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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
DARGAN BENTO PATITUCCI JUNIOR
CIDADANIA CONQUISTADA, CIDADANIA OUTORGADA:
UM ESTUDO DE CASO SOBRE POLÍTICAS DE
ATENDIMENTO PRIORITÁRIO
CURITIBA
2011
Dargan Bento Patitucci Junior
CIDADANIA CONQUISTADA, CIDADANIA OUTORGADA: UM ESTUDO DE CASO SOBRE POLÍTICAS DE
ATENDIMENTO PRIORITÁRIO
Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Departamento de Ciências Sociais, do Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, da Universidade Federal do Paraná, como requisito parcial para a obtenção do título de bacharel em Ciências Sociais.
Orientador: Prof°. Dr. Ricardo Costa de Oliveira
Curitiba
2011
SUMÁRIO
Introdução ............................................................................................... .......... 3
Capítulo I
Os direitos na história .......................................................................... .......... 5
Direitos e cidadania ............................................................................................... 6
O Brasil .......................................................................................................... 10
Capítulo II
Pesquisa sobre o atendimento prioritário ..................................................... 18
Projetos de lei federais sobre atendimento prioritário .......................................... 22
Projetos de lei do Estado do Paraná sobre atendimento prioritário .......... 24
Projetos de lei do Município de Curitiba sobre atendimento prioritário .......... 27
Capítulo III
A cidadania brasileira .................................................................................... 30
País legal e país real .................................................................................... 34
Conclusão .......................................................................................................... 38
Referências bibliográficas .................................................................................... 41
RESUMO
O presente trabalho procura uma explicação do porquê leis como as que definem atendimento prioritário, especialmente no caso de idosos, não são cumpridas. O problema é enfrentado a partir da história da construção da cidadania, isto é, da sua elaboração na Europa e no Brasil. Isso será feito, mais detalhadamente, através das lições de T. H. Marshall e Reinhard Bendix, na abordagem do caso dos países em que pioneiramente os direitos foram conquistados e Wanderley Guilherme dos Santos e Roberto da Matta no caso do Brasil. Acessoriamente, é trazida breve pesquisa sobre o atendimento prioritário em algumas lojas de supermercados, agências bancárias e o local de atendimento de serviço público estadual.
Complementarmente, é feito o registro do resultado de pesquisa sobre a origem de leis que, de alguma forma, introduziram, nos âmbitos federal, do Estado do Paraná e do Município de Curitiba, maior atenção ao idoso. Esta a matéria prima, portanto, em que serão buscados os elementos para a discussão e explicações a respeito da questão suscitada: o porquê a legislação que determina o atendimento prioritário não é cumprida.
Palavras-chave: cidadania; atendimento prioritário, idoso; legislação;
descumprimento.
ABSTRACT This work seeks an explanation of why laws like those that define priority care,
especially in the case of the elderly people, are not fulfilled. The issue starts being faced from the viewpoint of the construction of
citizenship history, i.e. of its development in Europe and Brazil. This will be thoroughly done through the lessons of T. H. Marshall and
Reinhard Bendix, in the approach to cases of countries that conquered these rights in a pioneering way and Wanderley Guilherme dos Santos and Roberto da Matta, in the case of Brazil.
Incidentally, a brief survey is brought about the priority treatment in some grocery stores, bank branches and the point of care in statewide public services.
In addition, the record of the result of research on the origin of laws is made, which somehow introduced bigger attention to elderly people in federal areas of the State of Paraná and the municipality of Curitiba.
Therefore, that´s de raw material in which will be fetched the elements to the discussion and explanations regarding the raised issue: why is the legislation that determines priority treatment not fulfilled
Key-words: citizenship; priority care, elderly; legislation; noncompliance.
3
INTRODUÇÃO
Não é necessário um olhar aguçado pela experiência de vida ou informado
pela teoria para perceber o quanto o cotidiano, em anos recentes, tem sido inundado
por sinalização visual como indicações, cartazes, localizações, relacionada a novas
normas de conduta sociais.
Essas intervenções decorrem, entre outros, do fato de que as complexidades
inerentes às grandes concentrações populacionais ou ao desenvolvimento
tecnológico, ou a fenômenos demográficos, como o aumento relativo do número de
idosos da população, impõem regramentos que ofereçam viabilidade mínima à
própria sociedade.
Assim é que não há como passar despercebido, a quem entra em um ônibus,
a existência de assentos demarcados, em alguns casos com cor (muito) diferente
dos demais, destinados a deficientes, gestantes, pessoas com crianças e idosos. Ou
a novel demarcação de vagas para automóveis, em vias públicas e em
estacionamentos privados destinados a consumidores e clientes, ou os locais para
atendimento preferencial em repartições públicas, estabelecimentos bancários,
supermercados, para citar os casos mais evidentes.
Essa concretização, por assim dizer, da lei, em inúmeros casos – observados
especial e privilegiadamente por quem é personagem da trama – não vai além disso:
a sinalização visual como mero lembrete da existência da lei. Isto porque,
notadamente nas situações de atendimento prioritário, as quais são experimentadas
por qualquer um que habitualmente freqüente um supermercado, estabelecimento
bancário ou repartição pública, o que compreende um grande contingente da
população adulta, é fácil constatar que a sinalização visual simula o cumprimento da
lei, haja vista ser esta solenemente descumprida no que se refere à norma dela
emanada, pois na prática inexiste atendimento prioritário.
A constatação de que leis que não resultam em significativos sacrifícios
mensuráveis em valores monetários aos que são obrigados a fazer adaptações para
lhe dar cumprimento, são infringidas, suscitam questões que transcendem tal
circunstância. Trata-se da observação de que aqueles que cedem (ou deveriam
ceder) lugar para os destinatários do atendimento prioritário não escondem uma
4
certa irresignação com o que – é lícito supor – seja um inconformismo com a
usurpação “de seu lugar na fila”. E o curioso neste caso é que parece ter havido uma
inversão de valores: há não muito tempo atrás era habitual que um jovem nem
ocupasse o assento de um ônibus, mas que, em o fazendo, levantasse
imediatamente para oferecer o lugar a um idoso, ou gestante, recém embarcado.
Não havia necessidade de lei: o olhar insistente dos demais passageiros a um
eventual recalcitrante, era suficiente para constrangê-lo a dar seu lugar. O mesmo
era verificável em uma fila de banco ou situação semelhante.
Essas questões serão objeto de análise à luz da construção da cidadania a
partir da abordagem de Thomas Humphrey Marshall e de Reinhard Bendix, no plano
europeu e de Wanderley Guilherme dos Santos no caso brasileiro. A elucidação das
questões será pesquisada tendo por principal referência Roberto da Matta.
Por parecer de alguma relevância, o trabalho conterá o resultado de pesquisa
sobre a proposta e tramitação de projetos de lei paradigmáticos visando, com a
investigação, determinar se a concretização de direitos sociais – no caso,
particularmente, da Lei que assegura o atendimento prioritário – decorre de outorga,
ou se houve algum movimento reivindicatório que tenha dado partida à sua final
aprovação, e que por isso, autorize a dedução de ter sido conquistada.
Por último, serão apresentados alguns apontamentos sobre pesquisa a que
se deu início em alguns poucos supermercados, bancos e uma repartição pública,
cujo universo foi reduzido porque os primeiros resultados foram frustrantes, mas que
oferece elementos para reflexões sobre algumas das questões aqui enfrentadas.
5
CAPÍTULO I
Os direitos na história
O gregarismo humano é fato evidenciado pelos agrupamentos surgidos ainda
na pré-história, manifestado vivamente em uma evolução que vai da família,
passando pelas tribos e chegando às grandes concentrações populacionais. A
passagem do estágio de natureza em que há guerra de todos contra todos, via
associação, traz segurança, mas exige, em contrapartida, renúncias e concessões,
notadamente ao exercício arbitrário das próprias razões. O Estado passa a deter o
monopólio do uso da força; é o grande Leviatã, ao qual é dada autoridade para,
mediante a força e recursos de todos, assegurar a paz e a defesa comum
(HOBBES, 1974)
Esse estágio caracterizado pela associação, que exige a renúncia do exercício
arbitrário das próprias razões, afronta a natureza humana, de tal forma que se torna
inevitável a introdução de mecanismos de controle, materializados em regras que
disciplinam as relações sociais: a ordem jurídica.
Na sequencia em que se consolida o Estado-nação – rompendo com o
feudalismo a partir do século XVIII – surgem institucionalizados, por primeiro, os
direitos, civis e políticos, que enfeixam liberdades como o direito de ir e vir, de
pensamento, de exercer o comércio. O grande marco é a revolução francesa de
1789. São direitos voltados ao indivíduo, denominados direitos de primeira geração.
Por segundo são consolidados os direitos denominados sociais, econômicos e
culturais: ao bem estar, à saúde, à educação, ao trabalho. São denominados direitos
de segunda geração. A terceira geração de direitos representaria uma fusão das
anteriores, transcendendo o território nacional e alcançando foros de
internacionalidade. São os direitos, que nessa dicotomia nacional e supranacional,
englobam a coletividade humana, mas também o individuo, como no caso de
crianças, mulheres e idosos, carentes de proteção especial. São denominados
direitos de solidariedade ou fraternidade, e entre outros objetos de sua proteção
estão o meio ambiente, o patrimônio cultural e histórico. E respeitando o dinamismo
social, já há quem fale em direitos de quarta e quinta geração, que abrangem
6
avanços tecnológicos mais recentes como, exemplificando, a internet e seus usos,
entre os quais o comércio eletrônico.
Assim, lato sensu, pode-se dizer – tão-somente para fins de contextualização,
haja vista não ter maior significado para os propósitos do trabalho que oferecer
breve demonstração de como evoluiu o ordenamento jurídico após o surgimento do
Estado de direito – que os direitos civis surgem no século XVIII, os direitos políticos
no século XIX e os direitos sociais no século XX. Até porque essa evolução, sendo
como é, fruto de prolongada maturação não se aprisiona em datações precisas, com
dia e hora marcados.
Direitos e cidadania
O conceito de cidadania é variável no tempo, no espaço, na história, no
direito, na ciência política, na sociologia. A grande onda de protestos no Oriente
Médio, em países como Egito, Síria, Tunísia, é exemplo de como tudo é fluído nesse
campo, em termos de tempo e espaço. Nas democracias ocidentais européias a
cidadania, no que se compreende o enfeixamento de direitos civis, políticos e sociais
em um estado democrático de direito, vem sendo sedimentada ao longo de mais de
trezentos anos. Para os habitantes de países como Inglaterra, Alemanha, França ser
cidadão, hoje, é ser sujeito de direitos e deveres, mais favoráveis ao indivíduo do
que ao Estado, inversão de sentido, aliás, ao da relação Estado – súdito, em que
este era sujeito preponderantemente de deveres.
Para os atuais insurgentes árabes, cidadania pode ser representada por
apenas um dos direitos que, aglutinados, constroem o conceito ocidental Percebe-se
que a pauta de reivindicações divulgada, num primeiro momento parece voltar-se à
remoção dos governos instalados, secundadas por reivindicações vagas para a
concessão de alguns outros direitos elementares, inscritos entre os preconizados
pelo direito natural e pelo iluminismo, de modo que – no mínimo – o indivíduo passe
a ter respeitada sua integridade física, bem assim extratos daquilo que, para nós
ocidentais, denomina-se dignidade humana. É importante que as conquistas que
possam decorrer dessas insurgências sejam resultantes de esforços coletivos, de
uma construção fragmento a fragmento, não importando a feição que venham ter,
7
embora presente um grande risco de imposições geralmente fundadas em valores
exógenos informados por interesses que pouco ou nada se harmonizam com
aqueles de natureza local. A primavera árabe, sob esta abordagem, pode vir a se
tornar um frio inverno.
Enfocando o caso da Inglaterra, MARSHALL (1967), faz uma divisão do
conceito de cidadania em três partes, em análise que reconhece ditada mais pela
lógica do que pela história. São essas três partes, ou, como ele também as
denomina, elementos, o civil, o político e o social. Os elementos são constituídos de
direitos correspondentes: civis, políticos e sociais. O elemento civil engloba os
direitos que asseguram a liberdade individual: de ir e vir, de imprensa, pensamentos
e fé, propriedade, de concluir contratos válidos e de ir à justiça, diferenciando-se
este último por ser aquele que viabiliza os demais, por ser o que iguala a todos e
estabelece o processo para sua efetivação.
As instituições relacionadas aos direito civis, para MARSHALL (1967, p.63),
são os tribunais de justiça. O elemento político, prossegue MARSHALL (1967, p.63),
é o direito de participação política, consubstanciando nas possibilidades tanto de
integrar, na qualidade de membro, um organismo investido de autoridade pública,
como o de eleger o seu membro na qualidade de eleitor. As instituições associadas
ao direito político são o parlamento e conselhos locais. Por último, o elemento social
é a amálgama em que se aglutinam direitos que vão de um mínimo de bem-estar ao
de completa participação na vida social. Associam-se aos diretos sociais as
instituições educacionais e serviços sociais.
Em seu roteiro para resgatar o percurso trilhado pelos direitos na Inglaterra,
MARSHALL (1967, p.64) averba que inicialmente não se fazia distinção entre os três
(civil, político e social) e isso resultaria do fato de que as instituições
correspondentes estavam englobadas. Assim, a mesma entidade exercia funções
estatais de administração da justiça, de legiferar e aquelas próprias que, na
atualidade, se conhece como sendo de competência do poder executivo.
No feudalismo, não obstante o avanço até então verificado, nada havia ainda
que de longe se parecesse com o que atualmente se entende por cidadania. A
classe social mantinha os homens divididos em nobres e plebeus, livres e servos;
não havia princípio estabelecido que possibilitasse o contraste entre igualdade e
desigualdade.
8
Partindo do século XII, MARSHALL (1967, p.64) identifica circunstâncias que
aponta como cruciais à evolução da cidadania, às quais denomina um duplo
processo, que envolveram o alargamento das fronteiras para aplicação da lei – a
fusão geográfica – e, na outra ponta, a separação funcional, marcada pela
especialização dos órgãos. Nesse sentido, o direito passa a ter por base não
costumes locais, mas o direito consuetudinário nacional, e as organizações passam
a exercer funções bem delineadas de julgar, legislar e executar.
Entretanto, esse duplo processo teve conseqüências importantes: primeiro,
um distanciamento entre os três elementos, atribuído à separação das instituições,
que antes eram únicas, com competência para julgar, legislar e executar; segundo,
porque a característica nacional afastou a assembléia das pessoas comuns e o
tecnicismo dos tribunais passou a exigir conhecimentos especializados.
Esse distanciamento dos três elementos de cidadania, afirma MARSHALL
(1967, p.66), resultou em divórcio tão completo que exigiu uma (re)elaboração de
cada um, ocorrida na sequencia, acima mencionada, seguinte: os direitos civis no
século XVIII, os direitos políticos no século XIX, e os direitos sociais no século XXI.
MARSHALL (1967, p.66) faz questão de ressalvar que não há rigidez cronológica no
estabelecimento desses períodos sendo certo existir, principalmente entre os dois
últimos, o que denomina algum entrelaçamento.
O que se depreende da lição de Marshall a respeito de cidadania, é que o
conceito vai sendo alterado no curso do tempo pelo acréscimo de direitos que
iniciam com a atribuição dos direitos civis a (alguns) cidadãos, depois dos direitos
políticos (igualmente não extensíveis a todas as pessoas em um primeiro momento),
e por último, dos direitos sociais (em alguns casos seguramente atribuídos a,
apenas, determinados sujeitos).
De outro lado temos a perspectiva assumidamente histórica de BENDIX
(1966) que enfrenta a questão da cidadania a partir do caso europeu. O marco inicial
é o surgimento do Estado-nação, em que os direitos e deveres são objeto de
codificação na qual os adultos são classificados como cidadãos (1966, p. 110).
O ponto fulcral está em o quanto a definição de cidadão é exclusiva ou
inclusiva na comunidade nacional: salvo raras exceções, aponta BENDIX (1966, p.
110), até o século XVIII todas as pessoas social e economicamente dependentes
9
são excluídas, restrição que passa por abrandamento durante o século XIX até que
todos os adultos passem a ser classificados como cidadãos.
O caráter nacional a que foi alçada a cidadania, em muitos países da Europa
ocidental resultou, em um primeiro momento, da acomodação, pela via legal, entre o
princípio que BENDIX (1996, p. 111) denomina de funcional (representação de
grupos definidos por atividades, ou direitos, ou deveres) e plebiscitário (em que são
afastados todos os intermediários entre o indivíduo e o Estado), que teve grande
impulso com a Revolução Francesa.
O desenvolvimento da cidadania é analisando mediante comparação dos
vários direitos anteriormente distinguidos por Marshall, e já citados acima: civis,
políticos e sociais; e os quatro grupos de instituições correspondentes: tribunais,
corpos representativos, serviços sociais e as escolas (BENDIX (1996, p. 111). Além
de Marshall, Bendix também recorre a Tocqueville para buscar subsídios e
contrastes à construção de seu pensamento. Este último aponta que na sociedade
medieval havia algum tipo de proteção a muitas pessoas, cujo móvel podia ser o
costume ou o que denomina de benevolência paternal, mas em troca de
subserviência pessoal.
Porém, como acentua BENDIX (1996, p. 112) a igualdade que deu à luz os
direitos de cidadania também deu azo à retirada daquela proteção. Não havia
subserviência, mas também não havia assistência nas dificuldades. O que se revela
é que – na inexistência de proteções e em face às desigualdades econômicas e
sociais – há uma imediata exclusão da classe baixa ao gozo de seus direitos legais.
É o que se denomina igualdade formal (em oposição à material) situação em que há
garantia de direitos, mas o indivíduo não tem recursos para exercê-los.
O arremate de Bendix a tal situação é lapidar: “Nesse sentido, a igualdade da
cidadania e as desigualdades de classe social desenvolvem-se juntas” (1996, p.
112). MARSHALL (1967, p. 72), de forma diferente dá realce a esse aspecto – que
parece persistir atualmente, conforme será abordado abaixo – quando anota que a
Poor Law “não tratava as reivindicações dos pobres como uma parte integrante de
seus direitos de cidadão, mas como uma alternativa deles – como reivindicações
que poderiam ser atendidas somente se deixassem inteiramente de ser cidadãos”.
Ou seja, na sociedade medieval não havia direitos civis e liberdades a eles
inerentes, mas alguma proteção contra adversidades em troca de subserviência.
10
A solução virá através das pressões e contrapressões verificadas em cada
Estado-nação europeu, que com diferentes velocidades promoverão gradativamente
a extensão da cidadania o que ocorrerá do século XVIII (sociedade patrimonial) até
o século XX (o Estado de bem-estar).
Questão importante é o balanço entre direitos e deveres que permeia a
cidadania que BENDIX (1996, p. 122) ressalta enfaticamente, anotando que os
direitos sociais, como um atributo da cidadania constituem compensações ao
indivíduo por seu consentimento em se deixar governar. Há um elemento de
concordância (de grande importância), o que não retira a obrigação individual de
assumir – e cumprir – deveres em troca desses direitos. E ilustra essa sujeição ativo-
passiva, correlacionando o direito à educação ao dever de freqüência à escola.
Tecendo suas considerações finais a esse capítulo, BENDIX (1996, ps.
135/136) aponta que a igualdade formal legal (plebiscitária), em uma sociedade com
grandes desigualdades faz com que o individuo recorra a associações
(funcionalidade) para fazer valer seus direitos civis, políticos e sociais, o que resulta
em novas desigualdades (ou intensifica as existentes): nem todos os membros da
sociedade tem possibilidade de integrar uma associação, levando a novas divisões e
daí à busca de novos instrumentos para redução dessas novas desigualdades.
O Brasil
Diz-se que quem está “dentro” da floresta não tem como visualizar a
totalidade; há que se alçar por sobre ela de modo a, além da visão “interna” ter-se
outra, “geral”, “do alto”. O Brasil tem peculiaridades que só os brasileiros conseguem
entender, e isso quando conseguem “sair do plano”, e assim combinar
etnocentrismo e um olhar relativista.
A observação do noticiário, dos projetos de lei apresentados no Congresso
Nacional, nas Assembléias Legislativas e nas Câmaras Municipais, as opiniões
expressas em cartas a jornais e, principalmente na internet (blogs e e-mails), o
comportamento das pessoas no trânsito, nas calçadas, no comércio, nas
manifestações de grupos, os sulistas, os nortistas, os nordestinos, os imigrantes de
11
primeira ou quinta geração, conduz à conclusão de que – para o bem e para o mal –
este País concentra uma inigualável convivência de contradições. Contradições tão
profundas e persistentes que embaçam a presença preponderantemente forte e
evidente dos elementos necessários e suficientes à cristalização de uma identidade
nacional, fonte de solidez de uma nação.
Apesar da proibição formal, exceções bem ardidas e exploradas, em absurda
comprovação de que nem tudo o que é legal é moral, possibilitam a apropriação do
Estado via parentesco nas câmeras legislativas, ou através do nepotismo e do
clientelismo nos Poderes Executivos em todos os níveis e até no Judiciário,
obrigando-nos, a todos os brasileiros, à contemplação diuturna – desde o
“achamento” do Brasil, pelo menos – da espoliação do Estado pelos que, sem
nenhum constrangimento, o empolgaram.
Em conformidade com o Boletim Estatístico de Pessoal n° 179, do Ministério
do Planejamento, Orçamento e Gestão, em fevereiro de 2011 havia 84.880 “Cargos
e Funções de Confiança e Gratificações do Poder Executivo Federal (Administração
Direta, Autarquia e Fundação), os quais podem ser ocupados por servidores com
cargo efetivo, requisitados de outros órgãos ou esferas e sem vínculo com o Serviço
Público. A fonte dos dados encontrados nesta seção é o Sistema Integrado de
Administração de Recursos Humanos - SIAPE por meio da Secretaria de Recursos
Humanos do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.” 1
Não há dados sobre o os terceirizados, sabendo-se, por notório, de esta modalidade
de contratação dá ensejo à contratação de empregados “indicados” pelos órgãos
contratantes.
Nos municípios brasileiros, a tabela 7 (Pessoal ocupado na administração
direta por vínculo empregatício), à página 184 do resultado da Pesquisas de
Informação Básica Municipal Munic – 2009, verifica-se que o número total de
“comissionados” nos municípios do Brasil era de 446.541 indivíduos (deste total,
haviam 161.305 “comissionados” na Região Nordeste); o número de estagiários era
de 114.975 indivíduos; e o número de “terceirizados” alcançava a cifra de 909.199
indivíduos (421.895 na Região Nordeste) 2 . De acordo com os números
1 http://www.servidor.gov.br/publicacao/boletim_estatistico/bol_estatistico_11/Bol179_Mar2011.pdf , acesso em 1° de junho de 2011 2 http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/economia/perfilmunic/2009/munic2009.pdf , acesso em 1º de junho de 2011
12
consolidados na publicação do resultado da pesquisa em 2009, a soma de
“comissionados”, “estagiários” e “terceirizados” nos municípios brasileiros era de
1.470.715 indivíduos.
Somando-se aos números acima os “comissionados”, “estagiários” e
“terceirizados” existentes nas administrações estaduais, e a estes todos sendo
acrescidos os que ocupam cargos na administração indireta nos três níveis,
constata-se haver um espaço muito grande para a utilização do Estado com fins
privados. E, como se sabe, o Estado moderno pressupõe separação (formal e
material) entre o público e o privado.
É surpreendente – exceto, talvez para quem é brasileiro– a desproporcional e
unilateral interferência na administração pública, no processo legislativo, na
atividade estatal, enfim, por grupos cuja identidade é a religião, ou a região, ou a
profissão. A esse propósito é obrigatório mencionar que – isto foi fartamente
divulgado pela imprensa – a denominada bancada evangélica da Câmara dos
Deputados trocou uma Comissão Parlamentar de Inquérito que estava sendo
arquitetada para investigar o injustificável, porque até agora não explicado, aumento
patrimonial de um ex-Ministro de Estado que ocupava posição privilegiada entre os
seus pares, pela não-distribuição do kit anti-homofobia. Em pleno século XXI, o
Estado brasileiro, que até recentemente subordinou amplamente interesses públicos
a uma espécie de nihil obstat da Igreja Católica, ainda se debate com problemas de
secularização, mantendo a autoridade pública refém de interesses paroquiais.
Debater cidadania – que pressupõe igualdade e, principalmente, acesso à
Justiça – em um país onde pesquisa entre advogados revela que estes operadores
do Direito consideram que a “Justiça brasileira é desigual e desonesta” 3 é
desafiador. E nada mais desalentador para um cidadão que recorre diretamente ao
Judiciário (onde isso é possível sem a intermediação de advogado, como nos
Juizados Especiais Cíveis) do que avisos amedrontadores afixados de modo bem
visível, com a seguinte “ameaça”: “Art. 331 - Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos, ou multa.” 4
3 http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/927346-para-advogados-justica-brasileira-e-desigual-e-desonesta.shtml acesso em 20 de junho de 2011. 4 Código Penal Brasileiro
13
Não é demais lembrar que na esfera federal há lei que determina ao
funcionário público o dever de bom atendimento (Lei 8.112, de 11 de dezembro de
1990): “Art. 116. São deveres do servidor: (...) V - atender com presteza: a) ao público em geral, prestando as informações requeridas, ressalvadas as protegidas por sigilo; b) à expedição de certidões requeridas para defesa de direito ou esclarecimento de situações de interesse pessoal; c) às requisições para a defesa da Fazenda Pública. (...) XI - tratar com urbanidade as pessoas; (...)”
(as palavras em negrito não constam do original).
A lei estadual correspondente do Paraná é mais econômica do que a lei
federal; estabelece, tão-somente, que a urbanidade é um dever do funcionário
(art.279, inc. III, da Lei n°6174, de 16 de novembro de 1970).
A cidadania seria, portanto, homenageada se, ao invés da “ameaça”, o
cidadão fosse (bem) recebido com a informação de que é dever do servidor – a
palavra servidor encerra em si uma definição – atender e tratar as pessoas com
presteza e urbanidade.
Wanderely Guilherme dos Santos (1987) afirma que:
“Convencionalmente, o histórico da interferência governamental na
regulamentação das relações sociais no Brasil não se afasta do padrão revelado
pela experiência de outros países.”
A diferença, segundo SANTOS (1987, ps. 13 e 14) é a ordem e o ritmo
verificado em cada país, para que a ação estatal tenha início, o que é correlacionado
ao desenvolvimento (produção industrial, acumulação de bens), aos conflitos sociais
e outros fatores que influem no processo. Por isso que a primeira Constituição
brasileira (1824), em consonância com as dos demais países, refletia a crença
liberal de que, sendo os homens desiguais, era legítimo que o mercado e a
meritocracia estabelecessem a (des)proporção da distribuição dos benefícios
econômicos e sociais resultantes da acumulação da riqueza. Essa posição permitiria
que o Brasil se mantivesse em sincronia com o que havia de “mais avançado” em
matéria de legislação, sustentada na ideologia de que os desprovidos poderiam
associar-se em entidades de mútuo amparo ou apelar à caridade pública, sem
14
desautorizar a eficiência ou justiça do mercado, mas, ao contrário, como forma de
ratificar a “... inferioridade dos pobres e desvalidos” (1987, p.16).
A menção à (avançada) Constituição brasileira de 1824 faz lembrar que o
Brasil imperial era um Estado com modo de produção escravista, e quando a
abolição aconteceu este era o único país do mundo em que ainda ocorria a
escravidão humana. Na Europa a luta pelo nivelamento das desigualdades já ia
longe. Importante salientar o fato de termos por hábito, desde sempre, a importação
de textos legais “avançados”, que o “sistema” acolhe ao mesmo tempo em que
impede, ou – o que dá no mesmo – nada faz em favor da possibilidade do efetivo
exercício dos direitos neles consignados (a referência, no caso, são as escassas
verbas alocadas ao Judiciário, se comparadas com a magnitude das consignadas ao
Legislativo 5).
E como que para confirmar que o acesso à Justiça não está nas prioridades,
seja do Legislativo, seja do Executivo, ou do próprio Judiciário, cabe uma parênteses
para mencionar que, finalmente, houve alocação de verba para a instalação da
Defensoria Pública no Paraná (0,27%), lembrando que sua criação constou (pelo
menos) da entrada em vigor da Constituição Estadual do Paraná, de 5 de outubro de
1989, a qual dispôs (há mais de vinte anos) nos arts. 127 e 128, o seguinte: “Art. 127. A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do
Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica integral e gratuita, a postulação e a
defesa, em todas as instâncias, judicial e extrajudicial, dos direitos e dos
interesses individuais e coletivos dos necessitados, na forma da lei.
Parágrafo único. São princípios institucionais da Defensoria Pública a unidade, a
impessoalidade e a independência na função.
Art. 128. Lei complementar, observada a legislação federal, disporá sobre a
organização, estrutura e funcionamento da Defensoria Pública, bem como sobre
os direitos, deveres, prerrogativas, atribuições e carreiras de seus membros.”
Com efeito, o Código de Defesa do Consumidor é extraordinário instrumento
de cidadania. No entanto, o meio ideal para sua operação – os Juizados Especiais
Cíveis – que deveriam marcar a “sessão de conciliação” no prazo (máximo) de
quinze dias contados do registro do pedido (art. 16 da Lei 9099, de 26 de setembro
5 O orçamento do Estado do Paraná para 2011 contempla o Poder Legislativo com 3,1% (mais 1,9% ao Tribunal de Contas, que é órgão do Legislativo) e 9,5% para o Poder Judiciário: é muito para o Legislativo e pouco para o Judiciário http://www.alep.pr.gov.br/noticia/deputados-aprovam-projeto-que-define-gastos-do-governo-em-2011 acesso em 20 de junho de 2011
15
de 1995, que “Dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras
providências). Não havendo conciliação e não sendo possível a realização imediata
da audiência de instrução e julgamento, diz a Lei que esta deverá ocorrer nos
próximos quinze dias subseqüentes (parágrafo único, do art. 27, da Lei n°9099/95),
com a sentença sendo proferida na própria audiência (art. 28 da Lei n° 9099/95).
Em resumo: registrado o pedido a Lei determina que em quinze dias seja
realizada a audiência de conciliação; não havendo conciliação, deve ser marcada
audiência de instrução e julgamento a ser realizada nos quinze dias subseqüentes e
a sentença proferida na própria audiência, o que dá um total de trinta dias.
No caso do Paraná, caso concreto de pedido de autor, com mais de sessenta
anos de idade (tramitação prioritária), registrado em 7 de novembro de 2007, teve a
audiência de conciliação marcada para dia 4 de dezembro de 2007 e a audiência de
instrução e julgamento marcada para dia 25 de fevereiro de 2008, com sentença
proferida em 19 de junho de 2008. Ou seja, o prazo previsto em Lei foi ultrapassado
em, aproximadamente, duzentos e vinte dias.6
Esse panorama traz à baila uma frase lapidar de SANTOS (1987, p. 19), em
que o Autor, após registrar a instituição, em 1904, de legislação que dispunha sobre
salário de trabalhadores rurais, assim se manifesta:
“A legislação rural, no sentido de proteção ao trabalhador agrícola, sempre foi, até
recentemente, mais de fachada do que efetiva, em virtude da resistência dos
interesses latifundiários oligárquicos.”
O período que vai da abolição da escravidão (1888) até 1931, quando Getúlio
Vargas dá início a uma onda de intervenção estatal na economia é descrito por
SANTOS (1987, p. 64) como uma “tentativa de organizar a vida econômica e social
do país segundo princípios laissez-fairianos ortodoxos”. Assinala que, embora na
área urbana já houvesse alguma penetração de mercado, na área rural havia
ocorrido a substituição da escravidão por outra forma de servidão. E que, embora a
introdução de leis sociais a partir de 1920 não colidisse frontalmente com o ideário
laissez-fairiano porque restritas a segmentos definidos da economia mediante
acordos entre empregadores e empregados, isso implicava em alguma admissão de
que o automatismo do mercado era insuficiente “à felicidade do maior número”,
defendida pelos utilitaristas clássicos. Ocorre que há o registro de um
6 http://www.tj.pr.gov.br/internet/csp/juizadocivel/BuscaDados2004p.csp?Processo=200700249640&Comarca=1 b acesso em 13 de junho de 2011)
16
desenvolvimento significativo da organização dos trabalhadores, que passam a atuar
incisivamente na vida política e social, cuja organização e agressividade faz
desencadear em sucessivas greves que, apenas em São Paulo irão de “12 em 1888
e 1900, a 81 entre 1901 e 1914, a 107 entre 1917 e 1920” (SANTOS, 1987, p. 65). A
resposta do Estado, que até então se resumia a reprimir os movimentos
reivindicatórios, passa a voltar-se para o atendimento das demandas sociais.
Em resumo, para SANTOS (1987, p. 65) o laissez-faire reinou hegemônico no
Brasil por um período relativamente curto: economicamente, e restrito à área urbana,
entre 1888 e 1931 e, já solapado, a partir de 1923 no que refere às relações sociais.
Essas limitações, acrescidas da repressão às associações de operários
urbanos, a pretexto de uma subversão introduzida por trabalhadores estrangeiros,
sustentavam equivocadamente a convicção de que ““fora da ordem do mercado só
existia a “ordem” da coação, ou, por outra, dava-se estabilidade à ordem do
mercado pela repressão.”” (SANTOS, 1987, ps. 65/66). O fraco desempenho
econômico no período (1911 a 1930), aliado a outros fatores conjunturais, como as
migrações regionais internas, a migração do campo para a cidade, a imigração
externa, e o crescimento da população, foi decisivo para que a se cristalizasse o
cenário para uma alteração – mesmo que parcial – na composição da elite e assim
da ideologia para a atualização das “normas que presidiam o processo de
acumulação e das relações sociais que ai se davam.”, o que se verificaria em ritmo
“vertiginoso, pela revolução de 30 ...”. Após 1930 haverá uma reorganização
substancial da esfera de acumulação e, após isto, a elite atenderá demandas sociais
com a introdução de inovações de monta na política previdenciária (SANTOS, 1987,
p. 67).
A partir deste ponto merece destaque um aspecto que repercute
profundamente na denominada “cultura cívica”; Trata-se do conceito de cidadania
que SANTOS (1987, ps. 68 e seguintes) denomina de “cidadania regulada” e que
provém de um “sistema de estratificação ocupacional”: é cidadão “quem tem uma
das ocupações reconhecida e definidas em lei”, sendo a carteira de trabalho a sua
“certidão de nascimento cívico”. Quem está fora do sistema não é cidadão, mesmo
que integrando o processo produtivo, como trabalhadores rurais e todos os demais
em ocupações não regulamentadas. Isso tudo como resultado de uma engenharia
institucional que, abrindo brecha na ideologia laissez-fairiana, cria um espaço
17
ideológico no qual convivem uma ativa ingerência estatal e a promoção do
“desenvolvimento de uma ordem fundamentalmente capitalista”.
Confirmando o que já foi dito antes, de que quase que invariavelmente a
criação de direitos sociais dá origem a algum tipo de desigualdade, ao optar pela
cidadania regulada o Estado volta-se ao estabelecimento de uma política
previdenciária, que – evidentemente – só beneficia os “cidadãos” (ocupante de uma
categoria profissional regulamentada), além de, em segundo, a medida da
distribuição consagrada ter sido a de que quem mais podia contribuir auferia maiores
e melhores benefícios.
Faz-se necessário trazer alguns elementos que contestam a inserção da
previdência social na década de 1930, como benefício introduzido por obra de
atenção estatal às reivindicações do trabalhador. Em conformidade com alentado
estudo de OLIVEIRA, BELTRÃO E DAVID (1999), a previdência social na década de
1930 foi alvo de manipulação política, utilizada como fonte de captação de poupança
destinada a financiamento de projetos para a promoção da industrialização do país,
que se traduzia em “maximização de apoio político”. Nas duas pontas, portanto: do
empresariado que obtinha financiamento e do trabalhador que “conquistava” a
garantia de uma aposentadoria tranqüila. Depois disso, como se sabe, e o estudo
registra, os abundantes recursos da previdência (que só arrecadava e
proporcionalmente tinha poucos compromissos com aposentadorias) além de
subtraídos da parcela de responsabilidade da União, foram desviados para
finalidades que não tinham nenhum vínculo e sequer se traduziriam em recursos
para pagamentos de futuras aposentadorias, dos quais o mais notório é a
construção de Brasília, retirando inexoravelmente qualquer possibilidade de a
previdência social ser auto-sustentável.
18
CAPÍTULO II
Pesquisa sobre o atendimento prioritário
A pesquisa foi concentrada em estabelecimentos (supermercados e agências
bancárias) e em órgão público estadual onde é grande o afluxo de pessoas de faixa
etária variada (acima de 18 anos). Nos supermercados visitados, consistiu na
observação do atendimento e contagem do número de caixas. Nos supermercados e
agências bancárias foi feita a entrega de folha contendo quatro questões e nova
visita para recepção do questionário.
A observação é feita facilmente, posto que realizável sem despertar atenção,
durante o período de compras ou pagamento de contas. Entretanto, a entrega – e a
posterior retirada – da folha com as perguntas exigiu negociação.
Foi elaborada uma correspondência informando do encaminhamento de
questionário (se é que se pode assim denominar quatro questões com respostas sim
ou não) para fins de pesquisa acadêmica, sem identificação, assegurado o absoluto
sigilo e total anonimato quanto ao estabelecimento ou pessoa indicada para o
preenchimento. Apesar desse cuidado, houve dificuldade para conseguir que
alguém recebesse a folha.
As perguntas guardam correlação entre si de forma a detectar contradições
que realmente acabaram por aparecer, em conformidade com os comentários
específicos a cada resposta fornecida.
Em 4 de abril de 2011 foram entregues folhas em dois supermercados (“A” e
“B”). Em 6 de abril de 2011 houve o retorno ao supermercado “A” e a folha estava
sem preenchimento. Após alguma argumentação, a folha foi devolvida com o
preenchimento. O supermercado “A” tem sete máquinas registradoras para o público
em geral e uma com sinalização de que se destina ao atendimento prioritário,
totalizando oito caixas. Com freqüência desproporcional o “caixa preferencial” está
sem operador, em flagrante desrespeito à legislação municipal, e os beneficiários de
atendimento prioritário se distribuem pelos demais caixas, indistintamente. Apesar
disto, as respostas do supermercado “A” foram assinaladas como se a legislação
19
estivesse sendo cumprida fielmente, ou seja, ou a percepção de quem respondeu é
distorcida ou as respostas foram falseadas (as respostas não correspondem ao
observado em mais de meia centena de observações). No dia 7 de abril de 2011
houve o retorno ao supermercado “B” e – sem qualquer possibilidade de negociação
– foi recusado o preenchimento da folha. A loja do supermercado “B” tem nove
máquinas registradoras para o público em geral, cinco máquinas registradoras para
compras em menor quantidade (caixa rápido) e duas máquinas registradoras para
atendimento prioritário. Nesta loja os caixas prioritários contam, habitualmente com
operadores. Mas o movimento – visivelmente maior do que o supermercado “A” faz
com que se verifique uma grande quantidade de idosos formando fila nos caixas
prioritários e, por conta dessa grande quantidade, também nos demais caixas.
No mesmo dia 4 de abril de 2011 foi entregue – sem problemas com a
recepção – a folha no órgão público estadual. Nesse órgão há o encaminhamento de
beneficiários do atendimento prioritário para guichês com tal finalidade e na fase
inicial há celeridade em relação aos demais usuários. Nas etapas subseqüentes,
porém, já não ocorre o mesmo. Em determinadas etapas só há atendimento
prioritário quando o idoso, ou gestante, ou pessoa acompanhada de criança de colo,
reivindica a prioridade, o que coloca o pleiteante em situação constrangedora em
face aos demais usuários. No dia 6 de abril de 2011 a folha foi retirada com as
respostas assinaladas e, de igual forma, ou a percepção de quem respondeu é
distorcida ou as respostas foram falseadas (neste caso a observação no local foi
restringida à experiência pessoal do pesquisador, quando de revalidação de
documento).
No dia 6 de abril de 2011 uma folha foi entregue – também sem problemas
para a recepção – em agência bancária (“C”) e, no dia 7 de abril de 2011, nas
agências bancárias “D” e “E” (nestas últimas houve alguma hesitação para o
recebimento da folha).
Dia 14 de abril de 2011 a folha foi retirada da agência bancária “C”. Essa
agência é de estabelecimento bancário de capital sob controle do governo federal. O
preenchimento ocorreu no momento da devolução e – talvez por esse motivo – foi o
único dos estabelecimentos em que na resposta à questão 3 (“3 – O
encaminhamento é feito de imediato a local destinado especificamente atendimento
prioritário”) foi assinalada a negativa (espelhando a realidade). Entretanto, a
resposta à questão 4 (“4 – Na sua avaliação, as pessoas beneficiadas pela
20
legislação são atendidas efetivamente com prioridade.”), marcada positivamente,
indica contradição: se o encaminhamento não é feito de imediato não há a prioridade
determinada pela Legislação (e da forma como é nesta definida).
No dia 11 de abril de 2011 foi feito o recolhimento das folhas entregues nas
agências bancárias “D” e “E”. A agência “D” – também de banco sob controle estatal
federal – devolveu a folha sem preenchimento. Reflexo provável da preocupação
com o que se verifica na agência “D”, em que é possível observar que portadores de
senhas de atendimento prioritário são persistentemente atendidos após usuários que
chegaram minutos depois. Sintomaticamente, outra agência desse estabelecimento
bancário recentemente tinha sido objeto de noticiário (local) com severas críticas ao
atendimento prestado ao público em geral. A agência “E” é de banco sob controle de
capital privado. Sem fugir à regra, as respostas revelam a percepção distorcida do
respondente, ou a verdade sendo falseada.
As respostas iniciais revelaram que não haveria possibilidade de obtenção de
material suficiente a proporcionar consistência à pesquisa, apenas para confirmar
que supermercados, agências bancárias e órgãos públicos em sua maioria (não
identifiquei até o momento qualquer exceção) infringem a legislação federal e
municipal que determina expressa e sem possibilidade de interpretação diversa, o
atendimento prioritário aos beneficiários que indica.
Respostas na folha retirada no supermercado “A”.
1 – Esse estabelecimento / órgão cumpre a Lei n° 10.048/00 que dispõe sobre o atendimento
prioritário a pessoas portadoras de deficiências, idosos, gestantes, lactantes e pessoas
acompanhadas de crianças de colo Sim ( X ) Não ( )
2 – O atendimento é feito através de senha Sim (....) Não ( X )
3 – O atendimento é feito através de encaminhamento direto (local destinado especialmente ao
atendimento a portadores de deficiência etc.) Sim ( X ) Não ( )
4 – Na sua avaliação, o atendimento (questões 2 e 3) é feito de forma que as pessoas beneficiadas
pela Lei recebam efetivamente o atendimento prioritário Sim ( X ) Não ( )
Comentário: com a observação no local foi constado não haver atendimento
prioritário no sentido definido pela legislação como tal, de modo que os clientes, ao
escolher o caixa prioritário (nas raras vezes em que há operador no caixa da loja
21
pesquisada), com grande freqüência aguardam mais tempo na fila do que outros
clientes não-beneficiários.
(O supermercado “B” devolveu a folha sem preenchimento.)
Respostas na folha retirada no órgão público.
1 – Esse estabelecimento / órgão cumpre a Lei n° 10.048/00 que dispõe sobre o atendimento
prioritário a pessoas portadoras de deficiências, idosos, gestantes, lactantes e pessoas
acompanhadas de crianças de colo Sim ( X ) Não ( )
2 – O atendimento é feito através de senha Sim (.X..) Não (....)
3 – O atendimento é feito através de encaminhamento direto (local destinado especialmente ao
atendimento a portadores de deficiência etc.) Sim ( X ) Não ( )
4 – Na sua avaliação, o atendimento (questões 2 e 3) é feito de forma que as pessoas beneficiadas
pela Lei recebam efetivamente o atendimento prioritário Sim ( X ) Não ( )
Comentário: a distribuição de senha para atendimento prioritário é indicativo de que
a lei não é cumprida, porque não é imediato (a senha seria válida se todos os que
procuram o órgão fossem beneficiários do atendimento prioritário).
Respostas na folha retirada na agência bancária “C”
1 – Esse estabelecimento / órgão cumpre a Lei n° 10.048/00 que dispõe sobre o atendimento
prioritário a pessoas portadoras de deficiências, idosos, gestantes, lactantes e pessoas
acompanhadas de crianças de colo Sim ( X ) Não ( )
2 – O atendimento é feito através de senha Sim (.X...) Não (... )
3 – O atendimento é feito através de encaminhamento direto (local destinado especialmente ao
atendimento a portadores de deficiência etc.) Sim ( . ) Não (X )
4 – Na sua avaliação, o atendimento (questões 2 e 3) é feito de forma que as pessoas beneficiadas
pela Lei recebam efetivamente o atendimento prioritário Sim ( X ) Não ( )
Comentário: neste caso, a resposta “não” à questão “3’ é a admissão de que o
atendimento não é imediato, ao contrário do que está afirmado com a resposta “sim”
às questões “1” e “4”.
(A agência bancária “D” devolveu a folha sem preenchimento.)
22
Respostas na folha retirada na agência bancária “E”
1 – Esse estabelecimento / órgão cumpre a Lei n° 10.048/00 que dispõe sobre o atendimento
prioritário a pessoas portadoras de deficiências, idosos, gestantes, lactantes e pessoas
acompanhadas de crianças de colo Sim ( X ) Não ( )
2 – O atendimento é feito através de senha Sim (.X...) Não (... )
3 – O atendimento é feito através de encaminhamento direto (local destinado especialmente ao
atendimento a portadores de deficiência etc.) Sim ( X ) Não ( )
4 – Na sua avaliação, o atendimento (questões 2 e 3) é feito de forma que as pessoas beneficiadas
pela Lei recebam efetivamente o atendimento prioritário Sim ( X ) Não ( )
Comentário: neste caso a contradição está em que é respondido (questão “2’) que o
atendimento é feito mediante senha, mas que há encaminhamento direto ao local
destinado ao atendimento prioritário
Projetos de lei federais sobre atendimento prioritário
Foi realizada pesquisa para obtenção de dados sobre a Lei n°. 10.048, de 8
de novembro de 2000, cuja ementa dispõe o seguinte: “Dá prioridade de
atendimento às pessoas que especifica, e dá outras providências”. Essa Lei foi
originada de projeto de lei do Senado Federal de número PLS-297/1991,
apresentado em 27 de agosto de 1991, pelo medico e advogado, então Senador
Francisco Rollenberg.
Tratando-se de projeto paradigmático, é interessante traçar o perfil político do
seu autor. Francisco Rollenberg foi eleito senador para a Legislatura 1987/ 1995,
pelo PFL / Sergipe. Anteriormente havia sido eleito Deputado Federal por quatro
vezes, pela ARENA (1971 e 1975 e 1979) e pelo PDS (1983). No sítio da Câmara
dos Deputados 7 , consta a informação de que o referido parlamentar foi filiado à
ARENA – Aliança Renovadora Nacional (partido que, juntamente com o MDB –
Movimento Democrático Brasileiro foi fundado quando da instituição do
bipartidarismo, durante o regime militar), ao PDS — Partido Democrático Social
(sucedeu a ARENA quando do fim do bipartidarismo), ao PFL – Partido da Frente 7 http://www2.camara.gov.br/deputados/pesquisa/layouts_deputados_biografia?pk=123147 acesso em 8 de junho de 2011
23
Liberal (o PFL foi fundado por ala dissidente do PPR – Partido Progressista
Reformador, o qual havia resultado da fusão entre o PDS e o PDC) e, também, ao
PMDB Partido do Movimento Democrático Brasileiro (estes dois – PFL e PMDB –
como Senador). O mesmo sítio indica ainda que Francisco Rollemberg foi líder do
PMN – Partido da Mobilização Nacional no Senado Federal, autorizando o
entendimento de que também se filiou a este partido.
O Prof°. Eliano Sérgio Azevedo Lopes, da Universidade Federal de Sergipe,
em trabalho no qual analisa a política sergipana (Sergipe; o medo venceu a
esperança 8 ), inclui Francisco Rollemberg entre os políticos que Andre Singer
conceitua como representante da “direita clássica”.
Francisco Rollemberg apresentou durante seu mandato de Senador 2
propostas de emenda à Constituição Federal (PEC), 149 projetos de lei (PLS), 15
projetos de resolução (PRS) e 75 requerimentos (RQS), num total de 241
proposições 9 . Vale ressalvar que alguns projetos foram reapresentados em razão
do respectivo arquivamento nos termos do regimento interno.
Em conformidade com a Tabela 1 da pesquisa feita por MOREIRA (2006), de
1987 até 1994 foram apresentados 1.659 projetos de lei (uma média anual de 207
projetos, ou 2,6 projetos por senador).
Sem contar com a duas propostas de emenda constitucional, Francisco
Rollemberg foi sem dúvida um dos mais atuantes parlamentares das 48ª /49ª
legislaturas, tendo apresentado em média 18,63 projetos por ano. SILVA e ARAÚJO
(2010) indicam que Francisco Rollemberg foi dos parlamentares que tiveram maior
número de projetos convertidos em leis. É também do referido parlamentar a
iniciativa de projeto de lei que veio a converter-se na Lei Nacional dos Resíduos
Sólidos, apontada por SILVA e ARAÚJO (2010) como tendo sido potencialmente
passível de apropriação pelo executivo e por outros parlamentares, tantas as
emendas acrescidas. Inicialmente previsto para disciplinar o lixo hospitalar, foram a
este sendo acrescentadas disposições sobre pilhas, baterias, pneus, embalagens,
em processo que inegavelmente enriqueceu o projeto inicial.
8 http://www.fundaj.gov.br/observanordeste/obed003l.pdf acesso em 4 de junho de 2011. 9 http://www.senado.gov.br/atividade/materia/Consulta_parl.asp?Tipo_Cons=15&p_cod_senador=1687 acesso em 4 de junho de 2011.
24
O posicionamento ideológico (direita clássica10) do, inicialmente, Deputado
Federal e depois Senador, Francisco Rollemberg destoa da temática de alguns dos
projetos de lei por ele apresentados, considerando-se especialmente os partidos ao
qual esteve filiado. Como exemplo, e a despeito de, em 1993, o senador em questão
estar filiado ao PMDB, pode-se citar o PLS 58, de 1993, que teve por escopo incluir
os idosos e portadores de deficiência (sem meios de subsistência), entre os
beneficiários de assistência social com direito ao recebimento de um salário mínimo
(inc. V, do art. 203 , da Constituição Federal vigente). Seguramente tais projetos
(assistencialistas e de natureza ambientalista) não parecem, à primeira vista,
harmonizar-se com o pensamento conservador. Por outro lado, a quem não conheça
mais a fundo a biografia de Francisco Rollemberg, certamente parecerá que o
referido político estaria localizado na “direita populista” ou, em vista das
preocupações ambientalistas, moderadamente à “esquerda”. Não se pode esquecer,
entretanto, que a formação (médico) de Rollemberg pode, por vezes, ter exercido
maior influência sobre suas atitudes, do que a filiação partidária.
Projetos de lei do Estado do Paraná sobre atendimento prioritário
A pesquisa no sítio da Casa Civil do Governo do Estado do Paraná 11 , feita a
partir da palavra “idoso”, abrangendo os anos de 1988 até 2011, para “lei”, “lei
complementar”, “Constituição Estadual”, “emenda constitucional” e “resolução”,
resultou em 116 ocorrências, das quais foram destacados alguns dos textos de
interesse mais próximo aos objetivos deste trabalho.
A Lei estadual do Paraná de n° 9997, de 16 de junho de 1992, tendo por
súmula: “... Dispõe sobre o atendimento prioritário, preferencial e especial das
pessoas que especifica, em agências e postos bancários, estabelecimentos
10 No trabalho pouco antes citado, o Prof°. Eliano Sergio Alves Lopes, emprestando conceitos formulados por Andre Singer, anota que “a direita populista é considerada como aquela que prega mudanças e, nesse sentido, não é conservadora (como a direita clássica), sendo o seu discurso favorável às transformações sociais, porém desde que feitas de cima para baixo, sem risco de instabilidade social”. 11 http://www.legislacao.pr.gov.br/legislacao/pesquisarAto.do?action=listar&opt=t&site=1#resultado acesso em 7 de junho de 2011.
25
financeiros e similares, e dá outras providências.” (especificamente os idosos,
portadores de deficiência, mulheres grávidas, mães com criança de colo e doentes
graves) foi proposta pelo Deputado Estadual Plauto Miró Guimarães Filho 12 O
Deputado Plauto Miró foi eleito deputado estadual em 1990 pelo então PDS,
posteriormente filiou-se ao PFL e na sequencia ao DEM, tendo, portanto, trajetória
política marcada por coerência ideológica 13 . Novamente verifica-se um
representante da “direita clássica” (ver nota de rodapé n° 8, acima) apresentando
projeto de lei de natureza que, a rigor, não se ajustaria entre aqueles parlamentares
que, presumivelmente, são conservadores. A propósito desta Lei, observa-se haver
sido promulgada pelo presidente da Assembléia Legislativa paranaense, à época o
Deputado Estadual Anibal Khury, com fundamento no § 7º, do art. 71 da
Constituição Estadual do Estado do Paraná , o qual estabelece que: “Art. 71. Concluída a votação, a Assembléia Legislativa enviará o projeto de lei ao Governador do Estado, que, aquiescendo, o sancionará. § 1º. Se o Governador julgar o projeto, no todo ou em parte, inconstitucional ou contrário ao interesse público, vetá-lo-á total ou parcialmente, dentro de quinze dias úteis, contados da data do recebimento, e comunicará, dentro de quarenta e oito horas, ao Presidente da Assembléia Legislativa os motivos do veto. § 2º. O veto parcial somente abrangerá texto integral de artigo, parágrafo, inciso ou alínea. § 3º. Decorrido o prazo de 15 (quinze) dias, o silêncio do Governador importará em sanção. (Redação dada pela Emenda Constitucional 7 de 24/04/2000) § 4º. O veto será apreciado em sessão única, dentro de trinta dias a contar de seu recebimento, só podendo ser rejeitado pelo voto da maioria absoluta dos Deputados. (Redação dada pela Emenda Constitucional 17 de 08/11/2006) § 5º. Se o veto não for mantido, será o projeto enviado, para promulgação, ao Governador do Estado. § 6º. Esgotado sem deliberação o prazo estabelecido no § 4°, que não flui durante o recesso parlamentar, o veto será colocado na ordem do dia da sessão imediata, suspendendo-se as demais proposições, até a sua votação final. § 7º. Se a lei não for promulgada dentro de quarenta e oito horas pelo Governador do Estado, nos casos dos §§ 3° e 5°, o Presidente da Assembléia Legislativa a promulgará; e, se este não o fizer em igual prazo, caberá ao Vice-Presidente fazê-lo.”
Não foi localizada mensagem de veto em pesquisa feita na internet. Mas é
possível afirmar que o governador do Estado à época era Roberto Requião, do
PMDB. Faz sentido que o Governador, sendo do PMDB, ou vetasse (o que seria
impopular, tratando-se de projeto que beneficiava idosos, deficientes, gestantes e
mulheres com crianças de colo), ou deixasse transcorrer sem sanção o prazo
constitucional.
12 http://www.alep.pr.gov.br/atividade-parlamentar/pesquisa-legislativa , acesso em 7 de junho de 2011. 13 http://www.plauto.com.br/institucional-descricao.php?id_noticia=17 acesso em de junho de 2011.
26
Iguais circunstâncias revestiram a promulgação do projeto de autoria
do Deputado Estadual Luiz Carlos Alborghetti, que acabou por ser convertido na Lei
Estadual de n° 11.367, de 3 de maio de 1996 (|promulgado pelo Presidente da
Assembléia Legislativa do Estado do Paraná). Alborghetti havia sido eleito deputado
(1994) pelo PTB 14 tendo transitado pelo PDS, PMDB, PRN, PTB e PFL O
governador do Paraná à época era Jaime Lerner, do PDT. A Lei n°11.367/96 tinha
como súmula o seguinte: “Autoriza o Poder executivo a instalar unidades de
DELEGACIA DE PROTEÇÃO AO IDOSO em todas as Cidades Pólos de Micro
Região do Estado”.
A Lei n°11.367/96 é citada porque, além de relativa a “idoso”, e de não ter
sido sancionada pelo Governador Jaime Lerner (PDT), foi por este “reeditada”
quando autografou a Lei n° 12.956, de 4 de outubro de 2000, com a súmula
seguinte: ‘Autoriza o Poder Executivo a criar, na estrutura organizacional básica do
Departamento da Polícia Civil do Paraná, a Delegacia Especializada de Proteção ao
Idoso”. Ou seja, as duas leis – ainda em vigor, a primeira revogada pela segunda no
que incompatível com esta – tem o mesmo objeto. Este projeto de lei (de n° 514/99)
foi apresentado pelo Deputado Estadual Tiago Amorin Novaes 15 .
O deputado Tiago Amorim elegeu-se deputado pelo PPB, e em 1999 filiou-se
ao PTB 16 . Duas leis com o mesmo objeto: desorganização na Assembléia?
Desorganização na Casa Civil? Desejo do deputado de ter (mais) um projeto de lei
seu aprovado?
Segundo OLIVEIRA e MIRANDA (2010) a explicação pode residir na
constatação de que a aprovação de projetos de lei e aumento de votos (logicamente
em reeleição) tem alguma correspondência (embora não determinante):
“Dos 13 Deputados reeleitos com taxas de PLs aprovadas acima da média, 11 deles aumentaram suas votações, o que representa 84%. O que mostra que há sim uma correspondência entre produção legal e taxa de reeleição. Não é exclusivamente determinante, mas trata-se de forte correlação positiva. Quanto maior a produção legislativa, maior é a tendência ao aumento de votos.”
14 (http://rco2000.sites.uol.com.br/ acesso em 7 de junho de 2011. 15 http://www.alep.pr.gov.br/sc_integras/projetos/PLO19990514.htm acesso em 7 de junho de 2011. 16 http://rco2000.sites.uol.com.br/ acesso em 7 de junho de 2011.
27
E como se não fosse suficiente, em 7 de dezembro de 2005 o Deputado
Estadual Delegado Bradock (PMDB) apresentou projeto de lei (n° 761/2005)
autorizando (uma vez mais) o chefe do poder executivo paranaense a criar a
delegacia do ...idoso 17 (arquivado com base no art. 273 do Regimento Interno da
Assembléia Legislativa – “apresentado em legislatura anterior”). Não obstante o
empenho por parte dos deputados e duas leis autorizando a criação da Delegacia
Especializada de Proteção ao Idoso, a primeira das leis é de 1996, pesquisa
realizada no sítio da Gazeta do Povo resultou em notícia de 27 de dezembro de
2010 informando sobre a inauguração da estrutura física da Delegacia do Idoso
junto às instalações do 3º Distrito Policial de Curitiba 18, o sítio da Polícia Civil 19
informa a existência tão-somente, das delegacias seguintes: Antitóxico, da Mulher,
do Consumidor, do Meio Ambiente, Grupo Especial COPPE, Grupo Especial TIGRE
e SICRIDE, omitindo informação de que no 3º Distrito Policial há uma equipe
dedicada à questão do idoso.
É necessário, finalizando esse tópico, salientar que a iniciativa de projetos de
lei dispondo sobre a organização administrativa é de competência exclusiva do
Governador do Estado, nos termos art. 66, da Constituição Estadual, em razão do
que os projetos não poderiam ter recebido parecer favorável quanto à
constitucionalidade.
Projetos de lei do Município de Curitiba sobre atendimento prioritário
No âmbito municipal há duas leis dispondo sobre atendimento prioritário, uma
relativa a estabelecimentos bancários e outra a supermercados.
O Vereador Mario Celso Puglielli da Cunha foi autor do projeto de lei que deu
origem à Lei Municipal de Curitiba n° 8.137, de 2 de abril de 1993 (que dispõe sobre
o atendimento prioritário a idosos, deficientes físicos, gestantes e mulheres com
crianças ao colo nos estabelecimentos bancários situados no município). 17 http://www.alep.pr.gov.br/atividade-parlamentar/pesquisa-legislativa acesso em 8 de junho de 2011. 18 http://www.gazetadopovo.com.br/vidaecidadania/conteudo.phtml?tl=1&id=1081320&tit=Delegacia-especifica-para-atender-idosos-esta-com-estrutura-pronta acesso em 8 de junho de 2011. 19 http://www.policiacivil.pr.gov.br/modules/listatelefonica/ acesso em 8 de junho de 2011.
28
O sítio da câmara Municipal de Curitiba informa que o referido político foi
eleito vereador em 1976 pelo então MDB, sendo eleito novamente vereador em
1988 pelo PMDB; em 1997 filiou-se ao PFL, em 2005 filiou-se ao PSDB e
atualmente está filiado ao PSB 20 .
A biografia que o Vereador Mario Celso apresenta em seu próprio sítio 21
sintomaticamente suprime o turismo partidário deste, que vai da “esquerda” (MDB e
PMDB) à “direita” (PFL e PSDB), e volta à “esquerda” (PSB). Os projetos de lei
apresentados pelo Vereador Mario Celso são de gama tão diversificada que não
permitem identificar o seu perfil ideológico, exceto que é flexível.
A Vereadora Nely Almeida é autora do projeto que resultou na Lei n°
8.137, de 2 de abril de 1993 ( dispõe sobre o atendimento prioritário aos idosos,
deficientes físicos, gestantes e mulheres com crianças ao colo nas filas de caixas
dos supermercados no município de Curitiba ).
A consulta feita à biografia da vereadora Nely Almeida, no sítio da
Câmara de Vereadores, não foi produtiva, pois este informa tão-somente que a
parlamentar em questão é filiada ao PSDB 22. O sítio da Transparência Brasil 23
informa que Nely Almeida foi eleita vereadora em 1989, 1993, 1997, 2001 e 2005.
Em 2002 candidatou-se ao Senado pelo PSC. Suplente na legislatura 2009-2012,
assumiu o mandato em 2011, na vaga de Mara Lima (PSDB-PR), eleita deputada
estadual.
Foram pesquisados os projetos de lei apresentados pela Vereadora Nely
Almeida após 1999 – ano a partir do qual estão disponibilizadas essas informações
no sítio da Câmara Municipal de Curitiba – destacando-se nesse ano a proposição
de n° 05.00037.1999, dispondo sobre a “Política Municipal de Atenção ao Idoso” 24 .
Em 2003, entre outras, foi apresentada a proposição de n° 05.00246.2003, dispondo
(novamente) sobre a “Política Municipal de Atenção ao Idoso", a de n°
05.00163.2003, sobre “a inclusão de informação sobre o perigo à saúde do
20 http://www.cmc.pr.gov.br/ver_det.php?ver=30 , acesso em 6 de junho de 2011. 21 http://www.mariocelso.com.br/quem.php , acesso em 6 de junho de 2011. 22 https://www.cmc.pr.gov.br/ver_det.php?ver=31 , acesso em 6 de junho de 2011. 23 http://www.excelencias.org.br/@candidato.php?id=36295&cs=47&pt=-1 acesso em 6 de junho de 2011. 24 http://domino.cmc.pr.gov.br/prop2000.nsf/vPropAut?OpenForm&Start=59&Count=30&Expand=60.3.1.2 acesso em 6 de junho de 2011.
29
consumidor em toda publicidade que vise à divulgação de bebidas alcoólicas e dá
outras providências correlatas.", e a de n° 04/08/2003, que "Altera artigos da Lei
9681/99 que Regulamenta a venda de bebidas alcoólicas a varejo nas proximidades
de estabelecimentos de Ensino e dá providências correlatas" 25. Em 2004, dá-se
destaque à proposição 05.00010.2004 com a seguinte ementa "Altera a redação do
inciso IV, do artigo 19 da Lei nº 7556, de 17 de outubro de 1990, que dispõe sobre o
Transporte Coletivo de Passageiros e dá outras providências, e do parágrafo único,
do artigo 1º da Lei nº 10.322, de 11 de dezembro de 2001, que dispõe sobre o
cadastramento dos beneficiários de isenções, gratuidades ou descontos no Sistema
de Transporte Coletivo do Município de Curitiba," (estende benefício da gratuidade
de transporte coletivo urbano aos maiores de sessenta anos). Em 2008 a vereadora
apresentou a indicação de n° 05.00053.2008 tendo por ementa o seguinte: "Dispõe
sobre a proibição de fumar em bares, casas noturnas, churrascarias, lanchonetes e
estabelecimentos afins, no âmbito do Município de Curitiba, e dá outras
providências.”
As proposições acima destacadas revelam preocupações consentâneas com
posições mais à esquerda: restrições à venda de bebidas alcoólicas, proibição de
fumo e ampliação da gratuidade de transporte coletivo, passando esta de sessenta e
cinco para sessenta anos, são propostas que, por um lado, não agradam
empresários e, por outro, tem inegável alcance social.
25 http://domino.cmc.pr.gov.br/prop2000.nsf/vPropAut?OpenForm&Start=59&Count=30&Expand=60.3.1.1 , acesso em 6 de junho de 2011.
30
CAPÍTULO III
A cidadania brasileira
O Brasil padece de vícios de origem que – a despeito de instigantes opiniões
em contrário, como será visto adiante com as observações de Sérgio Tavolaro –
marcam indelevelmente nossa sociedade. A referência por certo é à herança
histórica (patrimonialista e ibérica) que, tendo aqui encontrado terreno fértil para uma
inusitada fusão, resultou nesta sociedade que desafia intermináveis explicações ao
longo do tempo.
DA MATTA (1997) acerta na luz, no contraste, no foco e faz um instigante
filme do Brasil em ‘Carnavais, malandros e heróis”. E os fotogramas da cena
brasileira no “Sabe com quem está falando” ilustram com rara clareza seu ponto de
vista. À guisa de introdução: quem ainda não escutou a expressão que dá título ao
ensaio? Ou expressões como “aos amigos tudo, aos outros os rigores da lei” ? Ou
então que “fulano é individualista”, a título de emprestar ao destinatário da frase uma
personalidade egoísta. Esses exemplos traduzem com precisão hábitos reveladores
da estrutura social brasileira.
Para que se possa apropriar adequadamente o pensamento de DA MATTA
(1997) faz-se necessário reportar algumas anotações do autor sobre indivíduos e
pessoas. A idéia de indivíduo definida como a que interessa à distinção a ser
proposta é “uma noção empiricamente dada do indivíduo como realidade concreta,
natural, inevitável, independente das ideologias ou representações coletivas ou
individuais” (DA MATTA, 1997, p. 221). Esse indivíduo é capaz de gerar ao mesmo
tempo ideais de “individualismo e igualitarismo” constituindo-se em “fato social e
histórico, objetivamente dado, produto do desenvolvimento de uma formação social
específica: a civilização ocidental.” De outro lado, a pessoa caracteriza-se como o
indivíduo embebido pela sociedade; esta se impõe ao indivíduo, inclusive, no limite,
mediante imposição de marcas no corpo que atestam a transformação em pessoa. A
noção de indivíduo e pessoa é resumida por DA MATTA (1997, p. 225) da seguinte
forma:
31
INDIVÍDUO PESSOA
Livre, tem direito a um espaço próprio
Presa à totalidade à qual se vincula
Igual a todos os outros
Complementar aos outros
Tem escolhas, que são vistas como seus direitos fundamentais.
Não tem escolhas
Tem emoções particulares
A consciência é individual A consciência é social (isto é, a totalidade tem precedência)
A amizade é básica no relacionamento = escolhas
A amizade é residual e juridicamente definida
O romance e a novela íntima, individualista (obra do autor) são essenciais
A mitologia, as formulações paradigmáticas do mundo são básicas como formas de expressão
Faz as regras do mundo onde vive
Recebe as regras do mundo onde vive
Não há mediação entre ele e o todo
A segmentação é a norma
O caso brasileiro, a partir desse posicionamento é situado como o local de
convivência das duas categorias, embora com visível predominância das relações
pessoais. E isso é explicado pelos extremos, como o caso da Índia em que o
indivíduo é “sistematicamente excluído” e o dos Estados Unidos, onde ocorre o
inverso, ou seja, há a sistemática exclusão da pessoa. É identificada uma situação
que muitos diriam, sem esconder certo orgulho, onde é a conveniência que dita a
posição a ser assumida.
Para DA MATTA, no “sistema social brasileiro, então, a lei universalizante e
igualitária é utilizada frequentemente para servir como elemento fundamental de
sujeição e diferenciação política e social” (1987, p. 237): não se aplicam a pessoas,
mas somente aos indivíduos. Assim, o sistema legal é construído para
aprisionamento dos indivíduos, haja vista que pessoas não se sujeitam a ele, ao
contrário, servem-se dele para legitimar as desigualdades porque cristalizam,
solidificam, as relações pessoais. Por isso que o Brasil é descrito como um núcleo
ferreamente moldado na hierarquia caracterizadora de um sistema aristocrático,
envolvido por uma profusão de leis “universalizantes” cuja elaboração se produziu
32
ao longo de séculos nas relações de senhores e escravos (DA MATTA. 1987, p.
246).
Um enfoque importante para compreensão do tema é o de SALES (RBCS 25)
onde discorre sobre a questão da desigualdade social na cultura brasileira mediante
um retrato da construção da cidadania no Brasil, cuja primeira expressão denomina
de cidadania concedida. Para essa Autora, a chave da compreensão de nossa
desigualdade está na cultura política da dádiva, no poder dos senhores de terras e
nas relações de mando e subserviência, que de alguma forma sobreviveram à
reconfiguração das bases que lhes deram existência.
A cultura da dádiva é explicada por SALES (RBCS 25, p. 2) como resultado
do “pedir”, pelo homem livre pobre, ao detentor do poder – o senhor de terras,
detentor do “domínio territorial” em qualquer de suas expressões, seja sesmaria,
latifúndio escravocrata ou grande propriedade – estabelecendo uma relação de
mando e subserviência.26. Um poder privado que – até a proclamação da República
– controlava aparelhos que desempenhavam funções estatais (judiciário, polícia,
câmaras municipais), ou seja, que tudo podia contra o homem livre e pobre,
inclusive ampará-lo se este pedisse, assegurando-lhe, em uma “troca” desigual na
qual o elemento volitivo inexistia, a subserviência.
“A busca das raízes da desigualdade social na cultura política brasileira me fez percorrer algumas interpretações seminais para a relação de mando e subserviência que conduzem a um tipo de cidadania que nomeei como cidadania concedida. Essa cidadania concedida, voltando aos argumentos utilizados no início deste artigo, tem a ver com o próprio sentido da cultura política da dádiva. Os direitos básicos à vida, à liberdade individual, à justiça, à propriedade, ao trabalho; todos os direitos civis, enfim, para o nosso homem livre e pobre que vivia na órbita do domínio territorial, eram direitos que lhe chegavam como uma dádiva do senhor de terras.” (SALES, RBCS 25, p. 5)
A abolição da escravidão e a proclamação da República deram lugar ao
coronelismo que, transcendendo à estrutura agrária, é definido por SALES (RBCS
25, p. 7) como um compromisso de apoio incondicional pelo “possuidor” do curral
eleitoral ao candidato oficial, recebendo em troca o “direito” até de nomear
funcionários do governo estadual. Esse coronelismo vem a assegurar a
sobrevivência da cultura política da dádiva.
26 SALES (RBCS 25, p. 2) redefine um do pólos da alteridade em termos do pedir / subserviência, no que se distingue do mandar/ obedecer definido por Max Weber.
33
Essa cultura política para SALLES (RBCS 25, p. 8) constitui uma “espécie de
cimento das relações de mando e subserviência, que em última análise se relaciona
às próprias raízes da desigualdade social brasileira.”. Na investigação sobre o
porquê dessa sobrevivência, a explicação é encontrada na impossibilidade de o
homem cordial libertar-se das raízes que o impedem – pelo horror à distância” – de
romper com os “padrões privatistas e particularistas dominantes no sistema e na
família patriarcal”.
TAVOLARO (2009) critica a busca da pesquisa de nossa sociabilidade
contrastando-a com a dos “países modernos centrais”, especialmente na imagem
padronizada que tem por referência teórica o ensaio de Marshall, no que refere aos
direitos e deveres. E por isso que a “cidadania brasileira” daí resultante, por não
apropriar adequadamente toda a gama de transformações normativas resulta em um
“opção explicativa” que se mostra
“pouco sensível à dimensão contingente e agonística do processo de institucionalização de direitos e deveres (uma vez pensado como fruto de lutas e conflitos entre projetos dispares de normatividade)”. (TAVOLARO, 2009, p. 107)
acrescentando (em nota de rodapé, de n°31, p. 108) ser este o espírito da crítica de
Francisco Oliveira à noção de “cidadania concedida” de Teresa Sales.
O caminho trilhado por TAVOLARO (2009) para explicar o desenvolvimento
da cidadania adota a noção de “oportunidades políticas e práticas”, isto é,
evidenciando que a normatividade é definida na luta onde estão em disputa projetos,
interesses, diferentes visões de mundo e todas as variáveis que alimentam a disputa
por recursos escassos. Essas “oportunidades políticas” abririam “janelas” das quais
se aproveitariam atores destituídos de recursos próprios “para a institucionalização
e/ou consolidação de seus próprios projetos de sociedade, interesses, anseios e
visões de mundo”.
Essa noção de “oportunidade política” auxilia a compreensão de cenários em
que ocorrem transformações institucionais, sem explicações que recorram à
vinculação da dinâmica social a “variáveis independentes externas às próprias lutas
sociais”, ou seja, desvinculando mudanças na ordem normativa em diferentes
momentos da história de tendências ínsitas em nossa sociabilidade “ ...desde
tempos imemoriais. Em vez disso podem ser pensadas como janelas de
34
oportunidades aproveitadas por certos projetos de normatividade” (TAVOLARO,
2009, p. 108).
E, resumidamente, conclui o Autor, que a “cidadania brasileira” não resultou
de concessão, ou na própria herança histórica que origina a posição de Teresa
Sales (RBCS) ou, ainda no capitalismo internacional, mas desenvolveu-se através
de práticas de lutas e oportunidades políticas”. (TAVOLARO, 2009, p. 116).
País legal e país real
O ordenamento jurídico brasileiro determina, no âmbito federal, que idosos
(com idade igual ou superior a 60 anos), juntamente com pessoas portadoras de
deficiência física, gestantes, lactantes e pessoas acompanhadas por crianças de
colo devem ser atendidos prioritariamente nas repartições públicas e empresas
concessionárias de serviços públicos e instituições financeiras (arts. 1º, 2º e
parágrafo único do art. 2º da Lei n° 10.048/2000).
Assim, em vista de disposições constitucionais, esta Lei é aplicável às
repartições públicas federais, às concessionárias de serviços públicos de
competência da União e instituições financeiras.
A regulamentação desta Lei define que o atendimento prioritário compreende
“tratamento diferenciado e atendimento imediato” às pessoas beneficiadas pela Lei,
o que inclui, entre outras facilidades, a reserva de assentos sinalizados, instalações
acessíveis, mobiliário atendimento adaptado para pessoas em cadeiras de rodas,
pessoal capacitado e local de atendimento específico (caput do art. 5º e caput do 6º
e incisos do seu § 1º, do Decreto 5.296, de 2 de dezembro de 2004). E o § 2º do art.
6º do referido Decreto 5.296/04 é taxativo quando estabelece que:
“Art. 6º - (...) (...) § 2º Entende-se por imediato o atendimento prestado às pessoas referidas no art. 5º, antes de qualquer outra, depois de concluído o atendimento que estiver em andamento, observado o disposto no inciso I do parágrafo único do art. 3º da Lei n° 10.741, de 1º de outubro de 2003 (Estatuto do Idoso).”
A realidade observada, no entanto, é muito diferente: as repartições públicas,
as concessionárias de serviços públicos federais e as instituições financeiras,
35
notadamente duas das mais importantes no cenário nacional, controladas pela
União, não obedecem ao que a Lei determina (é freqüente a constatação de que
beneficiários de atendimento prioritário são atendidos, proporcionalmente, muito
tempo depois em relação às demais pessoas).
No Paraná há Lei estadual determinado o atendimento prioritário desde junho
de 1992, ou seja, mais de oito anos antes da Lei federal. E a Lei paranaense é mais
objetiva a respeito, dispondo taxativamente que os beneficiários “ficam
desobrigados, a qualquer tempo, a aguardar a vez em filas, mesmo aquelas
externas (...) quando também terão, (sic) preferência, sempre, e em todas as
circunstâncias.” em todas as agências bancárias e instituições similares (art. 1º da
Lei n° 9.997, de 16 de junho de 1992).
No Município de Curitiba a Lei que estabelece o atendimento prioritário nos
estabelecimentos bancários é de 1993. Esta Lei, diferentemente das demais, institui
simplesmente o direito ao atendimento prioritário sem definir que este se faça
mediante caixa exclusivo (Lei municipal de Curitiba n° 8.137, de 2 de abril de 1993).
E pouco depois foi promulgada a Lei que determinou o atendimento prioritário nas
filas de caixas de supermercados. Esta Lei , no entanto, veio a estabelecer que os
supermercados “com 5 (cinco) ou mais caixas deverão obrigatoriamente dispor de
caixa exclusivo para atendimento aos idosos (... )” (Lei n° 8.655, de 6 de junho de
1995).
Como já se viu, a Lei n° 10.048/00, a Lei Estadual do Paraná de n° 9.9997/92,
as Leis Municipais de Curitiba de n°s. 8.137/93 e 8.655/95 resultaram da aprovação
de projetos proposto por políticos vinculados a partidos situados de orientação
conservadora.
As explicações são encontradas em OLIVEIRA e SONCINI (2010) e
MOREIRA (2006): a apresentação de projetos de lei e a subseqüente aprovação
destes se constituem em elemento importante para a reeleição. Pelo fato de restar
pouca margem para os parlamentares atuarem na proposição de direito novo, a
escolha recai em temas que tratam de “questões sociais”, relacionadas “ao cotidiano
do cidadão” (exemplifica: impressão de data de validade no rótulo de alimentos,
direitos de sucessão, doação de órgãos etc.) que por sua natureza ensejam pouca
polêmica e preenchem uma lacuna deixada pelo Estado (MOREIRA, 2006, p. 64).
Outra explicação poderia ser a de que, no Brasil, fazer leis é “uma atividade que
tanto serve para atualizar ideais democráticos quanto para impedir a organização e
36
a reivindicação de certas camadas da população.(...)”, transformando o sistema de
leis “que serve a todos” e em relação ao qual “todos estão de acordo” em
“instrumento de aprisionamento da massa que deve seguir a lei, sabendo que
existem pessoas bem relacionadas que nunca a obedecem.” (DA MATTA, 1997, p.
237).
E a história dá razões para que o indivíduo não confie nas instituições. Cabe
aqui mencionar episódio que bem ilustra essa atitude e que está registrado na
biografia (muito bem) intitulada “Chatô o rei do Brasil” por seu autor, Fernando
Morais (1994, ps. 406/410). Chateaubriand teve uma filha – Teresa – de seu
relacionamento com Cora Acuña, quando ainda casado com Maria Henriqueta
Barroso do Amaral. Chateaubriand queria a guarda da filha que, pela legislação da
época, não poderia ser reconhecida como tal. Em demonstração absurda de poder,
obteve de Getúlio Vargas um decreto-lei que possibilitava ao filho concebido fora do
matrimônio pleitear depois do desquite, o reconhecimento da filiação (ou pleiteá-la
judicialmente). Trata-se do Decreto-lei n° 4. 737, de 24 de setembro de 1942.27 . A
simples possibilidade de obter o reconhecimento, no entanto, não satisfazia a
Chateaubriand, porque a lei estabelecia que o pátrio poder só seria exercível por
quem primeiro reconheceu o filho. Em quatro meses, ultimado o desquite, era
publicado o Decreto-lei n°. 5.213, de 21 de janeiro de 1943 28, que atribuía a guarda
do “filho natural” em última instância, como queria Chateaubriand, ao pai (essa Lei
passou a ser conhecida no meio jurídico como “lei teresoca”).
Não por outra razão que -- assim como em outros casos em que se busca a
efetivação de direitos sociais – tem sido necessária a atuação do Ministério Público
para que a lei seja cumprida. Na inicial de uma dessa ações, o subscritor de ação
pública – promotor público da Comarca de Rolândia, Estado do Paraná, diz no
requerimento inicial, o seguinte: “Tal fato leva à pessoa portadora de necessidade especial e afins, como é o caso da grávida e da lactante, bem como o idoso, à uma situação vexatória, constrangedora, mormente o fato de serem alvos de críticas de alguns integrantes da fila.”29
27 A íntegra do texto pode ser obtida em http://www2.camara.gov.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-4737-24-setembro-1942-414783-publicacaooriginal-1-pe.html acesso em 19 de junho de 2011. 28 A íntegra do texto pode ser obtida em http://www.planalto.gov.br/ccivil/Decreto-Lei/1937-1946/Del5213.htm acesso em 19 de junho de 2011. 29 http://www.ppd.caop.mp.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=395 acesso em 19 de junho de 2011.
37
Esse trecho faz referência a argumentos do estabelecimento bancário, de que
na agência havia um cartaz informando sobre o atendimento prioritário, obrigando o
idoso (a grávida, o deficiente) a “furar a fila”, e com isso submeter-se a vexame, a
constrangimento, em face a críticas de pessoas que aguardam sua vez.
38
CONCLUSÃO
A relação entre os brasileiros e a lei é informada pela persistência em resistir
ao seu cumprimento. E, não fazendo qualquer juízo de valor quanto à justiça ou não
das situações envolvidas, podem ser apontadas como paradigmáticas as discussões
sobre o novo texto do Código Florestal, em que o tema principal parece residir na
anistia aos que – em detrimento do interesse público – descumpriram a lei existente;
ou a realidade sobre a proibição de dirigir após a ingestão de bebida alcoólica, que
de início produziu bons resultados, mas que – especialmente em face à norma
constitucional de que ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo –
acabou por ter a aparência de “letra morta”, como estão a indicar os tantos casos de
seu descumprimento registrados em imagens divulgadas pelos noticiários
televisivos.
Os exemplos acima citados fornecem a indicação de que o objeto deste
trabalho é emblemático, considerada a sua pouca importância relativamente a
transgressões, como por exemplo, às leis de trânsito que podem resultar em mortes
ou em graves injúrias corporais. A questão que se coloca é que há uma legislação
que assegura atendimento prioritário ao idoso. E que essa legislação, muito embora
implique em custos materiais pouco significativos em relação à sua relevância, não é
cumprida. E o que é pior, a simulação do cumprimento dessa legislação – na maioria
dos casos observados – por parte dos prestadores de serviços (e a omissão estatal
em fiscalizar) tem um resultado duplamente perverso: por primeiro, o prejuízo
imediato que se traduz pela demora do atendimento em relação às demais pessoas;
e, por segundo, a (não tão eventual) necessidade de o idoso ter que se expor ao
constrangimento de reivindicar um direito assegurado legalmente.
A propositura de projeto de lei como o do atendimento prioritário por político
situado ideologicamente na “direita”, tem em mira, quando menos, dois objetivos: o
eleitoreiro e o de criar obstáculo à apresentação (e aprovação), por políticos de
outros partidos, de projeto elaborado com maior cuidado em termos de eficácia e
eficiência (que seguramente implicaria em aumento de custos aos bancos e
supermercados).
A isso se pode acrescentar a observação feita por DA MATTA (1997, p. 238)
no sentido de que tão grande é a confiança depositada na força da lei “como
39
instrumento de mudança” que “dialeticamente inventamos tantas leis e as tornamos
inoperantes”.
Outro ingrediente importante é o de que nossa cidadania é outorgada, ou na
denominação de Sales (RBCS v. 25) “concedida”, em contraposição à cidadania
conquistada. Entretanto, situações muito específicas não comportam sequer a
mediação de “uma pessoa importante” para o exercício de direitos como, no caso,
do atendimento prioritário. Não interessa sequer ao proponente da lei fiscalizar o seu
cumprimento, porque um bom relacionamento com a casa bancária prepondera
sobre qualquer outro interesse.
Vale lembrar a pouca familiaridade do brasileiro com a luta pela conquista da
cidadania (contrastada com a luta havida nas democracias européias). Aqui a
cidadania surgiu muito mais como suporte a projetos de poder autoritários, como o
de Getúlio Vargas, não por outra razão conhecido como “o pai dos pobres”, do que
como parte de um projeto de modernização do país. Ao que se pode acrescentar
que, no Brasil, a época considerada como aquela em que houve um grande
“avanço” dos direitos sociais, foi a mesma em que, como contrapartida, ocorreu um
retrocesso correspondente dos direitos políticos (a sequencia descrita por Marshall é
invertida), repercutindo diretamente na cidadania.
O que se constata é que o descumprimento das leis de atendimento prioritário
se deve não somente a fatores restritos à sua natureza, mas também a outros
fatores aplicáveis às demais leis. As leis de modo geral não são cumpridas porque o
seu exercício depende de fatores que na prática o impedem. Referimo-nos aos
custos de ações judiciais, acessíveis por isto a parcela muito restrita da população.
E nos casos em que não há custos, os recursos destinados à máquina burocrática
são insuficientes ao desempenho à altura da expectativa do cidadão.
De outro tanto, especificamente no caso do atendimento prioritário, ou leis
similares, o Poder Público é omisso em seu papel de fiscalização para que haja o
cumprimento da lei. Dentre os motivos para isso pode ser identificada a inexistência
de pressões para tanto, pois seus autores não tem vínculos diretos com os
beneficiários de tais disposições, que se pulverizam em áreas nem sempre incluídas
entre aquelas de influência dos autores dos projetos. Politicamente interessa o
registro estatístico da propositura de projeto de lei com alcance marcadamente
social (cuja aprovação, se ocorrer será um bônus).
40
Não se pode perder de vista, também, o status de marginalizado atribuído ao
idoso, incluído em grupo social (daqueles reconhecidos como merecedor de
proteção do Estado assistencial) ao lado de doentes, encarcerados e mulheres.
(MATTEUCCI, 2004, P. 354) reforçando a idéia de que o idoso é cidadão de
segunda classe. Esse panorama por si só demonstra ser pouco plausível que haja
alguém com motivação para cumprir direitos dos idosos, ainda mais se a
contrapartida for aumento de despesas ou conflito com demais clientes.
Por último, a exigência do cumprimento da lei, seja por seu autor, seja pelo
órgão público encarregado de exigir seu cumprimento, colide com interesses
poderosos e articulados em contraste com o idoso, situado em grupamento social
que carrega o estigma da marginalização. Afora, como bem assinalado pelo
Ministério Público não contar com a simpatia do restante da população, que assim
tem um duplo motivo para não pugnar pelo cumprimento da lei: a resistência em si
ao cumprimento de qualquer lei, potencializada por representar uma lesão ao direito
de atendimento estabelecido segundo a ordem de chegada.
]
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BIBLIOGRAFIA
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