeira Turma, DJE de 27-2-2013); "Esta Corte já firmou a orientação de que é possível a imposição de multa diária contra o poder público quando esse descumprir obrigação a ele imposta por força de decisão judicial. Não há falar em ofensa ao princípio da separação dos Poderes quando o Poder Judiciário desempenha regularmente a função jurisdicional." (AI 732.188-AgR, rel. min. Dias Toffoli, julgamento em 12-6-2012, Primeira Turma, DJE de 1º-8-2012.) No mesmo sentido: ARE 639.337-AgR, rel. min. Celso de Mello, julgamento em 23-8-2011, Segunda Turma, DJE de 15-9-2011.); “Separação dos Poderes. Possibilidade de análise de ato do Poder Executivo pelo Poder Judiciário. (...) Cabe ao Poder Judiciário a análise da legalidade e constitucionalidade dos atos dos três Poderes constitucionais, e, em vislumbrando mácula no ato impugnado, afastar a sua aplicação.” (AI 640.272-AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 2-10-2007, Primeira Turma, DJ de 31-10-2007 - No mesmo sentido: AI 746.260-AgR, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 9-6-2009, Primeira Turma, DJE de 7-8-2009).; “Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão – por importar em descumprimento dos encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório – mostra-se apta a comprometer a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional. A questão pertinente à „reserva do possível‟." (RE 436.996-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 22-11-05, Segunda Turma, DJ de 3-2-2006. – No mesmo sentido: RE 582.825, Rel. Min. Ayres Britto, decisão monocrática, julgamento em 22-3-2012, DJE de 17-4-2012; RE 464.143-AgR, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 15-12-2009, Segunda Turma ,DJE de 19-2-2010; RE 595.595-AgR, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 28-4-2009, Segunda Turma, DJE de 29-5-2009)

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Noutro giro, se a atuação política do Poder Judiciário pode ser fartamente

constatada através da simples análise de jurisprudência do Superior Tribunal Federal,

outra questão – que tem extrema relevância para a efetivação da cidadania – não

parece ter tido uma resposta positiva no Brasil.

Esta questão, que é o nosso segundo parâmetro de análise, será tratada no

próximo tópico.

V. O problema (da falta) do acesso a Justiça.

A expressão “acesso à justiça”, como aduzem Mauro Cappelletti e Bryan Garth

(2002, p.8) determina dois objetivos básicos do sistema jurídico: “primeiro, o sistema

deve ser igualmente acessível a todos; segundo, ele deve produzir resultados que

sejam individual e socialmente justos”.

Desta forma, à luz do conceito contemporâneo de cidadania, o acesso à justiça

– ou seja, que, primeiro, a proposição de demandas ao Poder Judiciário seja acessível

aos cidadãos e, em segundo lugar, que a prestação jurisdicional seja adequada para

satisfazer a dignidade da pessoa humana – é requisito indispensável de um sistema

jurídico que pretenda garantir, e não apenas proclamar, direitos fundamentais, e, por

conta disto, vem crescentemente sendo aceito como um direito social básico nas

sociedades modernas. Tais finalidades do sistema jurídico, portanto, tem o intuito e a

tarefa de tornar efetivos, e não meramente simbólicos, os direitos das pessoas.

Boaventura de Sousa Santos (1994) aponta a existência de fatores sociais que

levaram a um interesse da sociologia pelo papel do Poder Judiciário, fatores estes que

culminaram, na década de 60, em uma “crise de administração judiciária”.

Tais fatores iniciar-se-iam com as lutas sociais protagonizadas por grupos

sociais que não tinham tradição de confrontar o status quo de maneira coletiva (como

negros, estudantes e amplos setores da pequena burguesia,) o que culminou com a

impossibilidade do Poder Judiciário de responder as demandas da sociedade, dada a

“explosão de litigiosidade”, a qual até hoje o Estado brasileiro não foi capaz de dar

uma resposta satisfatória.

O problema nesta situação é que as partes, quando em um processo judicial,

não se encontram em “paridade de armas”, ou seja, as decisões judiciais não

dependem apenas do mérito jurídico de cada uma das partes, mas, muitas vezes, de

como foi construído o sistema processual (CAPPELETTI e GARTH, 2002).

É quase lógica a consequência de que o primeiro obstáculo ao acesso à justiça

faz referências às custas do processo, o que incluem, as taxas judiciais, honorários

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advocatícios, produção de provas – principalmente periciais – e o ônus da

sucumbência, ficando lógico que, sob essa ótica, os cidadãos pobres teriam menos

acesso à justiça que os ricos.

Essa situação se agrava se considerarmos, ainda, a demora na prestação

jurisdicional, outra pressão para que os pobres não procurem o Poder Judiciário, ou

aceitem uma composição (um acordo) por menos direitos do que fariam jus.

Nesse sentido:

“Pessoas ou organizações que possuem recursos financeiros

consideráveis a serem utilizados têm vantagens óbvias ao propor ou

defender demandas. Em primeiro lugar, elas podem pagar para litigar.

Podem, além disso suportar as delongas do litígio. (...) De modo

similar, uma das partes pode ser capaz de fazer gastos maiores que

a outra e, como resultado, apresentar seus argumentos de maneira

mais eficiente”. (CAPPELETTI e GARTH, 2002, p.21)

É importante destacar que ao problema das custas judiciais, precede outro,

ainda mais grave, que é a falta de aptidão para reconhecer um Direito e propor

uma ação em sua defesa.20

Destaque-se que estas questões são apenas alguns dos problemas da falta do

acesso à justiça – podemos apontar, ainda, as questões dos litigantes

organizacionais21 e da defesa dos interesses difusos. Para estes problemas,

apresentam-se três “ondas renovatórias” do acesso à justiça: “assistência judiciária

para os pobres”, “representação dos interesses difusos” e “enfoque do acesso à

justiça” (CAPPELETTI e GARTH 2002)

Inicialmente, para atacar a problemática da falta de acesso dos menos

favorecidos economicamente à justiça (primeira onda) faz-se necessário, de maneira

até intuitiva, dispensar o indivíduo pobre das despesas do processo. Tal foi feito no

20

“Num primeiro nível está a questão de reconhecer a existência de um direito juridicamente exigível. Essa barreira fundamental é especialmente séria para os despossuídos, mas não afeta apenas os pobres. Ela diz respeito a toda a população em muitos tipos de conflitos que envolvem direitos.(...) Mesmo consumidores bem informados, por exemplo, só raramente se dão conta de que sua assinatura num contrato não significa que precisem, obrigatoriamente, sujeitar-se a seus termos, em quaisquer circunstâncias. Falta-lhes o conhecimento jurídico básico não apenas para fazer objeção a esses contratos, mas até mesmo para perceber que sejam passíveis de objeção” (CAPPELLETTI e GARTH, 2002, p. 23) 21

“Há menos problemas em mobilizar as empresas no sentido de tirarem vantagens de seus direitos, o que, com frequência, se dá exatamente contra aquelas pessoas comuns que, em sua condição de consumidores, por exemplo, são as mais relutantes em buscar o amparo do sistema judicial”. “CAPPELLETTI e GARTH, 2002, p.26”

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Brasil, com a lei nº 1.060 de 05 de fevereiro de 1950, que inseriu no ordenamento

jurídico pátrio o instituto do benefício da justiça gratuita aos que declararem

insuficiência de recursos.

Necessário notar que assistência judiciária também consiste na

disponibilização de profissionais para prestar os serviços de advocacia para os que

não possuem condições de pagar por isso (CAPPELETTI e GARTH, 2002), o que

ocorre devido ao estabelecimento do poder postulatório.

No que diz respeito ao Brasil, a Constituição Federal de 1988 consagrou, no

artigo 5º, LXXIV, que é direito fundamental do Cidadão e dever do Estado prestar

assistência jurídica integral e gratuita22. aos que comprovarem insuficiência de

recurso.

Para tanto, o Estado brasileiro adotou duas soluções: o estabelecimento de

convênios entre o Estado e advogados particulares23, para atuar em processos

judiciais dos Cidadãos pobres, e a criação de uma instituição para prestação de

orientação jurídica e defesa, em todos os graus de jurisdição, dos necessitados, a

Defensoria Pública. 24

22

O conceito de assistência jurídica é mais amplo do que o de assistência judiciária. Inclui, muito além da atuação pontual em demandas individuais, atividades de orientação, esclarecimento, promoção dos direitos humanos, defesa dos direitos coletivos, e preferência por resolução de conflitos extrajudicialmente. 23

Cumpre-nos aqui, uma crítica a esta solução, que muito se assemelha ao que Cappelletti e Garth (2002, p. 38) denominam de sistema judiciare, que foi adotado nas reformas de assistência judiciária na Áustria, Inglaterra, Holanda, França e Alemanha Ocidental, e que “não encoraja, nem permite que o profissional individual auxilie os pobres a compreender seus direitos e identificar as áreas em que se podem valer de remédios jurídicos. (...) Ademais, mesmo que reconheçam a sua pretensão, as pessoas pobres podem sentir-se intimidadas em reinvindicá-la pela perspectiva de comparecerem a um escritório de advocacia e discuti-la com um advogado particular. Sem dúvida, em sociedades em que ricos e pobres vivem separados, pode haver barreiras tanto geográficas quanto culturais entre os pobre e o advogado. Ademais, é evidente que a representação através de profissionais particulares não enfrenta as desvantagens de uma pessoa pobre frente a litigantes organizacionais. Mais importante, o judiciare trata os pobres como indivíduos, negligenciando sua situação como classe. (...) Dado que os pobre encontram muitos problemas jurídicos como grupo, ou classe, e que os interesses de cada indivíduo podem ser muito pequenos para justificar uma ação, remédios meramente individuais são inadequados 24

Art. 134, da Constituição Federal de 1988: “A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV. § 1º Lei complementar organizará a Defensoria Pública da União e do Distrito Federal e dos Territórios e prescreverá normas gerais para sua organização nos Estados, em cargos de carreira, providos, na classe inicial, mediante concurso público de provas e títulos, assegurada a seus integrantes a garantia da inamovibilidade e vedado o exercício da advocacia fora das atribuições institucionais. § 2º Às Defensorias Públicas Estaduais são asseguradas autonomia funcional e administrativa e a iniciativa de sua proposta orçamentária dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias e subordinação ao disposto no art. 99, § 2º.”

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Conquanto a seja de fácil constatação que a Constituição Federal de 1988

apresenta uma resposta formal ao problema da assistência jurídica para os pobres,

alguns dados empíricos demonstram que o Brasil ainda está muito longe de resolver

esta questão.

Primeiramente, é importante destacar que esta problemática já era investigada

desde antes da promulgação da Constituição de 1988. Nesse sentido, destaca-se a

pesquisa realizada por João Piquet Carneiro (1982), intitulada “A justiça do pobre”.

No referido trabalho, o autor analisou dados sobre os litígios, nas cidades de

São Paulo e do Rio de Janeiro, no ano de 1980, chegando as seguintes conclusões:

Considerando-se os feitos cíveis, no Rio de Janeiro havia uma ação

para cada 80 habitantes; em São Paulo, havia uma ação para cada 40 habitantes,

enquanto em Nova York havia uma ação para cada 08 habitantes.

Dessas ações, 60% das de rito sumário e 68% das execuções eram

iniciadas por pessoas jurídicas, que também eram responsáveis por mais de um terço

(34%) das ações ordinárias.

Haviam, no Estado do Rio de Janeiro, 6.7000.000 de pessoas

consideradas “pobres segundo a lei” para fins de assistência judiciária gratuita,

enquanto que no Estado de São Paulo haviam 12.700.000.

Não havia serviços de assistência judiciária suficientes no País.

Assim, fica evidente que os cidadãos comuns, principalmente os pobres, não

possuíam um efetivo acesso há justiça.

Embora seja possível sustentar que, da década de 80 para cá, o panorama do

acesso à justiça para os Cidadãos pobres tenha se modificado, principalmente devido

à instauração dos Juizados Especiais25 (Lei nº 9.099 de 26 de setembro de 1995),

ainda são muito gritantes outros problemas, como a morosidade na prestação

jurisdicional e o aparelhamento o aparelhamento do Poder Judiciário pelos setores

hegemônicos da sociedade, que na maioria das vezes nem sequer integram a esfera

da Sociedade Civil, mas sim as do Estado e do Mercado.

No que diz respeito a morosidade na prestação jurisdicional, há que se

destacar os números apontados pelo relatório do CNJ, “Justiça em Números”, de

201226, que aponta que, ao longo de 2011, dos quase 90 milhões de processos, 71%

25

Cf: ABREU, Pedro Manoel. JUIZADOS ESPECIAIS – uma experiência brasileira de acesso à justiça. Disponível em: <http://tjsc25.tj.sc.gov.br/academia/arquivos/juizado_espe_experiencia_pedro_abreu.pdf> 26

Disponível em: < http://www.cnj.jus.br/programas-de-a-a-z/eficiencia-modernizacao-e-transparencia/pj-justica-em-numeros>

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(63 milhões) já vinham pendentes de outros anos. Constatou-se, ainda que embora o

total de processos resolvidos no ano de 2011 tenha apresentado um aumento de 7,4%

em relação ao ano anterior, não houve uma redução nos processos pendentes, pois

essa diminuição foi anulada por aumentos anteriores.

Até mesmo no que diz respeito a taxa de congestionamento (que refere-se a

uma relação entre processo resolvido e processo proposto), não houveram grandes

resultados, posto que a diminuição desta taxa ainda não foi suficiente para atingir

100%, ou seja, um processo resolvido para cada proposto, em nenhuma instancia

judicial, com exceção dos Juizados Especiais.

Quanto ao aparelhamento do Poder Judiciário por setores hegemônicos, o

relatório do CNJ, “100 Maiores Litigantes”27, apresenta o estarrecedor dado de que o

setor público federal e os bancos representam cerca de 76% do total de processos dos

100 maiores litigantes nacionais, sendo que os demais maiores litigantes concentram-

se nos setores públicos estadual e municipal, no setor industrial e nas empresas de

telefona.

Conquanto estes dados levem em conta somente pessoas jurídicas e/ou

entidades estatais, os números ainda são suficientes para indicar que, tal como na

década de 80, o Poder Judiciário continua sendo abarrotado pelas elites

economicamente hegemônicas.

Sequer a resposta formal do Estado brasileiro ao problema do acesso à justiça

para os pobres (qual seja, a criação da instituição Defensoria Pública) está longe de

ser uma solução material efetiva para a questão. O relatório do IPEA, “Mapa da

Defensoria Pública no Brasil”28, apresenta que das 2.680 comarcas existentes no

brasil, apenas 754 (28%) são atendidas pela Defensoria Pública.

Assim, podemos observar que, dos dois parâmetros estabelecidos (atuação do

Poder Judiciário em questões políticas e acesso à justiça pelos cidadãos pobres),

apenas o primeiro encontra-se em uma situação satisfatória (para os parâmetros do

neoconstitucionalismo), enquanto que o problema da falta de acesso à justiça pelos

cidadãos hipossuficientes ainda está longe de ser resolvido.

VI. Conclusões

Como explicitamos deste o inicio do artigo, este trabalho não tem a intenção de

apresentar conclusões ou explicações para a questão da função social do Poder

27

Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/images/pesquisas-judiciarias/pesquisa_100_maiores_litigantes.pdf> 28

Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/sites/mapadefensoria>

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Judiciário. Noutro giro, tem o escopo de reunir argumentos teóricos e fatos empíricos

que servirão de pano de fundo para a elaboração da tese a ser do mestrado no

Programa de Pós-Graduação em Ciência Política na UFSCar, cujo tema é a

legitimidade das decisões judiciais no Estado Democrático de Direito.

Nesse sentido, de todo o quanto foi exposto, podemos chegar a algumas

constatações e a alguns problemas.

Primeiramente, partindo do conceito contemporâneo de cidadão – que, como

expusemos, refere-se ao gozo pleno dos direitos fundamentais, bem como uma

relação dinâmica de participação no Estado – fica evidente que o Poder Judiciário

deve ser uma instituição voltada à defesa e efetivação dos direitos e garantias

individuais, sociais e coletivas e para a erradicação das desigualdades e da pobreza.

Além disso, ela deve ser uma instituição aberta e permeável às demandas

sociais, principalmente das classes menos abastadas (ou hipossuficientes). Em outras

palavras, aqueles que foram deixados à margem do Estado durante o processo de

implementação e evolução do capitalismo, devem encontrar no Poder Judiciário um

garantidor dos direitos que foram constitucionalizados, depois de muita luta da

Sociedade Civil (em especial o que se refere aos artigos 5º, 6º e 7º da CF).

Dito isso, foi-nos possível constatar uma precária implementação do Estado

Democrático de Direito no Brasil, ao menos no que diz respeito ao Poder Judiciário,

uma vez que esta depende concomitantemente da participação dos Cidadãos (dentro

da concepção democrática de cidadania) na coisa pública e da salvaguarda dos

direitos fundamentais amplamente constitucionalizados em nosso ordenamento

jurídico.

Paralelo a isto, é possível notar a existência de um protagonismo do Poder

Judiciário no que diz respeito à resolução de conflitos envolvendo o reconhecimento

de minorias, bem como na implementação de políticas públicas,

Em outras palavras, o Poder Judiciário já não se furta mais de intervir em

questões políticas que, anteriormente, eram discutidas no âmbito dos Poderes

Executivo e Judiciário.

Este fenômeno (protagonismo do Poder Judiciário), que é denominado por

alguns autores de ativismo judicial, é tido pelo neoconstitucionalismo, como uma

condição para a concretização do Estado Democrático de Direito, ou, de outra forma,

como uma consequência desta concretização.

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No entanto, ao passo em que o Estado, principalmente no âmbito do Poder

Judiciário, ainda deixa a margem de sua atuação os setores economicamente

desprivilegiados (os cidadãos pobres), é possível questionar se existe mesmo um viés

democrático na atuação do Poder Judiciário.

Assim, surgem diversos problemas, dentre os quais os principais são:

1- O protagonismo do Poder Judiciário no Brasil, em um contexto de

exclusão social, é compatível ou não com a democratização de nossa sociedade?

2- Esse protagonismo pode ser exercido sem a participação do cidadão, ao

menos de uma forma elementar, que é a proposição de demandas?

3- A inclusão social dos cidadãos pobres passa por esse protagonismo do

Poder Judiciário?

4- Em qual medida uma prevalência de atuação dos setores hegemônicos,

principalmente das esferas do Estado e do Mercado, é um entrave a esta inclusão?

Por óbvio que, por hora, estes problemas ficarão sem solução, no entanto, não

podemos olvidar que eles levam a uma problemática antecedente e ainda maior, a

legitimidade das decisões judiciais no Estado Democrático de Direito, o qual este autor

pretende responder durante a elaboração da tese para o mestrado no Programa de

Pós-Graduação em Ciência Política da UFSCar.

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