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CÓDIGO DE ÉTICA DOS TRADUTORES/INTÉRPRETES DE LÍNGUA DE SINAIS:
QUAIS VERDADES SE CONSTITUEM NESSE DOCUMENTO SOBRE A
PROFISSÃO?
Daiana San Martins Goulart1
Inscrito no campo teórico dos Estudos Culturais, este artigo tem como objetivo analisar
as representações sobre os tradutores/intérpretes de Libras que constam no código de ética que
regulamenta a profissão, buscando compreender de que forma tais representações constituem
determinadas “verdades” sobre esses profissionais. O presente texto trata-se do recorte de uma
pesquisa mais ampla, realizada no Mestrado em Educação.
As políticas inclusivas vêm se referindo ao tradutor/intérprete de língua de sinais como
uma forma de acessibilidade linguística às pessoas surdas, prevendo a presença desses
profissionais em diversos contextos sociais em que a Libras é utilizada como meio de
comunicação. Diante disso, visando configurar o campo de ação possível e as atribuições do
tradutores/intérpretes de língua de sinais, em 2004, o Ministério da Educação, através do
Programa Nacional de Apoio à Educação de Surdos da Secretaria de Educação Especial SEESP,
publica o código de ética que analiso neste trabalho.
Esclareço, entretanto, que esse documento foi elaborado em um momento de forte
mobilização e luta das comunidades surdas e de ampliação de profissionais requeridos para
intermediar a comunicação. Nesse contexto, o MEC publica, em parceria com a FENEIS2, o
livro “O Tradutor/Intérprete de língua brasileira de sinais e língua portuguesa”. A publicação
foi organizada por Ronice Muller de Quadros (2004)3 e, desde 2004, o código tem sido utilizado
em cursos de formação para tradutores/intérpretes de língua de sinais, em processos seletivos
na área e em documentos que se referem a essa profissão.
O código de ética brasileiro é uma tradução e adaptação do manual de conduta dos
intérpretes de línguas de sinais dos EUA, publicado no documento Interpreting for Deaf People,
1 Graduada em Pedagogia pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), Especialista em Educação com Ênfase
em Educação de Surdos pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel), e aluna do Programa de Pós-Graduação
em Educação, Stricto Sensu, da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA). 2 FENEIS: Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos. 3 Desde a década de 90, Ronice Muller de Quadros vem realizando pesquisas na área da educação de surdos e da
língua brasileira de sinais no Brasil.
2
em 19654. É importante destacar que esse não é o único código de ética existente, uma vez que
a Federação Brasileira de Profissionais Intérpretes de Língua de Sinais – FEBRAPILS, em
2014, criou seu Código de Conduta e Ética5, buscando contemplar as especificidades da
tradução/interpretação no Brasil. Nesse documento, alguns princípios do código de ética da
FENEIS são mantidos, outros foram reelaborados, estando mais voltados às competências
tradutórias. Entretanto, me ocupo nesta análise do primeiro código, que teve, e ainda tem, uma
grande repercussão no país.
Assim, ao discorrer sobre a atuação dos tradutores/intérpretes de língua de sinais, o
código de ética colaborou para estabelecer as bases da nova profissão. Contudo, interessa-me,
no documento em questão, compreender as representações da profissão e as “verdades”
apresentadas sobre a conduta desses profissionais. Portanto, durante a análise desse código e
com base nas narrativas das tradutoras/intérpretes de Libras entrevistadas em minha pesquisa
de mestrado, busquei atentar-me para as seguintes questões: Quais verdades se constituem sobre
os tradutores/intérpretes de língua de sinais no código de ética que orienta a profissão? O que
relatam as tradutoras/intérpretes de língua de sinais sobre as prescrições do código de ética?
Como esses profissionais ressignificam as orientações desse documento em diversos contextos
de atuação?
Percurso investigativo
O percurso investigativo desta pesquisa ocorreu por meio de uma revisão de literatura
sobre o tema, uma análise dos documentos que regulamentam a profissão dos
tradutores/intérpretes de língua de sinais no país, em especial do código de ética publicado em
2004 pelo Ministério da Educação, bem como de entrevista com quatro tradutoras/intérpretes
de língua de sinais de diferentes cidades do Rio Grande do Sul. As entrevistas foram gravadas
e posteriormente transcritas, selecionei para esse artigo as narrativas que faziam referência à
4 O código de conduta americano foi traduzido pelo intérprete de língua brasileira de sinais Ricardo Sander e
apresentado, em 1992, no II Encontro Nacional de Intérpretes de Língua de Sinais, que ocorreu no Rio de Janeiro. Nesta ocasião esse documento foi votado e aprovado pelos representantes dos estados brasileiros, passando a fazer
parte do regimento interno da FENEIS. 5 O Código de Conduta e Ética elaborado pela FENEIS não foi quase divulgado e, para ter acesso ao texto, é
preciso realizar várias consultas. No período em que fiz esta pesquisa, este código não estava disponível no site da
FEBRAPILS, o que dificulta ainda mais sua divulgação.
3
ética profissional, assim como aquelas que atribuíam sentido ao código de ética que orienta a
atuação dos tradutores/intérpretes de língua de sinais.
Buscando manter o anonimato, durante a entrevista, solicitei às colaboradas que
escolhessem um nome fictício para usarem durante a pesquisa. Os nomes escolhidos são:
Débora, Clarisse, Camila e Eduarda. Para diferenciar as narrativas das citações, os excertos
das falas das entrevistadas aparecerão, no decorrer do texto, grafados com recuo, letra em
itálico, seguidos do nome de cada colaboradora.
Código de ética e a constituição do “ser” tradutor/intérprete de língua de sinais: quais
discursos circulam sobre essa profissão?
Este documento discorre sobre a importância de um estatuto profissional para o
intérprete de línguas de sinais e defende a necessidade de se estabelecer um código de conduta
para orientar os profissionais. O código define o que seria uma adequada atitude profissional,
trazendo orientações sobre como o profissional deve se comportar em diferentes ocasiões,
ressaltando as diferenças entre a tradução/ interpretação em espaços formais e informais.
De acordo com Vinícius Nascimento (2014), embora o código de ética seja um
documento frequentemente citado nos cursos de formação de tradutores/intérpretes de língua
se sinais, ele não é um documento amplamente divulgado, explorado e, tampouco, muito
analisado no âmbito acadêmico. Ele ainda ressalta que o código de ética é um documento
prescritivo, que:
Arbitra sobre questões não negociáveis da atividade de trabalho do TILSP, pouco diz
sobre as situações que estão ligadas às inter-relações estabelecidas durante o ato de
interpretação, mas menciona a importância da fidelidade como aspecto constitutivo
do fazer laborioso deste profissional (NASCIMENTO, 2014, p. 1143).
O código de ética prescreve condutas e modos de agir (questões inegociáveis),
sublinhando aspectos que seriam indispensáveis ao trabalho de tradução/interpretação. Um
deles é mencionado no excerto anterior, e diz respeito à fidelidade (ou seja, a mensagem que
está sendo traduzida). Porém, esta fidelidade têm desafios imensos – a ambivalência da
linguagem, a impossibilidade de expressar certos sentidos de uma língua a partir da estrutura e
sentidos da outra, os diferentes níveis de proficiência na língua de sinais, o entendimento de
4
termos técnicos, expressões, conceitos de um dado campo profissional ou acadêmico pelo
tradutor/intérprete e/ou pela pessoa surda a quem se dirige a mensagem, etc. Além disso, na
dinâmica da tradução simultânea, muitas questões dependem da capacidade do profissional de
improvisar e de encontrar soluções consistentes. Algumas das narrativas que analiso adiante
são exemplares para se pensar o processo de tradução/interpretação em aspectos que não podem
ser antecipados, que são parte daquilo que poderíamos chamar, com base em Larrosa (2002),
de acontecimento.
Nascimento (2014) salienta que o código de ética – assim como outros documentos
que prescrevem o que fazer e como fazer – é tomado como uma espécie de manual prático.
Todavia, nele não se explora o dinamismo das diferentes situações tradutórias nas quais o
profissional precisa fazer escolhas. Nele também não se dá visibilidade, por exemplo, ao que
há de conflituoso nesse processo que envolve expectativas de diferentes sujeitos – quem fala,
quem interpreta e quem recebe a mensagem interpretada.
O pesquisador ainda destaca que a existência desse documento colabora para a
construção de um imaginário social sobre a profissão, mas, raramente, essa representação é
problematizada. Avalia-se a conduta discrepante ou fidedigna do profissional, sem levar em
consideração o contexto em que o ato de tradução e interpretação ocorreu, sem considerar
também que todo ato de tradução é um ato de recriação (SOBRAL, 2008).
Ao referir-se à ética do profissional na área da tradução, Sobral (2008) enfatiza que ela
diz respeito à utilização dos saberes do profissional a serviço da compreensão do que é dito,
proporcionando o entendimento entre pessoas que utilizam línguas diferentes. Nesse sentido,
ele afirma:
A postura ética do tradutor, nessa sua tarefa de dar a conhecer o que “pensam” outras
culturas e de defender a diversidade, condição de avanço do mundo, é um elemento
fundamental no processo de tradução. Essa postura envolve aprimoramento constante,
auto respeito profissional, a recusa de aceitar tarefas acima da capacidade pessoal, a
dedicação permanente aos estudos – inclusive teorias da interpretação (SOBRAL,
2008, p. 125).
As argumentações do autor colaboram para atribuir grande carga de responsabilidade
ao tradutor/intérprete: sob seus ombros, o fardo de assegurar a comunicação entre mundos; de
investir em si constantemente e se manter atualizado, informado; de ajustar-se ao lugar em que
atua; mas de recusar tarefas acima de sua capacidade pessoal (e formação profissional). Sobral
5
(2008) também argumenta que seria papel do tradutor/intérprete, nas suas interfaces entre
surdos e ouvintes, esclarecer sobre os direitos, deveres, atribuições e limites para seu trabalho
de interpretação.
Elisama Rode Boeira Suzana (2012), referindo-se ao código de ética, discute o
significado da palavra ética. De acordo com a autora, uma conduta ética não pode ser pensada
e definida como algo homogêneo, por outro lado, toda conduta ética é constituída por valores,
costumes e opiniões de cada cultura/grupo social. A ética profissional estaria, assim, flexionada
por distintas circunstâncias, ou seja, estaria atravessada pelos valores adquiridos pelos
profissionais nos diferentes contextos sociais e culturais onde estão inseridos. Feitas essas
breves referências ao sentido de ética, passo a fazer, a partir de então, algumas apreciações
sobre o que se estabelece nesse código de ética.
No capítulo I, o código de ética institui os princípios fundamentais para a atuação dos
tradutores/intérpretes de língua de sinais, dentre os quais destaco os artigos 2º, 3º e 5º. De acordo
com o art. 2º, “o intérprete deve manter uma atitude imparcial durante o transcurso da
interpretação, evitando interferências e opiniões próprias” (QUADROS, 2004). Logo, entende-
se que, durante a atuação, o tradutor/intérprete de língua de sinais deve manter-se concentrado
porque a atividade de traduzir de uma língua para outra envolve um ato cognitivo e linguístico
que exige extrema atenção.
Destaco, nesse princípio, a noção de imparcialidade, pois penso que cada pessoa é
constituída pelas diferentes experiências culturais, familiares, sociais, que, de algum modo,
“falam” nos processos de tradução. O sentido de imparcialidade é, portanto, parte de um
entendimento de que seria possível assumir uma atitude neutra, como se o intérprete pudesse
assumir a forma de um “corpo neutro”, um mero veículo de comunicação, capaz de executar a
tarefa de tradução/interpretação sem intervenções.
Pergunto, no entanto, se, ao traduzir/interpretar, não estariam também envolvidas
nossas emoções, nossas convicções, nossas formas particulares de ver o mundo. Tal questão
me fez prestar atenção a certas narrativas das profissionais que entrevistei, pois nessas falas é
possível perceber que o ato de traduzir e interpretar escapa a qualquer tentativa de normatização
e ou padronização descrita no código de ética. Portanto, trago a seguir excertos das entrevistas
6
que comprovam essa característica de construção e recriação que envolve o processo de
tradução e interpretação.
Sempre tem algo relacionado ao código de ética que tu acaba tendo que
ressignificar para o teu espaço. É como eu já falei: enquanto profissional tu prevê
um distanciamento do aluno, mas involuntariamente, até por ser uma comunidade
pequena, tu acaba te envolvendo... mesmo que isso possa não influenciar a tua
questão profissional e a tua questão ética (Clarisse).
As colocações de Clarisse remetem principalmente ao espaço educacional, onde
diariamente o tradutor/intérprete de libras está junto aos alunos. Por mais que esse profissional
procure manter um distanciamento, o próprio fato de conviver com as mesmas pessoas já
proporciona um vínculo, além disso, é preciso considerar que os intérpretes não são máquinas
desligáveis, pois eles se comunicam com os surdos em outros espaços e há, em muitos casos,
vínculos de amizade que se constituem e que precisam estar sob controle durante os momentos
de atuação, mas que não se apagam nem se rompem, uma vez que eles estão presentes e
constituem os tradutores/intérpretes e surdos no contexto de enunciação. De acordo com
Eduarda:
Se pensar, eu acho que sim, tu tens que estar imparcial no sentido de não interferir
na informação, mas o processo de interpretação nunca é imparcial, porque as
coisas vão passar por ti, pelo que tu sabe, e claro que, às vezes, para não interferir
na interpretação, tu usa a datilologia ou usa um português sinalizado6, palavra –
sinal, para tu te “eximir” daquela interpretação. Mas, se pensar nos estudos da
tradução e interpretação, até que ponto tu é fiel aos discursos? (Eduarda).
Na narrativa de Eduarda é possível constatar os conflitos que os tradutores/intérpretes
enfrentam durante sua atuação, buscando estratégias como o uso da datilologia e do português
sinalizado como forma de reconstituir o sentido da mensagem o mais próximo do “original”.
Contudo, conforme menciona Eduarda, não há como negar as “interferências” dos
tradutores/intérpretes na mensagem a ser transmitida.
6 Essa forma de comunicação consiste em fazer um sinal para cada palavra da língua portuguesa. Diferente de uma
tradução/interpretação, nesta última não há correspondência palavra-sinal porque se traduz o sentido da mensagem,
fazendo-se as adaptações necessárias de uma língua para outra e respeitando as diferenças que existem em ambas
as línguas e suas especificidades culturais.
7
De acordo com Martins (2009, p. 103), “a neutralidade não pode ser vista de forma
dissociada ao processo de formação social do intérprete”. Também para Sobral (2008), não há
neutralidade no trabalho de um tradutor/intérprete, ao contrário, ao traduzir um texto e/ou um
discurso, o profissional promove alterações, criando nesse processo novas relações enunciativas
que se materializam no ato da tradução. Devido a isso, o autor compara o processo de
tradução/interpretação ao de coautoria, uma vez que a mensagem original (a do autor) passa de
uma língua a outra, e, nessa passagem, se modificam as formas de comunicar, de modo a dar
sentido à mensagem (recriada).
Destaco a fala de Eduarda ao referir-se a “neutralidade”. Segundo ela, “se tu pensar
na tradução e na interpretação, elas sempre vão passar pelo que tu sabes, pelo que tu viveu, e
até pelas tuas opiniões”. Na mesma direção, Silva (2013) enfatiza que uma tradução literal,
sem nenhuma adaptação linguística (e mesmo estilística), não deixará clara a mensagem a ser
transmitida. Para ela, a neutralidade seria inviável na tradução:
Se o intérprete revestisse, verdadeiramente, a manta da neutralidade, o que é
impossível em qualquer ato comunicativo, implicaria em comprometimento com o
objetivo principal de sua presença em sala de aula, qual seja, mediar os processos de
ensino e aprendizagem dos alunos surdos (SILVA, 2013, p. 82).
Silva (2013) ainda ressalta que isso não implica pensar que o tradutor/intérprete atue,
em espaços educacionais, como professor. O que ele faz é utilizar suas competências
referenciais para adaptar o conteúdo a ser traduzido por meio de estratégias que proporcionem
o entendimento do assunto abordado. Penso que, além do exposto, é preciso considerar também
que a reconstrução de enunciados é feita por um sujeito situado em certo lugar social, que pensa,
vive, sente as coisas de seu jeito, e, portanto, está atravessado por fatores sociolinguísticos,
como também culturais e por experiências pessoais do profissional.
No Art. 3º do código consta que “o intérprete deve interpretar fielmente e com o melhor
da sua habilidade, sempre transmitindo o pensamento, a intenção e espírito do palestrante”
(QUADROS, 2004). Neste artigo, salienta-se que o profissional deveria tornar o ato tradutório
praticamente “invisível”, de modo a fazer prevalecer a mensagem “original” (aspecto que já
pontuei anteriormente). Reafirma-se, nesse documento, a crença numa certa “pureza” no ato da
tradução, que poderia ser alcançada mediante vigilância, método e treino. Também gostaria de
questionar, aqui, a noção de que seria possível “transmitir o pensamento, a intenção e o espírito
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do palestrante”, o que parece supor não apenas a transparência da língua, como meio de
comunicação, como também a crença na total tradutibilidade dos enunciados.
De acordo com Sobral (2008), o significado de fidelidade em uma tradução vem sendo
defendido, por alguns teóricos da área, como uma “essência” do texto original que deve ser
preservada em qualquer língua, ou seja, esses profissionais acreditam que, para ser fiel, seria
preciso manter o sentido “original” da mensagem, sem alterações, traduzindo termo a termo e
mantendo certa coerência com a cultura de partida. Ele argumenta que, isto não é possível, e
defende que ser fiel é traduzir um texto e/ou mensagem considerando os sentidos
correspondentes entre uma língua e outra e realizando as adaptações linguísticas e culturais
necessárias na reconstrução do texto de partida.
Entende-se, assim, que os discursos traduzidos não são cópias fiéis do original, não
havendo como transpor um conteúdo de uma língua para outra de forma compreensível sem
considerar os fatores culturais presentes nessas relações. Além das diferenças linguísticas e
culturais presentes nesse processo há também a presença do tradutor, que não é neutra, pelo
contrário, uma vez que suas experiências também estarão presentes nesse processo. Para
Débora:
Na fidelidade das coisas que estão sendo ditas eu acho que tem suas ressalvas, e não
é só com a Libras, qualquer língua, ela tem uma estrutura própria, e tu não consegue
passar cem por cento do significado de tudo que foi dito em uma língua para outra.
Às vezes tu precisa pegar o essencial... tu precisa pegar o que o “outro” quis dizer...
depende da nossa interpretação (Débora).
O que implicaria, então, “ser fiel” em um ato de tradução/interpretação? Não pretendo
oferecer respostas a uma questão como essa, com tamanha complexidade, entretanto, penso
que, ao invés de buscar uma suposta fidelidade – num sentido que não poderia ser alcançado –
poderíamos afirmar que o trabalho do tradutor/intérprete de Língua Brasileira de Sinais deve se
sustentar em escolhas lexicais necessárias para a adequação da mensagem ao contexto de outra
língua, considerando o público a que se destina a tradução/interpretação.
O último destaque que gostaria de fazer (sobre o capítulo I, do código de ética) diz
respeito ao disposto no Art. 5º, que afirma que: “o intérprete deve adotar uma conduta adequada
de se vestir sem adereços, mantendo a dignidade da profissão e não chamando atenção indevida
sobre si mesmo, durante o exercício da sua função” (QUADROS, 2004). Há, no código de 2004,
9
prescrições sobre as formas de vestir e adornar o corpo que, nos dias atuais, soam bem mais
como intromissões no plano individual, no âmbito da vontade, das preferências e dos estilos
dos sujeitos. A prescrição diz respeito a um entendimento de que cores neutras favoreceriam a
compreensão da mensagem sinalizada pelo receptor, já que a língua de sinais é visual. Para
além desse aspecto, pode-se pensar em razões relacionadas a certa moralização do profissional
– tal como se processou a moralização do corpo do professor. Portanto, essa orientação faria
parte do “pacote” da boa conduta, de conduzir esse corpo que é veículo, que se exime de
expressar opiniões e preferências, de exibir marcas. Ou seja, um corpo que se contém para fazer
fluir a mensagem.
O capítulo 2 do código de ética trata das relações com o contratante do serviço de
tradução, dispondo em seu Art. 6º que: “o intérprete deve ser remunerado por serviços prestados
e se dispor a providenciar serviços de interpretação, em situações onde fundos não são
possíveis” (QUADROS, 2004). Chamo atenção para a ambiguidade desta afirmação – ao
mesmo tempo em que ela permite pensar no reconhecimento profissional, afirma a atuação dos
tradutores/intérpretes como voluntária, reforçando, assim, a concepção assistencialista que
marca historicamente essa profissão.
Também no capítulo 3, Art. 12, este aspecto é reforçado quando afirma: “o intérprete
deve esforçar-se para reconhecer os vários tipos de assistência ao surdo e fazer o melhor para
atender as suas necessidades particulares” (QUADROS, 2004). Além de reforçar uma atitude
assistencialista, o documento parece atribuir aos tradutores/intérpretes uma responsabilidade
que vai além de sua função. Reconhecer os vários tipos de assistência e atender as necessidades
dos surdos é uma responsabilidade das instâncias governamentais e envolve a criação de
programas e políticas que contemplem as especificidades dos sujeitos surdos, inclusive quanto
à acessibilidade linguística. Nesse sentido, Eduarda enfatiza: “O código de ética deveria ser
discutido amplamente... deveria contemplar o direito do intérprete de condições de trabalho.
Eu acho que a questão da dupla deveria estar ali garantida. (Eduarda)”.
As considerações de Eduarda são extremamente pertinentes para refletirmos sobre o
processo de profissionalização dos tradutores/intérpretes de língua de sinais, uma vez que o
código garante os direitos à acessibilidade linguística dos surdos, mas não se ocupa diretamente
com a profissionalização dos tradutores/intérpretes. Ele respalda essa atuação, mas descreve o
10
profissional tradutor/intérprete de língua de sinais ora como um “não humano”, alguém neutro
e imparcial – como se essa condição fosse possível –, e, por vezes, como alguém com viés
assistencialista que deve “providenciar atendimento ao surdo” (QUADROS, 2004).
Para Nantes (2012) e Silva (2013), é necessária uma reformulação do código de ética
não apenas para contemplar as mudanças ocorridas na profissão, como também para incluir
problemáticas que ficaram “de fora”. Também se pode indagar, nesse contexto, se a afirmação
da necessidade de atualização desse código não acomodaria uma vontade de controle sobre a
ação desses profissionais – uma vez que o que está de fora deveria ser incluído é porque se
considera que este documento tenha relevância.
É importante salientar que existem outras proposições de código que disputam esse
lugar de “verdade” sobre como deveriam atuar os tradutores/intérpretes de língua de sinais. Um
exemplo é o Código de Conduta e Ética, da FEBRAPILS, mencionado anteriormente. Tal
documento apresenta orientações mais voltadas às especificidades da tradução/interpretação da
Língua Brasileira de Sinais. Apesar de mais atual, este código não possui o prestígio e a
aceitação do anterior, que continua sendo reconhecido e utilizado como uma referência para a
atuação dos tradutores/intérpretes de língua de sinais em todo o país e é apresentado em muitos
cursos de formação, como uma espécie de manual a ser seguido.
Cabe questionar o porquê esse código de ética, lançado em 2004, permanece com tanta
credibilidade até os dias atuais. Acredito que a capacidade de fornecer respostas é uma condição
que coloca esse documento em uma posição de destaque, pois ele diz o que pode e o que não
pode ser realizado pelo tradutor/intérprete, servindo como um regulador de conduta. Considero
importante destacar que minha análise sobre ele não é no sentido de julgá-lo como algo positivo
ou negativo, pelo contrário, busquei compreender seu potencial em permanecer, por tantos anos,
como uma referência nesta área, principalmente quanto à constituição e manutenção de
verdades sobre esses profissionais. Durante minha atuação, muitas vezes, recorri – e ainda
recorro – a este código como um respaldo, sentindo as mesmas necessidades relacionadas à
profissão como consta nos relatos das tradutoras/intérpretes de libras entrevistadas.
Observei nas narrativas das profissionais entrevistadas que embora existam algumas
reivindicações dos profissionais quanto à inserção neste documento de questões voltadas para
a tradução e interpretação e para as condições de trabalho, sempre que é necessário pautar os
11
limites de atuação e esclarecer sobre questões pertinentes ao desempenho profissional, esse
documento é utilizado. Isso fica evidente quando Camila menciona: “Muitas vezes utilizei o
código de ética para dizer que eu sou profissional! Quando o professor me questiona: Que
garantia eu tenho de que tu não vais dar cola? Eu digo: tá aqui no código de ética”. Dessa
forma, os sentidos atribuídos à profissão pelo código de ética são negociados pelas
tradutoras/intérpretes, pois ele não é assumido como uma ferramenta de trabalho, mas como
um respaldo à profissão e atuação, principalmente quando sua conduta é questionada e posta
sob suspeita.
Os aspectos destacados e analisados neste artigo tem relação com as práticas
representacionais. Tomaz Tadeu da Silva (2014) afirma que a representação diz respeito aos
sistemas de significação e de atribuição de sentido: “Como tal, a representação é um sistema
linguístico e cultural: arbitrário, indeterminado e estreitamente ligado a relações de poder”
(SILVA, 2014, p. 91). De acordo com o autor, é por meio da representação que a identidade e
a diferença adquirem sentido.
Os resultados encontrados na pesquisa permitem entender que o código de ética
descreve as atribuições desses profissionais e, ainda, prescreve condutas voltadas para a
regulação de seu corpo, conformando-o ora como veículo de comunicação, ora como parte do
processo comunicacional e da produção de significados no uso das línguas. Observa-se,
também, a permanência de sentidos da profissão ligados ao voluntariado, que a configuram com
certo caráter assistencialista.
As pesquisas centradas sobre o tema indicam que há representações convergentes e,
em outros casos, divergentes, sobre o código de ética, concernentes às lutas pela
profissionalização e aos sentidos da atuação. Já a análise das narrativas de tradutoras/intérpretes
de língua de sinais mostra que os sentidos atribuídos à profissão pelo código de ética são
negociados, e que este código tem sido assumido como uma ferramenta de trabalho a fim de
respaldar a profissão, principalmente quando a conduta destes profissionais é questionada e
posta sob suspeita.
Além disso, observa-se que os significados produzidos vão além da prescrição de
condutas, eles envolvem aspectos subjetivos, colaborando para constituir perfis profissionais,
embora a leitura e o uso deste código sejam negociados, ora aderindo mais, ora menos a tais
12
prescrições. Nesse sentido, as tentativas de padronizar uma determinada forma de atuar como
tradutor/intérprete de Libras escapam, vazam e, na prática, constituem-se a partir da
imprevisibilidade e instabilidade dos acontecimentos.
Referências
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Brasileira de Educação, nº19, p. 20-28. Jan/Fev/Mar/Abr, 2002.
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(Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Católica
de Campinas, Campinas, 2009.
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(Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal da Grande Dourados,
Dourados, 2012.
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QUADROS, Ronice Muller de. O tradutor e intérprete de língua brasileira de sinais e
língua portuguesa. Secretaria de Educação Especial; Programa Nacional de Apoio à Educação
de Surdos. Brasília: MEC; SEESP, 2004.
SILVA, Diná Souza da. A atuação do intérprete de libras em uma instituição de ensino
superior. 2013. 160f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação,
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SOBRAL, Adail. Dizer o “mesmo” a outros: Ensaios sobre tradução. São Paulo: SBS, 2008.
SUZANA, Elisama Rode Boeira. O Tradutor/Intérprete de Libras em contextos de inclusão
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(Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, Porto Alegre, 2014.