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1 O SABER DA MUSICOTERAPIA E O MUSICOTERAPEUTA * Clarice Moura Costa PALAVRAS-CHAVE: significação,ação sobre organismo, conceito de música, prazer, formação do musicoterapeuta. A especificidade ou singularidade de uma ciência depende da conjunção de três fatores: um corpo de teorias e ou princípios que compõem seu saber, métodos e técnicas que constituem sua prática e a necessidade de profissionais capacitados para exercê-la. A musicoterapia não é uma ciência pura, mas aplicada, como se torna óbvio pelo próprio nome música utilizada para ajudar pessoas que necessitam tratamento e no momento atual já responde a estes três quesitos: possui seu próprio saber, sua própria prática e conta com profissionais qualificados. O saber musicoterápico está em construção e atualmente é encontrado um grande número de artigos teóricos. Ainda há muito a fazer para aperfeiçoá-la e desenvolvê-la, mas isto é necessidade de qualquer ciência, que deve constantemente ser atualizada, uma vez que surgem sempre novos conhecimentos para enriquecê-la e modificá-la. Algumas perguntas e dúvidas sobre a música merecem ser levantadas. Sentimentos e emoções são sempre provocados pela mensagem musical, enquanto sentido ou significação, ou também pela sonoridade em si? Segundo Lia Rejane Barcellos e Marco Antonio Santos (1996), o método GIM (Guided Imagery and Music) “considera a possibilidade de identificar algumas direções de atribuição de sentido a partir da análise das estruturas musicais”(p.17). Ao procurar sentido, a tentativa não é demonstrar os efeitos do som sobre a mente e o corpo humano, mas de encontrar na própria música, sua significação e a específicidade desta linguagem. A música em si atua sobre o organismo? O ritmo influi na tonicidade? Quais são os mecanismos pelos quais a música induz ao movimento e à ação? O timbre, o ritmo, as harmonias, as melodias, as intensidades, as tonalidades etc... poderiam provocar emoções, agindo diretamente sobre a estrutura cerebral, independentemente do sentido ou significado da linguagem musical? A ação de elementos sonoro-musicais sobre o cérebro provocariam reações, sem ligação com o sentido da música? Estes aspectos são investigados pela neurociência que vem desenvolvendo pesquisas sobre a música e o cérebro, mas seria muito importante que os musicoterapeutas se debruçassem sobre este assunto, produzindo mais estudos, por ser um conhecimento de grande interesse, principalmente quando se trata de sua aplicação na área de reabilitação motora. Os campos de aplicação da musicoterapia são bastante diversificados, e o suporte teórico para cada um destes campos é necessariamente diferente. Como diz Bruscia (2000), a musicoterapia “é uma combinação dinâmica de muitas disciplinas em torno de duas áreas: música e terapia"(p. 8). Cita, entre outras, a psicomusicologia, a etnomusicologia, a educação musical, a psicoacústica e a biologia da música como disciplinas integrantes da área musical. Na área de terapia cita entre outras, a psicologia, as tradições de cura, a fonoaudiologia e as especialidades médicas (sem especificá-las). Embora a musicoterapia seja aplicada a um vasto espectro de situações, aí incluidos problemas de ordem motora e sensorial, os aspectos psicológicos, emocionais e relacionais são privilegiados em grande parte dos escritos. E não por acaso. Frequentemente, em hospitais, pessoas que sofrem doenças orgânicas de diversas naturezas são encaminhadas pelos médicos ou outros terapeutas para a musicoterapia com o objetivo de melhorar seu estado de espírito e/ou os relacionamentos com as pessoas do meio em que estão inseridos. Acreditam que a maior aceitação de suas dificuldades pessoais, os levaria a colaborar com os demais tratamentos que, estes sim, atuariam diretamente sobre seus sintomas ou sua doença. A musicoterapia desempenharia o papel de terapia de apoio. * Este artigo aborda principalmente a área de saúde mental, na qual sempre trabalhei, mas indica alguns pontos comuns a qualquer especialidade.

CLARICE Saber Da MT e Musicoterapeuta

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    O SABER DA MUSICOTERAPIA E O MUSICOTERAPEUTA * Clarice Moura Costa

    PALAVRAS-CHAVE: significao,ao sobre organismo, conceito de msica, prazer, formao do musicoterapeuta.

    A especificidade ou singularidade de uma cincia depende da conjuno de trs fatores: um corpo de teorias e ou princpios que compem seu saber, mtodos e tcnicas que constituem sua prtica e a necessidade de profissionais capacitados para exerc-la. A musicoterapia no uma cincia pura, mas aplicada, como se torna bvio pelo prprio nome msica utilizada para ajudar pessoas que necessitam tratamento e no momento atual j responde a estes trs quesitos: possui seu prprio saber, sua prpria prtica e conta com profissionais qualificados. O saber musicoterpico est em construo e atualmente encontrado um grande nmero de artigos tericos. Ainda h muito a fazer para aperfeio-la e desenvolv-la, mas isto necessidade de qualquer cincia, que deve constantemente ser atualizada, uma vez que surgem sempre novos conhecimentos para enriquec-la e modific-la.

    Algumas perguntas e dvidas sobre a msica merecem ser levantadas. Sentimentos e emoes so sempre provocados pela mensagem musical, enquanto sentido ou significao, ou tambm pela sonoridade em si? Segundo Lia Rejane Barcellos e Marco Antonio Santos (1996), o mtodo GIM (Guided Imagery and Music) considera a possibilidade de identificar algumas direes de atribuio de sentido a partir da anlise das estruturas musicais(p.17). Ao procurar sentido, a tentativa no demonstrar os efeitos do som sobre a mente e o corpo humano, mas de encontrar na prpria msica, sua significao e a especficidade desta linguagem.

    A msica em si atua sobre o organismo? O ritmo influi na tonicidade? Quais so os mecanismos pelos quais a msica induz ao movimento e ao? O timbre, o ritmo, as harmonias, as melodias, as intensidades, as tonalidades etc... poderiam provocar emoes, agindo diretamente sobre a estrutura cerebral, independentemente do sentido ou significado da linguagem musical? A ao de elementos sonoro-musicais sobre o crebro provocariam reaes, sem ligao com o sentido da msica? Estes aspectos so investigados pela neurocincia que vem desenvolvendo pesquisas sobre a msica e o crebro, mas seria muito importante que os musicoterapeutas se debruassem sobre este assunto, produzindo mais estudos, por ser um conhecimento de grande interesse, principalmente quando se trata de sua aplicao na rea de reabilitao motora.

    Os campos de aplicao da musicoterapia so bastante diversificados, e o suporte terico para cada um destes campos necessariamente diferente. Como diz Bruscia (2000), a musicoterapia uma combinao dinmica de muitas disciplinas em torno de duas reas: msica e terapia"(p. 8). Cita, entre outras, a psicomusicologia, a etnomusicologia, a educao musical, a psicoacstica e a biologia da msica como disciplinas integrantes da rea musical. Na rea de terapia cita entre outras, a psicologia, as tradies de cura, a fonoaudiologia e as especialidades mdicas (sem especific-las).

    Embora a musicoterapia seja aplicada a um vasto espectro de situaes, a incluidos problemas de ordem motora e sensorial, os aspectos psicolgicos, emocionais e relacionais so privilegiados em grande parte dos escritos. E no por acaso. Frequentemente, em hospitais, pessoas que sofrem doenas orgnicas de diversas naturezas so encaminhadas pelos mdicos ou outros terapeutas para a musicoterapia com o objetivo de melhorar seu estado de esprito e/ou os relacionamentos com as pessoas do meio em que esto inseridos. Acreditam que a maior aceitao de suas dificuldades pessoais, os levaria a colaborar com os demais tratamentos que, estes sim, atuariam diretamente sobre seus sintomas ou sua doena. A musicoterapia desempenharia o papel de terapia de apoio.

    * Este artigo aborda principalmente a rea de sade mental, na qual sempre trabalhei, mas indica alguns pontos comuns a

    qualquer especialidade.

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    Cristiane Ferraz (2007) fala sobre sobre estes aspectos afirmando que no hospital geral so reconhecidas a musicoterapia mdica e a musicopsicoterapia alm do que denomina msica medicinal. A musicoterapia mdica visa ajudar a alcanar os objetivos mdicos porque oferece novos meios de enfrentar a doena, reduz o impacto da internao, e favorece a expresso de sentimentos relativos situao que esto sofrendo (p. 44). A musicopsicoterapia bastante prxima por oferecer meios de fortalecer o ego e lidar melhor manejo com a situao existente da doena. Ambas parecem ser vistas como terapias de apoio e os objetivos musicoterpicos so basicamente psicolgicos. Bem diferente a msica medicinal, que utiliza a msica e as propriedades do som para com objetivos fisiolgicos (favorecer a saturao de oxignio e a estabilizar os parmetros cardacos) para promover o bem estar dos bebs. Nesta interveno a prpria msica alcana os objetivos propostos, agindo sobre o organismo e no sobre aspectos psicolgicos.

    Ana Maria Delabary (2007) cita, num trabalho desenvolvido em UTI, a saturao de pulso do oxignio verificada atravs da oximetria de pulso, diminuio ou aumento do tonus muscular, constatados e registrados diretamente pelo fisioterapeuta e algumas reaes do paciente comatoso, quando faz algum movimento, abre os olhos(...) (p.63) afirmando portanto a capacidade da msica de promover mudanas fisiolgicas. A autora, porm, frisa os aspectos psicolgicos, em que a msica surge como um estmulo busca da sade(p.65). Nas concluses afirma que a msica, no caso de pacientes terminais auxilia na busca da tranquilidade e pode favorecer a diminuio das tenses (..) ao mesmo tempo em que desperta esperana diante do desconhecido (...)(p.67).

    H mais de vinte anos atrs, por ter trabalhado sempre com psicticos, com uma orientao psicodinmica, acreditava que a musicoterapia atuava apenas sobre o estado psicolgico de pacientes detentores de qualquer tipo de problema, motor, sensorial, etc .... Ao trabalhar em Portugal, com pacientes institucionalizadas deficientes mentais e de terceira idade demenciadas, repensei a msica em si como capaz de ter efeitos sobre o paciente. Como exemplo, o grupo de deficientes era capaz de correr ou andar, de acordo com o andamento da msica, ou de pisar forte ou leve, de acordo com a intensidade. A movimentao destas pacientes era estimulada pela msica em si e no por aspectos psicolgicos. Senhoras em processos demenciais, absolutamente inativas, comeavam a cantar, tocar instrumentos, at mesmo danar, enfim participavam ativamente da sesso, talvez no pelo sentido/significado da msica, mas pelo fato de ser msica. No entanto, suas escolhas musicais recaam sobre msicas que fizeram parte de sua juventude e maturidade, o que aponta para a importncia da linguagem musical, que expressava e recordava vivncias importantes do passado.

    As experincias de Cristiane Ferraz, Ana Maria Delabary e a minha prpria, indicam que a msica atua sempre de duas maneiras: sobre o psiquismo, enquanto linguagem, e sobre o fsico, pelos efeitos psicoacsticos do som, porque existe uma interrelao entre o sentido musical e a sua forma, que nada mais do que a combinao de seus diversos elementos (altura, intensidade, timbre, ritmo, etc...).

    importante que os musicoterapeutas procurem estudar e analisar as estruturas musicais, para fundamentar a hiptese de que a msica uma linguagem cujo sentido pode ser melhor compreendido e previsto, no apenas suspeitado. importante, tambm, desenvolver pesquisas sobre a influncia dos parmetros do som e da msica em si sobre o organismo humano. A musicoterapia, enquanto campo de conhecimento, no pode apoiar-se em um sistema de crenas, mas sim de investigao. Diz Lia Rejane Barcellos (2008) que a maior dificuldade dos musicoterapeutas desenvolver pesquisas, por fatores diversos que envolvem a falta de recursos e de apoio financeiro. No entanto, j existem encontros com o objetivo de estimular, desenvolver e apresentar algumas pesquisas em andamento ou j concludas.

    A teoria da musicoterapia formada por uma combinao de diversas outras cincias, como aponta Bruscia. Isto no apangio e nem desmerece a musicoterapia. A maioria das cincias aplicadas se constitui a partir de disciplinas diversas. Tomando como exemplo a medicina, entram em seu corpo terico por exemplo, a qumica e a fsica, que tambm fazem parte da engenharia, que absolutamente distinta da medicina.

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    Marly Chagas (2008), citando vrios autores, distingue multidisciplinaridade(Vasconcelos), uma justaposio de disciplinas sem relao e sem cooperao; pluridisciplinaridade(DAmaral, Japiassu e Vasconcelos), em que as diversas disciplinas conservam seus valores particulares mas contribuem para o enriquecimento da descrio do objeto por agregar valores das diferentes disciplinas , mantendo-se em um mesmo nvel hierrquico (p.33); interdisciplinaridade (Japiassu) que exige uma interao entre as disciplinas para uma integrao dos conceitos e possibilitar tanto a modificao dos campos tericos quanto a transferncia das metodologias (p.34). Cita ainda a transdisciplinaridade (Faur, Somerville) em que h a integrao total dos sistemas disciplinares(p.35).

    De acordo com Leila Bergold(2008), estudos ou prticas transdisciplinares promovem a troca de conhecimento, evitando a hierarquizao de um saber sobre outro e sem a reduo ou separao caractersticas do paradigma cartesiano (...) (p.199)

    Creio que podemos distinguir dois diferentes aspectos nas trocas entre disciplinas. Um refere-se prtica, aos trabalhos de equipe sobre um mesmo objeto. Por exemplo: em hospitais pode existir multidisciplinaridade, em que diferentes profissionais trabalham com um mesmo paciente de forma isolada; pluridiscilinaridade em que h uma troca entre os profissionais da equipe que contribui para o aumento do conhecimento sobre o paciente, mas cada disciplina continua com seus objetivos prprios; interdisciplinaridade esta troca de conhecimentos pode introduzir objetivos comuns e levar a modificaes na forma de ver e tratar o paciente. A transdisciplinaridade, em que h a construo de um sistema conceitual unificado, me parece raro, se no inexistente. Em toda a minha prtica clnica, nos diversos hospitais psiquitricos em que trabalhei, jamais ocorreu este tipo de integrao entre os membros da equipe hospitalar, sendo o psiquiatra sempre a autoridade mxima.

    O segundo aspecto refere-se construo do saber. A musicoterapia, a meu ver, tem um saber transdisciplinar, com a integrao de conceitos de outras disciplinas a alguns conceitos prprios, formando assim algo novo e distinto das outras cincias. Um dos fatos que ajudou esta integrao de

    disciplinas, apontado por Lia Rejane Barcellos(2008), foi a inexistncia de cursos de mestrado no pas (...) (que) tem levado musicoterapeutas a se dirigirem s mais diversas reas para continuarem seus estudos (...) resultando tambm num enriquecimento pelas crticas e colaboraes.(p.15)

    Em relao ao saber musicoterpico, preciso nunca perder de vista que a msica o ncleo da musicoterapia. Tal assertiva parece bvia, mas num encontro ocorrido h poucos anos atrs foi afirmado que no existiria a obrigatoriedade de haver msica nas sesses musicoterpicas. Isto representa uma completa descaracterizao da musicoterapia. Sem msica, no h musicoterapia. Um dos aspectos especficos do saber musicoterpico, a meu ver, a existncia de um conceito prprio de msica. O conceito de msica, do ponto de vista da musicoterapia, difere da viso habitual dos msicos e do pblico em geral. considerada como qualquer organizao rtmico-sonora, sem seguir necessariamente regras de construo musical, existentes mesmo na msica contempornea, que

    reformulou o conceito tradicional de msica. Na musicoterapia, como diz Elisabeth Petersen (2007), no h msica boa ou ruim(P.76). A msica aquela feita pelo paciente, ou que desperta seu interesse, seja ela qual for, sem levar em conta a esttica.

    Alm do conceito prprio de msica, outro aspecto especfico da musicoterapia o papel que a msica desempenha, que difere fundamentalmente de outras formas de terapia. No processo musicoterpico o uso da msica no contingente mas essencial como tratamento, e no uma ferramenta auxiliar, como ocorre em fisioterapia, psicoterapias e outras. Como diz Brandalise (2001), a msica no uma ferramenta, mas parceira do musicoterapeuta nos processos de des-cobrimento de outros (p.27).

    O primeiro impacto da msica sensorial, por suas propriedades fsicas ou acsticas. Este primeiro impacto pode provocar imediatamente reaes motoras ou emocionais. Esta caracterstica sensrio-motor-emocional, que dispensa a linguagem verbal, define a importncia da sua utilizao quando se trata de sade mental. Nesta rea necessria uma forma de expresso adequada s pessoas com dificuldades

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    de se comunicar verbalmente, como psicticos ou deficientes mentais, por exemplo, e a msica cumpre este papel.

    A msica se dirige diretamente ao processo primrio e, s posteriormente, chega ao processo secundrio, usando a terminologia freudiana. Por no ter significados definidos, sendo apenas agradvel ou desagradvel, dirige-se ao processo primrio, que busca a satisfao e s adquire a noo do mau, do desagradvel quando no encontra o bom, o agradvel. A msica, em seu primeiro momento, s possui dois sentidos/significados** boa/agradvel ou m/desagradvel significaes primrias. No entanto, admite a projeo de outros significados/sentidos atribudos pela racionalidade processo secundrio.

    A msica traz em si possibilidades expressivas ou significantes, mas seu sentido/significado dado de certo modo do exterior, pelo ouvinte, executante ou criador, no momento mesmo da produo ou da escuta musical. Existem sempre um afeto, uma emoo, uma evocao provocada pela msica, que no correspondem a nenhuma propriedade do som. Embora as emoes e sensaes provocadas muitas vezes dificilmente possam ser expressas em palavras, possvel verbalizar aproximadamente os efeitos emocionais que a msica provoca e aquilo que evoca (atmosfera, paisagem, etc.). Estudar as verbalizaes provocadas por uma sequncia musical, ajuda a conhecer a significao atribuda pelo ouvinte. Este sentido/significado independe do ttulo da obra ou mesmo, muitas vezes, da letra cantada.

    Outro aspecto especfico da musicoterapia o foco na promoo da sade, evidentemente no esquecendo os sintomas da doena. A resoluo dos aspectos doentes vai se dar, no pelo foco nos sintomas, mas pela promoo dos aspectos sadios e, ainda, pelas vivncias de prazer. Sidnei Dantas(2008) refere-se a isto, dizendo que (...) o fazer no prazer d voz ao ser. Aqui no se trata de um mero prazer pelo prazer num hedonismo to tipicamente humano, (...) as atividades sonoro-musicais esto centradas na experincia do sujeito e isso que possibilita uma re-significao constante dos sintomas que deixam de ser o foco (grifos meus) (p.172).

    Em relao ao psictico, encarado do ponto de vista psicodinmico, a msica oferece a oportunidade de revivenciar fases muito arcaicas de formao do Ego, trazendo tona a musicalidade primeva, o que vai possibilitar a ressignificao de seus problemas e conflitos. Nestas fases arcaicas, a msica da fala, e no o significado das palavras, vai permitir o estabelecimento da relao entre a me e o beb. Se esta msica preponderantemente desprazerosa para o beb, ele no vai investir no mundo exterior, o que pode levar ao desenvolvimento de psicoses. Na rea de sade mental cria-se, no setting musicoterpico, a possibilidade de uma nova vivncia da sonoridade, dotada do prazer necessrio ao investimento no real pelo psictico. Propiciando uma experincia prazerosa da sonoridade, a musicoterapia possibilita a (re)insero no discurso cultural, e contribui para a (re)construo da identidade ou (re)constituio do sujeito psictico. Uma soluo para o sofrimento que procure aliviar apenas o sintoma sem se dirigir s causas do conflito provavelmente no vai ter eficcia a longo prazo, porque no chega ao mago da doena.

    A msica, enquanto atividade ldica, proporciona uma satisfao imediata (necessidade do primrio, de acordo com as teorias psicoanalticas), o que vai contribuir para que aspectos saudveis do paciente possam vir superfcie, propiciando que sua relao com o mundo que o rodeia, com o terapeuta, o grupo (se for o caso) e consigo mesmo seja substancialmente melhorada.

    A vivncia do prazer, oferecida nas sesses de musicoterapia, vai modificar a viso do mundo, concebido como um universo de sofrimento. Embora esteja me referindo primordialmente rea de sade mental, esta vivncia de prazer tambm importante em outras reas, por encorajar o paciente a aceitar as dificuldades e lutar para minorar seus problemas. Na musicoterapia, como em qualquer

    **

    Sentido, significado e significao so conceitos controversos. O Vocabulrio de Filosofia (Lalande) aponta para

    acepes muito diversas da palavra sentido. Define significao como sentido de uma palavra, de uma frase, etc... Como esta discusso no est nos propsitos deste texto, prefiro colocar sentido/significado.

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    processo teraputico, os ncleos de sofrimento que precisam ser cuidados viro necessariamente tona, mas expressos atravs da msica, portanto abrandados pelo prazer da atividade musical. Delabary (2007) aponta este fato, dizendo que a msica pode melhorar a qualidade de vida, e beneficiar os pacientes que vencero a doena, bem como dar alento queles que tero que conviver com uma doena incurvel. No caso de pacientes terminais, fala sobre o que chama qualidade de morte, por auxiliar a busca da tranquilidade e favorecer a diminuio das tenses, ajudando a aceitao e preparao para a morte(p.67). A importncia do prazer claramente expressa nos poemas escritos por por Zenite Miranda (2008) em tratamento de reabilitao motora, dos quais reproduzo partes.

    Mesmo nas cadeiras com a msica, nos transformam em cantores e danarinos (...) Alm de nos trazer momentos de prazer e alegria p.96

    Dor que pode ser curada Atravs da musicoterapia, aumentando assim a imunidade atravs da alegria E com a msica encontrar motivo para lutar e viver, tal realidade de cada dia.

    Pessoas que na musicoterapia Chora (sic), sorri (sic) e se reabilita (sic) atravs da emoo. p.83

    A musicoterapia, alm do desenvolvimento de teorias prprias, que a justificam enquanto saber, possui seus mtodos, procedimentos e tcnicas particulares, bastante distintos dos mtodos e tcnicas de profisses como medicina, psicologia, fisioterapia ou qualquer outra.

    Os conceitos de mtodo, tcnica e procedimento, tm, s vezes, uma diferena sutil, ou mesmo se confundem. Bruscia (2000) define mtodo como um tipo particular de experincia musical utilizada para a avaliao diagnstica, o tratamento e/ou avaliao (p.122). Como, de acordo com ele, as experincias musicais so quatro recriar, improvisar, compor e ouvir considera que a recriao, a improvisao, a composio e a audio musical so os quatro mtodos possveis em musicoterapia.

    Mtodo, segundo o Vocabulrio de Filosofia (1967), etimologicamente, significa perseguio e, consequentemente esforo para alcanar um fim, e traz como definio caminho pelo qual se chega a um determinado resultado, ainda que este caminho no tenha sido fixado de antemo de modo deliberado e refletido. Conforme o mesmo Vocabulrio de Filosofia, experincia pode significar o fato de experimentar alguma coisa que amplia e enriquece o pensamento; (...)todos os progressos mentais que resultam da vida; ou exerccio das faculdades intelectuais considerado enquanto fornece ao esprito conhecimentos vlidos. O Wikipedia define experincia, em epistemologia, como o contato epistmico, geralmente perceptual, direto e caracterstico com aquilo que se apresenta a uma fonte cognitiva de informaes (faculdades mentais como a percepo, a memria, a imaginao e a introspeco).

    Prefiro adotar a definio de mtodo, como caminho para alcanar um resultado porque, embora haja vrias definies para experincia, nenhuma aponta para o significado de mtodo.

    A meta, o resultado que se deseja, vai ser determinante na escolha do mtodo. Lcourt (1980), desde os anos 80 do sculo passado, afirma que os mtodos so escolhidos em funo dos objetivos e do tempo previsto para o processo musicoterpico, e ainda do desejo* do terapeuta. Aponta, para tratamentos curtos, os mtodos couvrantes (de proteo ou apoio), que visam dar um sentimento de segurana e promover uma readaptao, e os de ativao, que visam entre outras metas a ativao, e a reestruturao comportamental; para tratamentos longos, os catrticos ou interpretativos, que visam a reestruturao da personalidade e a retomada do desenvolvimento afetivo e relacional. (p.91)

    * Acho mal colocada a palavra desejo, porque parece ser uma escolha ao acaso, dependendo apenas da vontade do

    terapeuta. Acho mais adequado usar formao.

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    Podemos encontrar na musicoterapia mtodos receptivos, baseados na experincia da audio musical, e mtodos ativos/interativos, que podem usar as experincias de recriao, improvisao, composio, e mesmo audio musical, indepndentemente ou combinadas.

    Diz Bruscia que a recriao inclui executar, reproduzir, transformar e interpretar qualquer parte ou o todo de um modelo musical existente (...)(P.126). Na improvisao o cliente faz msica tocando ou cantando, criando uma melodia, um ritmo, uma cano ou uma pea musical de improviso(p.124). Na composio, o terapeuta ajuda o cliente a escrever canes, letras ou peas instrumentais, ou a criar qualquer tipo de produto musical (...) (p.127, grifo meu). possvel notar que a maior diferena entre composio, improvisao, e algumas formas de recriao reside no fato de que na primeira h notao ou registro do que foi feito, enquanto a improvisao e a recriao ocorrem somente no tempo.

    O GIM um dos mtodos mais conhecidos que utiliza o recurso de audio musical. Podemos citar tambm o mtodo Jost (apud Lecourt,1980), de associao de obras com carter mais rtmico ou mais meldico, em que os pacientes fazem escolhas sucessivas das obras, ou ainda de Guiraud-Caladou (1983), de tres associaes de dois extratos musicais, aps os quais os pacientes falam sobre o que vivenciaram.

    Vandr Vidal utiliza a experincia musical de composio nos Cancioneiros do IPUB, um grupo criado por ele. As reunies do grupo para um observador ingnuo podem parecer como promovidas para compor e ensaiar as apresentaes, mas na realidade visam o aspecto teraputico e no a produo, de acordo com Marcello Azevedo (2000), um psiclogo que trabalhou com Vandr. O objetivo propiciar ao psictico a busca do retorno realidade, compreendendo como realidade aquela minimamente compartilhada por todos para possibilitar, em algum nvel, a compreenso dos cdigos sociais e culturais, e assim o convvio social.

    Seu mtodo de trabalho consiste em elaborar tanto a parte sonoro-musical quanto os assuntos que mobilizam o grupo. Inicialmente isto era feito em uma sesso de 90 minutos. Com o decorrer do tempo foi observado que seria mais eficaz fazer trs tipos de sesses diferentes: uma para apresentar msicas novas, em que os demais participantes podem complementar a idia musical inicial, fortalecendo assim a noo de grupo; a segunda para a reflexo sobre os problemas individuais e as relaes interpessoais; o terceiro o ensaio musical, no qual so retomados os objetivos anteriores, vivenciados por meio da necessidade de uma maior participao dos integrantes, porque fundamental a contribuio de cada um para que a performance musical seja completa. Afirma ainda que com isto temos acesso aos aspectos mais saudveis dos pacientes que muitas vezes nos surpreendem(p.129), o que refora a idia expressa por mim anteriormente de que o foco da musicoterapia a promoo da sade. As apresentaes pblicas so uma vivncia no real e tm um aspecto de empoderamento e de incluso social por apresentar msicos, e no pacientes, e por aumentar as oportunidades destes para uma nova vida.

    Martha Negreiros (1984) e eu mesma desenvolvemos um mtodo que podemos denominar de Ao/Relao/Comunicao e empregar ARC como sigla. Tnhamos como objetivo a abertura de canais de comunicao com pacientes esquizofrnicos, isolados em seu mundo particular, para, a partir da, poder tentar modificar seu modo de ser e estar no mundo. Trata-se de um mtodo no-diretivo, baseado no fazer musical, que interativo por natureza e envolve o paciente ou grupo, o musicoterapeuta e a msica. So utilizadas as experincias musicais de recriao e improvisao. Os membros do grupo tm a liberdade de escolha, tanto dos instrumentos quanto das atividades. Esta possibilidade de escolher, ao invs de acolher a direo dos musicoterapeutas, importante por aumentar o poder de deciso de pessoas que vivem uma grande limitaao no seu dia-a-dia. Mais do que isso, a experincia da escolha tambm importante porque expressa e define identidade. Esta afirmao de Noone (2009) mostra, que no mtodo por ns utilizado, a liberdade de escolha se une experincia prazerosa da sonoridade, e contribui assim para a (re)construo da identidade do sujeito psictico.

    De modo muito simplificado, podemos dizer que o caminho a percorrer comea com o estmulo para a ao de fazer msica, embora esta msica possa no ser relacionada a nada mais do que a prpria

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    pessoa. A partir do fazer musical, procura-se despertar o paciente para o fazer com, em que a msica deixa de ser uma ao individual e inclui a presena do outro. O relacionamento interpessoal, tanto com o grupo quanto com os musicoterapeutas, comea a ocorrer por meio da msica. importante fazer o sujeito ter conscincia de que est se relacionando com o outro, e tornar explcita essa relao que s vezes no percebida claramente. Como foi teoricamente afirmado, a msica expressa emoes/afetos. O passo seguinte ajudar o sujeito a tornar-se tornar-se consciente dos afetos, emoes, conflitos expressos musicalmente, e procurar ajud-lo a comunicar-se tambm verbalmente. Para percorrer este caminho so usadas basicamente experincias de improvisao, principalmente rtmica, e de recriao, principalmente de canes populares, na maior parte das vezes com modificaes nos acompanhamentos, em menor nmero nas letras e raramente na melodia.

    Embora tanto no caso de Vandr Vidal, quanto no de Martha Negreiros e eu mesma este caminho no tenha sido fixado de antemo de modo deliberado e refletido, foi possvel perceber, na releitura posterior, que houve o desenvolvimento de mtodos que podem ser transmitidos, e no apenas procedimentos sem organizao ou casuais. O mtodo de Vandr aplica-se a pessoas com maior capacidade musical, enquanto o nosso dirige-se para pessoas com mais dificuldade de relacionamento.

    Bruscia define procedimento como sequncia organizada de operaes e interaes que o terapeuta usa para levar o cliente atravs de uma experincia musical completa. Tcnica, para o autor uma operao ou interao que o terapeuta utiliza para provocar uma reao imediata do cliente ou para modelar a experincia imediata do cliente. (p.122)

    No mtodo por ns utilizado, as sesses so divididas em duas partes distintas: a primeira de expresso sonoro-musical e a segunda de comentrios para avaliar a primeira. Podemos exemplificar os procedimentos e tcnicas utilizadas na primeira parte da sesso:

    1. cada pessoa escolhe os instrumentos 2. o grupo experimenta os instrumentos livremente 3. o grupo tende a se organizar espontaneamente.Caso isto no ocorra, o

    musicoterapeuta intervm, usando tcnicas diversas marcando uma pulsao, propondo uma atividade rtmica, iniciando uma cano, e inmeras outras, conforme perceba a necessidade e a adequao no momento.

    4. novas atividades vo sendo iniciadas livremente pelos sujeitos, e podem levar a novas intervenes do musicoterapeuta.

    Para atuar e interferir nesta parte da sesso, o musicoterapeuta deve fazer a leitura e ter uma compreenso, mesmo que parcial, do que est sendo expresso pela produo musical. A msica, por ser um produto cultural, uma linguagem comum ao paciente e ao musicoterapeuta, o que d pistas sobre o sentido do acontecer sonoro-musical. O papel do musicoterapeuta escutar e interpretar para si prprio no s a produo musical, mas o modo pela qual se d: se o paciente utiliza criativamente ou no os instrumentos musicais, a voz e o corpo, se mostra inibies, muitas vezes ao ponto de ficar paralisado, se espontneo ou estereotipado, enfim todas as suas atitudes passveis de serem observadas. O musicoterapeuta precisa vibrar em comum com seu paciente, compreender aquilo que deseja expressar, ir ao seu encontro para ajud-lo musicalmente a dar forma a esta expresso. Precisa aceitar a msica do paciente, e tentar perceber as reaes que provoca no grupo e no prprio musicoterapeuta.

    A interveno do musicoterapeuta vai se dar para compartilhar o que percebeu com o paciente ou grupo, quando julgue adequado intervir. A possibilidade de entender o que a msica comunica ampliada por haver uma interao musical entre o paciente ou grupo e o musicoterapeuta. Quem est fazendo msica em comum percebe melhor o que est sendo expresso do que um simples ouvinte, no envolvido no fazer. A interferncia musical do musicoterapeuta aceita ou no pelo paciente ou grupo, conforme corresponda ou no aos seus anseios no momento.

    Na segunda parte da sesso:

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    1. o musicoterapeuta assinala o fim da expresso sonoro-musical e espera que os pacientes comecem espontaneamente a falar

    2. se isto no ocorre, o musicoterapeuta intervm, iniciando com a pergunta O que acharam da sesso? ou do nosso encontro?

    3. os sujeitos do livremente suas opinies 4. o musicoterapeuta procura clarificar o que dito 5. se algum no fala o musicoterapeuta procura estimul-lo 6. o musicoterapeuta d suas opinies e concluses, finalizando a sesso.

    Para a clarificao desta parte da sesso, o musicoterapeuta deve procurar a motivao da verbalizao do paciente e as influncias que levaram ao sentido atribudo por eles produo musical, por meio das prprias palavras e opinies dos mesmos.

    A IDENTIDADE DO MUSICOTERAPEUTA

    Os musicoterapeutas devem ser profissionais detentores do saber musicoterpico e capacitados para sua prtica. Desde os primeiros tempos isto j era, se no sabido, pelo menos intudo. Como afirmou

    Benenzon (1985), o musicoterapeuta no nem um mdico, nem um msico, nem um psiclogo. Eu acrescentaria nem fisioterapeuta, nem educador musical, pensando apenas nas trs grandes reas da musicoterapia sade mental, reabilitao motora e deficincia mental.

    Como existe uma especificidade do saber e da prtica clnica musicoterpica, a formao do musicoterapeuta necessariamente diversa da formao de qualquer outro terapeuta. Com o objetivo de oferecer uma formao especializada, foi fundado o Curso de Musicoterapia no Conservatrio Brasileiro de Msica. Foi organizado em trs reas cientfica, musical e sensibilizao, incluindo campos de conhecimento mdicos, psicolgicos, musicais, artsticos e outros.

    A rea musical compreendia noes de teoria musical, harmonia, harmonia prtica, e folclore, e a prtica musical que inclua execuo de instrumentos, canto coral, desenvolvimento do senso rtmico pelos mtodos Dalcroze e Orff.

    A rea cientfica, alm de conhecimentos sobre a prpria musicoterapia, incluia psicologia, filosofia, disciplinas mdicas, tcnicas psicoterpicas, tica profissional, entre outras.

    A rea que difere fundamentalmente a formao dos musicoterapeutas de todas as outras especialidades no campo teraputico a chamada sensibilizao. Esta rea, incluia as Atividades Criativas de Apoio Musicoterapia, a Improvisao de Som, Corpo e Objeto Sonoro, e Dinmica de Grupo. Elementos da cultura brasileira, como msica, mitos, fbulas e contos folclricos so empregados para mobilizar a imaginao, emoes e sentimentos. O objetivo da sensibilizao desenvolver todos os sentidos para possibilitar a compreenso do no verbal, no trato com os futuros pacientes.

    Embora a proposta inicial perdure at hoje, o curso dinmico, sendo atualizado constantemente, medida que surgem novos conhecimentos e so introduzidsas novos campos de aplicao. Na prtica clnica, tambm existem aspectos peculiares musicoterapia: a escuta musical e a atuao do musicoterapeuta.

    Escutar um ato consciente de absorver informao. O objetivo da escuta , alm de ouvir, entender, decifrar, catalogar a informao que selecionamos entre todas as sonoridades ouvidas concomitantemente, o que requer ateno e concentrao.

    A escuta teraputica exige escutar o dito e o no dito, o que se expressa por trs do dito, o que vai alm das palavras e suas significaes, envolvendo tambm as entonaes da voz, o tnus, os movimentos corporais, as expresses faciais. necessrio ainda relacionar tudo que se apresenta observao para formar um quadro que permita uma compreenso ampliada do que trazido pelo paciente. Esta escuta prpria de qualquer interveno teraputica, mesmo as que se dirigem rea orgnica, como se v nas recomendaes da anamnese mdica.

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    A musicoterapia, enquanto escuta, se distingue de qualquer outra por dirigir-se, alm dos aspectos citados, produo musical,. No setting musicoterpico h mais de uma escuta e possibilidade de atribuio de sentido/significado ao acontecer musical: 1) a do musicoterapeuta sobre a produo musical do cliente e do grupo, 2) a do paciente sobre esta produo e sobre a interferncia do musicoterapeuta na mesma.

    A escuta do paciente dirige-se fundamentalmente ao produto musical, (atividade ldica, qualidade boa ou m da execuo) e ao que a msica expressa (vivncia de prazer, sentimentos positivos ou negativos).

    A escuta do musicoterapeuta no se dirige apenas msica enquanto produto acabado, mas a trs aspectos: a maneira de produo do paciente (o modo pelo qual o paciente usa ou no o material disponvel instrumentos musicais, voz e corpo, se ele se mantm em silncio, se criativo ou estereotipado, se espontneo ou inibido), a msica produzida e o efeito que esta msica provoca sobre o paciente ou o grupo, se for o caso, e sobre o prprio musicoterapeuta. preciso aceitar a produo musical do paciente, por mais que a consideremos de m qualidade.

    Nosso treinamento nos faz escutar msica, onde outros profissionais s ouvem cacofonia. Pudemos perceber isto muito claramente quando apresentamos, no Centro de Estudos do IPUB, uma fita cassete com a gravao de uma sesso. Podamos observar do palco as expresses perplexas da platia. No final, o ento diretor nos disse que os musicoterapeutas precisavam ir a muitos concertos, para preservar sua sade auditiva.

    Esta escuta do musicoterapeuta me parece peculiar, distinguindo-se tanto da escuta de msicos quanto de terapeutas de outras reas. uma escuta prpria do que estamos tentando configurar como a especificidade musicoterpica.

    Quanto prtica clnica, a atuao do musicoterapeuta difere dos demais terapeutas por basear-se na linguagem musical. O musicoterapeuta no se limita a ler e interpretar o que ouviu durante a sesso, mas interage musicalmente com o paciente. Diz Ceclia Conde1 que o musicoterapeuta aprende como usar a msica, a que horas deve parar, quando deve ir mais fundo, quando se conecta, se comunica, tem acesso ao ser humano (...) o que tambm parece ser especfico da musicoterapia. Em relao peculiaridade deste aspecto, podemos citar dois comentrios, feitos em diferentes locais, sobre a apresentao de um audiovisual de sesso. Um mdico residente, no Centro de Estudos do IPUB, comentou nunca ter visto nada igual em hospitais psiquitricos, pacientes e terapeutas cantando e danando juntos. Num encontro de Assistentes Sociais foi dito por um participante que a musicoterapia era um processo democrtico, em que pacientes e terapeutas atuavam conjuntamente, sendo difcil discriminar quem era quem.

    Como exposto anteriormente, preciso escutar o dito e o no dito, o sonoro e o silncio, o que existe alm e por trs da msica e/ou das palavras. Quando se compartilhou da produo musical, os significados atribudos podem ser aproximadamente os mesmos.

    O musicoterapeuta um profissional com uma formao e uma identidade prprias, no podendo ser substitudo por nenhum outro. Posso citar duas experincias pessoais. A primeira no IPUB, quando um psiclogo de outro hospital procurou Martha Negreiros e eu mesma, dizendo que tocava violo e queria fazer musicoterapia com seus paciente, mas no conseguia faz-los participar. Depois de explicarmos o que era musicoterapia, concluiu que era necessrio ter uma formao adequada. Em Portugal, num Hospital em que trabalhei, resolvi deixar com dois enfermeiros a conduo da sesso nos dias em que no poderia estar presente. Total fracasso. Nenhum dos dois foi capaz de assumir a funo, embora sempre participassem comigo das sesses.

    1 CONDE e FERRARI, 2008

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    CONCLUSES Como afirmado, uma cincia aplicada especfica depende da existncia de um saber e de uma

    prtica prprias, alm de profissionais qualificados para exerc-la. A musicoterapia atende aos trs requisitos. Podemos afirmar, portanto, que a musicoterapia existe como uma cincia aplicada especfica, e uma forma de tratamento singular e autnoma. Mesmo quando utilizada na rea de sade mental, no se confunde com uma psicoterapia musical.

    O saber e os procedimentos musicoterpicos so prprios e especficos. A atuao do musicoterapeuta diversa da atuao de outros terapeutas, como psiclogos, fisioterapeutas, etc, porque envolve necessariamente uma interao musical com o paciente ou grupo. A msica, muito alm de ser uma linguagem partilhada, o centro de todo o processo, e ao seu redor vo se desenvolver a relao interpessoal e a comunicao com o outro. A msica, ncleo do processo musicoterpico, interativa por natureza, envolvendo o paciente, o terapeuta e a msica, enquanto fazer e enquanto escutar. Este fazer/escutar perdura durante todo o processo. No campo da Sade Mental, mesmo quando a relao com o terapeuta e/ou grupo est estabelecida e a comunicao j se d utilizando a palavra, a msica continua a ser o meio de expresso por excelncia.

    Tratando-se de sade mental, os trunfos da musicoterapia, no meu entender, so a linguagem musical e o prazer. A msica uma forma de linguagem sem significados definidos, o que permite ao psictico expressar seus sentimentos sem contradio, mesmo se contraditrios. Em seu primeiro impacto mostra-se apenas boa/agradvel ou m/desagradvel, mas admite a projeo de outros significados atribudos pela emoo ou pela racionalidade. Alm disto, o contato direto com o outro fonte de muita tenso para o psictico e a msica intermedia este contato. Estes dois aspectos contato indireto com o outro e linguagem sem significado preciso levam a um alvio de tenso, que pode ser sentido como prazeroso.

    O prazer usufrudo na atividade musical tem um papel importante por possibilitar ao paciente investir na realidade externa, abandonada por ser apenas fonte de sofrimento, no caso das psicoses, ou para suportar sofrimentos e situaes difceis da realidade, no caso de outros problemas, como constatam musicoterapeutas que trabalham em hospitais gerais. A poetisa Zenite, anteriormente citada, confirma esta experincia do prazer como suporte para enfrentar a realidade dizendo:

    Que a musicoterapia na ABBR O lugar, onde ns voltamos a sorrir e a crer Que mesmo limitados podemos ter prazer em viver.p. 69

    O corpo terico que sustenta a prtica clnica tambm especfico. Embora elaborado a partir de outros saberes, estes conhecimentos foram amalgamados como algo novo. Como diz Marly Chagas, (2008) a musicoterapia um hbrido interdisciplinar, cuja sntese de outras disciplinas construiu um novo conhecimento. O hibridismo pode tambm ser qualificado como transdisciplinaridade, porque nesta sntese h uma integrao de outras disciplinas sem que haja uma hierarquizao de um saber sobre outro, como afirma Leila Bergold. (2008). No campo da sade mental, disciplinas como psicologia, psicologia da msica, lingustica, esttica e outras, so integradas de forma original no corpo de conhecimentos musicoterpicos, fundamentando sua prtica.

    A meu ver, a musicoterapia, na rea de sade mental qual me dediquei por 25 anos, no dispensa, pelo menos por enquanto, a adoo de alguma teoria psicolgica para a leitura das vivncias saudveis ou conflituosas da pessoa. Adoto, como referencial, as concepes tericas psicodinmicas, no no sentido psicanaltico ortodoxo, mas na viso de que o psiquismo humano est sempre em movimento, tem aspectos inconscientes, que perduram desde o incio da vida e influenciam toda a existncia. Isto no significa considerar a musicoterapia uma psicoterapia combinada com msica, cujo papel seria apenas permitir o acesso a ncleos inconscientes para serem posteriormente trabalhados. A leitura e devoluo do que expresso musicalmente musicoterpica e no se confundindo com interpretaes

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    psicanalticas. A msica desempenha um papel bem mais relevante no processo teraputico do que servir apenas de intermediadora do relacionamento terapeuta/paciente e possibilitadora do acesso a ncleos inconscientes do paciente.

    A musicoterapia pelas caractersticas prprias de seu saber, sua prtica e sua formao profissional, no se confunde e distinta e independente de outras formas de terapia. No canso de repetir que um dos seus grandes trunfos propiciar, por meio do prazer, a promoo da sade de pessoas fechadas em universos de isolamento e sofrimento.

    No posso deixar de expressar meus agradecimentos s musicoterapeutas Vera Wrobel e Martha

    Negreiros, pela generosidade em ler e fazer sugestes para este artigo.

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