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COLEÇÕES, REPRESENTAÇÕES E REGISTROS: DIFERENTES FORMAS DE
SER “CONTEMPORÂNEO”.
Emerson Dionisio Gomes de Oliveira (Docente – IdA/UnB)
Silmara Küster de Paula Carvalho – (Docente – FCI/UnB)
Apoio: CNPq
RESUMO
A constituição de um acervo dedicado às artes visuais está marcada pela tensão entre as
políticas patrimoniais, as categoriais classificatórias da história da arte e da museologia e as
práticas artísticas. A história da coleção permanente do Museu de Arte de Ribeirão Preto
explicita as tensões entre as instituições e as relações de poder, oriundas dos sujeitos
históricos que constituem a negociação formativa de tal coleção. Dividido em segmentos, o
acervo do museu paulista configura-se dentro de uma política patrimonial enciclopédica e
busca assegurar modelos culturais de diferentes linguagens e vocabulários artísticos. Para
além das narrativas e da visibilidade oficiais constituídas pela instituição, nossa pesquisa visa
problematizar as políticas de seleção, colecionamento e exibição apresentadas pelo museu
desde 1992. Para tanto, nos apoiamos na documentação museológica sob responsabilidade da
instituição: atas, catálogos, inventários, protocolos e mídias de divulgação. Tal documentação
nos permitiu problematizar duas dimensões do acervo: aquela voltada para a hierarquia entre
linguagens, gêneros e suportes e aquela dedicada a convencional segmentação da crítica e da
história da arte. O cruzamento dessas dimensões permitiu a ampliação do conceito de “arte
contemporânea”. Conceito caro a visibilidade da instituição e as instruções de seu
colecionamento.
PALAVRAS-CHAVE: Acervo. Artes Visuais. História da Arte. Museologia. Museus.
Tornou-se corriqueiro exigir das instituições museológicas públicas brasileiras,
especialmente daquelas dedicadas à salvaguarda das artes visuais, a apresentação explícita de
suas políticas de acessibilidade, de seus regimes de visibilidade e suas responsabilidades
diante das comunidades que atendem. Até recentemente, tais exigências encontraram centenas
de museus despreparados para responder aos questionamentos basais das comunidades de
especialistas e do público geral.
A precariedade institucional de muitos dos museus de arte tem raízes históricas
complexas, mas que são facilmente detectáveis pela tradição cultural que, subestimada o lugar
social do museu na sociedade, independente dos agentes políticos envolvidos (incluímos os
especialistas: historiadores, historiadores da arte, conservadores, educadores e gestores
públicos de modo geral), e pela incipiência do campo museológico brasileiro, até
recentemente tímido e pouco articulado. Os motivos desse despreparo não é objeto de nossa
pesquisa, mas sim, o modo como um museu particular respondeu aos questionamentos
supramencionados por meio da valorização de seu acervo. E mais especificamente, como o
Museu de Arte de Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, definiu como prioridade de seu
regime de visibilidade a constituição de coleções díspares. Regime que elegeu, dentre as
diferentes coleções, a instituição da arte contemporânea como elemento primeiro de suas
narrativas historiadoras e curatoriais 1. Assim feito, o museu deparou-se com questões cruciais
para os historiadores e conservadores na atualidade: como estabelecer um elo entre a obra-
processo, típica da arte contemporânea, e os procedimentos do arquivo museológico (registro,
documentação, narrativa e recuperação).
Para entrar nesse complexo problema que liga a questão da visibilidade política de
uma instituição voltada às artes visuais com o modo como está mesma instituição
“documenta” sua história, por meio daquilo que se compromete guardar e defender, algumas
aproximações preliminares são necessárias. Primeiro, esclarecemos como surgiu o museu e
seu acervo, de modo a conferir ao problema uma qualidade particular, evitando-se assim as
ilações generalizadoras. Depois, tentaremos compreender o que o museu indicia como arte
contemporânea e, por fim, de que parte dessa modalidade estética o problema do registro e da
documentação se impõem dentro e fora na instituição estudada.
Um museu de artistas
A criação do museu de Ribeirão Preto é relativamente recente na história museal
brasileira. Inaugurado em 1992 pela prefeitura da cidade, a instituição ocupou o edifício
finalizado em 1908, originalmente sede da Sociedade Recriativa de Ribeirão Preto, graças a
um longo trabalho realizado pelos artistas locais. Como ocorreu com outras instituições
museológicas (OLIVEIRA, 2010), o museu fora instituído para acolher o acervo pertencente
ao governo municipal. Obras que vinham majoritariamente de doações de artistas, aquisições
pontuais, prêmios-aquisição dos salões de arte da cidade e coleções “fechadas”, especialmente
doadas para a prefeitura.
Um elo crucial entre a história do acervo municipal antes e depois da criação do
museu é o Salão de Arte de Ribeirão Preto, instituído em 1975. A exposição-evento é a
instituição artística mais antiga da cidade e fora absorvida pelo museu, que o transformou
1 O termo “arte contemporânea” será grafado em itálico neste trabalho para indicar ao leitor que se trata para os
autores de uma instituição-conceito delineada historicamente, que sofre mutações desde a transformação do
Museu de Arte Moderna de Boston em Instituto de Arte Contemporânea em 1946 (LOURENÇO, 2013).
Instituição que opera dentro de circuito próprio e que conta com inúmeros agentes culturais para sua
manutenção.
num importante intermediário entre cena artística local e o circuito da arte contemporânea
nacional. Na mesma medida, a história do próprio salão institui para o museu uma genealogia
que remonta ao final da Segunda Guerra Mundial, segundo as narrativas autorizadas pelo
MARP, pois o salão era o resultado de décadas de anseios da classe artística local, cujo marco
selecionado fora a criação da Escola de Artes Plásticas, em 1951 (FREITAS, 2000). Antes do
salão oficial, outras duas iniciativas evidenciavam os anseios dos artistas fixados na cidade: o
I Salão de Arte Universitário e o Salão de Arte Amador no espaço da Galeria de Artes
Plásticas, em 1967. Foram tentativas localizadas importantes, que espelharam o desejo pela
constituição de um evento mais perene e de instituições que o sustentasse.
Logo depois da criação do salão, o artista italiano Bassano Vaccarini indicava: “O que
semeamos há 17 anos estamos começando a colher agora, e acho que estamos na safra”
(FREITAS, 2000, p. 9). A safra seria duradoura, visto que de um salão de evidente impacto
regional, no final dos anos 1990, após sua assimilação pelo museu, transformou-se num
evento de relevância nacional que continua, desde então, a atrair jovens artistas dedicados à
gramática estética da arte contemporânea e, de especial valor para nossa pesquisa; garantiu
para o acervo do museu a assimilação da produção artística hodierna.
Diante da documentação que confere publicidade ao evento-exposição, se não é a fatia
mais volumosa do acervo, a coleção, denominada pelo museu de “Núcleo SARP - Salão de
Arte de Ribeirão Preto” é, certamente, aquela que ganhou, ao longo dos anos, maior
visibilidade. Há outras cinco coleções que compõem o acervo e que explicitam as políticas de
arquivamento da única instituição pública de memória dedicada às artes visuais na cidade.
O “Núcleo Histórico do acervo MARP” possui aproximadamente 210 obras,
predominantemente provenientes da Casa da Cultura da cidade, que foi inaugurada em 1977 2.
A base dessa coleção, identificada como “histórica” está nos objetos bidimensionais, cujas
técnicas tradicionais da pintura, do desenho e da gravura predominam largamente. São obras
datadas entre o início do século 20 até os anos de 1990, ressaltada a informação de que muitas
obras não foram datadas pelos autores. Sendo assim, na ausência de pesquisa sistemática, o
ano de produção da parcela das obras permanece desconhecido.
Nesta fatia do acervo, muitas obras podem ser identificadas no que tradicionalmente se
denominou como de estilo “acadêmico”. A saber: apreço pelo desenho figurativo de viés
naturalista; composição e volumes detalhados; expressiva presença de temas tradicionais
2 As informações colhidas nos arquivos documentais do museu indicam obras assimiladas entre a criação do
museu (1992) até o ano de 2011, sendo assim, as obras que foram introduzidas após esta data não constam de
nossa contabilidade.
como paisagens e retratos. Nesse mesmo sentido, as obras da segunda metade do século 20
presentes neste núcleo apresentam uma graduação estética heterogênea com predominância
dos diferentes vocabulários vanguardistas do período anterior. Além disso, surpreende a
existência da obra de Hudnilson Júnior, reconhecido artista experimental nos anos de 1970,
que “perturba” uma possível interpretação linear da coleção.
Se o núcleo “histórico” da coleção é marcado pela ausência sistemática de
informações, pois surpreende o número de obras com autores desconhecidos, sem datação ou
técnica não detalhada, o mesmo acontece com o “Núcleo MARP”. Doações e assimilações de
diferentes origens, com obras de distintos períodos e vocabulários estéticos dos séculos 20 e
21, reunidas para a criação do museu ou absorvidas posteriormente. Os bidimensionais
permanecem quantitativamente relevantes. Mas o núcleo não apenas contém mais fotografias,
como amplia o número de técnicas compreendidas como gravura. Dentro do núcleo, destaca-
se a doação de 92 gravuras de Maria Cecília Guarnieri, na ocasião das comemorações de 15
anos do museu. Mesmo diante de suportes tradicionais, trata-se de uma coleção mais próxima
do vocabulário contemporâneo do final do século passado, com a presença de nomes cruciais
da consolidação das artes visuais na cidade, como Francisco Amêndola, Fúlvia Gonçalves,
Odilla Mestriner, Adda Pietro, Dante Velloni, e o já citado, Bassano Vaccarini. No total, o
núcleo possui cerca 280 obras catalogadas.
Dois núcleos do acervo do museu são dedicados a coleções biográficas doadas para o
museu e recebem o nome dos artistas criadores: Leonello Berti e Pedro Manuel-Gismondi.
Trata-se de duas coleções biográficas que não reúnem apenas peças de reconhecido valor
artístico, mas também objetos de trabalho, livros e documentos de diferentes características. A
família Berti realizou a doação de pouco mais seis dezenas de trabalhos do artista em 1979,
que se juntaram a objetos pertencentes a Berti, posteriormente, totalizando quase 74 peças na
atualidade. O núcleo dedicado a Pedro Manuel-Gismondi é composto de 169 obras doadas
entre 2000 e 2007. O MARP realizou algumas mostras para celebrar a carreira deste
importante crítico, artista e gestor. Em 1996, produziu uma exposição individual, com
acentuada inclinação didática, que abriu caminho para reunião de farta documentação sobre
Manuel-Gismondi e culminaria em outra mostra, “Pedro Caminada Manuel-Gismondi no
MARP”, em 1998, pouco antes de sua morte no ano seguinte. Tamanha aproximação do
museu com a memória do artista terminou por construir um ambiente político que levou o
MARP a adotá-lo como nome oficial em 2000.
O Museu de Arte de Ribeirão Preto “Pedro Manuel-Gismondi” expôs 252 gravuras do
artista nas comemorações de dez anos da instituição, em 2002. A mostra reuniu tiragens “que
servirão como um importante material didático para o Museu” 3, e pretendia possibilitar à
pesquisa sistemática do processo de trabalho do artista. Tal material acompanhara a doação de
mais documentos pela família sobre o artista que acabaram legando ao MARP a
responsabilidade de garantir a preservação de sua memória pública. Desta forma, tanto a
coleção de obras quanto a documentação arquivística sobre Manuel-Gismondi formam um
conjunto documental complementar raro para o resto do acervo.
O “Núcleo SABBART” talvez seja fruto de uma das mais curiosas inversões da cadeia
linear da história da arte canônica. O núcleo origina-se nas premiações e doações advindas do
Salão Brasileiro de Belas Artes criado em 1992. Numa inversão incomum, o SABBART
nascia como um novo evento empenhado na manutenção da arte de estilo “acadêmico”. Os
artistas defensores do salão argumentavam que o SARP não admitia e assimilava suas obras,
dando preferência à produção contemporânea. Totalizando nos registros do museu 58 peças,
as obras premiadas pelos SABBARTs foram enviadas ao acervo do MARP, e a instituição
assumiu a produção do evento desde sua segunda edição, o que pode explicar o
desaparecimento de cinco obras produzidas e premiadas nos dois primeiros salões.
O núcleo do SARP hoje totaliza aproximadamente 337. O núcleo mais coeso e
volumoso do museu. Tendo como perspectiva que as obras legadas pelo SARP vieram de
premiações e doações espontâneas e estimuladas é importante entender com brevidade a
história da exposição-evento para compreender sua herança material para o acervo do museu.
O salão na segunda metade dos anos de 1970 nascia com uma contradição: procurava
definir uma fronteira estética que eliminasse a produção chamada “acadêmica”, mas ao
mesmo tempo sem a admissão de linguagens mais experimentais que pululavam nos grandes
centros na época. Na lei de criação do SARP havia apenas a possibilidade de selecionar,
expor, julgar, premiar e assimilar quatro categorias: Pintura, Escultura, Desenho e Gravura.
Numa década em que o cenário brasileiro conheceu as mais diferentes formas de
experimentações quanto aos suportes e as linguagens da arte, o SARP apresentava-se
convencional em demasia. Nesses primeiros anos, embora tenhamos exceções indicativas, a
maioria das obras selecionadas e premiadas esteve dentro das tradicionais categorias de
pintura, escultura e desenho. Mesmo as gravuras (e fotografias), foram pouco representativas.
A mudança ocorreu em 1987, quando o salão premiou a obra “Vídeo-Arte 9”, de José Ricardo
Romero, que recebeu o Grande Prêmio Especial do Júri. Três anos depois, a lei que impedia
os ingressos de suportes “mais contemporâneos” foi alterada, criando as secções de
3 MUSEU DE ARTE DE RIBEIRÃO PRETO. Histórico do MARP. Disponível em:
<http://www.ribeiraopreto. sp.gov.br/scultura/marp/I14historico.htm>. Acesso em: 13 out. 2013.
instalação, de vídeo, performance e, por fim, tardiamente, de fotografia. Mesmo sob críticas,
o SARP, desde então, abandonou sua trajetória voltada para a produção local e a suportes
tradicionais. Tadeu Chiarelli tipifica assim o momento: “poderia ser dito que foi entre sua
décima terceira e décima sexta edições, que ele buscou desvencilhar-se de qualquer ranço
supostamente provinciano, para tentar enquadrar-se no circuito mais avançado da arte
contemporânea brasileira” (CHIARELLI, 2000). Mesmo em seus limites geográficos e
financeiros, no que tange à visibilidade, o SARP continuou nos últimos quinze anos a ser um
instrumento eficaz de divulgação do museu e a fonte mais eficiente de captação e aquisição de
obras de arte dentro dos códigos da arte contemporânea.
A arte de agora muda todo o dia
Trata-se de um dos pontos mais difíceis de determinar na atualidade: o que é a arte
contemporânea. Suas características datam do início dos anos de 1960. Um amálgama de
recorte histórico, temas recorrentes, ampliação técnica, indeterminação estética e recusa do
estatuto artístico convencional é o que identificamos como aquela arte produzida após a
produção artística modernista. Estranhamente, no catálogo do 8º SABBART, o documento
gerado pelo júri expôs o problema criado por uma genealogia evolucionista da arte, e, por
conseguinte, com os limites entre a arte contemporânea e outras tipologias:
Historicamente observa-se por parte dos artistas o surgimento do ranço pela arte
moderna. Depois foi a vez dos modernistas responderem com preconceito, numa
briga em que não há vencedores, mas que ainda separa os artistas – agora divididos
entre acadêmicos e contemporâneos. Felizmente, o Salão Brasileiro de Belas-Artes
de Ribeirão Preto põe termo a esta discussão, mostrando o quanto é tênue a linha
que sapara estas duas tendências e que existe apenas uma categoria: Arte Autêntica;
ou como diria Mário de Andrade, a somatória do domínio técnico, do virtuosismo e
da escolha pessoal do artista 4.
Embora a intenção dos jurados tenha seus méritos, o salão não colocou fim a essa
discussão, simplesmente porque a busca pela arte autêntica é, de fato, a aproximação de uma
produção artística aceita como contemporânea em escala global, cujo circuito ultrapassa as
pretensões e ambições de instituições museológicas “regionais”. Um ponto no trecho citado
acima tem suscitado questionamentos para os gestores dos museus: quem são os
contemporâneos? Qual produção adéqua-se à contemporaneidade?
4 MUSEU DE ARTE DE RIBEIRÃO PRETO. Catálogo do XIII SABBART. Ribeirão Preto: SMC, 2004. p. 3.
Texto assinado por Antonieta Tordino, Cirton Genaro e Luís Castañón.
O que deixa o termo arte contemporânea atraente é justamente sua imprecisão quando
solicitamos características historicamente pautáveis e, paradoxalmente, sua exatidão para
designar quais objetos, meios e processos pertencem a tal tipologia artística. Como fenômeno
cultural particular, a arte contemporânea tem navegado entre a crença de que sua matriz
geradora está perpetuamente ligada à experiência do presente, senão a do devir, e,
simultaneamente, alimenta-se de inúmeras narrativas históricas 5. Lembremos que Jean Clair
afirma que uma definição desta produção para os gestores dos museus voltados à arte
contemporânea é difícil justamente porque reside na interpretação da própria finalidade das
instituições, pois “o museu de arte contemporânea ocupa-se, por definição, da mudança da
arte (...). Segue-se, assim, inevitavelmente, que o museu de arte contemporânea perturba de
forma contínua, um sistema à procura de equilíbrio” (MILLET, 1997, p. 14).
Essa perturbação nada mais é que um desajuste entre a representação de uma
contemporaneidade marcada por fluidez e voracidade, fragmentação e multiplicidade, que vai
à contramão de qualquer tentativa de categorização, e a própria obsessão memorial, ávida pela
demarcação de identidade, pela invocação de tradições e tipologias. Instituições, como
MARP, identificam no colecionamento da arte contemporânea um modo de visibilidade
positiva justamente por sua capacidade de circulação para além de uma rede de identidades
locais definidas. Trata-se de uma produção de fácil inserção global que aproxima museus
pequenos de grandes instituições internacionais.
Do mesmo modo, museus locais possuem responsabilidades mais amplas que uma
vinculação automática ao circuito internacional da arte contemporânea. Uma breve
observação no que o museu ribeirão-pretano coleciona, compreenderemos que a instituição
cumpriu a meta primeira de sua criação: salvaguardar a produção artística pública do
município, independente das tipologias e classificação da crítica e da história da arte atuais.
O problema da reapresentação
Se partirmos da premissa de que obras de arte, independente de sua materialidade ou
vocabulário são produzidas para serem apresentadas e fruídas por um público amplo ou
restrito, as instituições dedicadas a salvaguardá-las são igualmente responsáveis pelo como
elas serão continuamente reapresentadas – mesmo contrariando a intencionalidade primeira de
seus criadores. Diante da premissa, temos uma complexa operação que incluí discursos de
5 “Nunca a arte foi tão reflexiva, nunca a história da arte foi tão constitutiva da própria arte – o que faz pensar
numa atualização do maneirismo – e poucas vezes a consciência de seu percurso foi tão paralisante”; cf.
NAVES, R. O vento e o moinho: ensaios sobre arte moderna e contemporânea. São Paulo: Companhia das
Letras, 2007. p. 26.
sustentação da história da arte, os processos de composição do sistema expositivo, a
capacidade conservadora e restauradora de diferentes suportes materiais, os procedimentos
curatoriais selecionadores e a gestão de políticas de visibilidade.
Essa complexa operação explicita-se diante das diferentes propostas artísticas
“contemporâneas”, que utilizam parâmetros peculiares para a criação de obras que desafiam
os modelos de institucionalização vigentes. A saber: conservação, registro e reapresentação. O
conflito entre a produção artística contemporânea e as narrativas de “arquivamento” não é
recente. Nos últimos 50 anos, um elenco formidável de obras veio colocar em xeque os
sistemas de registro e de documentação, os modelos de circulação e de interação, os discursos
expositivos e, em nosso caso, as narrativas historiográficas (OLIVEIRA, 2012). Procuramos
problematizar a questão de como historiadores da arte e profissionais dedicados à gestão de
coleções museológicas vem enfrentando um desafio em especial: a reapresentação das obras,
a priori produzidas em condições específicas, orientadas por uma “poética da obsolescência”,
em espaços museológicos convencionais.
Ou seja, para além do que venha ser propriamente a arte contemporânea, as
instituições museológicas precisam lidar com obras contemporâneas que não foram
necessariamente criadas para sobreviver a uma primeira exposição-ação. Diante de uma
dimensão privilegiada nesta pesquisa, este também é um problema para o MARP. Dimensão
voltada à capacidade do museu em produzir uma documentação museológica que valide e
subsidie a conservação e a reapresentação de obras tipificadas segundo a terminologia da
crítica em arte, como: performances; happenings; instalações; intervenções públicas; e as
novas tecnologias (media art, digital, cibernética, web-art, etc.), por exemplo.
Neste ponto, mais uma suposição faz-se necessária: o registro documental apurado é
essencial para a recuperação de uma obra de arte enquadrada nas tipologias
supramencionadas. O MARP não se encontra numa situação confortável nessa questão.
Embora mantenha um arquivo de projetos enviados pelos artistas no momento em que são
selecionados para o SARP, tais registros não obedecem a uma uniformidade informacional
que garanta ao museu condições de reapresentar as obras assimiladas por seu acervo. Do
mesmo modo, quando as obras não pertencem ao núcleo dedicado ao salão, as informações
tornam-se raras e dependentes de uma tradição oral que fixa algumas estratégias de
montagem.
Algumas obras do acervo merecem atenção no que concerne ao problema de registro/
obsolescência/ reapresentação. Além do vídeo de Velloni e Denis Santos, o MARP possui,
ainda, outros nove trabalhos em vídeo, assimilados de 1986 a 2006 6, além de “Projeto
Aurora”, de Silvia Velludo, vídeo-instalação, de 2002. São 17 instalações que demandam
projetos de ocupação espacial 7. Há ainda obras que podem ser consideradas como isoladas,
como “Passagens”, de Luciana Ohira e Sérgio Bonilha (2006, intervenção urbana), “O
paredão da liberdade”, de Valnei Andrade (2002, intervenção), “Composição 1” e
“Composição 6”, de Renata de Andrade (2006, intervenções). Há, nos registros até 2011,
apenas duas obras, que descritas como “ação”, podem ocupar o poroso lugar de performance/
happening: “Comestível”, de Rosa Esteves (2004/ 2007), e “Sem título”, de Renata Vallada e
Ivana Paim (2001). Ou seja, pouco mais de três dezenas de obras podem ser classificadas
dentro da “poética do efêmero”. Seja por sua obsolescência tecnológica, como é o caso dos
vídeos que necessitam de constante “tradução” para meios mais atuais, seja pelas obras
enquadradas dentro do paradigma do “endereço”, lembrado por Poinsot (2012), ou seja, obras
que só se realizam em espaços-tempo específicos e/ ou calculados.
6 As aquisições nos dois últimos SARPs não constam das listas de tombamento. Desta forma, o presente
levantamento incide sobre obras assimiladas até o início de 2012. Os vídeos são: “Vídeo Arte”, de José Ricardo
Romero (1986, VHS); “Estigmas”, de Del Pilar Sallum (1996, vídeo); “Não há ninguém aqui”, de Wagner
Morales (2001, vídeo); “501 auto-retrato”, de Fernando Velázquez (2006, vídeo); “Piano azul”, “A baleia” e
“Nuvem”, de Maria Mattos (2010-2011, vídeo); “Sem título”, de André Terayama (2011, vídeo); “Sem título”,
de Cordeiro de Sá (2002, vídeo) e, “Transeuntes”, de Pazé (2002, vídeo). 7 São alas: “Sem título”, de Margot Delgado (1990, instalação); “Sem título”, de Marta Strambi (1994,
instalação); “Trans 2”, de Patrícia Franco (1998, instalação); “Sem título”, de Guilherme Machado (1999,
instalação); “Retratos falado”, de José Vilmar (2000, instalação); “Sem título”, de Felipe Cohen (2001,
instalação em três partes); “Estado de alerta”, de José Roberto Shwafaty (2006, instalação); “Varal”, de Mariane
Abakerli (2007, instalação); “Carta Branca”, de Reginaldo Pereira (2007, instalação); “Projeto de instalação”, de
Vera Martins (1994, projeto de instalação); “Bagagens”, de Daniela Ferraz (1999, instalação); “Coleções
primeiros passos”, de Cleido Vasconcelos (2000, instalação); “Do mel ao fel II”, de Dante Velloni (2000,
instalação); “Vento”, de Silvia Velludo (2000, instalação) e, “Corpos a prova”, de Liene Bosque (2006,
instalação); “Proposta para ocupação mínimo/ máxima do espaço #2”, de Luciana Ohira e Sérgio Bonilha (2007,
instalação) e, “4,5 metros horizontal”, de Túlio Pinto (2009, instalação).
Fig.1. Túlio Pinto, “4,5 metro horizontal”, 2009, madeira e espelho, 100x100x225 cm, acervo MARP. Fonte:
Museu de Arte de Ribeirão Preto (2010).
Evidentemente, o problema é complexo. A classificação encontrada na documentação
museológica é, por vezes, incerta. Menos pelo cuidado na constituição do registro que pela
própria natureza da obra. Tomemos como exemplo as obras premiadas e assimiladas de Túlio
Pinto, no 35º SARP, em 2010. “4,5 metro horizontal” é uma obra em madeira e espelho, que
ocupa o espaço de 100 x 100 x 225 cm (fig.1). Embora as dimensões do trabalho sejam
precisas, a ocupação do espaço da madeira em relação ao espelho, ao solo e a parede
necessitam de demarcações indicativas para sua reapresentação. Essa dependência do espaço
é uma das características consensuais de que “4,5 metro horizontal” é uma instalação, mas na
documentação do museu isso não é indicado (BISHOP, 2005).
Já a outra obra assimilada de Pinto, “Situação de canto”, de 2010, pode ser inserida no
problema na fronteira entre “escultura” e “instalação” (fig.2). O trabalho é composto de
granito e vidro, arranjados numa situação que ocupam 145 x 15 x 15 cm do espaço expositivo.
A dependência de um “canto” a habilita como instalação. Todavia, como saber se o “canto”,
explícito no título da obra, é, de fato, uma necessidade intencional de seu criador, sem que
isso esteja documentado na instituição? A questão parece ser de fácil resposta, afinal se a
montagem autorizada pelo artista exige um espaço “ideal”, estamos novamente dentro do
paradigma do “endereço”. Mas sem uma documentação precisa, essa questão aparentemente
“óbvia” pode com os anos torna-se obscura ou menos exata, pois dentro da reserva técnica,
“Situação de canto” é apenas um cubo de granito e uma placa de vidro, segmentados.
Fig.2. Túlio Pinto, “Situação Canto”, 2010, granito e vidro, 145x15x15cm, acervo MARP. Fonte: Museu de Arte
de Ribeirão Preto (2010).
Diante da complexidade do problema, a reapresentação das obras necessita de
registros de sua localização espacial em condições de exposição “especificas” (imaginemos
que uma obra possa ser recuperada em espaços diversos) e as condições materiais delineadas
que ajudem, ora na conservação, ora na substituição, autorizada de componentes da obra,
senão de toda ela. São instâncias operadoras que nos auxiliam na compreensão dos processos
de reintrodução das obras em projetos curatoriais distintos. Operadores capazes de oferecer
indícios sobre a obsolescência, tanto das obras, quanto dos discursos museológicos. Sua
existência é primordial para que historiadores e conservadores possam construir uma história
do modo de exibir um trabalho e modo de “traduzi-lo” adequadamente, quando estivermos
diante de mídias transitórias. Visto que, como bem nos alertou Domingues (2009), a
incapacidade de salvaguarda e de comunicação de parte efetiva da arte contemporânea – a
pesquisadora dedicou especial atenção a artemídia – lembra-nos da própria relevância e
função dos museus na atualidade.
Referências
BISHOP, C. Installation art. Londres: Tate Publishing, 2005.
CHIARELLI, T. Sobre as obras premiadas pelo Salão de Arte de Ribeirão Preto. In:
CATÁLOGO da exposição SARP 25 anos. Ribeirão Preto: Museu de Arte de Ribeirão
Preto, 2000. p. 18.
DOMINGUES, D. Redefinindo fronteiras da arte contemporânea: passado, presente e desafios
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passado, presente e desafios. São Paulo: Ed. da Unesp, 2009. p. 25-42.
FREITAS, D. C. A. História do salão de arte de Ribeirão Preto. In: SARP 25 anos. Ribeirão
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LOURENÇO, M. C. F. Cronos e os museus. In: COUTO, M. de F. M.; FUREGATTI, S. H.
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POINSOT, J. -M. A arte exposta: o advento da obra. In: HUCHET, S. (Org.). Fragmentos de
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