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XV SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO A Cidade, o Urbano, o Humano Rio de Janeiro, 18 a 21 de setembro de 2018
CIDADE E CULTURA EM SOBRADOS E MUCAMBOS: GÊNESE E RENDIMENTOS NA HISTÓRIA REPRESENTAÇÕES, SUBJETIVIDADES E SABERES SOBRE A CIDADE FERNANDA AREAS PEIXOTO, FFLCH-USP JOSÉ TAVARES CORREIA DE LIRA, FAU-USP
RESUMO
A presente comunicação passa em revista o livro Sobrados e Mucambos, de Gilberto Freyre,
publicado originalmente em 1936 e substancialmente modificado em 1951, quando de sua segunda
edição. Tomando-o como um marco importante para reflexão acerca da gênese de uma história
cultural urbana no Brasil, focalizamos suas dimensões de inovação e continuidade com alguns de
seus trabalhos anteriores, assim como sua inscrição em momentos cruciais de modernização
sociocultural do país. Trata-se de pensar não tanto, nem outra vez, os vícios, limites e extrapolações
das interpretações nele contidas, mas sua produtividade em termos historiográficos, isto é, dos
regimes temporais, objetos, visadas e registros privilegiados pelo autor.
PALAVRAS-CHAVE: Gilberto Freyre, historiografia, cidade
2
CITY AND CULTURE IN THE MANSIONS AND THE SHANTIES: GENESIS AND OUTPUTS IN HISTORY
ABSTRACT
This paper reviews the book The Mansions and the Shanties, by Gilberto Freyre, originally published
in 1936 and substantially modified in 1951, at its second edition. Taking it as an important landmark
for reflection upon the rise of an urban cultural history in Brazil, we focus its aspects of innovation and
continuity with his previous works, as well as its inscription at crucial moments of the country´s
sociocultural modernization. We tend here not so much to think, again and again, about the vices,
limits and extrapolations of the interpretations contained in it, but to look upon its productivity in
historiographic terms, that is, in terms of temporal regimes, objects, visas and records highlighted by
the author.
KEY-WORDS: Gilberto Freyre, historiography, city
3
CİDADE E CULTURA EM SOBRADOS E MUCAMBOS: GÊNESE E RENDİMENTOS NA
HİSTÓRİA
A obra de Gilberto Freyre é com frequência tomada como um dos pilares da interpretação do Brasil
em seu processo de formação. Naturalmente, desde a sua composição, ela se tornou alvo de uma
exigente recepção acadêmica, especialmente a partir dos anos 1940, quando o florescimento de
distintos campos da investigação histórico-social no Brasil reverberou em objeções, reparos e
censuras de grande ressonância sobre muitas de suas análises, interpretações e generalizações.
Não obstante isso, o interesse por ele creditado aos fatos espaciais e da cultura material tornou seu
trabalho dos mais sedutores e influentes no meio arquitetônico e patrimonial, assim como no discurso
especializado em história da arquitetura, da cidade e da habitação. Desde os anos 1990, por outro
lado, um reexame de seu legado no campo da história intelectual e do debate historiográfico abriu
perspectivas de leituras até então pouco consideradas em sua fortuna crítica. O propósito aqui é
passar em revista o livro Sobrados e Mucambos, originalmente publicado em 1936, tomando-o como
marco importante para uma reflexão acerca da gênese de uma história cultural urbana no Brasil.
Focalizando suas dimensões de inovação e continuidade com trabalhos anteriores do autor, assim
como sua inscrição em momentos cruciais de modernização sociocultural do país, trata-se de pensar
não tanto, nem outra vez, os vícios, limites e extrapolações das interpretações nele contidas, mas sua
produtividade em termos historiográficos, isto é, dos regimes temporais, objetos, visadas e registros
por ele privilegiados.
De Casa-Grande & Senzala ao século XIX
A despeito de sua produção extensa e variada, o nome de Gilberto Freyre (1900-1987) está
irremediavelmente ligado à Casa-grande & senzala, livro que conheceu repercussão imediata logo
após sua aparição em 1933, e sucessivas edições, nacionais e estrangeiras. O êxito da obra de
estreia do escritor brasileiro terminou por deixar na sombra Sobrados e mucambos (1936), segundo
volume da trilogia dedicada à história da sociedade patriarcal no Brasil1 e que, segundo Fernand
1 Completa a trilogia, Ordem e Progresso, dedicado ao Brasil republicano e editado em 1959. Gilberto Freyre teria projetado um quarto volume, Jazigo e Covas Rasas, voltado às atitudes diante da morte na sociedade patriarcal, nunca realizado.
4
Braudel, não somente “continua e completa Casa-grande e senzala”, mas “é no mínimo tão bonito
quanto, talvez mais bonito ainda, e de inteligência rara”2.
O livro de 1936 efetivamente apresenta continuidades em relação ao estudo primeiro do
ponto de vista temporal (do Brasil colônia passamos ao Império), no que diz respeito ao uso de fontes
pouco exploradas à época (relatos de viajantes, arquivos familiares e eclesiásticos; inventários e
testamentos; atas de câmaras; livros de etiqueta e receitas; anúncios de jornais, gravuras, fotografias,
correspondências, entre muitas outras) e sobretudo pela perspectiva da análise: o exame da
decadência do sistema patriarcal empreendido em Sobrados e mucambos é realizado, mais uma vez,
a partir da casa e do prisma das relações familiares. De fato, em Casa-grande & senzala fôramos
confrontados à formação de um complexo de relações sociais envoltas em uma atmosfera de
excesso, perceptível tanto na proximidade e despotismo de senhores e sinhás face a escravos,
quanto na sexualidade descontrolada, a produzir mestiçagem, poligamia e amasio. Excessos e
antagonismos (entre senhor e escravo, pai e filho, homem e mulher) que, longe de produzirem
rupturas, acomodavam-se em função dos hibridismos e adaptações, que o colonizador português, ele
mesmo equilibrado entre geografias e tradições diversas, expressa. Tal sistema se modifica nos
sobrados urbanos, mais distantes dos mucambos e tocados por modelos europeus que invadem
casas e ruas, sobretudo após a transferência da corte portuguesa para o Brasil, em 1808, e a
independência do país, em 1822. Estamos agora diante de um universo em transformação, capturado
por Gilberto Freyre quando projeta as características peculiares da modernidade brasileira em
Sobrados e mucambos.
A despeito da originalidade da análise, o livro desenha trajetória relativamente modesta,
traduzido apenas para o inglês, o italiano e o alemão3, e visto como mero prolongamento do livro
anterior, um clássico de nascença como se disse, publicado em inúmeras línguas desde a década de
1940 e consagrando-o como um dos grandes intérpretes da América hispânica e do mundo luso-
tropical. Não obstante, além das fontes, ferramentas e perspectivas inovadoras com que opera,
Sobrados e Mucambos deixa à mostra traços originais de seu autor no trânsito entre a forma
ensaística e a análise abrangente de espaços sociais mais recônditos da vida cotidiana, a antecipar
temas e objetos que se tornariam canônicos na historiografia cultural urbana décadas depois.
Gênese e mutações de Sobrados e Mucambos
Composto em meio à agitação dos anos que sucedem o lançamento de Casa-grande & senzala,
Sobrados e mucambos não apenas continua “dentro do mesmo critério e da mesma técnica de
2 Prefácio à edição italiana de Casa-grande & senzala (Padroni e schiavi: la formazione della fami- glia brasiliana in regime di economia patriarcale, Einaudi, 1965), republicado em Novos estudos CEBRAP, n. 56, 2000 (p. 13). 3 Gilberto Freyre, The mansions and the shanties: the making of modern Brazil, Tradução Harriet de Onís, Prefácio Frank Tannenbaum, Nova York, Alfred Knopf, 1963, 1966, 1968; Westport, Conn, Greenwood Press, 1980 e Berkeley, University of California Press, 1986; Idem, Case e catapecchie: la decadenza del partriarcato rurale brasiliano e lo sviluppo della famiglia urbana, Tradução Alberto Pescetto, Turim, Einaudi, 1972; Idem, Das Land in der Stadt: Die Entwicklung der urbanen Gesellschaft Brasiliens, Tradução Ludwig Graf von Schönfeldt, Stuttgart, Klett-Cotta, 1982 e Munique, Taschenbuch, 1990.
5
estudo” o livro de 1933, nos termos do prefácio à primeira edição da obra, como retoma, ampliando, a
documentação reunida para a elaboração de Social life in Brazil in the middle of the nineteenth
century, 19224. É possível localizar elos firmes do livro com o mestrado de Freyre, não apenas do
ponto de vista do recurso abundante aos relatos de viajantes estrangeiros, mas na forma de abordar
um universo similar de questões. Desde o trabalho de 1922, tratava-se de reconhecer os traços
distintivos de uma experiência urbana no Brasil do século XIX, reconstituindo o sentido das
transformações em curso na população, nas formas de propriedade e produção, nos assuntos
públicos, no trato dos escravos, nos códigos de sociabilidade, nas práticas familiares,
comportamentos e espaços típicos dos sobrados. Já era perceptível também sua aproximação à
antropologia cultural de Franz Boas, seu professor em columbia, à new history norte-americana (à
época estimulada pelos estudos de Charles Beard e James Robinson), ao interesse dos Goncourt
pela vida íntima e de Walter Pater pelo mundo infantil, que reverberam em sua atenção precoce à
cultura material e na dicção introspectiva da análise. Mas se em seu primeiro escrito acadêmico o
autor esboçaria o recorte temporal, o estilo narrativo, o universo empírico e algumas das referências
que o notabilizariam anos depois, em Sobrados e mucambos ele se mostraria capaz de diluir certos
anacronismos, exageros e preconceitos ali ainda presentes5, ao introduzir na análise a dinâmica dos
antagonismos e duplicidades com que vinha trabalhando a partir de Casa-grande & Senzala.
A localização de vínculos com o trabalho de 1922, assim como os nexos deliberados com o
livro de 1933 não apagam as particularidades do livro sobre o Brasil imperial do século XIX. Como
Casa-grande & senzala, Sobrados e mucambos é um ensaio pleno de imbricações entre os registros
literários e científicos e o caráter aberto da interpretação, mais sugestiva do que conclusiva. E como o
livro anterior propõe-se também roman vrai ou “novela verdadeira”, como define Freyre na
apresentação à segunda edição, anotando sua filiação a um modelo de história íntima que se
beneficia dos trânsitos pela literatura, pela biografia e pela autobiografia6. Mas ao oferecer uma
contribuição importante à história das cidades brasileiras, em seus espaços e sociabilidades
característicos, o livro pode ser pensado ao mesmo tempo como uma história cultural da cidade ou
um ensaio de etnografia histórica do universo urbano, haja vista a combinação das perspectivas
diacrônica e sincrônica, até então pouco usual entre os historiadores, para a descrição da sociedade
4 Sua tese de mestrado foi publicada na Hispanic American Historical Review. Em Nova York atuou junto à revista El Estudiante Latinoamericano e à Liga Pan-americana de Estudantes, tendo participado do Congresso de Estudantes realizado na Universidad Nacional de Mexico, em 1921. Desde então, ora estimulado pelo diálogo com seu mentor e amigo Manuel de Oliveira Lima, autor de livros de viagem sobre a Venezuela e a Argentina, ora inspirado pela lição dos muralistas mexicanos na figuração épica da nação, o interesse do jovem Freyre nos países vizinhos produziria paralelos com o Brasil. Cf. Fernanda Arêas Peixoto, “Gilberto Freyre, miradas sobre a América hispânica” in A Viagem como vocação: itinerários, parcerias e formas de conhecimento. São Paulo, EDUSP/ FAPESP, 2015, p. 87-124. 5 A exemplo dos paralelos com a Grécia antiga e a Idade Média europeia, o silêncio total quanto ao mundo popular e os mocambos, e a recusa a toda representação de crueldade ligada à escravidão no Brasil, aspectos que nos livros dos anos 1930 seriam melhor matizados. Cf. Gilberto Freyre, “Social life in Brazil in the middle of the nineteenth century”, Hispanic American Historical Review, vol. 5, n. 4, nov. 1922, p. 597-630. 6 Sobre as relações entre história, literatura e (auto) biografia no ensaio de Gilberto Freyre em geral e em suas reflexões sobre a cidade, em especial, cf. José Lira, “Recife. De la ciudad a la infância:
6
moderna, de modo a compor densos campos sociais de objetos e práticas, formas materiais e
simbólicas.
A situação da obra em seu contexto primeiro, os anos 1930, não deve nos fazer esquecer
modificações fundamentais em seu conteúdo quando de sua segunda edição brasileira, publicada em
1951 pela editora José Olympio, que se tornaria a base das republicações posteriores. A distância
temporal entre as duas edições iria permitir ao autor operar mudanças significativas, praticamente
dobrando a sua extensão, incorporando trabalhos e referências posteriores, e se beneficiando do
próprio andamento da pesquisa e das novas fontes sobre o tema. Além de numerosas notas, Gilberto
Freyre acrescentou ao estudo uma longa introdução e cinco novos capítulos: “Ainda o sobrado e o
mucambo”; “Raça, classe e região”; “O Oriente e o Ocidente”; “Escravo, animal e máquina” e “Em
torno de uma sistemática da miscigenação no Brasil patriarcal e semi-patriarcal”7.
Fato é que o Gilberto Freyre que reescreve o livro não é o mesmo que o havia elaborado nos anos
1930; tampouco são semelhantes as cenas sociais, intelectuais e políticas brasileiras. Em 1936,
Sobrados e mucambos aparece em um momento de rotinização das tendências modernistas, que
irão ganhar novas inflexões em função do interesse pela “realidade brasileira” e das questão sociais e
políticas que a Revolução de 1930 e o regime de Vargas catalisam8. Não por acaso, ele se insere em
uma tendência dos intelectuais da época a um tipo de ensaísmo histórico-sociológico comprometido
com a autorreflexão nacional. Embebidos pelos anseios modernizadores de elites urbanas que
encontram nas cidades o polo propulsor de uma República que se queria nova, autores como Gilberto
Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr. e outros irão se debruçar, por prismas distintos,
sobre a formação social do Brasil, rompendo com os paradigmas positivistas, naturalistas e racialistas
até então hegemônicos no debate intelectual brasileiro, e tomando orientações inovadoras: a
sociologia histórico-cultural de Weber, Simmel e Sombart, no caso de Sérgio Buarque; o marxismo,
nas formulações de Caio Prado. A originalidade de Freyre, nesse contexto, reside na preferência pela
história social em detrimento da historiografia política, jurídica e institucional predominante e no
acento colocado sobre a vida privada, sob forte inspiração da antropologia norte-americana de matriz
culturalista9.
Os traços característicos de sua visada, sem dúvida, relacionam-se a uma trajetória de
notável inquietude. Fugindo à formação tradicional dos intelectuais brasileiros junto às Faculdades de
Direito nacionais e às instituições europeias, Gilberto Freyre dirigira-se aos EUA e às ciências sociais,
em um período no qual a cidade de Nova York, onde estudou entre 1920 e 1922, transformava-se em
uma trepidante metrópole internacional, marcada pelo vigor cosmopolita e experimental nas ciências,
Gilberto Freyre” in GORELIK, A.; PEIXOTO, F.A. (orgs). Ciudades sudamericanas como arenas culturales. Buenos Aires, Siglo XXI, 2016, p.134-153. 7 A primeira edição, da Companhia Editora Nacional (coleção Brasiliana) possui 450 páginas, sete capítulos, e traz consigo desenhos de Manoel Bandeira e do próprio Gilberto Freyre, além de planta de um sobrado de chácara cercado de mucambos, desenhada por Carlos Leão. 8 Os termos e ponderações são de Antonio Candido, “A revolução de 30 e a cultura” in A educação pela noite, São Paulo, Ática, 1987. 9 Sobre a originalidade da reflexão de Freyre em seu tempo, ver Evaldo Cabral de Mello, “O ovo de Colombo gilbertiano” in Joaquim Falcão e Rosa M. B. de Araújo (orgs), O imperador das ideias, Gilberto Freyre em questão, Rio de Janeiro, Topbooks, 2001, p. 17-31.
7
nas artes, tanto quanto em moral e em política10. Já então, começara a despontar na imprensa de sua
cidade natal, o Recife, como um dos mais destacados e insolentes publicistas, escrevendo sobre
cidade, arte e literatura, história colonial, costumes tradicionais e ideias contemporâneas, como o
modernismo e a psicanálise, a antropologia e o feminismo11. Dialogando criticamente com o
movimento modernista de São Paulo, aproximou-se, e muitas vezes tomou distância, de alguns de
seus protagonistas, como os poetas Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Manuel Bandeira; os
pintores Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Vicente do Rego Monteiro e Di Cavalcanti; o músico Heitor
Villa Lobos, entre tantos outros, logo assumindo papel importante de agitador e polemista em âmbito
nacional. Fomentador de um importante círculo regionalista nordestino, no interior do qual
preconizara a fusão das tradições e valores locais com as correntes de arte e pensamento de
vanguarda de seu tempo, assumiu a liderança na organização do álbum Livro do Nordeste e do I
Congresso Regionalista do Nordeste, em 1925 e 1926 respectivamente.
Entre o final daquela década e o início da seguinte, Gilberto Freyre ocuparia lugares de
destaque no jornalismo e na política e, após a Revolução de 1930, durante o exílio forçado em
Portugal e nos Estados Unidos (onde na primavera de 1931 assumiu a regência de um curso de
história do Brasil na Universidade de Stanford) mergulhou nas pesquisas sobre a singularidade e o
sucesso da empresa colonial portuguesa na América, as relações e misturas de raças no Brasil, a
vida sexual e de família durante a colonização, as condições da mulher, da criança e do escravo na
sociedade patriarcal. Em 1934, um ano após a publicação de Casa-grande & senzala, realizou
conferências sobre o clima intelectual norte-americano e a situação brutal dos escravos nos anúncios
de jornal durante o Império, organizou o I Congresso Afro-brasileiro reunindo acadêmicos, artistas,
trabalhadores negros, babalorixás, cozinheiras e estudantes, e publicou o seu Guia Prático, Histórico
e Sentimental da Cidade do Recife 12. Mais do que um guia turístico, este volume, ilustrado pelo pintor
Luís Jardim, constitui uma verdadeira monografia de cidade, na qual as técnicas narrativas e o corpus
documental empregados no ensaio de 1933 são mobilizados na compreensão etnográfica do caráter
de uma cidade em muitos aspectos paradigmática das ambivalências do Brasil urbano: entre
cosmopolita e provinciana, oriental e ocidental, feminina e masculina. Em 1935, ano em que começa
a escrever Sobrados e mucambos, Freyre atuaria ainda como professor de sociologia junto à
Faculdade de Direito do Recife e à recém-criada Universidade do Distrito Federal, no Rio de Janeiro,
consolidando referências de análise cruciais para o estudo do fenômeno urbano e da sociedade
10 Em Columbia, então ensinavam Franz Boas, Franklin Giddings, John Dewey e Edwin Seligman; na recém-criada New School for Social Research, atuavam Thorstein Veblen, Charles Beard e James Robinson; à época trabalhavam na cidade e frequentavam os cafés, teatros e redações do Greenwich Village, Alfred Stieglitz, Eugene O’Neill, Vachel Lindsay, Waldo Frank, Lewis Mumford, Marianne Moore, William Carlos Williams, Wallace Stevens e outros. Cf. Thomas Bender, New York Intellect, Nova York, Alfred Knopf, 1987; Eric Homberger, New York City, a cultural history, Northampton, Interlink books, 2008. 11 A formação nos EUA do autor dá-se em duas instituições: na Universidade de Baylor, em Waco, Texas, na qual permanece de 1918 a 1920, e onde realiza o seu bacharelado em artes, e na Universidade de Columbia, onde conclui o mestrado. Nesse período colabora regularmente com o Diário de Pernambuco, no qual mantem a coluna “Outra América”. 12 Enrique Rodríguez Larreta e Guillermo Giucci, Gilberto Freyre: uma biografia cultural, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2007, pp. 373-411, 483-526.
8
moderna, como Robert Park e Georg Simmel13. Sobrados e mucambos aparece, portanto, em um
momento de consagração do intelectual como um dos mais vigorosos intérpretes do Brasil, no
embate do scholar com o universo urbano-industrial que apenas começara a se impor no país.
No começo dos anos 1950, o autor não apenas se afirmara mundialmente nos campos da
sociologia, da antropologia e da história social, como desfrutava de enorme prestígio nos meios
nacionais, inclusive na seara política e institucional. O momento é de transição democrática no Brasil,
impulsionado pelo fim do Estado Novo, em 1945. À recomposição política da nação associa-se a
expansão industrial, liderada pelo capital estrangeiro, e o amplo crescimento da população urbana,
que impulsiona surtos de metropolização e favelização nas grandes cidades do país. Do ponto de
vista da cultura, é notável a diversificação dos centros de produção, fomentada por uma nova malha
de instituições, universidades, fundações de pesquisa, museus, centros de documentação etc. A
especialização do trabalho intelectual, por sua vez, terminaria por retirar do ensaísmo de
interpretação nacional sua centralidade como modelo, substituindo-o pelo discurso científico, pelas
monografias de recortes precisos e bibliografias atualizadas, em grande parte oriundas de um meio
acadêmico cada vez mais sintonizado com a produção internacional. Não por acaso assiste-se à
emergência de novos campos de investigação no âmbito das ciências sociais: o desenvolvimento
econômico; a problemática do subdesenvolvimento e da pobreza; a urbanização; o mundo do
trabalho, dos sindicatos e dos conflitos de classe; as migrações campo-cidade, a ascensão social do
imigrante estrangeiro; o lugar do negro na sociedade e o preconceito racial, todas estas questões
sensíveis no país, também em disputa nas agendas desenvolvimentistas e populistas oficiais, assim
como no movimento operário e no movimento negro, que naquele ano mesmo de 1951 fizera
promulgar a lei Afonso Arinos, primeira medida formal de combate à discriminação racial no Brasil.
Muitas dessas questões reverberam na segunda edição de Sobrados e mucambos. É visível
uma impostação crescentemente acadêmica, que transparece nas notas e referências teóricas
adicionadas, assim como na resposta direta a questionamentos e ressalvas suscitados nos meios
acadêmicos pela primeira versão. O contraponto entre o tom ensaístico, quase ficcional, do capítulo
“O sobrado e o mucambo”, e a utilização recorrente da pesquisa científica contemporânea em “Ainda
o sobrado e o mucambo”, é revelador a este respeito. Ao lado disso, as novas inflexões tomadas pelo
livro, em torno das relações de raça, classe e região, dos orientalismos e ocidentalismos na paisagem
social e sobre os começos da mecanização no país ou, mais especificamente, as anotações em torno
de uma “sistemática da miscigenação”, no interior da qual as manifestações culturais negras e
mestiças são explicitadas como molas propulsoras de mobilidade social, são fruto, tanto das
inquietações e controvérsias do período, quanto do lugar proeminente que o autor nelas ocupava.
Arquiteturas da vida urbana
Tomando como marco temporal e simbólico o momento da transferência da corte portuguesa para o
Brasil, Sobrados e mucambos descortina amplo panorama. A nova proximidade da colônia com o
13 Simone Meucci, Artesania da sociologia no Brasil. Contribuições e interpretações de Gilberto Freyre, Curitiba, Editora Appris, 2015; Larreta e Giucci, op. cit., pp. 527-551.
9
Estado imperial e as mudanças na economia, que coincidem com o desenvolvimento do comércio e
das cidades, concorrem para a perda de poder dos senhores de engenho. Ao processo crescente de
diferenciação social e produtiva, associam-se alterações profundas na esfera da cultura, que assiste
a um processo civilizador inédito, alimentado por modelos estrangeiros, que irão conferir dinâmica
renovada à vida social.
São as mudanças no âmbito sociocultural que mobilizam a atenção de Gilberto Freyre. Munido de
lupa aproximada e de faro interpretativo apurado, ele descreverá a decadência, lenta e contraditória,
da gens primitiva da sociedade colonial, que se evidencia nas formas arquitetônicas e na cultura
material, nas configurações de família e socialidade. A simultaneidade de movimentos de ascensão e
declínio, assinalada como marca da modernidade em curso no país, permite flagrar também o ritmo
sui generis de sua análise que opera por antíteses, desde o título. A convivência de contrários,
sistematicamente aludidos (sobrados e mucambos, senhores e escravos, pretos e brancos, pais e
filhos, homens e mulheres, brasileiros e europeus, rural e urbano) põe à nu a forma reflexiva do autor.
O interesse pela afirmação de um novo modelo de civilização confere à obra pulsação distinta da
observada em Casa-grande & senzala: enquanto aí a ênfase fora colocada sobre a estabilização de
um sistema social, o quadro que Sobrados e mucambos apresenta é de puro movimento, ritmado
pela convivência, nada apaziguada, de permanências e mudanças, conflitos e acomodações, perdas
e inovações, o que dá vigor particular à análise e à narrativa, sensíveis às nuances e
indeterminações. O advento da modernidade no Brasil, longe de instaurar um corte em relação à
tradição colonial, dirá Freyre, dá seguimento a ela, as elites urbanas prolongando princípios da
aristocracia rural, sobretudo o seu ideal de autarquia e seus valores de distinção social, que se
revelam, desde logo, no modo como a casa tenta se isolar e se proteger da rua, opondo-se a ela. O
argumento encontrará demonstração em páginas de grande força expressiva, nas quais o autor
descreve os recursos mobilizados para apartar o espaço doméstico do público: as lanças pontiagudas
em seus gradis e portões; os cacos de garrafa colocados sobre os muros; a grande espessura das
paredes, as janelas fechadas bloqueando a luz e o olhar dos estranhos etc. “O patriarcalismo
brasileiro, vindo dos engenhos para os sobrados”, diz Freyre, “não se entregou logo à rua; por muito
tempo foram inimigos, o sobrado e a rua”. Ao mesmo tempo, o rebaixamento cotidiano das vias
públicas, tratadas ora como extensão dos espaços domésticos (enquanto estábulos, depósitos de
lenha, dejetos, lama e águas servidas), ora como zona obscura (de prostituição, duelos amorosos e
cortejos funerários), ora ainda como inimigas dos sobrados (com os exigentes códigos de posturas a
regular ordem e decoro nos usos e costumes da cidade), também dão conta dos deslizamentos que
marcariam a imposição de novas fronteiras entre privado e público, interno e externo, familiar e
estrangeiro, moral e imoral.
Se o sobrado reedita dimensões físicas e simbólicas da casa-grande, ele não é mais o centro da
vida social; suas funções encontram-se agora repartidas com as instituições que povoam o mundo
urbano: a escola, o mercado, o banco, a igreja, a oficina, a loja, o hospital, o café, o teatro, o bordel,
assim como por uma miríade de tipos habitacionais: o sobrado, o palacete, a quinta, a casa de
chácara, a vila, o cortiço, o mucambo. Verticalizado arquitetonicamente e reduzido em complexidade,
ainda que marcado pela perpetuação do escravo doméstico ao longo de todo o século XIX, o sobrado
10
irá abrigar nova configuração familiar, mais enxuta e próxima da família nuclear monogâmica, o que
assinala uma diferença em relação ao ambiente populoso e promíscuo da casa-grande. Enquanto o
país é exposto a modelos ocidentalizados de família, afinados à europeização da cena social mais
ampla, as contradições com a vida nos trópicos ganham nitidez. São eloquentes os relatos da época
sobre a umidade, morbidez e desconforto dos interiores domésticos e a indumentária com tecidos
pesados e cores escuras, que castigam os corpos de homens, mulheres e crianças. Ao lado disso, as
distâncias e enfrentamentos entre as gerações, sexos e camadas sociais se aprofundam, mesmo que
espaços de confraternização, como festas populares e procissões religiosas e, sobretudo a
mestiçagem e o concubinato, continuem atuando como vetores de reequilíbrio de novos e velhos
antagonismos.
É toda uma galeria de personagens e tipos sociais que o livro apresenta. Os filhos das
famílias mais ricas, por exemplo, educados em colégios jesuíticos começam a se orientar para as
profissões liberais que os diplomas dos cursos de direito, medicina e, pouco à frente, de engenharia,
por vezes obtidos no exterior, possibilitam. Novas vocações profissionais que dão lugar a funções
públicas: a “aristocracia de toga e beca”, formada pelos jovens doutores, alguns deles filhos ilegítimos
dos senhores, afasta-se dos sobrados paternos e alia-se, frequentemente, ao poder do imperador e
aos governos provinciais, quando não aos levantes e revoluções que atravessam o século. O pior que
lhes poderia suceder, além de se entregarem à boemia, às mulheres ou ao jogo, seria enveredar pelo
trabalho cotidiano de balcão, oficina, trapiche ou armazém, crescentemente disputado por imigrantes
portugueses sem berço nem fortuna, que não cessam de desembarcar onde o comércio e a indústria
florescem. As mulheres de sobrado, de seu lado, ainda que submetidas ao poder do patriarca de
forma mais intensa, tomam pouco a pouco as ruas, abrindo-se aos olhos dos outros, em novos
gestos, trajes e lugares, em gravuras e fotografias, nas varandas, sacadas e caramanchões, em
recitais, espetáculos, banquetes, salões, e consultórios médicos.
Os escravos e ex-escravos, por sua vez, confinados às dependências de criados – senzalas
urbanas, sótãos ou porões de sobrados - ou espalhados pelas zonas de casebres e mucambos, aos
pés de morros, alagados, margens de rios e córregos e construções deterioradas, afastam-se
também dos senhores, o que os leva a perderem a proximidade, a proteção e a total disponibilidade.
Ora em precárias condições de saneamento e solidez, ora implementando soluções “ecológicas” de
abrigo, em certos aspectos até mesmo superiores a dos sobrados, os mucambos atualizam heranças,
misturas e adaptações culturais diversas, ao mesmo tempo que evidenciam as precárias condições
de sobrevivência dos pobres nas cidades que se modernizam ao longo do século XIX. Com sua
arquitetura vegetal de capim, palha ou sapé, em grande medida inspirada na palhoça indígena,
adotando técnicas portuguesas e africanas de taipa ou de adobe, padrões de planta por vezes muito
próximos aos europeus e hábeis soluções de proteção contra a chuva e o calor, o mucambo,
segundo Freyre, constituiria uma solução reveladora e original em termos socioculturais: “com o
correr dos anos, a gente abonada foi cada vez mais se diferenciando mais da pobre pelo tipo menos
vegetal de casa”, e “com a maior urbanização do país, viriam os cortiços, preferidos aos mucambos
11
pelo proletariado de estilos de vida mais europeus”14, em ambos os casos observando-se a
compressão das populações pobres em áreas não só pequenas como desfavoráveis ao
estabelecimento e à saúde.
Em contrapartida, possibilidades de ascensão inéditas começam a se apresentar também
para os escravos, libertos e agregados com a ajuda da dança, da música e dos esportes. Vale
observar que o modo como Gilberto Freyre descreve a escalada social de bacharéis, mulatos e
mulheres permite qualificarmos o seu olhar em relação ao processo modernizador, mais ambíguo do
que se supõe. O indisfarçável tom saudoso em relação à sociabilidade da casa-grande (plástica,
porosa e mestra em conciliar opostos) encontra-se dosado pela satisfação que demonstra ao
assinalar as oportunidades de emancipação desses segmentos. O elogio aos mucambos, como
solução arquitetônica mais adaptada aos trópicos e como berço de criações culturais novas -
fomentadas pelo processo de reafricanização das manifestações artísticas e religiosas - não deixa
dúvidas quanto à oscilação de seu olhar, ora afinado com os valores da casa-grande, ora
comprometido com a aposta reconciliadora no universo popular15. Assim que se o país urbaniza-se e
ocidentaliza-se pela imitação de modelos tidos como estranhos à realidade tropical, tal processo seria
permanentemente subvertido pelas culturas indígena e sobretudo africana, revigoradas nas cidades
pela crescente mobilidade e independência das camadas populares, fruto da sociabilidade mestiça e
negra que se dinamiza entre os mucambos.
Paisagens sensórias e regimes de temporalidade
A despeito das controvérsias suscitadas pela obra de Gilberto Freyre e das críticas feitas à sua
análise do Brasil oitocentista – por exemplo, a desatenção em relação à cronologia e às precisões
históricas em prol da criação de supostas ficções fundacionais; a generalização a todo o país de
situações relativas a regiões específicas; os elogios à tradição rural e patriarcal e a idealização da
miscigenação e da agência popular - parece difícil não reconhecer as contribuições de Sobrados e
mucambos, sua potência e atualidade, destacadas por alguns de seus leitores. O historiador Frank
Tannebaum, que prefaciou a primeira edição norte-americana do livro, observa que, ao lado de Casa-
Grande, a obra assinala o início de outra época pelo modo como os brasileiros viriam a se relacionar
com seu passado e seu futuro, emancipando-se do etnocentrismo pessimista e descortinando novos
horizontes de criação intelectual e artística16. Asa Briggs, por outro lado, dos maiores especialistas na
história social das cidades na era vitoriana, nota que o caso de Gilberto Freyre é absolutamente
singular em meio ao establishment historiográfico nos anos 1930, ao antecipar objetos e
procedimentos que apenas nas décadas de 1960 e 1970 se tornariam correntes graças à
14 A ideia seria reproposta à luz dos conceitos de competição, seleção, distância, recesso, invasão, sucessão e mobilidade, diretamente emprestados à Ecologia Humana de Chicago no panfleto Mucambos do Nordeste, escrito por Gilberto Freyre em 1937, como volume inaugural da coleção de publicações do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. 15 O livro de Ricardo Benzaquen de Araújo, Guerra e paz. Casa grande & senzala e a obra de Gilberto Freyre dos anos 30, São Paulo, editora 34, 1994 - referência obrigatória sobre o autor - tem o mérito (entre outros) de haver assinalado a posição ambígua de Freyre em relação ao processo de modernização brasileiro, alterando as leituras posteriores de sua obra. 16 Frank Tannenbaum, “Introduction” in Gilberto Freyre, The mansions and the shanties, op. cit.
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aproximação da história com a antropologia e a psicanálise17. Peter Burke avança esta hipótese,
reconhecendo algumas destas antecipações, especialmente em relação à nouvelle histoire francesa:
o foco na civilização material em Braudel; os estudos subsequentes sobre alimentação, vestuário e
habitação; os trabalhos sobre a história da família, da criança e da vida privada, incentivados por
Georges Duby e Philippe Ariès; a história das representações coletivas acerca da sexualidade, do
corpo, dos sentidos, dos sentimentos e das mulheres, com Le Roi Ladurie, Michele Perrot, Jean-Louis
Flandrin, Daniel Roche, entre outros18.
Se não se pode atribuir a Freyre a origem destes enfoques, nem a inspiração de parte
substantiva desta produção em história da cultura e das mentalidades, nem mesmo em sociologia e
antropologia, parece difícil não localizar fortes afinidades entre ele e Norbert Elias, ou com Marcel
Mauss, autores que na mesma década de 1930 lançavam um programa de pesquisas sobre os temas
do corpo, em suas relações com os sentidos e os objetos. Como não evocar matizes maussianos ou
eliasianos nas descrições notáveis de Freyre sobre técnicas de asseio e higiene pessoal, modos à
mesa, regras de decoro e controle de funções corporais? 19. Mas no texto freyriano, o corpo não é
apenas matéria da análise, em função de seus famigerados valores sexuais e eróticos, adquirindo
protagonismo na exuberância dos sentidos, no modo como são articulados em quadros plásticos, de
cores, tons, odores (da comida, frutas e flores, mas também de chulé, urina, mofo e sêmen) e
sobretudo sonoros (o ruge-ruge das saias de sinhás pelas escadas, os pregões dos ambulantes, as
cantigas de roda e modinhas, os alaridos e conversas). É por meio do universo sensório, em suas
diversas manifestações, que a experiência da realidade, concreta, física, material parece encarnar-se
em sua prosa, de inegável valor literário.
Além do corpo e das paisagens sensoriais, Sobrados e mucambos abre outras vias fecundas
à história cultural das cidades. Uma delas diz respeito à materialidade, tal a importância conferida ao
mundo dos objetos. Eles têm lugar especial na recomposição dos interiores domésticos: a decoração
das casas, com suas mobílias, tapeçarias e louças; os utensílios e instalações de higiene; as
brincadeiras infantis, impensáveis sem os piões, bonecas e pipas; os espaços femininos, definidos
por pianos, instrumentos de costura e cozinha, assim como as zonas masculinas, que a bengala, o
cachimbo e o chicote assinalam. Mas também ressurgem na descrição da paisagem urbana e dos
subúrbios: os novos programas e estilos edilícios, suas silhuetas, fachadas e telhados; os materiais,
ferramentas e técnicas utilizadas em sua construção; as obras públicas, de saneamento e
embelezamento, sua arborização e iluminação; as condições de ruas, becos e praças; os baús de
mascate, cestos, liteiras e outros veículos em trânsito. A atenção ao universo material, à vida das
coisas e seus efeitos sobre o mundo social, renovada pela produção antropológica e pela história das
cidades mais recentes, tem em Freyre certamente um precursor.
17 Asa Briggs, “Gilberto Freyre” in The Collected Essays of Asa Briggs, vol. 1, Chicago, The University of Illinois Press, 1985, p. 272-290 18 Peter Burke, “Gilberto Freyre a Nova História”, Tempo Social, vol. 9, n.2, out. 1997, p. 1-12. 19 Marcel Mauss, “Les techiques du corps”, Journal de Psychologie, vol. 32, n. 3-4, 1935. É Ricardo B. de Araújo, op. cit., que assinala as inegáveis proximidades de Freyre com O processo civilizador, de Norbert Elias, cuja primeira edição é de 1939.
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O destaque conferido ao espaço como solo de ancoragem de Sobrados e mucambos –
espaço e geografia já assinalados por Lucien Febvre20 como motes cruciais em Casa-grande &
senzala, e que voltam a orientar os intérpretes da vida social, da cultura e das artes - é flagrante
desde o título; o ambiente construído, como também a paisagem natural, os jardins e os animais, que
ajudam a compor a fisionomia das cidades brasileiras no século XIX. Mas é no entrecruzamento entre
processos espaciais, práticas sociais, corpos, objetos, técnicas e sensibilidades, que o livro se
distingue da tradição das biografias e monografias urbanas, e mesmo da historiografia das cidades e
do urbanismo que florescerá nas décadas de 1950 e 1960. Salvo engano, muitos de seus
pressupostos e insights ainda estão por ser apropriados pelo campo especializado. Pensemos, por
exemplo, na própria maneira como a passagem do tempo deixa-se inscrever na topografia urbana,
materializando-se em construções e ruínas, novidades e resíduos, expressões eloquentes da
inseparabilidade entre progresso e declínio, modernidade e decadência. Longe de ver na
indissociabilidade dos polos um problema, Freyre aposta na produtividade dos sinais de decadência
presentes no mundo moderno como elementos capazes de subverter a norma ocidental europeia,
desafiando a universalidade de todo modelo civilizatório, senão a própria ideia de modernidade como
estágio a ser necessariamente atingido.
Enraizada, assim, no espaço, a obra interpela o tempo em seus múltiplos horizontes e
trajetórias. Ao fio diacrônico que organiza a narrativa combina-se o corte sincrônico, afeito às
simultaneidades, às concomitâncias, à duração. Animam também os regimes temporais as projeções
futuras (outros mundos possíveis) e os recuos sistemáticos às memórias individuais. E na medida em
que se volta também para assombrações, lendas e mitos que alvoroçam o mundo urbano, a
interpretação alça dimensões atemporais, atravessando tempos e espaços e se abrindo ao presente,
como toda obra clássica.
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20 Lucien Febvre, “Brésil, terre d’histoire” in Gilberto Freyre, Maîtres et esclaves, Paris, Gallimard, 1952, tradução de Roger Bastide.
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