CINEMA E LITERATURA Adaptação Ou Hipertextualização

Embed Size (px)

DESCRIPTION

A autora fala das diferenças entre as adaptações, levando em consideração a obra literária e a cinematográfica.

Citation preview

  • 45 RReevviissttaa EElleettrrnniiccaa ddoo IInnssttiittuuttoo ddee HHuummaanniiddaaddeess IISSSSNN--11667788--33118822

    Volume VIII Nmero XXXI Out-Dez 2009

    LITERATURA E ADAPTAO CINEMATOGRFICA:

    DIFERENTES LINGUAGENS, DIFERENTES LEITURAS

    Flavio Luis Freire Rodrigues (UNOPAR)

    Renata Zaninelli (UNOPAR)

    Aprendemos as palavras para melhorar o olhar. Rubem Alves.

    Resumo

    Este trabalho se prope a estabelecer semelhanas e diferenas entre o texto

    literrio e sua adaptao para o cinema. Enquanto o texto literrio tem

    dificuldade de encontrar leitores na escola, o texto flmico aparece como texto

    rico e plural, capaz de conjugar vrias linguagens, atraindo grande parte dos

    alunos. Normalmente as adaptaes so vistas como tradues literais entre

    tipos textuais, mas necessrio cuidado ao se tratar do assunto. A partir da

    anlise e comparao entre a tragdia grega A Ilada, de Homero, e Tria,

    adaptao da obra de Homero para o cinema, busca-se fazer a distino entre

    os dois processos distintos e elucidar algumas das diferenas estabelecidas

    nessa traduo entre sistemas de significao distintos.

    Palavras-chaves: texto literrio; adaptao cinematogrfica; leituras.

    Literature and film adaptation:

    different languages, different readings

    Abstract

    This study aims to establish similarities and differences between the literary text

    and its adaptation to the cinema. While it is hard to find readers for the literary

    text at school, the film appears as a rich and plural text, capable of combining

    various languages, attracting most students. Usually the adaptations are seen

    as literal translations of the text types; however, a great care is required when

    dealing with the subject. From the analysis and comparison between the Greek

    tragedy The Iliad by Homer, and Troy, adaptation of Homer's work to the

  • 46 RReevviissttaa EElleettrrnniiccaa ddoo IInnssttiittuuttoo ddee HHuummaanniiddaaddeess IISSSSNN--11667788--33118822

    Volume VIII Nmero XXXI Out-Dez 2009

    movies, it tries to make the distinction between the two separate processes and

    elucidate some of the differences of the translation between systems of different

    meanings.

    Keywords: literary text; film adaptation; readings.

    Prlogo

    O texto flmico, objeto de investigao deste trabalho, se apresenta como

    texto mpar para leitura e anlise, uma vez que congrega a linguagem verbal,

    visual e sonora simultaneamente, tal e qual grande parte da leitura a que os

    alunos esto expostos como internet, filmes, desenhos animados, videogame,

    propaganda etc (o que a semitica denomina de semitica sincrtica,

    conjuno das semiticas verbal e plstica). Essa interao com as novas

    linguagens pode ser a porta de entrada para o mundo da leitura na sala de

    aula, inclusive na deteco de como crianas e jovens tm construdo suas

    representaes sobre a realidade em que vivem (PIETRI, 2007 p. 12):

    as prticas de leitura realizadas na escola podem responder de modos diferentes a essa realidade: podem contribuir para a desigualdade, em funo dos valor dos materiais escritos oferecidos aos alunos; ou podem contribuir para diminuir essa desigualdade ao oferecer aos alunos a possibilidade de terem acesso aos materiais escritos valorizados socialmente, e desenvolverem, com base nesses materiais, as prticas sociais consideradas legtimas em uma sociedade letrada.

    Alm disso, toda essa riqueza de informaes no afasta o indivduo do

    mundo da fantasia, da magia, como provam os grandes sucessos de filmes

    como Harry Potter e outros semelhantes. Um pressuposto que no se pode

    abandonar que, como lembra Cortela (2009), nossos estudantes, nascidos

    aps a dcada de 90, no passaram pelos momentos histricos vividos por ns

    professores, como a inflao, guerra fria, Airton Senna, muitos nem sequer

    sabem sobre a ditadura brasileira ou o holocausto. Por outro lado, so

    netnatas, porque nascem em ambiente virtual e tecnolgico. A tecnologia no

    lhes estranha, como para a maioria de ns, que tem, por exemplo, dificuldade

    de programar a hora no celular.

  • 47 RReevviissttaa EElleettrrnniiccaa ddoo IInnssttiittuuttoo ddee HHuummaanniiddaaddeess IISSSSNN--11667788--33118822

    Volume VIII Nmero XXXI Out-Dez 2009

    Embora nossa sociedade esteja fortemente vinculada escrita,

    produzimos e reproduzimos bens simblicos codificados nas mais diversas

    formas que mantm relao entre si, numa ampla rede de sentidos ou semiose

    cultural. Portanto, colocar imagem e escrita em campos opostos e excludentes

    , no mnimo, ingenuidade, j que, mesmo nossa revelia, tais cdigos se

    encontram em constante interao (WALTY; FONSECA; CURY, 2006, p.90).

    As autoras (idem) lembram o exemplo do entrelaamento entre imagem e

    palavra no curta-metragem Ilha das Flores, de Jorge Furtado. Nele, h

    sobreposio do verbal e no-verbal alternadamente, ora em conjuno, ora

    em disjuno.

    Outro fator de suma importncia nesta discusso a alfabetizao visual,

    uma vez que o filme prescinde de uma compreenso dos significados

    construdos pelo texto, tanto nas imagens e sons quanto na representao do

    mundo, como produto de uma subjetividade, de um olhar sobre o mundo: as

    imagens representadas no so neutras, trazendo em seu interior no s a

    representao do objeto real, mas tambm apontado como esse objeto deve

    ser apreendido, impondo, dessa forma, uma dada leitura (NAGAMINI, 2006,

    p.100). a escola a responsvel por abrir espaos para a recepo crtica dos

    diversos cdigos, permitindo no s o acesso a tais objetos, mas a leituras

    diversas sobre os mesmos, fator fundamental de insero poltico-social do

    indivduo por meio da pedagogia do olhar.

    Assim como no possvel pensar em aluno e escola no singular, mas

    em alunos e escolas, preciso pensar em leituras, visto a pluralidade de textos

    e vises. Walty, Fonseca e Cury, citando Guattari (2006, p. 89), postulam que

    a diversidade de imagens no significa por si s riqueza de sentidos, j que, num mundo globalizado, as imagens, embora sendo muitas, podem tornar-se iguais, repetitivas, previsveis. A repetio homogeneizadora pode levar ao seu esvaziamento e consequente amortecimento da conscincia crtica do leitor.

    Nem preciso retomar o discurso de que nossa sociedade no leitora.

    Somos um povo muito falante, mas pouco leitor. No se podem ignorar os

    materiais que circulam socialmente, reafirmando a primazia da escrita. Se por

    um lado, por meio destes instrumentos que pode vir a cidadania, vozes como

  • 48 RReevviissttaa EElleettrrnniiccaa ddoo IInnssttiittuuttoo ddee HHuummaanniiddaaddeess IISSSSNN--11667788--33118822

    Volume VIII Nmero XXXI Out-Dez 2009

    Levi-Strauss afirmem que a funo primria da escrita seja a de dominao

    (2000). Em uma sociedade desigual como a nossa, faz-se necessrio assumir

    tal prtica como libertadora. pelo uso dos mesmos meios de alienao que

    pode dar-se a libertao.

    Nagamini (2006) chama a ateno ainda para o fato de que, como

    consumidor em potencial e voraz, a criana - e eu ampliaria o raciocnio aos

    jovens tambm - tem um papel muito importante na circulao do capital e que

    por isso mesmo precisam do trabalho do adulto crtico para romper com essa

    posio e construir sua cidadania; segundo a autora (2006, p. 103, grifos da

    autora):

    as regras de comportamento, que antes tinham apenas um carter moral e social, agora dizem respeito tambm a uma forma de consumir, estabelecendo fatores de identificao. A criana se reconhece muito mais

    pelo ter do que pelo ser.

    Carrirre (1995), na introduo de seu livro Ensaio sobre a anlise flmica,

    lembra de quando os africanos muulmanos, aps a primeira grande guerra,

    eram convidados a sesses de cinema pelos europeus e, por causa

    diplomtica no poderem recusar o convite, mas por motivo religioso no

    poderem contemplar a face humana, fechavam os olhos no incio da projeo

    do filme, abrindo-os apenas ao final. O autor (idem, p. 10) questiona se s

    vezes no teramos tambm alguma incapacidade que nos impediria de ver um

    filme:

    por muitas razes, algumas no muito claras e outras que no podemos admitir, ns vemos com deficincia. Recusamo-nos a ver, ou ento vemos algo diferente. Em todo filme, h uma regio de sombra ou uma reserva do no visto. Que pode ter sido posta l pelos autores, intencional ou deliberadamente.

    Mesmo porque, todo tipo de expresso verbal, pictrica, social ou teatral,

    sobrevive graas s memrias reconhecidas ou no reconhecidas, fonte de

    conhecimentos, pblica ou privada, que brilha com maior ou menor intensidade

    para uns que para outros.

  • 49 RReevviissttaa EElleettrrnniiccaa ddoo IInnssttiittuuttoo ddee HHuummaanniiddaaddeess IISSSSNN--11667788--33118822

    Volume VIII Nmero XXXI Out-Dez 2009

    Quem se envereda pelo caminho da anlise de filmes coloca-se, ou deve

    colocar-se, em outra posio que o espectador comum. Este, ou passivo

    diante do texto que lhe serve de lazer ou analtico de forma instintiva,

    diferente do crtico que conscientemente trabalha sobre o filme. Enquanto o

    analista se coloca distante do filme, a fim de buscar indcios sobre os quais

    analisa, o espectador comum deixa-se guiar pela obra, identificando-se com

    ela.

    a partir deste olhar, e ao mesmo tempo, deste desafio - o olhar do

    espectador incomum - que se desenvolve este trabalho, no sentido de alinhar a

    literatura e a adaptao cinematogrfica, pensando na contribuio pedaggica

    que a discusso pode trazer, desfazendo a ideia de traduo literal (no a

    inteno discutir o termo aqui, mas a melhor denominao para este processo

    o uso de traduo intersemitica, entendida como a traduo de um

    determinado sistema de signos para outro sistema semitico).

    Walter Benjamin (1994), no clebre texto O obra de arte na era da sua

    reprodutibilidade tcnica, criticou a recm surgida indstria cultural dizendo do

    perigo de a fotografia assumir as funes da pintura. O prognstico no se

    confirmou e a fotografia no matou a pintura, mas libertou-a. A fotografia apenas

    abriu espao para a experimentao, da mesma forma que o cinema no deseja

    matar a literatura e sim libert-la para que o espectador possa realizar outras

    leituras atravs da viso do cineasta.

    Infelizmente h muitos profissionais que ainda desconhecem a linguagem

    do texto cinematogrfico, e persistem em compar-la com a linguagem escrita,

    desconsiderando assim, novas ideias, implcitas, que permeiam algumas obras

    adaptadas.

    Essa pesquisa, portanto, procura ampliar um pouco mais a formao

    contnua dos professores que ainda se sentem inseguros em trabalhar com o

    texto visual em sala de aula, uma vez que no h uma disciplina com este perfil

    nos cursos de licenciatura em Pedagogia e Letras. Desta forma, muitos

    professores acabam por trabalhar com algo totalmente novo, porm sem o

    devido conhecimento sobre o texto visual que o auxiliar, muitas vezes, em sala.

    A partir da visualizao desse problema que se sentiu a necessidade de

    pesquisar sobre a adaptao cinematogrfica enquanto texto independente.

  • 50 RReevviissttaa EElleettrrnniiccaa ddoo IInnssttiittuuttoo ddee HHuummaanniiddaaddeess IISSSSNN--11667788--33118822

    Volume VIII Nmero XXXI Out-Dez 2009

    A escolha se deu pelo filme Tria (2004), do cineasta Wolfgang Petersen,

    justamente pelo fato de essa adaptao cinematogrfica ter atrado olhares

    curiosos obra de Homero, tornando-se, assim, o filme mais polmico de 2004.

    Seria fundamental que no somente os adultos, mas tambm as crianas e os

    jovens conhecessem a Ilada, de Homero. Acredita-se que a adaptao rica e

    agradvel de Diane Stewart (1981), remete-nos ao estmulo das leituras dos

    clssicos renomados. Por isso, a opo pela adaptao de Stewart (1981) para

    compar-la ao filme de Petersen (2004).

    O que uma adaptao cinematogrfica?

    Embora, para algumas pessoas, a adaptao cinematogrfica seja a

    principal responsvel pelo desestmulo leitura do texto original, uma vez que

    ela cria, facilmente, todas as imagens que deveriam ser realizadas na mente do

    leitor, necessrio observar a sua necessidade. A adaptao cinematogrfica

    nem sempre se preocupa em expor conceitos j existentes numa determinada

    obra escrita; muitas vezes, ela pode expressar novos valores e,

    conseqentemente, ser to ou mais interessante que o prprio texto que a

    inspirou.

    Marcos Rey (1989), roteirista, explica que as adaptaes exigem muito

    mais dos roteiristas do que os roteiros originais, uma vez que elas consistem

    numa boa dose de criatividade, alm de um bom-senso que impe verdadeiro

    desafio inteligncia e tcnica do roteirista; para ele (idem, p. 59):

    a adaptao no precisa necessariamente conter tudo que est no livro. Mesmo livros com muita ao tm captulos montonos ou vazios. O que importa que ela seja uma inteiria, redonda, completa, sem evidenciar amputaes, cortes por falta de tempo, saltos desconcertantes e buracos entre as seqncias. A adaptao requer uma planificao mais exigente do que a criao porque implica numa responsabilidade maior, principalmente quando se trata duma obra conhecida, passvel de confrontos.

    Pode-se dizer, assim, que o roteirista nunca agradar a todos os

    espectadores. Rey (1989) considera que mesmo que a elaborao do texto seja

    excelente, sempre haver crticas contrrias ao seu texto, uma vez que prprio

    do pblico esperar uma fidelidade maior para com o livro. Portanto, para ele, fica

  • 51 RReevviissttaa EElleettrrnniiccaa ddoo IInnssttiittuuttoo ddee HHuummaanniiddaaddeess IISSSSNN--11667788--33118822

    Volume VIII Nmero XXXI Out-Dez 2009

    claro que (REY, 1989, p. 60)

    o pblico que leu o livro deseja v-lo todo na tela. Notando falta de uma cena ou dum personagem sem importncia, fica contra. Uns arrogam-se defensores da obra deste ou daquele escritor, e diante duma adaptao reagem agressivamente se algo na obra foi esquecido ou modificado. A verdade que certas adaptaes ao p da letra, fidelssimas, so pssimas. Como o escritor escreveu um livro e no um roteiro de cinema ou tev, precisa haver adaptao, isto , uma forma de contar para a tela, na linguagem, ritmo e especificidade que ela determina. Isso implica em mudar ordem de cenas, acelerar certas seqncias, resumir dilogos, valorizar ou no personagens, eliminar excessos e acentuar as linhas de convergncias para o final.

    Sob a tica de Field (1995), roteirista norte-americano, ao adaptar uma

    novela, livro, pea de teatro ou artigo de jornal ou revista para roteiro, o autor

    est escrevendo um roteiro original, uma vez que a palavra adaptao significa

    transpor algo de um meio para o outro.

    Rey (1989) conclui que o mais interessante que a palavra adaptao no

    consta no vocabulrio de muita gente supostamente possuidora de bagagem

    cultural, como professores e jornalistas, fato que a expe a julgamentos

    apressados e superficiais, naturalmente injustos. Para o autor (idem, p. 63),

    toda adaptao uma tentativa. E nela, mais que num roteiro original, a participao da direo, da cenografia e do elenco tem um peso igual ou maior que o do texto. De nada vale uma adaptao honesta e correta, se o visual e a interpretao dos atores no correspondem s sugestes do conto ou do romance adaptado.

    Observa-se, portanto, que o filme representa sempre uma tentativa do

    roteirista em dividir com os espectadores um pouco da sua viso literria, o que

    no significa que outros roteiristas tambm no o possam faz-lo, uma vez que

    no h adaptao definitiva, mas experimental.

    Anlise da adaptao do texto literrio para o cinema

    So inmeras as diferenas entre a obra de Diana Stewart, (1981)

    tradutora de A Ilada, e a obra cinematogrfica de Petersen, Tria (2004). Sero

    discutidas aqui, por questo de limites, apenas as mais relevantes para a

    realizao dessa anlise.

  • 52 RReevviissttaa EElleettrrnniiccaa ddoo IInnssttiittuuttoo ddee HHuummaanniiddaaddeess IISSSSNN--11667788--33118822

    Volume VIII Nmero XXXI Out-Dez 2009

    O duelo entre Menelau, rei de Esparta, e Pris, prncipe de Tria,

    narrado pela literatura (1981) nas muralhas da cidade de Tria com a bela

    Helena observando a ambos do alto. Ora ela se inquieta por Pris, ora por

    Menelau, e tambm por Esparta, cidade cujos pais dela se estavam. Pramo a

    convida para se sentar ao lado dele e explica moa que no a condena pelo

    sofrimento que caiu sobre Tria, pois para ele somente os deuses eram os

    culpados. Helena lamenta-se ao rei, desejando ter morrido antes que aquela

    desgraa casse sobre ela. Restava-lhe apenas chorar. Menelau clama a Zeus

    antes de comear a luta:

    -Grande Zeus, ajude-me a punir Pris por seus crimes! (Ilada, 1981).

    O irmo de Agamenon atira sua lana contra o jovem prncipe perfurando

    o seu escudo e a sua armadura. Ao perceber que no tinha acertado o jovem

    prncipe, Menelau atirou-se sobre Pris, agarrando a ala do seu capacete e,

    segurando-a firmemente, comeou a arrastar o aterrorizado Pris para o lado

    dos soldados gregos. Afrodite, no entanto, no permitiu que o jovem prncipe

    morresse. Ela fez com que a ala se arrebentasse na mo de Menelau. E, antes

    que ele pudesse se recuperar e agarrar Pris novamente, ela o envolveu numa

    nuvem e o mandou de volta para dentro das muralhas de Tria, para os

    aposentos que ele compartilhava com Helena.

    Petersen (2004) e a sua linguagem cinematogrfica apresentaram aos

    espectadores uma luta mais prxima do realismo do que da poesia. Nesta, no

    h presena dos deuses durante o duelo. Menelau no tenta matar Pris com

    apenas uma lana, ele desfere muitos golpes estando bem prximo ao prncipe.

    Tampouco invoca Zeus para ajud-lo, ele confia apenas na sua espada. Outro

    fato interessante nesse texto que em nenhum momento compreendemos

    porque Pris no foi abenoado com tanta valentia quanto seu irmo Hector.

    No h indcios de que algum dia Pris teve a oportunidade dada pela deusa da

    guerra, Atena, de se tornar um grande guerreiro e a trocou pelo desejo de

    possuir a mulher mais bela dentre todas, como no original literrio. O texto nos

    lembra da fraqueza de Pris a cada golpe de Menelau e das tentativas de

    esquivar-se do prncipe. O dilogo entre ambos tambm demonstra a covardia

    do irmo de Hector. Numa das cenas, Pris ferido na perna pelo inimigo e

  • 53 RReevviissttaa EElleettrrnniiccaa ddoo IInnssttiittuuttoo ddee HHuummaanniiddaaddeess IISSSSNN--11667788--33118822

    Volume VIII Nmero XXXI Out-Dez 2009

    esse lhe ordena que se levante e continue o duelo:

    -Levante-se!Vamos! Est vendo os corvos? Eles nunca saborearam um prncipe. Pris, ao perceber que Menelau (aproveitando de seu ferimento) poderia desferir-lhe um ltimo golpe, resolve fugir em direo ao irmo e, abraando-lhe os ps, demonstra ao povo de Tria e aos gregos todo o seu temor pela morte. Menelau, por sua vez, no hesita em questionar Helena sobre Pris: -Foi por isso a que voc me trocou? E volta-se para o prncipe: -Lute! Lute comigo! Seu covarde! Lute comigo! Temos um pacto lute! Os troianos violaram a acordo! Preparem-se para batalha isso no honra, isso no digno de realeza. Se ele no lutar, Tria estar condenada. Hector tendo o irmo abraado aos seus ps afirma: -A luta acabou. Menelau: -A luta no acabou. Para trs Prncipe Hector, vou mat-lo aos seus ps no me importo. Hector mata Menelau ao ver que o rei de Esparta deseja fazer o mesmo com o seu irmo e, assim, desencadeia uma nova batalha. (Tria, 2004).

    Na literatura (1981), Menelau vence a batalha, porm, Atena e Hera no se

    do por satisfeitas ao ver que a guerra tinha terminado to facilmente. Elas

    queriam ver Tria destruda e, ento, arquitetaram um plano. Atena desceu do

    Olimpo at Tria e l encontrou um arqueiro que deveria matar Menelau. O tolo

    e inocente soldado deu ateno deusa, mas na hora em que acertaria

    Menelau, Atena fez com que a flecha desviasse do seu alvo, atingindo apenas o

    cinto do rei de Esparta. Agamenon, enfurecido com o que os troianos tinham

    feito ao seu irmo, jurou que no pararia de lutar at que toda a cidade de Tria

    estivesse em runas.

    Na Ilada (1981), quando Helena encontra Pris em seus aposentos, ela

    demonstra-se furiosa:

    -Pris, desejaria que tivesse morrido! Voc ficou se vangloriando por muito tempo que era melhor do que meu marido. Mas, se no fosse Afrodite, Menelau o teria matado! Pris, entretanto, no ficou zangado com Helena, pois a amava. Acalmou-a e fez-lhe muito carinho, at que ela o abraasse ternamente: -No se preocupe meu amor, voc ainda minha. A guerra no acabou. Os deuses ainda esto do nosso lado (Ilada, 1981).

    O filme apresenta justamente toda uma inverso desses valores

    depositados na obra de Homero. O dilogo entre Pris e Helena possui

    conceitos modernos como a crena de que no basta ser forte ou corajoso para

    conquistar o amor de uma mulher, mas apenas saber compreend-la e am-la.

  • 54 RReevviissttaa EElleettrrnniiccaa ddoo IInnssttiittuuttoo ddee HHuummaanniiddaaddeess IISSSSNN--11667788--33118822

    Volume VIII Nmero XXXI Out-Dez 2009

    Helena no se zanga com Pris, ao contrrio, o prncipe que se sente

    envergonhado por fugir do duelo:

    -Acha que sou um covarde. Eu sou um covarde. Eu sabia que ele me mataria.Voc estava assistindo, meu pai, meu irmo, Tria inteira, no me importei com a vergonha. Renunciei ao meu orgulho a minha honra, s para viver. Helena o consola: -Por amor. Desafiou um grande guerreiro. Isso exigiu coragem.. Pris: -Eu a tra. A rainha de Esparta argumenta : -Menelau era um homem corajoso, ele vivia para lutar e sempre que estava com ele, eu queria entrar no mar e me afogar. No quero um heri, amor. Quero um homem com quem eu possa envelhecer. (Tria, 2004)

    Aqui, Helena deixa bem claro a averso que sentia pelo marido e o quanto

    indiferente, para ela, ser Pris corajoso ou no, desde que ele a ame para

    todo o sempre, enquanto, na literatura, ela culpa Pris por engan-la dizendo

    ser ele mais corajoso do que Menelau. O conceito moderno de que uma pessoa

    no precisa lutar at a morte para provar a sua coragem configura-se nos

    pensamentos de Helena.

    Eplogo

    Para algumas pessoas, responder indagao Por que o cinema realiza

    tantas adaptaes? no parece ser uma tarefa muito difcil, uma vez que, para

    muitos, a stima arte est sempre a visitar o seu vizinho mais prximo, a

    literatura, quando anda sem criatividade. Mas seria essa mesma a funo da

    adaptao: facilitar, ou melhor, traduzir a escrita literria para o pblico que

    no tem pacincia para l-la? Enquanto para alguns cineastas, a adaptao

    cinematogrfica no visa facilidade, mas uma outra forma de representar uma

    determinada histria - que por sinal tambm exigir uma nova leitura do

    espectador, para outros, infelizmente, a expressividade dos filmes anula a

    beleza das palavras devido concretizao da ideia construda pela criatividade

    do leitor.

    Rey (1989) afirma que h obras que no se prestam a adaptao

    cinematogrficas, devido a sua extenso ou contedo (como o caso de Tria),

  • 55 RReevviissttaa EElleettrrnniiccaa ddoo IInnssttiittuuttoo ddee HHuummaanniiddaaddeess IISSSSNN--11667788--33118822

    Volume VIII Nmero XXXI Out-Dez 2009

    mas no sugere que ela no possa existir, ao contrrio, apenas explica que os

    romances grandes tendem a ser mais comerciais para aproveitar o xito de

    livros famosos ou de algum romance consagrado, portanto, obras menores

    resultam em timas adaptaes.

    O que dizer ento de uma rapsdia como a Ilada, de Homero? Se Rey

    explica que no se deve adaptar um romance pelo simples fato deste ter

    importncia literria, como a Ilada poderia resistir aos nossos tempos? Como

    fazer com que pessoas se interessem pela obra por simples curiosidade? Se

    alguns estudiosos defendem a leitura como motivao e no como ensino, no

    estaria o cinema motivando os espectadores ociosos a buscarem, na literatura,

    um entretenimento to interessante quanto o prprio filme? Isto no significa

    que os filmes adaptados mudaro o quadro de todos aqueles que no gostam

    de ler, mas apenas que, muitas vezes, atravs das imagens, motivam algumas

    pessoas a se interessarem um pouco mais pela literatura, s por curiosidade,

    sem imposio. Esse caso de obras atuais como Harry Potter, por exemplo,

    cuja saga j vendeu, aproximadamente, 30 milhes de exemplares e pode

    chegar at os 70 milhes com o lanamento do stimo e ltimo livro da srie.

    Alis, se cabe escola motivar os alunos literatura, nada melhor do que

    o texto flmico para ajud-la. Entretanto, deve ficar bem claro que o filme, por ser

    um outro texto, requer uma nova leitura. Se o livro se d pela forma, pela

    linguagem, pelo subtexto, enquanto o filme pela ao, suspense e espetculos,

    seria interessante que essas duas artes fossem vistas tambm de forma

    diferente pelo pblico. Para alguns roteiristas, natural que muitas pessoas

    leiam um determinado livro e queiram v-lo no cinema, principalmente, porque

    muitas acabam se interessando tanto pelos personagens que desejariam v-los

    em carne e osso.

    Desprezar um filme pelo simples fato de esse no ser fiel obra adaptada

    negar a relevncia do cinema como arte. Afinal, o escritor no visa a escrever

    um roteiro cinematogrfico respeitando as principais caractersticas do cinema.

    Ele o escreve para os leitores que iro ler um pouco, colocaro o livro na

    prateleira, ento, iro continuar lendo-o mais tarde. Da a necessidade de

    adaptar a linguagem literria para o filme. Eis a responsabilidade do roteirista

    que precisa concentrar, impactar e afunilar a carga de atrativos de um livro.

  • 56 RReevviissttaa EElleettrrnniiccaa ddoo IInnssttiittuuttoo ddee HHuummaanniiddaaddeess IISSSSNN--11667788--33118822

    Volume VIII Nmero XXXI Out-Dez 2009

    Para o adaptador, cada segundo relevante, uma vez que, ele precisa

    apresentar, em poucas horas, o romance que seria digerido em semanas. Se

    o livro mais interessante por sua profundidade, o filme o por seu

    movimento.

    Tal afirmao pode nos levar a compreender melhor porque existe certa

    atrao entre ambas as artes: uma completa a outra. Por isso, no se deve

    sobrepor uma outra. A adaptao, como foi mostrada no filme de Wolfgang

    Petersen, Tria (2004), no estava preocupada apenas em relatar a rapsdia

    de Homero e nem o poderia, a julgar que a Ilada possui problemas de

    continuidade que poderiam comprometer a obra cinematogrfica, como por

    exemplo, o heri troiano que morre, mas reaparece ao final do filme. Tal

    incoerncia dava a impresso de que o texto era uma colagem de vrias

    narraes, talvez composto ao longo dos sculos por uma infinidade de

    autores. A questo : como adaptar a Ilada ao p da letra? Respeitando

    todos os versos um a um? No a toa que Rey postula que a adaptao,

    muitas vezes, exposta a julgamentos apressados e superficiais, naturalmente

    injustos. A adaptao, antes de tudo, espelha viso de um indivduo; nunca

    devemos tom-la por definitiva, mas por uma tentativa.

    Outro exemplo que os homens, segundo a cultura ocidental de hoje,

    no precisam travar batalhas para que uma mulher o considere algum heri e

    assim queira despos-lo para defend-la de qualquer perigo, ou seja, em Tria

    (2004), vimos a figura do rei Menelau, cujo perfil heroico no despertou

    interesse algum em Helena, pois ela preferiu a covardia de Pris. Esse, que

    no aceitou o presente de Atena, a deusa da guerra (de tornar-se mais

    corajoso do que o prprio Aquiles) aprendeu a ser bom em uma guerra com o

    uso do arco e flecha aps muito treino, tendo inclusive matado o invulnervel

    Aquiles.

    A propsito da prpria obra cinematogrfica, preciso fazer algumas

    consideraes. Primeiro, preciso que fique claro que a linguagem do cinema

    tende a eliminar alguns fatos que podem comprometer o resultado do filme.

    Esse o caso da omisso de todas as cenas envolvendo os deuses, ou seja,

    apenas ouvimos a meno aos seus nomes, mas no temos acesso

    interferncia deles nos acontecimentos que circundam a histria. Alguns

  • 57 RReevviissttaa EElleettrrnniiccaa ddoo IInnssttiittuuttoo ddee HHuummaanniiddaaddeess IISSSSNN--11667788--33118822

    Volume VIII Nmero XXXI Out-Dez 2009

    crticos louvam essa atitude do roteirista Benioff devido, talvez, a uma possvel

    rejeio por parte do pblico ao ver Pris, por exemplo, sendo salvo por

    Afrodite e no por seu irmo Hector.

    Se para alguns, as liberdades norte-americanas apresentadas em Tria

    (2004) prejudicaram a obra homrica, talvez devssemos refletir um pouco

    mais sobre o papel do texto visual enquanto arte, bem como no papel do

    prprio roteirista, responsvel pelas adaptaes cinematogrficas (aquele que

    nunca recebe um aplauso unnime), mas que se esfora, mesmo assim, para

    compartilhar com o pblico um pouco da sua viso literria e, atravs dela,

    tambm expressar os conflitos existentes em nosso mundo contemporneo.

    REFERNCIAS

    BENJAMIN, W. A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Tcnica. So Paulo: Brasiliense, 1994. CARRIRRE, J.-C. A linguagem secreta do cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995. CORTELA, L.S. O sculo XXI e a formao de professores. Anotaes de palestra. Londrina, Cine-Teatro Ouro Verde, 07/04/2009.

    FIELD, S. Manual do Roteiro: os fundamentos do texto cinematogrfico. Rio de Janeiro: bjetiva, 1995. HOMERO. I. (adaptao de Diana Stewart). Iliada. So Paulo: Melhoramentos, 1981. LEVI-STRAUSS, C. Tristes trpicos. So Paulo: Companhia das Letras, 2000. NAGAMINI, E. Literatura infantil e cinema: estratgias de leitura na sala de aula. In: SPARANO, M.; IRIO, P. L. DI; LOMBARDI, R.S. (org.). A formao do professor de lngua(s): interao entre o saber e o fazer. So Paulo: Andross, 2006. p. 97 a 124. PIETRI, E. de. Prticas de leitura e elementos para a atuao docente. Rio de Janeiro: Lucerna, 2007. TRIA. Direo de Wolfgang Petersen. Warner Bros Pictures. Estados Unidos, 2004. 163 min. REY, M. O roteirista profissional tv e cinema. So Paulo: tica, 1989.

  • 58 RReevviissttaa EElleettrrnniiccaa ddoo IInnssttiittuuttoo ddee HHuummaanniiddaaddeess IISSSSNN--11667788--33118822

    Volume VIII Nmero XXXI Out-Dez 2009

    Set Cinema DVD Entretenimento. ed. 203. ano 17. maio/ 2004 Super Interessante. maio. ed. 200. So Paulo: Abril, 2004. WALTY, I. L.C.; FONSECA, M.N.S.; CURY, M.Z.F. Palavra e imagem: leituras cruzadas. 2.ed. Belo Horizonte: Autntica, 2006.