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COLEÇÕES, REPRESENTAÇÕES E REGISTROS: DIFERENTES FORMAS DE SER “CONTEMPORÂNEO”. Emerson Dionisio Gomes de Oliveira (Docente IdA/UnB) [email protected] Silmara Küster de Paula Carvalho (Docente FCI/UnB) [email protected] Apoio: CNPq RESUMO A constituição de um acervo dedicado às artes visuais está marcada pela tensão entre as políticas patrimoniais, as categoriais classificatórias da história da arte e da museologia e as práticas artísticas. A história da coleção permanente do Museu de Arte de Ribeirão Preto explicita as tensões entre as instituições e as relações de poder, oriundas dos sujeitos históricos que constituem a negociação formativa de tal coleção. Dividido em segmentos, o acervo do museu paulista configura-se dentro de uma política patrimonial enciclopédica e busca assegurar modelos culturais de diferentes linguagens e vocabulários artísticos. Para além das narrativas e da visibilidade oficiais constituídas pela instituição, nossa pesquisa visa problematizar as políticas de seleção, colecionamento e exibição apresentadas pelo museu desde 1992. Para tanto, nos apoiamos na documentação museológica sob responsabilidade da instituição: atas, catálogos, inventários, protocolos e mídias de divulgação. Tal documentação nos permitiu problematizar duas dimensões do acervo: aquela voltada para a hierarquia entre linguagens, gêneros e suportes e aquela dedicada a convencional segmentação da crítica e da história da arte. O cruzamento dessas dimensões permitiu a ampliação do conceito de “arte contemporânea”. Conceito caro a visibilidade da instituição e as instruções de seu colecionamento. PALAVRAS-CHAVE: Acervo. Artes Visuais. História da Arte. Museologia. Museus. Tornou-se corriqueiro exigir das instituições museológicas públicas brasileiras, especialmente daquelas dedicadas à salvaguarda das artes visuais, a apresentação explícita de suas políticas de acessibilidade, de seus regimes de visibilidade e suas responsabilidades diante das comunidades que atendem. Até recentemente, tais exigências encontraram centenas de museus despreparados para responder aos questionamentos basais das comunidades de especialistas e do público geral. A precariedade institucional de muitos dos museus de arte tem raízes históricas complexas, mas que são facilmente detectáveis pela tradição cultural que, subestimada o lugar social do museu na sociedade, independente dos agentes políticos envolvidos (incluímos os especialistas: historiadores, historiadores da arte, conservadores, educadores e gestores públicos de modo geral), e pela incipiência do campo museológico brasileiro, até recentemente tímido e pouco articulado. Os motivos desse despreparo não é objeto de nossa

COLEÇÕES, REPRESENTAÇÕES E REGISTROS: DIFERENTES

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COLEÇÕES, REPRESENTAÇÕES E REGISTROS: DIFERENTES FORMAS DE

SER “CONTEMPORÂNEO”.

Emerson Dionisio Gomes de Oliveira (Docente – IdA/UnB)

[email protected]

Silmara Küster de Paula Carvalho – (Docente – FCI/UnB)

[email protected]

Apoio: CNPq

RESUMO

A constituição de um acervo dedicado às artes visuais está marcada pela tensão entre as

políticas patrimoniais, as categoriais classificatórias da história da arte e da museologia e as

práticas artísticas. A história da coleção permanente do Museu de Arte de Ribeirão Preto

explicita as tensões entre as instituições e as relações de poder, oriundas dos sujeitos

históricos que constituem a negociação formativa de tal coleção. Dividido em segmentos, o

acervo do museu paulista configura-se dentro de uma política patrimonial enciclopédica e

busca assegurar modelos culturais de diferentes linguagens e vocabulários artísticos. Para

além das narrativas e da visibilidade oficiais constituídas pela instituição, nossa pesquisa visa

problematizar as políticas de seleção, colecionamento e exibição apresentadas pelo museu

desde 1992. Para tanto, nos apoiamos na documentação museológica sob responsabilidade da

instituição: atas, catálogos, inventários, protocolos e mídias de divulgação. Tal documentação

nos permitiu problematizar duas dimensões do acervo: aquela voltada para a hierarquia entre

linguagens, gêneros e suportes e aquela dedicada a convencional segmentação da crítica e da

história da arte. O cruzamento dessas dimensões permitiu a ampliação do conceito de “arte

contemporânea”. Conceito caro a visibilidade da instituição e as instruções de seu

colecionamento.

PALAVRAS-CHAVE: Acervo. Artes Visuais. História da Arte. Museologia. Museus.

Tornou-se corriqueiro exigir das instituições museológicas públicas brasileiras,

especialmente daquelas dedicadas à salvaguarda das artes visuais, a apresentação explícita de

suas políticas de acessibilidade, de seus regimes de visibilidade e suas responsabilidades

diante das comunidades que atendem. Até recentemente, tais exigências encontraram centenas

de museus despreparados para responder aos questionamentos basais das comunidades de

especialistas e do público geral.

A precariedade institucional de muitos dos museus de arte tem raízes históricas

complexas, mas que são facilmente detectáveis pela tradição cultural que, subestimada o lugar

social do museu na sociedade, independente dos agentes políticos envolvidos (incluímos os

especialistas: historiadores, historiadores da arte, conservadores, educadores e gestores

públicos de modo geral), e pela incipiência do campo museológico brasileiro, até

recentemente tímido e pouco articulado. Os motivos desse despreparo não é objeto de nossa

pesquisa, mas sim, o modo como um museu particular respondeu aos questionamentos

supramencionados por meio da valorização de seu acervo. E mais especificamente, como o

Museu de Arte de Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, definiu como prioridade de seu

regime de visibilidade a constituição de coleções díspares. Regime que elegeu, dentre as

diferentes coleções, a instituição da arte contemporânea como elemento primeiro de suas

narrativas historiadoras e curatoriais 1. Assim feito, o museu deparou-se com questões cruciais

para os historiadores e conservadores na atualidade: como estabelecer um elo entre a obra-

processo, típica da arte contemporânea, e os procedimentos do arquivo museológico (registro,

documentação, narrativa e recuperação).

Para entrar nesse complexo problema que liga a questão da visibilidade política de

uma instituição voltada às artes visuais com o modo como está mesma instituição

“documenta” sua história, por meio daquilo que se compromete guardar e defender, algumas

aproximações preliminares são necessárias. Primeiro, esclarecemos como surgiu o museu e

seu acervo, de modo a conferir ao problema uma qualidade particular, evitando-se assim as

ilações generalizadoras. Depois, tentaremos compreender o que o museu indicia como arte

contemporânea e, por fim, de que parte dessa modalidade estética o problema do registro e da

documentação se impõem dentro e fora na instituição estudada.

Um museu de artistas

A criação do museu de Ribeirão Preto é relativamente recente na história museal

brasileira. Inaugurado em 1992 pela prefeitura da cidade, a instituição ocupou o edifício

finalizado em 1908, originalmente sede da Sociedade Recriativa de Ribeirão Preto, graças a

um longo trabalho realizado pelos artistas locais. Como ocorreu com outras instituições

museológicas (OLIVEIRA, 2010), o museu fora instituído para acolher o acervo pertencente

ao governo municipal. Obras que vinham majoritariamente de doações de artistas, aquisições

pontuais, prêmios-aquisição dos salões de arte da cidade e coleções “fechadas”, especialmente

doadas para a prefeitura.

Um elo crucial entre a história do acervo municipal antes e depois da criação do

museu é o Salão de Arte de Ribeirão Preto, instituído em 1975. A exposição-evento é a

instituição artística mais antiga da cidade e fora absorvida pelo museu, que o transformou

1 O termo “arte contemporânea” será grafado em itálico neste trabalho para indicar ao leitor que se trata para os

autores de uma instituição-conceito delineada historicamente, que sofre mutações desde a transformação do

Museu de Arte Moderna de Boston em Instituto de Arte Contemporânea em 1946 (LOURENÇO, 2013).

Instituição que opera dentro de circuito próprio e que conta com inúmeros agentes culturais para sua

manutenção.

num importante intermediário entre cena artística local e o circuito da arte contemporânea

nacional. Na mesma medida, a história do próprio salão institui para o museu uma genealogia

que remonta ao final da Segunda Guerra Mundial, segundo as narrativas autorizadas pelo

MARP, pois o salão era o resultado de décadas de anseios da classe artística local, cujo marco

selecionado fora a criação da Escola de Artes Plásticas, em 1951 (FREITAS, 2000). Antes do

salão oficial, outras duas iniciativas evidenciavam os anseios dos artistas fixados na cidade: o

I Salão de Arte Universitário e o Salão de Arte Amador no espaço da Galeria de Artes

Plásticas, em 1967. Foram tentativas localizadas importantes, que espelharam o desejo pela

constituição de um evento mais perene e de instituições que o sustentasse.

Logo depois da criação do salão, o artista italiano Bassano Vaccarini indicava: “O que

semeamos há 17 anos estamos começando a colher agora, e acho que estamos na safra”

(FREITAS, 2000, p. 9). A safra seria duradoura, visto que de um salão de evidente impacto

regional, no final dos anos 1990, após sua assimilação pelo museu, transformou-se num

evento de relevância nacional que continua, desde então, a atrair jovens artistas dedicados à

gramática estética da arte contemporânea e, de especial valor para nossa pesquisa; garantiu

para o acervo do museu a assimilação da produção artística hodierna.

Diante da documentação que confere publicidade ao evento-exposição, se não é a fatia

mais volumosa do acervo, a coleção, denominada pelo museu de “Núcleo SARP - Salão de

Arte de Ribeirão Preto” é, certamente, aquela que ganhou, ao longo dos anos, maior

visibilidade. Há outras cinco coleções que compõem o acervo e que explicitam as políticas de

arquivamento da única instituição pública de memória dedicada às artes visuais na cidade.

O “Núcleo Histórico do acervo MARP” possui aproximadamente 210 obras,

predominantemente provenientes da Casa da Cultura da cidade, que foi inaugurada em 1977 2.

A base dessa coleção, identificada como “histórica” está nos objetos bidimensionais, cujas

técnicas tradicionais da pintura, do desenho e da gravura predominam largamente. São obras

datadas entre o início do século 20 até os anos de 1990, ressaltada a informação de que muitas

obras não foram datadas pelos autores. Sendo assim, na ausência de pesquisa sistemática, o

ano de produção da parcela das obras permanece desconhecido.

Nesta fatia do acervo, muitas obras podem ser identificadas no que tradicionalmente se

denominou como de estilo “acadêmico”. A saber: apreço pelo desenho figurativo de viés

naturalista; composição e volumes detalhados; expressiva presença de temas tradicionais

2 As informações colhidas nos arquivos documentais do museu indicam obras assimiladas entre a criação do

museu (1992) até o ano de 2011, sendo assim, as obras que foram introduzidas após esta data não constam de

nossa contabilidade.

como paisagens e retratos. Nesse mesmo sentido, as obras da segunda metade do século 20

presentes neste núcleo apresentam uma graduação estética heterogênea com predominância

dos diferentes vocabulários vanguardistas do período anterior. Além disso, surpreende a

existência da obra de Hudnilson Júnior, reconhecido artista experimental nos anos de 1970,

que “perturba” uma possível interpretação linear da coleção.

Se o núcleo “histórico” da coleção é marcado pela ausência sistemática de

informações, pois surpreende o número de obras com autores desconhecidos, sem datação ou

técnica não detalhada, o mesmo acontece com o “Núcleo MARP”. Doações e assimilações de

diferentes origens, com obras de distintos períodos e vocabulários estéticos dos séculos 20 e

21, reunidas para a criação do museu ou absorvidas posteriormente. Os bidimensionais

permanecem quantitativamente relevantes. Mas o núcleo não apenas contém mais fotografias,

como amplia o número de técnicas compreendidas como gravura. Dentro do núcleo, destaca-

se a doação de 92 gravuras de Maria Cecília Guarnieri, na ocasião das comemorações de 15

anos do museu. Mesmo diante de suportes tradicionais, trata-se de uma coleção mais próxima

do vocabulário contemporâneo do final do século passado, com a presença de nomes cruciais

da consolidação das artes visuais na cidade, como Francisco Amêndola, Fúlvia Gonçalves,

Odilla Mestriner, Adda Pietro, Dante Velloni, e o já citado, Bassano Vaccarini. No total, o

núcleo possui cerca 280 obras catalogadas.

Dois núcleos do acervo do museu são dedicados a coleções biográficas doadas para o

museu e recebem o nome dos artistas criadores: Leonello Berti e Pedro Manuel-Gismondi.

Trata-se de duas coleções biográficas que não reúnem apenas peças de reconhecido valor

artístico, mas também objetos de trabalho, livros e documentos de diferentes características. A

família Berti realizou a doação de pouco mais seis dezenas de trabalhos do artista em 1979,

que se juntaram a objetos pertencentes a Berti, posteriormente, totalizando quase 74 peças na

atualidade. O núcleo dedicado a Pedro Manuel-Gismondi é composto de 169 obras doadas

entre 2000 e 2007. O MARP realizou algumas mostras para celebrar a carreira deste

importante crítico, artista e gestor. Em 1996, produziu uma exposição individual, com

acentuada inclinação didática, que abriu caminho para reunião de farta documentação sobre

Manuel-Gismondi e culminaria em outra mostra, “Pedro Caminada Manuel-Gismondi no

MARP”, em 1998, pouco antes de sua morte no ano seguinte. Tamanha aproximação do

museu com a memória do artista terminou por construir um ambiente político que levou o

MARP a adotá-lo como nome oficial em 2000.

O Museu de Arte de Ribeirão Preto “Pedro Manuel-Gismondi” expôs 252 gravuras do

artista nas comemorações de dez anos da instituição, em 2002. A mostra reuniu tiragens “que

servirão como um importante material didático para o Museu” 3, e pretendia possibilitar à

pesquisa sistemática do processo de trabalho do artista. Tal material acompanhara a doação de

mais documentos pela família sobre o artista que acabaram legando ao MARP a

responsabilidade de garantir a preservação de sua memória pública. Desta forma, tanto a

coleção de obras quanto a documentação arquivística sobre Manuel-Gismondi formam um

conjunto documental complementar raro para o resto do acervo.

O “Núcleo SABBART” talvez seja fruto de uma das mais curiosas inversões da cadeia

linear da história da arte canônica. O núcleo origina-se nas premiações e doações advindas do

Salão Brasileiro de Belas Artes criado em 1992. Numa inversão incomum, o SABBART

nascia como um novo evento empenhado na manutenção da arte de estilo “acadêmico”. Os

artistas defensores do salão argumentavam que o SARP não admitia e assimilava suas obras,

dando preferência à produção contemporânea. Totalizando nos registros do museu 58 peças,

as obras premiadas pelos SABBARTs foram enviadas ao acervo do MARP, e a instituição

assumiu a produção do evento desde sua segunda edição, o que pode explicar o

desaparecimento de cinco obras produzidas e premiadas nos dois primeiros salões.

O núcleo do SARP hoje totaliza aproximadamente 337. O núcleo mais coeso e

volumoso do museu. Tendo como perspectiva que as obras legadas pelo SARP vieram de

premiações e doações espontâneas e estimuladas é importante entender com brevidade a

história da exposição-evento para compreender sua herança material para o acervo do museu.

O salão na segunda metade dos anos de 1970 nascia com uma contradição: procurava

definir uma fronteira estética que eliminasse a produção chamada “acadêmica”, mas ao

mesmo tempo sem a admissão de linguagens mais experimentais que pululavam nos grandes

centros na época. Na lei de criação do SARP havia apenas a possibilidade de selecionar,

expor, julgar, premiar e assimilar quatro categorias: Pintura, Escultura, Desenho e Gravura.

Numa década em que o cenário brasileiro conheceu as mais diferentes formas de

experimentações quanto aos suportes e as linguagens da arte, o SARP apresentava-se

convencional em demasia. Nesses primeiros anos, embora tenhamos exceções indicativas, a

maioria das obras selecionadas e premiadas esteve dentro das tradicionais categorias de

pintura, escultura e desenho. Mesmo as gravuras (e fotografias), foram pouco representativas.

A mudança ocorreu em 1987, quando o salão premiou a obra “Vídeo-Arte 9”, de José Ricardo

Romero, que recebeu o Grande Prêmio Especial do Júri. Três anos depois, a lei que impedia

os ingressos de suportes “mais contemporâneos” foi alterada, criando as secções de

3 MUSEU DE ARTE DE RIBEIRÃO PRETO. Histórico do MARP. Disponível em:

<http://www.ribeiraopreto. sp.gov.br/scultura/marp/I14historico.htm>. Acesso em: 13 out. 2013.

instalação, de vídeo, performance e, por fim, tardiamente, de fotografia. Mesmo sob críticas,

o SARP, desde então, abandonou sua trajetória voltada para a produção local e a suportes

tradicionais. Tadeu Chiarelli tipifica assim o momento: “poderia ser dito que foi entre sua

décima terceira e décima sexta edições, que ele buscou desvencilhar-se de qualquer ranço

supostamente provinciano, para tentar enquadrar-se no circuito mais avançado da arte

contemporânea brasileira” (CHIARELLI, 2000). Mesmo em seus limites geográficos e

financeiros, no que tange à visibilidade, o SARP continuou nos últimos quinze anos a ser um

instrumento eficaz de divulgação do museu e a fonte mais eficiente de captação e aquisição de

obras de arte dentro dos códigos da arte contemporânea.

A arte de agora muda todo o dia

Trata-se de um dos pontos mais difíceis de determinar na atualidade: o que é a arte

contemporânea. Suas características datam do início dos anos de 1960. Um amálgama de

recorte histórico, temas recorrentes, ampliação técnica, indeterminação estética e recusa do

estatuto artístico convencional é o que identificamos como aquela arte produzida após a

produção artística modernista. Estranhamente, no catálogo do 8º SABBART, o documento

gerado pelo júri expôs o problema criado por uma genealogia evolucionista da arte, e, por

conseguinte, com os limites entre a arte contemporânea e outras tipologias:

Historicamente observa-se por parte dos artistas o surgimento do ranço pela arte

moderna. Depois foi a vez dos modernistas responderem com preconceito, numa

briga em que não há vencedores, mas que ainda separa os artistas – agora divididos

entre acadêmicos e contemporâneos. Felizmente, o Salão Brasileiro de Belas-Artes

de Ribeirão Preto põe termo a esta discussão, mostrando o quanto é tênue a linha

que sapara estas duas tendências e que existe apenas uma categoria: Arte Autêntica;

ou como diria Mário de Andrade, a somatória do domínio técnico, do virtuosismo e

da escolha pessoal do artista 4.

Embora a intenção dos jurados tenha seus méritos, o salão não colocou fim a essa

discussão, simplesmente porque a busca pela arte autêntica é, de fato, a aproximação de uma

produção artística aceita como contemporânea em escala global, cujo circuito ultrapassa as

pretensões e ambições de instituições museológicas “regionais”. Um ponto no trecho citado

acima tem suscitado questionamentos para os gestores dos museus: quem são os

contemporâneos? Qual produção adéqua-se à contemporaneidade?

4 MUSEU DE ARTE DE RIBEIRÃO PRETO. Catálogo do XIII SABBART. Ribeirão Preto: SMC, 2004. p. 3.

Texto assinado por Antonieta Tordino, Cirton Genaro e Luís Castañón.

O que deixa o termo arte contemporânea atraente é justamente sua imprecisão quando

solicitamos características historicamente pautáveis e, paradoxalmente, sua exatidão para

designar quais objetos, meios e processos pertencem a tal tipologia artística. Como fenômeno

cultural particular, a arte contemporânea tem navegado entre a crença de que sua matriz

geradora está perpetuamente ligada à experiência do presente, senão a do devir, e,

simultaneamente, alimenta-se de inúmeras narrativas históricas 5. Lembremos que Jean Clair

afirma que uma definição desta produção para os gestores dos museus voltados à arte

contemporânea é difícil justamente porque reside na interpretação da própria finalidade das

instituições, pois “o museu de arte contemporânea ocupa-se, por definição, da mudança da

arte (...). Segue-se, assim, inevitavelmente, que o museu de arte contemporânea perturba de

forma contínua, um sistema à procura de equilíbrio” (MILLET, 1997, p. 14).

Essa perturbação nada mais é que um desajuste entre a representação de uma

contemporaneidade marcada por fluidez e voracidade, fragmentação e multiplicidade, que vai

à contramão de qualquer tentativa de categorização, e a própria obsessão memorial, ávida pela

demarcação de identidade, pela invocação de tradições e tipologias. Instituições, como

MARP, identificam no colecionamento da arte contemporânea um modo de visibilidade

positiva justamente por sua capacidade de circulação para além de uma rede de identidades

locais definidas. Trata-se de uma produção de fácil inserção global que aproxima museus

pequenos de grandes instituições internacionais.

Do mesmo modo, museus locais possuem responsabilidades mais amplas que uma

vinculação automática ao circuito internacional da arte contemporânea. Uma breve

observação no que o museu ribeirão-pretano coleciona, compreenderemos que a instituição

cumpriu a meta primeira de sua criação: salvaguardar a produção artística pública do

município, independente das tipologias e classificação da crítica e da história da arte atuais.

O problema da reapresentação

Se partirmos da premissa de que obras de arte, independente de sua materialidade ou

vocabulário são produzidas para serem apresentadas e fruídas por um público amplo ou

restrito, as instituições dedicadas a salvaguardá-las são igualmente responsáveis pelo como

elas serão continuamente reapresentadas – mesmo contrariando a intencionalidade primeira de

seus criadores. Diante da premissa, temos uma complexa operação que incluí discursos de

5 “Nunca a arte foi tão reflexiva, nunca a história da arte foi tão constitutiva da própria arte – o que faz pensar

numa atualização do maneirismo – e poucas vezes a consciência de seu percurso foi tão paralisante”; cf.

NAVES, R. O vento e o moinho: ensaios sobre arte moderna e contemporânea. São Paulo: Companhia das

Letras, 2007. p. 26.

sustentação da história da arte, os processos de composição do sistema expositivo, a

capacidade conservadora e restauradora de diferentes suportes materiais, os procedimentos

curatoriais selecionadores e a gestão de políticas de visibilidade.

Essa complexa operação explicita-se diante das diferentes propostas artísticas

“contemporâneas”, que utilizam parâmetros peculiares para a criação de obras que desafiam

os modelos de institucionalização vigentes. A saber: conservação, registro e reapresentação. O

conflito entre a produção artística contemporânea e as narrativas de “arquivamento” não é

recente. Nos últimos 50 anos, um elenco formidável de obras veio colocar em xeque os

sistemas de registro e de documentação, os modelos de circulação e de interação, os discursos

expositivos e, em nosso caso, as narrativas historiográficas (OLIVEIRA, 2012). Procuramos

problematizar a questão de como historiadores da arte e profissionais dedicados à gestão de

coleções museológicas vem enfrentando um desafio em especial: a reapresentação das obras,

a priori produzidas em condições específicas, orientadas por uma “poética da obsolescência”,

em espaços museológicos convencionais.

Ou seja, para além do que venha ser propriamente a arte contemporânea, as

instituições museológicas precisam lidar com obras contemporâneas que não foram

necessariamente criadas para sobreviver a uma primeira exposição-ação. Diante de uma

dimensão privilegiada nesta pesquisa, este também é um problema para o MARP. Dimensão

voltada à capacidade do museu em produzir uma documentação museológica que valide e

subsidie a conservação e a reapresentação de obras tipificadas segundo a terminologia da

crítica em arte, como: performances; happenings; instalações; intervenções públicas; e as

novas tecnologias (media art, digital, cibernética, web-art, etc.), por exemplo.

Neste ponto, mais uma suposição faz-se necessária: o registro documental apurado é

essencial para a recuperação de uma obra de arte enquadrada nas tipologias

supramencionadas. O MARP não se encontra numa situação confortável nessa questão.

Embora mantenha um arquivo de projetos enviados pelos artistas no momento em que são

selecionados para o SARP, tais registros não obedecem a uma uniformidade informacional

que garanta ao museu condições de reapresentar as obras assimiladas por seu acervo. Do

mesmo modo, quando as obras não pertencem ao núcleo dedicado ao salão, as informações

tornam-se raras e dependentes de uma tradição oral que fixa algumas estratégias de

montagem.

Algumas obras do acervo merecem atenção no que concerne ao problema de registro/

obsolescência/ reapresentação. Além do vídeo de Velloni e Denis Santos, o MARP possui,

ainda, outros nove trabalhos em vídeo, assimilados de 1986 a 2006 6, além de “Projeto

Aurora”, de Silvia Velludo, vídeo-instalação, de 2002. São 17 instalações que demandam

projetos de ocupação espacial 7. Há ainda obras que podem ser consideradas como isoladas,

como “Passagens”, de Luciana Ohira e Sérgio Bonilha (2006, intervenção urbana), “O

paredão da liberdade”, de Valnei Andrade (2002, intervenção), “Composição 1” e

“Composição 6”, de Renata de Andrade (2006, intervenções). Há, nos registros até 2011,

apenas duas obras, que descritas como “ação”, podem ocupar o poroso lugar de performance/

happening: “Comestível”, de Rosa Esteves (2004/ 2007), e “Sem título”, de Renata Vallada e

Ivana Paim (2001). Ou seja, pouco mais de três dezenas de obras podem ser classificadas

dentro da “poética do efêmero”. Seja por sua obsolescência tecnológica, como é o caso dos

vídeos que necessitam de constante “tradução” para meios mais atuais, seja pelas obras

enquadradas dentro do paradigma do “endereço”, lembrado por Poinsot (2012), ou seja, obras

que só se realizam em espaços-tempo específicos e/ ou calculados.

6 As aquisições nos dois últimos SARPs não constam das listas de tombamento. Desta forma, o presente

levantamento incide sobre obras assimiladas até o início de 2012. Os vídeos são: “Vídeo Arte”, de José Ricardo

Romero (1986, VHS); “Estigmas”, de Del Pilar Sallum (1996, vídeo); “Não há ninguém aqui”, de Wagner

Morales (2001, vídeo); “501 auto-retrato”, de Fernando Velázquez (2006, vídeo); “Piano azul”, “A baleia” e

“Nuvem”, de Maria Mattos (2010-2011, vídeo); “Sem título”, de André Terayama (2011, vídeo); “Sem título”,

de Cordeiro de Sá (2002, vídeo) e, “Transeuntes”, de Pazé (2002, vídeo). 7 São alas: “Sem título”, de Margot Delgado (1990, instalação); “Sem título”, de Marta Strambi (1994,

instalação); “Trans 2”, de Patrícia Franco (1998, instalação); “Sem título”, de Guilherme Machado (1999,

instalação); “Retratos falado”, de José Vilmar (2000, instalação); “Sem título”, de Felipe Cohen (2001,

instalação em três partes); “Estado de alerta”, de José Roberto Shwafaty (2006, instalação); “Varal”, de Mariane

Abakerli (2007, instalação); “Carta Branca”, de Reginaldo Pereira (2007, instalação); “Projeto de instalação”, de

Vera Martins (1994, projeto de instalação); “Bagagens”, de Daniela Ferraz (1999, instalação); “Coleções

primeiros passos”, de Cleido Vasconcelos (2000, instalação); “Do mel ao fel II”, de Dante Velloni (2000,

instalação); “Vento”, de Silvia Velludo (2000, instalação) e, “Corpos a prova”, de Liene Bosque (2006,

instalação); “Proposta para ocupação mínimo/ máxima do espaço #2”, de Luciana Ohira e Sérgio Bonilha (2007,

instalação) e, “4,5 metros horizontal”, de Túlio Pinto (2009, instalação).

Fig.1. Túlio Pinto, “4,5 metro horizontal”, 2009, madeira e espelho, 100x100x225 cm, acervo MARP. Fonte:

Museu de Arte de Ribeirão Preto (2010).

Evidentemente, o problema é complexo. A classificação encontrada na documentação

museológica é, por vezes, incerta. Menos pelo cuidado na constituição do registro que pela

própria natureza da obra. Tomemos como exemplo as obras premiadas e assimiladas de Túlio

Pinto, no 35º SARP, em 2010. “4,5 metro horizontal” é uma obra em madeira e espelho, que

ocupa o espaço de 100 x 100 x 225 cm (fig.1). Embora as dimensões do trabalho sejam

precisas, a ocupação do espaço da madeira em relação ao espelho, ao solo e a parede

necessitam de demarcações indicativas para sua reapresentação. Essa dependência do espaço

é uma das características consensuais de que “4,5 metro horizontal” é uma instalação, mas na

documentação do museu isso não é indicado (BISHOP, 2005).

Já a outra obra assimilada de Pinto, “Situação de canto”, de 2010, pode ser inserida no

problema na fronteira entre “escultura” e “instalação” (fig.2). O trabalho é composto de

granito e vidro, arranjados numa situação que ocupam 145 x 15 x 15 cm do espaço expositivo.

A dependência de um “canto” a habilita como instalação. Todavia, como saber se o “canto”,

explícito no título da obra, é, de fato, uma necessidade intencional de seu criador, sem que

isso esteja documentado na instituição? A questão parece ser de fácil resposta, afinal se a

montagem autorizada pelo artista exige um espaço “ideal”, estamos novamente dentro do

paradigma do “endereço”. Mas sem uma documentação precisa, essa questão aparentemente

“óbvia” pode com os anos torna-se obscura ou menos exata, pois dentro da reserva técnica,

“Situação de canto” é apenas um cubo de granito e uma placa de vidro, segmentados.

Fig.2. Túlio Pinto, “Situação Canto”, 2010, granito e vidro, 145x15x15cm, acervo MARP. Fonte: Museu de Arte

de Ribeirão Preto (2010).

Diante da complexidade do problema, a reapresentação das obras necessita de

registros de sua localização espacial em condições de exposição “especificas” (imaginemos

que uma obra possa ser recuperada em espaços diversos) e as condições materiais delineadas

que ajudem, ora na conservação, ora na substituição, autorizada de componentes da obra,

senão de toda ela. São instâncias operadoras que nos auxiliam na compreensão dos processos

de reintrodução das obras em projetos curatoriais distintos. Operadores capazes de oferecer

indícios sobre a obsolescência, tanto das obras, quanto dos discursos museológicos. Sua

existência é primordial para que historiadores e conservadores possam construir uma história

do modo de exibir um trabalho e modo de “traduzi-lo” adequadamente, quando estivermos

diante de mídias transitórias. Visto que, como bem nos alertou Domingues (2009), a

incapacidade de salvaguarda e de comunicação de parte efetiva da arte contemporânea – a

pesquisadora dedicou especial atenção a artemídia – lembra-nos da própria relevância e

função dos museus na atualidade.

Referências

BISHOP, C. Installation art. Londres: Tate Publishing, 2005.

CHIARELLI, T. Sobre as obras premiadas pelo Salão de Arte de Ribeirão Preto. In:

CATÁLOGO da exposição SARP 25 anos. Ribeirão Preto: Museu de Arte de Ribeirão

Preto, 2000. p. 18.

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