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COLÓQUIO DE PESQUISA DAS UNIVERSIDADES PAULISTAS

COLÓQUIO DE PESQUISA DAS UNIVERSIDADES PAULISTAS · Allessandra Neves Ferreira Alexandre Walmott Borges Daniel Ferreira Elizabeth Accioly Everton Gonçalves ... contém o resultado

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COLÓQUIO DE PESQUISA DAS UNIVERSIDADES PAULISTAS

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2016 São Paulo

COORDENADORESVladmir OliVeira da SilVeira

Samyra Haydêe del Farra NaSpONili SaNcHeS

môNica BONetti cOutO

COLÓQUIO DE PESQUISA DAS UNIVERSIDADES PAULISTAS

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Nossos Contatos São Paulo Rua José Bonifácio, n. 209, cj. 603, Centro, São Paulo – SP CEP: 01.003-001 Acesse: www. editoraclassica.com.brRedes Sociais Facebook: http://www.facebook.com/EditoraClassica Twittter: https://twitter.com/EditoraClassica

Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

Editora Responsável: Verônica GottgtroyProdução Editorial: Editora Clássica Capa: Editora Clássica

Equipe Editorial

EDITORA CLÁSSICA

Allessandra Neves FerreiraAlexandre Walmott Borges Daniel Ferreira Elizabeth Accioly Everton Gonçalves Fernando Knoerr Francisco Cardozo de Oliveira Francisval Mendes Ilton Garcia da Costa Ivan Motta Ivo Dantas Jonathan Barros VitaJosé Edmilson Lima Juliana Cristina Busnardo de Araujo Lafayete PozzoliLeonardo Rabelo Lívia Gaigher Bósio Campello Lucimeiry Galvão

Luiz Eduardo GuntherLuisa Moura Mara Darcanchy Massako Shirai Mateus Eduardo Nunes Bertoncini Nilson Araújo de Souza Norma Padilha Paulo Ricardo Opuszka Roberto Genofre Salim Reis Valesca Raizer Borges Moschen Vanessa Caporlingua Viviane Coelho de Séllos-Knoerr Vladmir Silveira Wagner Ginotti Wagner Menezes Willians Franklin Lira dos Santos

Conselho Editorial

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-PUBLICAÇÃO

718C

Colóquio de pesquisa das universidades paulistas Coordenação: Vladmir Oliveira da Silveira, Samyra Haydêe Del Farra Nasponili Sanches, Mônica Bonetti Couto. 1ª ed. São Paulo: Editora Clássica, 2016.

Formato: ePub ISBN 978-85-8433-036-2 (recurso eletrônico)

1. Direito social. 2. Função social do direito - empresa sustentabilidade. 3. Jurisdição constitucional - direitos humanos. I. Silveira, Vladmir Oliveira da. II. Sanches, Samyra Haudêe Del Farra Nasponili. III. Couto, Mônica Bonetti. IV. Título

CDD: 371 009

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Apresentação

Esta obra, organizada pelos Professores que subscrevem esta apresentação, contém o resultado dos trabalhos de pesquisa apresentados no Colóquio de Pesquisa (“Colóquio”) realizado, em 2014, na Universidade Nove de Julho, sob o tema Panorama da Pesquisa Jurídica. Trata-se, na realidade, do quinto evento sobre esta temática. As edições anteriores foram realizadas, respectivamente, na Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas – Direito/FGV, no Centro Universitário Fundação Instituto de Ensino para Osasco – UNIFIEO, na Universidade Católica de Santos – UNISANTOS, e na Universidade Presbiteriana Mackenzie – Mackenzie.

Referido Colóquio teve origem no convênio firmado em 2008 entre 08 (oito) instituições paulistas, mantenedoras de Programas de Pós-Graduação stricto sensu em Direito, a saber: FMU – Faculdades Metropolitanas Unidas; FGV – Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo; ITE – Instituto Toledo de Ensino de Bauru; Mackenzie – Universidade Presbiteriana Mackenzie; UNIFIEO – Centro Universitário Fundação Instituto de Ensino para Osasco; UNIMES – Universidade Metropolitana de Santos; UNISANTOS – Universidade Católica de Santos; e FADUSP – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Posteriormente juntaram-se aos conveniados iniciais: a UNINOVE – Universidade Nove de Julho, a UNISAL – Universidade Salesiana, a UNIMAR – Universidade de Marília e o UNIVEM – Centro Universitário de Marília.

Entre os objetivos visados por este convênio, um dos mais relevantes é a preocupação com o desenvolvimento da pesquisa, do intercâmbio e das atividades de extensão, particularmente com a participação de seus mestrandos.

Gostaríamos de agradecer todo o suporte e apoio dado pela UNINOVE, por meio do Reitor Prof. Eduardo Storópoli. Agradecemos,

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igualmente, todos os coordenadores dos Programas de Mestrado das universidades paulistas que colaboraram na organização, divulgação em seus programas, como também nas atividades necessárias, não só pela elaboração do edital de seleção, como também para que mais uma obra se tornasse realidade.

Esta obra é a prova concreta da possibilidade de compartilhamento do conhecimento e intercâmbio acadêmico na área de direito de universidades paulistas. Serve, também, como incentivo à pesquisa científica de qualidade.

Os 19 (dezenove) artigos que apresentaram o resultado das suas pesquisas passaram por um criterioso processo de seleção e foram escritos por discentes de Programas de Pós-Graduação. Possibilitou-se, assim, a divisão da presente obra em 03 (três) eixos temáticos distintos, a saber: (i) função social do direito, da empresa e sustentabilidade; (ii) jurisdição constitucional e direitos humanos fundamentais; e (iii) educação e produção jurídicas.

Nesse sentido, gostaríamos de agradecer todos os discentes nominalmente: Melrian Ferreira da Silva Simões, Claudia Elly Larizzatti Maia, Eliete Doretto Dominiquini, Leonardo Raphael Carvalho de Matos, Ana Paula Cordeiro Duarte, Josile Hernandes Ortolan de Pietro, Michelle Asato Junqueira, Mayara Ferrari Longuini, Nelson Laginestra Júnior, Vanessa de Paula Rodrigues, Pedro Lima Marcheri, Leyde Aparecida Rodrigues dos Santos, Renata Cristina da Silva Nunes, Saylon A. Pereira, Raquel Evelin Gonçalves Coltro, Anderson Henrique Teixeira Nogueira, Jefferson Ouribes Flores, Denis Cortiz da Silva, Léa Carta da Silva, Roseli Aparecida Casarini Bossoi, Fernando Henrique da Silva Horita, Manoel da Nave Pires, Fernando Rodrigues de Almeida e Mariana Carolina Lemes.

Sem sombra de dúvidas, mais essa obra comprova o sucesso dessa cooperação acadêmica entre os Programas de Pós-Graduação de universidades paulistas.

São Paulo, verão de 2016

prOFa. dra. môNica BONetti cOutO

prOFa. Samyra Haydêe del Farra NaSpONili SaNcHeS prOF. dr. Vladmir OliVeira da SilVeira

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Sumário

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10

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72

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APRESENTAÇÃO ........................................................................................

EIXO TEMÁTICO 1 FUNÇÃO SOCIAL DO DIREITO, DA EMPRESA E SUSTENTABILIDADE

A ALIENAÇÃO PARENTAL ANALISADA À LUZ DE FOUCAULT melriaN Ferreira da SilVa SimõeS .............................................................A FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA COMO FORMA DE VALORIZAÇÃO DA PESSOA HUMANA claudia elly larizzatti maia e eliete dOrettO dOmiNiquiNi .....................ESCRAVIDÃO E O PROCESSO DE DINAMOGENESIS leONardO rapHael carValHO de matOS ....................................................IMPLICAÇÕES DO PRINCÍPIO DO POLUIDOR-PAGADOR E A GOVERNANÇA DOS RECURSOS NATURAIS aNa paula cOrdeirO duarte e JOSileNe HerNaNdeS OrtOlaN de pietrO ...LICITAÇÕES E COMPRAS PÚBLICAS SUSTENTÁVEIS: OBRIGATORIEDADE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA micHelle aSatO JuNqueira e mayara Ferrari lONguiNi ...............................

EIXO TEMÁTICO 2 JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL E DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS

A GARANTIA CONSTITUCIONAL DO DIREITO DE RESPOSTA E A CONS-TRUÇÃO DE UM NOVO PARADIGMA NA RELAÇÃO MÍDIA/CIDADÃO NelSON lagiNeStra JuNiOr ......................................................................... A OMISSÃO DA COMUNIDADE INTERNACIONAL NO GENOCÍDIO EM RUANDAVaNeSSa de paula rOdrigueS ....................................................................

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A TIPIFICAÇÃO DO RACISMO NA INTERNET: ASPECTOS PENAIS E CONSTITUCIONAIS

pedrO lima marcHeri ................................................................................AS CONTROVÉRSIAS DAS DECISÕES JUDICIAIS NA CONCORRÊNCIA ÀS VAGAS RESERVADAS EM CONCURSO PÚBLICO AOS PORTADORES DE DEFICIÊNCIA AUDITIVA UNILATERAL leyde aparecida rOdrigueS dOS SaNtOS e reNata criStiNa da SilVa NuNeS

AS TRANSFORMAÇÕES JURÍDICO-INSTITUCIONAIS DO ESTADO NA REALIZAÇÃO DAS ATIVIDADES PÚBLICAS E O JULGAMENTO DA MEDIDA CAUTELAR NA ADIN 1923/DFSaylON a. pereira ......................................................................................APLICAÇÃO DA TEORIA DO SOPESAMENTO EM COLISÕES ENTRE LIBER-DADE DE EXPRESSÃO E O DIREITO À PRIVACIDADE DO BIOGRAFADO raquel eVeliN gONçalVeS cOltrO .............................................................DIREITO SOCIAL À MORADIA: UMA QUESTÃO DE DIGNIDADE aNderSON HeNrique teixeira NOgueira e JeFFerSON OuriBeS FlOreS .........O MANDADO DE INJUNÇÃO COMO FERRAMENTA DE PROMOÇÃO DA CIDADANIA deNiS cOrtiz da SilVa .................................................................................PANORAMA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS aNderSON HeNrique teixeira NOgueira e JeFFerSON OuriBeS FlOreS .........POLÍTICA DE RECONHECIMENTO: DA OPOSIÇÃO DOS PALESTINOS À OCUPAÇÃO DE JERUSALÉM léa carta da SilVa ....................................................................................

EIXO TEMÁTICO 3 EDUCAÇÃO E PRODUÇÃO JURÍDICA

ENSINO JURÍDICO E DIREITO DIGITAL: POR UM NOVO TEMPOrOSeli aparecida caSariNi BOSSOi e FerNaNdO HeNrique da SilVa HOrita

INTERDISCIPLINARIDADE ENTRE DIREITO E POLÍTICA: QUESTÕES CONCEITUAIS NO CONTEXTO DA PRODUÇÃO ACADÊMICO-JURÍDICA maNOel da NaVe pireS ...............................................................................

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352

372

FUNÇÃO SOCIAL DA EDUCAÇÃO: CONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO ÉTICO COMO DISPOSIÇÃO DE CARÁTER EM TEMPOS DE DESENVOLVI-MENTO ECONÔMICO CENTRALIZADO FerNaNdO rOdrigueS de almeida ...............................................................PROFESSORES READAPTADOS: CARACTERIZAÇÃO À LUZ DO ORDENA-MENTO JURÍDICO VIGENTE mariaNa carOliNa lemeS ..........................................................................

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EIXO TEMÁTICO I FUNÇÃO SOCIAL DO DIREITO, DA EMPRESA E SUSTENTABILIDADE

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A ALIENAÇÃO PARENTAL ANALISADA À LUZ DE FOUCAULT

Melrian Ferreira da Silva Simões1

RESUMO

O trabalho visa o estudo da problemática alienação parental, através de sua definição, meios de ocorrência discussões no campo doutrinário, bem como consequências jurídicas, e as estreitas ligações entre relações de poder e dominação que dela decorrem, sob o enfoque da obra Vigiar e Punir de Foucault, especificamente o Capítulo I. Será utilizada a pesquisa bibliográfica e descritiva, num plano interdisciplinar entre o Direito de Família, o Direito Civil, Estatuto da Criança e do Adolescente e a Filosofia. Em sede de conclusão, percebe-se a intricada relação firmada entre o alienante, o alienado e o genitor impedido de conviver com o filho, relação onde poder e dominação são exercidos com desenvoltura, descortinando um micro universo existente dentro das relações familiares, onde em tese, apenas o afeto e o respeito entre seus membros deveriam prevalecer.

Palavras-chave: Família; Alienação Parental; Relações de Poder; Punição.

SUMÁRIO: Introdução: Breves linhas sobre a família. 1. Alienação parental. 2. Foucault e a alienação parental. Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO: BREVES LINHAS SOBRE A FAMÍLIA

As relações familiares, durante muito tempo, ficaram protegidas, pelo manto do íntimo e privado; O que acontecia nos lares, entre os membros do núcleo familiar, permanecia ali, guardado, sem o perigo de ser exposto ou de chegar aos olhos ou aos ouvidos de estranhos. Primava-se pela discrição ou medo, pois, havia os pactos de silêncio firmados entre cônjuges, pais e filhos e que se estendiam aos empregados da casa.

Durante o período em que a mulher tinha como função essencial zelar pelo lar conjugal e pela criação dos filhos, era evidente o poder de mando,

1 Mestranda em Teoria Geral do Direito e do Estado no “Centro Universitário Eurípides de Marilia – UNIVEM”. Especialista em Direito Civil e Direito Processual Civil pelo “Centro Universitário Eurípides de Marília – Univem”, Participante do Grupo de Estudos, Pesquisas, Integração e Práticas Integrativas (GEP) e do Grupo de Pesquisa em Ética do Afeto (GPEA) ambos da instituição “Centro Universitário Eurípides de Marilia – UNIVEM”. Advogada. Endereço eletrônico:<melriansimoes @ig.com.br>.

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decisão e persuasão contidos nas mãos do homem, o chefe da casa era o senhor que, decidia tudo sobre todos. Não havia a possibilidade de discussão ou dissenso, em relação às decisões do homem, isto era considerado uma afronta digna de punição ao discordante. O casamento derivava de um ajuste, acordado entre as famílias dos noivos, para garantir-lhes a linhagem, o patrimônio e os interesses em comum. O afeto restava em segundo plano, quando possível, muito diferente do que temos na contemporaneidade.

Com a revolução industrial, houve não só a explosão da mecanização dos meios de produção, mas, também, a saída da mulher para o mercado de trabalho, há época extremamente precário, porém capaz de absorver a inexperiente mão de obra. Surge neste instante, uma mudança não apenas social como também dentro da estrutura familiar, o que impele a uma reorganização de funções; O homem é confrontado com a possibilidade de ter diminuído seu poder de mando e, a mulher, agora partícipe da economia familiar, passa a vislumbrar a possibilidade de decidir, ter voz. Tem-se o início de um choque sócio-cultural, onde família, sociedade e Estado são os principais atores no quadro de transformações.

Lembremos que a estrutura social e familiar, até então vigente, era hierarquizada, patriarcal e dominadora; O que temos atualmente, como núcleo familiar, muito teve de se reconstruir, reinventar e adequar-se, nada ocorreu de um salto, mas, é fruto de mudanças políticas, econômicas, sociais e comportamentais, fatores que ontem e hoje influenciam a sociedade e consequentemente seu mais importante elemento formador, a família.

Em nossa sociedade, um pouco mais lento foi o processo modificador da família, entretanto, não houve como detê-lo, embora, alguns mais conservadores, tenham se empenhado em dificultar ao máximo a possibilidade das mulheres estudarem, votarem, trabalharem fora ou até mesmo expressarem suas opiniões. Pontuais são os ensinos de Hannah Arendt2, sobre a divisão de deveres na família, a posição/função ocupada pelo homem e pela mulher:

O fato de que a manutenção individual fosse tarefa do homem e a sobrevivência da espécie fosse tarefa da mulher era tido como óbvio; e ambas estas funções naturais, o labor do homem no suprimento dos alimentos e o labor da mulher no parto, eram sujeitos à mesma premência da vida. Portanto, a comunidade natural do lar decorria da necessidade: era a

2 ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 10ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 2007. pp. 39-40.

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necessidade que reinava sobre todas as necessidades exercidas no lar.

Faz-se, a bem do desenvolvimento do tema proposto que, desloquemos este panorama, até então descrito, à nossa realidade. Para tanto, oportuno que, não desconsiderando o contexto histórico cultural de nosso país, mas a fim de otimizar as explanações sobre a família, ressaltemos a importância da Constituição Federal de 1988 que trouxe à lume princípios valorizadores da pessoa humana, e direitos e garantias fundamentais que endereçam ao indivíduo uma posição diferenciada, daquela estabelecida pela Constituição anterior. A família também foi contemplada, na Carta Magna como merecedora de proteção, onde os filhos não podem sofrer qualquer tipo de distinção, considerando a união estável um núcleo familiar, evidenciando à proteção a criança, ao adolescente e ao idoso, conferindo à ambos os cônjuges o direito à fixação e administração do lar conjugal e o exercício do poder familiar em iguais condições, entre outros.

Neste contexto de mutação das relações familiares, novos princípios surgem à nortear os estudos sobre a família e, dentre eles muito se fala do princípio da afetividade. Doutrina e jurisprudência elevaram a afetividade a valor jurídico, e o afeto é admitido como elemento formador da família, ressaltando Dias3 que “[...] O afeto não é fruto da biologia. Os laços de afeto e solidariedade derivam da convivência familiar, não do sangue.”. O sangue que antes definia as linhagens e era marca de toda uma hierarquia patriarcalizada, é relegada à segundo plano, o ser é ligado à família pelos sentimentos e não somente pela genética.

As anteriores relações de poder, evidentes quanto à titularidade exercida pelo homem/pai/chefe de família, são alteradas, pois segundo os ensinos de Dias4:

A família transforma-se na medida em que se acentuam as relações de sentimentos entre seus membros; valorizam-se as funções afetivas da família. Despontam novos modelos de família mais igualitárias nas relações de sexo e idade mais flexíveis em suas temporalidades e em seus componentes, menos sujeitas à regra e mais ao desejo, na expressão de Michel Perrot. A família e o casamento adquiriram

3 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2009. p. 70. 4 Idem, pp. 70-71.

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um novo perfil, voltados muito mais a realizar os interesses afetivos e existenciais de seus integrantes. Essa concepção eudemonista da família, que progride à medida que regride o seu aspecto instrumental.

Erigir o afeto à categoria jurídica foi um avanço, pois, além do reconhecimento de que a família hoje possui os mais diversos formatos e arranjos, instituiu a jurisdição de família e neste ponto reside um aspecto a ser considerado: o que era estritamente privado, torna-se público com as demandas judiciais, expondo os conflitos e mazelas dos sujeitos de direito envolvidos na lide familiarista. Embora o sigilo judicial, o que de fato e na prática acontece é a forçosa exposição da vida íntima das famílias, que nos dizeres de Rodrigo da Cunha Pereira citado por Dias5, são os restos do amor que chegam ao judiciário.

Em juízo, ao se deparar com ações que versam sobre direito de família, de pronto percebe-se a complexidade psicológica e emocional da situação. Não temos apenas a dedução ou pretensão à direitos instituídos pela norma, temos a clara percepção da intenção dos envolvidos e, que de fundo vão na maioria das vezes, além do que o direito lhes defere. Por vezes, o que uma das partes deseja é punir o outro, seja porque este lhe frustrou as expectativas amorosas ou, porque não resistiu à um relacionamento descompromissado e apático, ou ainda porque foi substituído por outro (a) parceiro(a) enfim, as motivações que ensejam a judicialização da relação familiar vão um pouco adiante daquilo que se apresenta ao Estado-Juiz.

O Estado, ali representado na figura do juiz, aquele que deve dizer o direito ao caso concreto, utiliza-se de um aparato interdisciplinar para avaliar o que está sub-judice; Foucault6 fala a respeito, quanto à aplicação das penas criminais, mas, transportando o ensino ao juízo das famílias, percebe-se que esta interdisciplinaridade é presente e quase que indispensável porque, “[...]” julgam-se também as paixões, os instintos, as anomalias, as enfermidades, as inadaptações, os efeitos de meio ambiente ou de heredietariedade”.

O ato decisório proferido, não se limita apenas ao que está na lei: Ele diz o que determina a norma, entretanto, afeta as relações de poder estabelecidas naquela relação familiar tendo inclusive a possibilidade de rompê-la e, em alguns casos, de inverter os pólos de dominação. É o que acontece na alienação parental, examinada pelo direito como um prática condenável, por privar um dos pais da convivência e do afeto do filho bem como, por fazer da criança

5 Ibdem., p. 81 op. cit. PEREIRA, Rodrigo da Cunha. A Sexualidade Vista pelos Tribunais. 2ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. 6 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: História de Violência nas Prisões. 17ª ed. Petrópolis: Vozes. 1998. p. 19.

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ou do adolescente uma moeda de troca dentro da relação desgastada dos ex-cônjuges, mas, na realidade outras vertentes inserem-se nesta situação.

1. ALIENAÇÃO PARENTAL

A Lei n.º 12. 318 de 26 de Agosto de 20107, em seu artigo 2º, define o que seja a alienação parental:

Considera-se o ato de alienação parental a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este.

Da leitura, do citado artigo alguns elementos sobressaem: 1º a existência de criança ou adolescente; 2º que esteja sob a guarda, autoridade ou vigilância; 3º de um dos genitores, avós, ou de terceiro; 4º que atuem no sentido de prejudicar ou deteriorar o vínculo entre àqueles e o outro genitor. Note-se, guarda, autoridade8 (direito ou poder de se fazer obedecer) ou vigilância são termos que denotam submissão a um poder e ato contínuo à uma relação de dominação.

A alienação parental causa uma síndrome9 com a mesma denominação, entendida como:

Síndrome da Alienação Parental (SAP), também conhecida em inglês PAS, é o termo proposto por Richard Gardner em 1985 para a situação em que a mãe ou pai de uma criança a treina para romper os laços afetivos com o outro genitor, criando fortes sentimentos de ansiedade e temor em relação ao outro genitor.

7 BRASIL. Lei n.º 12.318 de 26 de Agosto de 2010. Disciplina e Regulamenta a Alienação Parental e altera o artigo 236 da Lei n.º 8.069 de 13 de Julho de 1.990. Diário Oficial da União de 27 d Agosto de 2010. Disponível em: http:// www. planalto. gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12318.htm. Acesso em: 30/07/2014.8 FERREIRA. Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio Básico da Língua Portuguesa. 1ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fromteira S/A. 1994. p. 74. 9 O Que é a Alienação Parental. Disponível em: http://www.alienacaoparental.com.br/o-que-e. Acesso em: 29/07/2014.

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Os casos mais frequentes da Síndrome da Alienação Parental estão associados a situações onde a ruptura da vida conjugal gera, em um dos genitores, uma tendência vingativa muito grande. Quando este não consegue elaborar adequadamente o luto da separação, desencadeia um processo de destruição, vingança, desmoralização e descrédito do ex-cônjuge. Neste processo vingativo, o filho é utilizado como instrumento de agressividade direcionada ao parceiro.

Façamos a análise do tema proposto, delimitando nosso estudo sobre a alienação parental como o exposto na definição acima, ou seja, aquela ocorrida entre casais onde a ruptura do relacionamento cause no cônjuge inconformado, o sentimento de vingança que chamaremos de desejo de punir, em relação ao outro cônjuge, aqui personificado pelo corpo objeto de punição. (como nos ensina Foulcault).

Ao filho, cabe a situação de subjugação aos poderes de determinação e mando, ou seja, ao domínio, exercido pelo genitor que detenha sua guarda. Toda a situação, surge de um rompimento, entre duas pessoas, que judicializaram a separação dando ensejo à um decreto judicial que aplicou uma norma que deverá ser obedecida por aqueles à quem ela se dirige. A sentença, por sua vez, diz a quem caberá a guarda da criança ou adolescente, o dever de prestar os alimentos e quem terá de fazê-lo, e estatui um regime de visitas àquele que deverá ter o filho consigo aos finais de semana, às vezes alternados, durante 15 dias das férias de julho, 30 dias nas férias de final de ano, em aniversários do filho alternadamente entre os genitores o mesmo com a natais e ano-novo.

O ato decisório, emanado do Estado- juiz, a autoridade, confere um regramento à situação de fato mas, como dissemos anteriormente, lembrando Foucault, interfere na esfera das paixões e dos instintos dos envolvidos na ação. Torna-se indissociável a sentença de seus efeitos reflexos, provindos da gama de sentimentos e questões psicológicas, ou melhor seria dizer, consequências provindas dos sentimentos e de tudo aquilo que a própria natureza humana pode manifestar quando contrariada em seus interesses mais íntimos.

O cônjuge inconformado com a ruptura da relação, com o que a sentença tornou concreto, passa então aos atos de punição do outro, manejando o filho (dominado) instigando-lhe a aversão ou até mesmo o ódio contra o genitor que não lhe detém a guarda. Estabelece-se outra relação de poder em que temos, o genitor alienante (dominador) – a criança ou adolescente (dominado) – o genitor excluído da relação afetiva (punido), o que nos confere instrumentos à analise proposta inicialmente neste trabalho.

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2. FOUCAULT E A ALIENAÇÃO PARENTAL

Quando da leitura do Capítulo I da obra Vigiar e Punir, Foucault nos leva a conhecer um universo onde a dor causada, pela punição aos criminosos, era contemplada como um espetáculo, por todos os que participavam daquele momento que, em tese, deveria ser de corrigenda ou retificação ao delito praticado, mas que tinha feições de um entretenimento depreciativo da criatura levada à execração pública.

Com o surgimento das prisões, houve o deslocamento da punição para os pátios daqueles estabelecimentos, evitando a exposição do suplicio à sociedade; E Foucault10 ressalta as motivações dessa mudança no proceder à condenação:

Desde então o escândalo e luz serão partilhados de outra forma; é a condenação que marcará o delinquente com sinal negativo e unívoco: publicidade, portanto, dos debates e da sentença; quanto à execução, ela é como uma vergonha suplementar que a justiça tem vergonha de impor ao condenado; ela guarda distância, tendendo sempre a confiá-la a outros e sob a marca do sigilo. É indecoroso ser passível de punição, mas pouco glorioso punir.

Comparando, a questão do sentenciar e punir como ocorriam e passaram a ocorrer, explanado por Foucault, com a questão da judicialização das demandas de família, nota-se um movimento inverso. O autor nos mostra que a havia a exposição do culpado desde proferida a sentença até o martírio condenatório, tudo era público e passou a ser sigiloso, privado no que toca ao menos à execução da pena; Quanto à família, inicialmente tudo o que acontecia dentro dos seus limites, restringia-se ao sigilo, hoje, ao contrário do que tínhamos outrora, com a possibilidade legal de se ingressar judicialmente visando a resolução dos problemas familiares, partimos para uma publicização destas relações, mesmo que em termos, uma exposição do que antes era íntimo e privado.

São perturbadoras, as colocações do autor quanto às preocupações daqueles que tinham como função a execução das penas, a punição, em se modular os castigos11, [...] Punições menos diretamente físicas, certa discrição

10 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: História da violência nas prisões. 17ª ed. Petrópolis: Vozes. 1998. p. 13. 11 Idem, p. 12.

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na arte de fazer sofrer, um arranjo de sofrimentos mais sutis, mais velados e despojados de ostentação, [...]”. Por acaso, não é exatamente isto que temos na alienação parental? Quando o alienante, segrega o filho da convivência com o genitor, não se impõe à este último uma punição que não é física, é velada pois se utiliza do afeto que o “punido” tem por seu filho e, longe de ser evidenciada “despojada de ostentação”, tornando-se insidiosa.

Os mecanismos utilizados pelo genitor alienante, para punir o outro genitor são consubstanciados nas seguintes posturas12: 1º Excluir o outro genitor da vida dos filhos (tomando, por exemplo, todas as decisões sobre a educação ou criação da prole comum); ou 2º Interfere nas visitas (controle dos horários, retira os filhos de casa no horário em que deverão estar com outro genitor, impede que a criança veja o pai ou mãe); poderá também, 3º Atacar a relação entre filho e seu genitor (obrigando o filho a escolher um do genitores, forçando a criança a espionar o ex-cônjuge, sugerindo ao filho que seu genitor é perigoso ou possui personalidade violenta) e, por fim, 4º denegrindo à imagem do outro genitor (com falsas acusações de prática de atos delituosos ou criminosos, comentários que desqualificam a conduta do outro, com críticas à conduta profissional.

A manobra, utilizada pelo genitor alienante na alienação parental é visivelmente insidiosa, pois o objetivo principal de sua conduta é retirar do ex cônjuge não apenas a presença física do filho bem como destruir toda uma relação de afeto existente entre eles, como meio de punir, uma forma de castigá-lo pelo rompimento da relação conjugal ou da união estável. O viés de pena, imposta pelo cônjuge inconformado com a separação, ao outro, é nítido. Ele não se satisfaz apenas com a expiação do corpo do outro, ao contrário, é necessário que o sofrimento impingido atinja o âmago do “culpado”, não basta que lhe fira os sentimentos mais nobres, os sentimentos que este nutre pelo filho, não, a dor causada pela alienação (parental) deverá lhe atingir na alma.

Se não é mais ao corpo que se dirige a punição, em suas formas mais duras, sobre que, então, se exerce? A resposta dos teóricos – daqueles que abrira, por volta de 1780, o período que ainda não se encerrou – é simples, quase evidente. Dir-se-ia na própria indagação. Pois não é mais o corpo, é a alma. À expiação que tripudia sobre o corpo deve suceder um castigo que atue, profundamente, sobre o coração, o intelecto, a vontade, as disposições. Malby formulou o princípio decisivo:

12 O Que é a Alienação Parental. Disponível em: http://www.alienacaoparental.com.br/o-que-e. Acesso em: 29/07/2014.

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Que o castigo, se assim posso exprimir, fira mais a alma que o corpo.

As palavras de Foucault são de uma contemporaneidade e de uma verdade intensamente cortantes, e ouso dizer, sim, desconcertantes; É a realidade, batendo às nossas portas, às portas do judiciário, ainda hoje. Ao olhar a alienação parental sob este prisma, deparamo-nos com a profunda complexidade das relações que dela surgem violentamente. Ainda que, a postura do genitor alienante em relação à prole e ao outro genitor não seja revestida da consciente existência da relação de poder que se estabelece, não deixa esta de se consubstanciar em seus atos.

O genitor, a quem a punição é imposta, dispõem de um mecanismo de defesa normatizado, ou seja, poderá tomar as medidas legais cabíveis a fim de fazer cessar a alienação parental e resguardar a integridade física, mental e emocional de seu filho; Novamente, o Estado-juiz será chamado à atuar e, em sua atuação necessariamente haverá a intervenção da interdisciplinaridade, leia-se laudos psico-sociais e por vezes até mesmo laudos médicos e de pedagogos para que a sentença proferida seja justa. Percebe-se o círculo vicioso que a situação gera, pois anteriormente já se proferiu sentença que com suas regras definiu a separação do casal e a situação dos filhos, agora, faz-se novo regramento para preservar os filhos (a quem se deferiu tutela protetiva anterior, desrespeitada pela alienante) e restaurar os direitos do genitor preterido da convivência filial.

Ao se opor, às manipulações do ex-cônjuge alienante, o prejudicado procura fazer cessar a “punição” que lhe foi imposta em detrimento, também, da prole do casal. Esta inversão ou transpasse na relação de poder estabelecida na alienação parental é definida por Foucault13:

Esse poder, por outro lado, não se aplica pura e simplesmente como uma obrigação ou uma proibição, aos que “não têm”; ele os investe, passa por eles e através deles; apóia-se neles, do mesmo modo que eles, em sua luta contra esse poder, apóiam-se por sua vez nos pontos em que ele os alcança. O que significa que essas relações aprofundam-se dentro da sociedade, que não se localizam nas relações do Estado com os cidadãos, ou na fronteira das classes e que não se contentam em reproduzir ao nível dos indivíduos, dos corpos, dos gestos e

13 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: História da violência nas prisões. 17ª ed. Petrópolis: Vozes. 1998. p. 26.

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dos comportamentos, a forma geral da lei ou do governo; que se há continuidade (realmente elas se articulam bem, nessa forma, de acordo com toda uma série de complexas engrenagens), não há analogia nem homologia, mas especificidade do mecanismo e de modalidade.

Estabelece-se o embate: o filho, não tem autonomia para insurgir-se, falta-lhe principalmente quando tratamos de crianças, a capacidade de autodeterminação, por isso a dominação sem resistência (a dominação pressupõe uma aceitação da sujeição ou impossibilidade de insurgir-se contra ela); O alienante/dominador entende-se no direito de punir àquele que com ele não deseja mais manter vínculos; O genitor, o qual tem a “alma” castigada, assiste à dominação imposta ao filho e passa a fazer parte de uma relação de poder onde quem tem a guarda da prole, determina as “penas” que devem afligir o lado oposto. Isto, contudo, não impede que ocorra a insurgência14, que o repúdio aos atos do alienante se verifiquem, basta que o genitor preterido perceba que pode e deve levantar-se, ou, em última análise, deve reconhecer-se, também, detentor de um poder.

O filho, por sua vez, vive um drama; Fica ele, entre os genitores, sem poder defender-se das insídias do alienante, de suas imposições e chantagens emocionais ou materiais, que podem lhe causar transtornos físicos, psicológicos e emocionais; Depende, em regra, que alguém o defenda do genitor alienante, pois embora seja utilizado como objeto na punição perpetrada contra o outro genitor, não deixa de ser punido, já que não poderá usufruir da convivência paterna. O grau de tensão estabelecido entre os envolvidos na alienação parental é enorme.

A questão da sujeição nascida na alienação parental tem em si, toda uma problemática secular de sujeição do indivíduo, seja à família, à sociedade, à normatividade, no trabalho, no grupo religioso de que participa; Foucault15 esclarece que, O homem de que nos falam e que nos convidam a liberar já é em si mesmo o efeito de uma sujeição bem mais profunda que ele. Uma “alma” o habita e o leva à existência, que é ela mesma uma peça no domínio exercido pelo poder sobre o corpo. A alma, efeito e instrumento de uma anatomia política: a alma, prisão do corpo.

14 Foucault fala-nos das lutas: “Finalmente, não são unívocas; definem inúmeros pontos de luta, focos de instabilidade comportando cada um seus riscos de conflito, de lutas e de inversão pelo menos transitória da relação de forças.” FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: História da violência nas prisões. 17ª ed. Petrópolis: Vozes. 1998. p. 27. 15 Idem, p. 29.

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A partir do momento que, o genitor preterido, sai da situação de punido e, como dito anteriormente, percebe-se também capaz de reverter a situação da alienação, toma em suas mãos, pelo conflito, através da luta (medidas legais cabíveis) para restabelecer o convívio com o filho alienado, tem-se uma inversão das relações de forças. Desta relação de poder extraí-se certos saberes, conhecimentos do poder que, no exemplo acima, poderá ser o propulsor da necessária reversão relacional.

A intervenção estatal, para fazer cessar a alienção parental, por óbvio não se iniciará voluntariamente, mas pela provocação do interessado; Contudo, o conhecimento adquirido, por aquele que se opõem aos “castigos” do alienante, lhe dão força para agir e reverter a situação que inclusive, poderá, quanto a gravidade do caso, lhe conceder a guarda do filho (artigo 6º, inciso VII da Lei 12.318/10).

Esse saber, que se adquire da vivência das relações de poder, está presente na alienação parental; Enquanto apenas o alienante, conhecer os meios e as formas que lhe propiciam as práticas de alienação, o filho e o genitor “punido” permaneceram à sua mercê; Mas, quando este último também adquirir o conhecimento dos mecanismos da alienação, dos meios utilizados pelo alienante e, quando se conscientiza (passa a saber) de que pode insurgir-se contra aquele poder manipulador, a relação anteriormente vivenciada transmuta-se em outra.

De uma lucidez extrema, os ensinos de Foucault nos alertam para o fato de que:

Esta alma real e incorpórea não é absolutamente substância; é o elemento onde se articulam os efeitos de um certo tipo de poder e a referência de um saber, a engrenagem pela qual as relações de poder dão lugar a um saber possível, e o saber reconduz e reforça os efeitos de poder. Sobre essa realidade-referência, vários conceitos foram construídos e campos de análise foram demarcados: psique, subjetividade, personalidade, consciência, etc.

CONCLUSÃO

O estudo da família e principalmente das relações que dela decorrem, sempre enseja debates acirrados, ora mais conservadores, ora mais emblemáticos ou controvertidos; O fato é que, a família tem em sua essência algo do sagrado, do inexpugnável que não pode nem deve ser violado, seja por razões históricas

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ou culturais. O certo é que, adentrar a seara do direito de família, principalmente de temas como abandono afetivo, alienação parental, família homoafetiva e aos relacionados à reprodução assistida, ainda suscitam muitas discussões. Isto não significa, que fatos relacionados a estas questões, não ocorram todos os dias.

Não apenas ocorrem, como adentram os tribunais, para que o Estado, representado pelos magistrados, solucionem a controvérsia estabelecida dentro da família. A transposição das fronteiras do íntimo e privado, tratando-se da família, para o público, dão novos parâmetros a estas relações. Há, em juízo, a exposição dos problemas e mazelas familiares, a fim de ter a solução por meio da sentença, que é ato estatal, público (sujeito à publicação na imprensa oficial) e de comando direito, pois emana uma ordem.

A família, na atualidade, tem como elemento formador o afeto. O que não se deve esquecer é que, quando do rompimento dos vínculos na família, relega-se o afeto a segundo plano, ou pior, não há mais afeto algum. A situação, que utilizamos para ilustrar a alienação parental é um caso típico, onde o afeto extingui-se, entre, aqueles que eram casados ou viviam em união estável ou mantiveram um relacionamento afetivo e, em seu lugar surge a premente ânsia da vingança, transfigurada em um equivocado direito de punir, exercitado por aquele que não aceita a separação.

O afeto permanece apenas em relação ao filho. Mas, alguns podem perguntar: O alienante tem algum afeto pelo filho alienado? Como alguém que ama, poderá obrigar o filho a escolher, por exemplo, entre os seus genitores? Ou insuflar no filho a repulsa ao outro genitor? Que tipo de afeto é este? Esta é uma questão para ser resolvida, a nosso ver, pela psiquiatria, mas poderemos usar o exemplo de Medéia16 que, ao ser deixada pelo esposo Jasão, após conseguir livrar-se da rival, mata os filhos do casal para vingar-se do amado. Tamanha obsessão, fê-la acreditar-se no direito de “punir” Jasão, mesmo que para tanto ceifasse a vida dos próprios filhos. Podemos perguntar: O que teria ela pensado neste momento? Quais as relações de poder estabelecidas entre eles?

Analisar a alienação parental, sob a ótica das lições deixadas por Foucault, impõe que se tenha uma nova visão sobre o problema; Não há a possibilidade de examinar superficialmente o tema sem que nos confrontemos com as questões ligadas as relações de poder e de dominação. Ademais, o caráter punitivo da atitude do alienante em relação ao genitor impedido da convivência filial transparece, com uma clareza inquestionável.

Que não se faça um juízo de valor moral sobre os fatos, mas apenas uma análise acerca dos fins e desdobramentos desta conduta onde um dos genitores, toma em suas mãos o poder de punir, não importando se os que sofreram sua

16 DUTRA. Enio de Moraes. O Mito de Medéia em Eurípedes. Disponível em: http://w3.ufsm.br/revistaletras/artigos_ r1/revista1_8.pdf. Acesso em: 30/07/2014.

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ação sejam ou não culpados pelo rompimento do vínculo do casal; Basta que em seu entender exista a imperdoável culpa do outro, culpa que merece castigo, que atinja não no corpo, mas na alma, em seus afetos para com o filho, lhe causando insuportável dor (o suplício).

O suplício só cessará quando, àquele a quem ele é infligido, conhece das engrenagens do poder e adquire o saber deste poder. Rebela-se contra o estabelecido pelo alienante e transfigura a relação de poder.

Para aqueles que convivem com a alienação parental, principalmente aos filhos, não parece fácil modificar este estado de coisas, tendo em vista que o alienante é manipulador e sua atitude de total controle sobre a criança e o adolescente causam no outro genitor, receio de agravar ainda mais a delicada situação do filho. Entretanto, a privação do contato com aqueles que se ama, e a dor por ela causada, podem levar o genitor excluído da relação afetivo filial, a racionalizar a situação compreendendo-se capaz de modificar o quadro de alienação, fazendo-o judicialmente.

Tem-se visto, diariamente nos noticiários da televisão, casos de pais que para punirem o ex parceiro, chegam ao extremo de desaparecerem, fugirem com os filhos, sem olharem para trás. Por outro lado, também ouvimos os casos de pais que sofriam com a alienação parental e que cansados de não terem o contato com o filho, chegam ao ponto de sequestrar a criança, para tê-la consigo. Neste último caso, é comum ouvirmos que o genitor ingressou judicialmente com um pedido para fazer cessar a alienação parental, mas que dada a morosidade da justiça ou sua ineficiência, ele decidiu agir por conta própria (exercendo o poder de se soube possuidor).

De qualquer forma, ao analisarmos a alienação parental, concordamos com Focault ao falar da microfísica do poder:

Trata-se de alguma maneira de uma microfísica do poder posta em jogo pelos aparelhos e instituições, mas cujo campo de validade se coloca de algum modo entre esses grandes funcionamentos e os próprios corpos com sua materialidade e suas forças.

A partir do instante em que, advogados, promotores, juízes, psicólogos, assistentes sociais, médicos, todos os que de algum modo atuam em uma ação sobre alienação parental, conseguirem perceber as verdadeiras engrenagens que movem o seu existir (as relações de poder estabelecidas, a dominação, a punição), conciliando este conhecimento com o direito/enunciado normativo, será possível que se atenda com mais eficácia os envolvidos nesta dura realidade, restabelecendo entre os membros da família os laços de afeto que devem existir entre eles.

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REFERÊNCIAS

ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 10ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária. 2007.

BRASIL. Lei n.º 12.318 de 26 de Agosto de 2010. Disciplina e Regulamenta a Alienação Parental e altera o artigo 236 da Lei n.º 8.069 de 13 de Julho de 1.990. Diário Oficial da União de 27 d Agosto de 2010. Disponível em :http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12318.htm. Acesso em: 30/07/2014.

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2009.

DUTRA. Enio de Moraes. O Mito de Medéia em Eurípedes. Disponível em: http://w3.ufsm.br/ revistaletras/artigos_r1/revista1_8.pdf. Acesso em: 30/07/2014.

FERREIRA. Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio Básico da Lín-gua Portuguesa. 1ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fromteira S/A. 1994. p. 74.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: História de Violência nas Prisões. 17ª ed. Petrópolis: Vozes. 1998.

O Que é a Alienação Parental. Disponível em: http://www.alienacaoparental.com.br/o-que-e. Acesso em: 29/07/2014.

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A FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA COMO FORMA DE VALORIZAÇÃO DA PESSOA HUMANA

Claudia Elly Larizzatti Maia17

Eliete Doretto Dominiquini18

RESUMO

O presente artigo tem por objetivo verificar se, a função social da empresa, cujo fundamento está presente no artigo 170, inciso III da Constituição Federal de 1988, é capaz de promover a valorização da pessoa humana. Os direitos de terceira dimensão estão voltados à tutela da solidariedade e, neste sentido, a sociedade empresária, socialmente responsável e preocupada com a ética empresarial e ambiental, não deve preocupar-se apenas com a lucratividade, mas buscar, por meio de sua atividade empresária, a melhoria das condições de toda a sociedade, a proteção ao meio ambiente e o desenvolvimento sustentável. O artigo analisa, também, aspectos da globalização, do direito econômico e sua relação com o desenvolvimento sustentável. Por meio de extensa pesquisa bibliográfica, este artigo utiliza o método hipotético-dedutivo para atingir o objetivo almejado.

Palavras-chave: Empresa; Desenvolvimento Sustentável; Globalização; Dignidade da Pessoa Humana.

SUMÁRIO: Introdução. 1. Globalização e Desenvolvimento Sustentável. 1.1. Fundamentos do Desenvolvimento Sustentável e da Proteção ao Meio Ambiente. 2. A Função Social da Empresa e o Direito ao Meio Ambiente Ecologicamente Equilibrado. 3. O Desenvolvimento Sustentável, a Função Social da Empresa e a Efetividade do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO

O presente artigo utilizará o método hipotético-dedutivo, com o objetivo de verificar se a função social da empresa, cujos objetivos de atender aos interesses e necessidades da sociedade como um todo, promovendo o

17 Advogada, mestranda em Direito pela Universidade Nove de Julho, na linha de pesquisa Empresa, Sustentabilidade e Funcionalização do Direito; e-mail: [email protected] Advogada, mestranda em Direito pela Universidade Nove de Julho, na linha de pesquisa Empresa, Sustentabilidade e Funcionalização do Direito; e-mail: [email protected].

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desenvolvimento sustentável, é capaz de promover a valorização da pessoa humana, com a adoção de práticas sustentáveis.

O desenvolvimento sustentável, acolhido pela Constituição Federal no caput de seu artigo 225. Impõe ao Poder Público e à coletividade, o dever de defesa e preservação do meio ambiente, para as presentes e futuras gerações.

E o direito ao desenvolvimento pertence aos direitos de terceira dimensão, cuja tutela está voltada ao princípio da solidariedade. Este direito somente poderá ser suprido pela união e esforços de toda sociedade, para a construção de um mundo melhor e mais justo. O princípio da solidariedade está voltado para a concretização da paz, do desenvolvimento econômico e de um meio ambiente saudável. E a empresa, por seu importante papel na sociedade, não pode apenas preocupar-se com o lucro, deixando de lado a questão da ética ambiental e do desenvolvimento sustentável.

Para melhor expor o tema, optou-se, primeiramente, a analisar a aspectos da globalização e do desenvolvimento sustentável, bem como seus fundamentos. Em um segundo momento, analisaremos como a função social da empresa e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. E, para finalizar, serão tratados os fundamentos e a efetividade do princípio da dignidade da pessoa humana, bem como a hipótese de sua promoção pela função social da empresa.

1. GLOBALIZAÇÃO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

Na atualidade, sabe-se que aquilo que prejudica o meio ambiente em um determinado local, atinge o planeta como um todo. Por essa razão, muitas das empresas socialmente responsáveis estão preocupadas com a questão ambiental, adotando medidas sustentáveis em sua atividade empresarial.

Deste modo, a problemática a respeito da sustentabilidade hoje está presente em praticamente todas as atividades desenvolvidas pelo homem e, com todas as importantes implicações econômicas e sociais acarretadas pelo tema, a atividade empresarial não poderia estar alheia a essa discussão.

A globalização é um fenômeno que abrange aspectos econômicos, sociais, culturais e políticos, integrando o espaço mundial com o fluxo intenso de capitais, serviços e tecnologia entre os países e encurtando distâncias, promove mudanças significativas nos Estados-nação e na sociedade em geral.

Importante, então, fazermos uma breve introdução ao que entendemos por globalização: Ulrich Beck, em sua obra O que é globalização?, faz uma diferenciação entre globalização ou globalidade, e globalismo. Para o autor, globalismo designaria a concepção de que o mercado mundial bane ou substitui, ele mesmo, a ação política, dentro de uma ideologia neoliberal, restringindo assim

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a multidimensionalidade da globalização à dimensão econômica. As dimensões da globalização, ou seja, relativas à ecologia, à política, à cultura e à sociedade civil, estariam sujeitas ao mercado mundial. Já a globalização superaria essa unidimensionalidade, infligida pelo discurso do globalismo, impondo assim aos Estados nacionais a verem a sua soberania, a sua identidade, as suas redes de comunicação, as suas chances de poder e as suas orientações sofrerem a interferência cruzada de atores transnacionais. É um processo pluridimensional irreversível, que produz as conexões e os espaços transnacionais e sociais, que se desenvolvem nos mais variados âmbitos sociais, escapando da subordinação do Estado-nação (BECK, 1999, pp. 27-32).

Ulrich Beck entende que globalização significa politização, pois,

o aparecimento da globalização permite aos empresários e suas associações a reconquista e o pleno domínio do poder de negociação que havia sido politicamente domesticado pelo Estado do bem-estar social capitalista organizado em bases democráticas. A globalização viabilizou algo que talvez já fosse latente no capitalismo, mas ainda permanecia oculto no seu estágio de submissão ao Estado democrático do bem-estar, a saber: que pertence à empresa, especialmente àquelas que atuam globalmente, não apenas um papel central na configuração da economia, mas a própria sociedade como um todo – mesmo que seja “apenas” pelo fato de que ela pode privar a sociedade de fontes materiais (capital, impostos, trabalho) (BECK, 1999, p. 14).

O mencionado autor sustenta, ainda, que a economia globalizada, enterra os fundamentos do Estado e da economia nacional, o que estaria de acordo com a desestruturação do Estado moderno que ora se observa. Para Beck, o aparecimento da globalização romperia não apenas com as correntes sindicais, mas também com as do Estado nacional, pelo desmantelamento do aparelho e da tarefa do Estado com vistas à “concretização da utopia anarco-mercadológica do Estado mínimo” (BECK, 1999, p. 16).

Nestes termos, o reconhecimento da necessidade da promoção do desenvolvimento sustentável para o planeta, é um aspecto positivo da globalização, ainda que se encontre em diferentes estágios nos diversos Estados nacionais.

A globalização, na visão de Luiz Alberto G. S. Rocha,

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É a formação da leitura dos problemas mundiais conjuntamente, indicando a tendência de entendê-los unidos. Isto quer dizer que a globalização, enquanto idéia, é um verbete conceitual sem cognição própria aceitando, em certo sentido, qualquer valor que lhe seja atribuído, o que não poderá ser realizado sem boa dose de discussão histórico-comparativa de seu desenvolvimento. Sendo, por isso, necessariamente objeto de tratamento interdisciplinar (ROCHA, 2008, p. 79).

Entretanto, os progressos da globalização devem ser recebidos com muita cautela, pois apesar da chamada “aldeia global”, e de muitas crises em diferentes países parecerem idênticas, as soluções não podem ser igualmente idênticas, haja vista as grandes diferenças culturais e estruturais dos diferentes Estados nacionais. Tentar enfrentar uma crise por uma receita universal geralmente ocasiona a fabricação de perversidades para a maior parte da humanidade (ROCHA, 2008, p. 107).

Maria Cristina Cesar de Oliveira assevera que, a crise ecológica global, fundada principalmente nos impactos negativos causados pelos sistemas industriais, desenvolvidos pela influência da ciência e tecnologia, tem levado à possibilidade da ocorrência de danos catastróficos e irreversíveis para a sociedade como um todo. Caracterizado como sociedade de risco, termo utilizado por Ulrich Beck, um dos fenômenos característicos da modernidade, diz respeito ao fato de que a produção social de riqueza é acompanhada, sistematicamente, pela produção social de riscos, e os problemas de divisão, existentes na sociedade da carência, são substituídos pela produção, definição e divisão dos riscos de origem técnico-científica (OLIVEIRA, 2009, pp. 38-39).

Para Ulrich Beck, somos testemunhas oculares (sujeitos e objetos) de uma sociedade no interior da modernidade, a qual se destaca dos contornos da sociedade industrial clássica e assume uma nova forma: a sociedade (industrial) de risco. Assim como no século XIX, a modernização dissolveu a esclerosada sociedade agrária estamental, depurando-a e extraindo a imagem estrutural da sociedade industrial, hoje a modernização dissolve os contornos da sociedade industrial e, na continuidade da modernidade, surge uma nova configuração social, a sociedade de risco, marcada fundamentalmente por uma carência: a impossibilidade de imputar externamente as situações de perigo (BECK, 2011, pp. 12-13).

Flávia Piovesan entende que o princípio do desenvolvimento sustentável seria um reflexo da visão política relacionada à problemática ambiental. Consagrada pela Conferência das Nações Unidas sobre Meio

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Ambiente e Desenvolvimento, a proteção do meio ambiente possuiria a mesma importância dos valores econômicos e sociais protegidos pela ordem jurídica vigente. A exploração dos recursos naturais de maneira racional, consciente e eficiente; a preservação, a restauração dos ecossistemas e dos processos ecológicos essenciais para as futuras gerações; bem como o controle das atividades potencialmente poluidoras, estão implícitos neste princípio constitucional (PIOVESAN, 2013, a, p. 54).

De modo que o desenvolvimento deve ser concebido, ainda segundo mencionada autora, como um processo de expansão das liberdades reais, que as pessoas podem usufruir. Adota a concepção de Amartya Sen, para quem a expansão da liberdade é vista concomitantemente como uma finalidade em si mesma, e seu principal significado é o desenvolvimento (PIOVESAN, 2013, a, p. 48).

Amartya Sen procura demonstrar que o desenvolvimento pode ser visto como um processo de expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam, e essas liberdades dependem não apenas de índices como o Produto Nacional Bruto, ou do aumento das rendas pessoais, industrialização, avanço tecnológico ou modernização social. Dependem, também, das disposições sociais e econômicas, como serviços de educação e saúde, e do respeito aos direitos civis. O desenvolvimento depende também da remoção das principais fontes de privação da liberdade, como pobreza e tirania, carência de oportunidades econômicas, negligência dos serviços públicos, intolerância e repressão estatal (SEN, 2012, pp. 16-17).

Amartya Sen entende, ainda, que a expansão da liberdade humana é o principal fim e meio do desenvolvimento, e o objetivo do desenvolvimento relaciona-se à avaliação das liberdades reais desfrutadas pelas pessoas:

As capacidades individuais dependem, crucialmente, entre outras coisas, de disposições econômicas, sociais e políticas. Ao se instruírem disposições institucionais apropriadas, os papéis instrumentais de tipos distintos de liberdade precisam ser levados em conta, indo-se muito além da importância fundamental da liberdade global dos indivíduos. [...] Correspondendo a múltiplas liberdades inter-relacionadas, existe a necessidade de desenvolver e sustentar uma pluralidade de instituições, como sistemas democráticos, mecanismos legais, estruturas de mercado, provisão de serviços de educação e saúde, facilidades para a mídia e outros tipos de comunicação, etc. [...] Os fins e os meios

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do desenvolvimento exigem que a perspectiva da liberdade seja colocada no centro do palco. Nessa perspectiva, as pessoas têm de ser vistas como ativamente envolvidas – dada a oportunidade – na conformação de seu próprio destino, e não apenas como beneficiárias passivas dos frutos de engenhosos programas de desenvolvimento. O Estado e a sociedade têm papéis amplos no fortalecimento e na proteção das capacidades humanas. São papéis de sustentação, e não de entrega sob encomenda. [...]. (SEN, 2012, pp. 76-77).

Na mesma linha de raciocínio, José Eli da Veiga entende que, o desenvolvimento, não se confunde com crescimento econômico. Este seria apenas uma condição necessária, mas não suficiente. O desenvolvimento depende de cultura, e não se pode ignorar as relações complexas das sociedades humanas e a evolução da biosfera. A sustentabilidade, por sua vez, dependerá da capacidade das civilizações humanas de se submeterem aos preceitos de prudência ecológica e de fazer bom uso dos recursos naturais (VEIGA, 2010, pp. 9-10).

E Juarez Freitas define o princípio do desenvolvimento sustentável como

(...) o princípio constitucional que determina, com eficácia direta e imediata, a responsabilidade do Estado e da sociedade pela concretização solidária do desenvolvimento material e imaterial, socialmente inclusivo, durável e equânime, ambientalmente limpo, inovador, ético e eficiente, no intuito de assegurar, preferencialmente de modo preventivo e precavido, no presente e no futuro, o direito ao bem-estar (FREITAS, 2012, p. 41).

A noção de multidimensionalidade da sustentabilidade sustentada por Juarez Freitas, está em sintonia com as noções de José Eli da Veiga, pois esta não se coaduna com a crença no crescimento material como fim em si, importando preservar o legado da biodiversidade. O progresso material não pode sonegar o imaterial, devendo também estar indissoluvelmente associado ao bem estar duradouro, no que tange ao stress climático e às vulnerabilidades sociais. Isto implica na prática da equidade, tanto na relação com as gerações futuras, quanto

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com a presente, a fim de erradicar a miséria, as estruturas de injustiças e as discriminações, promover a segurança e a reeducação alimentar, entre outros, requerendo assim uma cidadania ecológica ativista do bom desenvolvimento, aliada da justiça ambiental (FREITAS, 2012, pp. 50-54).

Já Serge Latouche possui uma visão radical sobre o desenvolvimento sustentável. Entende que o decrescimento, o qual inspira comportamentos individuais e coletivos, seria assimilável ao desenvolvimento sustentável. Decrescimento seria um slogan com implicações teóricas. Não se trata de um crescimento negativo, mas de uma bandeira levantada por aqueles que procederam a uma crítica radical do desenvolvimento, e querem desenhar os contornos de um projeto alternativo para uma política do após-desenvolvimento. Para eles, a sociedade viverá melhor trabalhando e consumindo menos, abrindo-se assim espaço para a inventividade e criatividade no imaginário bloqueado pelo totalitarismo economicista, desenvolvimentista e progressista (LATOUCHE, 2009, pp. 4-6).

O “círculo virtuoso” do decrescimento sereno (conceito criado por Serge Latouche) baseia-se no que o autor chama de oito “erres”, no intuito de desencadear um processo de decrescimento sereno, convivial e sustentável: reavaliar, ideia de preocupação com a verdade. Não se pode imaginar sociedade de decrescimento que tenha indivíduos moldados pelo imaginário e pelo modo de vida da sociedade de consumo; reconceituar, ou seja, outro olhar sobre o mundo. Retirar essa ideia que se usa apenas os recursos naturais para serem mercantilizados; reestruturar, adaptar o aparelho de produção e as relações sociais a partir da mudança de valores. Abandono ao capitalismo; redistribuir, ou seja, a repartição de riquezas e acesso ao patrimônio natural; relocalizar, produzir localmente, os movimentos de mercadorias devem ter limitações de fronteiras, com objetivo: reencontrar raiz territorial; reduzir, limitar excesso de consumo e desperdício; reutilizar; e reciclar (LATOUCHE, 2009, pp. 42-54).

A proteção ao meio ambiente é, portanto, dever de toda a sociedade. E o princípio do desenvolvimento sustentável busca assim garantir uma relação harmônica entre os homens, o meio ambiente e o crescimento econômico, de modo que as futuras gerações tenham também a oportunidade de gozar dos mesmos recursos que estão à nossa disposição das presentes gerações.

O setor privado, mesmo que ainda em escala reduzida, tem buscado atrair e motivar talentos, aumentar a competitividade, a eficiência e a redução de custos. Fernando Almeida, no prefácio da obra Conversas com os Mestres da Sustentabilidade, avalia que, somente a atividade empresarial com visão de futuro, sobreviverá a longo prazo, e existem pontos interconectados que deverão permanecer na agenda dos gestores, como a redução dos riscos, a influência sobre inovação de produtos e serviços, o fortalecimento da imagem da marca e

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da reputação e melhoria da imagem da empresa, ligados ao progresso social e à preservação do meio ambiente (MAZUR, 2010, p. XIV).

Assim, a empresa tem papel vital nas melhorias de condições de vida da sociedade, sendo também responsável pela promoção do desenvolvimento sustentável do planeta, posto que “as ações sociais empresariais estão conectadas com as necessidades da sociedade e objectivamente, são uma forma de provisão de bem-estar social” (COSTA; SANTOS; SEABRA; JORGE, 2011, p. 18).

1.1. FUNDAMENTOS DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E DA PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE

O conceito de desenvolvimento sustentável ainda está em construção, e, em função de sua multidimensionalidade, não está relacionado apenas à esfera ambiental, porém, encontra-se intimamente relacionado a ela.

Encontramos visões antropocêntricas, nas quais o desenvolvimento sustentável deve estar voltado para o homem, como a da Declaração da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, a qual proclama que os seres humanos estão no centro das preocupações com o desenvolvimento sustentável, tendo direito a uma vida saudável e produtiva, em harmonia com a natureza.

De acordo com o conceito de desenvolvimento sustentável, oferecido pelo relatório Brundtland (também chamado Nosso Futuro Comum. Documento final da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, promovida pela ONU, nos anos 80 e chefiada pela então primeira-ministra da Noruega, Gro Harlen Brundtland), de 1987: “O desenvolvimento que satisfaz as necessidades presentes, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de suprir suas próprias necessidades”. Apesar do avanço do conceito de desenvolvimento sustentável, ao se preocupar com as com as futuras gerações, este não formulou alternativas para a preservação das outras espécies e a conservação do Planeta. Por isto, se diz que o desenvolvimento sustentável é um antropocentrismo intergeracional, o que teria ficado claro quando a Cúpula do Rio (1992) aprovou a concepção antropogênica: “Os seres humanos estão no centro das preocupações para o desenvolvimento sustentável”. Entretanto, o ser humano não vive em um mundo à parte, e o desafio atual seria o de romper com os valores antropocêntricos assumindo uma postura ecocêntrica, ou seja, centrada nos direitos da Terra, do conjunto das espécies e no respeito à biodiversidade. A sustentabilidade deve estar fundamentada na convivência harmoniosa entre todos os seres vivos, pois não há justificativa para a dinâmica demográfica humana sufocar a dinâmica biológica e ecológica (MILARÉ; COIMBRA, 2004).

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O embate entre antropocentrismo e ecocentrismo é relevante, pois as visões apontam caminhos concretos a serem seguidos pelos vários segmentos da sociedade, desembocam em aplicações práticas que repercutem tanto no meio social como natural. A visão antropocêntrica é cada vez menos aceita pela comunidade científica, pois o homem, apesar de não ser um ser vivo qualquer, é apenas uma espécie na teia da vida, posto que, se for extinto, a Terra continuaria seu caminho sem ele. Porém, é o homem que tem consciência de sua responsabilidade pelos destinos do planeta, e a consideração do ecossistema planetário, na doutrina jurídica, bem como do valor em si do mundo natural, seriam variáveis fundamentais na concepção doo Direito do Ambiente e invariante axiológica, consagrada tanto pela Constituição do Brasil como pela Ética e Cosmologia. Portanto, o valor do homem não é absoluto, nem está acima de todas as outras formas de vida, pois a espécie humana não é separável do meio ambiente em que vive. E o que se discute não é o valor da pessoa humana, mas sim o seu papel biosfera e em toda a Terra (MILARÉ; COIMBRA, 2004).

Este é um debate recente, e longe de encontrar um consenso. São discussões importantes, e que levam à tomada de posições por parte da sociedade global, que cada vez mais busca encontrar soluções que garantam o crescimento econômico, sem que com isso comprometam o sustento das presentes e futuras gerações. Ou seja, um futuro sustentável, fundado nos aspectoseconômicos, ambientais e sociais, os quais devem interagir de forma holística, Desta forma, a sociedade cada vez mais procura formas de proteger e garantir o direito ao desenvolvimento sustentável.

Norberto Bobbio afirma que, o problema grave de nosso tempo, com relação aos direitos do homem, não é mais o de fundamentá-los, e sim de protegê-los. O problema não seria filosófico, mas jurídico e, num sentido mais amplo, político. Não se trata mais de saber qual é a sua natureza ou seu fundamento, e sim qual é a maneira mais segura de garanti-los, a fim de impedir a sua contínua violação (BOBBIO, 2004, p. 25).

E os direitos da nova geração nascem todos do perigo à vida, à liberdade e à segurança, provenientes do progresso tecnológico, como o direito de viver em um ambiente não poluído, responsável pelo surgimento dos movimentos ecológicos que abalaram a vida política tanto dos Estados quanto da comunidade internacional (BOBBIO, 2004, p. 2009).

De modo que o meio ambiente foi uma área contemplada pelos direitos de terceira geração, e sua proteção foi garantida pela Declaração de Estocolmo em 1972, e reafirmada na Declaração do Rio em 1992 (SILVEIRA; ROCASOLANO, 2010, p. 178), segundo a qual “os seres humanos estão no centro das preocupações com o desenvolvimento sustentável. Têm o direito a uma vida saudável e produtiva, em harmonia com a natureza” 19.

19 Princípio nº 1 da Declaração do Rio de Janeiro sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992.

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Os direitos e liberdades não foram conquistas fáceis, mas sim frutos de uma luta árdua, baseando-se historicamente no modelo ocidental. São atos e fatos históricos, posicionamentos ideológicos, posições filosóficas, textos normativos e instituições que configuraram um corpo jurídico de institutos, princípios, e normas de caráter declaratório internacional e de direito fundamental constitucional, a fim de dotar de eficácia real a dignidade da pessoa humana na sua multiplicidade de manifestações, por intermédio dos direitos humanos. É o que pode ser chamado de “dinamogenisis” dos valores que, segundo Maria Rocasolano e Vladmir Oliveira da Silveira, é a tese fundamental para explicar como se forma o conteúdo do direito ao meio ambiente (SILVEIRA; ROCASOLANO, 2010, p. 185). Assim, “em síntese, o desenvolvimento histórico marca o reconhecimento de novos valores por parte da sociedade, que os estima como valiosos e, nesse sentido, os protegerá mediante o eficaz instrumento do direito.” (SILVEIRA; ROCASOLANO, 2010, p. 199).

Os direitos de terceira geração se voltam à tutela da solidariedade, passando a considerar o homem como não vinculado a esta ou àquela categoria, a este ou àquele Estado, mas como um gênero com anseios e necessidades comuns, e que somente serão supridos a partir da união de esforços na construção de um mundo melhor, revelando a preocupação concreta com a paz, o desenvolvimento econômico, social e o meio ambiente (SILVEIRA; ROCASOLANO, 2010, p. 201).

O intuito do princípio do desenvolvimento sustentável é o de incluir a proteção do meio ambiente como parte integrante do processo global de desenvolvimento dos países. Surge então a necessidade de se conciliar os diversos valores igualmente relevantes, como o exercício das atividades produtivas e do direito de propriedade, o crescimento econômico, a exploração dos recursos naturais de maneira consciente e racional, o controle das atividades potencialmente poluidoras e a preservação da diversidade e da integridade do patrimônio genético dos países (MORO; MAIA, 2013).

O artigo 225 da Constituição Federal encerra toda a matéria do capítulo VI, Título VIII da Constituição Federal a respeito da proteção ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (SILVA, 2013, p. 53). No caput do artigo 225, está à norma-matriz do direito de todos ao meio ambiente equilibrado. No parágrafo primeiro, estão os instrumentos de garantia da efetividade deste direito, conferidos ao Poder Público a fim de garantir esse direito; e no conjunto dos parágrafos 2º ao 6º, estão os elementos sensíveis que requerem a imediata proteção e regulamentação constitucional, para que o progresso se realize sem prejuízo ao meio ambiente (SILVA, 2013, p. 55).

E a Política Nacional de Meio Ambiente, (Lei nº 6.938/81), em seu artigo 3º, define meio ambiente como o “conjunto de condições, leis, influências

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e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”. É patrimônio público a ser, necessariamente, assegurado e protegido, tendo em vista o uso coletivo, conforme o artigo 2º, do mesmo diploma legal.

A Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, ocorrida no Rio de Janeiro em 1992, reafirmou a Declaração da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, adotada em Estocolmo em 1972. Seu objetivo seria o de estabelecer uma nova e justa parceria global, por meio da criação de novos níveis de cooperação entre os Estados, os setores-chaves da sociedade e os indivíduos. Isto, com vistas à conclusão de acordos internacionais, que respeitem os interesses de todos e protejam a integridade do sistema global de meio ambiente e desenvolvimento, reconhecendo assim a natureza integral e interdependente da Terra.

A declaração proclama, ainda, que os seres humanos estão no centro das preocupações com o desenvolvimento sustentável, tendo direito a uma vida saudável e produtiva, em harmonia com a natureza. E o direito ao desenvolvimento deve ser exercido de modo a permitir que sejam atendidas, equitativamente, as necessidades de desenvolvimento e de meio ambiente para as presentes e futuras gerações.

O princípio do desenvolvimento sustentável está, ainda, em conformidade com o artigo 170 da Constituição Federal, segundo o qual a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os princípios, entre outros, da livre concorrência, da função social da propriedade e da defesa do meio ambiente.

O conceito de meio ambiente, que nas palavras de José Afonso da Silva, “indica esfera, o círculo, o âmbito que nos cerca, em que vivemos” (SILVA, 2013, p. 19), possui três aspectos importantes a serem destacados: meio ambiente artificial, que corresponde ao espaço urbano constituído pelas edificações e equipamentos públicos; meio ambiente cultural, integrado pelo patrimônio histórico, arqueológico, paisagístico, artístico e turístico; e o meio ambiente natural, constituído pelo solo, água, ar, flora e fauna, o qual é definido no artigo 3º da Lei nº 6.938/81, de que trata também este artigo (SILVA, 2013, p. 21).

Paulo Affonso Leme Machado entende que, “o direito ambiente equilibrado, do ponto de vista ecológico, consubstancia-se na conservação das propriedades e das funções naturais desse meio, de forma a permitir a existência, a evolução e o desenvolvimento dos seres vivos” (MACHADO, 2013, pp. 65-66).

Para o citado autor, a busca do equilíbrio não visa obter uma situação de estabilidade absoluta, na qual nada se altera, mas sim aferir e decidir se as mudanças ou inovações são positivas ou negativas. E, neste sentido, o Direito

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sente a necessidade de estabelecer normas que possam assegurar esse equilíbrio ecológico (MACHADO, 2013, pp. 66-67).

E é este o objetivo da Política Nacional do Meio Ambiente, expresso no caput de seu artigo 2º: “a preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental propícia à vida, visando assegurar, no País, as condições ao desenvolvimento socioeconômico e aos interesses da segurança nacional e à proteção da dignidade da vida humana”.

Neste sentido, José Afonso da Silva entende que “o problema da tutela jurídica do meio ambiente manifesta-se a partir do momento em que sua degradação passa a ameaçar não só o bem estar, mas a qualidade da vida humana, se não a própria sobrevivência do ser humano” (SILVA, 2013, p. 30).

Assim, o processo de degradação do meio ambiente, como o desmatamento, a poluição e a degradação do solo, impõe o desenvolvimento de uma consciência ecológica por parte de toda a sociedade, e a busca da preservação do patrimônio ambiental global deve ser uma preocupação da empresa socialmente responsável.

Outros princípios fundamentam a proteção ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Dentre eles, destacamos princípios do Direito Ambiental, tais como o princípio do acesso equitativo aos recursos naturais, o do poluidor-pagador, o da precaução e da prevenção.

Os bens que integram o meio ambiente global devem satisfazer as necessidades comuns de toda a coletividade. Assim, a equidade deve orientar a fruição do uso da água, do ar e do solo, de modo a garantir oportunidades iguais em casos semelhantes, sem implicar, portanto, exclusividade de uso. E a equidade ao acesso aos recursos ambientais deve estar focada tanto para as presentes quanto às futuras gerações (MACHADO, 2013, pp. 90-91).

Partindo do conceito difuso de Direito Ambiental, sabe-se que a proteção ao meio ambiente é dever de todos, fazendo parte de sua cadeia os seres humanos e não humanos (rios, terras, mares, fauna, flora). Portanto todos, de maneira geral, devem ter a preocupação de não poluir o meio ambiente.

O princípio do poluidor-pagador, não tem por objetivo induzir as empresas a poluir, para depois pagar pelo dano. Verifica-se que o princípio tem um caráter preventivo, pois tem como finalidade inibir que o agente venha a causar o dano, pois será responsabilizado. Entretanto, se já tiver poluído, deverá reparar o dano ambiental, o que teria o caráter de repressão pela conduta inadequada. Importante frisar que o princípio tem a ver com a ideia da empresa em evitar causar qualquer tipo de dano, de modo que sua lucratividade não tenha êxito através do uso exacerbado ou inadequado, de um de direito bem de todos (BORGES; MAIA, no prelo).

Além disso, a Política nacional do Meio Ambiente prevê que, o causador da poluição, terá a responsabilidade objetiva caso venha a causar

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degradação ao meio ambiente, nos termos do artigo 14, parágrafo primeiro, da Lei nº 6.938/8120.

O princípio da precaução atua no sentido de diminuição dos riscos ao meio ambiente, sem, contudo, imobilizar as atividades humanas. Visa à durabilidade da sadia qualidade de vida das presentes e futuras gerações, preocupando-se com a continuidade da natureza existente no planeta (MACHADO, 2013, p. 99).

Está presente na Declaração do Rio de Janeiro, de 1992, no princípio 15: “com o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deverá ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de medidas economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental”.

Juarez Freitas destaca que o princípio da precaução é dotado de eficácia direta e imediata, impondo ao Poder Público diligências não tergiversáveis, com a adoção de medidas antecipatórias e proporcionais, mesmo nos casos de incerteza quanto à produção de danos fundamentalmente temidos (juízo de verossimilhança) (FREITAS, 2012, p. 285).

Já o princípio da prevenção tem o dever jurídico de evitar a consumação de danos ao meio ambiente. Não se confunde com o princípio da prevenção. Quando existe alta probabilidade de dano especial e anômalo, o Poder Público tem o dever de evitar o dano social, econômico ou ambiental. Deste modo, a aplicação do princípio da prevenção implica em diversas atividades estatais, entre elas a identificação e inventário de espécies animais e vegetais de um território; na identificação de fontes contaminantes do meio ambiente, no sentido de controlar a poluição; o planejamento ambiental e econômicos de forma integrada; autorização ou licenciamento ambiental; e sanções administrativas ou judiciais (MACHADO, 2013, pp. 122-123).

Diante do exposto, podemos afirmar que, a empresa socialmente responsável, deve atentar à questão ambiental, tanto pelas questões éticas eprincipiológicas, quanto pela responsabilidade objetiva em face ao dano ambiental, que trará a ela consequências no âmbito jurídico e perante a sociedade como um todo, que está cada vez mais atenta às questões que envolvem o desenvolvimento sustentável. Pelo menos, a parcela mais esclarecida da população.

2. A FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA E O DIREITO AO MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO

Os recursos naturais são finitos, e por isso, devem ser aproveitados e utilizados com cautela, sem com isso comprometer o sustento das presentes

20 Vide art. 14, § 1º da Lei nº 6.938/81.

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e futuras gerações. E ao utilizar esses recursos finitos em sua atividade empresarial, a empresa socialmente responsável deve não apenas visar o lucro, mas a sociedade como um todo.

Como já exposto anteriormente, entendemos que a empresa privada, que nas palavras de Newton de Lucca é a “célula base de toda a economia industrial”, pela sua importância na sociedade, não pode deixar de lado a questão da ética ambiental e do desenvolvimento sustentável, pois

Em economia de mercado, é, com efeito, no nível da empresa que se efetua a maior parte das escolhas que comandam o desenvolvimento econômico: definição de produtos, orientação de investimentos e repartição primária de rendas, esse papel – motor da empresa é, por certo, um dos traços dominantes de nosso modelo econômico: por seu poder de iniciativa, a empresa está na origem da criação constante da riqueza nacional; ela é, também, o lugar da inovação e da renovação (DE LUCCA, 2009, pp. 313-314).

A empresa, tendo em vista toda sua influência e poder na sociedade, não deve, portanto, se preocupar apenas com a questão do lucro, que obviamente é objetivo societário. Deve preocupar-se com a sociedade como um todo, principalmente por meio da conscientização e adoção de práticas sustentáveis. As empresas, cada vez mais, estão se dando conta que o egoísmo lucrativo não é mais bem visto pela sociedade e pelos consumidores, e que elas precisam também mostrar que cuidam da engrenagem e dos recursos que têm à disposição, sob pena de não terem estes recursos e não obterem seu lucro adiante (MORO; MAIA, 2013).

José Renato Nalini, ao discorrer sobre a questão da ética empresarial e da sustentabilidade, entende que

A sofisticação do mercado e o esclarecimento do consumidor permitem que ele distinga a escala valorativa do produto e do fornecedor. Não basta à empresa se autodenominar ecologicamente correta, se incide e reincide em más práticas ambientais, e mostra que a sua opção ecológica é puro marketing. Verdade, franqueza, transparência, são valores de que nem as pessoas, nem as entidades formadas para os mais distintos objetivos podem descuidar (NALINI, 2011, p. 121).

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Portanto, a responsabilidade social da empresa deve integrar as preocupações sociais e ecológicas das atividades empresariais, além das relações entre todas as partes envolvidas, o que inclui diretores, membros de conselhos de administração e fiscais, administradores, funcionários, prepostos, fornecedores, clientes, de modo a satisfazer as obrigações jurídicas aplicáveis, investindo no capital humano e no meio ambiente (MORO; MAIA, 2013).

Newton de Lucca afirma, ainda, que cumprir uma função social implica em assumir a plenitude da responsabilidade social. Isto quer dizer que, como cidadãos ou empresários, existe o indeclinável dever ético de praticar políticas sociais tendentes a melhorar as condições e a qualidade de vida de todos os nossos semelhantes (DE LUCCA, 2009, p. 329).

De modo que fica claro que o empresário não deve visar apenas a dimensão individual, mas sim a coletiva de sua atividade empresarial, preservando o meio ambiente por meio de uma postura ética e em conformidade com os preceitos legais da dignidade da pessoa humana. Pois ao agir assim, estará cumprindo com sua função social (MORO, MAIA, 2013).

Vladmir Oliveira da Silveira e Maria Mendez Rocasolano consideram a questão da ética como uma nova fase dos direitos humanos. Para os autores, observa-se um novo processo dinamogênico em curso, alimentado pelo valor responsabilidade (SILVEIRA; ROCASOLANO, 2010, pp. 183-184).

Para José Antônio Puppim de Oliveira, a questão acerca da responsabilidade social é tema de grande relevância. Isto porque as ações ligadas ao tema podem ter impacto sobre o valor econômico das empresas. Além de impactos econômicos, como multas, paralização de atividades e indenizações, as questões sociais e ambientais impactam sobre o valor da marca. Uma marca ruim em termos de responsabilidade social pode estar sujeita a mais regulações do Estado, ou ter uma rejeição maior por parte da população ou governantes, pois ninguém quer ter por perto, um vizinho com má fama (OLIVEIRA, 2008, pp. 4-5).

Portanto, a ética ambiental e empresarial, bem como a função social da empresa, é assunto de grande relevo na atualidade. Assumir a responsabilidade pela promoção do desenvolvimento sustentável é uma forma de a empresa promover a responsabilidade social, e as duas são as possibilidades que se vislumbra nessa linha de pensamento: ou a empresa contemporânea assume este seu papel de responsabilidade social, ou poderá não sobreviver a uma sociedade cada vez mais preocupada com essa postura ética e responsável das empresas, fornecedores e prestadores de serviços (MORO; MAIA, 2013).

O desenvolvimento sustentável tem, como pilar, o tripé no qual estão contidos os aspectos econômicos, ambientais e sociais, que devem interagir de forma holística. E o desenvolvimento econômico consiste, na cultura ocidental,

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na aplicação direta de toda a tecnologia gerada pelo homem, no sentido de criar formas de substituir o que é oferecido pela natureza com vista à obtenção de lucro (SILVA, 2013, p. 25).

Tanto as normas do Direito Econômico quanto as normas de Direito Ambiental possuem, na política econômica, uma fonte fundamental. A política econômica trabalha com a coordenação da atividade de mercado, com a concorrência e a prestação de serviços do Estado. Neste sentido, abriga também questões de caráter ambiental, como o reaproveitamento do lixo, o aproveitamento de recursos naturais. Portanto, o Direito Ambiental e o Econômico possuem as mesmas preocupações, como a melhoria do bem estar das pessoas e a estabilidade do processo produtivo. Se o Direito econômico visa dar cumprimento aos preceitos da ordem econômica constitucional, o Direito Ambiental tem como escopo o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, passível de fruição por toda a coletividade (DERANI, 2001, pp. 71-80).

Ademais, nossa Constituição é dirigente, e o conjunto de diretrizes, programas e fins que enuncia, os quais devem ser realizadas tanto pelo Estado quanto pela sociedade, confere a ela o caráter de plano global normativo do Estado e da sociedade. E, o artigo 170, busca implantar uma nova ordem econômica. Para Grau, da análise do conjunto de entendimentos acerca da ordem econômica na Constituição de 1988, podem ser extraídos que a ordem econômica consagra um regime de mercado organizado, optando pelo tipo liberal do processo econômico, que admite a intervenção estatal para coibir abusos e preservar a livre concorrência, correspondendo assim à posição neoliberal. Contempla a economia de mercado, distanciada do modelo liberal puro e ajustada ao neoliberalismo, repudiando o dirigismo, mas, acolhendo o intervencionismo econômico, que não se faz contra o mercado, mas a seu favor. É Capitalista, mas a liberdade somente é admitida enquanto exercida no interesse da justiça social, conferindo prioridade aos valores do trabalho humano sobre todos os demais valores da economia de mercado. E, apesar de ser Capitalista, abre caminho à transformação da sociedade (GRAU, 2001, pp. 209-226).

De modo que, os fundamentos econômicos de uma política ambiental consequente e exequível são indissociáveis, não podendo ignorar a necessidade de uma política de proteção aos recursos naturais. Por meio de uma política econômica, macro-planejamentos que coordenem interesses privados e coletivos podem ser empreendidos, evitando-se assim que a efetivação de um seja a negação do outro, reinserindo a produção dentro de um escopo de constituição de riqueza social voltada à melhoria na vida em sociedade (DERANI, 2001, p. 72).

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Por conseguinte, podemos observar o importante papel da empresa na promoção do desenvolvimento sustentável do planeta, pois a empresa, como um fenômeno econômico, é “instituição-chave da sociedade, que se encontra no ‘centro da economia moderna’ e constitui a célula-base de toda economia industrial” (CAVALLI, 2013, p. 59). E como tal, possui papel vital nas melhorias de condições de vida da sociedade, pois “as ações sociais empresariais estão conectadas com as necessidades da sociedade e objetivamente, são uma forma de provisão de bem-estar social” (COSTA; SANTOS; SEABRA; JORGE, 2011, p. 18).

De modo que a empresa ética e socialmente responsável deve adotar práticas sustentáveis em sua atividade empresarial, de modo a preservar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações, promovendo assim a dignidade da pessoa humana.

3. O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL, A FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA E A EFETIVIDADE DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Como analisamos nos itens anteriores, a empresa socialmente responsável deve não apenas visar o lucro, mas também a melhoria das condições de vida de toda a sociedade, promovendo o desenvolvimento sustentável calcado no tripé econômico, social e ambiental.

A Constituição Federal Brasileira de 1988 estabeleceu, como princípio fundamental, a dignidade da pessoa humana.21De modo que o princípio da dignidade da pessoa humana está positivado na Constituição Federal, em seu artigo 2º. Para Ingo Wolfgang Sarlet, a íntima e indissolúvel vinculação entre a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais, já constitui um dos postulados nos quais se assenta o direito constitucional contemporâneo (SARLET, 2007, pp. 25-26).

A positivação de direitos fundamentais significa, nas palavras de J. J. Gomes Canotilho, “a incorporação na ordem jurídica positiva dos direitos considerados “naturais” e “inalienáveis” do indivíduo” (CANOTILHO, 2003, p. 377). Não basta, no entanto, uma positivação qualquer, mas sim a dimensão de direitos fundamentais colocados acima das demais fontes do direito, ou seja, de normas constitucionais. Isto porque, sem essa positivação, os direitos do homem são apenas esperanças, aspirações, ideias ou impulsos políticos, mas não direitos protegidos sob forma de normas de direito constitucional (CANOTILHO, 2003, p. 377).

O citado autor considera princípios jurídicos fundamentais, aqueles

[...] historicamente objectivados e progressivamente

21 Art. 1º, inciso III.

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introduzidos na consciência jurídica e que encontram uma recepção expressa ou implícita no texto constitucional. Pertencem à ordem jurídica positiva e constituem importante fundamento para a interpretação, integração, conhecimento e aplicação do direito positivo (CANOTILHO, 2003, p. 1.165).

O Direito pode exercer um papel crucial na proteção e promoção da dignidade da pessoa humana, e a desnecessidade de sua definição jurídica já foi sustentada, na medida em que é um valor próprio, da natureza do ser humano como tal. Todos são iguais em dignidade, no sentido de serem reconhecidos como pessoas, e, mesmo naquelas que cometem as ações mais indignas e infames, a dignidade não poderá ser objeto de desconsideração. Isto porque independe de ações concretas, posto que inerente a toda e qualquer pessoa humana (SARLET, 2007, pp. 40-45). Isto não quer dizer que não se deve levar em conta as tradições histórico-culturais dos povos.

Todo e qualquer preceito da Constituição é dotado de certo grau de eficácia jurídica e aplicabilidade (SARLET, 2012, p. 257), e a qualificação da dignidade da pessoa humana, como princípio fundamental, não apenas contém uma declaração de conteúdo ético e moral, mas constitui uma norma jurídico-positiva dotada de status constitucional formal e material, carregado de eficácia e alcançando a condição de valor jurídico fundamental da comunidade (SARLET, 2007, p. 72).

Para Robert Alexy, Indicam uma direção, mas podem também ser razão para decisões concretas, possuindo uma importância substancial fundamental para o ordenamento jurídico. Segundo o autor, sua relação à ideia de direito decorre de um modelo de fundamentação que avança, do mais geral, na direção do sempre mais especial. Assim, a contraposição dos princípios (normas desenvolvidas) às normas criadas, deve-se ao fato de que os princípios devem ser estabelecidos de forma explícita, pois podem decorrer da tradição de positivação detalhada e de decisões judiciais que expressem concepções definidas sobre o que deve ser o direito (ALEXY, 2011, pp. 107-109).

Não existiriam, então, princípios absolutos, posto que nenhum princípio pode ter precedência em relação a todos os outros, além de sua incompatibilidade com direitos individuais, pois não poderiam ser garantidos a mais de um sujeito de direito (ALEXY, 2011, p. 111).

O citado autor destaca que, mesmo na Constituição Alemã, a qual estabelece em seu art. 1º, § 1º, que a dignidade humana é inviolável, não se trata de um princípio absoluto. Não é princípio absoluto, mas regra que não necessita de limitação em face de possível relação de preferência. Esta prevalecerá

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com maior grau de certeza sobre outros princípios, significando que, sob determinadas condições, haverão razões jurídico-constitucionais praticamente inafastáveis para uma relação de precedência em favor da dignidade humana (ALEXY, 2011, pp. 113-114).

Ainda, para Saulo de Oliveira Pinto Coelho e Rodrigo Antônio Calixto Mello, a matriz filosófica moderna da concepção de dignidade humana, advém do pensamento de Immanuel Kant, cuja fórmula elaborada informa a maioria das conceituações jurídico-constitucionais da dignidade da pessoa humana. Isto porque a formulação kantiana coloca a ideia de que, o ser humano, não pode ser empregado como meio para a satisfação de qualquer vontade alheia, mas como um fim em si mesmo em qualquer relação, seja em face do Estado, seja em face de particulares, reconhecendo, assim, o valor intrínseco de cada existência humana (COELHO; MELLO, 2011).

E Flávia Piovesan entende que o respeito à dignidade da pessoa humana obriga, de forma irrestrita e incontornável, o Estado e todos os entes políticos, e tudo aquilo que o contrarie, é juridicamente nulo. E, no âmbito constitucional, tudo nenhum princípio seria mais valioso para compendiar a unidade material da Constituição federal do que o princípio da dignidade da pessoa humana. Possui um quid que a individualiza de todas as demais normas, deitando seus fundamentos no ser humano em si mesmo, como ente final, e não como meio, simbolizando assim um verdadeiro superprincípio constitucional, orientando o constitucionalismo contemporâneo e dotando-lhe de especial racionalidade, unidade e sentido (PIOVESAN, 2013, b, pp. 499-501).

Marcelo Benacchio considera a dignidade humana como categoria axiológica aberta e de difícil conceituação, “em razão da pluralidade e diversidade de valores existentes nas sociedades democráticas contemporâneas, estando em constante processo de construção e desenvolvimento (...)” (BENACCHIO, 2012, p. 105).

Para Marcelo Benacchio e Samyra Haydêe Dal Farra Naspolini Sanches,

Tanto os Direitos Humanos quanto os Direitos Fundamentais destinam-se a conferir dignidade à existência humana, porém não podem ser compreendidos como sinônimos, pois possuem âmbitos de aplicação diferenciada. Os Direitos Humanos, a partir dos espaços de luta, foram sendo normatizados em Tratados Internacionais e pretendem a característica da universalidade. Por outro lado, os Direitos Fundamentais são direitos essenciais

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à pessoa humana, definidos na Constituição de um Estado, contextualizados conforme a política do país, ou seja, os Direitos Fundamentais são os Direitos Humanos constitucionalizados (BENACCHIO; SANCHES, 2012, p. 384).

E o efeito vinculante dos Direitos Fundamentais obriga o Estado a abster-se de intervir na liberdade e garantias do indivíduo, bem como de prestar serviços e assistência, ao que chamamos de Eficácia Vertical dos Direitos Fundamentais. E, como o Estado não é o único destinatário dos Direitos Fundamentais, a vinculação se estende ao particular, que também não pode violá-los, pela eficácia horizontal dos Direitos Fundamentais (BENACCHIO; SANCHES, 2012, p. 385).

E violar um princípio, é ainda mais grave do que transgredir uma norma. Pois a desatenção ao princípio indica ofensa a todo um sistema de comando, não apenas a um mandamento obrigatório específico. E, conforme o escalão do princípio atingido, insurge-se contra todo o sistema, o que constitui na mais grave forma de ilegalidade e inconstitucionalidade (Mello, 2000, p. 748).

O princípio da dignidade humana, positivado na Constituição Federal de 1988, possui, portanto, efeito vinculante, tanto perante o Estado quanto a sociedade em geral. E, ao se analisar a visão contemporânea da empresa e a sua função social, entende-se que, hoje, não pode ser admitido que o único objetivo da empresa seja a obtenção do lucro, em detrimento de valores fundamentais, que tenham por escopo, a valorização da dignidade da pessoa humana.

CONCLUSÃO

O processo de degradação do meio ambiente impõe o desenvolvimento de uma consciência ecológica, por parte de toda a sociedade. E a busca da preservação do patrimônio ambiental global deve ser uma preocupação da empresa socialmente responsável. Esta deve estar preocupada com a questão ambiental, tanto pelas questões éticas e principiológicas, quanto pela responsabilidade objetiva em face ao dano ambiental, que trará a ela consequências no âmbito jurídico e perante a sociedade como um todo, que está cada vez mais atenta às questões que envolvem o desenvolvimento sustentável.

Assumir a responsabilidade pela promoção do desenvolvimento sustentável é uma forma de a empresa promover a responsabilidade social. Ou a empresa contemporânea assume este seu papel de responsabilidade social, ou poderá não sobreviver a uma sociedade cada vez mais preocupada

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com essa postura ética e responsável das empresas, fornecedores e prestadores de serviços.

A empresa moderna tem papel vital nas melhorias de condições de vida do planeta, pois as suas ações sociais e empresariais estão conectadas com as necessidades da sociedade, sendo assim uma forma de provisão de bem-estar social. E o modelo constitucional brasileiro busca promover a economia de mercado, com vistas à promoção da dignidade da pessoa humana, baseada na igualdade e na fraternidade, buscando assim a concretização dos Direitos Humanos e assegurando ao planeta um desenvolvimento sustentável.

Por todo o exposto, conclui-se que o princípio da dignidade humana, positivado na Constituição Federal de 1988, possui efeito vinculante, tanto perante o Estado quanto a sociedade em geral. Não se pode admitir que o único objetivo da empresa seja a obtenção do lucro, em detrimento de valores fundamentais, que tenham por escopo, a valorização da dignidade da pessoa humana. A empresa socialmente responsável é, portanto, instrumento capaz de promover a valorização da pessoa humana.

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ESCRAVIDÃO E O PROCESSO DE DINAMOGENESIS

Leonardo Raphael Carvalho de Matos22

RESUMO

Tema relevante dentro das relações jurídicas é o da escravidão e a sua relação com o processo de dinamogenesis. A partir de uma visão pós-positivista e do fenômeno da publicização do privado, os direitos humanos passaram a gozar de proteção legislativa, soberania de suas normas e um olhar mais apurado do Direito. Os interesses entre particulares sofrem um reflexo direto das normas constitucionais e internacionais, por constituírem parte integrante de um todo social, possuidores de direitos difusos. Outro aspecto a ser tratado é o que concerne à própria mutação legislativa no tocante à sua interpretação, no momento em que a norma jurídica se torna um composto de determinações normativas de caráter heterônomo e polissêmico, assumindo, então, uma nova natureza jurídica a partir de uma hermenêutica sistemática moderna, principalmente, ao recepcionar normas internacionais que repercutirão no ordenamento jurídico pátrio. Ver-se-á, ainda, pelo método hipotético-dedutivo, a influência dos direitos humanos e dos princípios constitucionais no direito do trabalho como ciência jurídica, considerando-se o processo de escravidão e a atuação do Ministério Público do Trabalho, ao analisarem-se as obras de literatura jurídica. Em momento subsequente, pelo método indutivo, será analisado o trabalho degradante e a legislação atinente ao tema, bem como a tutela jurisdicional do Estado, destacando-se alguns casos concretos de trabalho escravo nos últimos cinco anos.

Palavras-chave: Escravidão; Dinamogenesis; Direitos Humanos.

SUMÁRIO: Introdução. 1. O diálogo entre o público e o privado na dinamogenesis do Direito. 2. Escravidão: os reflexos no ordenamento jurídico e a atuação do Ministério Público do Trabalho. 3. A responsabilidade para com a defesa dos direitos humanos: análise de casos. 3.1 Caso “C&A”. 3.2 Caso “Ellus” 3.3 Caso “Zara”. Conclusões. Referências.

INTRODUÇÃO

Neste trabalho serão abordados os aspectos relacionados à escravidão e a sua relação com a dinamogenesis do Direito e o processo de constitucionalização

22 Mestrando em Direito pela Universidade Nove de Julho – UNINOVE.

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dos direitos humanos. Inicialmente trataremos da dinamogenesis do Direito, teoria que busca o reconhecimento e compreensão dos direitos, numa linha tempo-espacial de mutação legislativa e hermenêutica, no intuito de contextualizar o surgimento e a importância de se tutelar os direitos humanos, no tocante aos de terceira geração, que implicam na proteção integral da dignidade humana e dos princípios constitucionais e a sua imersão na ordem constitucional. Em seguida, trataremos do contexto da escravidão, suas características, numa abordagem jurídica, apontando-se às legislações relacionadas ao tema. No último capítulo, trataremos da responsabilidade do Estado em coibir qualquer prática em condições análogas à de escravidão, assegurando aos indivíduos o direito básico à vida digna. Analisaremos, ainda, alguns casos vastamente divulgados, da prática de trabalho escravo por algumas empresas, e as providências tomadas pelos órgãos judiciais e de fiscalização das práticas trabalhistas.

Vale ressaltar que tal pesquisa não possui o condão de esgotar tamanha problemática, mas de desenvolver um diálogo sobre o tema, utilizando-se do método hipotético-dedutivo, ao analisarmos as doutrinas especializadas da literatura jurídica, e pelo método indutivo, ao apontarmos as Portarias e Termos de Ajustamento de Conduta firmados entre os órgãos oficias da Justiça do Trabalho e algumas empresas privadas, num paralelo entre os resultados desejados e os obtidos.

1. O DIÁLOGO ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO NA DINAMOGENESIS DO DIREITO

A relação de consumo no Brasil vem sofrendo um reflexo direito da tendência pós-positivista ao tratar do direito privado como também objeto do direito público, no momento em que compreendemos a existência de interesses coletivos, difusos e metaindividuais a serem tutelados pelo Estado.

Tal conjuntura é considerada consequência de alguns fenômenos a serem também analisados brevemente neste estudo, como: o neoconstitucionalismo, a dinamogenesis do Direito, o Estado sócio-ambiental e a defesa dos direitos de terceira geração (SILVEIRA, 2010).

Vale elucidar, inicialmente, o contexto histórico ensejador do olhar tendencioso de análise do privado sob um aspecto público (BONAVIDES, 2006). Muitos doutrinadores agregaram significante contribuição ao Direito ao tratarem destas questões. Lembremos Hans Kelsen, adepto ao Direito normativo. Podemos citar Miguel Reale, representante do movimento positivista, que analisou o Direito como ciência composta de norma, fato e valor. E no evoluir, Ronald Dworkin, que pregava que o valor integra a norma através dos princípios, surgindo, então, a ciência pós-positivista.

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Como demonstrado, a inovação histórica não está propriamente na existência e no reconhecimento dos princípios pela norma jurídica. Os princípios são figuras antigas no ordenamento e a proporção que o tempo passa, vêm desempenhando vários papéis. O que há de inovador é o reconhecimento de sua normatividade (BARROSO, 2003).

Tudo acontece por força da hermenêutica – parte da ciência jurídica que tem por objeto o estudo e a sistematização dos processos, que devem ser utilizados para que a interpretação se realize; é a teoria científica da interpretação. Entendemos que a tarefa de interpretar a norma vai além. Devemos, então, conferir a aplicabilidade da norma jurídica às relações sociais que lhe deram origem; estender o sentido da norma a relações novas, inéditas ao tempo de sua criação; temperar o alcance do preceito normativo, para fazê-lo corresponder às necessidades reais e atuais de caráter social. Logo, o ato interpretativo implica uma duplicidade, onde sujeito e objeto estão colocados um diante do outro (FRANÇA, 2011).

A hermenêutica contém regras bem ordenadas que fixam os critérios e princípios que deverão nortear a interpretação. É a teoria científica da arte de interpretar, mas não esgota o campo da interpretação jurídica, por ser apenas um instrumento para a sua realização. Logo, o intérprete, ao compreender a norma, descobre seu alcance e significado, refaz o caminho da fórmula normativa, ao ato normativo, tendo presentes os fatos e valores dos quais a norma advém, bem como os supervenientes; ele a compreende, a fim de aplicar em sua plenitude o significado nela objetivado.

As normas jurídicas nunca existem isoladamente, mas sempre em um contexto de normas com relações particulares entre si. A complexidade deriva do fato de que a necessidade de regras de conduta numa sociedade é tamanha que não há um poder (ou órgão) capaz de satisfazê-la sozinho. Têm-se, então, dois expedientes: a) a recepção de normas já feitas, produzidas por ordenamentos diversos e precedentes; b) a delegação do poder de produzir normas jurídicas a poderes ou órgãos inferiores. A complexidade de um ordenamento jurídico deriva, portanto, da multiplicidade das fontes diretas e indiretas (reconhecidas e delegadas) das quais afluem regras de conduta.

O poder originário é o conjunto das forças políticas que num determinado momento histórico tomaram o domínio e instauraram um novo ordenamento jurídico. Qualquer poder originário repousa um pouco sobre a força e um pouco sobre o consenso. O exercício da força (eficácia) para fazer respeitar as normas é uma característica do ordenamento jurídico. Logo, a norma fundamental é verdadeiramente a base do ordenamento jurídico (BARROSO, 2003).

Contudo, o Direito é lacunoso, mas é, ao mesmo tempo, sem lacunas. É lacunoso porque a vida em sociedade apresenta vieses infinitos nas condutas

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humanas, mudam-se as necessidades com os progressos, o que torna impossível a regulamentação, por meio de norma jurídica, de toda sorte de comportamento, mas é paralelamente sem lacunas, ao passo que o próprio dinamismo do Direito apresenta soluções que serviriam de base para qualquer decisão.

Dinamicamente considerado o Direito autointegra-se. Ele mesmo supre seus espaços vazios através do processo de aplicação e criação de normas, sendo o sistema jurídico não completo, mas completável. A constatação da lacuna resulta de um juízo de apreciação, porém, o ponto decisivo não é a concepção que o magistrado tem da norma jurídica, mas o processo metodológico por ele empregado.

Os mecanismos de constatação das lacunas são, concomitantemente, de integração. São correlatos porque o preenchimento pressupõe a constatação. Os meios de preenchimento das lacunas são indicados pela própria lei (art. 4º, LINDB), destacando-se a figura dos princípios, que abandonaram seu caráter meramente complementar da norma, mas passaram a desempenhar um novo papel normativo, coercitivo, através da hermenêutica sistemática moderna.

E no momento em que os princípios atuam como moderadores de um Direito mais justo, mais humanista, mais fraterno, mais protecionista aos direitos humanos, é que a ciência jurídica se transforma e o Direito Privado e o Direito Público se comunicam. Logo, as normas privadas passam a ser analisadas num viés constitucional, assim como as normas públicas passam a se preocupar com o interesse privado.

Nesta conjuntura, as ciências como o Direito do Trabalho, o Direito Civil e o Direito do Consumidor denotam um novo aspecto, ou seja, recebem uma proteção constitucional e uma interpretação sistêmica de suas normas, influenciadas diretamente pelos princípios constitucionais, responsáveis pela manutenção da ordem e da segurança jurídica.

Os fenômenos históricos supracitados desencadearam um evoluir jurídico denominado neoconstitucionalismo, que flexibilizou a rigidez normativa, apresentando um diálogo entre as normas de direito público e de direito privado. O neoconstitucionalismo também guarda relação com os direitos difusos, categoria intermediária entre o público e o privado, que busca tutelar os interesses de uma coletividade. Vale lembrar que o direito difuso supera a dicotomia público-privada. O neoconstitucionalismo ainda sofre influência do direito internacional, ao recepcionar normas de eficácia erga omnes introduzidas por tratados e convenções internacionais, às quais o Brasil resta signatário.

A dinamogenesis explica o processo que fundamenta o nascimento e desenvolvimento de novos direitos no decorrer da história. Tal modelo corresponde à chamada ideologia dinâmica da interpretação jurídica, entendida como atividade de adaptação do direito às necessidades da presente e futuras gerações.

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Vladmir Oliveira da Silveira e Maria Mendez Rocasolano nos demonstram em sua obra, a teoria da dinamogenesis como fonte dos direitos humanos. E será com base em sua pesquisa que desencadearemos a seguir uma linha no tempo e no espaço com o condão de demonstrar o reconhecimento desses novos direitos e o processo de imersão na ordem constitucional (SILVEIRA, 2010).

O Estado-Nação, caracterizado pelos privilégios a determinadas classes, se torna Estado de Direito, nos séculos XVII e XVIII, onde os direitos civis (direitos de autonomia) e os direitos políticos (direitos de participação) são incorporados à ordem pública, através do fenômeno da transmigração. Os direitos civis desdobram-se no direito á vida, à integridade pessoal, à segurança pessoal, à liberdade, entre outros. Os direitos políticos representam a possibilidade e o exercício da participação política, ou seja, a possibilidade do indivíduo votar e ser votado. Logo, temos os direitos negativos e individuais, bem como os direitos humanos de primeira geração (direitos de liberdade).

Os direitos de primeira geração, como vistos, concernem à delimitação da esfera de liberdade individual em relação ao poder do Estado, traduzindo as denominadas liberdades públicas negativas ou direitos negativos, na medida em que exigem por parte do poder público um comportamento apenas de salvaguarda, sem qualquer interferência efetiva nessa esfera de domínio particular. Neste Estado Liberal de Direito, o exercício dos direitos políticos introduz, também, a ideia de cidadania.

O Estado de Direito evolui para o Estado Social de Direito, no século XIX, onde os direitos sociais, econômicos e culturais são incorporados à ordem pública, sob égide da Revolução Industrial. Logo, temos os direitos positivos e coletivos, bem como os direitos humanos de segunda geração (direitos de igualdade).

Os direitos de segunda geração possuem um caráter eminentemente prestacional, caracterizando-se como direitos de cunho social, econômico e cultural, e exigem uma atuação estatal voltada ao atendimento de condições mínimas de dignidade da vida humana, ou seja, especificar as pretensões do povo.

A Constituição Federal Brasileira de 1934 foi a primeira Constituição a introduzir no Brasil tais direitos na ordem jurídica. O Estado passa a ter um status positivo social, através da ideia de igualdade (Democracia Social).

Os direitos de segunda geração estão presentes nos artigos 23 e seguintes da Declaração Universal dos Direitos Humanos e, atualmente, possuem uma dupla dimensão: a) objetiva – o Estado como garantidor da igualdade; b) subjetiva – a faculdade que os indivíduos possuem de participar dos benefícios da vida social.

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O Estado Social de Direito evolui para o Estado Sócio-Ambiental ou Estado Constitucional Cooperativista, onde o direito à paz, ao meio ambiente e ao desenvolvimento são incorporados à ordem pública. Logo, temos os direitos difusos, bem como os direitos humanos de terceira geração (solidariedade e fraternidade), tutelados regional, estadual e universalmente, caracterizados pela Teoria Democrática.

Os direitos de terceira geração, no século XX, se voltam à tutela da solidariedade, passando a considerar o homem como não vinculado a esta ou àquela categoria, mas como um gênero com necessidades comuns, e que só serão supridos a partir da união de esforços na construção de um mundo melhor, revelando a preocupação concreta com a paz, o desenvolvimento econômico, o meio ambiente, entre outros temas do direito comparado.

A norma há de ser expressão jurídica dos valores morais e éticos que inspiram o ordenamento jurídico e que se sintetizam no respeito e na garantia da dignidade humana e suas manifestações, como mérito dos direitos humanos. O princípio do respeito pela dignidade da pessoa é a expressão jurídica dos valores representados pelos direitos humanos, manifestos no interesse de proteção dessa dignidade em seu sentido político, social, econômico e cultural.

As mudanças sociais e econômicas produzidas ao longo da história utilizam os princípios jurídicos como vias para o reconhecimento dos novos valores exigidos pela comunidade social. Por intermédio da normatização, os valores passam a ter vida. Saem do plano ideal para o concreto posto que se pode exigi-los, garanti-los e protegê-los. O objeto se protege e garante por intermédio do direito: o objeto se transforma num “dever-ser”.

A funcionalização do Direito passa a ser caracterizada por uma compatibilização geracional, ou seja, por uma nova perspectiva (solidariedade), assegurando direitos às futuras gerações, e não apenas, expectativa dos mesmos.

Os direitos de terceira geração surgem no contexto do Estado democrático e social de direito, ultrapassando a visão individualista, superando a dicotomia entre o público e o privado, fazendo com que a tutela dos direitos atinja um caráter difuso. Tais circunstâncias deram-se pela contaminação das liberdades e pela revolução tecnológica.

Têm-se, então, como consequências ao surgimento desses novos direitos:

a) o surgimento dos direitos ecológicos ou direito ao meio am-biente sadio, face à finitude dos recursos naturais;

b) a reformulação da problemática da tortura, com base nos avan-ços da medicina;

c) a reformulação do direito à vida, a partir de uma nova biologia genética, bem como os meios técnicos que permitem a prolongação da mesma de forma artificial.

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Os direitos de solidariedade asseguram: i) a reformulação das garantias tradicionais com a pretensão de dar mais efetividade; ii) a universalização progressiva do ombudsman como garantia dos direitos humanos; iii) e o surgimento de novas formas não estatais de direitos humanos, como por exemplo, os religiosos.

Então, esta mesma solidariedade tem como enfoque os direitos dos povos, combatendo a acentuação da desigualdade econômica, sociocultural e política, que consiste no paradigma da qualidade de vida, próprio da genuína pós-modernidade, e por centrar na luta contra a alienação dos indivíduos.

Como assevera Samyra Naspolini Sanches:

Assim, os direitos de solidariedade expressam-se como direito à paz, meio ambiente sadio, autodeterminação dos povos e desenvolvimento econômico. Em um mundo globalizado e em um contexto econômico de capitalismo avançado há um número cada vez maior de situações e condutas humanas que exigem do Estado ações de proteção e de prestação. Porém, os direitos de solidariedade, não só relativizam a soberania dos Estados, mas comprometem com a pauta de direitos também o sujeito particular (SANCHES, 2011).

Como características das três primeiras gerações têm-se, então, a universalidade, a irreversibilidade, a indivisibilidade, a integridade e a interdependência entre elas. Alguns eventos foram primordiais ao fomento da dinamogenesis jurídica. Podemos destacar, entre outros, a Organização das Nações Unidas (1945); a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) – aprovada em Paris, contendo 30 artigos representativos dos “direitos dos povos”; a Organização dos Estados Americanos, através da Declaração Americana de direitos e deveres do homem e do Pacto de São José da Costa Rica, o qual o Brasil também é signatário de suas disposições.

Neste contexto, a cidadania que consiste no vínculo jurídico com o Estado, ou “o direito a ter direitos” (ARENDT, 1989) passa a ter uma dimensão tripartida, com o aumento de pessoas, de direitos e de tutela ou jurisdição (ao passo que se tornam sujeitos de Direito Internacional Público). Isso implica dizer, que no século XX, os direitos humanos passaram a ter uma tutela regional, estadual e universal, marcada pelos eventos da globalização e o surgimento do terceiro setor (Organizações).

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Ademais, afirma Samyra Naspolini Sanches:

Porém, cada vez mais, firma-se a teoria de que os efeitos dos Direitos Fundamentais não se reduziriam ao Estado, ou seja, não é somente o Estado o destinatário dos Direitos Fundamentais, uma vez que o particular também não pode violá-los, neste caso se estaria falando em eficácia horizontal dos Direitos Fundamentais. Esta teoria, elaborada na segunda metade do século XX, baseia-se na ideia de superação da concepção de direitos fundamentais somente como direitos exigíveis em face do Estado, mas como um sistema de valores válido para todo o ordenamento jurídico (SANCHES, 2011).

Tais citações possuem o condão de demonstrar o mérito dos direitos fundamentais, que nasceram do povo para o povo, num caráter prestacional e de observância obrigatória pelo Estado, bem como pelos particulares.

Nas palavras de Vladmir da Silveira, temos:

Na sociedade atual, chamada sociedade aberta, o direito se desenvolve por intermédio de forças espirituais (...), onde se têm em conta estimações, com caráter jurídico integrador, que brotam de um debate livre dentro da sociedade. Por isso o direito constitucional e o direito internacional se aproximam e se complementam, regulando a convivência em sociedade de forma justa, ao garantir e proteger o que ela considera valioso. Mediante a normatização, os valores deixam o plano ideal (sentimental) e passam ao âmbito do real, porque só assim se poderá exigi-los, garanti-los e, acima de tudo, protegê-los. Com a transformação dos Estados-Nação em Estados Constitucionais Cooperativos, o ente estatal passa a ter normas próprias nas relações internacionais, dentre elas a da cooperação internacional, a da prevalência dos direitos humanos e a do respeito pela autodeterminação dos povos (SILVEIRA, 2010).

Observada as dimensões dos direitos fundamentais, a sua principal

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consequência é a eficácia irradiante destes direitos, o que significa que os valores inerentes a estes direitos irradiam por todo o ordenamento jurídico. Entende-se, ainda, que as dimensões dos direitos não se esgotam em apenas três gerações. Estudos mais modernos apontam outras duas gerações de direitos.

Os direitos de quarta geração teriam como valores preponderantes a responsabilidade e a ética. Nascem a partir do Estado necessário e ético de direito, caracterizado pela horizontalidade dos direitos humanos. Para Noberto Bobbio (BOBBIO, 1992), “tratam-se dos direitos relacionados à engenharia genética”.

Tais direitos configuram processos e institutos jurídicos focados na proteção da dignidade da humanidade, que tem como núcleo essencial, a proteção e a garantia da espécie humana considerada na sua coletividade. Vale citar que os direitos de quarta geração são frutos das novas necessidades sociais de tutela, haja vista o aparecimento das inovações tecnológicas e dos riscos inerente ao desenvolvimento na pós-modernidade, possuindo formas universal e real.

A ética, a responsabilidade e a moralidade científica vão além da solidariedade ao caracterizarem a dignidade da pessoa humana. Para Paulo Bonavides:

A globalização política neoliberal caminha silenciosa, sem nenhuma referência de valores. (...) Há, contudo, outra globalização política, que ora se desenvolve, sobre a qual não tem jurisdição a ideologia neoliberal. Radica-se na teoria dos direitos fundamentais. A única verdadeiramente que interessa aos povos da periferia. Globalizar direitos fundamentais equivale a universalizá-los no campo institucional. (...) A globalização política na esfera da normatividade jurídica introduz os direitos de quarta geração, que, aliás, correspondem à derradeira fase de institucionalização do Estado social. É direito de quarta geração o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo. Deles depende a concretização da sociedade aberta do futuro, em sua dimensão de máxima universalidade, para a qual parece o mundo inclinar-se no plano de todas as relações de convivência. (...) os direitos da primeira geração, direitos individuais, os da segunda, direitos sociais, e os da terceira, direitos ao desenvolvimento,

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ao meio ambiente, à paz e à fraternidade, permanecem eficazes, são infra-estruturais, formam a pirâmide cujo ápice é o direito à democracia (BONAVIDES, 2006).

Com efeito, Bonavides define como direitos de quarta geração o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo.

Quanto aos direitos de quinta geração, alguns doutrinadores como o próprio Paulo Bonavides, José Adercio Sampaio Leite e Raquel Honesko, asseveram que a paz seria um desses direitos e que, o cuidado, a compaixão e o amor por todas as formas de vida assegurariam os direitos humanos numa plenitude social, dados os últimos acontecimentos de iminentes guerras e movimentos de caráter terrorista pelo mundo.

A globalização política neoliberal caminha silenciosa, sem nenhuma referência de valores (...). Faz parte da estratégia mesma de formulação do futuro em proveito das hegemonias supranacionais, já esboçadas no presente. Há, contudo, outra globalização política, que ora se desenvolve, sobre a qual não tem jurisdição a ideologia neoliberal. Radica-se na teoria dos direitos humanos (...). Globalizar direitos fundamentais equivale a universalizá-los no campo institucional. (BONAVIDES, 2006).

Logo, o direito à paz é entendido como direito à vida, tornando-se elemento fundamental ao progresso de todo país, seja desenvolvido ou não.

Em síntese, o desenvolvimento histórico marca o reconhecimento de novos valores por parte da sociedade, que os estima como necessários e, nesse sentido, os protege mediante o eficaz instrumento do direito. A título de fechamento deste capítulo inicial, vale-se utilizar das palavras de Vladmir Oliveira da Silveira:

Como vimos, os direitos e liberdades não foram conquistados pacificamente, mas por intermédio de árdua luta, e se baseiam historicamente no modelo ocidental, euro-atlântico. Este modelo, cumpre lembrar, se expressa como um sistema complexo, interdependente e dinâmico. Com efeito, são atos e fatos históricos, posicionamentos ideológicos,

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posições filosóficas, textos normativos e instituições que – desde a fundamentação axiológica de tal modelo na Antiguidade Clássica, passando pelos documentos medievais e as primeiras declarações de direitos até os documentos mais recentes – configuraram um corpo jurídico de instituições e normas de caráter declaratório internacional e de direito fundamental constitucional. Frise-se que esse corpo jurídico tem como objetivo dotar de eficácia real a dignidade da pessoa humana, em suas mais amplas manifestações, por intermédio dos direitos humanos (SILVEIRA, 2010).

A partir da compreensão da dinamogenesis do Direito e do surgimento dos novos direitos, traçaremos um paralelo entre a escravidão e os direitos humanos, destacando-se os órgãos que os tutelam e a responsabilidade decorrente da lesão às liberdades e garantias fundamentais.

2. ESCRAVIDÃO: OS REFLEXOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO E A ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO

O trabalho escravo forçado ou obrigatório é uma maneira de afronta à dignidade da pessoa humana (inciso III, do art. 1º da CF/88 – fundamento da República Federativa do Brasileiro). A Convenção nº 29 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), sobre o Trabalho Forçado, de 1930, conceitua a expressão “trabalho forçado ou obrigatório”, no seu art. 2º.1, como “todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob a ameaça de sanção e para o qual não se tenha oferecido espontaneamente”. A CF não define expressamente o conceito de trabalho escravo, contudo inspirada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos - (DUDH) - incorporou suas normas e até mesmo as reproduziu, como, por exemplo, o art. 5º, inciso III da CF em relação ao art. V da DUDH.

Entendemos que o trabalho escravo ou trabalho em condições análogas à de escravo representa espécie do gênero “trabalho degradante”, que engloba, também, o trabalho infantil, o trabalho penoso, entre outras formas ilícitas no ordenamento jurídico. Podemos destacar como condutas típicas encontradas no ambiente de trabalho escravo: o recrutamento de trabalhadores, a retenção de documentos, a servidão por dívida (compra obrigatória de mercadorias ou equipamentos para o trabalho), trabalhadores constroem seus próprios alojamentos, presença de vigilância armada ou fazendas isoladas de difícil acesso, alimentação de péssima qualidade e ausência de água potável, não há

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remuneração pelo trabalho ou baixa remuneração, não há liberdade de rescisão contratual, entre outras.

O Código Penaltipifica o crime de redução à condição análoga a de escravo em seuart. 149: “Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: (Redação dada pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)”.

Para o reconhecimento do trabalho escravo, devem ser identificadas as seguintes características, segundo a legislação nacional: 1- recrutamento de trabalhadores; 2- cobrança de despesas; 3- proibição de rompimento do pacto laboral.

Luis Antônio Camargo de Melo relaciona as principais formas degradantes de trabalho: 1- utilização de trabalhadores, através de intermediação de mão-de-obra pelos chamados ‘gatos’ ou por cooperativas de trabalho fraudulentas; 2- submissão às condições precárias de trabalho pela falta ou inadequado fornecimento de boa alimentação e água potável; 3- fornecimento oneroso dos instrumentos de trabalho; 4- falta dos EPIs e materiais de primeiros socorros; 5 - transporte inseguro e inadequado aos trabalhadores; 6 - descumprimento da legislação trabalhista (MELO, 1991).

Nos dias atuais a exploração da mão-de-obra assumiu novos contornos, devendo ser entendida e analisada sob o prisma da ampla liberdade de iniciativa e de concorrência do sistema de produção capitalista apoiado na propriedade privada, e não, exclusivamente, sob o das sociedades primitivas que retira completamente a liberdade do ser humano. O reflexo disso é o aumento do trabalho escravo em área urbana, no tocante, ao mercado têxtil e de construção civil.

A Constituição Federal vigente estatui como fundamento da República Federativa do Brasil a dignidade humana (art. 1º, III) e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º, IV) e assegura a proibição de tortura (art. 5º, III), a liberdade de profissão (art. 5º, inciso XIII), a proibição de trabalhos forçados como penas impostas (art. 5º, XLVII, “c”); os direitos sociais (art. 6º, 7º e incisos), a competência da Justiça Federal para processar e julgar as causas relativas a direitos humanos a que se refere o § 5º do art. 109 e os crimes contra a organização do trabalho (art. 109, V-A e VI); e a proteção especial contra todas as formas de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão contra a criança, o adolescente e ao jovem (art. 227, caput e 4º); observando, nas relações internacionais, a prevalência dos direitos humanos (art. 4º, II).

O art. 21, inciso I, da Constituição Federal, estabelece que compete à União “manter relações com Estados estrangeiros e participar de organizações

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internacionais.”. A EC nº 45/2004 em atenção ao sistema de proteção internacional dos direitos humanos acrescentou o inciso V-A e o parágrafo 5º ao artigo 109 da Constituição Federal. Assim, compete à Justiça Federal processar a julgar, neste tema, não apenas os crimes contra a organização do trabalho, mas também graves violações de direitos humanos, mediante incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal, suscitado pelo Procurador-Geral da República, perante o Superior Tribunal de Justiça.

Graves violações de direitos humanos: dentre outros, a tortura, o uso, intermediação, tráfico e exploração de trabalho escravo ou de crianças e adolescentes, em quaisquer das formas previstas nos tratados internacionais. As formas mais recentes de trabalho forçado abrangem: a escravidão, o trabalho em regime de escravidão e o tráfico de seres humanos. Para a relatora especial da ONU sobre o Tráfico Humano, Joy Ngozi Ezeilo, “O tráfico humano é a escravidão dos tempos modernos” (ONU, 2014).

Relatório divulgado pela Organização Internacional do Trabalho, no dia 19/05/2014, estima que o trabalho forçado na economia mundial gera lucros anuais ilegais de US$ 150 bilhões (R$ 331,2 bilhões). Em 2012, a OIT havia estimado que cerca de 20,9 milhões de trabalhadores estavam submetidos a alguma forma de trabalho forçado (22% por exploração sexual forçada, 68% por outros tipos de exploração do trabalho e 10% por trabalho imposto pelo Estado) (OIT, 2014).

Segundo os dados do Relatório “Profits and Poverty” divulgados pela OIT, mulheres e meninas integram a maior parte dos trabalhadores submetidos ao trabalho forçado no mundo, cerca de 55% do total (11.4 milhões), enquanto homens e meninos representam 45% (9.5 milhões). Os adultos são os mais afetados, cerca de 74% (15.4 milhões); enquanto que 26% (5.5 milhões), possuem menos de 18 anos (PROFITS AND POVERT, 2014).

A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DHDU) estabelece que:

Artigo I- Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.Artigo III - Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.Artigo IV - Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas.Artigo V - Ninguém será submetido à tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.Artigo XXIII -

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1. Todo ser humano tem direito ao trabalho, à livre escolha de empregos, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego.

2. Todo ser humano, sem qualquer distinção, tem direito a igual remuneração por igual trabalho.

3. Todo ser humano que trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade humana e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social.

4. Todo ser humano tem direito a organizar sindicatos e a neles ingressar para proteção de seus interesses.Artigo XXIV - Todo ser humano tem direito a repouso e lazer, inclusive a limitação razoável das horas de trabalho e a férias remuneradas periódicas.

Vale mencionar os principais documentos internacionais de proteção contra esta forma de exploração, a serem:

a) Convenção nº 105 Convenção relativa a abolição do trabalho forçado, de 1957, OIT - aprovada pelo Decreto Legislativo nº 20/1965 e promulgada pelo Decreto nº 58.882/1966.

b) Convenção OIT nº 29/1930 sobre o Trabalho Forçado ou Obri-gatório, promulgada pelo Decreto nº 41.721, de 25 de junho de 1957, que em seu art. 2º define a expressão “trabalho forçado ou obrigatório” como “todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob a ameaça de sanção e para o qual não se tenha oferecido espontaneamente”.

c) Convenção sobre a Escravatura (Genebra, 1926), da Liga das Nações - aprovada pelo decreto Legislativo nº 66/1965 e promulgada pelo decreto nº 58.563/1966, que definiu as expressões escravidão e tráfico de escravos, no seu artigo 1º:

1º A escravidão é o estado ou condição de um indivíduo sobre o qual se exercem, total ou parcialmente, os atributos do direito de propriedade;2º O tráfico de escravos compreende todo ato de captura, aquisição ou sessão de um indivíduo com o propósito de escravizá-lo; todo ato de aquisição de um escravo com o propósito de vendê-lo ou trocá-lo; todo ato de cessão, por meio de venda ou troca, de um escravo adquirido para ser vendido ou trocado;

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assim como em geral todo ato de comércio ou de transportes de escravos.

d) Convenção Suplementar sobre a Abolição da Escravatura, do Tráfico de Escravos e das Instituições e Práticas Análogas à Escrava-tura (Genebra, 1656), da ONU - aprovada pelo Decreto Legislativo nº 66/1965 e promulgada pelo Decreto nº 58.563/1966.

e) Protocolo de emenda à Convenção sobre a Escravatura, aber-to à assinatura ou à aceitação na sede das Nações Unidas (Nova York, 1953), da ONU - aprovada pelo Decreto Legislativo nº 66/1965 e pro-mulgada pelo Decreto nº 58.563/1966.Em sede do ordenamento jurídico brasileiro, temos ainda normas

internas que prescrevem a conduta do trabalho escravo e a coibição do instituto por sanções próprias, como, por exemplo, nas leis abaixo:

a) Código Civil (Lei nº 1.406/2002), artigos 598 e 606; b) Código Penal (Decreto-lei nº 2.848/1940), art. 149 e 206;c) Constituição Federal, art. 5º, inciso XIII, XLVII-c; art. 6º, 7º e

incisos, art. 109-VI; art. 144, art. 227, caput e 4º;d) Lei nº 10.803/2003 - Altera o art. 149 do Decreto-Lei no

2.848, de 7 de dezembro de 1940 para estabelecer penas ao crime nele tipificado e indicar as hipóteses em que se configura condição análoga à de escravo;

e) Lei nº 10.446/2002 - Dispõe sobre infrações penais de repercussão interestadual ou internacional que exigem repressão uniforme, para os fins do disposto no inciso I do § 10 do art. 144 da Constituição Federal;

f) Lei nº 8.069/1990, artigos 5º, 87 e 130 - Estatuto da Criança e do Adolescente;

g) Lei nº 3.353/1888 - Lei Áurea.

Quanto à atuação da Justiça do Trabalho esta acontece através de seus órgãos: Ministério Público do Trabalho (MPT), Delegacias Regionais do Trabalho (DRTs), Ministério do Trabalho e do Emprego (MTE), entre outros, interligados ao enfrentamento do trabalho escravo, através de fiscalização, apuração de denúncias, ajuizamento de Ações Civis Públicas, proposição de Termos de Ajustamento de Conduta (TAC), implantação de Políticas Públicas próprias, entre tantas outras formas de contenção da prática de trabalho escravo, tanto em área rural, quanto em área urbana.

O Ministério Público do Trabalho, com o objetivo de erradicar o trabalho em condições análogas às de escravo, criou a Coordenadoria de Erradicação do Trabalho Escravo, que investiga situações em que os obreiros

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são submetidos a trabalho forçado, servidão por dívidas, jornadas exaustivas ou condições degradantes de trabalho, como alojamento precário, água não potável, alimentação inadequada, desrespeito às normas de segurança e saúde do trabalho, falta de registro, maus tratos e violência.

Desta forma, o MPT realiza ações judiciais e extrajudiciais que promovem a punição do empregador, prevenção ao ilícito e a inserção do trabalhador no mercado de trabalho com todos os direitos garantidos. Destacam-se três principais projetos de atuação do MPT neste sentido (PORTAL DO MPT, 2014):

a) Repressão ao trabalho escravo: os exploradores poderão firmar Termo de Ajuste de Conduta com o MPT; condenação pedagógica, san-cionatória e inibitória; os infratores responderão pelo crime do art. 149 do Código Penal; os exploradores são incluídos no Cadastro de Empre-gadores do MTE. A constatação de trabalho forçado na propriedade fiscalizada, e o

consequente desvirtuamento da função social da propriedade, desencadeia processo de desapropriação do imóvel pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), observadas as Portaria nº 101, de 12/1/96, do MTE, a Lei nº 8.629/93 e a Lei Complementar nº 76, de 6/6/93.

Os responsáveis pela exploração são acionados na Justiça do Trabalho para ressarcimento dos trabalhadores e pagamento das indenizações. Também podem ser acionados na esfera criminal, pelo Ministério Público Federal ou pelo Ministério Público Estadual. A possibilidade está prevista no artigo 149 (reduzir alguém à condição análoga a de escravo – pena de reclusão de dois a oito anos), no artigo 197 e seguintes, especialmente os artigos 203 e 207 (crimes contra organização do trabalho), todos do Código Penal.

Por outro lado, a Lei nº 9.777, de 30/12/98, trouxe alterações no Código Penal Brasileiro sancionando aquele que alicia trabalhadores com o fim de mantê-los trabalhando em outras regiões, com pena de detenção de um a três anos e multa, que pode ser aumentada de um sexto se a vítima for menor de 18 anos, idosa, gestante, indígena ou portadora de deficiência (PORTAL DO MPT, 2014).

b) Resgatando a Cidadania: promover e garantir qualificação aos trabalhadores egressos; transformar as iniciativas do projeto em polí-tica pública; garantir a verdadeira libertação do obreiro; implementar em âmbito nacional, com base em exemplo do Estado do Mato Grosso.A erradicação do trabalho escravo é uma das ações prioritárias do MPT

e visa reduzir o número de trabalhadores em situação de vulnerabilidade para o trabalho em condições análogas à de escravo e de trabalhadores resgatados reincidentes em empregos que oferecem tais condições. Visando a obtenção de maior eficiência e eficácia no alcance desses objetivos, decidiu-se criar o Programa Nacional Resgatando a Cidadania.

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Esse projeto tem como principal objetivo: promover e garantir políticas de inclusão ou reinclusão dos trabalhadores egressos do trabalho escravo e/ou em situação de vulnerabilidade no mercado de trabalho. Busca, ainda, garantir a verdadeira libertação do obreiro, a partir do incremento da sua empregabilidade com a concessão de cursos de qualificação técnico-educacional (PORTAL DO MPT, 2014).

c) Prevenção e Combate ao Aliciamento: enfrentar o tráfico de pessoas no trabalho escravo; acompanhar e regularizar o transporte dos trabalhadores; intensificar parcerias com a polícias e entidades regio-nais; coibir intermediadores da mão-de-obra que precarizam as rela-ções de trabalho.Na grande maioria dos casos de resgate, o obreiro é originário de

outra localidade, tendo migrado para conseguir um emprego, após contratação por um intermediador, conhecido como «gato» ou «empreiteiro». Com a abordagem do gato, que ilude os interessados com falsas promessas de bons salários e condições dignas, começa a via crucis do trabalhador, transportado de forma extremamente precária, com alto risco de acidentes já nesse percurso, sem qualquer tipo de documentação da contratação realizada, nem emissão de certidão liberatória pelas autoridades competentes, findando por se endividar e encontrar condições análogas a de escravo.

Buscando conferir regularidade à migração de obreiros, acompanhando o trabalhador para que não encontre no destino situações de superexploração, o MPT lançou em 2010, como base em exemplo desenvolvido em Minas Gerais, projeto nacional de prevenção ao trabalho escravo e combate à intermediação ilegal de mão de obra no meio rural, em curso em diversas regionais do país (PORTAL DO MPT, 2014).

3. A RESPONSABILIDADE PARA COM A DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS: ANÁLISE DE CASOS

Ao tratarmos de trabalho escravo automaticamente somos remetidas à ideia de privação de liberdade, ter o direito de ir e vir limitado, ou ainda, o uso de violência nas relações interpessoais. Na verdade, o trabalho escravo que temos nos dias atuais não é apenas aquele privativo da liberdade dos trabalhadores, mas também aquele que torna o trabalho degradante, penoso, que oferece risco à saúde e à segurança dos empregados, e ainda, aquele que não respeita as condições básicas para se constituir uma relação laboral.

Portanto, com vistas às características acima citadas do trabalho escravo no século XXI, os órgãos da Justiça do Trabalho, como o Ministério Público do Trabalho, as Delegacias Regionais do Trabalho, o Ministério do

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Trabalho e do Emprego, entre outros, atuam de forma conjunta, no exercício de suas atribuições, para o enfrentamento de tal prática criminosa, através de fiscalização, averiguação de denúncia, ajuizamento de Ações Civis Públicas e firmamento de Termos de Ajustamento de Conduta com empresas consideradas violadoras da dignidade de seus empregados e colaboradores.

Desta feita, analisaremos alguns casos que envolveram a prática de trabalho escravo entre empresas privadas do ramo têxtil, amplamente divulgados pela Procuradoria do Trabalho do Estado de São Paulo, pelo Ministério Público do Trabalho e pelo Tribunal Superior do Trabalho, em seus portais na internet, tomando repercussão e domínio público, nos últimos cinco anos.

3.1. CASO “C&A”

Conforme noticiado no Portal do TST, a empresa C&A Modas fora autuada diversas vezes pelo Ministério Público do Trabalho e pelas Procuradorias Regionais do Trabalho, pela prática de trabalho análogo ao de escravo em seus estabelecimentos. Em maio de 2010, através da Portaria 753/2010, a Procuradora do Trabalho, Dra. Débora Scattolini, da 2ª Região, no uso de suas atribuições legais, convolou o Procedimento Preparatório nº 005682.2008.02.000/2, em Inquérito Civil Público de mesmo número, por fatos denunciados que envolviam a saúde e segurança de seus colaboradores no ambiente laboral. Em julho de 2010, através da Portaria 1184/2010, a Procuradora do Trabalho, Dra. Valdirene Silva de Assis, da 2ª Região, no uso de suas atribuições legais, convolou o Procedimento Preparatório nº 005571.2009.02.000/5, em Inquérito Civil Público de mesmo número, por fatos denunciados que envolviam a saúde e segurança de seus colaboradores no ambiente laboral. Em novembro de 2010, através da Portaria 1687/2010, a Procuradora do Trabalho, Dra. Giselle Alves de Oliveira, da 2ª Região, no uso de suas atribuições legais, instaurou o Inquérito Civil Público nº 58.2010.02.004/0, por fatos denunciados que envolviam a saúde e segurança de seus colaboradores no ambiente laboral. Em maio de 2014, a empresa foi condenada a pagar R$ 100 mil de indenização por descumprir uma série de normas trabalhistas, situação que, segundo o Ministério Público do Trabalho, reduziu seus empregados a condição análoga à de escravo em suas unidades em shoppings em Goiás. Agravo interposto pela empresa na tentativa de reverter a condenação foi negado pela Quarta Turma do Tribunal Superior do Trabalho, ficando mantida a punição. A decisão foi unânime. A Procuradoria Regional do Trabalho da 18ª Região (GO) constatou infrações praticadas nas unidades da rede nos shoppings Goiânia e Flamboyant,

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na capital goiana, e Buriti, em Aparecida de Goiânia. Entre outras irregularidades, a C&A obrigava o trabalho em feriados sem autorização em convenção coletiva, não homologava rescisões no sindicato dos trabalhadores, não concedia intervalo de 15 minutos quando a duração do trabalho ultrapassava quatro horas, impedia o intervalo para repouso e alimentação em situações diversas, prorrogava a jornada de trabalho além do limite legal de duas horas diárias e não pagava horas extras no mês seguinte à prestação de serviços (TST, 2014). Por entender que havia um dano social e moral a ser reparado e que a empresa “reduziu seus empregados à condição análoga à de escravo”, tendo em vista que lhes impôs jornadas exaustivas, o MPT ajuizou ação civil pública. Requereu o pagamento de indenização de R$ 500 mil a ser revertida para o Fundo de Amparo ao Trabalhador e que a empresa cumprisse uma série de obrigações de fazer, sob pena de multa diária de R$ 1 mil por trabalhador prejudicado (TST, 2014).

3.2. CASO “ELLUS”

Em 2012, através da Portaria 1083/2012, a Procuradora do Trabalho, Dra. Carolina Vieira Mercante, da 2ª Região, no uso de suas atribuições legais, convolou o Procedimento Preparatório nº 003337.2012.02.000/1, em Inquérito Civil Público de mesmo número, por fatos denunciados que envolviam a saúde e segurança de seus colaboradores no ambiente laboral. A Representação convolada em Inquérito Civil tem por objetos: o trabalho análogo ao de escravo, o tráfico de trabalhadores e trabalho indígena e condições degradantes de trabalho.

3.3. CASO “ZARA”

Conforme noticiado no Portal do TST, a empresa ZARA fora autuada diversas vezes pelo Ministério Público do Trabalho e pelas Procuradorias Regionais do Trabalho, pela prática de trabalho em sua cadeia produtiva, nas oficinas de costura.

Em Maio de 2011, a Superintendência Regional do Trabalho e Emprego libertou 52 pessoas, quase todas originárias da Bolívia, que exerciam trabalho escravo em fábricas clandestinas na cidade de Americana, no interior do estado de São Paulo.

As diligências ocorreram em duas das trinta e três oficinas de costura da marca. Os trabalhadores resgatados viviam e trabalhavam no mesmo ambiente: sem ventilação, com fiação elétrica exposta, cômodos apertados e sujos. Em outubro de 2011, através da Portaria 1668/2011, o Procurador do Trabalho, Dr. Luiz Carlos Michele Fabre, da 2ª Região, no uso de suas atribuições

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legais, convolou o Procedimento Preparatório nº 000393.2011.02.002/2, em Inquérito Civil Público de mesmo número, por fatos denunciados que envolviam a saúde e segurança de seus colaboradores no ambiente laboral. Em dezembro de 2011, o MPT, juntamente com o MTE e a Procuradoria do Trabalho da 2ª Região, firmaram com a empresa um Termo de Ajustamento de Conduta, decorrente das investigações realizadas pelo Inquérito Civil nº 000393.2011.02.002/2, onde a mesma se comprometia em aperfeiçoar as condições de trabalho nas confecções para garantir melhor qualidade de vida aos trabalhadores das oficinas e eliminar as condições degradantes de trabalho na cadeia produtiva.

Em abril de 2013, através da Portaria 447/2013, a Procuradora do Trabalho, Dra. Claudia Regina Lovato Franco, da 2ª Região, no uso de suas atribuições legais, convolou o Procedimento Preparatório nº 002927.2012.02.000/0, em Inquérito Civil Público de mesmo número, por fatos denunciados que envolviam a saúde e segurança de seus colaboradores no ambiente laboral.

O recrutamento dos “quase escravos” seguia o padrão habitual: os trabalhadores foram aliciados em zonas muito pobres da Bolívia e do Peru, com promessas de melhores condições de vida no Brasil, mas, mal chegaram a São Paulo, foram obrigados a trabalhar 16 horas por dia, por um salário inferior ao vencimento mínimo legal. E desse salário miserável os empregadores ainda descontaram o custo da viagem para o Brasil, a comida e outros custos, o que, para o MTE, constitui crime de escravatura por dívida.

3.4. CASO “M.OFFICER”

Em fevereiro de 2013, através da Portaria 162/2013, a Procuradora do Trabalho, Dra. Elisiane dos Santos, da 2ª Região, no uso de suas atribuições legais, convolou o Procedimento Preparatório nº 002803.2012.02.000/9, em Inquérito Civil Público de mesmo número, por fatos denunciados que envolviam a saúde e segurança de seus colaboradores no ambiente laboral. Em novembro do mesmo ano, a empresa fora citada novamente.

No dia 06 de maio de 2014, o MTE e o MPT flagraram a prática de trabalho escravo nas oficinas de costura da marca. Seis trabalhadores foram libertos de uma oficina em Vila Santa Inês em São Paulo. Os trabalhadores laboravam exaustivamente, recebendo “por peça” produzida, morando no próprio local de trabalho, local este sem estrutura básica, nem equipamentos de segurança para o trabalho.

Contudo, os estudos apontam que as pessoas resgatadas dos campos de trabalho escravo são, na verdade, vítimas de um sistema econômico falido, e por isso, acabam retornando e submetendo-se às mesmas condições.

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CONCLUSÃO

Com base nos dados levantados para a presente pesquisa concluímos que a dinamogenesis do Direito constitui o processo de reconhecimento e imersão na ordem constitucional dos direitos fundamentais, através de uma linha do tempo e espaço na história, pela codificação das normas e evolução hermenêutica.

Concluímos, ainda, que a escravidão, que representa afronta direta aos direitos humanos, aos princípios constitucionais e as garantias mínimas asseguradas às pessoas, teve sua origem muito relacionada à questão racial, onde os negros eram vistos como raça inferior e que, por isso, deveriam servir aos brancos, com sua força de trabalho e submissão.

Contudo, essa relação escravagista também sofreu modificações com o tempo, e mesmo com as leis que previam a sua abolição, o fenômeno histórico permanece atuante, presente. Porém, a escravidão nos dias atuais não guarda, necessariamente, relação com a questão racial, ou ainda, privativa da liberdade das pessoas. Esta se tornou uma questão muito mais política, econômica, que étnica.

A escravidão moderna é aquela que sucumbe as condições mínimas de labor, submetendo os trabalhadores a jornadas exaustivas de atividade ininterrupta, sem remuneração ou com remuneração baixíssima, sem respeitar a saúde e a segurança, em locais insalubres, gerando, ainda, dívida de trabalho para as pessoas vítimas desse sistema criminoso, que mesmo após o resgate, acabam retornando aos campos de trabalho escravo.

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IMPLICAÇÕES DO PRINCÍPIO DO POLUIDOR-PAGADOR E A GOVERNANÇA DOS RECURSOS NATURAIS

Ana Paula Cordeiro Duarte23

Josilene Hernandes Ortolan De Pietro24

RESUMO

O presente artigo tem por objetivo analisar o princípio do poluidor-pagador, a partir da forma como este foi adotado no Brasil, suas principais características, objetivos e especificidades e aplicação. Ainda, busca verificar as implicações de sua aplicação para o meio ambiente e a forma como a governança dos recursos naturais pode atuar em favor da aplicação do princípio do poluidor-pagador.

Palavras-chave: Poluidor-pagador; Governança; Recursos naturais.

SUMÁRIO: Introdução. 1. Alguns contornos do princípio do poluidor-pagador. 1.1. O poluidor-pagador e a promoção da utilização racional dos recursos naturais. 1.2. A OCDE e a aplicação do Princípio do poluidor-pagador. 2. Governança dos recursos naturais e o princípio do poluidor-pagador. Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO

Há grande debate sobre a aplicação e incidência do princípio do poluidor-pagador, em especial entre ambientalistas e empreendedores, no tocante à eficácia do mesmo em prol da defesa do meio ambiente e prevenção de possíveis danos ambientais.

Importante destacar que, embora sua denominação possa induzir a uma errônea interpretação, não se trata de uma regulamentação ou uma autorização para desenvolver atividade poluentes, a partir do pagamento para tanto. Ao contrário, o princípio tem como objetivo obstar o uso gratuito dos recursos naturais, por meio da exploração desenfreada do meio ambiente, em favor daqueles que exploram atividades que agridem o meio ambiente em

23 Mestranda em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós-Graduada em Direito Tributário pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Advogada.24 Doutoranda em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestre em Direito pelo Centro Universitário Eurípides de Marília. Professora Assistente da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.

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prejuízo de toda coletividade. Busca-se, portanto, permitir a exploração de determinadas atividades, necessárias ao desenvolvimento econômico, e assim, não gerando prejuízo para a economia de um país, utilizando-se de medidas de governança para manter a sua aplicação e efetividade.

A ideia é estabelecer um equilíbrio entre os interesses do poder público e daqueles que desenvolvem atividades que atingem recursos naturais, mas, sem deixar de lado a adoção de medidas imprescindíveis manter um relacionamento entre indústrias, ambientalista e o próprio governo, visando o controle da poluição, sendo a Governança dos Recursos Naturais uma forma de reunir representantes das indústrias, ambientalistas, governo e comunidade em prol de um bem comum.

Dessa forma, importante analisar o conceito do princípio do poluidor-pagador para entender as suas diretrizes, seu surgimento, sua aplicação e efetividade. Abordar-se-á, ainda, a forma pela qual adotou-se e implementou-se referido princípio no Brasil, em busca de se apurar, a partir de pesquisa bibliográfica, com base em dados existentes, se, de fato a sua aplicação é efetiva. E, por fim, será analisada a forma como a governança dos recursos naturais poderia contribuir para efetiva aplicação do princípio do poluidor-pagador.

1. ALGUNS CONTORNOS DO PRINCÍPIO DO POLUIDOR-PAGADOR

O princípio do poluidor-pagador foi estabelecido pela OCDE – Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico, em 26 de maio de 1972, como um princípio orientador para os aspectos econômicos das políticas de meio ambiente no ambiente internacional, tendo como objetivo a imputação de custos e medidas para prevenir e combater a poluição25.

O poluidor nesse caso teria o dever de custear medidas protetivas e preventivas ao meio ambiente para evitar a poluição gerada por sua produção, até porque, sendo ele o responsável por essa poluição, nada mais correto e justo do que ser ele o responsável em prevenir ou pelo menos minimizar os danos ambientais causados.

Como sintetizado por Benjamin (1993, p. 07):

O princípio poluidor-pagador não é um princípio de compensação dos danos causados pela poluição.

25 “Le principe pollueur-payeur 3. Selon la Recommandation du Conseil, en date du 26 mai 1972, sur les principes directeurs relatifs aux aspects économiques des politiques de lenvironnement sur le plan international C(72)128 - le principe à appliquer pour limputation des coûts des mesures de prévention et de lutte contre la pollution ... est le principe dit pollueur-payeur.” Recommandation du Conseil sur l’application du principe pollueur-payeur aux pollutions accidentelles. Disponível em [http://acts.oecd.org/Instruments/ShowInstrumentView.aspx?InstrumentID=38&InstrumentPID=305&Lang=fr&Book=False].

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Seu alcance é mais amplo, incluídos todos os custos da proteção ambiental, quaisquer que eles sejam, abarcando, a nosso ver, os custos de prevenção, de reparação e de repressão do dano ambiental.

NO QUE DIZ RESPEITO À PESSOA DO POLUIDOR, AFIRMAM MENEGAZ E ALMEIDA (2012, P. 139):

No ordenamento jurídico é necessário preceituar res-ponsabilidades, em consonância com o Artigo 225 da Constituição Federal que dispõe sobre a respon-sabilidade da Coletividade e do Poder Público para com o meio ambiente. O poluidor pode ser consi-derado qualquer indivíduo participante ou não de uma determinada localidade. A Política Nacional do Meio Ambiente conceitua a expressão: poluidor, e o responsabiliza pelas ações referentes à degradação ambiental: Poluidor é a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou in-diretamente, por atividade causadora de degradação ambiental.

Assim, considera-se poluidor pessoa física ou jurídica que tenha participação direta ou indireta no dano ambiental causado. Cánepa e Pereira (2001, pp. 6-7), nesse sentido relatam que o princípio do poluidor-pagador “desincentiva” a prática de atos poluidores e de possíveis danos ao meio ambiente, visto que o poluidor deverá arcar com o custo de poluição:

O já tradicional Princípio Poluidor-Pagador, na me-dida em que induz os agentes poluidores a diminuí-rem os seus despejos ao corpo receptor para evitar a tarifa (e, assim, internalizando os custos de controle da poluição), constitui um exemplo de aplicação das noções anteriormente apresentadas. O estabeleci-mento de um preço para a utilização do meio recep-tor em sua capacidade assimilativa de resíduos força os agentes poluidores a uma moderação no uso, ra-cionando o recurso ambiental entre os diversos usos e possibilitando assegurar a sua utilização sustentá-vel a longo prazo. Esta é a principal função do PPP:

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inicitatividade. Mas, além disso, o PPP também pode exercer uma segunda função: a de financiamento à recuperação e melhoria quantitativa e qualitativa do meio receptor.

Assim, o poluidor teria que arcar com as despesas de prevenção e até mesmo de reparação do dano. E como é cediço, quando se envolvem custos e despesas, a atenção daquele que deverá arcar tal custo é consideravelmente maior do que se esse estivesse livre de qualquer obrigação nesse sentido.

Assim, nota-se que o princípio do poluidor-pagador foi adotado internacionalmente, de forma a atuar em consonância com a legislação ambiental local de cada país membro da OCDE. E qual seria o objetivo de fato para a aplicação desse princípio?

A esse respeito relata Benjamin (1993, p. 04) que:

O objetivo maior do princípio poluidor-pagador é fazer com que os custos das medidas de proteção do meio-ambiente — as externalidades ambientais — repercutam nos custos finais de produtos e “serviços cuja produção esteja na origem da atividade poluido-ra”. Em outras palavras, busca-se fazer com que os agentes que originaram as externalidades “assumam os custos impostos a outros agentes, produtores e/ou consumidores.

Para se entender melhor a questão das externalidades, cumpre mencionar que se tratam dos custos sociais do processo de desenvolvimento26, sendo que essas externalidades serão internalizadas, ou seja, o agente poluidor deve levar em consideração tais custos ao estabelecer os custos de sua produção e assumi-los. (MILARÉ, 1998). Nesse sentido, menciona Milaré (1998, p. 53):

Assenta-se este princípio na vocação redistributiva do Direito Ambiental e se inspira na teoria econô-mica de que os custos sociais externos que acompa-nham o processo produtivo (v.g., o custo resultan-

26 “(...) as externalidades nem sempre são de fácil cálculo. Primeiro porque são múltiplas as consequências de uma única ação poluidora (despesas médicas, limpeza, pintura, danos em materiais, em plantações e em rebanhos, queda do turismo e efeitos de longo prazo). Segundo porque danos morais – o desconforto humano, p. ex. – não são computáveis dessa maneira.” BENJAMIN (1993. p. 230).

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te dos danos ambientais) devem ser internalizados, vale dizer, que os agentes econômicos devem levá--los em conta ao elaborar os custos de produção e, consequentemente, assumi-los. Este princípio - es-creve Prieur - visa a imputar ao poluidor o custo social da poluição por elegerada, engendrando um mecanismo de responsabilidade por dano ecológico abrangente dos efeitos da poluição não somente so-bre bens e pessoas, mas sobre toda a natureza. Em termos econômicos, é a internalização dos custos externos. (sic).

Para Derani (2009, p. 158):

durante o processo produtivo, além do produto a ser comercializado, são produzidas ‘externalidades negativas’. São chamadas externalidades porque, embora resultantes da produção, são recebidas pela coletividade, ao contrário do lucro, que é percebido pelo produtor privado. Daí a expressão ‘privatização de lucros e socialização de perdas’, quando identifi-cadas as externalidades negativas. Com a aplicação do princípio do poluidor-pagador, procura-se corri-gir este custo adicionado à sociedade, impondo-se sua internalização. Por isto, este princípio é também conhecido como o princípio da responsabilidade.

O princípio é também é conhecido como princípio da responsabilidade, pois com sua aplicação “procura-se corrigir esse custo adicionado à sociedade, impondo-se sua ‘internalização’” (PADILHA, 2010, p. 256).

Dessa forma, entende-se que o custo gerado pela implantação de um processo que pode gerar um dano ambiental futuro, apesar de se tratar de um custo externo ao agente poluidor, passará a ser interno, vez que será uma obrigação do agente e, consequentemente, passará a fazer parte do seu custo de produção.

Milaré (1998) explica, ainda, que o princípio do poluidor-pagador não tem o objetivo de autorizar a poluição pelo pagamento de um preço e nem se trata apenas de uma compensação pelo dano causado, pelo contrário, busca evitar a ocorrência e a prática do dano, chamando a atenção do agente poluidor às práticas de prevenção e um estudo quanto às consequências geradas em razão

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da prática adotada. Nesse sentido ilustração trazida por Milaré (1998, p. 53).

Nesta linha, o pagamento pelo lançamento de efluen-tes, por exemplo, não alforria condutas inconsequen-tes, de modo a ensejar o descarte de resíduos fora dos padrões e das normas ambientais. A cobrança só pode ser efetuada sobre o que tenha respaldo na lei, pena de se admitir o direito de poluir. Trata-se do princípio poluidor-pagador (poluiu, paga os danos), e não pagador-poluidor (pagou, então pode poluir). A colocação gramatical não deixa margem a equívo-cos ou ambiguidades na interpretação do princípio. (sic.).

No que diz respeito à aplicação desse princípio no Brasil, a Lei nº 6.938/81 que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, adotou o princípio do poluidor-pagador ao estabelecer ao agente poluidor a obrigação de reparar e indenizar o dano causado (MILARÉ, 1998). Conforme dispõe o art. 4º:

Art 4º - A Política Nacional do Meio Ambiente vi-sará: VII - à imposição, ao poluidor e ao predador, da obrigação de recuperar e/ou indenizar os danos cau-sados e, ao usuário, da contribuição pela utilização de recursos ambientais com fins econômicos.

Ainda nesse sentido, a Lei nº 7.663/91, do Estado de São Paulo, também institui certas penalidades ao tratar das questões dos Recursos Híbridos:

Art. 14 - A utilização dos recursos hídricos será co-brada na forma estabelecida nesta lei e em seu regu-lamento, obedecidos os seguintes critérios:I - cobrança pelo uso ou derivação, considerará a classe de uso preponderante em que for enquadrado o corpo d‘água onde se localiza o uso ou derivação, a disponibilidade hídrica local, o grau de regulariza-ção assegurado por obras hidráulicas, a vazão capta-da em seu regime de variação, o consumo efetivo e a finalidade a que se destina; eII - cobrança pela diluição, transporte e assimilação

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de efluentes de sistemas de esgotos e de outros líqui-dos, de qualquer natureza, considerará a classe de uso em que for enquadrado o corpo d’água receptor, o grau de regularização assegurado por obras hidráu-licas, a carga lançada e seu regime de variação, pon-derando-se, dentre outros, os parâmetros orgânicos físico-químicos dos efluentes e a natureza da ativi-dade responsável pelos mesmos.§ 1º - No caso do inciso II, os responsáveis pelos lançamentos não ficam desobrigados do cumprimento das normas e padrões legalmente estabelecidos, relativos ao controle de poluição das águas.§ 3º - No caso do uso de recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica aplicar-se-á legislação federal específica.

Por sua vez, o princípio 16 da Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992 (ECO 92) expressamente retrata o princípio em comento:

As autoridades nacionais deveriam procurar fomen-tar a internalização dos custos ambientais e o uso de instrumentos econômicos, tendo em conta o critério de que o que contamina deveria, em princípio, arcar com os custos da contaminação, tendo devidamente em conta o interesse público e sem distorcer o co-mércio nem as inversões internacionais.

Frise-se que a Constituição da República Federativa do Brasil (CF/88) também faz referência ao princípio em seu art. 225, § 2º e § 3º ao estabelecer que o dever de recuperação e reparação do meio ambiente degradado:

§ 2º - Aquele que explorar recursos minerais fica obrigado a recuperar o meio ambiente degradado, de acordo com solução técnica exigida pelo órgão pú-blico competente, na forma da lei.§ 3º - As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de

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reparar os danos causados.

O princípio do poluidor-pagador, como ensinam Menegaz e Almeida (2012) é um estimulante negativo, visto que o agente poluidor deixa muitas vezes de realizar determinadas práticas danosas em função da sua responsabilidade pelos custos e despesas de reparação do dano. Assim, o princípio está vinculado à manutenção do meio ambiente e não à autorização de poluir com a fixação de um preço:

O Princípio do poluidor-pagador está intimamente ligado a manutenção do meio ambiente. Já que, para vencer a poluição, tal princípio vem corroborar para o acúmulo de subsídios que serão utilizados nas des-pesas relativas às proposituras impostas pelo Poder Público a fim de manter o meio ambiente em condi-ções aceitáveis para a vida humana. Quando se fala na poluição causada pelo consumo, intrinsecamente os resíduos sólidos se encontram lapidados nesta es-teira, haja vista, o ciclo do capitalismo impulsiona a ação de consumir. É sabido que quanto mais se con-some mais lixo se produz. Sendo assim, os produtos estão sendo fabricados e lançados na mídia a fim de incitar a compra de objetos novos, já que o consu-midor joga fora o que ainda pode ser utilizado, para aderir a um novo produto. (MENEGAZ e ALMEI-DA, 2012, pp. 140-141).

Portanto, verifica-se que o princípio do poluidor-pagador (i) foi estabelecido pela OCDE em 1972, sendo aplicado pelos seus membros; (ii) tem por objetivo prevenir o dano ambiental e não autorizar a poluição por parte do agente poluidor; e (iii) está previsto na legislação ambiental brasileira, inclusive com previsão constitucional.

1.1. O POLUIDOR-PAGADOR E A PROMOÇÃO DA UTILIZAÇÃO RACIONAL DOS RECURSOS NATURAIS

No que diz respeito à implementação deste princípio, é possível dizer que referido princípio promove a utilização racional dos recursos limitados do meio ambiente. E como seria feita essa utilização racional? A OCDE em 14 de novembro de 1974, com a implementação do princípio do poluidor-pagador,

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buscou de certa forma criar obrigações ao poluidor, ou seja, as despesas relativas às medidas de prevenção e luta contra a poluição deveriam ser arcadas pelos poluidores, de forma a garantir a preservação do meio ambiente27.

Assim, os custos dessas medidas protetivas ao meio ambiente devem refletir-se no custo de bens e serviços que são a origem da poluição em razão da prática do dano, o que poderia de certa forma ocasionar na utilização racional dos recursos naturais e do meio ambiente.

Uma forma sugerida pelo Conselho para que os poluidores pudessem suportar os custos da poluição, foi por meio de subsídios, incentivos fiscais ou outras medidas do poder público.

Em análise sobre a implementação do referido princípio nas atividades nacionais, Benjamim (1993) apontou como falha na implementação do referido princípio especialmente a dificuldade de aplicação da reparação judicial do dano ambiental. E ainda que:

Além disso, o próprio dano ambiental é de difícil constatação e avaliação. A atividade pode ser pro-duzida hoje e os efeitos do dano só aparecerem após vários anos ou, o que é pior, já em outra geração. Em outros casos, o dano imediatamente visível é só a ponta do iceberg sendo que é com base nele que se calcula o valor global e final da indenização. Nes-se sentido, é bom lembrar que a grande maioria das ações civis públicas propostas no Brasil está abso-lutamente parada exatamente na fase de cálculo do dano causado. Ademais, o processo civil abre ao po-luidor incontáveis fórmulas protelatórias, sem con-tar as suas múltiplas opções recursais. É como se o meio-ambiente danificado tivesse à sua disposição

27 “La mise en œuvre de ce principe favorise lemploi rationnel des ressources limitées de lenvironnement. Selon la Recommandation du Conseil, en date du 14 novembre 1974, sur la mise en œuvre du principe pollueur-payeur C (74) 223 - le principe pollueur-payeur ... signifie que le pollueur devrait se voir imputer les dépenses relatives aux mesures de prévention et de lutte contre la pollution décidées par les autorités des pays membres, pour faire en sorte que lenvironnement soit dans un état acceptable. En dautres termes, le coût de ces mesures devrait être répercuté dans le coût des biens et services qui sont à lorigine de la pollution du fait de leur production etou de leur consommation. Aux termes de cette même Recommandation, le Conseil a recommandé quen règle générale, les pays membres naident pas les pollueurs à supporter des coûts de la lutte contre la pollution, que ce soit au moyen de subventions, avantages fiscaux ou autres mesures.” Recommandation du Conseil sur l’application du principe pollueur-payeur aux pollutions accidentelles. Disponível em [http://acts.oecd.org/Instruments/ ShowInstrumentView.aspx?InstrumentID=38&InstrumentPID=305&Lang=fr&Book=False].

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todo o tempo do mundo para aguardar uma eventual decisão de condenação do poluidor. Finalmente, há todo um quadro de deficiência material e pessoal, em especial quanto a perícias, que dificulta, quando não impede, o sucesso de ações civis públicas ambientais reparatórias (BENJAMIN, 1993, p. 11).

Nesse sentido, menciona o autor que o dano ambiental além de difícil comprovação, muitas vezes não é constatado logo de início, levando alguns anos para produzir os seus efeitos, dificultando ainda mais a comprovação do nexo de causalidade e a consequente obrigação de reparação do dano e indenização pelo agente poluidor. Outro ponto consiste na impossibilidade de reparação de determinados danos ambientais, como é o caso de uma paisagem extinta e mesmo a valoração dos danos causados (BENJAMIN, 1993). Determinados danos causados ao meio ambiente são de difícil reparação ou até mesmo considerados de impossível reparação, nesse caso, teríamos um dano causado em que não seria possível a reparação, restando apenas a possibilidade de compensação pelo ato danoso praticado. No entanto, a compensação, apesar de ser uma forma de reparar, não atinge o objetivo de fato do princípio do poluidor-pagador, que é o uso racional dos recursos naturais e a proteção do meio ambiente.

Com relação à valoração do dano, como se valora, por exemplo, a devastação de uma floresta em extinção? Um valor de perda imensurável. Eis uma das fragilidades do princípio do poluidor-pagador. Outro exemplo que se pode mencionar é a contaminação de áreas por resíduos28. Referido dano não prejudica tão somente o local contaminado, mas produz uma série de efeitos negativos ao meio ambiente que vão se manifestando com o passar do tempo. Um dano com essa projeção, dificilmente poderá ser mensurado, razão pela

28 “A quantificação e o exato dimensionamento do dano ambiental resultante da contaminação de áreas com resíduos sólidos ou semi-líquidos perigosos ou efluentes industriais é um dos mais tormentosos problemas atinentes à responsabilização civil por danos ambientais, pois tais impactos afetam o ecossistema como um todo, partindo-se da visão sistêmica de meio ambiente, que abrange não apenas os recursos naturais, artificiais e culturais, mas todas as demais condições e influências que regem e abrigam a vida em todas as suas formas. Por conseguinte, a disposição de resíduos perigosos no solo sempre atingirá o meio ambiente de forma sistêmica – ainda que, à primeira vista, apenas o solo ou a água sejam imediatamente atingidos -, porquanto não se podem desprezar a biodiversidade e o aspecto de o equilíbrio ambiental pressupor a harmonia de todos os elementos que compõem o ecossistema. [...] Portanto, o lançamento de substâncias contaminantes no meio ambiente pode assemelhar-se à queda de uma pedra na água, que provoca uma série de ondas que se expandem. (STEIGLEDER, 2002, pp. 249-272).

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qual a quantificação desses danos deveria ser do agente poluidor, invertendo-se, assim, o ônus da prova em uma possível ação civil pública29.

1.2. A OCDE E A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DO POLUIDOR-PAGADOR

Sabe-se da importância da legislação local estabelecer princípios de preservação ao meio ambiente e dos recursos naturais, no entanto, não basta a previsão legal, referidos princípios devem ser aplicados e colocados em prática com auxílio das autoridades governamentais. Uma das formas de aplicação é a criação de governanças que darão apoio ao governo, incentivarão e conscientizarão as indústrias quanto à importância da preservação do meio ambiente. Dessa forma, mais do que a regulação e a regulamentação, faz-se necessário o controle dessa legislação, para que o princípio do poluidor-pagador não seja mera previsão legal.

A OCDE propõe algumas orientações, como forma de facilitar a aplicação do princípio do poluidor-pagador30, destacando-se alguns pontos:

29 “[...] É notório que o Ministério Público e os demais legitimados para o ajuizamento da ação civil pública não dispõem de recursos financeiros para custear as perícias para a quantificação e mensuração do dano ambiental, situação que pode esvaziar o compromisso de ajustamento de conduta, pela possibilidade de não se incluir na composição civil obrigações que se poderiam incluir se houvesse conhecimento prévio da extensão do dano e de todos os aspectos a serem reparados.” (STEIGLEDER, 2002, pp. 249-272).30 Application du principe pollueur-payeur aux pollutions accidentelles: 4. En matière de risque de pollution accidentelle, le principe pollueur-payeur implique que l’exploitant d’une installation dangereuse devrait se voir imputer le coût des mesures raisonnables de prévention et de lutte contre la pollution accidentelle provenant de cette installation qui sont décidées avant la survenance d’un accident par les autorités des pays membres en conformité avec le droit interne afin de protéger la santé de l’homme ou l’environnement. 5. Est conforme au principe pollueur-payeur le droit interne qui prescrit que le coût des mesures raisonnables de lutte contre la pollution accidentelle après un accident soit remboursé aussi rapidement et simplement que possible par la personne morale ou physique à l’origine de l’accident. 6. Dans la plupart des cas et indépendamment des questions relatives à l’origine de l’accident, l’exploitant se voit imputer, dans un premier temps, pour des raisons de commodité administrative ou pour d’autres raisons, le coût de telles mesures prises par les pouvoirs publics [3]. Toutefois si un tiers est responsable de l’accident, celui-ci rembourse l’exploitant du coût des mesures raisonnables de lutte contre la pollution accidentelle prises après un accident. 7. Si la pollution accidentelle est causée exclusivement par un événement dont l’exploitant ne peut manifestement pas être considéré comme responsable en droit interne tel que, par exemple, une catastrophe naturelle grave que l’exploitant n’aurait pu raisonnablement prévoir, il est conforme au principe pollueur-payeur que les pouvoirs publics ne lui imputent pas le coût des mesures de lutte prises par eux. 8. Les mesures de prévention et de lutte contre la pollution accidentelle sont les mesures prises pour prévenir les accidents dans des installations particulières et pour limiter leurs conséquences sur la santé de l’homme ou l’environnement. Il peut s’agir notamment des mesures destinées à améliorer la sécurité des installations dangereuses et la préparation aux situations d’urgence, à mettre au

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Risco de poluição acidental: o princípio do poluidor-pagador implica no caso de instalação perigosa e que possa ocasionar danos ambientais o dever de ser cobrado o custo de todas as medidas razoáveis para prevenir e combater a poluição acidental das referidas instalações, agindo de forma preventiva. Tais providências devem ser colocadas em práticas antes da ocorrência de um acidente, pelas autoridades dos países membros em conformidade com a lei, a fim de proteger a saúde do homem ou do meio ambiente;

O Princípio do poluidor-pagador deve estar em consonância com a regulamentação local, prevendo, ainda a forma como esses custos serão reembolsados pelo poluidor;

A origem dos problemas relacionados ao possível acidente ou dano ambiental deve ser de responsabilidade do poluidor independente de culpa. No entanto, caso seja demonstrado que um terceiro é responsável pelo acidente ou dano, o poluidor será recompensado pelas despesas desembolsadas.

Se a poluição acidental é causada unicamente por um evento cujo poluidor claramente não pode ser considerado como responsável pela lei, o poluidor não poderá ser considerado responsável por esses custos.

As medidas de prevenção e combate à poluição acidental são as medidas tomadas para evitar acidentes em instalações especiais e para limitar as suas consequências sobre a saúde do homem ou do ambiente. Existem várias medidas para melhorar a segurança de instalações perigosas, como a contratação de empresas específicas para esse fim, preparação para situações de emergência, para desenvolver planos de emergência, para responder rapidamente após o acidente, para proteger a saúde do homem e o ambiente, para executar operações de limpeza e corrigir sem atrasos o dano causado e o próprio auxílio do governo para essa finalidade.

point des plans d’urgence, à intervenir rapidement après un accident pour protéger la santé de l’homme et l’environnement, à effectuer des opérations de nettoyage et à remédier sans retard excessif aux conséquences de la pollution accidentelle pour l’environnement. Elles n’incluent ni les mesures de caractère humanitaire ou les autres mesures ayant un caractère strict de service public et qui, selon la législation en vigueur, ne peuvent faire l’objet d’un remboursement aux pouvoirs publics ni les mesures d’indemnisation des victimes pour les effets économiques de l’accident.(…)” Recommandation du Conseil sur l’application du principe pollueur-payeur aux pollutions accidentelles. Disponível em [http://acts.oecd.org/Instruments/ ShowInstrumentView.aspx?InstrumentID=38&InstrumentPID=305&Lang=fr&Book=False].

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Dessa forma, o princípio não implica autorização em poluir, mediante pagamento, mas visa conscientizar a sociedade quanto à possibilidade de se implantar medidas protetivas ao meio ambiente, sem, no entanto, prejudicar o desenvolvimento econômico do país por meio da exploração de atividades econômicas.

Além das medidas sugeridas pela OCDE, existem outras formas de aplicação do princípio do poluidor-pagador. Como visto, a legislação brasileira adoto referido princípio, inclusive, prevendo-o expressamente na própria Constituição Federal. Porém, é necessário concretizar o que prevê a legislação.

Uma das formas está na busca pelas autoridades governamentais de incentivos e benefícios às indústrias, de forma que essas tenham interesse em observar e cumprir o que determina a legislação. Assim, a lei deve prever uma estratégia de governança para que não seja considerada “letra morta”.

2. GOVERNANÇA DOS RECURSOS NATURAIS E O PRINCÍPIO DO POLUIDOR-PAGADOR

Inicialmente, cumpre mencionar que o instrumento de governança não é a lei, mas sim a mudança de hábitos, seja pelo explorador da atividade econômica, seja pelas autoridades governamentais, seja pela comunidade. Mas a que se refere a governança e como mudar tais hábitos?

Por governança entende-se uma forma de solucionar problemas, discutir questões. No caso dos recursos naturais, a governança pode ser considerada um sistema utilizado para a aplicação de práticas protetivas ao meio ambiente, por meio da conscientização dos indivíduos envolvidos quanto à necessidade do uso dos recursos naturais de forma racional.

Conscientizar não é algo fácil, fazer com que uma lei seja aplicada também não é algo simples, mesmo com a previsão e aplicação de sanções. É preciso fiscalizar, controlar, ter o apoio das autoridades governamentais. Assim, a governança seria uma medida de auxílio para a aplicação de uma lei, por exemplo, mudando os hábitos daqueles que agem de forma contrária ao previsto na lei.

O princípio do poluidor-pagador, por exemplo, responsabiliza o agente poluidor em custear as despesas para a reparação do dano causado e até mesmo da preservação do meio ambiente, no entanto, para que ele tenha efetividade, é preciso atuar na indústria, na comunidade, verificar se as autoridades governamentais estão fiscalizando e aplicando esse princípio, se o Poder Judiciário está sendo acionado, dentro outras práticas.

A governança dos recursos naturais propõe mudança de hábitos, tendo em vista a forma como o meio ambiente foi tratado por muitos anos e pelo fato de não existir interesse em sua preservação, apesar da existência de leis que

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sancionam a prática poluidora. Heinzerling relata justamente a situação negativa quanto à preservação do meio ambiente e aplicação da lei ambiental em razão do interesse dos mais poderosos, que está voltado às questões econômicas, sem se preocupar com os atos danosos praticados31.

Essa é uma das razões da necessidade de mudança de hábitos, pois o indivíduo está habituado a usar, extrair, causar danos, sem se preocupar com o resultado do ato praticado. Para que o princípio do poluidor-pagador de fato faça sentido, não basta haver previsão legal, mas é preciso que as autoridades governamentais entendam a sua necessidade e aplicabilidade, que os industriais utilizem os recursos de forma racional e busquem preservar o meio ambiente, e ainda, que a própria comunidade defenda a proteção do meio ambiente, dever imposto a todos.

Ainda, em relação à necessidade de mudança de hábitos ensinam Martin e Gunningham (2011) que a Governança dos Recursos Naturais é fundamentalmente comportamental, atuando em dois níveis, quais sejam, (i) controlando o comportamento daqueles que optam em causar danos ambientais por questões de hábitos e resultantes de uma influência sistêmica, visto que a maioria dos danos ambientais são praticados com base em atitudes consideradas “normais” pela sociedade e que resultam em danos perversos ao meio ambiente; e (ii) atuando na coletividade, demonstrando o excesso do uso dos recursos naturais e os prejuízos que referido uso excessivo pode causar, ou seja, não basta a existência de uma sanção, mas percebe-se a necessidade de uma norma social, de forma com que a coletividade compreenda que a preservação ao meio ambiente não está afastada das questões econômicas como a coletividade foi influenciada a acreditar32.

31 “We find ourselves, as environmentalists, in hard times. Environmental problems worsen while politicians delay and deny. The environmental laws we have called upon to protect us come at the end of a long chain of other laws that encourage the very environmentally destructive behavior the envi-ronmental laws aim to prevent. These laws are intricate and pervasive and backed by the most powerful interests in the world. They are, despite their influence and pervasiveness, almost invisible to the naked eye. They make pollution seem natural, inevitable, the product of freely functioning markets. Your charge is to find them, reveal them, and take them on.” (HEINZERLING, 2011, p. 273.)32 “The purpose of NRM and environmental regulation is fundamentally behavioural, at two levels. The first is to control the behaviour of those who choose to do environmental harms, such as thes praying of banned pesticides, large-scale land-clearing and other environmental crimes. This aspect of environmental regulation is akin to many other aspects of criminal regulation, where the science of criminology has generated sociological and behavioural theories supported by experimental refinement. However, only a small part of the harmful behaviours that deplete or degrade natural resources fit into the category of self-interested, socially-aberrant behaviour. Even the behaviours that can be characterised in this manner are often the result of systemic influences. Much damage to natural resources is the result of “normal” behaviours within

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Diante disso, verifica-se que a Governança dos Recursos Naturais mostra-seessencial para a implementação e aplicabilidade do princípio do poluidor-pagador, auxiliando na mudança de hábitos e costumes da coletividade.

CONCLUSÃO

O Princípio do poluidor-pagador, ao contrário do que se imagina, não se trata da possibilidade de se pagar para poluir, mas sim da reparação do dano causado pelo agente poluidor, bem como da prevenção contra a prática do dano causado. Implica a necessidade do agente poluidor incluir em seu custo de produção essas externalidades, internalizando tais custos e utilizando-se dos recursos naturais e do meio ambiente de uma forma racional, visto que será o responsável, inclusive financeiramente, pelos danos que causar o meio ambiente.

Apesar da importância do princípio do poluidor-pagador, verificou-se a dificuldade de implementação do referido princípio, embora conste da legislação ambiental brasileira. Isso porque, muitos danos causados pelos agentes poluidores são de difícil mensuração e consequente reparação.

Verifica-se que o princípio do poluidor-pagador exerce um papel de reparação do dano ambiental causado e também de prevenção do dano, visto que conscientiza, seja compulsoriamente ou não, o agente poluidor a pensar no dano que irá ocasionar ao meio ambiente, vez que será o responsável por todas as despesas de prevenção e reparação.

O Princípio do poluidor-pagador permite demonstrar aos indivíduos, seja à sociedade, seja aos agentes poluidores, que o custo de prevenção, o uso racional do meio ambiente é muito mais vantajoso e menos custoso financeiramente, do que arcar com as despesas de reparação/responsabilização.

O Brasil é um país com um histórico extrativista e fornecedor de matéria prima desde o período de colonização até os tempos atuais, em que houve e ainda se mantém a devastação de grande parte das florestas. Diante disso, o princípio do poluidor-pagador mostra-se como forma de conscientização e de

society that give rise to perverse outcomes; or of systemic factors that limit the ability of the citizen to do what preserves the common environmental good. Collective over-consumption of natural resources is in part a response to the imperatives of consumer and industrial marketing, married to limits to the technologies through which we obtain consumption benefits from nature. This suggests that rather than applying a criminal law paradigm, the aim of regulation and other policy instruments should be to alter the social norms of ordinary (non-aberrant) citizens. Many citizens may be predisposed to do what is right, but limited in their knowledge or economic capacity to do so, or labour under peer group norms that encourage waste (such as the urban norm for excessively large and inefficient housing, or for farming practices that deplete the soil or waste water)” (MARTIN e Gunningham, 2011).

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responsabilização do agente poluidor pelos danos ambientais por ele praticado.A proposta da aplicação do princípio do poluidor-pagador por meio da

governança dos recursos naturais visa demonstrar que não basta a existência da lei dispondo sobre referido princípio: faz-se necessária a sua aplicação, fiscalização, conscientização e mudança de hábitos dos envolvidos, papel esse que pode ser exercido por meio de políticas de governança.

Em síntese, a governança dos recursos naturais visa demonstrar a necessidade do uso dos recursos de forma racional, ou seja, conscientizar os atores do processo produtivo sobre a importância da preservação do meio ambiente e a reparação de eventuais danos causados, as autoridades governamentais sobre a necessidade de fiscalizar e controlar o que está previsto em lei, a comunidade, da importância de sua participação na preservação do meio ambiente e dos recursos naturais e, o Poder Judiciário, da importância da aplicação dos princípios ambientais nas decisões que envolvam o tema.

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REFERÊNCIAS

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DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

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HEINZERLING, Lisa. New Directions in Environmental Law: A Climate of Possibility. Harv. Envtl. L. Rev., v. 35, p. 263, 2011.

LANNA, Antonio Eduardo; CÁNEPA, Eugênio Miguel. O gerenciamento de bacias hidrográficas e o desenvolvimento sustentável: uma abordagem integrada. Ensaios FEE, v. 15, n. 1, pp. 269-282, 1994.

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MENEGAZ, Luciane Cristina; KOHLER DE ALMEIDA, Analice. A inserção do princípio do poluidor-pagador na problemática dos resíduos sólidos no Brasil. Planeta Amazônia: Revista Internacional de Direito Ambiental e Políticas Públicas, nº 3, pp. 135-144, 2012.

MILARÉ, Édis. Princípios fundamentais do direito do ambiente. Revista dos Tribunais, v. 756, p. 53, 1998.

PADILHA, Norma Sueli. Fundamentos constitucionais do direito ambiental. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.

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STEIGLEDER, Annelise Monteiro. Áreas Contaminadas e a obrigação do poluidor de custear um diagnóstico para dimensionar o dano ambiental. Revista do Ministério Público. Porto Alegre: Editora AMPRGS, nº 47, pp. 249-272, 2002.

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LICITAÇÕES E COMPRAS PÚBLICAS SUSTENTÁVEIS: OBRIGATORIEDADE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Michelle Asato Junqueira33

Mayara Ferrari Longuini34

RESUMO

O presente trabalho pretende expor de forma sucinta acerca do procedimento licitatório e seus princípios, em consonância com a regra do desenvolvimento sustentável. Neste contexto e em observância às disposições do texto constitucional, é de se concluir que a licitação sustentável deve ser a regra aplicável à Administração Pública, ainda que o direito positivo não contenha norma expressa.

Palavras-chave: Licitação; Sustentável; Administração Pública.

SUMÁRIO: Introdução. 1. O procedimento licitatório e seus princípios. 2. O desenvolvimento sustentável em face do direito socioambiental. 3. A licitação sustentável. Conceito. 4. Iniciativas já concretizadas no âmbito internacional e da Administração Pública Nacional. Breves exemplos. Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO

Ao Poder Público, por força do texto constitucional, cabe efetuar suas compras através de procedimento licitatório, cujos requisitos e atos devem ser estritamente seguidos pelos agentes públicos, em estrita observância ao princípio da legalidade. Contudo, tal procedimento não é puramente vinculado, mas sim ostenta forte carga discricionária. Não significa dizer que a licitação pode afastar-se dos comandos normativos, pelo contrário, deve estar pautada nos princípios que regulam a Administração Pública e, ainda, sobremaneira, deve estar pautada no direito inafastável ao meio-ambiente ecologicamente equilibrado.

33 Especialista em Direito Constitucional, com extensão em Didática do Ensino Superior. Mestre e Doutoranda em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Membro efetivo dos grupos de pesquisa CNPq “Estado e Economia no Brasil” e “Políticas Públicas como Instrumento de Efetivação da Cidadania”. Professora dos cursos de graduação e pós-graduação “lato sensu” da UPM.34 Mestranda em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Especialista em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas e Bacharel em Direito pela Fundação Armando Alvares Penteado. É membro do Grupo de Pesquisa Estado e Economia no Brasil e tem experiência como advogada nas áreas de contencioso cível, empresarial e societário.

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Em sendo assim, é preciso que se analise o procedimento licitatório sob o enfoque de seus princípios e finalidades. Contudo, de forma vinculada à necessidade de um desenvolvimento indissociável da sustentabilidade.

Nesta linha, a licitação e as compras sustentáveis não são medidas optativas do agente público, mas a regra dentro do contexto normativo atual.

E a atualidade da matéria aqui discutida ganha especial relevo na medida em que o próprio Ministério do Planejamento divulga que as compras públicas movimentam cerca de 10% (dez por cento) do PIB nacional35, tendo inclusive, criado a Comissão Interministerial de Sustentabilidade a Administração Pública – CISAP, por meio do Decreto nº 7.746, de 5 de junho de 2012, que tem como principal objetivo integrar todas as discussões relativas à sustentabilidade no Governo, para a implementação de estratégias que assegurem o crescimento sólido e contínuo desse tema36.

No âmbito internacional, muitas medidas já foram adotadas e, no âmbito nacional, a iniciativa tem ganhado força. O tema, portanto, encontra cada vez mais relevância na discussão jurídica.

1. O PROCEDIMENTO LICITATÓRIO E SEUS PRINCÍPIOS

A necessidade de a Administração Pública contratar somente mediante processo licitatório decorre de disposição do texto constitucional:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Dis-trito Federal e dos Municípios obedecerá aos princí-pios de legalidade, impessoalidade, moralidade, pu-blicidade e eficiência e, também, ao seguinte:[…]XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.

35 http://cpsustentaveis.planejamento.gov.br/?p=1407. Acesso em 24 nov. 2014.36 http://cpsustentaveis.planejamento.gov.br/?cat=3. Acesso em 24 nov. 2014.

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Da leitura do dispositivo acima citado depreende-se que a Constituição da República reconhece a possibilidade de realização de contratos administrati-vos sem prévia licitação, ao permitir, no inciso XXI, do art. 37 que a lei poderá estabelecer ressalvas.

Denota-se, portanto, o primeiro caráter discricionário do procedimento, afastando-se, desta forma, qualquer argumentação do sentido de que o ato é plenamente vinculado e, em sendo assim, só é possível ao administrador fazer o que a lei assim determina e autoriza.

Se há uma margem de discricionariedade, ela deve ser exercida nos termos das balizas constitucionais.

Um delas: o desenvolvimento sustentável.Além disso, na doutrina administrativa tem ganhado força a idéia

de “força regulatória da licitação” para práticas sociais benéficas, como bem salientado pelo Ministro Luiz Fux37, no voto proferido na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.923, em 20 de maio de 2011.

Mas, o que é licitação? Define Celso Antônio Bandeira de Mello (2006, p. 501):

É um certame que as entidades governamentais devem promover e no qual abrem disputa entre os interessados em com elas travar determinadas relações de conteúdo patrimonial, para escolher a proposta mais vantajosa às conveniências públicas. Estriba-se na idéia de competição, a ser travada isonomicamente entre os que preencham os atributos e aptidões necessários ao cumprimento das obrigações que se propõem assumir.

Sua natureza, portanto, é instrumental, ou seja, se presta à concretização dos valores fundamentais impostos à Administração Pública. Não é um fim em

37 Por identidade de razões, mesmo a dispensa de licitação instituída no art. 24, XXIV, da Lei nº 8.666/93 deve observar os princípios constitucionais. Em primeiro lugar, tal dispositivo não é, em abstrato, inconstitucional. A dispensa de licitação aí instituída tem uma finalidade que a doutrina contemporânea denomina de função regulatória da licitação, através da qual a licitação passa a ser também vista como mecanismo de indução de determinadas práticas sociais benéficas. Foi assim, por exemplo, que a Lei Complementar nº 123/06 institui diversos benefícios em prol de micro-empresas nas licitações públicas, estimulando o seu crescimento no mercado interno. E é com a mesma finalidade que os incisos XIII, XX, XXI e XXVII do art. 24 prevêem outros casos de dispensa, em idêntica linha ao que prevê o agora impugnado inciso XXIV. http://www. stf.jus.br/portal/informativo/verInformativo.asp?s1=ADI+1923&pagina=3&base=INFO. Acesso em 24 de novembro de 2014.

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si mesmo, seus princípios estão vinculados aos da própria Administração e aos fundamentos e objetivos da República, tendo em conta, especialmente, que toda atividade estatal destina-se à promoção do bem comum.

Assim, prescreve o artigo 3º da Constituição Federal:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da Repú-blica Federativa do Brasil:[…]II- garantir o desenvolvimento nacional;IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras for-mas de discriminação.

Depreende-se que o princípio administrativo basilar da supremacia do interesse público ou princípio da finalidade pública consiste no direcionamento da atividade e dos serviços públicos à efetividade do bem comum.

Referido direcionamento pode também ser traduzido por outro princí-pio correlato, o da eficiência.

A redação original do caput do art. 37, da Constituição Brasileira de 1988, previa os seguintes princípios: legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade. A redação atual do dispositivo constitucional, trazida pela EC n. 19/98, acresceu o princípio da eficiência, já acima citado.

Todavia, vale o aparte de Celso Antonio Bandeira de Mello (2006, p.104):

Trata-se, evidentemente, de algo mais desejável. Contudo, é juridicamente tão fluido e de tão difícil controle ao lume do Direito, que mais parece um simples adorno agregado ao art. 37 ou o extravasamento de uma aspiração dos que buliram no texto. De toda sorte, o fato é que tal princípio não pode ser concebido (entre nós nunca é demais fazer ressalvas óbvias) senão na intimidade do princípio da legalidade, pois jamais uma suposta busca de eficiência justificaria postergação daquele que é o dever administrativo por excelência. Finalmente, anote-se que este princípio da eficiência é uma faceta de um princípio mais amplo já superiormente tratado, de há muito, no Direito italiano: o princípio da ‘boa administração.

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A eficiência pode ser ainda traduzida na economicidade, eficiência e efetividade como pontua Pollitt (2008, p. 137).

Economicidade diz respeito à redução dos custos dos recursos requeridos ou utilizados, mantendo atenção à qualidade apropriada. A administração pública deve ser mais econômica. Deve gastar menos.

Eficiência, por sua vez, diz respeito à relação entre os resultados dos bens, serviços e os recursos utilizados para produzi-los. Até que ponto um resultado máximo é alcançado com base em um determinado meio produtivo, ou [até que ponto] um mínimo (dentro do processo produtivo) produz um dado resultado. Em resumo, é o gastar bem.

Efetividade, por sua vez, diz respeito à relação entre os resultados pretendidos e os resultados efetivos de projetos, programas e outras atividades. Quão satisfatoriamente os resultados de bens, serviços e outros resultados cumprem os objetivos das políticas, os alvos operacionais e os outros efeitos pretendidos? Para ser efetiva, a Administração Pública deve gastar o dinheiro público sabiamente.

Para reforçar o já dito, na afirmação inequívoca de que a licitação não é um fim em si mesmo e deve estar pautada nos princípios que regem a Administração Pública, vale transcrever o artigo 3º da Lei nº 8.666/93, que regulamenta o processo licitatório:

Art. 3o. A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia e a selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da pro-bidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos.

No mais, nas palavras de Marçal Justen Filho (2009, p. 60):

O único valor Supremo é a dignidade humana, núcleo dos direitos fundamentais consagrados constitucio-nalmente. A expressão “interesse público” não apre-senta conteúdo próprio, específico e determinado. Costuma ser invocada para a satisfação dos interesses escolhidos pelo governante, o que é absolutamente incompatível com a ordem constitucional vigente.

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É indispensável determinar e definir, de modo claro, o conteúdo dos interesses perseguidos pela Administração Pública e pelos particulares, realizando ponderação entre eles segundo os valores e princípios consagrados constitucionalmente.

A licitação, portanto, somente atende à sua finalidade, como já dito, se observadas as demais disposições do Poder Constituinte, expressão da vontade popular. Dentre as exigências constitucionais está o desenvolvimento sustentável.

2. O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL EM FACE DO DIREITO SOCIOAM-BIENTAL

Iniciemos o tema do desenvolvimento sustentável e, consequentemente, acerca da necessidade de proteção do meio ambiente a partir da abordagem que nos concede o texto constitucional:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecolo-gicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.§ 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:I - preservar e restaurar os processos ecológicos es-senciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas; II - preservar a diversidade e a integridade do patri-mônio genético do País e fiscalizar as entidades dedi-cadas à pesquisa e manipulação de material genético;III - definir, em todas as unidades da Federação, es-paços territoriais e seus componentes a serem espe-cialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atribu-tos que justifiquem sua proteção;IV - exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significa-tiva degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade;

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V - controlar a produção, a comercialização e o em-prego de técnicas, métodos e substâncias que com-portem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente; VI - promover a educação ambiental em todos os ní-veis de ensino e a conscientização pública para a pre-servação do meio ambiente;VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou sub-metam os animais a crueldade.

O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado foi assegurado pela primeira vez no texto constitucional brasileiro no texto de 1988 e traz uma particular atenção no que se refere à concepção de geração como afirma MOREIRA DE PAULA (2007, p. 28):

Grupo de organismos que têm os mesmos pais ou ainda como grau ou nível simples numa linha de descendência direta, ocupados por indivíduos dentro de uma espécie, que dividem um ancestral comum e que estão afastados pelo mesmo número de crias do ancestral.

Na análise da necessidade de proteção ao meio ambiente, é patente a preocupação com as chamadas futuras gerações. O contexto não é apenas de manter, mas, de forma mais ampla, preservar.

Assim, vinculado, como já salientado, à necessidade de desenvolvimento nacional, surge a necessidade do desenvolvimento de forma sustentável.

Como abordado por Jean-Jacques Gouguet (2005, p. 165):

Desde a publicação do Relatório Brundtland (1987) o desenvolvimento sustentável tornou-se referência incontornável, o modelo universal a ser implementado para permitir o alcance simultâneo dos objetivos econômicos (o crescimento), sociais (a erradicação da pobreza) e ecológicos (o respeito do meio ambiente). A utilização do qualificativo sustentável tornou-se, assim, um verdadeiro fenômeno de moda, que se propagou ao conjunto dos grandes setores de

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atividades contemporâneas: agricultura sustentável, turismo sustentável, cidade sustentável (...).

Além disso, o objetivo do desenvolvimento nacional deve estar harmo-nicamente vinculado ao princípio do desenvolvimento econômico equilibrado respeitando o princípio da atividade econômica (Art. 174, § 1º da CF) e impon-do, não só ao Poder Público, mas também aos setores privados, a obrigatorieda-de da defesa do meio ambiente (Art. 170, VI da CF) 38.

Por sua vez, a norma que institui a Política Nacional do Meio Ambien-te, Lei nº 6.938/81, em seu artigo 13, coloca o Poder Público como fomentador de atividades para o desenvolvimento sustentável, como desenvolvimento de meios que busquem a diminuição da degradação ambiental através de pesquisas e processos tecnológicos.

A Lei de Licitação nº 8.666/93, ao tratar dos projetos básicos e executi-vos de obras ou serviços, preceitua em seu artigo 12, como requisito o impacto ambiental (inc. VII), o qual deve ser observado pelo administrador público, ressaltando ainda o disposto no art. 30, inc. IV da mesma norma, “a prova de atendimento de requisitos previstos em lei especial”.

Já no âmbito do assunto aqui versado, cumpre assinalar, de início, que a Declaração de Johannesburg e o Plano de Implementação de Johannesburg definiram a adoção do consumo sustentável como princípio basilar do desenvolvimento sustentável39.

Os tempos atuais, ainda, indicam uma mudança de consciência coletiva.De acordo com pesquisa realizada pelo Instituto Akatu e Instituto Ethos

em 2006/2007 - sobre as pretensões dos consumidores frente ao movimento de Responsabilidade Social das Empresas, o brasileiro sabe que tem o poder de influenciar as atitudes empresariais, porém, os números ainda crescem timidamente. Em 2002, 77% dos entrevistados disseram que acreditam interferir na maneira de como uma empresa atua de forma responsável. Em 2004, o percentual subiu para 76% e em 2007 abaixou para 75%. Atualmente, um em cada três brasileiros busca informações sobre o comportamento das empresas e quase na mesma proporção, ouviu ou leu sobre esforços de empresas em melhorar seu desempenho social e ambiental.

A prática do consumo consciente deve ser aplicada diariamente. Ler

38 Nesse sentido, vale mencionar: BARCESSAT, Lena. Papel do Estado Brasileiro na Ordem Econômica e na Defesa do Meio Ambiente: Necessidade de opção por contratações públicas sustentáveis. In: In: SANTOS, Murillo Giordan e BARKI, Teresa Villac Pinheiro. Licitações e Contratações Públicas Sustentáveis. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2011, pp. 67-81.39 http://www.cqgp.sp.gov.br/gt_licitacoes/publicacoes/joanesburgo.pdf. Acesso em 24 de novembro de 2014.

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o rótulo das embalagens antes de comprar, conhecer a empresa que fabrica os produtos consumidos, perceber a real necessidade de usar ou descartar recursos naturais, como a água são algumas ações responsáveis e que são contribuições voluntárias e solidárias para garantir a sustentabilidade da vida no planeta40.

Outrossim, o desenvolvimento sustentável, como não poderia deixar de ser, também é tema relevante na atuação do Judiciário. Nesse sentido, o salientado pelo Supremo Tribunal Federal é relevante:

A ATIVIDADE ECONÔMICA NÃO PODE SER EXERCIDA EM DESARMONIA COM OS PRINCÍPIOS DESTINADOS A TORNAR EFETIVA A PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE. - A incolumidade do meio ambiente não pode ser comprometida por interesses empresariais nem ficar dependente de motivações de índole meramente econômica, ainda mais se se tiver presente que a atividade econômica, considerada a disciplina constitucional que a rege, está subordinada, dentre outros princípios gerais, àquele que privilegia a “defesa do meio ambiente” (CF, art. 170, VI), que traduz conceito amplo e abrangente das noções de meio ambiente natural, de meio ambiente cultural, de meio ambiente artificial (espaço urbano) e de meio ambiente laboral. (...)O PRINCÍPIO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL COMO FATOR DE OBTENÇÃO DO JUSTO EQUILÍBRIO ENTRE AS EXIGÊNCIAS DA ECONOMIA E AS DA ECOLOGIA. - O princípio do desenvolvimento sustentável, além de impregnado de caráter eminentemente constitucional, encontra suporte legitimador em compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro e representa fator de obtenção do justo equilíbrio entre as exigências da economia e as da ecologia, subordinada, no entanto, a invocação desse postulado, quando ocorrente situação de conflito entre valores constitucionais relevantes, a uma condição inafastável, cuja observância não

40 http://www.meiofiltrante.com.br/impressao.asp?actionI=releases&idI=3622. Acesso em 24 de novembro de 2014.

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comprometa nem esvazie o conteúdo essencial de um dos mais significativos direitos fundamentais: o direito à preservação do meio ambiente, que traduz bem de uso comum da generalidade das pessoas, a ser resguardado em favor das presentes e futuras gerações (ADI 3540 MC, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 01/09/2005, DJ 03-02-2006 PP-00014 EMENT VOL-02219-03 PP-00528).

O desenvolvimento sustentável, portanto, é um princípio constitucional e, como tal, deve permear a interpretação de todas as normas previstas em seu texto.

No universo das contratações públicas não há como ser diferente. A responsabilidade social dos órgãos públicos é patente dentro do Estado pautado na participação de todos os seus integrantes no desenvolvimento nacional e regional. Além disso, a Administração Pública deve ser o centro dos exemplos de práticas de gestão, a se multiplicar no âmbito dos demais órgãos e empresas, na expressão popular máxima que “o costume de casa vai à rua”.

Tal afirmação ganhou ainda mais forma com as inovações trazidas pela Medida Provisória nº 495/2010 que, ao alterar a Lei nº 8.666/93 acrescentou dentre as finalidades da licitação a “promoção do desenvolvimento nacional”. Ao ser convertida na Lei n° 12.349/2010, a licitação passou a destinar-se à “promoção do desenvolvimento nacional sustentável”.

O primeiro passo da efetivação da sustentabilidade está em tornar-se regra às compras públicas para, em seguida, poder estabelecer-se políticas públicas de sustentabilidade.

Nesse sentido, analisa SANTANA (2010, pp. 66-67):

(...) o fato é que a Administração Pública obrigatoriamente deve se compromissar com os valores supremos de uma sociedade que pretende promover o bem de todos para que vivam e se desenvolvam em espaço físico preservado hoje e sempre.O desenvolvimento humano buscado, portanto, é que sempre exigiu equilíbrio quase absoluto na relação entre a pessoa e o meio em que vive, de modo a se permitir o bem estar de hoje e o daqueles que virão a ocupar esse mesmo espaço no futuro.

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Sustentabilidade, assim, é idéia sempre incompleta, sistêmica, envolvendo e transcendendo que perpassa por aspectos ambientais, ecológicos, sociais, econômicos, religiosos, tecnológicos, políticos, culturais, dentre outros tantos que são, em realidade, dimensões que integram e forma a própria condição humana.E modo ideal, a par de cada qual individualmente se interar das questões agitadas, os governos e suas respectivas administrações certamente têm muito a fazer pela comunidade a que serve de modo a propiciar a densificação da sustentabilidade seja lá qual for a extensão que se der a ela.Será por aí que as políticas públicas deverão transitar a fim de que – partindo-se da condição do sujeito – se possa a todos dar melhores condições de aqui estar hoje e sempre (itálicos no original).

Diante do explanado acerca das finalidades da licitação e da necessidade de um desenvolvimento sustentável, não há outra conclusão, o caminho da Administração Pública deve ser o da licitação e das compras sustentáveis.

3. A LICITAÇÃO SUSTENTÁVEL. CONCEITO

É premente a necessidade de se coadunar as regras da licitação ou das compras públicas com as regras para o desenvolvimento sustentável.

E de pronto, é preciso deixar claro que os princípios constitucionais não se anulam e convivem harmonicamente, de forma que ainda que devam ser ponderados não se excluem na interpretação da norma.

No contexto histórico da exigência, é de rigor esclarecer que a Agenda 21, em seu capítulo 4 definiu que os países devem estabelecer programas voltados ao exame dos padrões insustentáveis de produção e consumo e o desenvolvimento de políticas e estratégias nacionais de estímulo a mudanças nos padrões insustentáveis de consumo.

A Declaração do Rio de 1992, em seu Princípio 8, também afirmou os Estados devem reduzir e eliminar padrões insustentáveis de produção e consumo e promover políticas demográficas adequadas.

Para coadunar estas necessidades e tendo em conta o papel do Estado, especialmente como educador e formador, surge o conceito de licitação sustentável.

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O conceito de licitação sustentável ou compras verdes significa, portanto, maximizar o valor adicionado (utilidade, prazer, satisfação do usuário, satisfação das necessidades, contribuição para operações eficientes) e ao mesmo tempo minimizar o impacto ambiental e social adversos41.

A licitação pública sustentável pode ser entendida como o conjunto de providências e exigências, com garantia constitucional, para integrarem e serem cumpridas pelos fornecedores, e que se alinhem à diretriz política de responsabilidade social e ambiental em todos os estágios do processo de compra. Seu objetivo é reduzir os impactos negativos à saúde humana, ao ambiente e aos direitos humanos42. Ou ainda, consoante MENEGUZZI (2011, p. 21):

Seria contratar (comprar, locar, tomar serviços...), adequando a contratação ao que se chama consumo sustentável, meta da Agenda ambiental na Administração Pública (A3P), levando em conta que o governo é grande comprador e grande consumidor de recursos naturais, os quais não são perpétuos: acabam. Como o governo compra muito poderia estimular uma produção mais sustentável, em maior escala, além de dar o exemplo.Em suma licitações sustentáveis seriam aquelas que levariam em conta a sustentabilidade ambiental dos produtos e processos a ela relativos.

Em resumo, interessantes as conclusões constantes da Revista Fator Brasil43 acerca dos benefícios e eventuais desafios a serem enfrentados pela adoção da licitação sustentável, que podem ser resumidos de conformidade com os itens abaixo transcritos:

A licitação sustentável visa os seguintes benefícios: 1- Preços mais baixos e maior oferta; 2- Aumento de oportunidade de vendas dos produtos;

41 Constante em: http://homologa.ambiente.sp.gov.br/licitacao_sustentavel/default.asp. Acesso em: 24 de novembro de 2014. 42 MALHEIROS, Hugo Antonio do Amaral; ASHLEY, Patrícia Almeida; AMARAL, Sergio Pinto. Licitações públicas sustentáveis: como avaliar o comprometimento ético do órgão licitante. In: CONGRESSO NACIONAL DE EXCELENCIA EM GESTÃO, 2009, Niterói, RJ. Anais eletrônicos. Disponível em: <http://www.vcneg.org/documentos/anais_cneg5/ T8_0164_0547.pdf>. Acesso em: 31 agosto 2009.43 http://www.revistafatorbrasil.com.br/ver_noticia.php?not=96801. Acesso em: 21 de novembro de 2014.

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3- Redução de riscos; 4- Competição entre as indústrias pelo desempenho ambiental de seus produtos, ganhando, portanto a coletividade e o próprio empresário, pois terá um incentivo concreto. Contudo a licitação sustentável também possui al-guns desafios como: 1- As pessoas possuem uma falta de conhecimento de questões centrais do consumo e produção susten-tável; 2- Inexistência de políticas públicas e programas em licitação sustentável; 3- Necessidade ampla de um estudo jurídico sobre a imposição de critérios de sustentabilidade; 4- Falta de integração entre os setores do governo; 5- Pouquíssimas empresas engajadas na produção sustentável, o que ocasiona insuficiência de produtos e serviços e elevação de preços; 6- Falta de incentivo aos produtores; 7- Processo licitatório burocrático.

A licitação sustentável, portanto, é regra, ainda que a lei não preveja expressamente a sustentabilidade.

4. INICIATIVAS JÁ CONCRETIZADAS NO ÂMBITO INTERNACIONAL E DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NACIONAL. BREVES EXEMPLOS

No âmbito internacional, vale ressaltar que já foram adotadas diversas iniciativas de licitações e compras sustentáveis, que são divulgadas nos meios de comunicação sem que qualquer crítica seja feita à sua adoção:

No Reino Unido, os governos já realizam licitação sustentável há mais de uma década, havendo intenso programa de treinamento dos funcionários que efetuam as compras, incluindo mapeamento de impactos e riscos para o mercado e análise dos riscos associados ao ciclo de vida dos produtos. Há previsão de medidas de compensação salarial para bom desempenho dos funcionários em relação às metas estabelecidas nas compras sustentáveis.

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A agência estatal de energia de Nova York estabelece requisitos legais de construção e arquitetura sustentáveis e o município dá incentivos fiscais para o uso de equipamentos eficientes sob o ponto de vista ambiental e energético.O Japão possui avançado modelo de compras públicas sustentáveis, tendo desenvolvido uma rede de compras verdes (Green Purchasing Network - GPN). Conjuntamente com as indústrias, os governos locais criaram uma organização privada que promove iniciativas de consumo sustentável, utilizada por mais de 2.800 entidades públicas e privadas para promoção de suas compras sustentáveis.A Suécia iniciou seu programa de licitação sustentável criando uma entidade composta por instituições públicas e empresas com a função de definir prioridades de ação para compras sustentáveis, sendo as decisões tomadas com base em estudos científicos. Os resultados desses estudos e as definições da comissão são publicados na internet para uso público.O Ministério do Meio Ambiente da Noruega editou decreto determinando medidas de licitação sustentável. Nas medidas, o governo considera os impactos de exploração de recursos naturais e de despejos finais sobre o meio ambiente. Os noruegueses dispõem de diretrizes para as compras públicas ecológicas com enfoque inicial nos setores automotivo, de transportes, de construção, têxtil, de papéis e impressos e de equipamentos de escritório.Os governos dos Países Baixos, além de possuírem programa de compras públicas sustentáveis, estabeleceram metas para a sustentabilidade em 50% de suas licitações, até 2010.Já no âmbito da América Latina, vale frisar que o México possui lei de licitação que trata de princípios de licitação sustentável, exigindo eficiência energética e de economia no uso de água nos contratos e aquisições do governo. O país solicitou ajuda ao Programa das Nações Unidas para o Meio

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Ambiente (Pnuma), que sugeriu a realização de um estudo do ciclo de vida dos produtos. Papel e papelão serão os primeiros itens estudados.Na Itália, a província de Bologna estabeleceu critérios para compras públicas sustentáveis. Exigiu que os produtos tenham algum tipo de rótulo ambiental ou certificação de produção controlada. Levou em consideração também tipos de embalagem e medidas de eficiência energética e de transporte e determinou percentual para substâncias perigosas44.

No âmbito nacional, vale citar algumas iniciativas inovadoras.A mais relevante na esfera da administração pública federal foi a

Instrução Normativa nº 01/2010 do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, que nos artigos 2° a 6° prevê critérios de sustentabilidade ambiental na contratação de serviços ou obras pela administração direta, indireta e fundacional.

Mais recentemente, a criação da CISAP - Comissão Interministerial de Sustentabilidade na Administração Pública que visa

Preencher a lacuna entre os diversos programas e iniciativas desenvolvidas no âmbito dos órgãos e entidades da Administração Pública, agregando-os de forma a criar uma instância de intercâmbio de informações e experiências para a promoção do desenvolvimento nacional sustentável45.

No Estado de São Paulo foi estabelecido como critério para a aquisição de veículos que eles sejam movidos à álcool (Decreto Nº 42.836/98), proibiu-se a aquisição de produtos ou equipamentos que contenham substâncias prejudiciais à camada de ozônio (Decreto Nº 41.629/97), além de restringir a aquisição de lâmpadas àquelas que possuam alto rendimento energético e contenham baixo teor de mercúrio. MENEGUZZI (2011, p. 29) esclarece ainda que:

Nos certames paulistas, havendo necessidade de inserção de critérios socioambientais num determinado produto, eles fariam parte da especificação técnica.

44 Disponível em: http://www.licitacoessustentaveis.com/2009/08/licitacoes-sustentaveis-no-direito.html. Acesso em 23 de novembro de 2014.45 http://cpsustentaveis.planejamento.gov.br/?cat=3 Acesso em 24 de novembro de 2014.

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Isto ocorreria na fase interna de preparação da licitação. Somente após esta caracterização seria elaborado o preço de referência do produto.No caso dos pregões, modalidade de licitação para bens e serviços comuns, o legislador imporia uma licitação do tipo menor preço. Desta forma, conforme determina a lei e o edital, o julgamento elegeria a melhor oferta relativamente ao item licitado, o qual, por sua vez, estaria vinculado à especificação técnica previamente definida no edital.

No município de São Paulo, o Decreto nº 48.114/2007 criou um grupo de trabalho responsável por instituir uma comissão para Compras públicas sustentáveis. Além disso, seus projetos de iluminação pública têm como meta a substituição de todas as lâmpadas hoje existentes por lâmpadas de vapor de sódio, ecologicamente mais adequadas. Além disso, o município possui iniciativas e programas voltados para a construção civil, com requisitos de eco-eficiência nas compras municipais e de controle no uso de madeira em obras públicas, com o propósito de evitar a exploração de madeira ilegal da Amazônia.

CONCLUSÃO

Sem desprezo ao princípio da legalidade estrita, é indispensável a utilização pelo Poder Público da Licitação Sustentável, uma vez que os mecanismos legais e constitucionais já a autorizam, bem como assim determinam quando se interpreta o texto constitucional de forma sistêmica.

De outra forma, ainda que a lei não preveja expressamente os requisitos de sustentabilidade ela deve ser regra nos editais, em nome, inclusive, da eficiência que não pode ser meramente econômica.

Por outro lado, alterações legislativas recentes já dão conta da preocupação com a discussão aqui travada. Exemplo disso é a Medida Provisória nº 495/2010, convertida na Lei nº 12.329/2010, que acrescentou dentre as finalidades da licitação “a promoção do desenvolvimento nacional sustentável”.

A Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei nº 12.305, de 02.08.2010) também é primordial ao prever em seu artigo 7º, XI, a prioridade nas aquisições e contratações governamentais de produtos recicláveis e reciclados e de obras e serviços que considerem critérios compatíveis com os padrões de consumo social e ambientalmente sustentáveis.

A relevância do tema é incontestável, na medida em que as compras públicas representam 15% (quinze por cento) do PIB brasileiro, o que

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corresponderia a aproximados 600 bilhões de reais. Na União Europeia, elas representam 16% do Produto Interno Bruto europeu, o que equivale a gastos de 1,5 trilhões de euros anuais. (MOREIRA In: BENJAMIN, Antonio Herman e FIGUEIREDO, Guilherme J. Purvin de 2011, pp. 299-328).

Importante frisar que há propostas e projetos de alteração legislativa para suprir a lacuna que muitos administradores consideram existentes, bem como para tornar mais efetiva as compras sustentáveis, estabelecendo critérios que favoreçam empresas sustentáveis.

Vale citar: quando houver propostas em idênticas condições, como critério de desempate será assegurada a preferência por bens e serviços produzidos ou prestados por empresas que divulguem, periodicamente, um demonstrativo de suas atividades de natureza social e ambiental, ou que possuam certificado ambiental ou, ainda, que comprovem a procedência dos materiais e matérias-primas utilizados nos produtos como decorrentes do manejo sustentável e responsável sob o ponto de vista ambiental.

Há, ainda, a exigência de um certificado ambiental, para efeito de habilitação das empresas interessadas em participar das licitações públicas, a comprovação da qualificação ambiental, através da apresentação de certidão de regularidade ambiental e, ainda, exigir dos licitantes a apresentação da metodologia de execução, contemplando o planejamento ambiental.

Vale esclarecer, para finalizar, que não se trata de conceder privilégios desmedidos, mas de possibilitar o desenvolvimento sustentável e a concretização dos princípios constitucionais.

Vagaroso, mas promissor começo.

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REFERÊNCIAS

FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Princípios do processo ambiental. São Paulo: Saraiva, 2009.

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EIXO TEMÁTICO 2JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL E DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS

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A GARANTIA CONSTITUCIONAL DO DIREITO DE RESPOSTA E A CONSTRUÇÃO DE UM NOVO PARADIGMA NA RELAÇÃO MÍDIA/CIDADÃO

Nelson Laginestra Junior46

RESUMO

O objetivo deste estudo é expor e analisar os principais fundamentos da decisão do Supremo Tribunal Federal acerca da não recepção, pela Carta Política do País, da chamada “Lei de Imprensa”. Investigar-se-á, particularmente, a interpretação da Corte quanto à natureza jurídica do direito de resposta, contido no artigo 5º, Inciso V da Constituição de 1988, com foco nas consequências na vida do cidadão causadas pelo afastamento da referida lei. Serão carreados ao estudo os argumentos centrais dos votos antagônicos que capitanearam, cada qual em uma linha de pensamento, o debate instalado na Plenária do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental número 130. Espera-se, ao término da análise, responder às seguintes indagações: a) a ausência de instrumental infraconstitucional regulatório, decorrente do expurgo da Lei 5.250/1967, teria implicado dificuldades no efetivo exercício do direito de resposta?; b) na vigência da “Lei de Imprensa o pleito relativo ao direito de resposta encontraria guarida mais eficiente do Poder Judiciário na realização fática desta garantia constitucional? Uma nova lei regulamentando o exercício do direito de resposta seria mecanismo jurídico exigível ou seria útil ao equilíbrio da relação cidadania/corporações midiáticas? Almeja-se, senão o vislumbre de respostas precisas, conclusões aptas a contribuir na construção de um diagnóstico direcionado ao atingimento de desejável grau de eficiência na consecução do exercício do direito de resposta.

Palavras-Chave: Direito de Resposta; Aplicabilidade Imediata; Lei de Imprensa; Marco Regulatório.

SUMÁRIO: Introdução. 1. Direito de resposta é norma constitucional autoaplicável e de eficácia plena. 2. Direito de resposta: com ou sem lei? Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO

A chamada Lei de Imprensa (Lei 5.250/1967) foi afastadado ordenamento jurídico brasileiro após o julgamento pelo Supremo Tribunal

46 Mestrando do Programa de Pós-Graduacão em Direito da Universidade Nove de Julho.

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Federal da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 130, em 30 de setembro de 2009.

À conclusão da Corte de que a Constituição de 1988 não recepcionara a referida legislação ordinária, gestada no período de Exceção, seguira o dissenso, entre os ministros do STF, sobre a ocorrência ou não de um vácuo legislativo, notadamente no tocante ao direito de resposta, contido no expurgado diploma legal.

Ao término dos debates versando sobre diferentes fundamentações, prevaleceu na ementa da decisão a aplicabilidade imediata do conteúdo normativo do artigo 5º. , inciso V: o exercício do direito de resposta estava garantido, não carecendo de regra alguma a lhe emprestar eficácia. Atribuiu-se, assim, aos juízes o dever de julgar as demandas, buscando na interpretação sistemática da Constituição solução a emprestar efetividade ao exercício do direito de resposta.

A questão ganhou relevância diante da declaração, no mesmo julgamento, de que a liberdade de imprensa não poderia sofrer nenhum cerceamento de antemão, ou seja, expurgava-se a censura prévia, declarando a Corte suprema que a mitigação à liberdade de imprensa só ocorreria a posteriori nos casos de ofensa à imagem, à honra, à intimidade e à vida privada.

O reconhecimento de uma liberdade de imprensa plena, sem limitação a priori, atribuiu ao direito de resposta função capital como elemento de defesa – talvez o único na prática - contra abusos perpetrados pela mídia. Tal garantia, no entanto, merece uma análise cuidadosa no contexto do mercado de comunicação vigente em nosso país.

Ao destacar o conteúdo totalitário da antiga lei, o Supremo Tribunal Federal consagrou a liberdade de imprensa como preceito fundamental e elemento fundante da democracia e, por consequência, do estado democrático de direito. Mas é preciso indagar: o exercício do direito de resposta não fica mais difícil sem as balizas de uma legislação capaz de facilitar a defesa do indivíduo?

Buscar-se-á, ainda, soluções para os seguintes questionamentos: na vigência da “Lei de Imprensa, o pleito relativo ao direito de resposta encontraria guarida mais eficiente do Poder Judiciário na realização fática desta garantia constitucional? Uma nova lei regulamentando o exercício desse direito seria mecanismo jurídico exigível ou qualificar-se-ia como útil ao equilíbrio da relação cidadania/corporações midiáticas? Espera-se, à conclusão deste estudo, oferecer apontamentos aptos a contribuir na construção de novo paradigma de eficiência no execício do direito de resposta.

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1. DIREITO DE RESPOSTA É NORMA CONSTITUCIONAL AUTOAPLICÁVEL E DE EFICÁCIA PLENA

A decisão do Supremo Tribunal Federal apontando para o não acolhimento da chamada “Lei de Imprensa” pela Constituição de 1988 foi marcada pelo dissenso, entre os ministros da Corte, no tópico relacionado à necessidade ou não de se manter a regulamentação infraconstitucional acercado direito de resposta previsto no inciso V do artigo 5º da Carta Política brasileira.

A legislação afastada (Lei 5.250/1967) orientava detalhadamente todo o procedimento do pedido de direito de resposta, desde a fase extrajudicial até - e durante - o desenrolar do litígio. No julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 130 prevaleceram os entendimentos reveladores de que a norma constitucional é possuidora de eficácia plena e aplicabilidade imediata.

Na realidade, tal posicionamento perpassou como ideia unânime nos votos dos ministros do STF. A divergência instalou-se em outro plano; tornaria mais eficiente ou seria necessária ao exercício do direito de resposta legislação ordinária a determinar os parâmetros formais da efetiva consecução de tal direito? Em caso afirmativo, a “velha” “Lei de Imprensa” haveria de receber dos intérpretes da Constituição tratamento baseado na técnica da conformidade da norma anterior em relação ao novo ordenamento constitucional?

Nesse exato ponto, os caminhos se bifurcaram. A maioria dos ministros decidiu que a cada um dos juízes do País estaria reservada a tarefa de aplicar nos termos principiológicos da Constituição Federal os mecanismos capazes de tornar efetiva a realização do direito de resposta. Notadamente os ministros Marco Aurélio e Gilmar Mendes - o último exercendo à época a presidência da Corte – preferiam manter a parte da Lei 5.250/1967 que dispunha sobre o direito de resposta. Ou seja, eram favoráveis a uma interpretação conforme a Carta de 1988. O ministro Marco Aurélio rejeitava, inclusive, o acolhimento da ADPF, sob o argumento de que os tribunais se ajustariam, como vinha ocorrendo há vinte anos, no tocante àqueles dispositivos da lei incompatíveis com a “nova” Constituição brasileira.

Posição diferenciada adotou o ministro Celso de Mello, reconhecendo a plenitude do aparato constitucional no tocante à plena eficácia e aplicabilidade imediata do direito de resposta, sem que para tal houvesse a obrigatoriedade da existência de parâmetros legais infraconstitucionais, mas, prosseguindo em seu raciocínio – e eis aqui a nota distintiva do intérprete -, o ministro destacou em seu voto o entendimento segundo o qual uma legislação pertinente poderia ser útil a emprestar eficiência ao exercício do direito de resposta garantido pela Constituição Federal:

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O art. 5º, inciso V, da Constituição brasileira, ao prever o direito de resposta, qualifica-se como regra impregnada de suficiente densidade normativa, revestida, por isso mesmo, de aplicabilidade imediata, a tornar desnecessária, para efeito de sua pronta incidência, a “interpositio legislatoris”, o que dispensa, por isso mesmo, ainda que não se lhe vede, a intervenção concretizadora do legislador comum.Isso significa que a ausência de regulação legislativa, motivada por transitória situação de vácuo normativo, não se revelará obstáculo ao exercício da prerrogativa fundada em referido preceito constitucional, que possui densidade normativa suficiente para atribuir, a quem se sentir prejudicado por publicação inverídica ou incorreta, direito, pretensão e acão, cuja titularidade bastará para viabilizar, em cada situação ocorrente, a prática concreta da resposta e/ou da retificação. [...]Salientei, no voto que proferi nesta sessão plenaria, que a edição de diploma legislativo, promulgado com o fim específico de disciplinar o exercício do direito de resposta, embora não se mostre essencial, revela-se, no entanto, útil. (Grifos do autor) (ADPF nº 130, voto do ministro Celso de Melo).

A conclusão extraída do voto do ministro Celso de Melo, indicando a utilidade de legislação disciplinadora acerca do direito de resposta, há de ser entendida como elemento de equilíbrio em caso de conflito entre um veículo de comunicação e a(s) personagem(ns) ligadas ao fato divulgado. A regulamentação passa a ser útil no momento do nascimento do direito subjetivo, causa e origem do pleito concernente ao exercício do direito de resposta; o comando constitucional indica caminho livre para os primeiros passos na direção da busca efetiva por determinada garantia chancelada pelo Pacto Político.

A importância de claras balizas legais aderentes às especificidades do tema diz com a possibilidade de soluções rápidas, não maculadas por expressivo espaço temporal compreendido entre a divulgação do fato e eventual correção a ser-lhe atribuída. Corrobora, nesse sentido, o raciocínio do ministro Celso de Mello o instituto contido no Pacto de São José da Costa Rica, e pelo magistrado citado no voto em comento:

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Artigo 14 - Direito de retificaçao ou resposta1. Toda pessoa atingida por informações inexatas ou ofensivas emitidas em seu prejuízo por meios de difusão legalmente regulamentados e que se dirijam ao público em geral tem direito a fazer, pelo mesmo órgão de difusão, sua retificação ou resposta, nas condições que estabeleça a lei. (Grifei). 2. Em nenhum caso a retificação ou a resposta eximirão das outras responsabilidades legais em que se houver incorrido.3. Para a efetiva proteção da honra e da reputação,toda publicação ou empresa jornalística, cinematográfica, de rádio ou televisão, deve ter uma pessoa responsável que não seja protegida por imunidades nem goze de foro especial. (Grifos do autor, à exceção do item 2).

A expressão grifada no item número 2, na qual infirma-se “nas condições que estabeleça a lei”, conduz a diagnóstico revelador ou minimamente apto a oferecer vislumbre acerca de potencial eficiência de parâmetros reguladores do exercício do direito de resposta. Em verdade, o Pacto de São José da Costa Rica, aplicável ao sistema interamericano, não impõe a existência de uma lei disciplinadora, mas, no mesmo passo, não a veda. Ao contrário, indica sutilmente a utilidade da regra.

Em tema tão delicado, afeito à exposição pública de condutas sociais de indivíduos ou grupo de indivíduos, a problemática central afasta-se da discussão sobre ser ou não o direito de resposta norma pronta e aplicável instantaneamente (BASTOS, 1999) ou norma de plena eficácia imediatamente aplicável (DA SILVA, 2011). O Supremo Tribunal Federal já superou essa questão, nos termos do voto do ministro Celso de Mello, durante o julgamento da ADPF nº 130.

A dissidência entre os magistrados da Corte instalou-se no eixo da discussão relativa à manutenção de instrumental jurídico infraconstitucional balizador do pleito do direito de resposta, apto – à visão de alguns – a estabelecer elementos claros na condução do litígio, sob o foco do equilíbrio na relação de poder entre a mídia organizada e o sujeito-alvo da notícia.

As contendas relativas ao surgimento de eventual vácuo legislativo decorrente do expurgo total da chamada “Lei de Imprensa” podem ser observadas na parte final da Plenária realizada no dia 30 de abril de 2009:

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O SR. MINISTRO GILMAR MENDES (PRESIDENTE) - Vou ler o artigo 5º, inciso V:“V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem”; O texto diz apenas que é assegurado o direito de resposta proporcional ao agravo, tudo o mais dependerá, portanto, agora não mais de construção legislativa ou de disciplina legislativa, mas dependerá de construção jurisprudencial. Veja, portanto, quantas questões nós temos a partir do artigo 29. Quem pode fazer o pedido de resposta? Pela própria pessoa, pelo seu representante, pelo cônjuge, ascendente, descendente? Tudo isso está disciplinado, e nós estamos jogando fora para buscarmos uma construção jurisprudencial. A resposta ou retificação deve ser formulada por escrito, dentro de que prazo? Qual será o prazo do artigo 5o, inciso V, tirada a lei?

O SR. MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI - O juiz determinará.O SR. MINISTRO GILMAR MENDES (PRESIDENTE) - Certamente não será mais o de sessenta dias, mas o juiz decretará qual será. Vinte anos de prescrição do Direito Civil?O SR. MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI - Não, ou 24 horas, 48 horas, quem sabe?O SR. MINISTRO GILMAR MENDES (PRESIDENTE) - Vejam os Senhores as dificuldades.O SENHOR MINISTRO CARLOS BRITTO (RELATOR) - O direito de resposta é uma construção jurisprudencial.O SR. MINISTRO GILMAR MENDES (PRESIDENTE) - Eu não queria colocá-los, na verdade, todas as dificuldades.O SENHOR MINISTRO CARLOS BRITTO (RELATOR) - Tanto nos Estados Unidos como na Alemanha o direito de resposta mais e mais ganha os seus contornos por construção jurisprudencial.O SR. MINISTRO GILMAR MENDES (PRESIDENTE) - Veja, distingue-se, ainda, o direito

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de resposta com o exercício da ação penal ou civil. Agora, qual será a regra? O direito de resposta consiste na publicação da resposta ou retificação no mesmo jornal, nos caracteres. O que será, qual será a disciplina do juiz? E nós temos quinze mil juízes, talvez, oito ou dez mil tratando desses temas.O SR. MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI - E quatro instâncias recursais que, certamente, harmonizarão o tema, como fizeram com relação à ausência de tarifação no que tange à indenização por dano moral.O SR. MINISTRO GILMAR MENDES (PRESIDENTE) - Claro.O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - Como disse em voto, ter-se-á o critério de plantão, segundo a concepção do juiz que enfrente a matéria.O SR. MINISTRO GILMAR MENDES (PRESIDENTE) -“§ 1º A resposta ou pedido de retificação deve:a) no caso de jornal o periódico,” - uma das regras - “ter dimensão igual à do escrito incriminado, garantido o mínimo de 100 (cem) linhas; “Qual será a regra que o juiz seguirá a partir do desaparecimento dessa norma?“c) no caso de agência de notícias, ter dimensão igual à da notícia incriminada.” Os problemas são enormes e variados a partir desta perspectiva. “Se o pedido de resposta ou retificação não for atendido (...), o ofendido poderá reclamar judicialmente a sua publicação ou transmissão”. Uma série de medidas a propósito desse assunto. Vejo com grande dificuldade a supressão dessas regras ou o reconhecimento de que há alguma incompatibilidade generalizada [...] (excerto do julgamento da ADPF nº 130, STF).

O trecho em destaque revela acirrado debate entre os ministros do Supremo Tribunal Federal no deslinde da questão envolvendo o exercício do direito de resposta. Trata-se apenas de um tópico – particularmente interessante ao olhar deste estudo - incluído nas discussões a respeito do acolhimento ou não da “Lei de Imprensa” pela Constituição do País.

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Terminado o julgamento, o STF declarou a incompatibilidade da “velha” “Lei de Imprensa” com a “nova” Constituição de 1988. Votaram pelo não acolhimento da Lei 5.250/1967 os ministros Carlos Ayres Brito (relator), Menezes Direito, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Eros Grau, Cezar Pelluso e Celso de Mello. Pela Manutenção parcial da legislação ordinária, incluindo a parte referente ao rito do direito de resposta votaram os ministros Joaquim Barbosa, Ellen Gracie e Gilmar Mendes (presidente da Corte). Ficou vencido o ministro Marco Aurélio, que sequer acolheu a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 130.

2. DIREITO DE RESPOSTA: COM OU SEM LEI?

Necessário nessa quadra resgatar o objetivo desta análise: a ausência de regulamentação quanto ao direito de resposta prejudica ou impõe entraves ao exercício de tal direito? Resgatemos um caso emblemático relativamente recente no auxílio à construção da resposta ao questionamento formulado. A situação trata da disputa instalada entre um conhecido jornalista e um importante veículo da mídia impressa, descrita, em resumo, a seguir:

A Justiça paulista de primeira instância determinou à revista Veja, publicada pela Editora Abril, a concessão de direito de resposta ao jornalista Luis Nassif, cuja dignidade pessoal, entendeu o Juízo, sofrera ofensas perpetradas por um colunista de Veja. O fato ocorrera nos idos de 2008. Não cabe aqui expor em detalhes ou reproduzir as palavras proferidas pelo ofensor. Mas para se formar uma ideia acerca dos termos utilizados pelo colunista de Veja, se carreia ao conhecimento do leitor o conteúdo do título da citada coluna objeto do litígio: “Nassif, o banana”.

Determinou-se a abertura de espaço na revista para publicação da resposta do ofendido na edição de Veja imediatamente seguinte ao trânsito em julgado da sentença. Destaque-se: o fato ocorrera no ano de 2008; a decisão judicial de primeira instância, condenando a revista a conceder o direito de resposta saiu no dia 12 de maio de 2012 – mais de quatro anos após a ocorrência do fato.

Observe-se, no caso trazido à análise, o marco inicial da contenda; o ano de 2008, portanto ainda na vigência da antiga “Lei de Imprensa”, afastada no ano seguinte do ordenamento jurídico brasileiro pelo Supremo Tribunal Federal. A advogada do jornalista ofendido atribuiu a demora relativa à sentença de primeira instância“ em grande medida, à extinção da Lei de Imprensa”:

Após a publicação da revista Veja, o jornalista Luis Nassif entrou na Justiça para requerer reparação pelos

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danos morais causados exigindo o direito de resposta. Conforme mandava a Lei de Imprensa, a ação foi ajuizada no âmbito do Direito Penal. No entanto, a juíza criminal não aceitou a inicial dos advogados de Nassif, alegando que faltavam requisites formais adequados.Quando a ação voltou, por determinação do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo), às suas mãos, a Lei de Imprensa não estva mais em vigor. Nesse momento, a juíza declarou-se incompetente para julgar a questão, ordenando que a demanda fosse remetida à Justiça Civil.Um ano depois, ao chegar a 4ª Vara Cível de Pinheiros, a ação teve que ser readaptada para seguir, desta vez, os procedimentos do Código de Processo Civil. Superada essa fase, a petição foi aceita pela Justiça e, só então, a Editora Abril foi notificada e chamada para defender-se. (www.leonardi.adv.br).

Excluído o período no qual se discutiram aspectos formais da petição inicial, referente ao pleito do direito de resposta, e a posterior declaração de incompetência do Juízo criminal, transcorreu período de aproximadamente um ano até a revista Veja ser chamada a defender-se. Quer dizer: desconsiderado o atraso decorrente de situação modificadora do rito afeito ao direito de resposta – fruto do julgamento no STF – a sentença de primeira instância surgiu três anos depois dos fatos originários do litígio.

Há de se perguntar: afora o próprio ofendido, quem se recorda das ofensas divulgadas pela revista? Será que os assíduos leitores de Veja lembram-se da história intitulada Nassif, o banana passado tanto tempo? Detalhe: a resposta ainda não foi publicada porque os responsáveis pela revista exerceram o direito de apelar ao Tribunal de Justiça de São Paulo. Vislumbram-se, ainda, incontáveis “degraus” na longa escadaria das instâncias jurisdicionais pátrias.

A adoção do referido caso como paradigma acerca do rito concernente ao direito de resposta se justifica pelo seu desenrolar: de início, na vigência da “Lei de Imprensa”; e, por fim, na solução de primeiro grau, já sob os efeitos do julgamento no Supremo Tribunal Federal, cuja consequência foi o afastamento do aparato regulatório construído pelo regime de Exceção. Tomando-se como lição o exemplo acima, reforça-se a relevância a respeito das personagens envolvidas. O ofendido é jornalista experiente e possuidor de todo o aparato técnico na lida com os recursos de comunicação. Imagine-se na hipótese de um cidadão desacostumado aos meandros das redações e dos veículos da mídia.

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Quanto à utilidade de nova legislação, apontada no voto do ministro Celso de Mello, vale lembrar que o Senado Federal aprovou em 18 de setembro de 2013 projeto de lei a estabelecer parâmetros específicos para o pleito do direito de resposta. O projeto encontra-se atualmente na Câmara dos Deputados, aguardando espaço na pauta de votações. Sobre a proposta legislativa, assim a descreve matéria publicada no sítio eletrônico do jornal Folha de S. Paulo:

Pela proposta, as empresas jornalísticas devem publicar a resposta do ofendido de forma “gratuita e proporcional” à ofensa, se o conteúdo da reportagem incluir atentado contra “honra, intimidade, reputação, conceito, nome, marca ou imagem” do ofendido.O projeto segue para votação na Câmara. A lei vale para matéria, reportagem, nota ou notícia divulgada pelo veículo de comunicação independente da plataforma que atue – seja jornal impresso, internet, rádio ou televisão.A exceção ao direito de resposta vale para comentários de usuários na internet na página dos veículos. Mas atinge artigos de opinião publicados pelo veículo, que não poderá ser responsabilizado criminalmente pela ofensa, mas será obrigado a publicar a retratação. Se houver retificação espontânea que for aceita pelo ofendido, o direito de resposta não precisará ser concedido. O projeto estabelece que a palavra final é do ofendido – a quem cabe ingressar com ação judicial se não se sentir contemplado com a comunicação do veículo. Pelo texto, o ofendido tem o prazo de 60 dias para apresentar o pedido de direito de resposta, contados a partir da data de publicação da última reportagem considerada ofensiva. O veículo, por sua vez, tem sete dias para responder. Ao não se sentir contemplado, o cidadão pode entrar com a ação na Justiça para publicar ou veicular a resposta. A partir do início da ação, o juiz tem o prazo de 30 dias para proferir sua sentença.O projeto permite que as empresas jornalísticas recorram da decisão do juiz que conceder o direito de resposta ao ofendido para suspender seus efeitos,

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algo que não era previsto no texto original.Pelo projeto aprovado, o ofendido pode reivindicar diversos pedidos de direito de resposta se o conteúdo original for replicado por outros veículos.Relator do projeto, o senador Pedro Taques (PDT-MT) disse que as mudanças não instituem a censura na imprensa. “Não há democracia sem imprensa livre. A censura combina com autoritarismo, ditadura. Nós vivemos numa democracia”, afirmou.O autor do projeto, Roberto Requião (PMDB-PR), cujos desentendimentos com jornalistas são notórios disse que o objetivo é o evitar calúnias. “Depois que o Supremo acabou com a Lei de Imprensa, do tempo da ditadura, a cidadania ficou desguarnecida diante dos ataques da imprensa. Calúnia, injúria e difamação (vêm) se sucedendo.”O presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), disse que o projeto é uma “regulamentação necessária tardia” da Constituição. “A liberdade de imprensa é pedra angular da democracia. Contra excessos da democracia, mais democracia”, afirmou. (Grifei) (www.1.folha.uol.com.br/poder/ 2013/09/1344066 - Senado aprova projeto que regulamenta o direito de resposta na imprensa brasileira).

Duas observações tiradas da análise dos dispositivos do projeto de lei: a primeira, diz com os prazos – sessenta dias para o ofendido, sete dias para resposta da empresa jornalística e trinta dias para a decisão judicial. Acredita-se serem esses prazos razoáveis, mas serão realísticos? A experiência advinda da vigência da antiga “Lei de Imprensa” aponta justamente para oposta conclusão; como se viu pelo exemplo anteriormente citado, o lapso temporal para a solução do litígio torna-se, na prática, muito mais elástico que o previsto.

O segundo apontamento: pelo projeto, as empresas jornalísticas podem recorrer das decisões judiciais sob efeito suspensivo das sentenças, o que, empiricamente, impõe um alargamento ou um distanciamento na realização do exercício do direito de resposta. Dirão alguns: é justo, haja vista a possibilidade de a ofensa alegada simplesmente não ter realmente ocorrido. Certo, mas o argumento relega a segundo plano a relação de poder, pelo menos se tratando de grandes empresas ou conglomerados de mídia e o cidadão “comum”. Também é

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válida a assertiva indicando situações nas quais veículos pequenos como jornais do interior estarão mais vulneráveis às pressões do poder local.

Mas se a lei, de per se, não está apta a atribuir eficiência ao exercício do direito de resposta, há que direcionar o olhar a outros campos na tentativa de se estabelecer critérios mais claros, capazes de implementar mecanismos de concretização senão imediata, capazes de cumprir com desenvoltura mais ágil a reclamada instantaneidade das respostas decorrentes de erros ou ofensas veiculadas pelos meios de comunicação.

Os próprios ministros do Supremo Tribunal Federal debateram, durante o julgamento da ADPF nº 130, a possibilidade da autorregulação do setor midiático como caminho indicativo de soluções extrajudiciais e, portanto, mais rápidas e baratas. É correto dizer que ao Brasil falta essa experiência. O País já viveu sob os auspícios de uma “Lei de Imprensa” de genética autoritária e traumatizante, o que talvez ajude a explicar a carência de parâmetros reguladores atuais.

Vejam-se os exemplos de Inglaterra e Alemanha, cujas políticas de regulação de mídia, apesar das notas distintivas, estão fincadas em sistemas de regulação colaborativa. No caso da Inglaterra, acontecimentos recentes, como a interceptação de conversas telefônicas seguidas de sua posterior divulgação, apertaram o torniquete de um sistema liberal de autorregulação implementada desde o início da década de 1950, mas mantiveram o status de adesão voluntária ao sistema por parte dos órgãos de comunicação:

Londres – Os grandes grupos da imprensa britânica não puderam evitar, com um recurso judicial no último minuto, que se aprovasse um novo sistema regulador à luz dos escândalos das escutas telefônicas. O Conselho Assessor da Rainha da Inglaterra, composto por altos funcionários e membros do governo, sancionou o novo regime que contempla a criação de um órgão regulador e outro ouvidor com poderes ampliados e multas de mais de um milhão de dólares pela violação do código de ética da imprensa. […] Consensuado pelos três principais partidos políticos, substitui a Comissão de Reclamações sobre a Imprensa, que se mostrou totalmente inoperante durante as duas últimas décadas, cenário dos escândalos envolvendo a família real e, finalmente, o das escutas telefônicas. Como pela mão de algum demiurgo, ao mesmo tempo em que a justiça limpava o caminho para a

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promulgação oficial do novo sistema, três jornalistas se declaravam culpados ante a Corte Criminal de Old Bailey de interceptar comunicações e interferir no telefone de uma estudante sequestrada e assassinada, Milly Dowler. O caso de Dowler provocou renúncias em massa no grupo Murdoch, o fechamento do dominical News of the World e forçou o governo a criar em 2011 a Comissão Leveson, que propôs um novo sistema regulatório. A velha Comissão de Reclamações sobre a Imprensa era um mecanismo de autorregulação sem poderes de investigação ou sanção da imprensa e com um código de ética brando que ninguém respeitava. O atual sistema propõe a criação de um órgão regulador, nomeado pela própria imprensa, mas sem editores ou membros de diretorias de publicações, e um painel ouvidor que cuidará com que o regulador respeite o código de ética e se comporte de maneira independente. […] O sistema tem um calcanhar de Aquiles: é voluntário. As publicações só serão submetidas a esta regulação se aceitarem participar. Esta participação será alentada por incentivos que favorecem que as queixas contra a imprensa se resolvam por processos internos de arbitragem e que autorizam as cortes a tratar de maneira diferente um periódico caso não faça parte do sistema. (Marcelo Justo, da Carta Maior publicado 31/10/2013).

Também na Alemanha tem importância destacada o sistema regulatório de mídia, fundado na autorregulação e no autocontrole, como destacou o próprio ministro Gilmar Mendes em voto proferido por ocasião da Plenária acerca de recepção constitucional da “velha Lei de Imprensa” brasileira:

No plano federal, há um interessante sistema de autorregulação e autocontrole da imprensa, cujo o rgão principal é o Conselho de Imprensa Alemão, criado em 1956 e composto por associações de editores e jornalistas da Alemanha. Estabeleceu-se, nesse sistema, um conjunto de princípios que devem ser respeitados pela imprensa, denominado Pressekodex.

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Entre os princípios estabelecidos pelo Pressekodex estão: liberdade e independência da imprensa (preâmbulo); proteger e respeitar a dignidade humana (Artigo 1); respeitar a intimidade e a privacidade (Artigo 8); realizar pesquisa aprofundada e justa (Artigo 4); separar claramente o editorial do texto dos anúncios comerciais (Artigo 7); proteger a honra (Artigo 9); evitar retrato sensacionalista da violência e da brutalidade (Artigo 11); e presunção de inocência de pessoas que estejam sob investigação (Artigo 13). O Pressekodex determina, ainda, que jornalistas e editores não podem exercer atividade diversa que coloque em questão a credibilidade da imprensa (Artigo 6). A discriminação por sexo, deficiência, origem étnica, religiosa ou social também não é permitida (Artigo 12). Nesse sentido, o código define, inclusive, que deve ser evitada a menção da origem religiosa, social e/ou étnica do criminoso, de modo a evitar o surgimento de preconceitos. O Conselho de Imprensa Alemão é responsável por verificar se os princípios estabelecidos pelo Pressekodex estão sendo obedecidos pela imprensa e por receber reclamações e denúncias da população com relação às publicações de jornais, revistas e textos jornalísticos publicados na internet. Além do Pressekodex, na Alemanha firmou-se tratado interestadual, em 31 de agosto de 1991, o Staatsvertrag fur Rundfunk und Telemedien, que regulamenta a radiodifusão e os meios eletro nicos de comunicação. Essas atividades são reguladas com base em alguns princípios: proteger e respeitar a dignidade humana; respeitar a vida e a liberdade; respeitar a diversidade de crenças e opiniões; respeitar as diversas convicções morais e religiosas (artigo 3); promover a solidariedade e trabalhar por uma sociedade sem discriminações (artigo 41). (STF, ADPF nº 130, voto: ministro Gilmar Mendes).

No Brasil de hoje apresentam-se fugidias as tentativas de regulamentação da mídia, particularmente - com relação ao objeto deste estudo - quanto à efetividade do exercício do direito de resposta - garantido pela norma inscrita

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no artigo 5º, Inciso V da chamada Constituição “Cidadã”. Faz-se necessário aprofundar a discussão e ultrapassar o limite da questão intrínseca ao direito subjetivo de responder publicamente a eventuais incorreções ou ofensas perpetradas pela grande mídia corporativa. Isso já está posto e decidido pelo Supremo Tribunal Federal; o direito de resposta é inquestionável. Basta calibrar os meios pelos quais se realizará o direito.

CONCLUSÃO

A queda da chamada “lei de imprensa”, decorrente de pronunciamento do Supremo Tribunal Federal, após o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 130, não fez desaparecer do ordenamento jurídico brasileiro o direito de resposta.

O direito de resposta é norma constitucional de aplicabilidade imediata, haja vista a inexigibilidade de legislação infraconstitucional, declarada pelo STF, quanto ao exercício do direito de responder pelos mesmos veículos divulgadores a incorreções e/ou ofensas contra indivíduos ou grupo de indivíduos.

Apesar de não se mostrar exigível, haverá de ser útil novel instrumento regulatório apto a estabelecer balizas na consecução do pleito do direito de resposta, fixar prazos condizentes com a realização fática de tal direito e corrigir desequilíbrios na relação mídia organizada/ detentor do direito de resposta.

Alternativas extrajudiciais, considerados aqui os vários sistemas de autorregulação – e rechaçados de imediato quaisquer subterfúgios com a finalidade de aparelhamento estatal da imprensa – hão de ser considerados na tentativa de se estabelecer mecanismos de solução de controvérsias, especificamente no que toca ao direito de resposta, conforme a reclamada urgência temporal do dia-a-dia desta Era da Informação.

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A OMISSÃO DA COMUNIDADE INTERNACIONAL NO GENOCÍDIO EM RUANDA

Vanessa de Paula Rodrigues47

O mundo é um lugar perigoso de se viver, não por causa daqueles que fazem o mal, mas sim por causa daqueles que observam e deixam o mal acontecer.

Albert Einstein

Quem aceita o mal sem protestar, coopera com ele.

Martin Luther King Jr.

Para o triunfo do mal, basta que os bons não façam nada.

Edmund Burke

RESUMO

Com o presente trabalho pretende-se apresentar uma análise crítica da perspectiva histórico-política para os acontecimentos havidos em Ruanda no ano de 1994, quando quase 1 milhão de tutsis e hutus moderados foram brutalmente mortos por hutus extremistas. Apresentaremos as razões históricas que, lamentavelmente, deram origem ao ódio entre as tribos, decorrente da conduta discriminadora de seus antigos dominadores belgas, por declararem os tutsis, em razão de suas características físicas, serem superiores aos hutus. Tais mortes foram resultado de um esquema perverso para a limpeza étnica do país em relação à minoria tutsi que num determinado momento pretérito esteve no poder, fomentando as “supostas” diferenças étnicas. Abordaremos como a comunidade internacional, vergonhosamente, no que podemos chamar de um ato criminoso, se omitiu tanto em relação à suplantação permanente de segregação étnica durante décadas, tanto quanto à ocorrência do genocídio em si, uma vez que sabiam do que estava ocorrendo, mas nada fizeram durante quase 100 dias de pura barbárie. Por fim, apresentaremos o desfecho do massacre com a presença de tropas internacionais e a instauração do Tribunal Penal Internacional para Ruanda, com a finalidade de processar e julgar os crimes cometidos contra a humanidade, em especial, o genocídio.

47 Advogada e Mestranda em Direitos Humanos pelo Centro Universitário FIEO – UNIFIEO.

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Palavras-Chaves: Genocídio; Ruanda; Comunidade Internacional; Omissão; Direitos Humanos.

SUMÁRIO: 1. A origem do ódio entre as tribos Tutsi e Hutu. 1.1. A dominação e a independência da Bélgica. 2. O estopim – A morte do Presidente. 2.1. O início do massacre. 2.2. A comunidade internacional deu as costas à Ruanda. 3. A intervenção da comunidade internacional após quase 1 milhão de mortes em menos de 100 dias. 4. O Tribunal Penal Internacional para Ruanda. Conclusão. Referências.

1. A ORIGEM DO ÓDIO ENTRE AS TRIBOS TUTSI E HUTU

1.1. A DOMINAÇÃO E A INDEPENDÊNCIA DA BÉLGICA

Notadamente na história é possível identificar os malefícios levados pelos colonizadores aos povos colonizados. Isso porque, seja qual for a finalidade da colonização (povoamento ou exploração), os colonizadores pretendem, precipuamente, a dominação do povo local para submetê-lo aos seus desígnios.

No século XIX, quando os colonizadores europeus chegaram ao então reinado dos Banyawards, no que atualmente conhecemos por Ruanda, a civilização que vivia sob tradições orais, denominavam-se tutsi ou hutu de acordo com os seus respectivos ofícios, aqueles exerciam atividades pastoris, enquanto estes, os hutus, eram agricultores.

Importante destacar que, quanto à origem dos tutsis e hutus, ainda há uma contradição entre as versões dadas por uma e por outra tribo, mas fato é que ainda que houvesse distinção entre esses grupos, elas foram exaltadas pelos colonizadores e missionários católicos, de forma distorcida e cruel em relação aos hutus, que se viram subjugados e rebaixados a uma segunda categoria de ser humano, qualificados como menores, menos inteligentes, uma vez que os tustis, pela teoria criada à época, seriam descendentes caucasianos.

Isso porque, durante a colonização, albergados sobre as teses eugenistas e do darwinismo social, os missionários católicos e colonizadores belgas atribuíram aos tutsis serem de etnia “superior” à dos hutus, portanto, privilegiada, descendentes dos semitas.

Assim, no século XX tivemos uma espécie de colonização que nos remonta à mais primitiva forma de dominação, na qual simplesmente se despreza a cultura local, reduzindo a condição dos nativos sob o argumento de serem selvícolas, incapazes de instituir e manter uma sociedade. E, foi exatamente essa atitude arrogante dos povos dominadores que fez nascer o ódio num povo que vivia pacificamente, sem a presença do ‘homem branco’.

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Lamentavelmente, assim, sob o manto civilizatório da “Liga das Nações”, houve a institucionalização da política de segregação, que se efetivou em 1933, com a dominação belga nos territórios da África Central, Ruanda e Burundi.

Com a hierarquização étnica entre as duas tribos, os colonizadores atribuíram privilégios e cargos de comando apenas para a elite dos tutsis, em um regime monárquico, despertando o ódio crescente nos hutus.

Naquele período, com a indicação expressa da “raça” individualizada pela altura e as feições angulosas, cada cidadão ruandês recebeu uma carteira de identidade. Sendo certo que, um tutsi o seria porque nasceu de um tutsi e um hutu da mesma forma.

“Este sistema de cartão foi mantido por mais de 60 anos e, em uma trágica ironia, se tornou fundamental para que os assassinos hutus identificassem os tutsis, durante o genocídio, seus beneficiários originais” 48.

Tal situação de ódio que foi se instaurando de forma institucionalizada, fortalecida pelo empobrecimento da maioria da população (hutus), deu ensejo à formação de grupos extremistas em defesa de sua ‘raça’.

Durante todo o período de dominação dos tutsis, com o apoio dos belgas, os levaram a acreditar que realmente eram uma ‘raça’ superior, fazendo-os a tratar com desprezo os hutus.

O legado colonial envenenado tornou impossível para as vozes de moderação prevalecer sobre o extremismo e a intransigência. O tipo de movimento nacionalista comum em tantas outras colônias, unindo diversos elementos comuns sob um amplo guarda-chuva, não conseguiu florescer em Ruanda.

Em 1958, um grupo de conservadores na corte real arrogantemente rejeitou tanto o Manifesto Bahutu49 como qualquer outra base para a cooperação tutsi-hutu.

Em 1959, a Revolução Ruandesa levou o país à independência, bem como ao fim da monarquia, com a instauração de um governo republicano de etnia hutu.

O clima político já era tenso, com a morte do rei em circunstâncias suspeitas. O país estava sob a liderança de Grégoire Kayibanda, um graduado do seminário católico e cossignatário do Manifesto Hutu, integrante do partido

48 Rwanda – The preventable genocide. Addis Ababa: Organization of African Unity, 2000. Visitado em 20 de novembro de 2014 (tradução de Vanessa de Paula Rodrigues).49 Este documento, que foi dirigido com bastante precisão contra o “duplo colonialismo” dos belgas e os tutsis, manifestou particular ressentimento para com o ‘monopólio político’ do tutsi que tinha expandido em um monopólio econômico e social. A passagem central do manifesto destaca o seguinte: “O problema é, basicamente, o monopólio de uma raça, a tutsi... que condena o hutu desesperado para serem para sempre os trabalhadores subalternos”.

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hutu predominante que tinha emergido – Movimento Democrático Ruandês / Partido do Movimento de Emancipação Hutu, ou Parmehutu.

Naquele ano, jovens tutsis espancaram um ativista Parmehutu, os hutus, então, correram para se aproveitar da ocasião, iniciando a guerra civil, um pré-anuncio do que viria a ocorrer em 1994.

Obviamente que, se considerarmos que os hutus já correspondiam a 85% da população ruandesa, foi previsível que os belgas e os líderes da igreja viessem a ser, descaradamente, parciais em relação a seus novos amigos hutus.

Os Padres Brancos deram conselhos estratégicos para alguns dos líderes hutus e, em geral, abençoou sua causa. Os militares, em sua maioria hutus, incentivavam os ataques de civis hutus contra tutsis.

Imediatamente no ano seguinte, como já se poderia prever, veio a tragédia anunciada, começa a perseguição étnica da minoria tutsi, que foram mortos em massacres e milhares se exilaram, refugiando-se em países vizinhos, como Tanzânia e Burundi.

Os conflitos que geram refugiados podem, facilmente, levar a conflitos gerados por refugiados. Nem todos os refugiados permanecem vítimas passivas, alguns se transformam em guerreiros.

Esses refugiados compuseram a Frente Patriótica Ruandesa (“FPR”), guerrilheiros tutsis que se voltariam contra o regime para poderem voltar a se estabelecer no que consideravam o seu “lar”.

Foram esses guerrilheiros que eram famosamente chamados “inyenzi”, ou baratas, pelo hutu, um rótulo que seria ressuscitado 30 anos depois. Entre 1961 e 1967, comandos tutsis que operam fora do país lançou uma dúzia de ataques em Ruanda.

Um grande número de tutsis fugiu das áreas dos combates mais ferozes, cerca de 10.000 refugiando-se em estados vizinhos. Uma geração mais tarde iria encontrar esse número pequeno em comparação com as centenas de milhares de refugiados.

O impacto foi devastador para os tutsis que ainda viviam em Ruanda, pois após cada incursão, represálias eram realizadas por tropas do governo.

Antes dessas incursões cessarem, 20.000 tutsis foram mortos e outros 300.000 fugiram para o Congo, Burundi, Uganda, e que era então chamado Tanganyika.

A natureza dos ataques de represália mudou. Funcionários do governo hutu (altos funcionários eram todos hutu) passaram a acusar todos tutsis de serem cúmplices dos atacantes, passaram a ser considerados invasores estrangeiros e, consequentemente, tudo tornou-se um jogo justo para os abates desses anos; significativamente, isso incluiu mulheres e crianças.

Embora Ruanda fosse agora uma república, o presidente Kayibanda atuou como um Mwami (rei) de outrora, mas, é claro, como um hutu em nome

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do hutu. O governo era autoritário, elitista e secreto; esses valores dificilmente poderiam ter sido mais fora de sincronia com uma África onde o socialismo, revolução, e desenvolvimento foram apaixonadamente debatidos. Apenas a realidade de ser um Estado de partido único foi compartilhada com muitas outras nações independentes emergentes.

Em 1962 foi proclamada, formalmente, a independência de Ruanda e de Burundi em relação à Bélgica.

Em 1972, 10 anos após a declaração formal de independência de Ruanda, os líderes hutus do norte haviam se frustrado pelo monopólio do poder e governo exercido por Kayibanda e sua base estreita Parmehutu. Desesperado para se manter no poder, o Presidente viu apenas um estratagema viável. Era hora de enfatizar as divisões étnicas mais uma vez - desta vez, a insistir na solidariedade hutu em detrimento do tutsi.

Uma onda de propaganda anti-tutsi entrou em erupção, alguns deles no campo envolvendo o campesinato local. A atmosfera geral de intimidação e terror voltou a levar a mais um êxodo de milhares de tutsis da pátria.

Nas escolas eram insufladas as teorias de que os tutsis eram uma raça inferior, estrangeiros que se instalaram no país para prejudicar os hutus e lhes tomar o que lhes era de direito.

O terror, porém, não serviu para salvar a presidência de Kayibanda. Em julho de 1973, o General Juvenal Habyarimana, oficial militar, tomou o poder com a promessa de restaurar a ordem e a unidade nacional. A atmosfera do país era tão opressiva nesse ponto, que o golpe foi recebido com alívio popular generalizado, mesmo pelos tutsis.

Conforme os anos se passaram, o governo de Habyarimana mostrou-se complacente, arrogante, em meio à corrupção generalizada, aumentando a distância entre as pessoas.

A comunidade internacional há muito tinha consciência do que se passava em Ruanda, o relatório emitido em 1961 pelo Conselho de Tutela das Nações Unidas atesta isso. Assim, em certa medida, havia uma pressão para que o governo de Habyarimana buscasse um acordo de paz, para permitir a reinserção dos refugiados e reprimir a segregação étnica.

Nas palavras extremamente duras e prescientes de um relatório do Conselho de Tutela da Organização das Nações Unidas (“ONU”) 1961, “Os desenvolvimentos destes últimos 18 meses trouxeram sobre a ditadura racial de uma festa... Um sistema opressor foi substituído por outro... É muito possível que algum dia testemunhemos reações violentas por parte do tutsi”.

No entanto, o movimento em direção à partilha do poder era simplesmente um desafio a seus privilégios, dos familiares e da elite mais próxima a ele – denominados de Akazu -, uma vez que Habyarimana não poderia resistir à

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pressão para negociar partilha do poder, não apenas com outros Hutu, mas com os invasores tutsis odiados da Frente Patriótica Ruandesa (FPR).

Muitos observadores estavam bem conscientes da ganância da Akazu e não duvidava de sua determinação fanática para manter seus privilégios.

Tão alto quanto 17,5 por cento em 1952, pelo censo de 1978, a população Tutsi tinha-se tornado em mero 10 por cento. O sistema de identificação serviu de base para um rigoroso sistema de quotas, o que, por sua vez, determinou matérias essenciais como matrículas escolares e contratação de serviço civil, obedecendo a essa proporcionalidade.

Ruanda como país pouco industrializado, tinha sua economia pautada precipuamente na agricultura do café. Assim, quando a crise econômica de 1989 pesou sobre os trabalhadores com a súbita queda em 50% nos preços de café, a segregação racial inventada mostrou-se ainda mais perigosa.

Empobrecida, a população de Ruanda se tornou miserável, ainda mais carente dos serviços básicos de saúde e educação, afetados pela crise econômica, que, como em todo sistema capitalista, o colapso econômico recai sobre a prestação de serviços públicos essenciais.

A comunidade internacional e a crise socioeconômica aumentaram a pressão para houvesse a democratização do Estado, tal pressão sobre Habyarimana para moderar essa postura surgiu a partir de doadores estrangeiros, agências da ONU e de Uganda. Visitas entre Habyarimana e Museveni inicialmente levaram a lugar nenhum, não obstante o argumento do último que era no interesse do própria Habyarimana para abordar as queixas do ruandês tutsi no exílio.

Finalmente, os dois governos concordaram em estabelecer uma comissão conjunta sobre refugiados ruandeses em Uganda. Mas os observadores ainda duvidavam da boa vontade de Habyarimana, enquanto ele continuava inflexível referindo-se aos tutsis fora do país como emigrantes em vez de refugiados, com isso ele queria dizer que o fato de os tutsis estarem fora do país era o resultado de uma decisão voluntária de deixar o Ruanda.

Se era uma farsa ou não, a comissão funcionava. Na verdade, uma visita ao Ruanda por um grupo de refugiados foi marcada para outubro de 1990, mas por essa altura, já era tarde demais. Inflexibilidade e falta de confiabilidade do Ruanda reforçou os argumentos dos militantes contra os moderados dentro da liderança tutsi em Uganda.

Em 01 de outubro de 1990, a invasão fatídica começou quando milhares de soldados, em sua maioria bem treinados e bem armados de seus anos com Museveni, cruzaram a fronteira para Ruanda.

Inevitavelmente, há muitas dúvidas sobre o calendário da invasão, os motivos, adequação e consequências. Igualmente inevitáveis são

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profundas diferenças de opinião. Isso é importante, uma vez que parte da guerra de propaganda ainda está sendo travada hoje gira em torno da legitimidade da invasão de 01 de outubro de 1990, e, portanto, a legitimidade do governo de hoje.

Agora, na esteira do 01 de outubro de 1990, a invasão e a impunidade floresceram para os demagogos que foram deliberadamente alimentar a animosidade latente para com aqueles que consideravam estrangeiros pérfidos, uma categoria incluindo não apenas os tutsis refugiados guerreiros do FPR, mas todos os tutsis ainda em Ruanda, assim como qualquer hutu acusado de ser seu simpatizante.

Mas isso não significa que o planejamento do genocídio foi iniciado naquele momento. É importante entender que, até onde se sabe, não há qualquer documento, nenhuma ata de reunião, nem qualquer outra evidência que aponte um momento preciso, no qual haja certos indivíduos decididos sobre um plano mestre para acabar com os tutsis. No entanto, sem dúvida, esta campanha organizada e promovida, em algum momento desse período (1990-1994), essas atividades anti-tutsi transformaram-se em uma estratégia para o genocídio, mas esse momento exato nunca foi estabelecido.

A guerra civil iniciada em 1990 durou, com longos períodos de cessar-fogo, por cerca de quatro anos. Seus últimos três meses coincidiu com o período do genocídio, que foi interrompido apenas pelo triunfo final em julho de 1994, dos refugiados guerreiros sobre os “genocidas” 50.

2. O ESTOPIM – A MORTE DO PRESIDENTE

2.1. O INÍCIO DO MASSACRE

O que se tem notícia é que a partir de 01 de outubro de 1990, Ruanda sofreu três anos e meio de incidentes anti-tutsi violentos, cada um dos quais em retrospecto pode ser facilmente interpretado como um passo deliberado em uma vasta conspiração.

Em 5 de abril de 1993, o Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou a resolução 872, intitulada “Missão de Assistência das Nações Unidas para Ruanda”, a MIANUR, cujo objetivo principal era intermediar a assinatura do Acordo de Arusha, assegurando, assim, o fim dos combates entre hutus e tutsis do Ruanda e Burundi.

Tal documento fora assinado em Arusha, na Tanzânia, em agosto de1993, tendo como partes o Governo da República do Ruanda e a Frente

50 Palavra francesa para os autores de genocídios, amplamente utilizado até mesmo por de língua inglesa ruandeses.

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Patriótica Ruandense, na presença dos representantes dos facilitadores: a União da República da Tanzânia e a Organização da Unidade Africana (“OUA”).

Dado que a maior tensão estava no Ruanda, para assegurar a diminuição desta, a ONU enviou um efetivo de 2548 militares, com sua maioria composta por belgas. O então Major-General Roméo Dallaire, de origem canadense, nomeado Comandante da força, seria responsável por supervisionar a implementação do Acordo.

Todavia, importante destacar a ocorrência de alguns fatos contrários à proposta de paz ocorreram. Em 6 de janeiro de 1994, um avião DC-8 francês pousou no aeroporto da capital ruandesa, Kigali, com munições e armas destinadas às Forças Armadas de Ruanda (FAR).

Dallaire não pôde impedir o acesso às armas, uma vez que, segundo afirmação do Chefe de Operações do Exército Ruandense, elas foram adquiridas antes da assinatura do Acordo de Arusha. Como argumento adicional, foram apresentados documentos que provaram o envio das armas por Israel, Bélgica, França, Reino Unido, Países Baixos e Egito.

Acompanhada da inusitada entrega de armas, soldados ruandeses passaram a averiguar cédulas de identidade e diferenciavam com um carimbo os hutus dos tutsis. Essas cédulas permitiriam que as tropas hutus identificassem suas vítimas com precisão mais tarde.

Na noite do dia 6 para 7 de abril de 1994, o então presidente de Ruanda Juvénal Habyarimana (hutu) e o presidente do Burundi, Cyprien Ntaryamira, foram assassinados quando o avião no qual viajavam foi atingido por um míssil.

A responsabilidade pelo crime ainda é incerta: por um lado, dizia-se na época que o avião foi abatido por ordem do líder da FPR, Paul Kagame. Outros, incluindo a FPR, acusavam militantes hutus de outros partidos de articular os assassinatos para provocar uma revolta anti-tutsi ao mesmo tempo em que tomavam o poder. Não há investigações confiáveis sobre o caso.

Parece-nos, assim, a partir das evidências mais prováveis, que a ideia de genocídio surgiu apenas gradualmente, possivelmente no final de 1993 e acelerando em determinação e urgência em 1994.

Fato é que a milícia ruandesa e a sociedade civil vinha sendo apoiada a incentivada a se armar. Milhares de armas brancas foram importadas da China e distribuídas aos hutus que, como agricultores, já tinham habilidade no manuseio de facões. Ou seja, houve o financiamento para o preparo do massacre, bem como o apoio e a conivência do governo em todas as suas esferas.

As lideranças milicianas utilizaram-se do assassinato de Habyarima como fato de legitimação para o início do massacre sanguinolento sem precedentes na história de Ruanda, incitada pelas rádios locais, contando com a não interferência do poder público, vez que este era de domínio hutu.

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Com isso, a morte de Habyarima foi o estopim para o início da carnificina, promovida pelo apoio do Governo Ruandense à milícia ruandesa e à sociedade civil, que se uniram para “cortar as árvores altas”, este foi o código entre os hutus para o início do genocídio.

2.2. A COMUNIDADE INTERNACIONAL DEU AS COSTAS À RUANDA

Como vimos acima, a comunidade internacional não tem como negar que estava ciente do que ocorria em Ruanda, em todos os aspectos (sociais, econômicos e políticos).

A verdade é que a comunidade internacional não teve qualquer interesse real naquele país africano, que há muito sofria com as intervenções dos europeus, que a pretexto de “civilizar” a sociedade, incumbiu-se de inserir uma “semente do mal”, ao criar diferenças étnicas para impor a sua dominação, com o auxílio e legitimação da Igreja Católica.

A seguinte lista inclui itens de dois tipos: medidas que foram tomadas para o genocídio, e a eventual exposição pública uma dessas etapas51:

Outubro 1990- Invasão FPR- Oito mil tutsis e hutus moderados detidos- Trezentos Tutsi abatidos em Kabirira- De Standaard (Bélgica) relata prisões em massa de tutsis

Dezembro 1990- Papel Hutu Radical Kangurapublica “Dez Mandamentos do hutu”

Janeiro de 1991 - Quinhentos tutsis abatidos em Kinigi- Le Monde (França) relata a circulação de propaganda anti-tutsiracista

Fevereiro 1991- Departamento de Estado dos EUA relata detenção arbitrária de 5.000 civis ruandeses

51 Rwanda – The preventable genocide. Addis Ababa: Organization of African Unity, 2000. Visitado em 20 de novembro de 2014 (tradução de Vanessa de Paula Rodrigues).

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- Le Monde relata continuando propaganda anti-tutsi

Abril 1991- Le Monde relata em propaganda anti-tutsi contida no jornal KanguraMaio 1991- A Anistia Internacional relata a detenção de 8.000 pessoas

Outubro de 1991- Tortura e estupro de civis- Em três incidentes diferentes, 31 tutsis são presos e ordenados a nunca mais voltar ou serão espancados

Dezembro 1991- Ataques a Tutsi continuam

Janeiro 1992- O Governo Ruandês aumenta drasticamente o orçamento dos Militares

Março 1992- Forma partido radical hutu CDR- Trezentos tutsis massacrados em Bugesera- Human Rights Watch relata massacres em Kabirira (1990) e no norte-oeste (1991)- Departamento de Estado dos EUA relata sobre o massacre de Janeiro de 1991, Kinigi

Abril 1992- Habyarimana começa treinamento militar para ala jovem de seu partido, que se transformam em milícia conhecida como interahamwe; CDR logo segue com sua própria milícia

Junho de 1992- O New York Times informa a detenção de 8.000 ocorrida em Outubro de 1990

Setembro 1992- Governo ruandês distribui armas para civis em duas comunas

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Outubro 1992- De Standaard relata terror contra os tutsis

Novembro 1992- Habyarimana declara e que o acordo de cessar-fogo firmado em com Arusha com Frente Patriótica Ruandense é só um pedaço de papel

Dezembro 1992- As organizações de direitos humanos de Ruanda denunciam massacres de tutsis e violações de direitos humanos contra eles - Africa Watch relata as tropas do governo estão matando

Janeiro 1993- Trezentos Tutsi e outros adversários políticos massacrados no norte-oeste - Le Monde relata acusações contra exército ruandês de violações graves dos direitos humanos contra os tutsis- Comissão Internacional de quatro organizações de direitos humanos realiza missão em Ruanda, entrevistando centenas e escavando sepulturas coletivas

Fevereiro 1993- FPR viola cessar-fogo; um milhão no norte-oeste são deslocados- Governo distribui mais armas para civis – mais violência, estupro, detenção e tortura de Tutsi- Comissão Internacional de Inquérito sobre Abuso de Direitos Humanos em Ruanda, composta por membros de quatro organizações, relato de mais de 2.000 tutsis assassinados por motivos étnicos desde a invasão FPR; três grandes massacres de tutsis por civis apoiados pelo governo; extremista, retórica racista generalizada; grupos de milícias formadas. O comunicado de imprensa levanta possibilidade de genocídio, mas a palavra está ausente do relatório final

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- Le Monde abrange relatório de direitos humanos- Departamento de Estado dos EUA relata em Bugesera e Bagogwe massacres, desaparecimentos de Tutsi jovens e expansão do exército

Março 1993- Cento e quarenta e sete tutsis mortos- Comissão Internacional de Inquérito apresenta seu relatório em Bruxelas e Paris - Le Monde discute assistência francesa apoio militar e político de Ruanda à luz das conclusões da Comissão Internacional - relatórios em papel belga no relatório da Comissão e rejeição dela de Habyarimana

Junho 1993- Akazu apoiado estação de rádio extremista RTLMC começa a transmitir- Human Rights Watch publica relatório sobre massacres no norte-oeste em janeiro e fevereiro de 1993; outros assassinatos em fevereiro e março; armamento de civis; e vários massacres realizados por civis com apoio do governo.

Agosto 1993- Relator Especial da ONU sobre Resumo, Arbitrariedades e Execuções Extrajudiciais são questões apresentadas no relatório com base na missão de Ruanda, em grande parte, confirmando relatório da Comissão Internacional de Inquérito. Conclui que massacres recentes parecem cumprir a definição da Convenção do Genocídio de genocídio; violência está aumentando; propaganda extremista é galopante; e as milícias estão organizadas.

Setembro 1993- Juízes e ativistas de direitos humanos são atacados- Bombas explodem em Kigali

Outubro 1993- De Standaard relatórios sobre questões no

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Parlamento belga sobre o envolvimento dos membros Akazu em violência e corrupção.

Notadamente, todos estes eventos, em sua maioria veiculados na mídia internacional, indubitavelmente foram de conhecimento das autoridades governamentais do mundo, mormente, das potências integrantes da Organização das Nações Unidas, antes de 1994. São, no entanto, uma pequena amostra de indícios ou provas acerca do conhecimento dos fatos por todos.

Em seu estudo abrangente do genocídio, Não Deixarão Nada Para Contar à História, a Human Rights Watch52 lista inúmeros alertas precoces dados cinco meses antes de 06 de abril de 1994. Todos esses dados mostram três importantes verdades53:

1) A violência era galopante de anos antes do genocídio e foi escalada perceptivelmente.2) Este estado de coisas era bem conhecido.3) Também era sabido que a situação não era obra do acaso.

3. A INTERVENÇÃO DA COMUNIDADE INTERNACIONAL APÓS QUASE 1 MILHÃO DE MORTES EM MENOS DE 100 DIAS

Durante o período, as tropas da ONU ofereceram pouca resistência ao massacre, a preocupação da comunidade internacional, se assim podemos dizer, foi única e exclusivamente para com os seus cidadãos, que fez com que governos estrangeiros fechassem embaixadas e retirassem seus cidadãos de Ruanda.

Simultaneamente, o governo francês providenciou um avião militar para transferir Agathe Kanzinga, mulher de Habyarima, para Paris.

Em 9 de abril, liderado pelo Coronel Théoneste Bagasora, um comitê de crise designou um governo interino composto exclusivamente de indivíduos leais ao Poder Hutu. O resultado seria o terceiro maior genocídio em número de mortos desde 1950. A esse respeito, os dados apresentados por Philip Gourevitch são estarrecedores: estima-se que, em 100 dias, mais de 800 mil pessoas foram liquidadas, o que dá uma 28 média de 333,3 mortos por hora ou 5,5 por minuto. Teresa Nogueira Pinto assim descreveu o acorrido:

52 Alison Des Forges, Leave None to Tell the Story: Genocide in Rwanda (New York: Human Rights Watch, 1999) in http://www.hrw.org/reports/pdfs/r/rwanda/rwanda993.pdf Acessado em 22 de novembro de 2014.53 Rwanda – The preventable genocide. Addis Ababa: Organization of African Unity, 2000. Visitado em 20 de novembro de 2014 (tradução de Vanessa de Paula Rodrigues).

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A característica mais singular, e mais perturbadora, do genocídio ruandês foi ter sido um genocídio de proximidade. Entre abril e julho de 1994, o país dividiu-se de fato entre carrascos, vítimas e testemunhas. Foi um período em que professores mataram alunos, médicos mataram pacientes, padres mataram fiéis, irmãos mataram irmãos. As atividades do quotidiano ficaram suspensas e o país transformou-se num gigantesco campo de morte a céu aberto, num cenário em que a morte violenta, as pilhagens e violações se tornaram absolutamente banais, como se de uma extensão do campo de batalha se tratasse54.

Diante da carnificina de 21 de abril, o Gal. Dallaire solicitou à ONU o envio de mais 5 mil homens, com “carta branca” para agir. Entretanto, naquele mesmo dia, o Conselho de Segurança reunia-se para decidir a redução do contingente da UNAMIR em 90%55.

Tal decisão pode ter sido a maior vitória do Poder Hutu, e creditada aos EUA que, em razão das baixas de soldados americanos havidas na Somália56 em outubro de 1993, editara uma decisão presidencial para apontar razões ao não envolvimento norte-americano em missões de paz da ONU.

Assim, quando o Conselho de Segurança aprovou o envio de 5.500 homens para Ruanda, em maio de 1994, os EUA impuseram restrições que fizeram com que o envio fosse feito muito lentamente57.

A imprensa francesa responsabilizou o governo Francês, culpando-o da participação no preparo da prática do genocídio. Diante de tais acusações, em junho de 1994, as autoridades francesas anunciaram o envio de uma expedição sob a bandeira da ONU, autorizada pelo Conselho de Segurança.

Somente em 23 de junho, as primeiras tropas da Opération Turquoise

54 PINTO, Teresa Nogueira. Ruanda: entre a segurança e a liberdade. Relações Internacionais. Lisboa, nº 32, dezembro/2011, http://www.scielo.oces.mctes.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1645-91992011000400004 – acessado em 24 de novembro de 2014).55 Veja-se: UNITED NATIONS. Report of the independent inquiry into the actions of the United Nations during the 1994 genocide in Rwanda, op. cit., p. 23.56 A Missão de Paz da ONU na Somália (UNOSOM I), criada em abril de 1992, teve por objetivo o envio de ajuda humanitária para as vítimas da guerra civil, iniciada em 1990. Em maio de 1993, a missão foi substituída pela UNOSOM II, desta vez contando com a participação de diversos países. Entre os dias 3 e 4 de outubro do mesmo ano, num confronto entre forças dos EUA e milicianos somalis, dezoito soldados norte-americanos foram mortos, ficando conhecida como Batalha de Mogadíscio.57 Veja-se: UNITED NATIONS. Report of the independent inquiry into the actions of the United Nations during the 1994 genocide in Rwanda, op. cit., p. 26.

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deslocaram-se para o nordeste de Ruanda58.

Imediatamente, os porta-vozes das tropas francesas começaram a divulgar a idéia de um duplo genocídio, tendo em vista que o exército da FPR provocava o recuo das forças ruandesas. A partir de então, a estratégia do Poder Hutu passou a ser a condução de multidões para o exílio, com o objetivo de estabelecer um Estado de refugiados nos campos da ONU, no que seria auxiliado pelas forças francesas. De fato, a França procurou transformar a ação supostamente humanitária em “área protegida”, sustentando e dando guarida às lideranças políticas do genocídio. Ao que tudo indica, o objetivo principal da Opération Turquoise era garantir que a matança continuasse por mais um mês para assegurar ao comando genocida uma transferência segura para o Zaire. Finalmente, no início de julho de 1994, o massacre foi estancado, quando a FPR conseguiu entrar em Butare e Kigali, embora começasse um novo genocídio: calcula-se que, em poucos 34 dias, entre 25 mil e 60 mil hutus foram mortos por homens da FPR, em represália. E, no dia 12 de julho, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha anunciava que cerca de 1 milhão de pessoas haviam morrido. Com a vitória da FPR, estima-se que 500 mil hutus atravessaram a fronteira para Goma, no Zaire, entre os dias 14 e 15 de julho. E no dia 16, o chefe do Poder Hutu fugiu para a Zone Turquoise. Por fim, em 19 de julho de 1994, tomava posse o novo governo, formado por uma coalizão da FPR com membros dos partidos de oposição ao Poder Hutu59.

Pelos fatos ora narrados, a comunidade internacional não pode alegar desconhecimento de causa para a sua condescendência aviltante. Pelo que,

58 Veja-se: UNITED NATIONS. Report of the independent inquiry into the actions of the United Nations during the 1994 genocide in Rwanda, op. cit., pp. 29-31.59 MENDONÇA, Marina Gusmão de. O Genocídio em Ruanda e a Inércia da Comunidade Internacional. In BJIR, Marília, v.2, n.2, p. 300-328 Maio/Ago. 2013.

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lamentamos que a postura fria ‘racista’ dos líderes mundiais tenha se sobreposto em relação às vidas dos nossos irmãos ruandeses.

Lamentamos, pois em nosso entender a inércia da comunidade internacional se deu realmente em razão do fato de que Ruanda não lhes tinha “nada” a oferer. Logo, era um local sem interesses econômicos, que lhe afastaria, portanto, qualquer “direito” de pleitear a ajuda internacional.

Ora, lembramos bem, conforme cena reproduzida no filme “Hotel Ruanda”, que enviaram as tropas da ONU para retirar os estrangeiros, condenando os ruandeses tutsis à morte. Isso não dá para esquecer!

Se este ato das Nações Unidas não é um ato de segregação, então, precisaremos mudar a definição do termo “segregação”, pois já não sabemos mais o seu significado.

4. O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL PARA RUANDA

Apenas alguns meses após o genocídio, em Novembro de 1994, por meio da Resolução 955, o Conselho de Segurança aprovou a criação de um Tribunal Penal Internacional para Ruanda (“ICTR”), modelado diretamente no e nomeado após o tribunal que já existia para a ex-Jugoslávia (TPIJ).

Ao invés de realizar o julgamento em Kigali, - em razão de a matança haver ocorrido de parte a parte, isto é, tanto hutus quanto tutsis haviam cometido o crime de genocídio, pois uma visava a extinsão da outra, - a ONU decidiu constituir o novo tribunal em Arusha, na Tanzânia, cidade que deu nome aos acordos de 1993 entre a Frente Patriótica Ruandense e o governo de Habyarimana.

A logística no curso do processo foi complicada em razão da distância, inevitavelmente, o processo parecia muito distante do Ruanda e de seu povo sobrevivente.

O novo governo de Ruanda ficou ressentido com a decisão foi profundamente ressentido pelo novo governo. Mas, dadas as circunstâncias, era talvez pouco surpreendente que a ONU tivesse dúvidas acerca da capacidade de Ruanda fazer justiça ou manter os padrões internacionais.

Em razão da inoperância da comunidade internacional durante o período em que ocorrera o genocídio, um número de observadores acreditava que o ICTR foi uma forma de corrigir esta “injustiça”. O tribunal seria visto como “tribunal da comunidade internacional”, que teria assumido a responsabilidade por um crime hediondo contra a humanidade.

O estabelecimento da prisão perpétua como pena máxima fora um entrave durante a criação do tribunal, pois em Ruanda havia pena de morte, razão pela qual os ruandeses queriam que o TPIR viesse a instituí-la, no entanto,

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o argumento da ONU veio exatamente em sentido contrário, alegando que era Ruanda quem deveria adequar sua legislação abolindo a pena de morte.

O tribunal limitou-se a julgar os crimes havidos durante o ano de 1994, fato que impediu o julgamento de atos de preparação para o crime de genocídio, beneficiando, portanto, inúmeros hutus.

Os recursos do ICTR eram um problema sério também. No início de 1998, o procurador-adjunto ressaltou que o tribunal estava funcionando com cerca de 50 investigadores, enquanto 2.000 tinham sido disponibilizados para preparar os casos para os julgamentos de Nuremberg.

Enquanto o tribunal Arusha forneceu alguns motivos de decepção, suas contribuições reais não deve ser minimizada. Em primeiro lugar, a sua primeira condenação de um burgomestre local, Jean-Paul Akayesu, foi por genocídio, tornando-se o primeiro tribunal internacional para proferir uma condenação por crime de genocídio.

Abaixo relatamos alguns marcos históricos deixados pelo Tribunal Penal Internacional de Ruanda, segundo informações extraídas do próprio site do tribunal, criado pelas Nações Unidas60:

Primeiro Julgamento GenocídioO julgamento de Jean-Paul Akayesu começa. Em 2 de setembro de 1998, a Câmara de Julgamento encontrado Akayesuo exbourg mestre de Tabacomuna, culpado de genocídio. Com este caso, o ICTR torna-se o primeiro tribunal internacional a julgar um crime de genocídio e o primeiro a interpretar a definição de genocídio estabelecidas nas Convenções de Genebra 1948. Na mesma decisão, o ICTR, também pela primeira vez, definiu o crime de violação de direito penal internacional e reconhecido o estupro como um meio de perpetrar genocídio61.

Primeira confissão de culpa por genocídioO ex-primeiro-ministro interino Governo Jean Kambanda se declara culpado de genocídio. Isto marca a primeira vez que uma pessoa acusada admite responsabilidade por genocídio, conspiração para cometer genocídio e crimes contra a humanidade. Ao aceitar o seu fundamento, em 4 de Setembro de 1998,

60 http://www.unictr.org/en/ictr-milestones acessado em 22 de novembro de 2014. 61 http://www.unictr.org/en/ictr-milestones acessado em 22 de novembro de 2014.

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o ICTR torna-se o primeiro tribunal internacional desde Nuremberg a emitir um julgamento contra um ex-chefe de Estado.

23 de outubro de 2000A partir de “O Caso da mídia”O julgamento de Jean Bosco Barayagwiza, Ferdinand Nahimana e Hassan Ngeze resulta na primeira sentença proferida por uma organização internacional de membros do tribunal dando conta de que os responsáveis pelos meios de comunicação respondem por emissões destinadas a inflamar o público a cometer atos de genocídio. No mesmo processo, o Juízo de Recursos confirma que a doutrina jurídica de responsabilidade superior aplica-se aos civis em cargos de liderança.

28 de agosto de 2003Estratégia Conclusão ICTRO Conselho de Segurança da ONU adota resolução 1503, que exige à ICTR que promova uma estratégia para completar o seu trabalho. O ICTR está projetando a conclusão de todos, mas um recurso pendente até 31 de dezembro de 2014. Para o apelo final, no caso de Nyiramasuhuko e outros, o julgamento está previsto para o verão de 2015.

24 de junho de 2011Primeira mulher condenada por violação como crime contra a humanidadePauline Nyiramasuhuko é a primeira mulher a ser indiciada e presa por um tribunal penal internacional. Após julgamento, ela torna-se a primeira mulher a ser condenada por genocídio, conspiração para cometer genocídio e estupro como um crime contra a humanidade.Nota: o julgamento de recurso, neste caso, está prevista para ser entregue durante o verão de 2015.

Seguem, em números os julgados produzidos pelo tribunal até a

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presente data62:

93 indivíduos processados pelo Tribunal Penal Internacional para Ruanda:

61 Sentenças condenatórias14 Absolvidos10 Removidos para julgamento na jurisdição

nacional 03 Falecimentos antes ou no curso do

jugalmento03 Fugitivos02 Indiciamentos retirados antes julgamento

CONCLUSÃO

Fica aqui apenas um brevíssimo estudo acerca do comportamento da comunidade internacional diante dos fatos havidos em Ruanda, o país das “mil colinas”, não somente no ano marcado pelo genocídio, mas das décadas que o precederam, mormente com relação à contribuição da mentalidade segregatória dos países “desenvolvidos”.

Nos restando, assim, a conclusão de que o primado aos Direitos Humanos na ordem internacional ainda é mera retórica para os chefes de estado, cujas preocupações precípuas dão conta somente de seu próprio “umbigo”, com questões imediatas e de impactos locais.

Em verdade, as autoridades só agem quando atos ou fatos podem direta e imediatamente afetar seus países, sem se aperceberem de que o que acontece de ruim com o vizinho, ainda que distante, terá um impacto indireto e futuro, mas cujo cuja amplitude de malefícios não se tem como dimensionar no tempo e no espaço.

Clamamos, com este trabalho, que nos aprofundemos nas consequências nefastas da omissão da comunidade internacional em casos tão urgentes e previsíveis quanto o de Ruanda, que deixou milhares de órfãos, famílias destruídas, violência propagada aos países vizinhos por meio dos refugiados.

Deixamos, portanto, a pergunta para reflexão por meio de um pensamento crítico: A comunidade internacional preocupa-se com quem, além dela mesma na sua individualidade?

62 http://www.unictr.org/en/tribunal acessado em 22 de novembro de 2014, traduzido por Vanessa de Paula Rodrigues.

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REFERÊNCIAS

DES FORGES, Alison.Leave None to Tell the Story: Genocide in Rwanda (New York: Human Rights Watch, 1999) in http://www.hrw.org/reports/pdfs/r/rwanda/rwanda993.pdf Acessado em 22 de novembro de 2014 (tradução de Vanessa de Paula Rodrigues).

MENDONÇA, Marina Gusmão de. O Genocídio em Ruanda e a Inércia da Comunidade Internacional. In BJIR, Marília, v.2, nº 2, pp.300-328 Maio/Ago. 2013.

OLIVEIRA, Dennis. Colonialismo Europeu e os 20 anos do genocídio em Ruanda. In Carta Capital. 2014. Disponível em http://negrobelchior.cartacapital.com.br/2014/04/08/colonialismo-europeu-e-os-20-anos-do-genocidio-em-ruanda/ - acessado em 20/11/14.

PINTO, Teresa Nogueira. Ruanda: entre a segurança e a liberdade. Relações Internacionais. Lisboa, nº 32, dezembro/2011, http://www.scielo.oces.mctes.pt/scielo. php?script=sci arttext&pid= S1645-91992011000400004 – acessado em 24 de novembro de 2014).

RWANDA– The preventable genocide. Addis Ababa: Organization of African Unity, 2000. http://www.aegistrust.org/images/stories/oaureport.pdfVisitado em 20 de novembro de 2014 (tradução de Vanessa de Paula Rodrigues).

UNITED NATIONS.Report of the independent inquiry into the actions of the United Nations during the 1994 genocide in Rwanda. www.un.org/news/dh/latest/rwanda.htm. Acessado em 20 de novembro de 2014 (tradução de Vanessa de Paula Rodrigues).

TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL PARA RUANDA. http://www.unictr.org/en/ictr-milestones acessado em 22 de novembro de 2014 (tradução de Vanessa de Paula Rodrigues).

TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL PARA RUANDA. http://www.unictr.org/en/tribunal acessado em 22 de novembro de 2014 (tradução de Vanessa de Paula Rodrigues).

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A TIPIFICAÇÃO DO RACISMO NA INTERNET: ASPECTOS PENAIS E CONSTITUCIONAIS63

Pedro Lima Marcheri64

RESUMO

Este trabalho aborda os conceitos e a sistematização dos crimes de racismo na Internet, especialmente o discurso de ódio xenofóbico e a discriminação de origem. Deste modo, o trabalho tratará das questões relativas à eficácia e aplicabilidade destas normas, à luz da teoria do crime no sistema penal brasileiro e a análise dos aspectos constitucionais raciais. A pesquisa foi realizada por meio de revisão bibliográfica e legislativa do tema, realizando uma análise crítica e apresentação de casos concretos que tangenciam ao tema. Ao final, constatou-se que houve um acréscimo relevante nos relatos de discriminação no período eleitoral de 2014, e que o hiato presente na criminalização destas condutas fragiliza a tutela penal, havendo necessidade de um aprimoramento legislativo no tema.

Palavras-Chave: Racismo; Preconceito; Xenofobia; Internet; Crimes Virtuais.

SUMÁRIO: Introdução. 1. A construção jurídica do racismo no Brasil. 1.1 Xenofobia e Discriminação de Origem. 2. Discriminação praticada no meio eletrônico. Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO

Tema ainda hoje controverso, a discriminação racial faceia uma perspectiva inédita frente ao surgimento de novas tecnologias como a Internet e as redes sociais. Outrora a distritos a um número limitado de espectadores, a discriminação e o preconceito atigiram níveis nunca antes ostentados, ante a possibilidade de disseminação de seu conteúdo para um número indeterminável de usuários destes novos meios.

63 Artigo elaborado com base na pesquisa que embasou a dissertação de mestrado defendida pelo autor em 2014, denominada “O Nazismo, Neonazismo e Outras Espécies de Discriminação no Sistema Penal Brasileiro”, junto ao Centro Universitário Eurípedes de Marília - UNIVEM, aprovada com conceito e nota máximos, sob a orientação do Prof. Dr. Mario Furlaneto Neto.64 Mestre em Direito pelo Centro Universitário Eurípedes de Marília – UNIVEM. Especialista em Direito e Processo Penal pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus. Advogado Criminalista. Membro do Núcleo de Estudos em Direito e Internet (NEPI). E-mail: [email protected].

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Sob a perspectiva criminológica, a rede mundial de computadores se tornou ferramenta para a prática de crimes informáticos, em cujo contexto se insere o racismo e outras espécies de discriminação, ao mesmo tempo em que mostra-se como relevante ferramenta na investigação e denúncia destes delitos. A legislação brasileira gradualmente adapta-se à nova realidade, criando mecanismos que possibilitem a adequação processual e material no combate ao racismo. Contudo, é preciso ponderar que a construção legislação racial brasileira deriva diretamente da congruência entre os fatores de discriminação e a hermenêutica das normas constitucionais aplicáveis ao tema.

A discussão proposta leva ao enfrentamento de algumas questões sumárias como o correto enquadramento das recorrentes práticas criminosas como a ofensa discriminatória e a apologia e divulgação de discursos e doutrinas de ódio via Internet. Ademais, será abordado o hiato na criminalização de fatores discriminatórios não contemplados pela lei como a xenofobia e o preconceito de origem, à luz das normas penais e constitucionais.

Dentro desse contexto, buscar-se-á, por meio de uma revisão bibliográfica, legislativa e jurisprudencial, analisar os aspectos jurídicos do racismo e da discriminação na Internet, não só sob o enfoque material, mas também sob uma dimensão substancial, nomeadamente sob o ponto de vista dos mais recentes casos gerados pelo acirramento ideológico em meio ao cenário eleitoral de 2014.

Para tanto, antes de analisar o enfoque material do crime, necessário se torna promover a apresentação de casos concretos de discriminação, notadamente sob o enfoque do racismo, xenofobia e discriminação de origem, o que se fará a seguir.

1. A CONSTRUÇÃO JURÍDICA DO RACISMO NO BRASIL

A partir do início da década de 1950, após estudos encomendados pela Organização das Nações Unidas, em um empreendimento multidisciplinar que reuniu antropólogos, biólogos, cientistas sociais, médicos e bio-fisiologistas, a expressão raça, foi considerada (ao menos no aspecto científico) como inaplicável ao ser humano, posição esta aceita pela maioria dos Estados hodiernos. Os resultados de tais estudos mostraram que as variações fenotípicas e genéticas do homem, estão englobadas dentro de um prisma de unicidade da espécie Homo sapiens, e que tais variações não afetariam a reprodução e convivência dos seres humanos, que, via de regra, não ocorre nas diferentes raças da animália. Tais variações toleráveis dentro do prisma racial receberam o nome de: continuum da espécie (SILVA JÚNIOR, 2002).

Trilhando este mesmo juízo, o Estado brasileiro ratificou, em janeiro de 1969, a Declaração das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as

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Formas de Discriminação Racial, fixando a inadmissibilidade das condutas preconceituosas na seara pátria. Não obstante, ainda nos dias de hoje é possível identificar diversas manifestações de cunho racista, situações estas que merecem relevo e destaque no tratamento jurídico-penal. Conforme menciona Castro (2010, p. 425) “trata-se, sem dúvida, de um conjunto de realidades humanas e culturais em nosso País que está a desafiar de frente a eficácia social da Constituição democrática de 1988”.

Quando se pensa em questões raciais percebe-se que existe uma ameaça à igualdade, que encontra atualmente amparo constitucional no artigo 5º, XLII, enquanto direito fundamental, posição que realmente, de forma inviolável, ocupa em um Estado Democrático de Direito. Por outra perspectiva, a reserva legal (na construção de tipos incriminadores do preconceito e discriminação) também deve ser tida como objetivo, na equação de compatibilidade entre os direitos fundamentais da liberdade de expressão e da igualdade (SANTOS, 2013b).

A Carta Magna de 1988 cita, de forma direta, o preconceito racial em quatro de seus artigos. Primeiramente a Constituição Federal instituiu como um dos objetivos fundamentais do Estado brasileiro, a promoção do bem social sem preconceitos ou discriminação, dentre outras formas, o de origem, raça e cor65. Dentre os princípios constitucionais brasileiros que norteiam as relações internacionais, destaca-se do texto constitucional o art 4º inciso VIII, que estabelece o repúdio ao racismo66. No rol dos Direitos e Garantias Fundamentais elencados pela Lex Legum Brasileira, destaca-se para o tema em questão o direito de igualdade, seja na esfera pública quanto nas relações intersubjetivas entre particulares67. Por fim, o artigo 5º, XLII68 institui o mandado de criminalização do racismo, fixando os gravames da inafiançabilidade, imprescritibilidade e sujeição à pena de reclusão para a prática do racismo no Brasil.

Gonçalves (2007, p. 105) pondera sobre o mandado constitucional de criminalização do racismo afirmando que:

A Constituição priva o legislador ordinário da discus-são sobre se haverá criminalização; avança muitas

65 “Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: [...] IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (BRASIL, 2014a).66 “Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: [...] VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo;” (BRASIL, 2014a).67 “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...]” (BRASIL, 2014a).68 “5º - XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;” (BRASIL, 2014a).

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vezes a decisão sobre como deverá ser o tratamento penal do assunto. Logo os mandados de criminaliza-ção acabam atuando como uma forma de limitação da atuação do legislador ordinário, tendo em vista que o atendimento daqueles é obrigatório e ainda em al-gumas situações penais são definidos pelos próprios mandados de criminalização.

Com a edição do mandado de criminalização, extingue-se a conjectura acerca da licitude ou não de determinado tema, devendo ser compulsoriamente e integralmente cumprida pelo legislativo. Neste sentido, com base do gravame do mandado constitucional de criminalização do racismo Santos (2013b, pp. 257-258) ratifica a importância da criminalização para a garantia dos direitos fundamentais:

Em termos nacionais, a Constituição também veda o racismo [...] nos termos da lei. Tal lei seria a le-gislação penal específica sobre o preconceito e a dis-criminação. Logo, o texto constitucional, a partir de sua publicação, impôs ao Estado a elaboração de uma legislação própria sobre o racismo, exigindo, assim, a atuação do Direito Penal sobre esse tema, por con-siderar a igualdade um bem jurídico fundamental a uma vida digna, passível, portanto, de tutela por parte do Direito Penal.

Contemporaneamente, as obras que tratam sobre o tema convergem ao entendimento da restringibilidade das doutrinas de ódio e discursos racistas, relativizando a liberdade de expressão. Não obstante, não há a devida verticalização do estudo no sentido de abordar individualmente os fatores discriminatórios contemplados ou não na legislação infraconstitucional, refletindo sobre o aporte destes à hermenêutica constitucional contida no mandado de criminalização do racismo.

Parte-se da premissa de que a discriminação é uma forma genérica de uma prática de intolerância, sendo o racismo uma de suas espécies. Embora a legislação racial brasileira estabeleça os fatores de discriminação69 criminalizáveis

69 Por fator de discriminação se entende conteúdo ou característica que origina o preconceito contido na ofensa. A intolerância poderá ser praticada tendo como base a raça, a cor da pele ou outros atributos físicos, ao passo que também poderá se originar das convicções filosóficas ou religiosas, a exemplo da intolerância religiosa, ou mesmo por questões político-sociais como a

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(raça, cor, etnia, religião e procedência nacional) e, consequentemente, sua abrangência, não há definição clara de quais destes fatores correspondam à prática do racismo, à luz do artigo 5º, XLII da Constituição. Da mesma forma, muito embora a norma constitucional trate da temática racial, não há qualquer definição jurídica sobre seus termos; conceitos como raça, racismo e discriminação estão à mercê da hermenêutica casuística adotada pelo aplicador da lei, o que dificulta a uniformização jurídica na questão.

Com base na premissa de que a Constituição atual é mais abrangente que suas antecessoras com relação à criminalização do racismo, a mais desatenta leitura da Lei Maior infere a aparente sinonímia dos termos preconceito, diferença de tratamento, racismo e discriminação, levando-se em consideração que o constituinte assegurou o relevo à prática do racismo, condensando o núcleo do mandado no referido termo (BORNIA, 2008).

Seguindo o mesmo raciocínio Santos (2013a, p. 238) acentua que:

A lei não define preconceito. Os brasileiros às vezes usam os termos preconceito, discriminação, racismo e desigualdade permutavelmente. O preconceito tem múltiplos significados no Brasil: ódio, intolerância, noções preconcebidas sobre outra pessoa e deprecia-ção verbal. A expressão de ódio, como um explícito crime de ódio de grupos de inspiração nazista, é a for-ma mais fácil de preconceito analisado pelos juízes. Mas a noção de preconceito também se refere a mau tratamento velado por um perpetrador que age com base em noções preconcebidas - o que é um tipo mui-to diferente de preconceito e difícil de ser assimilado pelos tribunais brasileiros.

Embora textualmente a norma constitucional permaneça a mesma, verifica-se que a legislação racial brasileira sofreu alterações nos fatores por ela estabelecidos. Inicialmente, a Lei 7.716/1989 aportava dois fatores: raça e cor; contudo, com a promulgação da Lei 9.459/1997, a legislação racial passou a conter 5 fatores discriminatórios: raça, cor, etnia, religião, procedência nacional.

Para Dimoulis (2002) o esteio da aplicabilidade do direito penal constitucional é a concepção dos direitos humanos em sua acepção da igualdade entre os homens e na reflexão dos óbices à sua realização. Ademais, mostra-se impróprio o combate direto às manifestações do crime, sendo necessário o esforço de mitigar suas raízes, a fim de superar o tratamento paliativo de

origem étnica ou nacional do indivíduo.

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questões que se perpetuarão no contexto social. Em congruência com os apontamentos do autor, é necessária a reflexão sobre os temas relacionados aos crimes de ódio no Brasil, tanto para proporcionar a efetivação da igualdade constitucional, quanto para garantir a segurança jurídica inerente à legalidade penal, definindo o alcance das terminologias utilizadas nesta estirpe de delitos.

A Lei 7.716 foi promulgada em 5 de janeiro de 1989, entrando em vigor na data de sua publicação, ou seja, um ano após a promulgação da Constituição Cidadã. Também ficou conhecida como Lei Caó, em homenagem ao seu idealizador Carlos Alberto Caó Oliveira dos Santos. Trata-se de uma lei que prevê quatorze novos tipos penais resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Rothenburg (2008, p. 82) leciona que a Lei 7.716/1989 ao definir “os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor”, teve seu alcance ampliado pela Lei 9.459/1997, aportando “os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de etnia, religião ou procedência nacional”. Perceba-se que ficaram de fora, pelo menos, as discriminações com base em gênero, orientação sexual e procedência regional, provavelmente devido a um descuido de previsão legislativa, ou a revelar – ainda que inconscientemente – uma política criminal específica?70

Em linhas gerais, os delitos instituídos pela lei contemplam situações nas quais o agente impede, recusa ou dificulta o acesso de alguém a oportunidades sociais, tais como ascensão funcional no emprego, inscrição em cursos, casamento, dentre outras, bem como o impedimento, recusa ou negativa de acesso a locais públicos, particulares, ou abertos ao público, ao exemplo de comércios, instituições de ensino ou hospedagens, em razão da discriminação ou preconceito relacionados à raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Inicialmente instituído pela Lei 8.081/1990 e com redação atual dada pela Lei 9.459/1997, a norma penal do artigo 2071 criminaliza as ofensas

70 Os crimes contidos nos Estatutos Federais Norte-Americanos (U.S.C) preveem a punição do discurso de ódio baseado em outros fatores não contemplados pela legislação brasileira. A Seção 249, por exemplo, possibilita a tipificação da discriminação com base na raça, cor, religião, origem nacional, gênero, identidade de gênero, orientação sexual ou deficiência, sejam estes reais ou presumidos. 71 “Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Pena: reclusão de um a três anos e multa”.§ 1º Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo. Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.§ 2º Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza: Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.§ 3º No caso do parágrafo anterior, o juiz poderá determinar, ouvido o Ministério Público ou a pedido deste, ainda antes do inquérito policial, sob pena de desobediência:

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discriminatórias ou preconceituosas dirigidas à determinada coletividade, por motivos de raça, cor etnia, religião ou procedência nacional. Paralelamente, a Lei 9.459/1997 instituiu modalidade qualificada do crime de injúria, conhecida como injúria discriminatória (artigo 140, §3º CP)72 coibindo a utilização de elementos preconceituosos contra a honra do ofendido73.

Por conseguinte, deve-se realizar a diferenciação das ofensas discriminatórias em duas categorias distintas: enquanto uma tem como destinatário pessoa determinada, a outra se volta contra coletividade ou segmento social. No primeiro caso, a tipificação penal da conduta corresponde ao artigo 140 §3º do Código Penal, enquanto que no segundo caso há a incidência do artigo 20 caput da Lei 7.716/1989. Assim, no caso de apologia às doutrinas de ódio e discriminação ou efetiva prática de comentários preconceituosos contra determinadas minorias ou segmentos sociais, ou mesmo nas ofensas injuriosas diretas, a tipificação penal acaba se restringindo às duas figuras penais ora arroladas.

Lafer (2005) construiu lições relevante sobre o tema utilizando a interpretação sistemática das normas internacionais de direitos humanos e a integração do bloco de constitucionalidade brasileiro. Segundo o autor, a construção jurídica do racismo não deve se pautar na dimensão biológico-científica da raça ou etnia; sua hermenêutica deve verter-se no sentido de considerar a discriminação racial como um reprovável fenômeno histórico-cultural.

1.1. XENOFOBIA E DISCRIMINAÇÃO DE ORIGEM

Atualmente, no Brasil e no mundo, ocorre o acirramento de conflitos étnicos motivados principalmente pelo crescimento do fluxo migratório de países pobres para nações com maior desenvolvimento socioeconômico. Este

I - o recolhimento imediato ou a busca e apreensão dos exemplares do material respectivo;II - a cessação das respectivas transmissões radiofônicas, televisivas, eletrônicas ou da publicação por qualquer meio; III - a interdição das respectivas mensagens ou páginas de informação na rede mundial de computadores. § 4º Na hipótese do § 2º, constitui efeito da condenação, após o trânsito em julgado da decisão, a destruição do material apreendido” (BRASIL, 2014d). 72 “§ 3o Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência: Pena - reclusão de um a três anos e multa” (BRASIL, 2014b).73 Note-se que, de certa forma, a inserção deste tipo penal acrescentou novos fatores discriminatórios ao rol previsto pela Lei 7.716/1989. O atributo subjetivo da deficiência ou condição idosa da vítima é também considerado, neste caso como uma forma de discriminação penalmente relevante.

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cenário proporciona o surgimento de movimentos que supervalorizam a cultura nacional, rejeitando a influência estrangeira na cultura e composição social. O fastígio desta corrente negativa é xenofobia, a saber, o ódio exacerbado e injustificado contra imigrantes, sua cultura e nacionalidade, podendo materializar-se em ofensas verbais ou físicas. Como resultado final, constata-se a agremiação ideológica comum em uma doutrina ou grupo de ódio, à exemplo do movimento neonazista.

O critério da ascendência deverá ser considerado na hermenêutica do tema. Infelizmente são constantemente alvos de preconceito devido à sua origem nacional, etnias de grande representatividade do Brasil como portugueses, libaneses, africanos e paraguaios. Não obstante a equidistância da tutela e do bem jurídico, todos estes segmentos estariam igualmente tutelados pela legislação penal? Em última instância, a ofensa de ódio irrogada contra um paraguaio ou lusitano, ostentaria a mesma reprovabilidade social que àquela praticada contra um negro ou nordestino?

Vizentini (2010, p. 26) correlaciona a estagnação da economia dos países europeus com a inversão dos fluxos migratórios, que acabaram por desnaturar a classe média, favorecendo o renascimento de doutrinas totalitárias baseadas no nazismo, que ostentavam feições xenofobias:

Em certa altura dos anos 70, os fluxos migratórios, que desde as grandes navegações eram do Norte para o Sul, inverteram-se e passaram a ser do Sul para o Norte, a partir de uma combinação de dois fatores in-terrelacionados: um, como foi dito, o problema de-mográfico em si mesmo; outro, a reorganização da economia mundial, que fazia com que alguns setores econômicos do Primeiro Mundo necessitassem de um tipo de mão-de-obra mais barata e fizesse, efetiva-mente um apelo a vinda de trabalhadores estrangeiros [...] que iam encarregar-se de setores que não tinham a margem de lucratividade suficiente para subsistir. A ideia de “invasão dos bárbaros” vai se arraigando no espírito dos europeus. Dessa forma, a Europa aparece como velho Império Romano em declínio e os bárba-ros, aqueles de pele morena que vão “invadir e cons-purcar” os modos de vida que os ocidentais detinham.

Além da xenofobia, que juridicamente representa uma espécie de discriminação nacional, no caso do Brasil destacam-se também os conflitos

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populacionais internos. As regiões Sul e Sudeste, que concentram o núcleo econômico brasileiro, tradicionalmente ostentam casos de discriminação e ódio contra migrantes nordestinos e nortistas, seja em relação à seus costumes, atributos físicos ou condição social.

Para Salem (2010, p. 41) os grupos neonazistas brasileiros acabaram absorvendo em sua doutrina ultranacionalista o ódio contra nordestinos e nortistas: “Além de se posicionarem contra judeus, negros, mulatos, homossexuais, as multinacionais e os estrangeiros, incorporaram também o ódio aos migrantes nordestinos pobres”.

Há um hiato nos delitos de discriminação e preconceito, posto que a doutrina majoritária defende a diferenciação das expressões “origem” (empre-gada na injúria discriminatória) e “procedência nacional” (contida na prática de racismo). Neste diapasão, Silveira (2007, p. 101-102) afirma que a expressão nacional criminalizaria apenas as origens étnicas e ascendências estrangeiras, sendo atípicas as discriminações regionais – nordestinos, gaúchos, etc.74:

A expressão procedência nacional significa local de origem, proveniência, porém não se prende ao requi-sito da exterioridade geográfica, pois engloba, para efeitos penais, a ascendência. [...] a despeito de terem nascido no território brasileiro, cultivam laços com a comunidade nacional de seus antepassados. As colô-nias portuguesa, italiana, alemã, japonesa, libanesa, por exemplo [...].A segunda e última observação refere-se à partícula “nacional”. Excluiu-se, por meio dela, a relevância penal, sob o enfoque da lei examinada, da discrimi-nação ou preconceitos em razão de regionalismos. Exige-se, por assim dizer, um confronto de naciona-lidades e não simplesmente regiões. Com isso, as ri-validades regionais verificadas no território brasileiro são indiferentes do ponto de vista da Lei 7.716/89.

De certo que os termos legais devem ser modulados a fim de não ferir a igualdade e a dignidade humana, contudo, há certa liberdade individual para a construção de críticas e posicionamentos político-filosóficos. Nestes termos, o estabelecimento de limites claros de licitude e criminalização é essencial para que o indivíduo tenha a exata noção das condutas reprovadas pelo Direito,

74 Com posicionamento antagônico, Silva Júnior (2002, p. 92) afirma que a “procedência nacional como fator de discrímen incrimina a xenofobia em todas as suas formas de manifestação”.

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pautando-se sob a égide da irrepreensibilidade. A legalidade penal-constitucional se mistura com o conflito liberdade x igualdade, na medida em que é necessária a ponderação destas garantias para alcançar equilíbrio, pacificação social e segurança jurídica.

Fato típico ou indiferente penal, a xenofobia é uma problemática so-cial em franca expansão no Brasil, que merece a tutela penal eficaz. Seu trata-mento jurídico desemboca invariavelmente nas relações e no conteúdo publi-cado na rede mundial de computadores, disseminando o arcabouço preconcei-tuoso da sociedade atual. As consequências jurídicas destes hiatos na legislação penal, notadamente no que tange à tipificação das condutas discriminatórias na Internet serão enfrentadas a seguir.

2. DISCRIMINAÇÃO PRATICADA NO MEIO ELETRÔNICO

Estudar os delitos raciais desconsiderando o contexto atual em que tais condutas são praticadas representa uma postura incauta. O exegeta não deve se ater à exemplos antigos de práticas racistas, como no caso de pessoa que tem sua entrada negada em uma barbearia ou termas em razão de sua cor, conforme prevê o artigo 1075 da Lei Caó. No caso da divulgação de ideias ou doutrinas de ódio a situação é idêntica: as antigas panfletagens, cartazes e anúncios fo-ram substituídos por publicações eletrônicas na rede mundial de computadores. A apologia ao racismo e ofensas discriminatórias, que outrora permaneciam adstritas ao modo e local físico no qual eram efetuadas, contemporaneamente foram exponencialmente potencializadas através das mais diversas aplicações e sites na Internet.

Parte-se do pressuposto de que tipos penais abertos podem ser pratica-dos por qualquer meio eleito pelo sujeito ativo, inclusive por meio da Internet como, in casu, se opera com a apologia ao racismo e as ofensas discrimina-tórias. Tem-se, portanto, o dispositivo informático como instrumento para a prática da infração penal e a Internet como o aplicativo que leva à quebra das barreiras de tempo e espaço, contribuindo, sobremaneira, para potencializar os efeitos do crime.

A evolução da sociedade contemporânea evoca desafios que devem ser enfrentados pela ordem jurídica utilizando instrumentos compatíveis com a efetiva tutela dos valores sociais em jogo, arduamente reconhecidos e tutelados após longo processo de sedimentação histórica. O Direito tradicional tem de enfrentar novos paradigmas, novas realidades (SANTOS, 2013b).

75 “Art. 10. Impedir o acesso ou recusar atendimento em salões de cabeleireiros, barbearias, termas ou casas de massagem ou estabelecimento com as mesmas finalidades. Pena: reclusão de um a três anos.” (BRASIL, 2014d).

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Na reunião do Comitê Europeu de Eliminação da Discriminação Racial, ocorrida em 2012, na cidade de Genebra, foi ratificada a relevância na Internet no contexto atual e o consequente agravamento das questões relacionadas ao ódio racial também na Europa:

A dignidade, no que tange ao aspecto da liberdade, de-manda liberdade de expressão, mas, dignidade limita-dora sugere que o discurso de ódio ou racista irrestrito não deve ser permitido, já que avilta tanto as vítimas, quanto a norma social da comunidade. Enquanto al-cançar um equilíbrio adequado entre estes dois essen-ciais direitos humanos em um cenário local exige um esforço consistente, torna-se uma tarefa muito mais árdua considerando o contexto globalizado da contem-poraneidade (PALAIS DES NATIONS, 2012)76.

Como consequência, a rede mundial de computadores se tornou o principal modus operandi adotado pelos grupos de ódio na divulgação de suas doutrinas, à exemplo do nazismo77, neonazismo, hooliganismo e ideias de matriz xenofóbicas. Ademais, os fóruns, chats e principalmente as redes sociais proporcionaram maior acessibilidade às publicações e imagens, como nenhuma outra mídia clássica como a televisão ou o rádio.

Nesta tônica, Santos (2013b, p. 237) cita que:

O estigma da raça com consequente preconceito e discriminação, sempre estiveram presentes na histó-

76 Tradução realizada pelos autores do presente trabalho. Texto original em inglês: “Dignity as liberty demands freedom of speech, but dignity as constraint suggests that unfettered hateful or racist speech should not be permitted because it demeans the victims as well as the social rule f community. While achieving a balance between these two important human rights values demands a consistent effort on a local setting, it becomes much more difficult considering the global context of contemporaneity”.77 Marcheri (2013) pondera que o nazismo em si não é considerado crime no Brasil, tampouco a prática de apologia ao referido regime. Somente a realização de condutas como a divulgação ou veiculação da suástica poderá eventualmente configurar o aludido delito do artigo 20 §1º. A exortação ao regime nacional-socialista poderá ser inserida no contexto de outra espécie de discriminação concomitantemente praticada na Internet para adquirir relevância penal, no bojo delitivo desta discriminação e não como tipo penal autônomo. Ademais, a criminalização do discurso preconceituoso, baseado em doutrina de ódio, é necessariamente condicionada aos fatores de discriminação contidos na Lei 7.716/1989, a saber, raça, etnia, cor, religião e procedência nacional. Outras formas não contempladas pela lei, como a discriminação de gênero, política ou homofóbica, são consideradas indiferentes penais.

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ria da humanidade, como por exemplo, a Ku-Klux--Klan, o nazismo, ou ainda a escravidão no Brasil. Modernamente, diante das Constituições Federais democráticas, questiona-se até que ponto a liberdade de expressão, como direito fundamental, pode servir como justificativa de tais práticas, e onde se encontra o limite imposto pelo direito fundamental de igual-dade, amparado pela dignidade humana a limitar as manifestações de preconceito e discriminação ra-cial, com a consequente resposta criminal de efetiva atuação, como forma de garantir este último direito, conforme já abordado. Essa discussão recebeu novo paradigma diante do surgimento da rede mundial de computadores como mais uma forma proporcionada pelos avanços tecnológicos de se manifestar a liber-dade de expressão, mais um veículo de comunicação.

Santos (2013b) cita o caso da modelo angolana Leila Lopes, que em 2011 foi discriminada após ter sido eleita miss universo. Parte das ofensas teriam partido justamente da seção brasileira do fórum Stormfront78, que é hospedado em um servidor localizado no exterior. Em julho do mesmo ano, uma brasileira (de feição parda) que foi eleita miss Itália também foi ofendida por usuários do mesmo endereço eletrônico (G1, 2014).

Outro exemplo relevante é mencionado por Marcheri e Furlaneto Neto (2014), no qual o Tribunal de Justiça de São Paulo confirmou a condenação de dois jovens, por veicular material conteúdo de cunho discriminatório em endereços eletrônicos na Internet. O caso teria vindo à tona, após um jornal local ter divulgado as imagens das páginas pessoais dos acusados na extinta rede social Orkut, sendo nelas encontrados diversas imagens, inclusive dos próprios acusados fazendo alusões à saudações e lemas nazistas e neonazistas, e vestindo a indumentária típica destes movimentos. Também foi constatada a veiculação de um vídeo no qual duas pessoas, aparentemente homossexuais, eram executados por integrantes de grupos de ódio que exibiam o pavilhão nazista79. Ratifica-se que o discurso de ódio homofóbico sequer é contemplado pela Lei 7.716/1989.

78 O Stormfront, um dos mais relevantes grupos neonazistas, de incidência mundial, disponibiliza um fórum online que fomenta uma vasta quantia de material de apologia ao nazismo e à discriminação racial. Além da suástica, a página ostenta símbolo neonazista com os dizeres “White pride world wide” (Orgulho branco em todo o mundo).79 Apelação nº 0022111-77.2007.8.26.0019, Americana - SP, condenação confirmada pela 11ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, incumbido da relatoria o magistrado Antonio Manssur.

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Diante deste panorama, a relação entre o racismo e a Internet não passou desapercebida pelo legislador brasileiro. Vários foram os adventos legais que aprimoraram a criminalização neste ponto: a Lei 9.459/1997 que inseriu a forma qualificada do racismo, quando é praticado por “meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza” com pena de 2 à 5 anos; Lei 12.288/2010 que possibilita a “interdição das respectivas mensagens ou páginas de informação na rede mundial de computadores”; e finalmente a Lei 12.735/2012, a qual inseriu a medida liminar de “cessação das respectivas transmissões eletrônicas ou publicação por qualquer meio”, todas aportadas no bojo da Lei 7.716/1989.

A Lei 12.965, de 23 de abril de 2014, também denominada de Marco Civil da Internet, no artigo 11 e seu parágrafo 2º80 estabeleceu que as empresas que operem as atividades de coleta, armazenamento, guarda e tratamento de registros, de dados pessoais e comunicações (esta última congruente ao caso) nos provedores de conexão e de aplicações de Internet deverão sujeitar-se à legislação pátria, desde que ofertem serviço ao público brasileiro ou tenham ao menos uma sede em território nacional. Ademais, fixou em seus artigos 13 e 1481 o prazo obrigatório para armazenamento dos registros de conexão e de aplicações de Internet, em 1 ano e 6 meses, respectivamente. Anteriormente, ante à ausência de legislação específica, o registro era facultativo; em razão des-ta lacuna, caso não houvesse o armazenamento, havia a dificuldade ou mesmo a impossibilidade de apuração do delito.

Em tese, o disposto legal eliminaria o paradigma existente na intangibilidade legal dos servidores estrangeiros em funcionamento no Brasil ao vinculá-los à legislação nacional quando exercerem suas atividades no país. Abre-se a oportunidade para que o magistrado determine a interdição liminar ou definitiva do conteúdo ofensivo com base na Lei 7.716/1989 na

80 “Art. 11. Em qualquer operação de coleta, armazenamento, guarda e tratamento de registros, de dados pessoais ou de comunicações por provedores de conexão e de aplicações de internet em que pelo menos um desses atos ocorra em território nacional, deverão ser obrigatoriamente respeitados a legislação brasileira e os direitos à privacidade, à proteção dos dados pessoais e ao sigilo das comunicações privadas e dos registros. [...] § 2o O disposto nocaputaplica-se mesmo que as atividades sejam realizadas por pessoa jurídica sediada no exterior, desde que oferte serviço ao público brasileiro ou pelo menos uma integrante do mesmo grupo econômico possua estabelecimento no Brasil” (BRASIL, 2014e).81 “Art. 13. Na provisão de conexão à internet, cabe ao administrador de sistema autônomo respectivo o dever de manter os registros de conexão, sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo de 1 (um) ano, nos termos do regulamento.Art. 15. O provedor de aplicações de internet constituído na forma de pessoa jurídica e que exerça essa atividade de forma organizada, profissionalmente e com fins econômicos deverá manter os respectivos registros de acesso a aplicações de internet, sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo de 6 (seis) meses, nos termos do regulamento” (BRASIL, 2014e).

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oportunidade de o servidor estrangeiro preencher os requisitos do artigo 11 do Marco Civil da Internet. Outrossim, o armazenamento dos registros de conexão proporciona a rastreabilidade das condutas praticadas no meio da rede mundial de computadores, auxiliando a investigação.

Pondera-se que a eficácia da medida judicial que determina a exclusão do conteúdo racista na rede mundial de computadores é parcial, pois cinge-se às grandes empresas prestadoras de serviços na Internet. Na hipótese em que não exista uma filial nacional da empresa prestadora de serviços, dificilmente o Estado brasileiro conseguirá impor seu regramento específico na moderação do conteúdo. Com efeito, esta é a situação que impera, visto que o material de ódio é geralmente hospedado em servidores alternativos, que não possuem qualquer vinculação com o Estado brasileiro, os quais obedecem à legislação do país em que estão hospedados. Toda vez que houver transnacionalidade do delito ter-se-á, enquanto imprescindível para a repressão criminal, a existência de acordos de cooperação bilaterais, já existente, por exemplo, entre Brasil e EUA, que possibilita acesso aos registros de conexão e aplicações de internet, composto por número de IP, data, horário e fuso horário da conexão investiga-da, além dos dados cadastrais do titular da conta, sem, no entanto, viabilizar acesso a conteúdo. A ausência de acordos de cooperação bilaterais torna-se um grande entrave para a investigação de crimes praticados por meio do computa-dor (MARCHERI, 2014).

No caso específico da tipificação penal, há influência direta da natureza da ofensa e dos fatores discriminatórios empregados. Se o conteúdo publicado na Internet for voltado para pessoa certa e determinada, poderá ser configurado o delito do artigo 140, §3º do Código Penal. Não obstante, a tipificação estará vinculada com a aferição de preconceito de raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência. Caso a ofensa se en-quadre nos termos do artigo 20 da Lei 7.716/1989, os fatores discriminatórios criminalizáveis serão apenas raça, cor, etnia, religião e procedência nacional. Observa-se que na clara distinção entre um e outro a procedência nacional foi substituída por origem, no caso da injúria discriminatória, bem como houve o acréscimo da discriminação contra pessoa idosa ou deficiente.

A adulteração nas elementares dos tipos penais tem como consequên-cia prática a atipicidade da divulgação ou publicação na Internet de quaisquer doutrinas, ideias ou declarações de ódio contra tais segmentos sociais. Em ou-tras palavras, a criminalização no caso dos idosos/deficientes e contra grupos sociais internos (nacionais), a exemplo dos nordestinos e nortistas, somente ocorre quando a discriminação consubstanciar um delito de injúria, em razão da previsão específica da elementar “origem” – mais abrangente. Na hipótese do discurso de ódio contra estes mesmos grupos não há qualquer consequên-

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cia penal, consubstanciando, portanto, fato atípico. A elementar “procedência nacional”, em tese, contemplaria apenas a discriminação xenofóbica, ou seja, contra grupos estrangeiros.

Teorizando a questão, tem-se que a legislação penal brasileira coíbe, no caso da discriminação contra estrangeiros, as publicações gerais e específi-cas, enquanto que no caso dos grupos nacionais a tutela é parcial, sendo con-templado apenas a injúria que utilize como base tais atributos.

Em 2012, uma estudante de Direito foi condenada pela 1ª instância fe-deral à pena de um ano e cinco meses, convertida em prestação de serviços à comunidade, nos termos do artigo 20, caput, da Lei 7.716/1989, por ter publicado na rede social Twitter a seguinte declaração: “Nordestino não é gente. Faça um favor a SP: mate um nordestino afogado”. O fato, que gerou repercussão nacio-nal, teria ocorrido em face de veiculação de mensagem após a vitória de Dilma Rousseff nas eleições presidenciais de 2010 (BRASIL 247, 2014)82. No referido caso, a apologia ao preconceito com base na origem regional de grupo específico, gerou impasse quanto à tipificação. Conjectura-se que, utilizando-se da mesma hermenêutica gramatical sustentada pela doutrina, em tese a conduta da ré, embo-ra explicitamente reprovável, não poderia ser considerada como crime.

Mais uma vez houve o acirramento nas tensões étnicas no Brasil deflagrado pelo cenário eleitoral de 2014. Os discursos e ofensas de ódio ocorreram primordialmente por meio da rede mundial de computadores, com especial destaque para as redes sociais. Estas exibiram, mais uma vez, inúmeros casos de preconceito contra a região Nordeste e Norte, retornando as antigas feições do bairrismo, ora materializado no eixo político PT e PSDB.

A Internet, sobretudo via Twitter e o Facebook, se consolida como palco profícuo de denúncias relacionadas a racismo, homofobia e xenofobia. Os vilipêndios contra a região do Nordeste brasileiro foram motivados principalmente pela reeleição da presidente Dilma Rousseff, que obteve número de votos superior na região Nordeste, e a preponderância dos partidos políticos da base governamental nestes Estados. Um deputado eleito em São Paulo sugeria a divisão do país em sua página eletrônica pessoal: “Já que o Brasil fez sua escolha pelo PT entendo que o Sul e Sudeste (exceto Minas Gerais e Rio de Janeiro que optaram pelo PT) iniciem o processo de independência de um país que prefere esmola o trabalho, preferem a desordem ao invés da ordem, preferem o voto de cabresto do que a liberdade”. O texto chegou a ter quase cinco mil compartilhamentos (AGÊNCIA ESTADO, 2014).

Um morador da favela do Aglomerado da Serra (de feições pardas), em Belo Horizonte, foi hostilizado na Internet com ameaças e vitupérios

82 Autos nº 0012786-89.2010.403.61.81, da 9ª Vara Federal Criminal em São Paulo - SP. Juíza Monica Aparecida Bonavina Camargo. Julgamento em 03 de maio de 2012.

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racistas, após se recusar a cumprimentar o candidato à presidência Aécio Neves. O candidato esteve na favela para um dos últimos compromissos de campanha do primeiro turno. Durante a caminhada Aécio estendeu a mão para Fábio Martins, que recusou o cumprimento (PEIXOTO, 2014). Os agressores vislumbraram tal situação como o paradigma da pretensa predileção do eleitorado pobre, negro e nordestino no que tange às escolhas políticas do espectro político esquerdista brasileiro.

O fastígio deste panorama ocorreu quando usuários da Internet suscitaram movimentos separatistas no Brasil, veiculando, através das redes sociais, um mapa do Brasil picturado em um muro ideológico, fracionando o território nacional entre as regiões norte e sul. Houve aqueles que defendessem a construção de uma estrutura semelhante à Berlim, realizando apologia ao antigo muro que dividiu as Alemanhas Ocidental e Oriental do pós 2ª Guerra até 1989 (ONOFRE, 2014).

Outro dado interessante é que as eleições geraram um aumento de 95% nos relatos oficiais de crimes eletrônicos desta estirpe. Entre 1º de julho e 21 de outubro foram registradas 10.609 ocorrências na Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos, uma rede de denúncias anônimas contra os direitos humanos. No mesmo período do ano passado foram feitas 5.416 denúncias. As reclamações foram recebidas pela ONG Safernet (AGÊNCIA ESTADO, 2014).

Sob a ótica penal, grande parcela das práticas discriminatórias, ocorridas dentro e fora do contexto das eleições presidenciais de 2014, não se enquadram nos delitos previstos pela Lei 7.716/1989. Para a tipificação penal dos delitos de preconceito e discriminação na Internet é preciso ponderar o fator de discriminação utilizado na ofensa, sua generalidade ou particularidade (enquadrando no artigo 20 da Lei Caó ou 140, §3º, do Código Penal), e, no caso da inexistência da tutela do fator discriminatório, se o preconceito realizado se mistura com outras espécies criminalizadas como o racismo.

CONCLUSÃO

O bloco de constitucionalidade pátrio assegura a seara de direitos fundamentais da pessoa humana, em patamar mínimo suficiente, na tutela da dignidade. Embora o mandado constitucional de criminalização do racismo apresente como núcleo textual a expressão “prática do racismo”, a legislação penal racial sofreu, ao longo do tempo, modificações nos fatores de discriminação criminalizáveis. Adequando o texto da Lei 7.716/1989 aos conceitos extraídos dos estudos de vanguarda no tema – os quais resultaram na inadmissibilidade da existência de raças humanas – a tipificação da etnia, religião e procedência nacional foram um avanço à tutela do tema. Igualmente, a injúria discriminatória

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aportou aos fatores discriminatórios o preconceito motivado pela origem, além da condição de pessoa idosa e deficiente.

Os aprimoramentos legislativos específicos da Lei 7.716/1989 incor-poraram novas questões da rede mundial de computadores, como a interdição liminar do conteúdo disponibilizado, ou o bloqueio dos sites e páginas eletrôni-cas. Ademais, com a vigência do Marco Civil da Internet, os registros de cone-xão e aplicações, anteriormente de guarda facultativa, devem ser armazenados por prazo razoável, favorecendo a investigação policial, facilitando a identifica-ção da materialidade e autoria do crime.

Verificou-se um hiato na legislação racial brasileira, especialmente no que tange aos fatores discriminatórios não contemplados pelos tipos penais, fazendo com que a disseminação de conteúdo de apologia ou discurso de ódio contra determinadas minorias ou grupos sociais fossem considerados como indiferentes penais, a exemplo da homofobia. Ademais, a questão da xenofo-bia e da discriminação de origem padece de lacuna semelhante: enquanto a Lei 7.716/1989 emprega a elementar procedência nacional (interpretada pela doutrina de modo restritivo) que englobaria somente a xenofobia, a injúria discriminatória esposa o termo origem, possibilitando a incriminação do pre-conceito originado por fatores internos, como o recorrente preconceito contra nordestinos e nortistas.

Sob o ponto de vista criminal, no caso da xenofobia e discriminação de origem, verifica-se que a tipificação penal é estruturada da seguinte forma pela doutrina: no caso da xenofobia, se a ofensa for individual, há a ocorrência da in-júria discriminatória (art. 140, §3º, CP), e no caso do discurso de ódio, tipifica--se nos termos do artigo 20 da Lei Caó; na discriminação de origem (nacional) o discurso de ódio não se adequa à criminalização do artigo 20 da Lei Caó, sendo considerado um indiferente penal.

Paralelamente, a base discriminatória no Brasil não é uniforme. Isto im-porta dizer que existem determinadas espécies de discriminação com alta repro-vabilidade social, enquanto outras transcendem ao arrepio da lei penal, eviden-ciando uma grande falácia moral sobre o tema racial contemporâneo. Qual seria a real diferença entre discriminar-se um negro de um boliviano ou lusitano? Muito embora, defenda-se que ambos os preconceitos representam a mesma lesividade, a repercussão gerada pelo primeiro caso é exponencialmente maior.

Ademais, concluiu-se que a questão do bairrismo e movimentos sepa-ratistas no Brasil tomou novo fôlego, principalmente nos meios eletrônicos, com o resultado das eleições no ano de 2014. A formação do estereótipo do eleitorado brasileiro, que favoreceu o eixo governamental, principalmente nos Estados do Norte e Nordeste brasileiro, acabou por deflagrar inúmeras práticas discriminatórias contra a população destas regiões.

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Infelizmente, não há subsídio legal para o enquadramento penal de grande parcela destas lastimáveis manifestações de intolerância. A adequação da legislação de repressão à discriminação e ao preconceito proporciona o subs-trato jurídico para a inclusão social. Como medida de aprimoramento, sugere-se a modificação da expressão procedência nacional, contida da Lei 7.716/1989, para discriminação de origem, além da incorporação dos outros fatores contidos no artigo 140, §3º, do Codex Penal.

Na medida em que o Direito cumpre sua função como instrumento de controle social e condicionamento positivo das condutas, a tendência é que a composição da sociedade brasileira se torne mais agregadora e plural, promo-vendo a inclusão social das minorias discriminadas, que contemporaneamente reivindicam para si a proteção das leis raciais no Brasil. Desta forma, a constru-ção de uma sociedade fraterna baseada no respeito e tolerância dependeria do aprimoramento da legislação racial.

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AS CONTROVÉRSIAS DAS DECISÕES JUDICIAIS NA CONCORRÊNCIA ÀS VAGAS RESERVADAS EM CONCURSO PÚBLICO AOS PORTADORES DE DEFICIÊNCIA

AUDITIVA UNILATERAL

Leyde Aparecida Rodrigues dos Santos83

Renata Cristina da Silva Nunes84

RESUMO

Há decisões judiciais que não reconhecem a surdez unilateral como deficiência auditiva no quadro de vagas para portadores de necessidades especiais em concursos públicos. Várias decisões são fundamentadas no artigo 3º, inciso I, do Decreto 3.298 de 1999, que acolhe a surdez, como: “toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano”. Cumpre-nos assinalar que o Decreto 5296/04 sobrepôs o Decreto 3298/99 trazendo novas definições no tocante a deficiência auditiva, considerando-a perda bilateral, parcial ou total de quarenta e um decibéis (dB - medida da razão entre duas quantidades, sendo usado nas medições acústica, física e eletrônica) em frequências determinadas. Sem infiltrar na parte técnica sobre o mecanismo da audição, que não é o objetivo dessa discussão, é cediço fazer um breve comentário sobre a questão no decorrer desse estudo. O ponto de partida ilustrado por vários julgados contraditórios é demonstrar que o portador de necessidades especiais, no nosso caso, o considerado deficiente auditivo sendo unilateral ou bilateral deve e pode ter condições e oportunidades iguais pela concorrência no concurso público. Baseando-se nos direitos fundamentais, vale lembrar o empenho dos empregadores e da sociedade, para que a inserção social dessas pessoas torna-se imprescindível, tornando-os cidadãos plenos como forma de reconhecimento de sua dignidade.

Palavras-Chaves: Deficiente Auditivo; Interesse Social; Audição Unilateral; Concurso Público.

SUMÁRIO: Introdução. 1. Audição humana: breves comentários. 2. Direitos

83 Fonoaudióloga – Especialista em Audiologia. Advogada. Mestranda em Concretização dos Direitos Sociais, Difusos e Coletivos no UNISAL- Lorena/SP. E-mail: [email protected] Advogada- Especialista em Direito Civil e Direito Processual Civil. Orientadora de Estágio Supervisionado no Núcleo de Prática Jurídica no Unisal- Lorena-SP. Mestranda em Direitos Sociais, Econômicos e Culturais no UNISAL-Lorena/SP. E-mail: [email protected].

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fundamentais: princípios que norteiam o portador de deficiência auditiva. 3. As controvérsias nos julgados: deficiência auditiva – bilateralidade x unilateralidade. 3.1. Discussão. Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO

As diversas emoções em momentos de alegrias, tristezas, conquistas, derrotas e outras, que docilizam o ser humano considerado normal, não são diferentes dos que possuem uma deficiência, sendo ela física ou mental, ou seja, os momentos bons ou maus são vivenciados por ambos.

Apesar dessa semelhança, existe uma particularidade: a discriminação sofrida pelo portador de necessidades especiais, assim como a difícil trajetória na conquista de seus sonhos.

A Constituição Federal determina que um percentual das vagas dos concursos públicos deve ser destinado aos candidatos portadores de deficiência. É o que dispõe o artigo 37, inciso VIII:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Dis-trito Federal e dos Municípios obedecerá aos princí-pios de legalidade, impessoalidade, moralidade, pu-blicidade e eficiência e, também, ao seguinte:(...)VIII - a lei reservará percentual dos cargos e empre-gos públicos para as pessoas portadoras de deficiên-cia e definirá os critérios de sua admissão.

Diversas Leis infraconstitucionais também contemplam em percentual os portadores de necessidades especiais em cargos e empregos públicos, o que nos faz pensar que todos esses dispositivos legais tem a finalidade de tutelar à desigualdade decorrente da condição física do concorrente, sendo indiscutível o princípio da isonomia descrito no artigo 5º da Carta Magna, inciso I. Ilustramos com as palavras de José Afonso da Silva:

Quando se diz que o legislador não pode distinguir, isso não significa que a lei deva tratar todos abstra-tamente iguais, pois o tratamento igual – esclarece Petzold – não se dirige a pessoas integralmente iguais entre si, mas àquelas que são iguais sob os aspectos tomados em consideração pela norma, o que implica

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que os ‘iguais’ podem diferir totalmente sob outros aspectos ignorados ou considerados irrelevantes pelo legislador. Este julga, assim, como ‘essenciais’ ou ‘relevantes’, certos aspectos ou características das pessoas, das circunstâncias ou das situações nas quais essas pessoas se encontram, e funda sobre es-ses aspectos ou elementos as categorias estabelecidas pelas normas jurídicas; por consequência, as pessoas que apresentam os aspectos ‘essenciais’ previstos por essas normas são consideradas encontrar-se em ‘si-tuações idênticas’, ainda que possam diferir por ou-tros aspectos ignorados ou julgados irrelevantes pelo legislador; vale dizer que as pessoas ou situações são iguais ou desiguais de modo relativo, ou seja, sob cer-tos aspectos (...) (SILVA, 2004, pp. 215-216).

A nossa comunicação com o mundo ocorre porque ouvimos e assim formamos os vínculos sociais, nossa identidade, a nossa compreensão e as nossas emoções do mundo que está a nossa volta. Qualquer ato de comunicação pressupõe a presença de um agente emissor que produz o sinal (fala ou qualquer código de comunicação- Libras ou gestual) e de um agente receptor que recebe o sinal (o ouvinte).

A capacidade de comunicar através da fala é um dos aspectos distintos entre os seres humanos. A comunicação é basicamente oralista, configurando a tradição cultural das sociedades humanas, entretanto, entre surdos e ouvintes, a comunicação acaba se tornando prejudicada e muitas vezes, dependendo do grau da deficiência, ocorre uma frustração tanto de quem quer se comunicar como quem precisa ouvir.

A complexidade do mecanismo da audição resulta na comunicação, embora a comunicação pode não resultar da audição.

Assim com a finalidade apenas ilustrativa da questão da audição, citamos um caso de cidadania, exposto em artigo publicado no blog Boa Saúde, envolvendo surdez-mudez, em que envolve o fator humano e o fator legal concomitante com a interpretação da magistrada. Transcrevemos o texto na íntegra:

Em 1998, conta a Associação Sindical dos Juízes Portugueses, o Ministério Público de Lisboa moveu uma ação de interdição contra uma mulher de 32 anos, que sofria de paralisia cerebral com decorrente surdez-mudez, alegando:

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“A requerida não anda, necessitando de cadeiras de rodas para esse efeito, e não é capaz de falar, comunicando-se com as pessoas por gestos ou através de um quadro onde se encontram inscritas as letras do alfabeto e frases que utiliza com mais frequência, tais como”: tenho sede”, “tenho fome”, etc, no qual a requerida aponta as letras para compor frases ou as frases já feitas”. “No entanto, na mesma ação, o MP português relatou que a referida senhora residia, durante a semana, em um Centro onde frequentava o ensino especial e aprendia a ler e a escrever à máquina”.Segundo o Código Civil português, são três as causas de interdição: anomalia psíquica surdez-mudez e cegueira.“Contudo”, diz o processo, “não basta à ocorrência de qualquer deficiência destes tipos para o juiz decretar a interdição da pessoa que dela sofre. [...] O surdo-mudo, que h aja seguido tratamento e instrução adequados, adquirindo, deste modo, meios de suprir a sua limitação física, pode também não ser passível de interdição, ou sê-lo apenas de inabilitação”. Mesmo assim, foi concluída a ação e nomeado um tutor, tendo o MP baseado a ação em «anomalia psíquica». A mulher recorreu, então, pedindo a ajuda de um advogado público, e o caso chegou em um ponto que lhe foi solicitado comparecer para exames, sendo feito a ela um interrogatório, que resultou no seguinte:A mulher, por não se expressar pela fala, utilizou para as respostas um quadro onde se encontravam escritas algumas palavras ou expressões simples, o abecedário, os números de 1 a 10, as cores, as operações matemáticas, etc. Ela também conseguiu comunicar o seu nome, onde nasceu e onde morava, o mês em que se encontrava, tudo de forma certa, comunicando que aquele era seu 12º ano de escolaridade, sabendo ler e escrevendo à máquina e a computador, tendo esclarecido que gostava de continuar a estudar.Improcedente a ação movida contra a mulher foram exibidas à mulher várias moedas, que a mesma

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reconheceu e cujo valor indicou no seu quadro.Ao serem expostos a ela os motivos do processo, ela conseguiu comunicar uma mensagem, dizendo não querer ser declarada interditada porque depois não poderia estudar nem fazer nada, e esclareceu ainda, por meio de gestos e outros sinais, que pretendia poder decidir sempre a sua vida.“Meses depois, a juíza Margarida Leitão, do 7º Juízo Cível de Lisboa, julgou portadora, entre outras coisas, de surdez-mudez e indeferiu o pedido de interdição” (2000).

A carência da audição é considerada como deficiência física. Entretanto para fins de concurso público, é necessário o preenchimento de certos requisitos. Mas para que possamos entender esses requisitos, ao propósito, surgem diversos dispositivos legais que conceituam a deficiência, como: a Lei 7853 de 24 de outubro de 1989 regulamentada pelo Decreto 3298 de 20 de dezembro de 1998 no artigo 3º:

Art. 3º Para os efeitos deste Decreto considera-se: I - deficiência - toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano; II - deficiência permanente - aquela que ocorreu ou se estabilizou durante um período de tempo suficiente para não permitir recuperação ou ter probabilidade de que se altere, apesar de novos tratamentos; e III - incapacidade - uma redução efetiva e acentuada da capacidade de integração social, com necessidade de equipamentos, adaptações, meios ou recursos especiais para que a pessoa portadora de deficiência possa receber ou transmitir informações necessárias ao seu bem-estar pessoal e ao desempenho de função ou atividade a ser exercida.

O que se observa nos termos definidos pelo legislador é que: no inciso I - conceitua-se a deficiência, considera-se gênero e os incisos II - permanente (sem a condição de recuperação) e III - incapacidade (redução acentuada) comportam duas espécies.

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Já o Decreto 5.296, de 2 de dezembro de 2004, que regulamenta as Leis 10.048, de 8 de novembro de 2000, e Lei 10.09,8 de 19 de dezembro de 2000, no artigo 5º, § 1o, suavizou as espécies em limitação ou incapacidade, com a classificação em categorias de deficiência: física, auditiva, visual, mental e múltipla.

Sem querer adentrar em pontos controversos e técnicos no que concerne à interpretação de tais dispositivos expostos acima o que não é o objetivo desse estudo, tem-se observado que as bancas examinadoras de concursos públicos, vêm entendendo que para o cumprimento percentual da cota de deficientes, a deficiência auditiva só é considerada quando há surdez bilateral, ignorando a surdez unilateral. O que é conveniente no direito positivo nos termos da nova redação do Decreto 5.269/04.

Entendemos ser ilegal, discriminatório e inconstitucional (já que o artigo 37, inciso VIII, não aborda a unilateralidade ou bilateralidade da deficiência), pois o candidato com surdez unilateral não pode disputar a mesma vaga com aquele que possui plena capacidade auditiva, ferindo assim o princípio da isonomia.

Assim os candidatos prejudicados pela sua condição, recorrem ao Poder Judiciário na intenção de obter os seus direitos já que a surdez unilateral não é reconhecida como deficiente nos termos legais. Não há cotas para tais candidatos.

Esse é o objetivo desse estudo, demonstrar que o portador de deficiência auditiva unilateral, também tem suas limitações e como, deve garantir o seu direito de concorrência da cota de deficientes em concursos públicos.

1. AUDIÇÃO HUMANA: BREVES COMENTÁRIOS

Sem infiltrar na parte técnica, que não é o objetivo deste estudo, podemos definir a audição humana como a capacidade de identificar padrões dos sons em conteúdo informativo que por meio de um liame entre o ouvido externo e seu processamento específico, envia mensagem ao Sistema Nervoso Central, processando e transformando este estimulo em informação sonora.

O aparelho auditivo é um sistema complexo. Como denominam certos estudiosos, uma verdadeira “peça de relojoaria”, extremamente sofisticado.

Comunicamo-nos pela audição e o mundo se comunica conosco. Dessa forma, o homem não se comunica consigo mesmo.

Assim, através do audiograma (gráfico que mostra a percepção do ouvido a sons variados; é o resultado de um exame de audiometria), podemos demonstrar os sons familiares do mundo em que vivemos.

A diminuição da acuidade auditiva (surdez) produz uma redução na qualidade do som e dificulta a compreensão das palavras. A dificuldade aumenta com o grau de surdez que pode ser leve, moderada, severa e profunda.

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Rui, Laura R., em sua dissertação de Pós-graduação em Ensino da Física, refere que para que uma pessoa escute, há uma gama de eventos consideráveis que podem ocorrer. Ela explica:

...um som audível deve ser produzido, deve haver um meio para que esse som se propague e atinja o seu aparelho auditivo, este deve funcionar e transmitir as informações do som (frequência, amplitude, timbre) para o nervo auditivo. Este último, por sua vez, deve conduzir tais informações, via células auditivas, para o encéfalo que interpretará o som. É um longo caminho que perpassa muitos fenômenos físicos (2007).

A surdez pode afetar um só ouvido (surdez unilateral) ou os dois ouvidos (surdez bilateral). Em ambos os casos, a percepção auditiva são afetadas: a surdez bilateral se torna muito mais incapacitante do que a surdez unilateral.

Etimologicamente, o termo “surdo” tem origem no latim (surdus) e no grego (kophós): designativo de uma situação dupla: o homem que não escuta e o homem que não é entendido, conforme ensinado por Gladis Dalcin, que preleciona:

[...] desde que a humanidade existe, existem surdos. E, como não pode deixar de ser a história destes foi atravessada pelas ideias que circularam ao longo dos séculos, marcando e delimitando territórios teóricos, políticos, sociais, culturais e psíquicos da construção de subjetividades (DALCIN, Gladis. 2005, p. 5).

Em remate, existe uma diferença entre o deficiente e o não deficiente e é o reconhecimento da diferença, buscando o direito de conviver com características próprias, de fazer valer os direitos civis, linguísticos, culturais, étnicos, religiosos entre outros (PINTO, 2001, p. 34).

2. DIREITOS FUNDAMENTAIS: PRINCÍPIOS QUE NORTEIAM O PORTADOR DE DEFICIÊNCIA AUDITIVA

Para que possamos fazer uma análise das pessoas com deficiência auditiva, é necessária uma breve interpretação principiológica do texto constitucional, já que houve uma influência pelos princípios e valores morais de outras Constituições de Estados Democráticos de Direito na Constituição Federal de 1988.

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Os princípios orientados na Constituição Federal, abordando o direito do homem, consistem não somente em fundamentação, mas sim na proteção de modo que, o problema não é apenas filosófico, mas num sentido mais vasto, político.

No cenário nacional, os direitos fundamentais, se estabelecem na cidadania, na dignidade da pessoa humana e nos valores sociais do trabalho, com o objetivo de se ter uma sociedade livre, justa e solidária, conduzindo os líderes do governo a refletir uma política pública voltada ao deficiente.

O artigo 5º da Constituição Federal de 1988, abrange o rol de direitos fundamentais pois revela o sentimento do constituinte: as pessoas humanas têm direitos inatos à fundação do Estado.

O que se entende é que os dizeres do caput do artigo 5º da Constituição Federal, não se restringe a nivelar os cidadãos diante da norma posta, mas que a mesma lei não pode ser editada em desconformidade com a isonomia (MELLO, 1999, p. 9).

O princípio da dignidade da pessoa humana merece destaque. Nos termos do inciso III do 1º artigo da Constituição da República Federativa do Brasil:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:[...]III - a dignidade da pessoa humana.

O nosso atual sistema constitucional brasileiro considera a dignidade da pessoa humana como valor fundamental que aborda os interesses políticos, sociais, econômicos e jurídicos. Graças ao dinamismo do direito e com a evolução, a legislação foi sendo aperfeiçoada.

Mencionando os direitos fundamentais reconhecidos à pessoa com deficiência, ressaltamos o direito humano fundamental: o acesso ao mercado de trabalho, pois se apresenta com valor existencial de enorme relevância, já que só por meio do trabalho, é possível prover a si e a sua família. São direitos fundamentais a todas as pessoas e a inserção no mercado trabalhista de pessoas com deficiência faz com que elas vivam mais e melhor (SANTOS, 2009, p. 19).

Nesse contexto, podemos afirmar que a Magna Constituição Federal de 1988 representou a adjetivação do Estado como “Democrático de Direito”, e assim a pela elevação da cidadania, da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho, objetivando o bem comum, através de uma sociedade livre, justa e solidária, objetivando a redução das desigualdades sociais. (DIAS, 2000).

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O princípio da Igualdade no sistema constitucional, em relação à proteção às pessoas portadoras de deficiência é bem definido como “o patrimônio jurídico das pessoas portadoras de deficiência”, conforme ensina Luiz Alberto David Araújo:

(...) corresponde ao cumprimento do direito à igualdade, quer apenas cuidando de resguardar a obediência à isonomia de todos diante do texto legal, evitando discriminações, quer colocando as pessoas com deficiência em situação privilegiada em relação aos demais cidadãos, benefício perfeitamente justificado e explicado pela própria dificuldade de integração natural desse grupo de pessoas (1996, p. 98).

É fato que a Constituição Brasileira consagra uma igualdade formal no caput do artigo 5º, ainda que teoricamente, igualdade em um Estado Democrático de Direito:

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, [...].

Pensadores iluministas como Rousseau em seu “Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens”, já abordava o tema:

Concebo na espécie humana duas espécies de desigualdade: uma, que chamo de natural ou física, porque é estabelecida pela natureza, e que consiste na diferença das idades, da saúde, das forças do corpo e das qualidades do espírito, ou da alma; a outra, que se pode chamar de desigualdade moral ou política, porque depende de uma espécie de convenção, e que é estabelecida ou, pelo menos, autorizada pelo consentimento dos homens. Consiste esta nos diferentes privilégios de que gozam alguns com prejuízo dos outros, como ser mais ricos, mais honrados, mais poderosos do que os outros, ou

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mesmo fazerem-se obedecer por eles (ROUSSEAU, 1973, p. 241).

A questão da igualdade em todas as formas de sociedade é desde os tempos mais antigos, a posição que o homem ocupa na estrutura social, o problema das desigualdades é inerente a ele o qual repercutem em organização social e sistemas políticos distintos (SILVA, 2001, p. 32).

Renomados juristas entendem o princípio da igualdade como uma concepção meramente formal. Celso Antonio Bandeira de Mello é claro em sua obra quando menciona que a lei não deve ser fonte de privilégios, mas sim um instrumento regulador da vida social que tem como objetivo tratar equitativamente todos os cidadãos. Brilhantemente ele escreve:

[...] em suma: dúvida não padece, que ao se cumprir uma lei, todos os abrangidos por ela hão de receber tratamento parificado, sendo certo, ainda, que ao pró-prio ditame legal é interdito deferir disciplinas diver-sas para situações equivalentes (1999, p. 14).

Assim, a proteção das pessoas com deficiência é um modo de preservar a cidadania e a dignidade da pessoa humana, extinguindo-se as desigualdades sociais.

3. AS CONTROVÉRSIAS NOS JULGADOS: DEFICIÊNCIA AUDITIVA – BILATERALIDADE X UNILATERALIDADE

Há decisões judiciais que desconsideram a surdez unilateral como deficiência auditiva no quadro de vagas para portadores de necessidades especiais em concursos públicos, conforme será exposto abaixo.

A exemplo de decisão desfavorável há a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:

ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. CON-CURSO PÚBLICO. CONCEITO DE DEFICIEN-TE AUDITIVO. DECRETO 3.298/99 ALTERADO PELO DECRETO 5.296/2004. APLICAÇÃO AO EDITAL COM AMPARO NORMATIVO. JURIDI-CIDADE. PRECEDENTE DO STF. DIVERGÊN-CIA FÁTICA QUE DEMANDARIA DILAÇÃO PROBATÓRIA. PRECEDENTES. AUSÊNCIA DE DIREITO LÍQUIDO E CERTO. 1. Cuida-se de writ

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of mandamus impetrado contra o Ministro Presidente do Superior Tribunal de Justiça e o Diretor Geral do Centro de Promoção de Eventos da Universidade de Brasília (CESPE – UnB), no qual candidata em con-curso público, portadora de surdez unilateral, alega que deveria ser enquadrada na qualidade de deficien-te físico, por interpretação sistemática dos arts. 3º e 4º do Decreto n. 3.298/99 em cotejo com a Constituição Federal e convenções internacionais. 2. O Decreto n. 5.296/2004 alterou a redação do art. 4º, II, do Decreto n. 3.298/99 e excluiu da qualificação “deficiência au-ditiva” os portadores de surdez unilateral; a jurispru-dência do Supremo Tribunal Federal frisou a validade da referida alteração normativa. Precedente: AgRg no MS 29.910, Relator Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, Processo Eletrônico, divulgado no DJe 146 em 29.7.2011 e publicado em 1º.8.2011. 3. A junta médica tão somente emitiu laudo técnico em sintonia com as previsões do Edital 1 – STJ, de 8.2.2012, cujo teor meramente remete ao Decreto n. 3.298/99 e suas alterações, que foi o parâmetro do ato reputado coa-tor, em verdade praticado sob o pálio da juridicidade estrita. 4. Para apreciar qualquer argumento no sen-tido de que haveria alguma incapacidade diversa da impetrante em prol de a alocar na qualidade de defi-ciente auditiva seria imperioso realizar contraditório e dilação probatória, providências vedadas em sede de rito mandamental. Precedente específico: AgRg na AO 1622/BA, Relator Min. Gilmar Mendes, Segun-da Turma, julgado em 21.6.2011, publicado no DJe – 125 em 1º.7.2011 e no Ement. vol. 2555-01, p. 1. No mesmo sentido: AgRg no RMS 33.928/SC, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, DJe 27.10.2011. Segurança denegada.(Superior Tribu-nal de Justiça. Mandado de Segurança n. 18.966/DF, Relator Ministro Castro Meira, Rel. Acórdão Min. Humberto Martins, Corte Especial, DJe 20/03/2014).

A decisão supramencionada desconsidera o portador de surdez unilateral como deficiente auditivo, haja vista o Decreto 5.296/04 ter excluído tal

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qualificação. Diante desta exclusão, o portador de surdez unilateral, candidato em concurso público não concorre as vagas reservadas aos deficientes auditivos, o que na maioria das vezes dificulta o seu ingresso e aprovação.

Em sentido contrário, pode ser exposta a jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho:

RECURSO ORDINÁRIO. MANDADO DE SEGU-RANÇA. CONCURSO PÚBLICO. INSCRIÇÃO DA CANDIDATA COMO PORTADORA DE NE-CESSIDADES ESPECIAIS (PNE). DEFICIÊNCIA AUDITIVA UNILATERAL. ENQUADRAMENTO. ARTIGOS 3º E 4º DO DECRETO Nº 3.298/1999. LEI Nº 7.853/89. ART. 37, VIII, DA CF E CONVEN-ÇÃO INTERNACIONAL SOBRE OS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA. Prepondera em nosso sistema normativo um modelo voltado a políticas públicas e medidas legais de proteção e cor-reção de distorções que afetam o acesso ao trabalho, como meio de dar concretude aos primados consti-tucionais de isonomia e não discriminação, além da construção de uma sociedade livre, justa e solidária (arts. 1º, II e III, e 3º, I e IV, 37, VII da Constituição Federal). Ressalte-se que a Convenção Internacio-nal sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, da ONU, incorporada formalmente à Constituição brasileira pelo quorum qualificado (art. 5º, §3º, da CF), é instrumento citado como um marco jurídico importante no sentido da construção de um novo pa-radigma para o conceito de deficiência, passando-se a entender que os impedimentos de longo prazo de na-tureza física, mental, intelectual ou sensorial ganham significado quando convertidos em experiências pela interação social, o que justifica todo o aparato nor-mativo constitucional e infraconstitucional voltado ao suporte necessário às pessoas que, em face de sua condição, vivenciam a discriminação, a opressão ou a desigualdade pela deficiência. Assim, a diferencia-ção positiva para pessoas com deficiência é efetivada por meio de diplomas normativos que determinam ações afirmativas de reserva de cargos e empregos públicos para a Administração direta e indireta (Lei

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8.112/90), e de postos de trabalho no setor privado (Lei 8.213/91). Nesse sentido, a redação dada pelo Decreto 5.296/2004 ao art. 4º do Decreto n. 3.298/99, no sentido de limitar a categoria de deficiente auditivo apenas para quem possui surdez bilateral restringiu o alcance objetivado por todo o aparato jurídico constitucional de tutela às pessoas com deficiência. Assim, a perda de audição, ainda que unilateral ou parcial, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida na forma do art. 4º, II, do Decreto nº 3.298/99, configura a condição de portador de necessidades especiais (PNE), como a que se verifica no caso em análise. Precedentes. Recurso ordinário conhecido e provido. (Tribunal Superior do Trabalho; Recurso Ordinário 1453-07.2012.5.03.0000, Relator Minis-tro Mauricio Godinho Delgado, Órgão Especial, DEJT 14/02/2014).

Conforme decisão acima, favorável, verifica-se a discriminação positiva, lícita, aplicada ao caso onde o que se procura é equilibrar as diferenças existentes na sociedade, como forma de garantir a dignidade da pessoa humana. Neste sentido, o Tribunal Superior do Trabalho considerou que a redação dada pelo Decreto 5.296/2004 ao art. 4º do Decreto nº 3.298/99, restringiu o alcance procurado pela ordem constitucional de tutela às pessoas com deficiência, como forma de excluir a discriminação negativa, e as desigualdades de oportunidades, de forma que considerou a perda de audição unilateral como condição para inscrição de candidato para concorrer a vaga como portador de necessidades especiais no concurso público.

3.1. DISCUSSÃO

Deve ser analisada a decisão do STJ não reconhecendo a surdez unilateral como deficiência auditiva, para fazer jus ao rol do quadro de vagas para portadores de necessidades especiais em concurso público.

Fundamentada essa decisão no artigo 3º, inciso I do Decreto 3298 de 1999, que acolhe a surdez: “toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano”.

Entendemos que o Decreto 3298/99 apresenta falhas em seus artigos 3º inciso I e 4º inciso II por não explicitarem a patologia unilateral, senão vejamos:

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Art. 3o Para os efeitos deste Decreto, considera-se:I - deficiência – toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou ana-tômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano;[...]

Art. 4o É considerada pessoa portadora de deficiência a que se enquadra nas seguintes categorias:[...]II - deficiência auditiva - perda parcial ou total das possibilidades auditivas sonoras, variando de graus e níveis na forma seguinte:a) de 25 a 40 decibéis (db) - surdez leve;b) de 41 a 55 db - surdez moderada;c) de 56 a 70 db - surdez acentuada;d) de 71 a 90 db - surdez severa;e) acima de 91 db - surdez profunda; ef) anacusia;

A quantificação da deficiência auditiva é baseada nos limiares auditivos, apresentada tanto no artigo 4º do referido decreto, como no artigo 2º da Resolução no. 17/2003 do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência – CONADE - que não considera os Deficientes Auditivos unilaterais, como deficientes e atualmente no art. 70, inciso II do decreto 5.296 de 12 de dezembro de 2004:

Art. 70. O art. 4o do Decreto no 3.298, de 20 de dezembro de 1999, passa a vigorar com as seguintes alterações:[...]II - deficiência auditiva - perda bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas frequências de 500HZ, 1.000HZ, 2.000Hz e 3.000Hz.

O Decreto n. 5.296/04 veio corrigir uma inadequação das quantificações estabelecidas pelos anteriores mencionados, para caracterizar o deficiente auditivo. Isto porque o mérito de inclusão do quadro de deficientes auditivos poderia ser prejudicado pelo fato de utilizar literal dos textos legais, podendo ser enquadrados indivíduos não considerado exatamente deficiente em detrimento

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dos realmente deficientes auditivos:

Ao estabelecer a perda auditiva em diferentes graus de decibéis, o art. 4º, inciso II e letras do Decreto nº 3298/99 não indicou as faixas de frequências nas quais essa perda seria aferida. Para não enquadrar como pessoas com deficiência aquelas que têm a audição social preservada, deve-se utilizar como parâmetro o Quadro 2 do Anexo III do Decreto no. 3048/99 (Regulamento de Benefícios da Previdência Social), segundo o qual a perda deverá ser aferida pela média aritmética dos valores em decibéis encontrados nas frequências de 500,1000, 2000 e 3000 Hertz. Perdas em faixas muito graves (250 Hertz) ou muito agudas (6000, 8000 Hertz) não comprometem a audição social nem a comunicação. Essas contratações devem ser consideradas para efeitos de cumprimento da cota até o advento do Decreto n. 5296/04, que definiu como deficiência auditiva: perda bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibéis (41 dB) ou mais, aferida por audiograma nas frequências de 500 Hz, 1000Hz e 3000 Hz, portanto perdas auditivas muito severas (COSTA, 2008, p. 159).

É o que causa as divergências entre decisões judiciais, já que o decreto é claro ao expressar “a perda bilateral”. Com a nova redação dada pelo Decreto n. 5296/2004, o legislador acrescentou mais um requisito – a bilateralidade. Vejamos:

Art.5º- Os órgãos da administração pública direta, indireta e fundacional, as empresas prestadoras de serviços públicos e as instituições financeiras deverão dispensar atendimento prioritário às pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida.§ 1o Considera-se, para os efeitos deste Decreto:I - pessoa portadora de deficiência, além daquelas previstas na Lei no 10.690, de 16 de junho de 2003, a que possui limitação ou incapacidade para o desempenho de atividade e se enquadra nas seguintes

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categorias:(...)b) deficiência auditiva: perda bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas frequências de 500Hz, 1.000Hz, 2.000Hz e 3.000Hz; (grifo nosso).

Não se pode ignorar a interpretação principiológica no texto constitucional em se tratando dos portadores de necessidades especiais, quando abordamos o direito do homem não somente em fundamentação, mas especialmente na sua proteção.

É fato que a valorização do trabalho está enfatizada pela Constituição Federal de 1988. A questão “trabalho” relaciona diretamente com os direitos humanos, bem como os princípios constitucionais que abordam a cidadania e a justiça social na busca pela redução das desigualdades sociais.

Vale lembrar o político Ulysses Guimarães que denominou de “Constituição Coragem” e redigiu um texto que anteriormente compunha a Constituição Federal. Posteriormente sob a alegação de inconstitucionalidade de suas palavras, o texto foi retirado da referida Carta Maior. Dizia o discurso:

O Homem é o problema da sociedade brasileira: sem salário, analfabeto, sem saúde, sem casa, portanto sem cidadania. A Constituição luta contra os bolsões de miséria que envergonham o país. Diferentemente das sete constituições anteriores, começa com o homem. Graficamente testemunha a primazia do homem, que foi escrita para o homem, que o homem é seu fim e sua esperança. É a constituição cidadã. Cidadão é o que ganha, come, sabe mora, pode se curar (POLÍTICA E PITACOS, 2010).

Em se tratando do trabalho do deficiente, ocorre que as muitas legislações não amparam o deficiente auditivo de forma explícita quanto à surdez unilateral.

Sendo a perda da audição unilateral ou bilateral, as percepções e discriminações auditivas são distintas. A primeira implica na diminuição do desempenho de vivência plena e de igualdade com o ouvinte considerado dentro dos padrões normais. A segunda por declarado é patologia mais incapacitante em comparação com o considerado normal para o ser humano. Em ambas as condições é claro que há limitações no desempenho efetivo em igualdade de condições com as demais pessoas, entretanto capazes de exercer funções públicas.

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Dessa forma percebe-se uma dissonância no Decreto 3298/99 no artigo 3º, inciso I com a fundamentação do julgado desfavorável em não considerar a perda auditiva unilateral como “incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano”. Existe também uma incapacidade, considerada parcial.

O mestre Canotilho explicita melhor tal entendimento:

(...) existe um núcleo essencial dos direitos, liberdades e garantias que não pode, em caso algum, ser violado. Mesmo nos casos em que o legislador está constitucionalmente autorizado a editar normas restritivas, ele permanece vinculado à salvaguarda do núcleo essencial dos direitos ou direitos restringidos (CANOTILHO, 1999, p. 618).

Vejamos um relato que ilustra o dia a dia de um portador de deficiência auditiva unilateral:

Também tenho surdez unilateral. Só nós sabemos o quanto somos discriminados e sofremos muito por isso. Desde criança até hoje, as pessoas me chamam de lesado, lento, lerdo, retardado. Falam que não me atento nas conversas e vivo perdendo as informações. Já me chamaram várias vezes de surdo, sem saberem que realmente possuo essa deficiência. As pessoas discriminam sem saber que estão discriminando, pelo fato da minha deficiência ser imperceptível aos olhos de quem discrimina. Isso dói demais! Assim como um deficiente físico precisa se esforçar para subir um degrau ou uma calçada, nós precisamos nos esforçar o tempo todo para escutar e não perder as informações, quase sempre sem êxito. Precisamos o tempo todo virar totalmente a cabeça para poder escutar. Constantemente tenho que ficar explicando o porquê de ficar mudando de posição em uma caminhada com um colega. Sempre fico sem saber o que as pessoas me falaram: perco uma informação importante ou uma piada, porque o colega me puxa e fala do lado que não escuto, ou porque existe ruído no ambiente. Fico sem graça

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de pedir, novamente, para repetir o que me disseram. Por isso, muitas vezes não peço e fico mesmo sem entender a informação. Isso acontece todos os dias da minha vida. Não é fácil! (SILVA, 2013).

A Constituição Federal em seu artigo 37, inciso VIII, abarcou em seu texto a chamada “reserva de mercado de trabalho” que assegura um percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de necessidades especiais no âmbito da administração pública, ao elencar no dispositivo citado, os princípios regentes da administração, deixando à lei definir os critérios de sua admissão:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:(...)VIII- a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão; (...).

Exemplificamos uma função pública: para a carreira de analista judiciário, a lei determina que 10% das vagas em concurso sejam destinadas a portadores de necessidades especiais (PNEs). Suponhamos que são oferecidas 100 vagas. Assim 10 vagas são destinadas aos portadores de necessidades especiais. Em caso de ausência desses candidatos, o edital poderá prever que essas vagas sejam ocupadas por candidatos não portadores de deficiência.

O texto constitucional deixou claro em seu dispositivo, que o serviço público deve criar condições para tornar plausível o aproveitamento do deficiente, ou seja, disputar vagas no serviço público em pé de igualdade com “os não” deficientes, a fim de tornar reais suas chances de classificação. Dessa forma a reserva de vagas não fere o princípio da isonomia, considerando as normas constitucionais e as infraconstitucionais.

Citamos a Lei nº 1224, de 11 de novembro de 1987 que assegura ao deficiente físico o direito a inscrição e participação em concursos públicos:

Art. 1º - Fica assegurado a qualquer pessoa fisicamente deficiente o direito a inscrição e participação em concursos públicos, respeitados todos os quesitos

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exigidos nos editais, cabendo à perícia médica determinar se o candidato é ou não portador de deficiência.

Também foi normatizada a Lei Federal 8.112 de 1990:

Art. 5º, § 2º: às pessoas portadoras de deficiência é assegurado o direito de se inscrever em concurso público para provimento de cargos cujas atribuições sejam compatíveis com a deficiência de que são portadoras; para tais pessoas serão reservadas até 20% (vinte) das vagas oferecidas no concurso.

A fim de ilustrar, vejamos como é considerada nos termos legais em se tratando de outro tipo de deficiência de forma unilateral. Ressaltamos a Súmula STJ n. 377 de 22 de abril de 2009: “O portador de visão monocular tem direito de concorrer, em concurso público, às vagas reservadas aos deficientes”. Tal súmula veio contemplar a deficiência unilateral da visão, ou seja, a limitação no desempenho das atividades em comparação com o considerado normal para o ser humano. Tal qual a deficiência auditiva unilateral.

O fato que se observa é uma dubiedade nos julgados, ora entendem como a surdez unilateral sendo considerado o portador de deficiente, ora entendem que o candidato que possui a surdez unilateral não pode ser considerado deficiente para fins de reserva de vaga em concurso público, não tendo direito a participar do certame como deficiente auditivo. “A surdez unilateral não é considerada como deficiência auditiva segundo do Decreto 3298/9” (Superior Tribunal de Justiça. Corte Especial. Mandado de Segurança 18.966-DF, Rel. Min. Castro Meira, Rel. para acórdão Min, Humberto Martins, julgado em 02/10/2013).

Cabe ressaltar que há uma falha de entendimento técnico em relação à deficiência auditiva unilateral que pode ser considerado o deficiente parcial e não total.

A comunicação é prejudicada parcialmente e a surdez unilateral ou a anacusia unilateral deve ser a condição para ser caracterizada como deficiência auditiva para os devidos fins jurídicos ou seus direitos em razão das limitações auditivas que o portador venha conviver.

O Poder público oferece a condição de forma mitigada. Após a aprovação no concurso público, a felicidade pela conquista cede lugar para sentimentos de insegurança, de impotência e muitas vezes esse sonho se torna pesadelo e surge um desafio: conquistar os seus direitos com enfrentamentos de lides judiciais com o objetivo do reconhecimento da sua deficiência pela justiça.

Não há questionamento acerca da deficiência, o quantum se entende,

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mas apenas a legalidade do decreto. Aí se pergunta, e a proteção amparada pelo texto constitucional?

A dubiedade dos julgados merece ter o tratamento interpretativo técnico, já que existe tramitação de processos judiciais no Poder Judiciário, que dependem da decisão final e muitas vezes o candidato já exerce o cargo público em período probatório, sem ainda adquirir a estabilidade.

Têm-se duas vertentes: em decisões favoráveis ao candidato com a deficiência auditiva unilateral, há a tranquilidade e comemoração da inclusão no serviço público. Por outro lado, em decisão desfavorável, a decepção e o início da árdua batalha judicial para conquistar o cargo que lhe é de direito por meio da aprovação no concurso público.

Assim, sensato é regularizar, definir e reconhecer que as pessoas com deficiência auditiva unilateral, podem concorrer às vagas em concursos públicos reservados a cota de pessoas com deficiência, visto que há uma limitação e não a incapacidade.

CONCLUSÃO

Ao julgar o caso concreto, o Superior Tribunal de Justiça, assim como julgados semelhantes, tem entendido como distintos, o deficiente auditivo unilateral e bilateral.

Há a distinção baseado pontualmente, por interpretação sistemática dos arts. 3º e 4º do Decreto nº 3.298/99.

Nesse cenário a nova redação dada pelo Decreto nº 5296/2004, deixou de considerar o deficiente auditivo unilateral como o deficiente que se enquadra na cota em concursos públicos.

O Decreto garante a colocação de portadores de deficiência no mercado de trabalho, entretanto em seu texto com poucos argumentos interpretativos técnicos, mitigou o deficiente auditivo unilateral, o que entendemos ser inconstitucional. Nessa celeuma, os direitos estão sendo mitigados por um Decreto, sem edição de Lei, eis que viola o Princípio da Legalidade preconizado na Carga Magna.

Em julgados discutem-se as controvérsias entre a bilateralidade e unilateralidade da perda auditiva para o preenchimento da cota de deficientes nos concursos públicos, por não ser regularizada de forma sensata tal distinção, deixando que as decisões sejam interpretadas conforme o entendimento não técnico do legislador.

Entendemos que ao abalizar o deficiente auditivo bilateral e unilateral, afronta de certa forma o princípio da isonomia e a proteção prevista no texto constitucional.

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AS TRANSFORMAÇÕES JURÍDICO-INSTITUCIONAIS DO ESTADO NA REALIZAÇÃO DAS ATIVIDADES PÚBLICAS E O JULGAMENTO DA MEDIDA

CAUTELAR NA ADIN 1923/DF

Saylon A. Pereira85

RESUMO

Diversas foram as transformações do Estado e do direito no Brasil - mais especificamente do direito administrativo - para a concretização daquelas atividades consideradas “estatais”. Um exemplo histórico desse processo é o contexto da chamada Reforma do Estado e a criação das Organizações Sociais (OS). Pela estrutura flexível - resultado da possibilidade de combinação de instrumentos de direito privado e público-, as OS foram um tema controverso dentro do direito brasileiro. Esta questão foi submetida ao Supremo Tribunal Federal, que levou quase 10 anos para julgar a medida cautelar. O objetivo desse artigo é exatamente a reconstrução histórica desse importante debate e o apontamento das questões jurídicas que o permearam.

Palavras-chave: Organizações Sociais; Estado; Publicização; Regulação; Supremo Tribunal Federal.

SUMÁRIO: Introdução. 1. Reforma do Estado, publicização e as organizações sociais. 2. As Organizações Sociais e a Reforma do Estado no Supremo Tribunal Federal. 3. A Lei 9637/98 e os Instrumentos de Gestão. 4. As Organizações Sociais e a Reforma do Estado no Supremo Tribunal Federal. Conclusões. Referências.

INTRODUÇÃO

Todas as transformações do Estado trazem consigo a modificação na forma como suas atividades serão conduzidas o que, por sua vez, promove também uma transformação nas estruturas do direito. No Brasil, de um Estado desenvolvimentista avançamos em direção a um Estado neoliberal e, no momento atual, um estágio que pode ser localizado como um ponto intermediário entre ambos (SCHAPIRO e TRUBEK, 2012).

Esse movimento tem como característica a assimilação das experiências anteriores; na qual cada alteração provoca diversas inflexões nas estruturas

85 Mestrando na Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo - FGV - SP. Graduando em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo - USP.

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estatais. A reforma do Estado, promovida no Brasil entre os anos de 1995 e 2002 pode ser considerada um bom exemplo histórico desse processo.

Criada com o intuito de modernizar as estruturas estatais e garantir flexibilidade na execução das atividades, a Reforma do Estado trouxe consigo várias inovações cujo traço comum foi a utilização de instrumentos regulatórios operacionalizados pelas mais diversas instituições e a concepção de que o mercado sozinho não é capaz de produzir processos coordenados que possam refletir e transferir os benefícios a toda sociedade (MARE, 1997).

Dentre essas instituições estão as Organizações Sociais (OS). Criadas como parte do Plano Diretor de Reforma do Estado essas novas formas de personalidade jurídica tinham como objetivo a criação de um setor público não estatal. A proposta era que esse setor fosse apto a prestar serviços de natureza pública para os quais não houvesse vedação na Constituição e que, por possuírem finalidade social, não pudessem ser absorvidos diretamente pela dinâmica do mercado.

A criação desse setor público não estatal - mecanismo denominado publicização - visava aproveitar as estruturas flexíveis e dinâmicas das entidades privadas para uma melhor consecução das atividades estatais, ao mesmo tempo em que o Estado seria fortalecido na função de coordenador e regulador dessas atividades, induzindo a produção de objetivos socialmente almejados (MARE, 1997).

Essas novas estruturas provocaram uma transformação no Estado na realização de suas atividades e, consequentemente, nas estruturas do direito - principalmente o direito público-; que passou a admitir novos instrumentos e mecanismos que colocaram em xeque as concepções mais tradicionais acerca da legalidade. Essa transformação e todo debate derivado dela não passou incólume à apreciação do Judiciário e do Supremo Tribunal Federal (STF), que em um dos casos mais marcantes sob a égide da atual Constituição, levou mais de dez anos para a apreciação de uma medida cautelar. É exatamente a reconstrução dessa parte tão importante das transformações do Estado brasileiro o objeto deste artigo.

Para ilustrar refazer esse trajeto, este trabalho está dividido em outras quatro partes. A seção seguinte contextualiza a Reforma do Estado, as transformações do direito e o contexto de criação das Organizações Sociais. A seção três faz uma análise do instrumento que operacionalizou as transformações anteriormente descritas: a Lei 9.637 de 15 de maio de 1998. A seção quatro reconstrói os debates da medida cautelar da ação direita de inconstitucionalidade nº 1923/DF, que visava impugnar diversos artigos dessa lei e impedir o programa de publicização. Por fim, na seção cinco estão algumas considerações finais.

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1. REFORMA DO ESTADO, PUBLICIZAÇÃO E AS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS

O momento contemporâneo da teoria do Estado nos países em desenvolvimento pode ser caracterizado pela presença de objetivos públicos a serem definidos coletivamente como metas de desenvolvimento, mas com essa estipulação pública está menos demarcada; diante das inúmeras possibilidades de descobertas e deliberações, cuja adequação é feita através de revisões constante dos processos, coordenação etc. (SCHAPIRO e TRUBEK, 2012).

No Brasil, o advento de instituições participativas, especialmente pós Constituição de 1988, e o fortalecimento de diversos atores sociais e dispositivos democráticos, trouxe para a arena não só instrumentos de controle do Poder Público e a descentralização administrativa de algumas políticas, mas fez com que os gestores públicos tenham que se relacionar com três sistemas institucionais na produção das politicas públicas: o representativo, o participativo e o de controles burocráticos (GOMIDE e PIRES, 2014:17; SCHAPIRO e TRUBEK, 2012:47).

Esses novos desafios trazem diversos questionamentos sobre a possibilidade de execução das tarefas estatais no atual contexto, no qual há dúvidas se essa relação é capaz de trazer sinergias às políticas, garantindo sua legitimidade, qualidade e eficácia; ou seria apenas um entrave à sua realização, resultado da impossibilidade de conciliar uma multiplicidade de interesses participantes desse diálogo (GOMIDE e PIRES, 2014).

Esses fatores motivam o debate acerca das capacidades estatais na esfera técnico-administrativa, que inclui a própria estrutura do Estado; a configuração dos modelos estatais de tomada de decisão - e os instrumentos e estruturas que dispõe para executá-las -; e a inclusão dos atores sociais não estatais - que passam a participar da tomada de decisão, do accountability dos processos e resultados, representados por diversos grupos de interesse, impondo a necessidade de arranjos institucionais singulares (GOMIDE e PIRES, 2014; SCHAPIRO e TRUBEK, 2012).

No Brasil, esse momento atual pode ser considerado resultado direito das inflexões causadas no encontro do neoliberalismo e desenvolvimentismo. A não constatação dos resultados esperados pelas medidas liberalizantes do Consenso de Washington é possível destacar como esses pressupostos teóricos foram determinantes nas configurações posteriormente adotadas nas transformações histórico-institucionais na estrutura do Estado brasileiro.

O principal marco que expressa essa inflexão no modelo de Estado desenvolvimentista foi a chamada “reforma do Estado”, promovida entre 1995 e 2002, cujas características mais marcantes foram a privatização das empresas estatais brasileiras e a criação de órgãos de regulação (BERCOVICI, 2005: 82).

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Um dos principais protagonistas dessas transformações foi o Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado - o MARE-, criado com a função de elaborar diretrizes e objetivos para uma reforma gerencial, capaz de superar as velhas estruturas ineficientes e excessivamente burocráticas da administração pública estatal em estruturas modernas e dinâmicas capazes de responder de forma eficiente às demandas de uma sociedade globalizada (MARE, 1997).

Sua principal tarefa foi a elaboração do Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado que, dentre outras previsões, contava em sua estrutura com o conceito de publicização; elementar na concepção das estruturas jurídicas que fundamentaram as transformações no exercício das atividades consideradas estatais (MARE, 1997).

A reforma do Estado tinha como principal característica a redefinição do papel do Estado, que passa a modificar suas formas de atuação na realização de suas atividades. A reestruturação passa, principalmente, da transformação da ideologia da responsabilidade direta do Estado pelo desenvolvimento econômico e social na produção de bens e serviços, para o fortalecimento da função de promotor e regulador de estruturas exógenas que fossem capazes de alcançar esses objetivos (MARE, 1997).

No plano econômico, visando superar os problemas oriundos da crise fiscal e da ausência de poupança pública, o Estado se tornaria um instrumento de transferências de renda; coordenando a relação entre economia interna e externa redistribuindo e alocando os recursos derivados das transações de mercado. Para isso o Estado fortaleceria sua função de garantidor da ordem e segurança interna e externa, ao mesmo tempo em que busca salvaguardar e equalizar a relação entre objetivos sociais de maior justiça ou igualdade e objetivos econômicos de estabilização e desenvolvimento (MARE, 1997).

Para atingir tais objetivos, uma importante transformação foi a consolidação de um setor público não estatal, responsável pela execução de algumas atividades como educação, saúde, cultura e pesquisa; todavia, ainda subsidiados pelo Estado. Esse processo, denominado publicização, tinha como característica a transferência para esse recém-criado setor público não estatal - o terceiro setor - a produção de atividades públicas em relação de competição com o Estado, através de uma parceria que possibilitaria seu financiamento e controle (MARE, 1997).

O Plano diretor que orientou a Reforma do Estado brasileiro distinguia quatro setores estatais, para os quais elaborava diagnósticos e proposições: o núcleo estratégico, as atividades exclusivas, os serviços não exclusivos e a produção de bens e serviços para o mercado (MARE, 1997).

O primeiro setor, chamado núcleo estratégico, compreendia o Governo em sentido amplo - incluía, por exemplo, o Judiciário e o Ministério Público -,

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nos quais as políticas e leis eram formuladas e também o seu cumprimento era exigido (MARE, 1997).

O segundo setor, denominado atividades exclusivas, tinha como objeto as atividades que somente o Estado poderia prestar, portanto, aquelas em que exerce o poder de regulamentar, fiscalizar e fomentar (MARE, 1997).

Notadamente, esses dois setores tinham a perspectiva de reforma interna, ou seja, seu objeto era a reorganização da estrutura administrativa do Estado na execução de suas funções.

O terceiro setor, denominado serviços não-exclusivos, tinha como objeto setores nos quais o Estado atuava simultaneamente com outras organizações não-estatais e privadas; que mesmo não possuindo o poder de Estado, vê a projeção deste em suas atividades por envolverem direitos humanos fundamentais ou produzirem ganhos e serviços que não podem ser apropriados pela via do mercado - como hospitais, centros de pesquisa, museus etc. (MARE, 1997).

O quarto setor, produção de bens e serviços para o mercado, correspondia a área de atuação de empresas estatais do segmento produtivo ou mercado financeiro; que a despeito de exercerem atividades lucrativas no mercado, tinham seus recursos ainda vinculados ao aparelho estatal (MARE, 1997).

Esses dois últimos setores têm a característica de ter como foco as atividades “mais exógenas” ao Estado, na qual estão compreendidas a relação com a sociedade civil e o mercado.

Essas novas formas de atuação e organização do Estado, que segundo BRESSER-PEREIRA (2003), constituiu-se em uma reforma gerencial, podem ser sintetizada em três grandes dimensões: uma institucional, uma cultural e uma de gestão.

A primeira seria caracterizada pela transformação dos próprios aparelhos que compõem o Estado, as carreiras públicas e as estruturas burocráticas responsáveis pelas atividades estatais. A segunda seria representada por um grande debate nacional, promovido através dos meios de comunicação, que tivesse como objeto submeter às velhas culturas burocráticas a uma crítica sistemática ao mesmo tempo em que e as novas instituições eram defendidas. A terceira estava relacionada aos novos instrumentos para a consecução dos objetivos, tais como a utilização do contrato de gestão como forma de regular as OS na consecução de atividades públicas.

Sob o pressuposto de conferir maior eficiência e efetividade aos órgãos estatais, o Estado delegou ao particular a prestação de atividades e serviços públicos e atribuiu a si a função de controle e regulação dessas atividades através de diversos instrumentos regulatórios, especialmente, através das chamadas Agências Reguladoras Independentes (BERCOVICI, 2005: 82 a 84).

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No tocante ao exercício de atividades públicas, a fim de que elas pudessem ser executadas por entidades privadas, o Estado passou a utilizar instrumentos regulatórios atípicos ao direito público da época, como o contrato de gestão. Os conteúdos desse tipo de contrato poderiam ser negociados entre o Estado e os particulares, guardando grande semelhança com uma transação privada.

Como resultado desse processo, a doutrina do direito administrativo - concebido até então como o direito do Estado - se vê num momento em que se encontram justapostos entendimentos distintos acerca dos seus principais conceitos, especialmente, a ideia de legalidade administrativa. Por um lado há aqueles que, identificando essas necessidades conjunturais do Estado na realização das suas atividades em uma sociedade dinâmica e complexa, defendem um caminho voltado a um direito mais flexível, fluído, que seja capaz de assimilar essas transformações:

O direito administrativo como o direito que condi-ciona a criação e execução de soluções, políticas e programas pela administração pública. O dever bá-sico do administrativista é trabalhar na ampliação do leque de alternativas para a ação administrativa encontrar no direito suas bases e limites, mas sem comprometer a extensão da função criadora que a ad-ministração tiver recebido da legislação, nos termos constitucionais. A grande missão do administrativista contemporâneo não é tolher a criação administrati-va para defender o espaço do legislador. É assegurar que o direito, em suas múltiplas formas, influa sobre o espaço de deliberação administrativa, mas sem mo-nopolizá-lo (SUNDFELD, 2012: 136).

Por outro lado, há aqueles que, preocupados com a cristalização de garantias e nas grandes margens discricionárias que esses novos processos podem gerar, supostamente flexibilizando em algum grau a liquidez que resulta da positivação de procedimentos e garantias; continuam defendendo uma postura e interpretação mais tradicional do direito administrativo:

(...) o Direito Administrativo nasce com o Estado de Direito, porque é o Direito que regula o comporta-mento da Administração. É ele que disciplina as rela-ções entre administração e administrado, e só poderia

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existir a partir do instante em que o Estado, como qualquer, estivesse enclausurado pela ordem jurídica e restrito a mover-se dentro do quadro normativo es-tabelecido genericamente. (...) É, pelo contrário, um direito que surge exatamente para regular a conduta do Estado e mantê-la afivelada às disposições legais, dentro desse espírito protetor do cidadão contra des-comedimentos dos detentores do exercício do Poder estatal (MELLO, 2009:47).

Independente das perspectivas adotadas, não há dúvida de que é nesse momento que a regulação adquire um papel central. A emergência de novos parâmetros legais, formas contratuais, institutos jurídicos, instituições especializadas publicas e privadas etc; tornam-se a principal característica desse momento. As ferramentas regulatórias começam a serem utilizadas pelos mais diversos entes (seja na esfera pública ou privada) com o intuito de atingir objetivos sociais e econômicos.

Assim, a relação entre Estado e direito, passa por, ao menos, duas grandes transformações. A primeira é a mudança na forma de concepção do direito, em especial o público, anteriormente identificado como o direito do Estado; que se diferenciava da sociedade por ser marcado por estruturas hierárquicas bem delimitadas através das quais ao agente público exerceria o poder (SUNDFELD, 2007). A segunda é a superação da visão monopolística do Estado como fonte normativa, que, a despeito de sua soberania, via também o surgimento de outras fontes normativas, tais como organismos internacionais multilaterais de ordem global, regional e de setores privados; tratando das mais diversas matérias como direitos humanos, trabalho, comércio etc. (SUNDFELD, 2007; MAJONE, 2013).

Nesse contexto e com o intuito de estabelecer maior efetividade ao Estado foram criadas, através da Lei 9637/98, as Organizações Sociais (OS). As OS foram concebidas para ser um modelo de organização pública não estatal constituída por associações civis sem fins lucrativos, orientadas para o atendimento do interesse público (MARE, 1997). A proposta inicial previa que as OS seriam uma parceria entre sociedade e Estado, que exerceria sobre elas um controle estratégico dos resultados e objetivos das políticas públicas, determinados por um instrumento jurídico próprio denominado contrato de gestão (MARE, 1997).

Através da estrutura dos conselhos de administração, no qual estariam representados diversos segmentos, as OS facilitariam o controle direito da sociedade civil, enquanto também proporcionariam maior agilidade na compra

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de serviços ou doações. Seriam dotadas maior autonomia administrativa em comparação aos aparelhos do Estado, compensada pela maior responsabilização dos seus dirigentes no tocante à qualidade dos serviços e gestão da instituição. Portanto, estariam fora da administração pública como pessoas jurídicas de direito privado, mas podem receber recursos e administrar bens e equipamentos do Estado (MARE, 1997).

O Congresso Nacional participaria ativamente do controle, já que as dotações orçamentárias para cumprimento dos contratos de gestão são votadas em leis específicas. Apesar disso, a flexibilidade estaria contida principalmente na aproximação com as práticas de direito privado, que inclui a contratação de pessoal, a adoção de normas próprias para compras e contratos e a flexibilidade na execução de seu orçamento; além da aproximação com os clientes dos serviços prestados que permitiria adequá-los as singularidades locais (MARE, 1997).

A despeito dessas vantagens vigorosamente defendidas nos documentos elaborados pelo MARE e pelos idealizadores do Plano Nacional de Publicização, o modelo trazido pelas OS e sua implementação serviu de combustível para intensos e importantes debates sobre a legalidade de suas estruturas que se estendem até os dias atuais.

Para entender melhor que elementos foram capazes de promover tão intensas transformações e antes de verificarmos como essa discussão acabou sendo submetida ao Supremo Tribunal Federal, é fundamental que examinemos mais detalhadamente o diploma legal que instituiu esse modelo: a Lei 9.637/98. É exatamente essa a tarefa da seção seguinte.

2. A LEI 9637/98 E OS INSTRUMENTOS DE GESTÃO

A Lei 9.637 de 15 de maio de 1998 foi o instrumento pelo qual o Programa Nacional de Publicização - PNP - foi operacionalizado. Inovando em relação à tradição do direito administrativo brasileiro à época, essa lei é composta de comandos abstratos, que dão margem a grande discrionariedade do gestor público, inclusive, no estabelecimento dos mecanismos regulatórios que podem variar caso a caso. Outra inovação foi a possibilidade de utilização da flexibilidade dos institutos do direito privado na consecução de atividades públicas, possível por serem executadas por entidades privadas e patrocinadas pelo Estado.

Além disso, outra característica de destaque, resultado das anteriores, é a criação de um setor público não estatal; que se colocaria como um desafio à doutrina do direito administrativo brasileiro, acrescentando ainda mais complexidade ao controverso tema dos serviços públicos na Constituição de 1988.

Para fins de análise, essa lei pode ser dividida em quatro grandes partes. A primeira trata da qualificação de entidades como OS, os requisitos para tal

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e os elementos obrigatórios de sua estrutura - dos arts. 1° ao 4°. A segunda trata do contrato de gestão, dos mecanismos de sua execução e fiscalização, e das entidades responsáveis por tais atividades - dos arts. 5° ao 10. A terceira trata dos benefícios e da natureza jurídica das OS, bem como a possibilidade e mecanismos para a perda dessa titulação - arts. 11 a 16; enquanto a quarta parte traz uma série de disposições gerais e transitórias necessárias ao período de transição e estruturação das OS - arts. 17 a 25.

No artigo 1° a lei estabelece dois requisitos cumulativos para que as instituições sejam qualificadas como Organizações Sociais: (i) ser sem fins lucrativos; e (ii) cujas atividades sejam dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde; além de dar ao Executivo, exclusivamente, o poder para atribuir esse título às organizações.

O art. 2° regula os meios pelos quais serão comprovados os requisitos previstos no artigo art. 1°, destacando-se, os critérios de conveniência e oportunidade para que o representante do Executivo qualifique a entidade como OS (art. 2°, II); a exigência da previsão expressa de um conselho de Administração e uma diretoria cuja composição e atribuições devem estar de acordo com o previsto na própria lei (art. 2°, I, c); e a previsão da participação no órgão colegiado superior de deliberação a presença de membros do Poder público e da comunidade (art. 2°, I, d). Estas últimas exigências relacionam-se diretamente com aquela disciplinada no art. 3°, que trata especificamente do conselho de administração. A composição desse conselho deve seguir a seguinte proporção:

(...) a) 20 a 40% (vinte a quarenta por cento) de mem-bros natos representantes do Poder Público, definidos pelo estatuto da entidade;b) 20 a 30% (vinte a trinta por cento) de mem-bros natos representantes de entidades da sociedade civil, definidos pelo estatuto;c) até 10% (dez por cento), no caso de associação civil, de membros eleitos dentre os membros ou os associados;d) 10 a 30% (dez a trinta por cento) de membros eleitos pelos demais integrantes do conselho, dentre pessoas de notória capacidade profissional e reconhe-cida idoneidade moral;e) até 10% (dez por cento) de membros indica-dos ou eleitos na forma estabelecida pelo estatuto; (...) (BRASIL, 1998).

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O mesmo artigo ainda determina que os representantes do Poder público e da sociedade civil devem corresponder a mais de 50% do conselho (III); que o mandato dos membros do conselho deve ser de quatro anos, permitindo apenas uma recondução (II), sendo que o primeiro mandato de metade dos membros eleitos ou indicados deve ser de dois anos (IV); a proibição do dirigente máximo votar nas deliberações, a despeito da obrigatoriedade de participar das reuniões (V); a obrigatoriedade de, no mínimo, 3 reuniões anuais (VI); a vedação do recebimento de qualquer remuneração por parte dos conselheiros por serviços prestados nesta condição, ressalvada a ajuda de custo por reunião que participarem (VII); e a proibição de cumulação de funções por conselheiros, exigindo a renúncia daqueles que, nessa condição, forem assumir funções executivas (VIII).

O art. 4°. determina as atribuições devidas ao conselho de administração, para fim de atendimento dos requisitos da lei, nas quais estão previstas: aprovar a proposta de orçamento da entidade e o programa de investimentos (III); fixar a remuneração dos membros da diretoria (V); aprovar a proposta de orçamento da entidade e o programa de investimentos (III); aprovar e encaminhar, ao órgão supervisor da execução do contrato de gestão, os relatórios gerenciais e de atividades da entidade, elaborados pela diretoria (IX), entre outras. Contudo a previsão mais importante desse artigo é a atribuição da diretoria em aprovar a proposta do contrato de gestão da entidade (II).

Assim, do artigo 1° até o art. 4° a lei trata basicamente dos requisitos para a qualificação da entidade como Organização Social, selecionado as áreas nas quais foi priorizado o interesse do Poder Público para o desenvolvimento dessa forma de atuação; bem como os requisitos jurídico- estruturais necessários para a qualificação das entidades nesse sistema.

Os arts. 5°, 6° e 7° da lei tratam especificamente do contrato de gestão; instrumento mais importante dessa forma de atuação baseada na parceria entre Estado e organizações privadas. De acordo com a lei, o contrato de gestão, aparentemente muito influenciado pelas disciplinas dos contratas no Código Civil, é elaborado de comum acordo entre o órgão ou entidade supervisora e a organização social, discriminando atribuições, responsabilidades e obrigações de ambos (art. 6°).

Se considerarmos que dentre as atividades das quais podem se ocupar as OS está a saúde - em geral, reconhecida como serviço público que pode ser prestada pela iniciativa privada86 -; admitir que, em 1998, fosse disciplinada por um mecanismo regulado por um acordo de vontade entre as partes realmente significava uma inovação na estrutura da administração pública brasileira.

86 Ver GRAU, 2001.

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Na prática isso significava uma discricionariedade para o administrador público na negociação das obrigações e responsabilidades na prestação do serviço - por vezes serviço público - que contrastava diretamente com a forma como era concebido o direito público do Estado - Administrativo - condicionado pelo princípio da legalidade administrativa, que significa que a lei determinava os parâmetros que deviam ser seguidos estritamente pelo operador87.

A lei determinava expressamente que o contrato de gestão deveria estar vinculado aos princípios constitucionais do art. 37: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência; além da obrigatoriedade de conter a especificação do programa de trabalho proposto pela organização social, das metas a serem atingidas e os prazos de execução, bem como a previsão expressa dos critérios objetivos de avaliação de desempenho a serem utilizados mediante indicadores de qualidade e produtividade (art. 7°, I). Outra exigência era a estipulação dos limites e critérios para despesa com remuneração e vantagens de qualquer natureza recebidas pelos dirigentes e empregados das organizações sociais no exercício de suas funções; e a atribuição aos ministros de Estado e autoridades supervisoras a responsabilidade pelas cláusulas dos contratos que sejam signatários (art. 7°, II e parágrafo único).

É possível notar na lei a presença de conceitos extremamente amplos, especialmente, no tocante ao contrato de gestão que, por ser o principal instrumento da prestação do serviço, tem sua estrutura pouco disciplinada na lei; que se ocupa apenas de garantir determinados elementos externos, o que possibilita as partes na negociação de comum acordo, discutir o conteúdo substancial dos elementos que constituirão a prestação.

A parte dos controles está disciplinada nos arts. 8°, 9° e 10°; que destacam determinadas entidades como responsáveis pela fiscalização e execução do contrato de gestão; a começar pelo Poder Público, representado pelo órgão ou entidade supervisora da área de atuação. Ao final de cada exercício ou a qualquer momento a depender do interesse público, a entidade deve apresentar relatório pertinente à execução do contrato de gestão, contendo comparativo específico das metas propostas com os resultados alcançados, acompanhado da prestação de contas correspondente ao exercício financeiro (art. 8°, §1°). Os resultados devem ser analisados por uma comissão do Poder Público composta por especialistas qualificados para tal atividade (art. 8°, §2).

Nesse processo de controle também estão incluídos o Tribunal de Contas, acionado diante da constatação de qualquer irregularidade; além do Ministério Público, da Advocacia-Geral da União e da Procuradoria da entidade; que podem receber representação de acordo com a gravidade dos fatos e as quais são possíveis tomar medidas como decretação da indisponibilidade de

87 Ver SUNDFELD, 2012.

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bens da entidade ou, até mesmo o sequestro de bens de seus dirigentes (art. 10).Nos arts. 11 a 15 estão disciplinadas a natureza jurídica, benefícios e

garantias das Organizações Sociais. A lei as qualifica como entidades de interesse social e utilidade pública, para todos os efeitos legais (art. 11); podendo, para exercício de suas funções, receber recursos e bens públicos, de acordo com o contrato de gestão (art. 12); sendo, no caso de bens, até mesmo dispensada a licitação para a permissão de uso (art. 12, § 3).

A lei permite ainda que as OS possam permutar os bens móveis recebidos da União por outros de maior ou igual valor, desde que o patrimônio dos novos bens seja da União, que fará a avaliação antes da operação (art. 13). Há também permissão para a cessão de servidor para a OS, com ônus para a origem e vedação da utilização de recursos do contrato de gestão para seus vencimentos, excetuando-se casos em que recebe adicional por função temporária ou por direção e assessoria (art. 14). No art. 15 há também a extensão das vantagens previstas nos arts. 11 e 12 a entidades qualificadas como OS por Estados, Municípios e pelo Distrito Federal; desde que haja reciprocidade e a legislação local não contrarie os preceitos da lei Federal.

Não há dúvidas de que, além dos conceitos abstratos previstos nas normas que disciplinam o contrato de gestão, a equiparação dessas entidades como de interesse social e utilidade pública dotariam essas estruturas de grande flexibilidade e de forma mais liberalizante do que previa o direito administrativo tradicional, até então regulador das atividades da administração pública. Esse fato fica ainda mais marcado pela possibilidade de transferências de bens sem licitação e de servidores, para a execução das atividades nas OS. Obviamente que, além da flexibilidade, esse mecanismo também ofereceria riscos, caracterizados pela grande autonomia e vantagens que eram dadas a essas instituições; observadas através de em uma leitura sistemática da Lei.

O art. 16, apesar de curto, é o único artigo que trata da desqualificação das entidades. A possibilidade prevista de mobilização desse mecanismo trata apenas do descumprimento do contrato de gestão, reforçando ainda mais a centralidade desse instrumento que, como dissemos, foi abstratamente regulado. A lei estabelece que a desqualificação seria precedida por processo administrativo, no qual respondem os dirigentes na forma individual e solidariamente, por danos decorrentes de ação e omissão ( art. 16, § 1°); cujos efeitos são a reversão dos bens e valores a ela destinados, sem prejuízo de outras sanções (art. 16, §2°). Esta última ressalva diz respeito à fiscalização externa, exercida institucionalmente pelo Tribunal de Contas e Ministério Público.

Por fim, nas disposições finais e transitórias previstas nos arts. 17 a 25, a lei traz diferentes comandos, como a obrigatoriedade de publicação, por parte da OS, de regulamento próprio para contratação de obras e serviços noventa

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dias após a assinatura do contrato de gestão (art. 17), além da obrigatoriedade das OS que prestarem serviços de saúde obedeceram aos princípios do Sistema Único de Saúde - SUS - (art. 18).

Nesse capítulo ganha destaque a previsão do Programa Nacional de Publicização - PNP - a ser criado por meio de decreto do Poder executivo, que deverá estabelecer diretrizes e critérios para qualificação das Organizações Sociais (art. 20). Além disso, a lei também extinguia duas entidades - Laboratório Nacional de Luz Síncroton e Fundação Roquette Pinto - atribuindo as funções por elas desempenhadas a duas Organizações Sociais - Associação brasileira de Tecnologia de Luz Síncroton (ABTLus) e Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (ACERP) - a serem qualificadas pela Poder Executivo autorizado para tal (art. 21, §3°), dentre outras adequações.

Por todas essas características, essa lei, claramente com uma estrutura diferenciada em relação à tradição administrativa brasileira da época, não entrou em vigor sem que sua legalidade fosse contestada no Supremo Tribunal Federal, em um julgamento que compõe a lista dos mais controversos da história daquela corte. É dos debates desse julgamento da medida cautelar que nos ocuparemos a seguir.

3. AS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS E A REFORMA DO ESTADO NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Com tal proposta de inovação, pela justaposição anteriormente mencionada dos paradigmas do direito administrativo brasileiro nas atividades da administração pública, e pela transformação na forma de execução das funções do Estado; o Programa Nacional de Publicização não escapou ao exame do Poder Judiciário.

Por iniciativa do Partido dos Trabalhadores (PT) e do Partido Democrático Trabalhista (PDT), foi impetrada no Supremo Tribunal Federal (STF) uma Ação Direita de Inconstitucionalidade (ADIn) em face de diversos dispositivos da lei 9.637/98; cujos fundamentos eram exatamente as características flexíveis de atuação em relação à estrutura estatal.

Segundo a argumentação defendida, esse modelo descaracterizava o regime jurídico da administração pública cristalizado na Constituição pela inobservância de suas regras e princípios e, especialmente, pela criação de um novo tipo jurídico por ela não previsto, constituindo-se num verdadeiro projeto de privatização do Estado brasileiro.

As normas impugnadas supostamente violavam os artigos da Constituição, que tratavam da fiscalização dos atos pelo Congresso Nacional (art.49, X); a fiscalização contábil financeira, orçamentária, operacional

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e patrimonial também pelo Congresso e pelo sistema interno de cada Poder (art. 70); a elaboração de orçamento de receita e despesa (art. 165, § 5, I); a observância dos limites com despesas de pessoal (art. 169, § 1°); a realização de concurso para admissão de pessoal (art. 37, II); a aquisição de bens e serviços mediante licitação pública (art. 37, XXI); entre outras.

Segundo os postulantes, a violação a essas normas constitucionais ocorreria pelo fato da lei promover profundas transformações no ordenamento institucional da administração pública brasileira, permitindo que o Executivo faça, mediante decreto, o Programa Nacional de Publicização - PNP - e através deste transferir para entidades de direito privado não integrantes da administração pública atividades que a Constituição determina que deveriam ser prestadas pelo Estado. Outra violação seria a possibilidade do Estado valer-se de vantagens inerentes à forma de propriedade privada, o que configuraria, na verdade, um processo de privatização.

Além disso, a ADIn 1923/DF também questionava a possibilidade das OS poderem absorver, por um simples contrato de gestão e qualificação pelo chefe do Executivo, atividades pertencentes ao Estado; bem como gerir e aplicar recursos a ela destinados em lei orçamentária sem se submeter às limitações previstas; especialmente, pela dispensa de licitação. As funções privativas do conselho de administração privariam o controle interno e externo do Poder Público; além de subverterem as normas do SUS. O PNP estaria sendo feito ad hoc para atribuir a essas entidades as tarefas do Estado; que poderiam ser facilmente manipulados por alterações estatutárias transferindo bens e recursos aos particulares, dando grande margem à corrupção.

No curso do processo, requereram ingresso no feito a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e a Academia Brasileira de Ciências, defendendo a constitucionalidade da lei impugnada. Por outro lado, interviram também o Sindicato dos Trabalhadores Públicos de Saúde no Estado de São Paulo - SINDSAÚDE/SP - e o Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior, defendendo a invalidade das Organizações Sociais.

Além disso, manifestaram-se a Procuradoria Geral da República, recomendando a declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto para excluir interpretações que limitassem o poder de fiscalização; e a Advocacia-Geral da União manifestando-se pela constitucionalidade da lei.

A ADIn 1923/DF começou em 1998, com o julgamento de sua medida cautelar, que só terminou em 2007 . Esse é um dos fatos que a coloca entre os casos mais controversos da história do STF. Só o julgamento da medida cautelar durou quase 10 anos, ocorrendo, nesse ínterim, diversas reconfigurações na corte pela sucessão de ministros, a mudança de voto de ministros devido a situações fáticas consolidadas e até mesmo situações complexas; como votos proferidos

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por um ministro e por seu sucessor, cada um abrangendo parte do pedido e com posições aparentemente antagônicas, como veremos a seguir.

3.1. O JULGAMENTO DA MEDIDA CAUTELAR NA ADIN 1923/DF

O relator da medida cautelar na ADIn 1923 foi o ministro Ilmar Galvão. A despeito de ser uma análise somente da cautelar, em seu voto, o ministro enfrentou os principais argumentos acerca da inconstitucionalidade da lei, ressaltando em sua linha argumentativa, que as OS estão vinculadas ao controle pelo Estado, sendo a autonomia a elas conferida apenas uma técnica de administração, instrumentalizada também tecnicamente através do contrato de gestão. As OS, segundo o relator, por serem estruturadas sob a forma de fundação privada ou associação sem fins lucrativos, não gozam das prerrogativas do Estado; uma vez que sua criação é de uma transação de finalidade social, interesse público, não podendo objetivar lucro. Assim, a questão que se colocava era saber se estas atividades não privativas poderiam ser prestadas por outros entes que não o Estado.

Segundo o ministro, os artigos 196 e 197 da Constituição não especificam que o Estado deve prestar assistência à saúde por meio de órgãos públicos, tampouco impede que isso seja feito com a colaboração da iniciativa privada, prestada sob regulamentação, fiscalização e controle; mas sim através de políticas sociais e econômicas. Como são diretamente submetidas ao controle do Estado, não há que se falar em ofensa aos artigos da Constituição. Os objetivos seriam traçados no contrato de gestão, que obedeceria a todos os ditames de legalidade previsto no art. 37 da Constituição, sendo a ressalva que a lei faz acerca dos controles internos, não excludente dos controles externos.

Nessa linha argumentativa, entendendo as OS como uma técnica de gestão para execução das funções do Estado e de que a legalidade estaria garantida pela observância dos preceitos da administração pública nos instrumentos da relação entre o ente público e o privado - contrato de gestão -, o relator Ilmar Galvão mesmo num exame cautelar, enfrentou os principais argumentos do pedido inicial, o que determinou completamente a continuação do julgamento.

Após o voto do relator, os ministros Neri da Silveira, Sepúlveda Pertence e Moreira Alves acompanharam o voto do relator somente em relação às atividades de saúde, previstas no art. 1° da lei, sem trazer a baila fundamentos mais expressivos. Assim, em uma primeira assentada o julgamento da medida cautelar ficou com quatro votos favoráveis ao indeferimento da cautelar, sendo que três deles apenas o faziam em relação às atividades de saúde, sem se pronunciar sobre o restante.

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Ainda nessa oportunidade, pediu vista dos autos o ministro Nelson Jobim. Esse pedido de vista durou de 05/08/1999 até 29/03/2006, quando o julgamento - ainda da cautelar - foi retomado, e no qual esse ministro acompanhou integralmente o ministro relator. Nessa mesma data, foi a vez do ministro Eros Grau pedir vista dos autos, em julgamento que, até esse momento, tinha aparentemente cinco votos pelo indeferimento da cautelar e que já havia durado quase sete anos.

Quase um ano depois - em 02/02/2007 - o ministro Eros Grau trouxe seu voto, inaugurando uma divergência absoluta em relação ao que havia sido discutido até o momento. A argumentação desse ministro teve como eixo central a discussão sobre serviços públicos, tema controverso nas interpretações de nossa Constituição. Segundo ele, ensino e saúde consubstanciam serviços públicos não privativos, que podem ser prestado pelo Estado independente de permissão, concessão ou autorização.

Para o ministro Eros Grau, as OS estariam dentro de uma onda neoliberal, que pretenderia substituir o Estado pelo mercado, conduta proibida pela Constituição brasileira. O instrumento do contrato de gestão daria as organizações favores desmedidos e estariam fundamentadas em uma discricionariedade inconcebível, escandalosa; que permitirá favores de toda espécie, violando principalmente os princípios da licitação (art. 37, XXI) e da isonomia (art. 5°). Interpretação divergente a esta seria resultado do exercício de interpretar a Constituição “em tiras, aos pedaços”, e não como um conjunto.

Não haveria nenhuma razão - ainda segundo Eros Grau - para afastar o princípio da igualdade e a obrigatoriedade de licitação na celebração do contrato de gestão com as organizações sociais, especialmente, por definir um regime difuso de parceria. Tecendo várias críticas ao projeto consubstanciado na lei, afirma que “o termo Publicização pareceria uma espécie de sarcasmo e quer demitir os Estado de suas funções”. Com base nesses fundamentos, concede a liminar.

No voto seguinte, apesar de manifestar concordância com o voto do ministro Eros Grau, o ministro Ricardo Lewandowski pondera o tempo decorrido desde o início do julgamento dessa medida cautelar e argumenta que várias OS já foram criadas nesse período. Assim, como forma de solucionar o problema, propõe conceder a cautelar apenas para suspender o artigo que dispensa a licitação; obrigando a realização desse procedimento daquele momento em diante, deferindo em parte a cautelar somente em relação a esse artigo (art. 24 da Lei 9637/98).

Portanto, até esse momento, o placar computava cinco votos a favor do indeferimento da liminar; sendo que três desses votos referiam-se apenas as atividades de saúde; um voto pelo deferimento da medida cautelar e um voto pelo deferimento em parte, somente em relação à dispensa de licitação.

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O voto seguinte, do ministro Joaquim Barbosa, traz uma curiosidade. Sendo sucessor do ministro Moreira Alves - que já havia votado - em tese, estaria impedido de votar naquela assentada. Todavia, como o antecessor havia se pronunciado apenas em relação ao art. 1° da lei, o ministro Joaquim Barbosa acompanha a divergência trazida pelo ministro Eros Grau em relação ao restante, o que, na prática, significou um voto compartilhado entre dois ministros que se sucederam, no qual o primeiro argumentava pela constitucionalidade de um artigo da lei, enquanto o segundo argumentava pela inconstitucionalidade de todo o restante.

O próximo a votar seria o ministro Gilmar Mendes, que pediu vista dos autos 02/02/2007 e somente votou em 01/08/2008, ou seja, aproximadamente um ano e meio depois. Por suceder o Ministro Neri da Silveira, que também somente havia se pronunciado em relação ao art. 1° da lei, o ministro fez a ressalva de que não apreciaria aquele artigo. Segundo Gilmar Mendes, pelo transcorrer do tempo, a questão ali decidida já havia deixado de ser cautelar há muito tempo. O voto desse ministro pode ser dividido em três grandes partes.

Na primeira, contextualiza a ideia de reforma de Estado, modernização, reconstrução das estruturas e a importância do Programa Nacional de Publicização - PNP e das OS nesse contexto.

Na segunda parte, o ministro faz uma longa análise dos dispositivos da lei; ressaltando os mecanismos de gestão, controle, objetivos, ressaltando o caráter flexível e moderno daquelas estruturas jurídicas como transformações do direito administrativo e da superação dicotômica entre público e privado e da relação com o contexto da necessidade de modernização das estruturas do Estado, trazida na primeira parte.

A terceira parte traz um retrato das OS pelo Brasil, ressaltando que desde o advento da Lei 9637/98, diversos Estado implementaram seus próprios sistemas. No Estado de São Paulo - Decreto 43.493/98, que trata das OS de cultura -, por exemplo, temos a atual estrutura do Museu Pinacoteca de São Paulo, do Memorial da Imigração, do Museu da Imagem e Som - MIS-, do Museu de Arte Sacra, entre outros. Também no Estado de São Paulo a lei complementar n° 846/98 regulamentou parceria do Estado com OS para prestação de serviços de saúde, com aumentos expressivos na prestação dos serviços; exemplo que foi seguido por Goiás, Minas Gerais, Santa Catarina, Bahia e em Sergipe.

O ministro ainda cita como exemplo pioneiro a rede SARAH de hospitais nas cidades de Brasília, Belo horizonte, Salvador e São Luís; sendo referencia internacional pela qualidade dos serviços prestados de forma democrática e transparente. Assim, conclui pela não concessão da liminar.

Após esse voto, o ministro Eros Grau, que inaugurou a divergência, muda o voto sem aderir às razões de mérito, mas alegando ter ficado sensibilizado

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com base nos dados acerca dos serviços prestados pelas OS, especialmente no caso da rede SARAH; também votando pela negação da liminar. Outro a modificar seu voto é o ministro Sepúlveda Pertence, não se limitando mais ao artigo 1° da lei, mas acompanhando integralmente o relator. Também votam pelo indeferimento os ministros Cezar Peluso, Ellen Gracie e Celso de Mello.

O ministro Marco Aurélio, acompanhando parcialmente a divergência anteriormente trazida, aponta a dispensa de licitação e a violação do princípio da isonomia como inconstitucionalidades, caracterizando uma verdadeira substituição do Poder Público, sem observar seus ditames legais. Assim, vota pela suspensão da eficácia das leis impugnadas sem alterar os contratos já existentes, deixando para o mérito as demais questões e permitindo que as OS continuem existindo, segundo ele, “a margem da lei’.

Assim, no dia 01/08/2007, o placar final computou nove votos pela não concessão da liminar, votando dessa forma os ministros Ilmar Galvão, Moreira Alves, Nelson Jobim, Cezar Peluso, Celso de Mello, Sepúlveda Pertence, Ellen Gracie; Neri da Silveira apenas em relação ao artigo 1°; Gilmar Mendes complementando o restante desse mesmo voto; e Eros Grau, sem razões de mérito.

Pelo deferimento da medida cautelar votaram Ricardo Lewandowski, apenas em relação ao art. 24, que tratava das licitações e propondo a modulação dos efeitos para os contratos futuros; Joaquim Barbosa, sucedendo Moreira Alves, mas destoando do voto de seu antecessor em relação ao art. 1° e Marco Aurélio, também propondo os efeitos para o futuro. Portanto, por maioria, a liminar foi indeferida quase uma década depois.

A dinâmica das relações sociais não tem compromisso com os debates jurídicos nem espera sua definição para produzir seus resultados. Nesse longo período, as Organizações Sociais se proliferaram como forma de atuação do Estado em todo o Brasil, a despeito de que sua legalidade ainda estivesse indefinida. O julgamento das OS fornecerá um parâmetro útil ao debate sobre serviços públicos e atividades estatais na Constituição? As transformações do Estado e a consolidação das OS ao longo desses anos influenciará a decisão dos ministros como aparentemente ocorreu na medida cautelar? Que parâmetros garantirão a eficácia de uma decisão tomada após tantos anos? Essas e outras questões aguardam enquanto a decisão final não é tomada.

CONCLUSÃO

As transformações do Estado são capazes de produzir importantes inflexões nas estruturas jurídicas e essa relação também produz efeitos na sociedade. Como vimos, uma suposta modificação da forma de prestação das

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atividades estatais, acirrou um complexo debate que se prolongou por mais de uma década no Supremo Tribunal Federal e até hoje aguarda o julgamento final.

Por buscarem utilizar os benefícios das entidades privadas na prestação de atividades públicas, as OS acabaram se consolidando como um importante instrumento de atuação do Estado nas áreas que lhes são determinadas pela Lei 9637/98. Por outro lado, a despeito desse mecanismo ter sido eficiente sob vários aspectos, sua estrutura também deu margem para vários tipos de “adequações” aos padrões mais tradicionais do direito público, o que poderia desestruturar algumas garantias e princípios que estruturam a gestão pública.

Nesse impasse, nada mais natural que esse debate fosse parar no STF, como de fato ocorreu. Contudo, não só problemas referentes á adequação do instituto estavam sob apreciação, mas a própria proposta de modernização do Estado, que via nessa forma de atuação um importante mecanismo para atingir os objetivos sociais em uma sociedade extremamente dinâmica. Assim, talvez por essa importância, a medida cautelar tenha demorado mais de 10 anos para ser julgada.

Se as OS estão em sintonia com a Constituição ou não o STF dirá. Mas fato é que, como projeto político de transformação do Estado, as OS já se consolidaram, atualmente sendo um importante mecanismo de realização das atividades estatais. Seria o Estado atual capaz de sobreviver sem as OS? O STF irá apenas reparar alguns mecanismos que apresentam problemas, como aparentemente tem sido a tendência dos votos, agindo como um regulador? Como esse novo Estado, na sua estrutura formal prevista na Constituição, lidará com esse setor público privado? Como ficará a doutrina dos serviços e atividades públicas e após essa decisão? Como se desencadeará essa justaposição de concepções acerca do direito administrativo?

Essas e outras questões aguardam uma resposta que em parte virá do STF, mas que terá sido construída com diversas outras experiências que contaram com uma intensa participação da sociedade, que inclui também os pesquisadores na área do direito e políticas públicas. Enquanto a resposta definitiva não vem, resta ao Estado à continuidade de suas atividades e funções que, por ora, tem nas OS um importante instrumento para tal; e aos estudiosos a missão de auxiliar nesse processo oferecendo diagnósticos e proposições que possam ser úteis aos impasses resultantes dessas indefinições.

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APLICAÇÃO DA TEORIA DO SOPESAMENTO EM COLISÕES ENTRE LIBERDADE DE EXPRESSÃOE O DIREITO À PRIVACIDADE DO BIOGRAFADO

Raquel Evelin Gonçalves Coltro88

RESUMO

Neste artigo abordar-se-á a aplicação da teoria do sopesamento tratada na obra “Teoria dos Direitos Fundamentais” de Robert Alexy, tradução de Virgílio Afonso da Silva, quando há colisão entre liberdade de expressão e direito à privacidade do biografado. Ressaltaremos considerações e soluções que envolvem o exercício ao direito de liberdade de expressão, imperativo do regime democrático, e sua preocupante colisão com a privacidade do biografado.

Palavras-Chave: Teoria do Sopesamento; Liberdade de Expressão; Direito à Privacidade do Biografado.

SUMÁRIO: 1. Considerações sobre o direito à liberdade de expressão. 2. Considerações sobre direito à privacidade do biografado. 3. Teoria do Sopesamento de Robert Alexy. 4. Aplicação da teoria do sopesamento. Conclusão. Referências.

1. CONSIDERAÇÕES SOBRE O DIREITO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO

Considerada um dos direitos fundamentais do mundo moderno, a liberdade de expressão (gênero), que abarca a liberdade de informação, de manifestação de pensamento, de comunicação, de acesso à informação, de opinião, de imprensa, de mídia, de divulgação e de radiodifusão, encontra-se garantida pelo texto constitucional brasileiro em seu artigo 5º, incisos IV, IX, sendo tema que tem fomentado discussões e polêmicas nos últimos anos, em especial com relação a publicação de biografias sem autorização prévia, o que vem repercutindo valores fundamentais dos indivíduos e da sociedade brasileira.

Dispõe o inciso IV do art. 5º, da Constituição Federal, ser “livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato” e o inciso IX, ser “livre a expressão de atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independente de censura ou licença”, sendo a liberdade de expressão elemento indissociável ao princípio democrático que “funciona como um verdadeiro

88 Mestranda em Direitos Humanos Fundamentais pela UNIFIEO/Osasco. Especialista em Processo Civil e Civil pelo UNIFIEO. Pós-Graduada em Didática do Ensino Superior. Advogada.

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termômetro no Estado Democrático”89.No parágrafo segundo, do art. 5º, temos disposto que “os direitos e

garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Assim, acrescenta-se à definição constitucional de “liberdade de expressão” o “Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos”, adotado em Resolução pela XXI Sessão da Assembleia Geral da ONU, em 16 de dezembro de 1966 e ratificado pelo Brasil em 24 de janeiro de 1992, após ser aprovado pelo Congresso Nacional em decreto legislativo de 12 de dezembro de 1991, dispondo em seu art. 19 que:

1. Ninguém poderá ser molestado por suas opiniões. 2. Toda pessoa terá direito à liberdade de expressão; esse direito incluirá a liberdade de procurar, receber e difundir informações e ideias de qualquer natureza, independentemente de considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, em forma impressa ou artística, ou qualquer outro meio de sua escolha. 3. O exercício do direito previsto no § 2º do presente artigo implicará deveres e responsabilidades especiais. Consequentemente, poderá estar sujeito a certas restrições, que devem, entretanto, ser expressamente previstas em lei e que se façam necessárias para: a) assegurar o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas; b) proteger a segurança nacional, a ordem, a saúde ou a moral pública90.

O Brasil, em 1992, aderiu à Convenção Americana de Direitos Humanos

(Pacto de São José da Costa Rica) cujo art. 13, disciplina:

1. Toda pessoa tem o direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito inclui a liberdade de procurar, receber e difundir informações e idéias de qualquer natureza, sem considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer meio de sua

89 PEREIRA, Guilherme Döring Cunha. Liberdade e Responsabilidade dos Meios de Comunicação. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.90 Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. Disponível em: ˂http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/pacto_ dir_politicos.htm˃. Acesso em: 20 agosto 2014.

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escolha. 2. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito à censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente previstas em lei e que se façam necessárias para assegurar: a) o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas; b) a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas91.

A liberdade de informação e de expressão (gênero) é tratada de forma conjunta pelo direito norte-americano92, pelo Convênio Europeu de Direitos Humanos, em seu art. 1193, e pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, em seu art. 19.

Temos que a palavra falada é a manifestação mais comum do pensamento, onde alguém se dirige a pessoa ou pessoas presentes para expor o que pensa. Essa liberdade é consagrada pelo art. 5, inciso IV da Constituição Federal. É “uma das principais de todas as liberdades humanas por ser a palavra uma das características fundamentais do homem, o meio por que este transmite e recebe as ligações da civilização”94.

O termo liberdade de expressão (gênero) não se traduz em conceito singular, dada a existência de diferentes definições. Advertiu Pontes de Miranda, que “as definições das liberdades não são fáceis (...)”95, ciente de que a largueza temporal e a relevância material não foram suficientes para oferecer

91 Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica). Disponível em: ˂http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/anexo/and678-92.pdf˃. Acessado em: 20 agosto de 2014.92 BARROSO, Luis Roberto. Colisão entre liberdade de expressão e direitos da personalidade. Critérios de ponderação. Interpretação constitucionalmente adequada do Código Civil e da Lei de imprensa. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, pág. 18. In: Revista do Curso de Direito da Universidade São Marcos. São Paulo: Unimarco, 2001. Apud. TRIBE, Laurece. Constitutional Law. 1998, p. 785 e s.; e NOWAK, Rotunda e Young. Constitutional Law. 1986, p. 829 e s.93 Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Liberdade de expressão e de informação. Artigo 11.1.   Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber e de transmitir informações ou ideias, sem que possa haver ingerência de quaisquer poderes públicos e sem consideração de fronteiras. 2. São respeitados a liberdade e o pluralismo dos meios de comunicação social.” Disponível em:˂http://eur-lex.europa.eu/pt/treaties/dat/32007X1214/htm/C2007303PT.01000101.htm˃. Acessado em: 23 agosto de 2014.94 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. In: Dos Direitos Fundamentais na Constituição Brasileira. Capítulo 32. 38ª ed., revista e atualizada. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 329.95 MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de. Democracia, Liberdade e Igualdade (os três caminhos). São Paulo, Saraiva, 1979, p. 288.

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um conceito seguro àquilo que se denomina liberdade. Assim, a definição de liberdade de expressão é extremamente complexa. Para uns, é “entendida como exacerbação do princípio autonomístico da determinação individual”96, já, para outros, “a ausência de oposição – quando digo oposição, quero dizer impedimentos externos à ação”97.

Sobre a imprecisão da locução liberdade de expressão, explica André Ramos Tavares, que:

Há na doutrina brasileira uma patente imprecisão acerca do real significado e abrangência da locução liberdade de expressão. Parcela dessa responsabilidade, porém, pode muito bem ser atribuída ao legislador constituinte que, de maneira consciente ou não, pulverizou manifestações diversas, consagrando em momentos distintos facetas de uma mesma e possível liberdade de expressão (diversos incisos do art. 5º, da Constituição Federal de 1988). Serve para agravar o problema o uso da locução liberdade de expressão no inciso IX desse mesmo artigo, “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”98.

Assim, “deixa-se transparecer que a liberdade de expressão seria

direito de natureza diversa, do direito à manifestação do pensamento”99. Na doutrina brasileira, já se distingui as liberdades de informação e de expressão100,

96 BASTOS, Celso Ribeiro. MARTINS, Ives Gandra da Silva. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo, Saraiva, 2001, p. 17.97 TAVARES, André Ramos. Liberdade de Expressão-Comunicação em face do Direito à Privacidade. In: Direito à Privacidade. MARTINS, Ives Gandra da Silva Martins. PEREIRA JÚNIOR, Antonio Jorge. (Coordenadores). Idéias & Letras. Apud HOBBES, Thomas. Of the liberty of Subjects, In. STERWART, Michel M. Readings in Social & Political Philosoph . Oxford, Oxford University Press, 1996, p. 88, tradução livre.98 TAVARES, André Ramos. Liberdade de Expressão-Comunicação em face do Direito à Privacidade. In: Direito à Privacidade. MARTINS, Ives Gandra da Silva Martins. PEREIRA JÚNIOR, Antonio Jorge. (Coordenadores). Idéias & Letras.99 BASTOS, Celso Ribeiro. MARTINS, Ives Gandra da Silva. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo, Saraiva, 2001.100 CARVALHO, Luís Gustavo Grandinetti Castanho de. Direito de Informação e liberdade de expressão.1999, p. 25: “Por isso é importante sistematizar, de um lado, o direito de informação, e, de outro, a liberdade de expressão. No primeiro está apenas a divulgação de fatos, dados, qualidades, objetivamente apuradas. No segundo está a livre expressão do pensamento por qualquer meio,

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registrando que a primeira diz respeito ao direito individual de comunicar livremente fatos101 e ao direito difuso de ser deles informado; sendo a segunda, a liberdade de expressão (gênero), por sua vez, destinada a tutelar o direito de externar ideias, opiniões, juízos de valor, ou seja, qualquer manifestação de pensamento humano.

Certo é que o termo liberdade de expressão não se reduz ao externar sensações e sentimentos, pois abarca tanto a liberdade de pensamento, que se restringe aos juízos intelectivos, como também o externar sensações. Esta afirmação verifica-se na inteligência do próprio art. 5º, IX, da Constituição da República.

Liberdade de expressão, portanto, é direito genérico que abarca inúmeras formas e direitos conexos. Dentre estes direitos conexos presentes no gênero liberdade de expressão “podem ser mencionados, aqui, os seguintes: liberdade de manifestação de pensamento; de comunicação; de informação; de acesso à informação; de opinião; de imprensa, de mídia, de divulgação e de radiodifusão”102.

É em decorrência dessa dimensão que surgem as liberdades de comunicação, imprensa, de radiodifusão, de informar, dentre outras coadunadas com a ideia de “veicular informação”.

Pode-se elencar como finalidades constitucionais fundamentais, entre outros, a procura da verdade, a garantia de um mercado livre das ideias, a participação no processo de autodeterminação democrática, a proteção da diversidade de opiniões, a estabilidade social e a transformação pacífica da sociedade e a expressão da personalidade individual”103.

Discutindo censura privada à liberdade de expressão (gênero), tramita na Suprema Corte do STF, ADIn n. 4815, proposta pela Associação Nacional dos Editores de Livros (Anel), representando 35 editoras, a qual pede que o Supremo declare inconstitucionais os artigos 20 e 21 do Código Civil. O artigo 20 dispõe que “salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à

seja a criação artística ou literária, que inclui o cinema, o teatro, a novela, a ficção literária, as artes plásticas, a música, até mesmo a opinião publicada em jornal ou em qualquer outro veículo”.101 BARROSO, Luis Roberto. Colisão entre liberdade de expressão e direitos da personalidade. Critérios de ponderação. Interpretação constitucionalmente adequada do Código Civil e da Lei de imprensa. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, pág. 18. In: Revista do Curso de Direito da Universidade São Marcos. São Paulo: Unimarco, 2001. Apud. BARROSO, Porfírio. TAVAREZ, Marta del Mar López Talavera. La libertad de expresión y sus limitaciones constitucionales. 1998, p. 49.102 TAVARES, André Ramos. Liberdade de Expressão-Comunicação em face do Direito à Privacidade. In: Direito à Privacidade. MARTINS, Ives Gandra da Silva Martins. PEREIRA JÚNIOR, Antonio Jorge. (Coordenadores). Idéias & Letras.103 MACHADO, Jónatas E. M. Liberdade de expressão, dimensão constitucionais da esfera pública no sistema social. Coimbra, Coimbra Editora, 2002, p. 237.

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manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas”. O artigo 21 diz que a vida privada é inviolável e autoriza o juiz a adotar “as providencias necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma”. Conforme divulgado no Jornal do Advogado (2013)104, entende a Associação que em razão dos artigos não contemplarem exceção sobre as obras biográficas, acabaram por violar as liberdades de manifestação do pensamento, da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação. Argumentam ainda que, por serem pessoas públicas, os biografados têm privacidade restrita: “sua história de vida passa a confundir-se com a história coletiva, na medida da sua inserção em eventos de interesse público. Daí que exigir prévia autorização do biografado – ou de seus familiares, em caso de pessoa falecida – importa consagrar uma verdadeira censura privada à liberdade de expressão dos autores, historiadores e artistas em geral, ao direito à informação de todos os cidadãos”.

A Ministra Cármen Lúcia explicou que “A matéria versada na ação ultrapassa os limites de interesses específicos da entidade autora ou mesmo apenas de pessoas que poderiam figurar como biografados, repercutindo em valores fundamentais dos indivíduos e da sociedade brasileira”105.

Em um país que adotou uma Constituição detalhista, que abarcou, a proteção da liberdade de expressão e em pé de igualdade, abarcou também, a privacidade, a honra e a intimidade do biografado, temos o desafio de contribuir, através deste trabalho, com a exposição de informações da técnica do sopesamento face as discussões sobre biografias não-autorizadas, possibilitando solução de conflitos que permeiam ambos direitos fundamentais aqui considerados.

2. CONSIDERAÇÕES SOBRE DIREITO À PRIVACIDADE DO BIOGRAFADO

Dispõe o art. 5º, X, da Constituição que são “invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

Regulamenta o Código Civil os direitos da personalidade, nos artigos 11 a 21. O artigo 20 dispõe que “salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização

104 Jornal do Advogado. Biografias polêmicas. Ano XXXIX – n. 389 – Novembro-2013. OAB São Paulo. pp. 16-17 105 Disponível em: ˂http://www2.stf.jus.br/portalStfInternacional/cms/ destaquesNewsletter.php?sigla= newsletterPortalI nternacionalNoticias&idConteudo=253883˃. Acessado em: 23 agosto de 2014.

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da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas”. O artigo 21 diz que a vida privada é inviolável e autoriza o juiz a adotar “as providencias necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma”.

Podemos considerar direito à vida privada, intimidade e até mesmo segredo, um traço comum do que consideramos, genericamente, direito à privacidade. Acrescenta Claudio Luiz Bueno de Godoy, que:

haveria dentro do conceito de vida privada – encerrando, ela própria, um raio mais extenso -, uma esfera mais restrita, a da intimidade e, depois, ainda um grau menor, em que se conteria o direito ao segredo. Por outra, no âmbito maior da vida privada haveria um núcleo menor de tutela à intimidade e, por fim, um espaço ainda mais indevassável que seria o do segredo, quer da comunicação, da correspondência, quer do domicílio ou de dados profissionais. Portanto, o resguardo se faria a partir de limites mais ou menos extensos, a rigor como se houvesse uma relação de gênero e espécie entre vida privada, intimidade e mesmo segredo106.

Todavia, colhe-se da doutrina forte entendimento de que, a intimidade envolve sempre uma esfera de maior reserva, portanto a salvo da intromissão mesmo de pessoas da vida de relações próximas, da vida privada do indivíduo, abrangeria até o direito de estar só.

Segundo Celso Ribeiro Bastos consiste o direito à privacidade na faculdade que tem cada indivíduo de obstar a intromissão de estranhos na sua vida privada e familiar, assim como de impedir-lhes acesso a informações sobre a privacidade de cada um e também impedir que sejam divulgadas informações sobre esta área da manifestação existencial do ser humano107.

Costuma-se identificar, como objeto do direito à privacidade, a tutela de dados da pessoa que digam com suas crenças, confidências, pensamentos, hábitos, sua vida afetiva, familiar, negócios particulares, porém necessariamente uma exemplificação não

106 GODOY, Claudio Luiz Bueno de. O Direito à Privacidade nas Relações Familiares. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva. FERREIRA JÚNIOR, Antonio Jorge. (Coord.). DIREITO À PRIVACIDADE. Idéias & Letras, pp. 127-128.107 BASTOS,Celso Ribeiro. Comentários à Constituição do Brasil. v. II. p. 63.

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exaustiva – a tanto bastando constatar que por vezes até informações sobre o patrimônio imobiliário de alguém, cadastrados em registro público, conforme o tratamento que recebem a utilização que lhes seja dada, podem ser móvel de respectiva afronta108.

Trata-se de um conceito aberto relacionado a privacidade, cujo conteúdo irá variar em função do titular da prerrogativa em exame e de sua situação, de sua inserção histórico-cultural.

Muitos doutrinadores tratam a privacidade e a intimidade como sinônimos109.

Na literatura alemã, segundo comentários110 de José Adércio Leite Sampaio, encontramos diferentes nomes para distintos extratos de atuação da vida individual: íntimo, secreto, privado, social e público, bem como uma recente elaboração de um informationelle Selbstbestimmungsrecht (direito de autodeterminação informacional), extraídos, a partir de um juízo concreto de ponderação, do “direito geral da personalidade” (elemento passivo do desenvolvimento da personalidade: referência à situação do “ser”) e do “direito geral da personalidade” (elemento ativo daquele desenvolvimento: referência à ação, ao “fazer”) assegurados pelos arts. 1.1 e 2.1 da Lei Fundamental de Bonn. Acrescenta ainda, que o direito geral à vida privada desafia uma compreensão muito mais ampla, assentada na própria ideia de autonomia privada e da noção de livre desenvolvimento da personalidade, sem embargo, contida em certos desdobramentos materializantes [...] tais desdobramentos são produtos de uma dada realidade social, econômica e política, percebível pelo pensamento jurídico contemporâneo e, por ele, revelado.

Entende-se por biografia “o relato da vida de uma pessoa111” ou a vida transcrita, na etimologia grega (bios, vida, + grafia, escrita). Neste sentido, há posicionamentos de que a publicação da biografia, sem autorização do biografado ou de seus familiares, afronta à privacidade e intimidade, como, por exemplo, o caso da biografia Estrela solitária: um brasileiro chamado Garrincha,

108 TAVARES, André Ramos. Liberdade de Expressão-Comunicação em face do Direito à Privacidade. In: Direito à Privacidade. MARTINS, Ives Gandra da Silva Martins. PEREIRA JÚNIOR, Antonio Jorge. (Coordenadores). Idéias & Letras. Apud. KAYSER, Pierre. La protecion de La vie privée par Le droit. Paris, Economica, 1995, pp. 290-293.109 SILVA CASTRO, Mônica Neves da. Honra, Imagem, Vida privada e Intimidade, em Colisão com outros Direitos. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.32.110 SAMPAIO, José Adércio Leite. Comentário ao art. 5º, X. In: CONOTILHO, J.J.Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; STRECK, Lenio L. (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: saraiva/Almedina, 2013. p. 277. 111 LUFT, Celso Pedro. Minidicionário Luft. 22.ed., São Paulo: Ática, 2009.

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escrita por Ruy Castro, proibida pela Justiça a pedido dos herdeiros do jogador de futebol contra a Editora Schwarcz Ltda.

Thomas M. Scanlon alerta para o fato de que “(...) mesmo que não aceite o que me é dito ou mostrado, considerando-o como besteira ou exagero, estarei um pouco alterado pelo fato de tê-lo visto ou escutado”112. O que pretende dizer é que uma situação gerada por uma divulgação imprópria acerca da conduta, da imagem, da privacidade, da dignidade, do bom nome ou da honra de determinada pessoa, é irreversível.

O assunto é de extrema relevância e encontra-se em discussão no Supremo Tribunal Federal, havendo a necessidade de o judiciário aplicar as técnicas de “sopesamento” para melhor decidir sobre a colisão existente entre princípios consagrados fundamentais pela Constituição Federal Brasileira.

3. TEORIA DO SOPESAMENTO DE ROBERT ALEXY

Na obra “teoria dos direitos fundamentais”, o autor Roberty Alexy, considerado um dos mais influentes juristas alemães da atualidade, aduz sobre a ideia do sopesamento, também conhecida como teoria do sopesamento. O objetivo do sopesamento é definir qual dos interesses – que abstratamente estão no mesmo nível – tem maior peso no caso concreto113. Estamos no campo da “metáfora do peso”114, onde os objetos são os princípios em colisão, e a técnica são os meios e condições pelos quais se busca apurar qual princípio terá maior peso e precedência sobre o outro.

O autor cita na obra dois exemplos de sopesamento feitos pelo Tribunal Constitucional Federal, os quais servem para a compreensão da estrutura das soluções de colisões, que se resumirá na chamada lei de colisões e o outro, servindo para aprofundar a compreensão sobre o resultado do sopesamento como norma de direito fundamental atribuída115. O primeiro exemplo refere-se a decisão sobre a incapacidade para participar de audiência processual, e o segundo sobre a decisão do caso Lebach.

No primeiro, trata-se da admissibilidade de realização de uma audiência com a presença de um acusado que, devido à tensão do procedimento, correria

112 TAVARES, André Ramos. Liberdade de Expressão-Comunicação em face do Direito à Privacidade. In: Direito à Privacidade. MARTINS, Ives Gandra da Silva Martins. PEREIRA JÚNIOR, Antonio Jorge. (Coordenadores). Idéias & Letras.113 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. SILVA, Virgilio Afonso da. (Trad.). 2ª edição. 3ª tiragem. São Paulo, Malheiros Editores Ltda., 2014, p. 95.114 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. SILVA, Virgilio Afonso da. (Trad.). 2ª edição. 3ª tiragem. São Paulo, Malheiros Editores Ltda., 2014, p. 97.115 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. SILVA, Virgilio Afonso da. (Trad.). 2ª edição. 3ª tiragem. São Paulo, Malheiros Editores Ltda., 2014, p. 94.

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o risco de sofrer derrame cerebral ou infarto. Neste caso, há uma relação de tensão entre o dever estatal de garantir uma aplicação adequada do direito penal e o interesse do acusado na garantia de seus direitos constitucionais consagrados. Não seria possível, segundo Alexy solucionar a tensão com base em uma precedência absoluta de um dos deveres, uma vez que nenhum deles goza, por si só, de prioridade. Referido conflito, “deve, ao contrário, ser resolvido por meio de um sopesamento entre os interesses conflitantes”. Se isoladamente considerados ambos os princípios conduzem a uma contradição, segundo o autor, ou seja, um princípio restringe as possibilidades jurídicas de realização do outro. Neste caso não é possível resolvê-lo invalidando um, pois não podemos retirá-lo do ordenamento jurídico, nem mesmo introduzindo cláusula de exceção (situações possíveis somente no conflito de regras, mais a frente considerado). “A solução para essa colisão consiste no estabelecimento de uma relação de precedência condicionada entre os princípios, com base nas circunstâncias do caso concreto”116, o que consiste na fixação de condições, para saber se os interesses do acusado tem um peso maior que os interesses a cuja preservação a atividade estatal deve servir. Decidiu o Tribunal, com base na Constituição alemã que “se a realização da audiência implica um risco provável e concreto à vida do acusado ou uma possibilidade de dano grave a sua saúde, então, a continuação do procedimento lesa seu direito fundamental garantido pelo art. 2º, § 2º, 1, da Constituição”117.

No segundo, trata-se do caso Lebach, onde a emissora de televisão ZDF planejava exibir um documentário chamado “O assassinato de soldados em Lebach”. Esse programa pretendia contar a história de um crime no qual quatro soldados do Exército Alemão, perto da cidade de Lebach, foram mortos enquanto dormiam e armas foram roubadas. Um dos condenados, que, na época prevista para exibição do documentário, estava perto de ser libertado da prisão, entendia que a exibição do programa, no qual ele era nominalmente citado e apresentado por meio de fatos, violaria seu direito fundamental garantido pela Constituição alemã, sobretudo porque sua ressocialização estaria ameaçada. A colisão entre princípios, neste exemplo, desenvolveu-se em três etapas: 1) na primeira apurou-se a tensão entre a proteção da personalidade e a liberdade de informar por meio de radiodifusão, sendo certo que nenhum dos princípios, chamados de valores constitucionais “pode pretender uma precedência geral”118, sendo necessário decidir qual interesse deve ceder; 2) na segunda,

116 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. SILVA, Virgilio Afonso da. (Trad.). 2ª edição. 3ª tiragem. São Paulo, Malheiros Editores Ltda., 2014, p. 96.117 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. SILVA, Virgilio Afonso da. (Trad.). 2ª edição. 3ª tiragem. São Paulo, Malheiros Editores Ltda., 2014, p. 98.118 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. SILVA, Virgilio Afonso da. (Trad.). 2ª

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o Tribunal analisou uma precedência geral da liberdade de informar, no caso de uma informação atual sobre atos criminosos (análise de uma precedência geral ou básica), o que significa para Alexy, que “nem toda informação atual é permitida”; 3) etapa da decisão, onde o Tribunal decidiu que no caso da “repetição do noticiário televiso sobre um grave crime, não mais revestido de um interesse atual pela informação, que coloca em risco a ressocialização do autor, a proteção da personalidade, tem precedência sobre a liberdade de informar, o que significa a “proibição da veiculação da notícia”119.

Sustenta Alexy que “a diferença entre regras e princípios mostra-se com maior clareza nos casos de colisões entre princípios e de conflitos entre regras”120 e, que duas normas, se isoladamente aplicadas, levariam a resultados incompatíveis entre si, uma vez que para o conflito de regras, o meio de solução seria introduzir uma cláusula de exceção, caso esta solução não fosse possível, seria necessário declarar inválida uma das regras, retirando-a do ordenamento jurídico.

Já, com relação a conflito entre regras, a obra trás um exemplo decidido pelo Tribunal Constitucional Federal, com base na norma sobre conflitos (art. 31 da Constituição alemã), onde o direito federal tem prioridade sobre o direito estadual, vejamos:

O §22, 1, da ordenação sobre horário de trabalho, de 1934 e 1938 (direito federal vigente na época da decisão), que, pela interpretação do tribunal, permitia a abertura de lojas entre 7 e 19h nos dias úteis, e o §2º da lei do Estado de Baden sobre o horário de funcionamento do comércio, de 1951, que, entre outras coisas, proibia a abertura de lojas após as 13h nas quartas-feiras. As duas regras não poderiam valer ao mesmo tempo, caso contrário a abertura das lojas nas tardes de quartas-feiras seria tanto permitida quanto proibida. A possibilidade de considerar a cláusula da lei estadual como uma exceção ao direito federal estava excluída, em face do disposto no artigo 31 da Constituição. Nesse sentido, restou apenas a possibilidade de declaração de nulidade da norma de direito estadual121.

edição. 3ª tiragem. São Paulo, Malheiros Editores Ltda., 2014, p. 100.119 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. SILVA, Virgilio Afonso da. (Trad.). 2ª edição. 3ª tiragem. São Paulo, Malheiros Editores Ltda., 2014, p. 102.120 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. SILVA, Virgilio Afonso da. (Trad.). 2ª edição. 3ª tiragem. São Paulo, Malheiros Editores Ltda., 2014, p. 91.121 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. SILVA, Virgilio Afonso da. (Trad.). 2ª edição. 3ª tiragem. São Paulo, Malheiros Editores Ltda., 2014, p. 93.

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Se analisarmos este exemplo em face da discussão proposta neste trabalho, qual seja a publicação de biografias não-autorizadas, que representa em um primeiro plano o conflito entre a liberdade de expressão (gênero) e as regras do Código Civil, artigos 20 (salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas) e artigo 21 (autoriza o juiz a adotar as providencias necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma) – o que chamamos de análise do elemento da generalidade -, poderemos observar que o Código Civil toca no chamado comando constitucional dos direitos da personalidade, quais sejam a honra, a vida privada, a intimidade, expressamente previsto na constituição no art. 5º, blindando-o em caso de publicação biográfica, limitando, por consequência o comando Constitucional que garante a liberdade de expressão.

Tal situação representa uma colisão entre princípios fundamentais e não conflito de regras. A regra, no caso os artigos do Código Civil, seriam cláusula de exceção sobre o direito a liberdade de expressão, o que segundo Robert Alexy, não é possível em matéria de princípios. Se assim interpretarmos as regras do código civil, teríamos uma regra inconstitucional (art. 20 e 21 do CC), sendo necessário invalidá-las, retirando-as do campo do ordenamento jurídico (objeto da ADIn 4815 já citada).

Com relação a colisão entre princípios, Alexy explica que “se dois princípios colidem – o que ocorre, por exemplo, quando algo é proibido de acordo com um princípio e, de acordo com o outro, permitido -, um dos princípios terá que ceder”122. Neste caso, um princípio terá preferência em detrimento do outro, sob determinadas condições, pois esta solução não se encontra no campo da validade. Os princípios, enquanto mandados de otimização, devem ser realizados em conformidade com disposições fáticas e jurídicas. Assim, um princípio pode recuar em detrimento da aplicação de outro, sem que isso signifique declarar a sua invalidade.

Usa-se também, no sopesamento, o critério da necessidade para a escolha do melhor meio para que seja o fim almejado obtido, ou seja, o meio menos gravoso.

A solução é, através da ponderação, por meio da relação de precedência condicionada, ou seja, análise do caso concreto, deve ser decidida em consonância com as possibilidades jurídicas e fáticas, verificando qual princípio possui o maior peso no caso concreto, aplicando-se o conceito da máxima da proporcionalidade. A ponderação envolve uma investigação pelo intérprete

122 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. SILVA, Virgilio Afonso da. (Trad.). 2ª edição. 3ª tiragem. São Paulo, Malheiros Editores Ltda., 2014, p. 93.

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sobre o melhor argumento (teoria da argumentação), considerando-se sempre a razoabilidade.

Considerando que nosso sistema jurídico constitucional é aberto, necessário se faz a utilização dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. A proporcionalidade possui natureza axiológica, precede e condiciona a positivação jurídica. O supremo tribunal federal possui reiteradas decisões o considerando como princípio constitucional, que, além da função fundamentadora da ordem jurídica, exerce função interpretativa, contribuindo para solucionar o problema da colisão entre valores constitucionalizados. No ordenamento brasileiro, a proporcionalidade foi inserida como método hermenêutico constitucional para equacionar a colisão entre direitos e garantias fundamentais, ponderando-os de forma a evitar desnecessárias restrições. Hoje sua aplicação é mais ampla, deve servir de diretriz ao ordenamento jurídico como um todo, assegurando-se a sua aplicação equânime. Já a razoabilidade, as acepções da palavra apontam a conformação com a razão, moderado, comedido, aceitável, regular, justo, legítimo, ponderado e sensato. O sentido do princípio da razoabilidade apontado por Alexy é justamente a construção de parâmetros de aceitabilidade na restrição de direitos fundamentais.

Outra técnica que se faz presente no processo de sopesamento, é que quanto maior for o grau de não cumprimento de um princípio, maior deve ser a importância da realização do outro.

Todas estas técnicas mencionadas por Robert Alexy em sua obra, se resumem na forma de conduzir a ponderação (ou lei de ponderação) já presente na doutrina e jurisprudência brasileira, conhecida como teoria do sopesamento.

4. APLICAÇÃO DA TEORIA DO SOPESAMENTO

Tanto a inviolabilidade a vida privada como a liberdade de expressão estão asseguradas em nosso ordenamento jurídico, de forma igualitária. O desafio ocorre quando a liberdade de expressão colide com o direito a privacidade do biografado.

É fato que o ser humano necessite de liberdade para desenvolver a própria personalidade de forma plena e autêntica. A par disto, notamos que o ordenamento jurídico moderno toma para si a responsabilidade pela tutela da liberdade e da personalidade humana nos seus mais diversos aspectos, como temos no teor do art. 5º, da nossa Constituição Federal. Em posse desta responsabilidade, o Direito tende a caminhar rumo à efetivação da proteção da pessoa, inclusive, buscando o equilíbrio entre a formalidade necessária à segurança jurídica e os juízos ponderados que a materialização de direitos requer.

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Há que se assegurar ao ser humano, dentre tantos direitos, seu direito à informação, expressão e privacidade, tantas vezes violada “em um tempo de massificação e globalização da informação, em que sobrelevam os meios imediatos de comunicação entre pessoas e povos”123. No campo do sopesamento, temos a técnica e a balança de peso, as quais analisarão qual princípio deverá ceder. Tal matéria está sendo discutida junto ao STF através da ADIn 4815, conforme mencionado acima. Contudo, se hipoteticamente fossemos aplicar a teoria do sopesamento para decidir a tensão entre os princípios constitucionais, teríamos que avaliar vários pontos e argumentos, além de aplicar toda técnica proposta por Alexy em sua obra Teoria dos Direitos Fundamentais.

Inúmeros são os argumentos que devem ser analisados para decidir a situação em tela. Há argumentos no sentido de preservar os interesses da história e da cultura e, portanto, contra a limitação da liberdade de expressão através dos comados do Código Civil, que sustenta que o Estatuto Republicano não se distanciou da uníssona dicção das declarações universais de direitos humanos baixadas pela ONU, pela UNESCO, e repetidas nas convenções americanas, a qual textualmente dispõe que “As leis da privacidade não devem inibir nem restringir a investigação e a difusão de informação de interesse público”.

Rachel de Queiroz apresentou “Parecer Técnico”, em 1996, expondo que “Felizmente, no mundo inteiro, a biografia autorizada é a exceção, não a regra. Porque, se assim não fosse, os herdeiros de Napoleão poderiam exigir que sua história fosse expurgada de Waterloo e Santa Helena; os de Oscar Wilde exigiriam que se omitisse o seu caso com Lord Alfred Douglas, sua prisão no cárcere de Reading e sua triste morte em Paris; os de Tiradentes proibiriam que se contasse que ele foi condenado, enforcado e esquartejado. Em todos esses casos, não teríamos a História, mas uma versão postiça, maquiada e emasculada”124.

Temos o professor Paulo José da Costa, para o qual o interesse público deve prevalecer sobre a intimidade, entendendo que o interesse do indivíduo em proteger os seus segredos, “[...] é superado pelo interesse público, justificando-se o sacrifício da intimidade”125.

123 GODOY, Claudio Luiz Bueno de. O Direito à Privacidade nas Relações Familiares. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva. FERREIRA JÚNIOR, Antonio Jorge. (Coord.). Direito à Privacidade. Idéias & Letras, p. 120.124 Rachel de Queiroz, no “Parecer Técnico” anexado, em 1996, à ação judicial moída pelas herdeiras do jogador Garrincha contra a Editora Schwarcz Ltda. (42ª Vara Cível do RJ – Proc. nº 24.263).125 COSTA, Paulo José da. O Direito de Estar Só: Tutela Penal da Intimidade. São Paulo: Revista dos Tribunais. p.42.

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Com o título “Histórias vazias. A autorização prévia de biografias suscita debates acalorados envolvendo o equilíbrio de direitos constitucionais como o direito à liberdade de expressão, à informação e à intimidade” o Jornal do Advogado, expedido pela OAB/SP, expôs que durante a XVI Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro, houve manifesto de algumas personalidades favoráveis à publicação de biografias não-autorizadas, ressaltando a importância do gênero para imortalizar personagens e ajudar a consolidar um patrimônio de símbolos e tradições nacionais, bem como que:

A biografia moderna não é só a história de uma pessoa, mas também de uma época, vista através da vida daquela pessoa [...] o Brasil é a única grande democracia na qual a publicação de biografias de personagens públicas depende de prévia autorização do biografado. Um país que só permite a circulação de biografias autorizadas reduz a sua historiografia à versão dos protagonistas da vida pública, econômica, social e artística. Uma espécie de monopólio da história, típico de regimes totalitários126.

Para fins de sopesamento, importante levar em consideração os argumentos expostos na manifestação citada acima, em especial porque referido manifesto sublinha que a autorização prévia de biografias produz um grave efeito no que tange à construção da memória coletiva do país: “o conhecimento da história é um direito da cidadania, independentemente de censura ou licença, do Estado ou dos personagens envolvidos. O ordenamento jurídico deve assegurar a pluralidade, cabendo à sociedade e ao cidadão formarem livremente sua convicção”127.

Concluíram os subscritores do documento apresentado na XVI Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro, Celso Lafer, Afonso Arinos de Mello Franco, Carlos Heitor Cony, Arnaldo Niskier, Boris Fausto, Ferreira Gullar, João Ubaldo Ribeiro, Luís Fernando Veríssimo, Zuenir Ventura e Ziraldo que a dispensa do consentimento prévio do biografado não confere ao autor imunidade sobre as consequências do que escreve. Uma vez que em caso de abuso de direito e de uso de informação falsa e ofensiva à honra, a lei já contém os mecanismos inibidores e as punições adequadas à proteção dos direitos da personalidade.

126 Jornal do Advogado. Biografias polêmicas. Ano XXXIX – n. 389 – Novembro-2013. OAB São Paulo. pp. 16-17.127 Jornal do Advogado. Biografias polêmicas. Ano XXXIX – n. 389 – Novembro-2013. OAB São Paulo. pp. 16-17.

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Outros esclarecem que “a tarefa do verdadeiro biógrafo não é a de defender, perante tribunais eclesiásticos, um múnus sanctificandi que conduza à beatificação daquele cuja vida retrata”128.

Manuel Alceu Affonso Ferreira aduz que “o biógrafo não apenas pode, como necessita e deve, adentrar-lhe as intimidades. Exatamente por isso, as biografias fascinam”129.

Os argumentos geram polêmicas com relação a publicação de biografias sem autorização e, nesta polêmica manifestações como a do Ministro Joaquim Barbosa, do jurista Modesto Carvalhosa, dos políticos Renan Calheiros, de Henrique Eduardo Alves, do advogado Marcos da Costa e da Procuradoria Geral da República (em parecer datado de junho de 2012) posicionaram-se favoráveis à publicação de biografias não-autorizadas, ou seja, contra o consentimento prévio do biografado ou de seus familiares.

René Ariel Dotti pinçou a propósito do livro Z: “Um acontecimento não pode pertencer simultaneamente à História e à vida privada: o Tribunal elegeu a História”130.

De Cupis entende que:

nas biografias das celebridades, a qualquer aspecto de suas vidas, “anche del più intimo setore”, é legítimo dar-se divulgação a inconfidências desse jaez objeti-vando a satisfação do interesse coletivo, observando então que, nesse tipo de objeto informativo, os limites poderão ser talvez fincados em homenagem à discri-ção, “non più dal diritto”131.

Jónatas Machado entende que o exercício da liberdade de expressão “(...) deve fazer-se, na medida do possível, no respeito pelos direitos de personalidade do indivíduo”132. “Os limites à liberdade do ser humano são

128 FERREIRA, Manuel Alceu Affonso. Liberdade de expressão e biografias. Revista do Advogado. Nº 117. Ano XXXII. São Paulo: AASP, outubro de 2012. 129 FERREIRA, Manuel Alceu Affonso. Liberdade de expressão e biografias. Revista do Advogado. Nº 117. Ano XXXII. São Paulo: AASP, outubro de 2012. 130 DOTTI, René Ariel. Proteção da Vida Privada e Liberdade de Informação – Possibilidades e Limites. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980. In: FERREIRA, Manuel Alceu Affonso. Liberdade de expressão e biografias. Revista do Advogado. Nº 117. Ano XXXII. São Paulo: AASP, outubro de 2012, p. 147.131 DE CUPIS, Adriano. I Diritti dela Personalitá. Tomo 1. Milão: Ed. Dott.A.Giuffrè, 1959. In FERREIRA, Manuel Alceu Affonso. Liberdade de expressão e biografias. Revista do Advogado. Nº 117. Ano XXXII. São Paulo: AASP, outubro de 2012, p. 146.132 MACHADO, Jónatas E. M. Liberdade de expressão, dimensão constitucionais da esfera pública no sistema social. Coimbra, Coimbra Editora, 2002, p. 360.

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necessários, pois ele é capaz de tudo, do ato mais sublime ao mais bestial”133.“Essa necessidade de limitações ao direito à liberdade de expressão se

explica tanto (i) pela necessidade de harmonia entre os direitos individuais, como (ii) por uma questão de coerência, posto que seria, no mínimo, contraditório se a liberdade de expressão, que é um direito engendrado pelo homem para assegurar e possibilitar sua autodeterminação individual, estivesse em contradição com essa mesma finalidade, atentando contra o desenvolvimento da personalidade individual e desrespeitando direitos essenciais à própria personalidade”134.

Encontrar balizas harmônicas e chegar ao “peso”, através das técnicas de sopesamento, não é matéria tão simples. Temos que considerar que um princípio terá preferência em detrimento do outro, sob determinadas condições; que será considerado o critério do meio menos gravoso; análise do concreto; decisão em consonância com as possibilidades jurídicas e fáticas; análise de qual princípio possui o maior peso no caso concreto (aplicação da máxima da proporcionalidade); investigação sobre o melhor argumento (teoria da argumentação); aplicabilidade da teoria da razoabilidade; quanto maior for o grau de não cumprimento de um princípio, maior deve ser a importância da realização do outro.

Se pesados os argumentos e aplicadas as técnicas propostas, teríamos um sopesamento que indica um prevalecimento do direito a liberdade de expressão, sobre o direito a privacidade do biografado (pessoa pública), o que enseja a inconstitucionalidade dos art. 20 e 21 do Código Civil, mérito de discussão no STF (ADIn nº 4815).

CONCLUSÃO

O presente artigo buscou contribuir com a exposição de informações sobre a técnica do sopesamento, tratada na obra “Teoria dos Direitos Fundamentais” de Robert Alexy, tradução de Virgílio Afonso da Silva, possibilitando esclarecer as inúmeras formas técnicas que envolvem a técnica de sopesar.

Vimos que a liberdade de expressão abarca a liberdade de informação, de manifestação de pensamento, de comunicação, de acesso à informação, de opinião, de imprensa, de mídia, de divulgação e de radiodifusão, e, encontra-se

133 BITTAR, Eduardo C. B. ALMEIDA, Guilherme Assis de. Direito e Liberdade: Contrapontos entre Poder, Não poder e Dever.In: Curso de Filosofia do Direito. 10º Ed. Revista e aumentada. São Paulo: Atlas, 2012, p. 546.134 TAVARES, André Ramos. Liberdade de Expressão-Comunicação em face do Direito à Privacidade. In: Direito à Privacidade. MARTINS, Ives Gandra da Silva Martins. PEREIRA JÚNIOR, Antonio Jorge. (Coordenadores). Idéias & Letras.

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garantida pelo texto constitucional brasileiro em seu artigo 5º, incisos IV, IX. Já o direito a privacidade do biografado, encontra-se prevista no 5º, inciso X, da Constituição, com disposição do assunto nos artigos 20 e 21 do Código Civil.

A tensão entre a liberdade de expressão e a privacidade do biografado, ambos valores residentes na seara dos valores fundamentais dos indivíduos e da sociedade brasileira, faz com que o intérprete da lei e julgador, busque uma decisão harmoniosa.

Sabendo que referida tensão entre princípios não se dá na esfera da validade, pois são mandados de otimização, ambos devem ser realizados em conformidade com disposições fáticas e jurídicas.

Concluímos neste trabalho que um princípio deve recuar em detrimento da aplicação de outro, sem que isso signifique declarar a sua invalidade.

Vivemos em um Estado Democrático de Direito e não permitir que qualquer pessoa possa exteriorizar sua opinião é ceifar a liberdade de expressão, direito constitucionalmente garantido. Contudo, a liberdade de expressão deve ser exercida desde que não prejudique de forma desastrosa a honra de terceiro(s). Considerando isto, deverá o interprete constitucional socorrer-se da teoria do sopesamento, onde se considerará vários aspectos, argumentos e técnicas para realização do peso de cada princípio.

Pesados os argumentos e aplicadas as técnicas propostas, evidenciamos um sopesamento que indica um prevalecimento do direito a liberdade de expressão, sobre o direito a privacidade do biografado (pessoa pública), o que enseja a inconstitucionalidade dos art. 20 e 21 do Código Civil, mérito de discussão no STF (ADIn nº 4815).

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REFERÊNCIAS

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BARROSO, Luis Roberto. Colisão entre liberdade de expressão e direitos da personalidade. Critérios de ponderação. Interpretação constitucionalmente adequada do Código Civil e da Lei de imprensa. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, pág. 18. In: Revista do Curso de Direito da Universidade São Marcos. São Paulo: Unimarco, 2001. Apud. TRIBE, Laurece. Constitutional Law.1998, p. 785 e s.; e NOWAK, Rotunda e Young. Constitutional Law. 1986.

BITTAR, Eduardo C. B. ALMEIDA, Guilherme Assis de. Direito e Liberdade: Contrapontos entre Poder, Não poder e Dever. In: Curso de Filosofia do Direi-to. 10º Ed. Revista e aumentada. São Paulo: Atlas, 2012.

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DIREITO SOCIAL À MORADIA: UMA QUESTÃO DE DIGNIDADE

Anderson Henrique Teixeira Nogueira135

Jefferson Ouribes Flores136

RESUMO

O direito à moradia se estabelece como um direito fundamental social da maior relevância. Trata-se de um direito com reconhecimento em vários do-cumentos internacionais e encontra amparo, em território brasileiro, na Cons-tituição da República. Este artigo tem como objetivo principal realizar uma análise do Direito à Moradia como uma das facetas da concretização do macro princípio da dignidade humana. Para efetivar esta análise, o trabalho navega pela conceituação de direitos fundamentais, além de investigar de que maneira o direito à moradia tem sido tratado na sociedade brasileira; estuda-se, tam-bém, o Estatuto da Cidade, documento que serve de principal alicerce para o planejamento e efetivação da Política Urbana Nacional, inclusive quanto aos instrumentos nele previstos que concretizam este Direito; por fim, apresenta-se uma abordagem sobre a moradia digna como bem jurídico indispensável para a garantia da dignidade humana. A pesquisa tem caráter documental e bibliográfi-co, com referências a alguns documentos nacionais e internacionais, legislação nacional e à melhor doutrina nacional. Os resultados apontam para o fato de que o direito à moradia se fundamenta como um elemento de grande relevância para efetividade dignidade humana e para o desenvolvimento dos espaços urbanos. É cediço que, qualquer ação que busque sua concreta efetivação, sempre deverá ter como objetivo final a pessoa humana, para que assim os objetivos desta Re-pública, determinados em Constituição, sejam, de fato, cumpridos.

Palavras-Chave: Direitos Fundamentais; Direitos Sociais; Direito à Moradia; Constituição Federal.

SUMÁRIO: Introdução. 1. Os Direitos Fundamentais. 1.1 O direito à moradia na sociedade brasileira. 2. O Estatuto Da Cidade. 2.1 Os instrumentos do Estatuto da Cidade para efetivação do direito à moradia 3. Moradia digna: bem jurídico indispensável à dignidade humana. Conclusão. Referências.

135 Mestrando em Direito Constitucional – UNISAL.136 Mestrando em Direito Constitucional – UNISAL.

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INTRODUÇÃO

No Brasil, as cidades passaram por um processo significativo de urba-nização e isto, aliado à percepção de moradia como sendo apenas uma merca-doria, reflete de forma paradigmática as injustiças e desigualdades sociais.

A humanidade evoluiu, e isto fez com que o homem passasse a vis-lumbrar um mundo diferente; contudo, esta evolução também mostrou pa-drões de retrocesso. Fatores como globalização e tecnologia, bases funda-mentais para a exclusão e o neoliberalismo, também são o alicerce para a instituição da sociedade da inclusão universal estabelecida em cooperação, participação e solidariedade.

Há muito a evolução da sociedade e a sua íntima relação com a mo-radia é uma preocupação dos grandes pensadores. Os escritos do filósofo ale-mão Martin Heidegger demonstram essa preocupação por meio da constante abordagem, em seus trabalhos, da relação entre moradia, construção (evolução técnica) e o reflexo destas na vida das pessoas.

Para Heidegger, a terra é o espaço onde o homem deposita suas as-pirações, seus sonhos, evidenciado por todos os locais onde realiza alguma atividade, sua casa, seu trabalho, seu espaço de lazer, dentre outros, enquanto o morar relaciona-se fundamentalmente com a noção de cuidar (apud SCHEI-REBER, 2002).

Essa noção exige do homem uma constante apreensão do mundo em que vive, pois o seu distanciamento leva o homem à alienação. Possivelmente, foi este distanciamento o grande responsável pela crise atual. A crescente falta de moradia, a favelização dos espaços e a gama de ocupações irregulares que assolam as cidades configuram esse estado de alienação; os gestores públicos e a legislação se distanciaram da realidade.

Embora esse pensamento reflita o ideal de uma época longínqua, ele traz em sua raiz a solução para esta problemática, apontando como saída o re-conhecimento e a devida importância à existência digna do homem, ou seja, o resgate da dignidade humana.

É neste contexto que se insere a discussão sobre o papel do Estado e a sua concepção social, visto que o tratamento que vem sendo dado à habitação corrompeu a essência do morar e do construir, assim como tornou o homem objeto, sem essência, sem dignidade.

Heidegger já falava sobre a necessidade do homem estar constante-mente apreendendo o mundo em que vive, pois o distanciamento entre o mundo concreto e o homem poderia levá-lo à alienação. É evidente que se vive numa época explosiva e numa terra minada. De nada adianta brincar de “democra-cia”. Se não for oportunizada efetividade à técnica colocada à disposição, o ho-

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mem vai permanecer alienado, as políticas públicas vão continuar insuficientes, e o direito à moradia continuará sendo inobservado.

Foi a partir da preocupação com as relações sociais criadas pela falta de moradia e com os instrumentos disponíveis para o enfrentamento da pro-blemática habitacional, que o presente estudo foi proposto. Para tanto, o texto encontra-se estruturado em uma primeira parte, que apresenta uma explanação sobre os direitos fundamentais, dentro dos quais se encontra inserido, conforme a Constituição Federal de 1988, o direito à moradia.

A segunda parte faz uma abordagem sobre o direito à moradia no seio da sociedade brasileira, mostrando, em uma contextualização histórica, as mo-dificações vividas pelo instituto da moradia no cenário nacional.

Na terceira parte se propõe uma análise do Estatuto da Cidade como documento que tem como objetivo fundamental garantir o direito à moradia como um dos direitos fundamentais da pessoa humana, para que todo cidadão tenha acesso às oportunidades oferecidas pela vida urbana.

Colocados tais pressupostos, na quarta parte serão discriminados os principais instrumentos estabelecidos no Estatuto da Cidade, envolvendo temas referentes à sustentabilidade das cidades, à participação popular na gestão des-tes espaços urbanos, na cooperação entre governo, empresas e todos os demais setores da sociedade no processo de urbanização, o planejamento do desenvol-vimento das cidades, a regularização fundiária e a urbanização voltando-se para a população de baixa renda e a igualdade na distribuição de tudo o que decorre da urbanização.

Por fim, com o escopo de fornecer o embasamento necessário para a interpretação das normas de direito urbanístico visando à efetivação do direito à moradia nas cidades brasileiras, descreve-se a moradia como um bem jurídico indispensável e intimamente relacionado com a aplicação do princípio da dig-nidade humana.

1. OS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Antes de tudo, cabe aqui esclarecer o porquê de se ter optado por con-siderar a moradia digna como um direito humano fundamental, diante da varie-dade de termos atualmente empregada, com destaque para: direitos do homem, direito do cidadão, direitos humanos, direitos fundamentais, direitos humanos fundamentais. Para isso, é preciso elucidar que a expressão “direitos do ho-mem” é a mais antiga e a que teve como documento propagador a Declaração francesa de 1789, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.

A expressão “direitos humanos” encontra na Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, de 1948, sua primeira fonte de maior relevância,

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sendo considerada a expressão mais adequada para se referir aos direitos prote-gidos na seara do direito internacional; já a expressão “direitos fundamentais” estaria se referindo aos “direitos humanos” que já obtiveram reconhecimento, positivação e proteção no cenário interno de um determinado Estad (SCHEER, 2006, p. 27).

Para o ilustre jurista português, José Gomes Canotilho (2008), a ex-pressão “direitos fundamentais” pode ser considerada como uma referência a direitos previstos e protegidos pela Constituição e nem todos estes se referem necessariamente à tutela do ser humano. Assim, neste trabalho optou-se pelo uso da expressão “direitos humanos fundamentais” como a mais adequada.

Outra vantagem do uso desta expressão é que a mesma indica nitida-mente que se trata de direitos intrínsecos ao ser humano e não a organizações, cuja fundamentalidade é manifestada em dois eixos: primeiro pelo fato a prote-ção oferecida ser de origem essencialmente constitucional, ou seja, encontra-se no ponto mais alto da hierarquia normativa de um Estado – e este trabalho foca exatamente na proteção da moradia pelo Estado e no seio do território brasi-leiro; em segundo lugar, porque perceber a moradia como um “direito humano fundamental” mostra claramente que este direito refere-se a uma necessidade fundamental para a dignidade da pessoa humana.

A discussão sobre direitos fundamentais é tema usual, seja na doutrina ou na jurisprudência. E não poderia ser de outra forma, já que em se tratando de direitos fundamentais não há maneira fácil de resolver tal conflito. Robert Ale-xy (1999), um dos mais influentes filósofos do Direito alemão contemporâneos, declara que direitos fundamentais são princípios, e não regras, e esta concepção têm sido amplamente adotadas pela doutrina e pelos tribunais.

Segundo Alexy, as normas se dividem em regras e princípios. Os prin-cípios são normas que determinam a realização de uma ação o mais ampla possível, considerando-se as possibilidades fáticas ou jurídicas. Princípios são, portanto, mandamentos de otimização. Já as regras são normas que podem ser cumpridas ou não cumpridas, caracterizando-se, portanto, como mandamentos definitivos. O autor conclui que os direitos fundamentais são, por fim, normas princípios que exigem, em caso de conflito, a ponderação sobre todos os direi-tos em questão.

Silva (1998), jurista mineiro e formulador de influente parte da doutrina sobre Direito Constitucional no Brasil, assevera que direitos fundamentais do homem significam direitos fundamentais da pessoa humana ou direitos huma-nos fundamentais. Já Paulo César Bezerra (2008, p. 102) afirma que “os direitos fundamentais visam à criação e garantia da existência de vida voltada para a subsistência do ser humano, seja no seu aspecto físico, moral ou emocional, pode ser traduzida, em análise mais apurada, em direito à vida”. E a vida não

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pode ser mensurada mediante o uso de critérios econômicos e por isso mesmo deve fazer jus a uma atuação do Estado voltada para o atendimento e concreti-zação deste direito.

É importante ressaltar que os direitos fundamentais são diferentes dos direitos humanos em seus aspectos político-geográficos, ou seja, os direitos fundamentais abrangem um sistema constitucional de determinado Estado, enquanto que os direitos humanos também se referem a um determinado Estado, mas sob um prisma internacional.

Segundo Ana Paula de Barcellos (2008), professora de Direito Cons-titucional da UERJ e Mestre em Direito, estes direitos possuem determinadas características capazes de classificá-los como tais, são elas: fundamentalidade formal, visto que estão previstos no texto mais importante do Estado, a Consti-tuição; são cláusulas pétreas, não podem ser abolidos; e fundamentalidade ma-terial porque são prerrogativas essenciais do ser humano. Portanto, os direitos fundamentais podem ser aumentados e jamais diminuídos.

Como tudo no direito se desenvolve e evolui de acordo coma própria evolução do homem e da sociedade, os direitos fundamentais foram se adaptan-do à realidade e passaram por algumas mudanças.

Inicialmente, no Estado liberal, época do iluminismo, quando o indi-víduo e sua liberdade concebem todos os desejos da sociedade, encontra-se os direitos ditos de primeira geração, direitos civis e políticos, os quais garantem a liberdade de pensamento, de religião, de locomoção, de propriedade. Dentro deste contexto, o princípio valorativo é o da liberdade e visa diretamente o in-divíduo (SILVA, 1998).

Depois da busca incessante pela liberdade do indivíduo, começam a surgir outras preocupações de âmbito social, e o foco do individual passa para a sociedade como um todo. O contexto histórico é outro. Principalmente, após a segunda grande guerra e com a ascensão do modelo social de Estado, surgem os direitos de segunda geração que têm por finalidade justamente garantir os direitos sociais, econômicos e culturais, visto que é dirigido para a sociedade e seu princípio informador é o da igualdade. Aqui se busca a justiça social por intermédio do direito à saúde, educação, moradia etc. (SARLET, 2007).

Por fim, têm-se os direitos de terceira geração, dirigidos para o gênero humano; trata-se da proteção aos direitos difusos e coletivos, e seus princípios informadores são os da solidariedade e da fraternidade. Sucintamente, sobre os direitos fundamentais, Ingo Wolfgang Sarlet (2007, p. 102), constitucionalista e Doutor em Direito pela Universidade de Munique, relata que:

Os direitos de primeira geração já foram consagra-dos no advento do Estado Liberal nos séculos XVIII

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e XIX. Os de segunda geração foram consagrados no início do século XX, com o advento do Estado social. Os de Terceira geração [...] vêm sendo consagrados nos últimos tempos, o que realmente dá a impressão de que os direitos fundamentais podem ser divididos em gerações.

Ocorre que não apenas os direitos de terceira geração não são taxativos, todos os direitos fundamentais são exemplificativos, ou seja, podendo ser alar-gados com o tempo, sendo que as suas principais características são: inalienabi-lidade, imprescritibilidade, irrenunciabilidade e universalidade.

Em concordância com o que foi descrito acima, percebe-se que os di-reitos fundamentais se relacionam a princípios que sintetizam a visão do mun-do e orientam os valores ideológico-políticos de cada ordenamento jurídico. Recebem o título de fundamentais em vista de tratar-se de situações jurídicas essenciais para a realização, convivência e sobrevivência da pessoa humana. Dizem-se fundamentais do homem pelo fato de que todos, igualmente, devem ser formalmente reconhecidos e concreta e materialmente efetivados.

A Constituição Federal de 1988 trouxe em seu Título II (Direitos e Ga-rantias Individuais), Capítulo I (Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos), art. 5º, um rol de direitos fundamentais de aplicabilidade direta, imediata e exem-plificativa, como bem relata o art. 5º e seus §§1º, 2º e 3º deste artigo, in verbis:

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à seguran-ça e à propriedade, nos termos seguintes: § 1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. § 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. § 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.

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Já em seu Capítulo II, deste mesmo Título, a Constituição trouxe previ-são dos Direitos Sociais, como exemplo, in verbis: “Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.

Como citado anteriormente, o § 1º do art. 5º da CF/88 relata que os direitos e garantias fundamentais previstos neste artigo são de aplicabilidade direta e imediata, não necessitando de qualquer atuação estatal. Já os direitos sociais, como os previstos no art. 6º da CF/88, incluído aí o direito à moradia, são normas ditas de conteúdo programático. O direito à moradia, que integra os direitos sociais, foi incluído no texto constitucional pela Emenda Constitucio-nal 26, de 14.02.2000, sendo, portanto, uma norma que deve ser concretizada pelo Estado; uma tarefa a ser cumprida, e não uma norma de aplicabilidade direta e imediata.

Impende salientar que nem todos os direitos e garantias fundamen-tais, previstos na CF/88, possuem eficácia plena. Portanto, é preciso explici-tar uma diferença feita por Silva (1998) em relação à eficácia e aplicabilidade das normas constitucionais. Segundo este autor, as normas constitucionais se classificam em: de eficácia plena, de eficácia contida, e de eficácia limitada ou reduzida. As primeiras têm aplicabilidade direta e imediata, podendo ser invo-cadas diretamente; as segundas possuem aplicação direta e imediata, podendo o legislador posterior limitar a sua aplicação; e a terceira necessita de norma que a regulamente para que possa produzir todos os seus efeitos.

1.1. O DIREITO À MORADIA NA SOCIEDADE BRASILEIRA

No tópico anterior procurou-se fixar os pressupostos para a compreen-são da importância dos direitos fundamentais e sua relação com a manutenção do princípio da dignidade humana.

Neste contexto, é importante reconhecer que o conteúdo destes direi-tos também é definido e informado pela sociedade brasileira, ou seja, o direito acompanha a própria evolução da sociedade. O instituto da moradia também sofreu mutações, visto que, como crescimento populacional, o acesso a este bem passa gradativamente a ser restringido por determinados grupos, em decor-rência da miserabilidade. Ocorre que o direito à moradia representa a própria sobrevivência humana, portanto, inteiramente relacionada com a própria digni-dade da pessoa humana.

A questão habitacional começou a ser visto como um problema pelo Estado no final do Império, como consequência do aumento das manifestações em prol da abolição da escravatura e que só cessaram com a sua concretização.

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Nesta época, havia abrigos coletivos e, a partir da abolição, os escravos come-çaram a buscar uma habitação própria nas vilas e cidades, aumentando a po-pulação destes espaços. Outra consequência da abolição foi o fim do tráfico de escravos, os investimentos na lavoura cafeeira aumentaram, e a vinda de emi-grantes, fatos que também influenciaram no aumento da população nas cidades.

Portanto, até meados de 1850, o Estado brasileiro preocupava-se tão somente com sua economia, a qual se baseava na agricultura e na utilização da mão-de-obra escrava. Nesse período, os únicos possuidores de efetiva mo-radia eram os proprietários de terra, a quem incumbia fornecê-la também para aqueles cuja mão-de-obra era tomada. Nesse período, a moradia restringia-se à esfera privada, servindo tão somente para conformar os interesses locais e, neste cenário, os escravos dividiam a moradia coletiva.

Passada a segunda metade do século XIX, teve início a Revolução Fran-cesa e, com ela, em 1789, surgiu também a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. A partir de então, a moradia deixou de ser uma preocupação da esfera privada para receber a atenção mais cuidadosa do Estado. Com a Decla-ração, coube aos Estados a submissão à concepção dos direitos fundamentais, cujos objetivos voltavam-se para a concretização da liberdade, da igualdade e da fraternidade.

Todavia, até a década de 30 a interferência estatal no âmbito habitacio-nal foi mínima, limitando-se tão-somente à medida de cunho sanitarista, obje-tivando diminuir as más condições de higiene das moradias dos trabalhadores; note-se que o problema da moradia surgiu, ressalte-se inicialmente, como um problema de saúde pública.

Na Presidência de Rodrigues Alves, que durou de 1910 a 1914, ocorreu a consolidação de uma política governamental focada no saneamento para a moradia. Contudo, a política habitacional começou a se transformar a partir do segundo Governo Vargas, no Estado Novo. A industrialização crescia ver-tiginosamente e o deslocamento do centro dinâmico da economia passava a se deslocar para a área urbana, o que incrementou o desequilíbrio entre a cada vez mais reduzida disponibilidade de espaço próprio para habitação e sua intensa demanda.

Ante esta situação, o Estado, mediante o Decreto-lei 4.508, de 23.07.1942, se viu na obrigação de interferir na oferta da moradia; foram então criados os Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs), que faziam parte do sistema de Previdência Social estabelecido no país naquele período. Para Be-zerra (2008), este instituto iria revelar-se, posteriormente, a entidade previden-ciária de mais intensa atividade no setor habitacional.

Na metade da década de 1940, no governo de Getúlio Vargas, foi criada a Fundação da Casa Popular (FCP), por meio do Decreto-lei 9.777, de

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06.09.1946, que visava atender à população que já estava integrada ao mercado formal de trabalho, mas que ainda não estava vinculada aos IAPs. O Estado tentava edificar uma imagem de “Estado benfeitor”, que se responsabilizava pelo bem-estar social.

Muitos asseguram que a FCP teve sua ação orientada pelo clientelismo político e que cumpria, para as elites dirigentes, o papel de medida político eleitoreira, além de ser uma forma de se contrapor à influência do Partido Co-munista junto à população. As condições da FCP para que alguém obtivesse o financiamento de uma moradia dificultavam seriamente a situação da população de baixa renda.

A Lei 1.300, de 28.12.1950, surgiu para alterar a Lei do Inquilinato, e vigorou até o final do ano de 1951, causando um forte declínio dos progra-mas habitacionais. Em 1961 foi criado o Plano de Assistência Habitacional, que inovou no sentido de estabelecer uma proporção entre a prestação da moradia adquirida e o salário mínimo. Para selecionar os requerentes de moradia, este Plano exigia do interessado que ele tivesse um emprego estável e que residisse já há algum tempo na localidade. Estes requisitos prestavam o papel de excluir, do acesso à habitação, uma parte significativa da população, especialmente as pessoas de baixa renda.

Durante a ditadura militar, foi criado o Banco Nacional da Habitação (BNH), Lei 4.380, de 21.08.1964, o qual tinha como função realizar opera-ções de crédito e gerir o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), por meio de instituições bancárias públicas e/ou privadas e de agentes promotores, destacando-se as companhias habitacionais e as de água e esgoto. O Sistema Financeiro de Habitação (SFH), que também foi criado pela Lei 4.380/64, e o Banco Nacional de Habitação (BNH), promoveram incentivos à indústria de construção civil, acreditando que seus efeitos poderiam se refletir de forma po-sitiva em outros setores da economia que se encontravam quase inativos.

Neste período, vivia-se o auge da guerra fria. O conflito ideológico en-tre direita e esquerda, entre capitalismo e comunismo, levava a nova ordem a buscar alternativas para incluir o operariado como classe proprietária de habita-ção. O BNH lança o meta-discurso: “o operário também pode ser proprietário”. Por trás buscava-se criar um anteparo à luta de classes tão presente.

Com o fim do BNH, é criado o SBPE - Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo, que tinha como principal competência incrementar a captação de recursos oriundos da poupança privada. Assim, o governo pretendia promover o atendimento prioritário à população de baixa renda, com o financiamento de habitações e a implementação de infraestrutura urbana.

O governo federal tentava construir um marco de regulação para a po-lítica urbana, o que levou à elaboração de propostas de lei de desenvolvimen-

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to urbano pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano, nos anos 70, assim como à promulgação da Constituição Federal de 1988, documento que inovou ao incluir um capítulo específico (arts. 182 e 183 da CF/88) para a po-lítica urbana e que estabeleceu diversos instrumentos que garantiam, em cada município, a defesa da função social da propriedade e de uma gestão urbana mais democrática.

2. O ESTATUTO DA CIDADE

A gestão democrática como fundamento para a efetivação do direito à moradia no Estado brasileiro nasce com o Estatuto da Cidade (em 10.07.2001). Isso porque, entre as décadas de 70 e 80, a sociedade brasileira passou por um fenômeno político que foi denominado de redemocratização, o qual se caracte-rizou pela ampliação de formas de organização social e pelas reivindicações de maior participação da população, especialmente de seus segmentos organiza-dos, nos processos de decisão (OLIVEIRA, 2002).

Esta luta fez surgir, pela primeira vez na história, a inclusão, na Cons-tituição Federal, um capítulo específico para a política urbana que, como dito no tópico anterior, que previa vários instrumentos para a garantia da defesa da função social dos municípios e da propriedade, além de tornar a gestão urbana mais democrática.

Contudo, na visão do advogado constitucionalista, escritor e professor de direito constitucional brasileiro, Uadi Bulos (2005, p. 88), o texto constitu-cional “exigia uma legislação específica e que abrangesse todo o território na-cional”. Teve início, assim, no âmbito federal, um período de mais de dez anos de planejamentos, negociações e renegociações para a criação de um projeto de lei complementar ao capítulo sobre Política Urbana na Constituição Federal. Esse projeto de Lei (PL 5.788/90) se tornou conhecido como Estatuto da Cida-de, foi aprovado em julho de 2001 e entrou em vigor em 10.10.2001. De acordo com Oliveira (2002), o Estatuto da Cidade se tornaria a lei que, em conjunto com a Constituição Federal, forneceria as diretrizes para a Política Urbana Na-cional.

É com o Estatuto da Cidade (Lei 10.257/01), que se tem definitivamente a consolidação da chamada Ordem Urbanística, entendida como conjunto de normas de direito urbanístico. A referida Lei dispõe, em seu art. 2º, in verbis:

Art. 2º. A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da ci-dade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais – garantia do direito a cidades sus-

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tentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao tra-balho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações (...).

O Estatuto da Cidade, lei que estabelece os instrumentos de política urbana a serem aplicados pela União, Estados e Municípios, atendeu ao antigo clamado da sociedade por uma gestão mais democrática do espaço urbano, que expressasse a organização social, além de trazer instrumentos que viabilizam a implementação de moradias e a organização do solo, visando efetivar os prin-cípios constitucionais e, assim, formar uma sociedade mais justa e equilibrada.

2.1. OS INSTRUMENTOS DO ESTATUTO DA CIDADE PARA EFETIVAÇÃO DO DIREITO À MORADIA

Mostra-se de grande relevância, para a eficiente consecução deste tra-balho, considerar os instrumentos previstos no Estatuto da Cidade para a finali-dade específica de solucionar a questão habitacional.

A partir das diretrizes contidas no art. 2º, é possível identificar de modo mais ou menos direto, algumas das condições e alternativas que alcançam o direito à produção habitacional. Em verdade, todo o rol ali disposto toca, em graus variáveis, a questão habitacional. Destaca-se, porém, os seguintes itens por considerá-los os mais influentes.

a) direito à sustentabilidade da cidade (inc. I). Este item busca, por meio de políticas públicas, o planejamento e implementação contínuos de me-lhorias nas condições de saúde social e bem estar dos habitantes de uma cidade. Percebe-se que a função social da cidade pode ser concebida como um fim a ser alcançado por uma série de políticas públicas e pelo compromisso com a gestão urbana o mais democrática possível. Também especifica como as moradias de-vem ser produzidas, de forma sustentável (inc. VIII);

b) gestão democrática da cidade. Como visto anteriormente, somente a participação da população o Estado será capaz de formular, executar e acompa-nhar todo o planejamento em torno do desenvolvimento urbano (inc. II), inclu-sive da política habitacional. Isso exige a aproximação de toda a sociedade civil com a Administração Pública;

c) cooperação entre governo, iniciativa privada e sociedade civil no processo de urbanização (inc. III). A questão habitacional exige esta, em vista da complexidade do tema e da dificuldade dos Municípios de minorar, de forma isolada, o déficit habitacional. Surge a necessidade da firmação de convênios

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com o Estado e com a União, na forma de consórcio imobiliário (art. 46) e de operação urbana consorciada (arts. 32 a 34);

d) planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição espa-cial da população e das atividades econômicas do Município (inc. IV). O res-paldo maior para as ações do poder público, na questão de habitação, deve ser a necessidade concreta da população e a idealização de soluções para o problema, não sendo aceitas, sob hipótese alguma, medidas de caráter assistencialista;

e) Regularização e urbanização de áreas ocupadas pela população de baixa renda por intermédio do estabelecimento de normas voltadas especial-mente para a urbanização, uso e ocupação do solo (inc. XIV). É impossível falar em política habitacional sem que haja a preocupação com a regularização das áreas indevidamente ocupadas.

f) Justiça na distribuição dos benefícios e ônus oriundos da urbaniza-ção, com vistas à recuperação de tudo o que o Poder Público investe e de que tenha tido como resultado a valorização de imóveis urbanos (incs. IX e X). A urbanização deve ser um processo focado na coletividade e o excesso de rique-za resultante da valorização imobiliária deve ser revertido em financiamento para o planejamento e efetivação de políticas habitacionais.

Para Oliveira (2002), é importante ressaltar a importância das Leis Fe-derais 6.766/79 e 10.098/00. A primeira apresenta normas gerais acerca do par-celamento do solo para finalidades urbanas, assim como regras específicas que buscam agilizar e regularizar o loteamento para população de baixa renda. A segunda lei aponta regras a serem consideradas na “construção da cidade” que assegurem a acessibilidade às pessoas portadoras de deficiência física ou com redução em sua mobilidade. Na verdade, toda moradia planejada deve obriga-toriamente ser produzida a partir deste marco legal nacional.

3. MORADIA DIGNA: BEM JURÍDICO INDISPENSÁVEL À DIGNIDADE HUMANA

Colmo foi visto em tópicos anteriores, a moradia é uma necessidade im-prescindível para todo ser humano. A partir do diálogo entre a filosofia e a ética, Enrique Dussel (1995), eminente filósofo mexicano, oferece valiosa contribuição quando afirma que as necessidades humanas, inclusive a de ter um local para viver, são a base para uma ordem normativa, carecendo de alguns conteúdos im-perativos e instituindo limites intransponíveis à prática das liberdades.

O autor acima citado afirma que a vida flutua, em sua concreta vulne-rabilidade, inserida em determinados limites e exige conteúdos diversos: se há o aumento na temperatura da Terra, o ser humano morre de calor; se falta água para beber por causa da seca, o ser humano morre de sede; se não tem com o que se alimentar, a pessoa morre de fome; se um grupo invade uma comunidade

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mais fragilizada, eles serão dominados. Ou seja: o ser humano consegue viver, mas isso implica em um grau de alienação que, dependendo das circunstâncias, o torna quase um animal ou, muitas vezes, pode ser levado à própria extinção, como aconteceu com certas tribos indígenas que foram invadidas, depois que a América foi conquistada.

A vida humana é limitada, necessita de uma ordem que a normatize, tem suas próprias exigências. Além disso, impõe o atendimento de necessidades como o alimento, moradia, segurança, liberdades e valores culturais. Conseguir uma moradia é condição inquestionável para uma vida digna, sob o ponto de vista material e imaterial, pois não se trata apenas de um abrigo contra as in-tempéries, mas também uma proteção contra ataques externos e o local onde se busca momentos de paz, tranquilidade e descanso, um lar.

Essa situação conta com o reconhecimento do ordenamento jurídico, o que torna a moradia um bem extrapatrimonial, ou seja, um bem da personalida-de, protegido e promovido por meio de um ordenamento jurídico. Entende-se, portanto, que deve haver um elo entre a proteção e a promoção jurídica da mo-radia, garantindo-se, com isso, a efetiva dignidade da pessoa humana.

Esta conclusão é extremamente importante na sociedade contemporâ-nea, onde permanece válida a advertência de Bobbio (1992), ilustre filosofo italiano do século XX, segundo a qual o problema principal dos direitos funda-mentais não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los; enfim, um problema de natureza não filosófica, mas política.

A moradia consubstancia predicado basilar da personalidade, pois é no ambiente doméstico que o caráter de uma pessoa é desenvolvido, que o indivíduo inicia sua caminhada na direção do crescimento espiritual, físico e intelectual. É neste ambiente, não só concretizado por um teto com paredes, telhado, portas e janelas, que o indivíduo encontra a proteção e a segurança para começar a viver.

Assim, pode-se afirmar que uma das instâncias mais importantes para a dignidade humana é encontrada na moradia, que deve receber tutela integral e atenção de todas as vertentes do direito (constitucional, civil, ambiental, urba-nístico etc.). Também significa que devem ser pensados, planejados e aplicados tantos instrumentos, técnicas e políticas que concretizem o direito à moradia, bem como que previnam possíveis danos ou perda da moradia e promovam a acessibilidade e a melhoria das condições de moradia.

CONCLUSÃO

O Estado brasileiro, durante muito tempo, tratou e ainda trata à mo-radia como um problema secundário, tornando-se, pelas atividades e medidas

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governamentais, interesse exclusivamente econômico, em prejuízo de sua fun-ção social, esquecendo-se que os direitos sociais, ao qual a moradia faz parte, caracterizam-se como prestações que devem ser, obrigatoriamente, observadas em um Estado social de direito, cuja finalidade deve ser a melhoria das con-dições de vida da população e a concretização da igualdade social, conforme preleciona o art. 1º, inc. VI da Constituição Federal Brasileira. O Estado tem o dever de garantir o direito à moradia, em nível de vida adequado com a condi-ção humana, respeitando os princípios fundamentais da cidadania, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, consa-grados constitucionalmente.

A ação do Poder Público deve promover a efetividade do direito à mo-radia com mecanismos de efetivação, pois a Constituição Federal não encontra satisfação no mero reconhecimento de um direito. Assim, apesar da exigência de aplicação imediata do direito à moradia, o dever do Estado é proteger e faci-litar o seu exercício concreto, assim como das normas infraconstitucionais, que devem estar sempre próximas da norma constitucional em prol da efetivação deste direito fundamental.

Para este fim, parece urgente que seja construída toda uma legislação específica, com instrumentos, um programa e um plano de ação sobre uma nova reestruturação da política habitacional, de modo a garantir ao indivíduo o di-reito à moradia, tal como se esboça no Estatuto da Cidade (Lei 10.257/01), buscando assegurar a plena e progressiva realização desse direito.

O Brasil, enquanto ente politicamente organizado em torno de uma Constituição, tem que ser absolutamente servil à efetivação do princípio demo-crático, o que pressupõe que as decisões públicas devem ser adotadas com base na participação, direta ou indireta, dos cidadãos, e que, por isto, também podem ser modificadas ou revogadas pela vontade deles. Isso porque não se discute mais no ordenamento o direito à moradia vez que notadamente reconhecido por inúmeros dispositivos legais.

Uma questão fundamental diz respeito à aplicação dos instrumentos de que o poder público dispõe para a solução do problema habitacional, que devem estar em consonância com os anseios daqueles que efetivamente conhecem suas necessidades.

O que se procurou mostrar, neste trabalho, é que a efetivação do Direi-to à Moradia não deve ficar restrita ao âmbito das intenções ou dos sonhos. É possível sim, desde que se tenha vontade política e a participação da população, corresponder aos anseios daqueles com menor poder aquisitivo, cuja imagem da “casa própria” é a conquista mais importante de suas vidas.

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O MANDADO DE INJUNÇÃO COMO FERRAMENTA DE PROMOÇÃO DA CIDADANIA

Denis Cortiz da Silva137

RESUMO

O presente trabalho visa analisar o Mandado de Injunção, que passou a integrar o ordenamento jurídico pátrio com a promulgação da Constituição Federal de 1988, e que pode ser considerado um dos instrumentos mais eficazes na efetivação de direitos constitucionalmente previstos, que não são aplicados imediatamente em virtude da ausência de norma reguladora em nível infraconstitucional propiciando um ganho no campo da cidadania já que evita que direitos não possam ser gozados e/ou exercidos em virtude de uma omissão governamental, que não legislou a respeito do tema, impedindo ainda que políticas públicas deixem de ser implementadas em razão de lacuna legal. Será objeto do estudo os efeitos da decisão proferida em sede de Mandado de Injunção e sua efetividade, sendo feito um comparativo com outra ferramenta constitucional que pode ser usada para atacar a omissão governamental, a ação direta de inconstitucionalidade por omissão (Adin por omissão), analisando-se, ainda diversos Mandados de Injunção cuja decisão se prorroga por anos, tendo em vista que o estado, mesmo ciente de sua omissão, ainda não implementou as regras ou instituiu as políticas públicas necessárias.

Palavras-Chave: Mandado de Injunção; Políticas Públicas; Efetividade.

SUMÁRIO: 1. Do estado liberal ao estado social intervencionista. A Constituição defensiva e a constituição constitutiva ou dirigente. 2. – Classificação das normas constitucionais segundo sua eficácia. 3. – Inconstitucionalidade por omissão. 4. – O mandado de injunção. 4.1 – conceito. 4.2 – origem. 4.3 – rol de direitos de eficácia contida que podem ser discutidos em sede de mandado de injunção. 4.4 – espécies de provimento jurisdicional em mandado de injunção. Conclusão. Referências.

137 Delegado de Polícia no Estado de São Paulo. Mestrando em Direito Político e Econômico na Universidade Presbiteriana Mackenzie – Programa de Pós-graduação em Direito Político e Econômico – São Paulo – SP – Brasil.

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1. DO ESTADO LIBERAL AO ESTADO SOCIAL INTERVENCIONISTA. A CONSTI-TUIÇÃO DEFENSIVA E A CONSTITUIÇÃO CONSTITUTIVA OU DIRIGENTE

A história vivenciou, a partir do século XVIII, com a queda do estado absolutista e a propagação das ideias iluministas, o nascimento do estado constitucional, onde o poder na mão do governante deixa de ser absoluto e passa a ser limitado/regulado por uma lei maior, que também passa a garantir diversos direitos das pessoas perante os abusos até então cometidos pelo estado. A este primeiro modelo de estado constitucional, deu-se o nome de Estado Liberal Mínimo, onde as maiores preocupações das Constituições da época eram romper definitivamente com o modelo anterior, baseado na concentração total do poder nas mãos do monarca. Assim, o estado liberal tinha como premissa um “não-fazer” estatal, ou seja, sua maior preocupação era a de limitar a atuação do governo, que deveria influir o mínimo possível no cotidiano das pessoas, sendo que a sociedade, e principalmente o mercado, se autorregulariam da melhor forma que os conviesse. As constituições do período limitavam-se a regular a organização do estado, calcado na teoria tradicional da separação dos poderes, cada qual com sua esfera de atribuições bem definida e de garantir os direitos individuais dos cidadãos, como clara resposta ao modelo opressor que substituía. Os pontos centrais do modelo liberal de estado eram, portanto, o “primado da liberdade, da segurança e da propriedade, complementados pela resistência à opressão” (PIOVESAN, 1995, p. 27). A fim de explicar ainda melhor este modelo de estado, importante destacar o artigo 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, que dizia que “Qualquer sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos, nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição”. Bobbio (1988, pp. 16-17), ao definir este modelo de estado ensinou que:

a doutrina do Estado Liberal, é in primus a doutrina dos limites jurídicos do poder estatal. Sem individualismo não há liberalismo […] O liberalismo é uma doutrina do Estado limitado tanto com respeito aos seus poderes quanto às suas funções. A noção corrente que serve para representar o primeiro é o Estado de Direito; a noção corrente para representar o segundo é Estado mínimo. (grifo nosso).

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Assim, a doutrina chamou as constituições do período de Constituições Defensivas, uma vez que, como já visto, sua maior preocupação era defender os cidadãos da atuação opressora do Estado. Com o fim da primeira guerra mundial em 1918 e a quebra da bolsa de Nova Iorque em 1929, este modelo liberal de estado entra em crise, pois a economia está à beira do colapso e os níveis de desemprego atingem percentuais assustadores. Assim, diante deste novo panorama econômico, a autorregulação dos mercados se mostra insuficiente a garantir o bem-estar da população, obrigando o Estado a intervir na economia, a fim de recolocá-la no caminho do desenvolvimento, passando também a ter um papel, além de intervencionista, também planejador, uma vez que, o cidadão passa a ser dependente do Estado em virtude do colapso econômico que o mundo atravessava então. Diante deste cenário surgem as chamadas Constituições Constitutivas ou Constituições Dirigentes138, que rompem com o modelo liberal e passam a impor ao estado condutas positivas, determinando tarefas, estabelecendo programas e definindo quais fins devem ser perseguidos pelo Estado, ou seja, a ordem jurídica deixa de ser apenas um conjunto de regras limitador do poder do estado, a fim de garantir principalmente a liberdade do cidadão e passa a ter uma função distributiva e promocional, incentivando e dirigindo o processo social (PIOVESAN, p. 34). As primeiras constituições constitutivas são a mexicana de 1917, que passa prever em seu bojo princípios aplicáveis ao trabalho, que até então eram regulados pela livre iniciativa entre empregador e empregado, além de prever regras de previdência social; e a Constituição de Weimar de 1919 e que regeu o estado alemão até 1933, que passou a dar ênfase aos direitos sociais e econômicos, definiu a economia como uma questão do estado alemão (lembrando-se que até então a economia era baseada na autorregulação do mercado, sem qualquer interferência estatal), sendo importante reproduzir o artigo 151 deste diploma legal que dizia: “A organização da vida econômica deverá realizar os princípios da justiça, tendo em vista assegurar a todos uma existência conforme à dignidade humana”. Enquanto no modelo de estado liberal o foco principal era a garantia da liberdade do indivíduo, o objetivo perseguido pelo estado social é o de garantir a igualdade de todos. Mas tal conceito de igualdade não deve ser interpretado como o tratamento igualitário de todos perante a lei, e sim um conceito de igualdade material, ou seja, “uma igualdade feita pela lei e através da lei” (PIOVESAN, p. 32). Assim, o modelo de estado social acaba ampliando as competências do estado, não podendo este ser mais visto como ente desvinculado e autônomo,

138 Nomenclatura criada por J.J. Canotilho.

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uma vez que passa a ter objetivos expressamente previstos em sua Carta Máxima e que devem ser perseguidos. Assim, um dos maiores desafios deste estado interventor e ativo é controlar a omissão do Poder Público em realizar as políticas públicas necessárias para o alcance da igualdade material. A fim de resumir este modelo de estado atuante e com objetivos definidos pelo texto constitucional, que condicionam a atuação do Poder Público e direcionam suas políticas públicas, devendo prever instrumentos que também coibam a omissão estatal, Paulo Bonavides (1993, p. 19) explica que:

É Estado Social onde o Estado avulta menos e a Sociedade mais; onde a liberdade e a igualdade já não se contradizem com a veemência do passado; onde as diligências do poder e do cidadão convergem, por inteiro, para trasladar ao campo da concretização, direitos, princípios e valores que fazem o homem se acercar da possibilidade de ser efetivamente livre, igualitário e fraterno. A esse Estado pertence também a revolução constitucional do segundo Estado de Direito, onde os direitos fundamentais conservam sempre o seu primado. Sua observância faz a legitimidade de todo o ordenamento jurídico.

É dentro deste conceito de estado social e interventor, e constituição dirigente que é promulgada em 1988 a nossa Constituição Federal. Não há dúvidas de que o legislador constitucional optou por este modelo de estado, pois logo em seu art. 3º define quais são os objetivos fundamentais que devem ser perseguidos pela República Brasileira, dentre eles “garantir o desenvolvimento nacional” e “erradicar a pobreza e a marginalidade e reduzir as desigualdades sócias e regionais” - ficando evidente neste último a busca pela igualdade material acima tratada. Ou seja, a partir de uma leitura apenas preliminar da Constituição podemos verificar que o poder público brasileiro é um poder vinculado ao atingimento de certos objetivos, tendo a obrigação de realizar as políticas públicas necessárias para alcançar tais metas, sob pena de ter seus atos de governo considerados inconstitucionais. Contudo, o grande entrave encontrado é que uma grande parte dessas disposições constitucionais, segundo parte da doutrina, não possuem aplicação imediata, sendo necessária a elaboração de uma norma infraconstitucional que dê correta aplicação ao comando constitucional e, não raramente, o órgão responsável resta inerte, omisso, tendo como resultado que, vinte e quatro anos

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após sua promulgação, alguns direitos previstos em suas disposições ainda não são fruídos em virtude da paralisia do poder público em dar efetividade a eles, principalmente no caso das normas constitucionais de eficácia contida, que serão estudadas no próximo item.

2. CLASSIFICAÇÃO DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS SEGUNDO SUA EFICÁCIA

Este assunto apresenta grande variedade de classificações entre os diversos autores. Contudo, como nosso objetivo não é o esgotamento do tema e sim estudá-lo como requisito do Mandado de Injunção, neste trabalho será adotada a classificação de José Afonso da Silva, tendo em vista ter sido esta a classificação adotada pelo STF, segundo decisão proferida no Mandado de Injunção 438-2, julgado em 11 de novembro de 2004, tendo como relator o Ministro Néri da Silveira139. Segundo a doutrina, independentemente da classificação, todas as normas constitucionais possuem eficácia. Contudo, algumas apenas eficácia jurídica, enquanto outras além deste primeira, apresentam ainda eficácia social. Sobre o tema:

Eficácia social se verifica na hipótese de a norma vigente, isto é, com potencialidade para regular determinadas relações, ser efetivamente aplicada a casos concretos. Eficácia jurídica, por sua vez, significa que a norma está apta a produzir efeitos na ocorrência de relações concretas; mas já produz efeitos na medida que sua simples edição resulta na revogação de todas as normas anteriores que com ela conflitam (TEMER, 2003, p. 23).

Assim, seguindo a classificação de José Afonso da Silva no tocante à sua aplicabilidade, as normas constitucionais podem ser de três espécies: a) Eficácia plena; b) Eficácia contida; e a que mais nos interessa neste estudo, c) Eficácia Limitada. As de eficácia plena podem ser definidas como

as que receberam do constituinte normatividade suficiente à sua incidência imediata. Situam-se predominantemente entre os elementos orgânicos da constituição. Não necessitam de providência

139 Publicado na RT 723/231.

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normativa ulterior para sua aplicação. Criam situações subjetivas d vantagem ou de vínculo, desde logo exigíveis (SILVA, 2008, p. 262).

Como exemplos de direitos cuja eficácia é plena, podemos enumerar o previsto no art. 226, § 1º e art. 230, § 2º, que preveem, respectivamente, a gratuidade na celebração do casamento civil e garantia da gratuidade nos serviços de transportes coletivos urbanos aos maiores de sessenta e cinco anos. Já as normas de eficácia contida são aqueles que, a priori, tem eficácia plena, mas ao contrário das primeiras, poderão ter sua abrangência reduzida através da edição de norma infraconstitucional. Contudo, até essa legislação superveniente, a norma tem plena aplicabilidade. Exemplo desta espécie de norma está no inciso XIII, do art. 5º da Constituição, que prevê ser “livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”. Ou seja, o trabalhador é livre para realizar qualquer trabalho ser o atendimento de qualquer pré-requisito, que só poderá ser exigido após a edição de regar infraconstitucional, limitando assim o alcance da norma constitucional. Por fim, temos a classificação que mais nos interessa, a das normas de eficácia limitada. Tais normas possuem comandos que para produzir todos os seus efeitos necessitam de norma infraconstitucional complementar. Contudo, segundo José Afonso da Silva (2008, p. 164) tais normas geram algum efeito, pois pelos menos vinculam o legislador infraconstitucional a seguir suas diretrizes, bem como “condicionam a atividade discricionária da Administração e do Judiciário” (SILVA apud LENZA, 2008, p. 64). Dentro dessa classificação José Afonso da Silva (2008, p. 164) ainda prevê uma subdivisão em dois outros grupos: a) as normas de princípio institutivo ou organizativo, que visam a organização e estruturação dos órgãos e entidades que comporão a Administração Pública, e b) as normas de princípios programáticos, que mais nos interessam e que podem ser definidas como aquelas

através das quais o constituinte, em vez de regular, direta e imediatamente, determinados interesses, limitou-se a traçar-lhes os princípios para serem cumpridos pelos seus órgãos (legislativos, executivos, jurisdicionais e administrativos), como programas das respectivas atividades, visando à realização dos fins sociais do Estado.

Exemplos de normas de eficácia limitada programáticas podem ser vistas nos incisos XI, XX e XXVII do artigo 7º, que preveêm respectivamente,

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a participação do empregado nos lucros da empresa, desvinculada da remuneração; a proteção do mercado de trabalho da mulher; e a proteção do empregado em face da automação. Contudo, como já explicado, tais garantias não nascem com a mera promulgação da Constituição, sendo necessária edição de norma que regulamente tais direitos, para que estes sejam efetivamente gozados e não sejam mera “letra morta”. Como já visto, as normas programáticas, embora sejam de eficácia limitada, produzem o efeito de vincular os diversos poderes do Estado, afim de editar as legislações necessárias e implementar as políticas públicas, pois não se pode aceitar que comandos constitucionais sejam simplesmente ignorados e os cidadãos deixem de ter seus direitos respeitados por inércia estatal. Importante, por fim colacionar o entendimento de Luís Roberto Barroso (2009, p. 106) sobre o tema:

[...] são tão jurídicas e vinculativas as normas programáticas, notadamente as definidoras de direitos sociais que, na hipótese de não realização dessas normas e destes direitos por inércia dos órgãos de direção política (Executivo e Legislativo), caracterizada a inconstitucionalidade por omissão.

3. INCONSTITUCIONALIDADE POR OMISSÃO

Como já visto, no caso de uma norma programática ainda não regulamentada, inviabilizando, portanto, a fruição do direito, temos a chamada inconstitucionalidade por omissão, pois o Estado tem o dever de atingir os objetivos previstos na Carta Magna e mantendo-se inerte não os garante a seus cidadãos, agindo, ainda que por omissão, de maneira inconstitucional. Já prevendo eventual omissão do poder público em efetivar os direitos previstos na Constituição, o legislador constitucional acabou prevendo dois remédios que, em tese, atacariam essa inércia do Estado: A Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADIN por omissão) e o Mandado de Injunção. Cabe aqui reproduzir a explicação de Roque Antônio Carraza (2011, p. 346) sobre os instrumentos constitucionais acima mencionados:

A ação direta de inconstitucionalidade por omissão e o mandado de injunção são inovações da Carta de 1988. Junto a elas transita a mesma e louvável ideia de que os direitos constitucionais não devem,

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por falta de atos normativos que os inviabilizem, permanecer no plano das aspirações irrealizadas. De fato, a Lei Maior de 1988 contém muitos avanços, nos campos sociais, político econômico, etc. Ora, o constituinte temendo que tais avanços ficassem apenas no papel, procurou criar institutos adequados a sua concretização. Dois deles são justamente, ação direta de inconstitucionalidade por omissão e o mandado de injunção.

Em relação à ADIN por omissão, parte da doutrina defende que em caso da mesma ser julgada procedente pelo STF, este deveria dar ciência ao órgão omisso, determinando prazo para que a omissão fosse sanada. Caso o órgão se mantenha inerte, o próprio STF elaboraria a norma que regulamentaria tal direito até que a omissão fosse sanada. Tal posição é encabeçada por José Afonso da Silva (2009, p. 49) que entende ser

[...] a sentença que reconhecesse a omissão inconstitucional já pudesse dispor normativamente sobre a matéria até que a omissão legislativa fosse suprida. Com isso, conciliar-se-iam o princípio político da autonomia do legislador e a exigência do efetivo cumprimento das normas constitucionais.

Contudo, tal posição enfrenta ferrenha crítica dentro da doutrina e do próprio STF, que adotam posição mais conservadora, invocando a clássica teoria da separação de poderes, em que o Judiciário não poderia invadir a esfera de competência do legislativo, editando normas com força de Lei. Assim, prevalece em nossa Corte Constitucional o entendimento de que, julgada procedente ADIN por omissão cabe apenas ao STF dar ciência ao órgão omisso, sem fixação de prazo para a elaboração da norma infraconstitucional, uma vez que o Judiciário não pode obrigar o legislativo a editar leis, ou a regulação, ainda que provisória, do direito que não pode ser exercido em razão da omissão estatal. Tal posição nos parece deveras conservadora, pois nos tempos atuais, em que se fala no Estado Social Democrático de Direito, a teoria clássica da separação de poderes não deve ser interpretada de maneira tão enrijecida, pois modernamente fala-se em funções predominantes ou típicas (que seriam aquelas descritas na teoria da separação de poderes) e não-predominantes ou atípicas,

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onde, excepcionalmente, e em face d e atender ao interesse público, um Poder atua na esfera de competências do outro, o que nos parece bem razoável quando se fala no Judiciário legislando excepcionalmente, a fim de garantir direitos fundamentais expressamente previstos no texto constitucional. Diante da posição tomada pelo STF em relação aos efeitos da decisão proferida em uma ADIN por omissão, tal instrumento mostra-se totalmente inócuo à promoção da Cidadania, pois após um processo longo e custoso, o provimento jurisdicional conseguido é uma mera declaração de que o Estado está em mora em relação à regulamentação de alguns direitos, que continuarão a ser impossíveis de serem exercidos até manifestação do legislativo, que não tem prazo e nem obrigação de editar essa lei.

4. O MANDADO DE INJUNÇÃO

4.1. CONCEITO

Diante do que Celso Bastos (1997, p. 28) chamou de “hipossuficiência regulamentar”, ou seja, a incapacidade do cidadão comum poder exercer a plenitude de seus direitos em razão da ausência de normas reguladoras de alguns deles, o constituinte de 1988 viu-se obrigado a inserir no ordenamento jurídico pátrio um mecanismo de ataque à omissão estatal até então inédito, o Mandado de Injunção. Esta ferramenta de promoção de direitos dependentes de regulamentação infraconstitucional tem o condão de ver garantida a concretização dos direitos assegurados a todos na Constituição de 1988, já que nenhum dos instrumentos até então existentes (como vimos em relação à ADIN por omissão) eram aptos a efetivar e assegurar os direitos consagrados no texto constitucional. O mandado de injunção, por estar previsto no artigo 5º, LXXI da Constituição é considerado um direito fundamental, sendo ainda, nos termos do art. 60, § 4º uma cláusula pétrea, ou seja, não poderá ser retirado do rol de direitos mediante revisão constitucional. Por fim, importante expor que sendo um direito fundamental, nos termos do art. 5º, § 1º, o Mandado de Injunção tem aplicação imediata, não sendo necessária, portanto, qualquer outra legislação que o regulamente, devendo, enquanto não sobrevier esta regulamentação, o Mandado de Injunção seguir, conforme o caso, o procedimento previsto na Lei do Mandado de Segurança (Lei 1.533/1951) ou o procedimento ordinário previsto no Código de Processo Civil.

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4.2. ORIGEM Como já dito, o Mandado de Injunção é instrumento inédito no direito brasileiro, passando a integrar a ordem jurídica nacional com o advento da Constituição de 1988. Entretanto, a doutrina diverge quanto à fonte de inspiração do legislador constitucional, sendo que alguns defendem que o instituto é de criação cem por cento brasileira, sem qualquer influência do direito estrangeiro. José Afonso da Silva (2008, p. 446) entende que o Mandado de Injunção teve inspiração no “writ of injection” previsto no direito inglês. Tal “writ” trata-se de uma ação nascida no momento que a legislação existente mostra-se insuficiente ou inadequada para resolver determinado caso concreto. Assim, o magistrado, provocado por essa ação, deve resolver o caso utilizando a equidade, ou seja, decidindo o caso conforme os valores sociais vigentes na sociedade e aplicação dos princípios gerais do direito material então aplicado. Já Flávia Piovesan (1995, p. 178) afirma que a inspiração do legislador brasileiro teve origem no Verfassungsbechwerde do direito alemão. Este instituto, previsto no art. 93 da Constituição Alemã, prevê que o Tribunal Constitucional daquele país pode ser provocado a analisar se alguém está sofrendo prejuízo em seus direitos fundamentais em virtude da mora legislativa. Reconhecida a mora, o Tribunal declara inconstitucional essa omissão e desde já edita norma que regulará o caso concreto. Discordando das opiniões acima Celso Bastos (2001, p. 410), que ao confrontar o Mandado de Injunção com outros institutos similares no direito alienígena “só leva à conclusão da absoluta singularidade do instituto pátrio”.

4.3. ROL DE DIREITOS DE EFICÁCIA CONTIDA QUE PODEM SER DISCUTIDOS EM SEDE DE MANDADO DE INJUNÇÃO

O texto constitucional prevê que poderão ser objeto de MI qualquer omissão que “torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania”. É justamente na definição de direitos e liberdades constitucionais e quais seriam as prerrogativas de nacionalidade, soberania e cidadania que a doutrina diverge. A primeira posição defende uma interpretação restritiva do comando constitucional. Entende esse posicionamento que somente os direitos previstos nos capítulos I (direitos e deveres individuais e coletivos), III (direitos referentes à nacionalidade) e IV (direitos políticos) podem ser objeto de MI. A crítica a esta posição fica na exclusão dos direitos sociais, grande inovação trazida pelas constituições dirigentes e que não podem ser analisados. Defendendo esta posição: “O mandado de injunção tem um campo restrito. […] Disto resulta que, como é óbvio, não alcança outros direitos, por exemplo, os inscritos direitos sociais” (FERREIRA FILHO, 2012, p. 319).

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Uma segunda posição, que podemos chamar de intermediária, e capitaneada por Celso Bastos (1997, p.242) entende que além dos direitos mencionados na primeira corrente, deverão ser acrescidos todos os direitos sociais previstos no Capítulo II. Já uma terceira posição, encabeçada por José Afonso da Silva e Luís Roberto Barroso amplia ainda mais o rol de direitos passíveis de discussão via MI, pois entendem que qualquer direito constitucionalmente previsto, independente de sua localização no texto constitucional Barroso (pp. 255-256) defende essa posição afirmando que:

Como não há cláusula restritiva, estão abrangidos todos os direitos constitucionais, sejam individuais, coletivos, difusos, políticos ou sociais. Aliás, é precisamente no campo dos direitos sociais que se registram os principais casos de omissão legislativa […] Note-se que dificilmente ocorrerá um caso de impetração de mandado de injunção para asseguramento de liberdades constitucionais, haja vista que elas traduzem, normalmente, numa abstenção do Poder Público […].

Diante das três posições acima explicadas e levando-se em consideração o espírito desta Constituição Social e Dirigente, em particular a do Brasil, nos parece mais adequada esta última posição, pois se alguns dos objetivos da Republica Brasileira são a diminuição da desigualdade social e regional, a erradicação da pobreza e a promoção do bem-estar de todos, disposições constitucionais atinentes à ordem econômica e tributária, p. ex., que tem influência substancial no dia a dia das pessoas e que podem ou não contribuir para a melhoria da qualidade de vida do cidadão, não podem ser excluídas do rol de direitos que podem ser ter sua eficácia exigida por meio do Mandado de Injunção.

4.4. ESPÉCIES DE PROVIMENTO JURISDICIONAL EM MANDADO DE INJUNÇÃO Também em relação aos efeitos que a decisão proferida em sede de Mandado de Injunção pode surtir, a doutrina mantém-se dividida em três entendimentos: a) posição não-concretista; b) posição intermediária; e c) posição concretista. A primeira, praticamente anula a efetividade do Mandado de Injunção, igualando seus efeitos ao da ADIN por omissão supra discutida. De acordo com

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essa corrente, ambas as ações têm o mesmo efeito: A mera comunicação do órgão omisso, sem imposição de prazo para suprir essa lacuna legislativa e nem regulando o caso concreto. Este foi o primeiro posicionamento adotado pelo STF140 e tem como um de seus defensores Ferreira Filho (p. 319) segundo o qual

O alcance do mandado de injunção é análogo ao da inconstitucionalidade por omissão. Sua concessão leva o Poder Judiciário a dar ciência ao Poder competente da falta de norma sem a qual é inviável o exercício de direito fundamental. Não importa no estabelecimento pelo próprio órgão jurisdicional da norma regulamentadora necessária à viabilização dos direitos. Aliás, tal alcance está fora da sistemática constitucional brasileira, que consagra a “separação de poderes”.

Já a posição intermediária defende que após reconhecida a omissão legislativa, o Judiciário, além de dar ciência ao órgão omisso, fixaria prazo para a supressão dessa lacuna. Findado o prazo e não editada a norma infraconstitucional, o próprio Judiciário concederia ao impetrante do MI o direito nos termos pleiteados. Cabe esclarecer que segundo esta posição, em um primeiro momento o Judiciário apenas declara a omissão e fixa o prazo, e que só efetivamente regulamenta o direito até então de eficácia contida após o decurso do prazo. Neste ínterim, portanto, o direito permanece sem possibilidade de fruição. Esta posição pode ser considerada uma evolução da primeira, e também já foi adotada pelo STF, que reviu seu primeiro entendimento e a aplicou no julgamento dos Mandados de Injunção M 232-1141 e 283-5. Já a terceira e mais moderna posição, a concretista, prevê que, julgado o mandado de injunção, o Judiciário, além de reconhecer a mora legislativa,

140 Ao julgar o MI 107-3/DF.141 Ementa: “Legitimidade ativa da requerente para impetrar mandado de injunção por falta de regulamentação do disposto no § 7º do artigo 195 da Constituição Federal. Ocorrência, no caso, em face do disposto no artigo 59 do ADCT, de mora, por parte do Congresso, regulamentação daquele preceito constitucional. Mandado de injunção concedido em parte, e nessa parte, deferido para declarar-se o estado de mora em que se encontra o Congresso Nacional, a fim de que, no prazo de seis meses, adote ele as providências legislativas que se impõe para o cumprimento da obrigação de legislar decorrente do artigo 195, § 7º, da Constituição, sob pena de, vencido esse prazo sem que essa obrigação se cumpra, passar o requerente a gozar da imunidade requerida”. Rel. Min. Moreira Alves. Julgado em 02/08/1991.

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desde já e não sendo necessário aguardar qualquer lapso temporal (ao contrário da posição intermediária), passa a regular o exercício do direito pleiteado, nos termos do pedido inicial do MI. José Afonso (1989, p. 52) é o maior defensor desta posição, e ao fundamentar sua decisão, o faz ainda conseguindo afastar qualquer violação do princípio da separação de poderes:

Enfim, a instituição do mandado de injunção alarga o âmbito da atividade jurisdicional, porque, por ele, a Constituição autoriza o juiz a decidir por equidade, o que significa determinar que ele aplique a norma que estabeleceria se fosse legislador. Por isso não está autorizado a legislar. Não formulará norma genérica na sua sentença, regulamentadora do exercício do direito, liberdade ou prerrogativas referidos no art. 5º, LXXI, da Constituição. Sua função se limitará a explicitar o direito para o caso concreto. Ou seja, decidirá o caso explicitando o direito esboçado na norma constitucional, em favor do impetrante, nos termos normativos por ele supostos, mentalizados (comode fora legislador), mas não formulará senão no estabelecimento das condições indispensáveis à correta aplicação da norma constitucional em causa142.

Também é de se colocar que dentro da posição concretista existe uma subdivisão: os concretistas gerais e os concretistas individuais. Os primeiros acreditam que os efeitos da decisão do MI têm efeitos erga omnes, ou seja, alcança a todos que, porventura, façam jus ao gozo do direito recém-regulado. Já os últimos entendem que o efeito da decisão é apenas “interpartes”, pois o direito tutelado em sede de MI é o subjetivo do autor da ação e não a ordem jurídica como um todo, sendo neste caso, a ação correta a ADIN por omissão. Diante da explicação de José Afonso, nos parece mais adequada a corrente concretista individual, pois o autor do MI busca exercer um direito seu e atua em nome próprio, e caso contrário, o MI tivesse efeitos erga omnes, ou seja, regulasse as mais diversas situações análogas, estaria se criando uma norma abstrata e geral, despojada de pessoalidade, características da lei em sentido amplo que, de acordo com a teoria da separação de poderes, somente pode ser editada pelo Poder Legislativo.

142 SILVA, José Afonso da. Mandado de injunção e habeas data. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989, p. 52.

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Com o passar do tempo, o STF, que em um primeiro momento filiou-se à posição não concretista, depois alterou seu entendimento aplicando a posição intermediária, parece que agora fixou sua convicção na aplicação da posição concretista individual, sendo o paradigma deste novo entendimento o julgamento do MI 721/DF, onde uma servidora do Ministério da Saúde, alegando trabalhar em condições insalubres, requereu fosse regulado o art. 40 § 4º da Constituição, que prevê aposentadora especial para servidores sob essas condições, nos termos da Lei que até hoje não foi editada. Assim, em decisão até então inédita, o STF não só declarou a omissão legislativa do Presidente da República (competente para iniciativa de lei que regule o regime jurídico dos servidores públicos da União) como, sem nem fixar prazo para regularização da omissão, determinou fosse aplicado ao caso, de imediato, as regras previstas na Lei 8.213/91, que regula as aposentadorias especiais dos integrantes do sistema geral da previdência social143. Outro Mandado de injunção importante para nosso estudo e que demonstrou que o STF definitivamente alinhou-se à teoria concretista individual é o julgamento do MI 708/DF, no qual o sindicato dos trabalhadores em educação da cidade de João Pessoa/PB, requer seja regulado o direito de greve do servidor público, garantido na Constituição Federal no art. 37, VII desde 1998 (inciso incluído pela emenda 19/1998) e até hoje não regulado por lei específica, sendo, até a data deste julgado, mera disposição sem qualquer aplicabilidade, deixando milhões de servidores públicos impossibilitados de exercer o direito fundamental de greve, o que acarreta grave violação do estado democrático de direito. Neste julgado, seguindo o novo entendimento fixado pelo julgamento do MI 721/DF, o STF declarou a mora legislativa do Congresso Nacional e determinou a aplicação imediata das Leis 7.701/1988 e 7.783/1989, que regulam o direito de greve dos empregados da iniciativa privada. A inovação deste julgado em relação ao acórdão paradigma, é que neste o Judiciário fixou o prazo de sessenta dias para regularização da omissão, sendo que neste interim

143 MI 721/DF. Rel. Min. Marco Aurélio. Julgado em 30/08/2007. Ementa: “MANDADO DE INJUNÇÃO - NATUREZA. Conforme disposto no inciso LXXI do artigo 5º da Constituição Federal, conceder-se-á mandado de injunção quando necessário ao exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania. Há ação mandamental e não simplesmente declaratória de omissão. A carga de declaração não é objeto da impetração, mas premissa da ordem a ser formalizada. MANDADO DE INJUNÇÃO - DECISÃO - BALIZAS. Tratando-se de processo subjetivo, a decisão possui eficácia considerada a relação jurídica nele revelada. APOSENTADORIA - TRABALHO EM CONDIÇÕES ESPECIAIS - PREJUÍZO À SAÚDE DO SERVIDOR - INEXISTÊNCIA DE LEI COMPLEMENTAR - ARTIGO 40, § 4º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Inexistente a disciplina específica da aposentadoria especial do servidor, impõe-se a adoção, via pronunciamento judicial, daquela própria aos trabalhadores em geral - artigo 57, § 1º, da Lei nº 8.213/91”.

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ou até a edição da lei regulamentadora, o direito de greve dos funcionários públicos será regulado nos termos do julgado. Importante colacionar a ementa deste julgado, pois ao contrário do anterior, os Ministros do STF fundamentam toda a dogmática jurídica que orientou esta mudança, que nos parece definitiva, de posicão quanto aos efeitos que devem surtir uma decisão proferida em sede de mandado de injunção:

MANDADO DE INJUNÇÃO. GARANTIA FUN-DAMENTAL (CF, ART. 5º, INCISO LXXI). DIREI-TO DE GREVE DOS SERVIDORES PÚBLICOS CIVIS (CF, ART. 37, INCISO VII). EVOLUÇÃO DO TEMA NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF). DEFINIÇÃO DOS PARÂMETROS DE COMPETÊNCIA CONSTITU-CIONAL PARA APRECIAÇÃO NO ÂMBITO DA JUSTIÇA FEDERAL E DA JUSTIÇA ESTADUAL ATÉ A EDIÇÃO DA LEGISLAÇÃO ESPECÍFICA PERTINENTE, NOS TERMOS DO ART. 37, VII, DA CF. EM OBSERVÂNCIA AOS DITAMES DA SEGURANÇA JURÍDICA E À EVOLUÇÃO JU-RISPRUDENCIAL NA INTERPRETAÇÃO DA OMISSÃO LEGISLATIVA SOBRE O DIREITO DE GREVE DOS SERVIDORES PÚBLICOS CIVIS, FIXAÇÃO DO PRAZO DE 60 (SESSENTA) DIAS PARA QUE O CONGRESSO NACIONAL LEGIS-LE SOBRE A MATÉRIA. MANDADO DE INJUN-ÇÃO DEFERIDO PARA DETERMINAR A APLI-CAÇÃO DAS LEIS NOS 7.701/1988 E 7.783/1989. 1. SINAIS DE EVOLUÇÃO DA GARANTIA FUN-DAMENTAL DO MANDADO DE INJUNÇÃO NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF). 1.1. No julgamento do MI no 107/DF, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 21.9.1990, o Plená-rio do STF consolidou entendimento que conferiu ao mandado de injunção os seguintes elementos opera-cionais: i) os direitos constitucionalmente garantidos por meio de mandado de injunção apresentam-se como direitos à expedição de um ato normativo, os quais, via de regra, não poderiam ser diretamente sa-tisfeitos por meio de provimento jurisdicional do

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STF; ii) a decisão judicial que declara a existência de uma omissão inconstitucional constata, igualmente, a mora do órgão ou poder legiferante, insta-o a editar a norma requerida; iii) a omissão inconstitucional tanto pode referir-se a uma omissão total do legislador quanto a uma omissão parcial; iv) a decisão proferida em sede do controle abstrato de normas acerca da existência, ou não, de omissão é dotada de eficácia erga omnes, e não apresenta diferença significativa em relação a atos decisórios proferidos no contexto de mandado de injunção; iv) o STF possui competên-cia constitucional para, na ação de mandado de injun-ção, determinar a suspensão de processos administra-tivos ou judiciais, com o intuito de assegurar ao inte-ressado a possibilidade de ser contemplado por nor-ma mais benéfica, ou que lhe assegure o direito cons-titucional invocado; v) por fim, esse plexo de poderes institucionais legitima que o STF determine a edição de outras medidas que garantam a posição do impe-trante até a oportuna expedição de normas pelo legis-lador. 1.2. Apesar dos avanços proporcionados por essa construção jurisprudencial inicial, o STF flexibi-lizou a interpretação constitucional primeiramente fixada para conferir uma compreensão mais abran-gente à garantia fundamental do mandado de injun-ção. A partir de uma série de precedentes, o Tribunal passou a admitir soluções “normativas” para a deci-são judicial como alternativa legítima de tornar a pro-teção judicial efetiva (CF, art. 5º, XXXV). Preceden-tes: MI nº 283, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 14.11.1991; MI no 232/RJ, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 27.3.1992; MI nº 284, Rel. Min. Marco Aurélio, Red. para o acórdão Min. Celso de Mello, DJ 26.6.1992; MI nº 543/DF, Rel. Min. Octavio Gallotti, DJ 24.5.2002; MI no 679/DF, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 17.12.2002; e MI nº 562/DF, Rel. Min. El-len Gracie, DJ 20.6.2003. 2. O MANDADO DE IN-JUNÇÃO E O DIREITO DE GREVE DOS SERVI-DORES PÚBLICOS CIVIS NA JURISPRUDÊNCIA DO STF. 2.1. O tema da existência, ou não, de omis-

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são legislativa quanto à definição das possibilidades, condições e limites para o exercício do direito de gre-ve por servidores públicos civis já foi, por diversas vezes, apreciado pelo STF. Em todas as oportunida-des, esta Corte firmou o entendimento de que o objeto do mandado de injunção cingir-se-ia à declaração da existência, ou não, de mora legislativa para a edição de norma regulamentadora específica. Precedentes: MI no 20/DF, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 22.11.1996; MI no 585/TO, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 2.8.2002; e MI no 485/MT, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 23.8.2002. 2.2. Em alguns precedentes (em especial, no voto do Min. Carlos Velloso, profe-rido no julgamento do MI no 631/MS, Rel. Min. Il-mar Galvão, DJ 2.8.2002), aventou-se a possibilidade de aplicação aos servidores públicos civis da lei que disciplina os movimentos grevistas no âmbito do se-tor privado (Lei no 7.783/1989). 3. DIREITO DE GREVE DOS SERVIDORES PÚBLICOS CIVIS. HIPÓTESE DE OMISSÃO LEGISLATIVA IN-CONSTITUCIONAL. MORA JUDICIAL, POR DI-VERSAS VEZES, DECLARADA PELO PLENÁ-RIO DO STF. RISCOS DE CONSOLIDAÇÃO DE TÍPICA OMISSÃO JUDICIAL QUANTO À MATÉ-RIA. A EXPERIÊNCIA DO DIREITO COMPARA-DO. LEGITIMIDADE DE ADOÇÃO DE ALTER-NATIVAS NORMATIVAS E INSTITUCIONAIS DE SUPERAÇÃO DA SITUAÇÃO DE OMISSÃO. 3.1. A permanência da situação de não-regulamenta-ção do direito de greve dos servidores públicos civis contribui para a ampliação da regularidade das insti-tuições de um Estado democrático de Direito (CF, art. 1º). Além de o tema envolver uma série de questões estratégicas e orçamentárias diretamente relacionadas aos serviços públicos, a ausência de parâmetros jurí-dicos de controle dos abusos cometidos na deflagra-ção desse tipo específico de movimento grevista tem favorecido que o legítimo exercício de direitos cons-titucionais seja afastado por uma verdadeira “lei da selva”. 3.2. Apesar das modificações implementadas

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pela Emenda Constitucional no 19/1998 quanto à mo-dificação da reserva legal de lei complementar para a de lei ordinária específica (CF, art. 37, VII), observa--se que o direito de greve dos servidores públicos ci-vis continua sem receber tratamento legislativo mini-mamente satisfatório para garantir o exercício dessa prerrogativa em consonância com imperativos consti-tucionais. 3.3. Tendo em vista as imperiosas balizas jurídico-políticas que demandam a concretização do direito de greve a todos os trabalhadores, o STF não pode se abster de reconhecer que, assim como o con-trole judicial deve incidir sobre a atividade do legisla-dor, é possível que a Corte Constitucional atue tam-bém nos casos de inatividade ou omissão do Legisla-tivo. 3.4. A mora legislativa em questão já foi, por diversas vezes, declarada na ordem constitucional brasileira. Por esse motivo, a permanência dessa situ-ação de ausência de regulamentação do direito de greve dos servidores públicos civis passa a invocar, para si, os riscos de consolidação de uma típica omis-são judicial. 3.5. Na experiência do direito compara-do (em especial, na Alemanha e na Itália), admite-se que o Poder Judiciário adote medidas normativas como alternativa legítima de superação de omissões inconstitucionais, sem que a proteção judicial efetiva a direitos fundamentais se configure como ofensa ao modelo de separação de poderes (CF, art. 2º). 4. DI-REITO DE GREVE DOS SERVIDORES PÚBLI-COS CIVIS. REGULAMENTAÇÃO DA LEI DE GREVE DOS TRABALHADORES EM GERAL (LEI No 7.783/1989). FIXAÇÃO DE PARÂME-TROS DE CONTROLE JUDICIAL DO EXERCÍ-CIO DO DIREITO DE GREVE PELO LEGISLA-DOR INFRACONSTITUCIONAL. 4.1. A disciplina do direito de greve para os trabalhadores em geral, quanto às “atividades essenciais”, é especificamente delineada nos arts. 9º a 11 da Lei no 7.783/1989. Na hipótese de aplicação dessa legislação geral ao caso específico do direito de greve dos servidores públi-cos, antes de tudo, afigura-se inegável o conflito exis-

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tente entre as necessidades mínimas de legislação para o exercício do direito de greve dos servidores públicos civis (CF, art. 9º, caput, c/c art. 37, VII), de um lado, e o direito a serviços públicos adequados e prestados de forma contínua a todos os cidadãos (CF, art. 9º, §1º), de outro. Evidentemente, não se outorga-ria ao legislador qualquer poder discricionário quanto à edição, ou não, da lei disciplinadora do direito de greve. O legislador poderia adotar um modelo mais ou menos rígido, mais ou menos restritivo do direito de greve no âmbito do serviço público, mas não pode-ria deixar de reconhecer direito previamente definido pelo texto da Constituição. Considerada a evolução jurisprudencial do tema perante o STF, em sede do mandado de injunção, não se pode atribuir ampla-mente ao legislador a última palavra acerca da con-cessão, ou não, do direito de greve dos servidores públicos civis, sob pena de se esvaziar direito funda-mental positivado. Tal premissa, contudo, não impe-de que, futuramente, o legislador infraconstitucional confira novos contornos acerca da adequada configu-ração da disciplina desse direito constitucional. 4.2 Considerada a omissão legislativa alegada na espécie, seria o caso de se acolher a pretensão, tão-somente no sentido de que se aplique a Lei no 7.783/1989 en-quanto a omissão não for devidamente regulamenta-da por lei específica para os servidores públicos civis (CF, art. 37, VII). 4.3 Em razão dos imperativos da continuidade dos serviços públicos, contudo, não se pode afastar que, de acordo com as peculiaridades de cada caso concreto e mediante solicitação de entidade ou órgão legítimo, seja facultado ao tribunal compe-tente impor a observância a regime de greve mais se-vero em razão de tratar-se de “serviços ou atividades essenciais”, nos termos do regime fixado pelos arts. 9° a 11° da Lei n° 7.783/1989. Isso ocorre porque não se pode deixar de cogitar dos riscos decorrentes das possibilidades de que a regulação dos serviços públi-cos que tenham características afins a esses “serviços ou atividades essenciais” seja menos severa que a dis-

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ciplina dispensada aos serviços privados ditos “es-senciais”. 4.4. O sistema de judicialização do direito de greve dos servidores públicos civis está aberto para que outras atividades sejam submetidas a idênti-co regime. Pela complexidade e variedade dos servi-ços públicos e atividades estratégicas típicas do Esta-do, há outros serviços públicos, cuja essencialidade não está contemplada pelo rol dos arts. 9º a 11 da Lei nº 7.783/1989. Para os fins desta decisão, a enuncia-ção do regime fixado pelos arts. 9° a 11° da Lei n° 7.783/1989 é apenas exemplificativa (numerus aper-tus). 5. O PROCESSAMENTO E O JULGAMENTO DE EVENTUAIS DISSÍDIOS DE GREVE QUE ENVOLVAM SERVIDORES PÚBLICOS CIVIS DEVEM OBEDECER AO MODELO DE COMPE-TÊNCIAS E ATRIBUIÇÕES APLICÁVEL AOS TRABALHADORES EM GERAL (CELETISTAS), NOS TERMOS DA REGULAMENTAÇÃO DA LEI No 7.783/1989. A APLICAÇÃO COMPLEMEN-TAR DA LEI Nº 7.701/1988 VISA À JUDICIALI-ZAÇÃO DOS CONFLITOS QUE ENVOLVAM OS SERVIDORES PÚBLICOS CIVIS NO CONTEXTO DO ATENDIMENTO DE ATIVIDADES RELA-CIONADAS A NECESSIDADES INADIÁVEIS DA COMUNIDADE QUE, SE NÃO ATENDIDAS, CO-LOQUEM “EM PERIGO IMINENTE A SOBREVI-VÊNCIA, A SAÚDE OU A SEGURANÇA DA PO-PULAÇÃO” (LEI Nº 7.783/1989, PARÁGRAFO ÚNICO, ART. 11). 5.1. Pendência do julgamento de mérito da ADI no 3.395/DF, Rel. Min. Cezar Peluso, na qual se discute a competência constitucional para a apreciação das “ações oriundas da relação de traba-lho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios” (CF, art. 114, I, na redação conferida pela EC no 45/2004). 5.2. Diante da singularidade do debate constitucional do direito de greve dos servidores pú-blicos civis, sob pena de injustificada e inadmissível negativa de prestação jurisdicional nos âmbitos fede-

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ral, estadual e municipal, devem-se fixar também os parâmetros institucionais e constitucionais de defini-ção de competência, provisória e ampliativa, para a apreciação de dissídios de greve instaurados entre o Poder Público e os servidores públicos civis. 5.3. No plano procedimental, afigura-se recomendável apli-car ao caso concreto a disciplina da Lei nº 7.701/1988 (que versa sobre especialização das turmas dos Tribu-nais do Trabalho em processos coletivos), no que tan-ge à competência para apreciar e julgar eventuais conflitos judiciais referentes à greve de servidores públicos que sejam suscitados até o momento de col-matação legislativa específica da lacuna ora declara-da, nos termos do inciso VII do art. 37 da CF. 5.4. A adequação e a necessidade da definição dessas ques-tões de organização e procedimento dizem respeito a elementos de fixação de competência constitucional de modo a assegurar, a um só tempo, a possibilidade e, sobretudo, os limites ao exercício do direito consti-tucional de greve dos servidores públicos, e a conti-nuidade na prestação dos serviços públicos. Ao ado-tar essa medida, este Tribunal passa a assegurar o di-reito de greve constitucionalmente garantido no art. 37, VII, da Constituição Federal, sem desconsiderar a garantia da continuidade de prestação de serviços pú-blicos - um elemento fundamental para a preservação do interesse público em áreas que são extremamente demandadas pela sociedade. 6. DEFINIÇÃO DOS PARÂMETROS DE COMPETÊNCIA CONSTITU-CIONAL PARA APRECIAÇÃO DO TEMA NO ÂMBITO DA JUSTIÇA FEDERAL E DA JUSTIÇA ESTADUAL ATÉ A EDIÇÃO DA LEGISLAÇÃO ESPECÍFICA PERTINENTE, NOS TERMOS DO ART. 37, VII, DA CF. FIXAÇÃO DO PRAZO DE 60 (SESSENTA) DIAS PARA QUE O CONGRESSO NACIONAL LEGISLE SOBRE A MATÉRIA. MANDADO DE INJUNÇÃO DEFERIDO PARA DETERMINAR A APLICAÇÃO DAS LEIS Nos

7.701/1988 E 7.783/1989. 6.1. Aplicabilidade aos servidores públicos civis da Lei n° 7.783/1989, sem

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prejuízo de que, diante do caso concreto e mediante solicitação de entidade ou órgão legítimo, seja facul-tado ao juízo competente a fixação de regime de gre-ve mais severo, em razão de tratarem de “serviços ou atividades essenciais” (Lei nº 7.783/1989, arts. 9° a 11°). 6.2. Nessa extensão do deferimento do mandado de injunção, aplicação da Lei nº 7.701/1988, no que tange à competência para apreciar e julgar eventuais conflitos judiciais referentes à greve de servidores pú-blicos que sejam suscitados até o momento de colma-tação legislativa específica da lacuna ora declarada, nos termos do inciso VII do art. 37 da CF. 6.3. Até a devida disciplina legislativa, devem-se definir as situ-ações provisórias de competência constitucional para a apreciação desses dissídios no contexto nacional, regional, estadual e municipal. Assim, nas condições acima especificadas, se a paralisação for de âmbito nacional, ou abranger mais de uma região da justiça federal, ou ainda, compreender mais de uma unidade da federação, a competência para o dissídio de greve será do Superior Tribunal de Justiça (por aplicação analógica do art. 2º, I, “a”, da Lei nº 7.701/1988). Ainda no âmbito federal, se a controvérsia estiver adstrita a uma única região da justiça federal, a com-petência será dos Tribunais Regionais Federais (apli-cação analógica do art. 6o da Lei nº 7.701/1988). Para o caso da jurisdição no contexto estadual ou munici-pal, se a controvérsia estiver adstrita a uma unidade da federação, a competência será do respectivo Tribu-nal de Justiça (também por aplicação analógica do art. 6º da Lei nº 7.701/1988). As greves de âmbito local ou municipal serão dirimidas pelo Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal com jurisdição sobre o local da paralisação, conforme se trate de gre-ve de servidores municipais, estaduais ou federais. 6.4. Considerados os parâmetros acima delineados, a par da competência para o dissídio de greve em si, no qual se discuta a abusividade, ou não, da greve, os referidos tribunais, nos âmbitos de sua jurisdição, se-rão competentes para decidir acerca do mérito do pa-

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gamento, ou não, dos dias de paralisação em conso-nância com a excepcionalidade de que esse juízo se reveste. Nesse contexto, nos termos do art. 7º da Lei nº 7.783/1989, a deflagração da greve, em princípio, corresponde à suspensão do contrato de trabalho. Como regra geral, portanto, os salários dos dias de paralisação não deverão ser pagos, salvo no caso em que a greve tenha sido provocada justamente por atra-so no pagamento aos servidores públicos civis, ou por outras situações excepcionais que justifiquem o afas-tamento da premissa da suspensão do contrato de tra-balho (art. 7º da Lei nº 7.783/1989, in fine). 6.5. Os tribunais mencionados também serão competentes para apreciar e julgar medidas cautelares eventual-mente incidentes relacionadas ao exercício do direito de greve dos servidores públicos civis, tais como: i) aquelas nas quais se postule a preservação do objeto da querela judicial, qual seja, o percentual mínimo de servidores públicos que deve continuar trabalhando durante o movimento paredista, ou mesmo a proibi-ção de qualquer tipo de paralisação; ii) os interditos possessórios para a desocupação de dependências dos órgãos públicos eventualmente tomados por grevis-tas; e iii) as demais medidas cautelares que apresen-tem conexão direta com o dissídio coletivo de greve. 6.6. Em razão da evolução jurisprudencial sobre o tema da interpretação da omissão legislativa do direi-to de greve dos servidores públicos civis e em respei-to aos ditames de segurança jurídica, fixa-se o prazo de 60 (sessenta) dias para que o Congresso Nacional legisle sobre a matéria. 6.7. Mandado de injunção co-nhecido e, no mérito, deferido para, nos termos acima especificados, determinar a aplicação das Leis nos 7.701/1988 e 7.783/1989 aos conflitos e às ações ju-diciais que envolvam a interpretação do direito de greve dos servidores públicos civis144”.

Contudo, um alarmante dado estatístico145 mostra a lentidão do Estado

144 MI 708/DF. Rel. Min. Gilmar Mendes. Julgado em 25/10/2007.145 Retirado de http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=jurisprudenciaOmissaoI

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brasileiro em garantir a eficácia aos comandos constitucionais definidos como direitos fundamentais. O direito ao aviso prévio proporcional, garantido pelo texto original da Constituição no art. 7º, XXI (ou seja, previsto desde 1988) e que foi do MI 124/SP julgado em 07/10/1992 tendo como relator o Ministro Carlos Velloso, sendo que tal decisão alinhou-se à teoria não-concretista, ou seja, apenas cientificou o órgão omisso, só teve sua regulamentação infraconstitucional realizada em 13/10/2011, com a edição da Lei 12.506/2011. Ou seja, um direito social importantíssimo, uma indenização que o trabalhador recebe ao ser dispensado sem justa causa, e que dependendo do caso pode ser o único montante que este cidadão dispõe para sustentar a si e sua família, foi ignorado pelo Estado brasileiro por longos vinte e três anos, sendo que em vinte deles o órgão omisso já sabia de sua mora, em virtude da comunicação realizada pela decisão do MI 124/SP.

CONCLUSÃO

Diante de todo o estudo realizado neste trabalho, podemos concluir que o Mandado de injunção é sim um instrumento de promoção da cidadania. Podemos inclusive ir mais além, afirmando que o mandado de injunção é o único instrumento realmente capaz de promover a cidadania quando se tratar de omissão legislativa. Como vimos, a outra ferramenta capaz de combater a inércia legislativa do Estado, a ADIN por omissão, mostra-se pouco eficaz, pois seu julgamento gera apenas e tão somente a declaração da mora legislativa e a cientificação do órgão omisso.

Já o mandado de injunção mostra-se eficaz ao garantir o exercício de direitos classificados como de eficácia contida, notadamente os direitos sociais, ainda mais após o STF alterar seu entendimento e adotar a teoria concretista, garantindo o exercício do direito ainda que o órgão responsável não supra a omissão legislativa. Ainda que haja críticos a esta teoria, usando como fundamento básico a eventual mitigação da separação de poderes, como já foi estudado, tal posição é facilmente debatida pois a decisão em sede de MI aplica-se apenas ao caso concreto e visando regular apenas o direito subjetivo do autor da ação, não invadindo a competência do legislativo, que é de edição de normas abstratas de alcance geral. Apenas para ilustrar definitivamente que o efeito concreto da decisão do mandado de injunção não fere a separação de poderes, é de se colacionar mais um entendimento da doutrina no sentido de que

nconstitucional. Acesso em 15/10/2012.

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O tratamento dogmático-constitucional do princípio da separação dos poderes faz-se a partir da análise de uma constituição escrita em vigor. O princípio constitucional da separação de poderes não é prévio a constituição mas constrói-se a partir dela (PIÇARRA, 1989, p. 16).

Contudo, mesmo com os ganhos visíveis no campo da Cidadania com a inclusão do mandado de injunção no texto constitucional, o sistema ainda apresenta falhas, principalmente se analisarmos o comportamento do Estado brasileiro perante a necessidade de regulamentação de alguns direitos mediante a edição de normas infraconstitucionais, pois não se pode admitir em um Estado Democrático de Direito, que tem como um dos objetivos fundamentais a erradicação da pobreza e promover o bem de todos, deixar um direito básico do trabalhador, do pai de família, que muitas vezes nos momentos de desemprego só teria essa verba para garantir o sustento de toda uma família, como o aviso prévio proporcional, mais de vinte anos sem regulamentação e, consequentemente sem possibilidade de sua fruição.

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REFERÊNCIAS

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CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de direito constitucional tributário. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2011.

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 38ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 12ª ed. São Paulo: Sa-raiva, 2008.

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PANORAMA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Anderson Henrique Teixeira Nogueira146

Jefferson Ouribes Flores147

RESUMO

A questão dos direitos fundamentais resulta sempre em um grande número de reflexões. Pode-se questionar se eles sempre estiveram presentes ou se foram se construindo historicamente; além disso, é fundamental conhecer o seu conceito, limites, classificação, funções, titulares e como solucionar as colisões entre eles. Estes temas serão analisados no presente artigo mediante o uso de pesquisa bibliográfica, sem que se pretenda, no entanto, esgotar o tema.

Palavras-Chave: Direitos Fundamentais; Constituição Federal; Normas; Princípios.

SUMÁRIO: Introdução. 1. Conceito de normas de direito fundamental. 2. Estrutura das normas de direito fundamental. 3. Aspectos históricos e dimensões dos direitos fundamentais. 3.1 Primeira dimensão: liberdade. 3.2 Segunda dimensão: igualdade material. 3.3 Terceira dimensão: fraternidade. 3.4 Quarta dimensão: participação democrática. 4. Direito Fundamental - Conceito. 5. Limites dos direitos fundamentais. 6. Classificação dos direitos fundamentais. 7. Funções desempenhadas pelos direitos fundamentais. 8. Titulares dos direitos fundamentais. 9. Colisões de direitos fundamentais. Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO

É de vital importância delimitar o conceito de direitos fundamentais em relação a outras categorias, como os direitos humanos, pois os direitos fundamentais são aqueles direitos humanos positivados a nível interno, ao passo que a fórmula de direitos humanos é a mais usual no plano das declarações e convenções internacionais.

Uma vez delimitado o conceito de direitos fundamentais, é possível dizer que a existência dos direitos das pessoas surge através de uma evolução histórica, pois existem muitos vestígios dos direitos do homem na história da humanidade. Um claro exemplo disso é o Código de Manú (cultura hindu), onde se aprecia o respeito pelo ferido de guerra como uma forma de reconhecimento dos direitos humanos.

146 Mestrando em Direito Constitucional – UNISAL.147 Mestrando em Direito Constitucional – UNISAL.

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Com este trabalho objetiva-se descrever o conceito de normas jurídicas de direitos fundamentais e propor uma análise dos direitos fundamentais em seus principais aspectos, do conceito à colisão entre eles. O marco teórico é o estudo de Robert Alexy, em sua definição do modelo de regras e princípio.

1. CONCEITO DE NORMAS DE DIREITO FUNDAMENTAL

É pela universalidade do padrão semântico fundamentado na lógica deôntica que se conceitua a norma, conforme apresentado por Robert Alexy (2002), mesmo que o conceito de norma não seja unívoco. Assim, é possível conceituar norma como o significado proclamado por um enunciado normativo ou sinal que possibilita, impede ou ordena. Uma norma pode ser expressa por múltiplas categorias de enunciados, que podem fazer uso de expressões escritas análogas, como “é proibido” e “não podem”. Além disso, também acontece de uma norma não ser expressa por meio de enunciados, como é o caso do sinal luminoso em um semáforo.

Tendo sido estabelecido o conceito de norma, parte-se para a investigação do conceito de norma de direito fundamental. Isto poderia resultar na afirmação de que normas de direito fundamental são todas aquelas representadas por enunciados normativos determinados em constituição, que permitem, proíbem ou ordenam. No entanto, existem enunciados na constituição que não se configuram como normas de direito fundamental.

Assim, para Comparatto (1999), o direito fundamental não deve ser confundido com a norma de direito fundamental, pois esta pode conceder um direito subjetivo e, dessa maneira, se uma pessoa conta com um direito fundamental, implica em dizer que há uma norma jurídica de direito fundamental que lhe outorga tal direito. Contudo, nem todas as normas de direitos fundamentais podem outorgar direitos subjetivos.

Pode-se acrescentar um vestígio de estrutura à conceituação de normas de direito fundamental, partindo-se da previsão constitucional. Bastos e Grandra (1989) afirmam que não é suficiente que haja previsão na constituição, mas as normas de direito fundamental são aquelas distinguidas pelo alicerce do Estado liberal e, por conseguinte, estão inseridas no rol dos direitos individuais de liberdade, como direitos de defesa do cidadão.

Esta definição de normas de direito fundamental está atrelada a uma concepção de Estado liberal. Nesse sentido, os indivíduos precisam de proteção contra o Estado mediante instrumentos que possam defender efetivamente suas liberdades.

Por outro lado, há a possibilidade de compreensão das normas de direitos fundamentais como todas aquelas que são encontradas na constituição por

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meio de enunciados e que atribuem direitos subjetivos. Trata-se de um critério estreito, já que seria impossível incluir nele as normas que não conferem direitos subjetivos, mesmo as vinculadas com as normas de direitos fundamentais.

É mais apropriado, visando limitar a definição de direitos fundamentais a um ordenamento jurídico, utilizar uma concepção formal que determine, na constituição, onde há a expressão efetiva das normas de direitos fundamentais Dessa maneira, as normas de direitos fundamentais, no ordenamento jurídico-constitucional brasileiro, encontram-se expressas por enunciados normativos formulados, por exemplo, no artigo 5º, assim como outros que configurem normas associadas a este.

2. ESTRUTURA DAS NORMAS DE DIREITO FUNDAMENTAL

Robert Alexy, em sua obra Teoría de los Derechos Fundamentales, pondera acerca da estrutura da norma de direito fundamental.

O autor afirma que, para a teoria dos direitos fundamentais, o que mais importa é que seja feita uma diferenciação entre as regras e princípios, pois, se não houver esta distinção, mostra-se impraticável uma teoria apropriada dos limites, uma teoria aceitável da colisão e muito menos uma teoria se descreva com eficiência o papel que desempenham os direitos fundamentais no sistema jurídico.

O ponto crucial para a distinção entre regras e princípios é que os princípios são normas que determinam que algo seja praticado na maior medida possível, conforme as possibilidades jurídicas e reais presentes. Dessa forma, afirma Oliveira (2007) que o campo das possibilidades jurídicas é assentado pelos princípios e regras que se opõem. Por outro lado, as regras são normas que podem ou não exibir validade. Se há validade em uma regra, então e preciso cumprir todas as suas exigências.

Assim, entende-se que as regras possuem resoluções no domínio do fático e juridicamente possível. Isto implica em dizer que o que diferencia regras e princípios são aspectos qualitativos e não de grau. Toda norma é uma regra ou um princípio.

O caráter das regras é diferente dos princípios, pois estes não contêm comandos peremptórios senão apenas “prima facie”. Aos princípios falta o conteúdo de ordenamento no que se refere aos princípios contrapostos e às possibilidades fáticas (OLIVEIRA, 2007).

Isso não acontece com as regras, já que estas exigem que se faça exatamente o que elas ordenam, as normas possuem uma determinação no campo das possibilidades jurídicas e fáticas, e isto pode levar à sua invalidade. Contudo, se não é este o caso, o que vale é o que a regra efetivamente prescreve (PINTO FERREIRA, 1989).

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O fato de que, mediante os preceitos de direitos fundamentais, são instituídos dois tipos de normas, quais sejam, as regras e os princípios, que concedem fundamentação ao duplo caráter das disposições fundamentais.

3. ASPECTOS HISTÓRICOS E DIMENSÕES DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

A apresentação dos direitos fundamentais em “gerações” ou “dimensões” é bastante frequente na doutrina. Não obstante estar baseada na história ocidental trata-se de uma abordagem interessante e útil. Por meio dela se consegue demonstrar que a consagração dos direitos fundamentais é fruto de um complexo processo histórico.

Além disso, a sustentação de Bobbio (1992) de não existir um fundamento absoluto aos direitos do homem é demonstrada pelas transformações ocorridas, reveladas plasticamente pela teoria das “gerações” dos direitos. Constata-se, isto sim, que os direitos consagrados são, acima de tudo, fruto de reivindicações concretas, geradas por situações de injustiças ou de agressões a bens fundamentais e elementares do ser humano.

Tradicionalmente, os direitos fundamentais têm sido classificados em “gerações”, termo esse considerado impróprio por alguns autores porque pode trazer a falsa ideia de haver mera sucessão cronológica e extinção dos direitos das anteriores geração, o que não é correto.

Como bem pontua Lopes (2001), com o surgimento de uma nova “geração”, não há caducidade dos direitos das gerações anteriores. O reconhecimento progressivo de novos direitos tem caráter cumulativo, de complementação e não, de alternância.

Diante de tais colocações, o próprio Bonavides (2002), entende que o termo “dimensão” substitui o termo “geração” de forma vantajosa, tanto lógica quanto qualitativamente. Para este autor, os direitos de primeira geração (direitos individuais), os de segunda (direitos sociais) e os da terceira (direitos ao desenvolvimento, ao meio ambiente, à paz e à fraternidade) não perdem sua eficácia, são infraestruturais e constitui a pirâmide cujo ponto mais elevado é o direito à democracia.

O processo de reconhecimento dos direitos possui caráter dinâmico e dialético, assinalado por progressos, retrocessos e incoerências, destacando a dimensão histórica e relativa dos mesmos.

As diferentes dimensões marcam a evolução de um processo de reconhecimento e afirmação dos direitos fundamentais revelando sua natureza materialmente aberta e mutável, ainda que seja possível observar certa permanência e uniformidade nesse campo, como ilustramos tradicionais exemplos do direito à vida, da liberdade de locomoção e de pensamento, tão

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atuais nos dias de hoje quanto eram no século XVIII, como bem aponta Sarlet (2001).

Outro aspecto a ser considerado é que este processo evolutivo não se dá apenas pela positivação de “novos” direitos no texto da Constituição, mas também, por meio de atualização hermenêutica que reconhece novos conteúdos e funções para alguns direitos já tradicionais. Exemplo disso é o que está acontecendo com a proteção da liberdade, da igualdade, da vida, da intimidade e de outros valores essenciais à dignidade da pessoa humana, revigorada em virtude de novas agressões oriundas do crescente controle dos indivíduos efetivado pelos recursos de informática (bancos de dados, redes de computadores, registros de compra com cartão de crédito etc.), de inovadoras de técnicas de investigação criminal (interceptações telefônicas, quebra no sigilo bancário e na correspondência etc.), das ameaças da poluição ambiental, dos progressos científicos (por exemplo, a controvérsia causada pela fabricação de “clones humanos” e pelas novas técnicas de fecundação artificial, mudança de sexo etc.).

Bonavides (2002) faz uma relação entre as três dimensões dos direitos fundamentais e os três ideais da Revolução Francesa, ao lembrar que o lema dos revolucionários, entalhado no gênio político francês, traduziu em três princípios fundamentais todo o teor possível dos direitos fundamentais, prenunciando inclusive a sequência histórica de sua gradual institucionalização: liberdade, igualdade e fraternidade. Assim, a liberdade se relaciona à primeira dimensão, a igualdade à segunda, e a fraternidade ou solidariedade constitui a terceira dimensão. Por fim, é imprescindível reconhecer a existência de uma quarta dimensão, que conta com a apropriada definição de “direitos à participação democrática na formação das decisões coletivas”.

Verifica-se que todas as dimensões se complementam, não havendo antagonismos entre elas, já que todas buscam assegurar aos homens uma existência digna.

3.1. PRIMEIRA DIMENSÃO: LIBERDADE

Os direitos fundamentais de primeira dimensão surgem na primeira metade do século XVIII, juntamente com a concepção do Estado liberal, tendo seu âmbito de reconhecimento nas primeiras Constituições escritas.

De acordo com Bobbio (1992), por terem origem no pensamento liberal-burguês, de cunho marcadamente individualista, que surgem e se afirmam como direitos do indivíduo diante do Estado, os direitos fundamentais de primeira geração se apresentam como direitos de defesa, definindo uma zona de não-intervenção do Estado, uma esfera de autonomia individual.

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Configuram-se, portanto, como direitos de caráter “negativo”, por se dirigirem à recusa expressa e não a um procedimento positivo por parte dos poderes públicos. São “direitos de resistência ou de oposição perante o Estado”, como expressa Bobbio (1992).

Os elementos essenciais da relação destes direitos, notadamente pela inegável influência jusnaturalista, são os direitos à vida, à liberdade, à propriedade e à igualdade perante a lei. Em seguida, a listagem foi complementada pelas liberdades de expressão coletiva (liberdades de expressão, de imprensa, de manifestação, de reunião, etc.) e pelos direitos de participação política (direito de voto e capacidade eleitoral passiva), patenteando a estreita correlação entre os direitos fundamentais e a democracia.

Algumas garantias processuais (devido processo legal, habeas corpus, direito de petição) também compõem esta primeira dimensão. Enfim, cuida-se dos chamados direitos civis e políticos, que, em sua maioria, correspondem à fase inicial do constitucionalismo ocidental, mas que continuam a integrar os catálogos das Constituições até hoje, ainda que sujeitos a novas interpretações, atualizadoras de seus conteúdos (BONAVIDES, 2002).

3.2. SEGUNDA DIMENSÃO: IGUALDADE MATERIAL

Sarlet (2001) aponta que o impacto da industrialização gerou graves problemas sociais e econômicos. Constatou-se que a consagração formal da liberdade e da igualdade não garantia, por si só, seu efetivo desfrute. No decorrer do século XIX surgiram amplos movimentos reivindicatórios, nos quais as doutrinas socialistas tiveram grande repercussão.

Neste contexto, verificou-se o reconhecimento gradual de direitos de caráter positivo, conferindo-se ao Estado uma atitude ativa na efetivação da justiça social. Emergem, então, os direitos sociais.

Ensina Bonavides (2002) que os direitos fundamentais de segunda geração são os direitos sociais, culturais e econômicos, nos quais o Estado adquire uma irrefutável função promocional, não sendo mais admita a sua abstenção, no que concerne ao indivíduo.

Cappelletti (1988, p. 10), em festejada obra que trata do acesso à justiça, mostram as raízes históricas dos direitos sociais, dizendo que,

à medida que as sociedades do laissez-faire cresce-ram em tamanho e complexidade, o conceito de di-reitos humanos começou a sofrer uma transforma-ção radical. A partir do momento em que as ações e relacionamentos assumiram, cada vez mais, caráter

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mais coletivo que individual, as sociedades moder-nas necessariamente deixaram para trás a visão in-dividualista dos direitos, refletidas nas “declarações de direitos”, típicas dos séculos dezoito e dezenove. O movimento fez-se no sentido de reconhecer os di-reitos e deveres sociais dos governos, comunidades, associações e indivíduos. Esses novos direitos, exem-plificados pelo preâmbulo da Constituição Francesa de 1946, são, antes de tudo, os necessários para tornar efetivos, quer dizer, realmente acessíveis a todos, os direitos antes proclamados. Entre esses direitos ga-rantidos nas modernas constituições estão os direitos ao trabalho, à saúde, à segurança material e à educa-ção. Tornou-se lugar comum observar que a atuação positiva do Estado é necessária para assegurar o gozo de todos esses direitos sociais básicos.

Com o Estado social, em sua formação jurídica advinda da segunda década do século XX, tendo como marcos a Constituição Mexicana de 1917 e a Constituição de Weimar de 1919, são positivados os direitos à igualdade e à justiça social, a serem atingidos pela prestação de serviços do Estado ao cidadão, a exemplo do direito à saúde e do direito à educação.

Salienta Sarlet (2001) que o que diferencia os direitos que constituem a segunda dimensão dos direitos fundamentais é o seu caráter positivo, já que não se trata mais de impedir a intervenção do Estado no campo da liberdade individual, mas sim de favorecer o surgimento de um direito de participar do bem-estar social. É cuidar da liberdade por meio do Estado, e não em face do Estado.

Esses direitos fundamentais caracterizam-se por “outorgarem direitos a prestações sociais estatais, como assistência social, saúde, educação, trabalho etc., revelando uma transição das liberdades formais abstratas para as liberdades materiais concretas” (BREGA FILHO, 2002, p. 22).

A segunda dimensão dos direitos fundamentais não compreende apenas os direitos de caráter positivo, mas também as liberdades sociais, entre elas a liberdade de pertencer a um sindicato, de praticar greve, assim como reconhece os direitos dos trabalhadores a férias, jornada de trabalho limitada, dentre outros.

Tal quais os direitos fundamentais de primeira dimensão, os de segunda também se reportam à pessoa individual. Logo, não se confundem com os direitos coletivos e difusos que compõem a terceira dimensão. Enfim, a nota característica da segunda dimensão dos direitos fundamentais é a de buscarem estes a realização dos valores da igualdade material e da justiça social.

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3.3. TERCEIRA DIMENSÃO: FRATERNIDADE

Para Sarlet (2001), os direitos fundamentais de terceira dimensão podem ser vistos como uma resposta ao que ficou conhecido como “poluição das liberdades”, próprio do processo de desgaste vivido pelos direitos e liberdades fundamentais, sobretudo em face do uso de novas tecnologias.

Os direitos pertencentes a esta dimensão (direito à paz, ao desenvolvimento, ao meio ambiente e à qualidade de vida, à conservação e utilização do patrimônio histórico e cultural, à comunicação), resultam de novas reivindicações essenciais ao ser humano, oriundas de fatores como o impacto das novas tecnologias, pela beligerância crônica, assim como pelo processo de descolonização do segundo pós-guerra e suas consequências incisivas, ocasionando em profundos efeitos na esfera dos direitos fundamentais.

Para Bonavides (2002), a consciência de um mundo dividido em nações desenvolvidas e subdesenvolvidas deu lugar à busca de outra dimensão de direitos fundamentais até então desconhecida, assentada sobre a fraternidade. Acrescenta-se historicamente um novo polo jurídico de alforria do homem. Ao lado da liberdade e da igualdade, tem-se, agora, a fraternidade. Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos da terceira geração têm como destinatário precípuo o próprio gênero humano e não mais a proteção de um indivíduo, deum grupo ou de um determinado Estado.

A nota distintiva desses direitos da solidariedade ou fraternidade é que eles se desprendem da figura do homem-indivíduo, como seu titular, para proteger grupos humanos (família, povo, nação), caracterizando-se por terem titularidade difusa ou coletiva.

Contudo, não obstante o caráter coletivo e difuso de parte dos novos direitos, o seu cunho individual continua preservado, já que o objetivo último, em todos os casos, é a proteção da vida, da liberdade, da igualdade e da dignidade humana. Exemplo disto é o direito ao meio ambiente, com o qual, ao final, busca-se proteger a qualidade devida do homem na sua individualidade.

Nesse cenário, o direito à paz, com titularidade pertencente aos Estados, aos povos e à humanidade em sua totalidade, teria sua dimensão individual. A preservação da paz recebe importância transcendental no sentido de proteger e efetivar os direitos fundamentais do homem, analisado na sua individualidade, pois é na guerra e em tempos de exceção que ocorrem, costumeiramente, as maiores violações dos direitos fundamentais.

3.4. QUARTA DIMENSÃO: PARTICIPAÇÃO DEMOCRÁTICA

Como se viu, em essência, todas as demandas na esfera dos direitos fundamentais gravitam em torno dos tradicionais e perenes valores da vida,

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liberdade, igualdade e fraternidade (ou solidariedade), tendo, na sua base, o princípio maior da dignidade humana. Com base nesses valores se assentaram respectivamente as três dimensões dos direitos fundamentais: liberdade – primeira dimensão; igualdade – segunda dimensão; fraternidade – terceira dimensão.

Há uma tendência de se reconhecer uma quarta dimensão de direitos fundamentais. Bonavides (2002) preconiza a presença desta quarta dimensão de direitos fundamentais e sustenta que se trata do resultado da globalização dos direitos fundamentais e sua universalização no campo institucional, correspondendo à última etapa do processo de institucionalização do Estado Social. Segundo a proposta de Bonavides, esta quarta dimensão seria composta pelos direitos à democracia direta e à informação, assim como o direito ao pluralismo, mostrando-se como justa e saudável esperança de um futuro melhor para a humanidade, o porvir da liberdade de todos os povos.

A vantagem da proposta de Bonavides, aponta Sarlet (2001), com relação àquelas que arrolam os direitos contra a manipulação genética, direito à mudança de sexo etc., como integrantes da quarta “geração”, é a de abordar direitos qualitativamente diversos das dimensões anteriores, e não apenas “novas roupagens” de reivindicações deduzidas dos clássicos direitos de liberdade, em face das contingências da contemporaneidade.

A participação democrática é de grande importância para assegurar a realização dos demais direitos fundamentais, mormente os de cunho social. Quer no âmbito local, quer no regional, nacional ou mundial, quem sofre ou pode vir a sofrer os efeitos de uma política ou de uma decisão tem o direito de participar da formulação dessa política e de ser previamente ouvido quanto à tomada de decisão.

Vislumbra-se, a partir desta ótica, a importância dos conselhos de políticas públicas, dos orçamentos participativos, das audiências públicas, dos referendos, dos plebiscitos e demais instrumentos de intervenção popular na definição dos caminhos a serem tomados pela coletividade.

4. DIREITO FUNDAMENTAL - CONCEITO

Os direitos fundamentais são direitos básicos, essenciais, indispensáveis à proteção dos valores da liberdade, da igualdade e da dignidade humana, e que, por isso, se caracterizam por um status jurídico diferenciado.

Como bem enfatiza Martins Neto (2003), trata-se de direitos privilegiados, inseridos no ordenamento jurídico com um status especial que os faz distintos porque mais importantes que os demais direitos (não fundamentais).

O regime jurídico a que estão sujeitos busca conferir, na prática, um maior grau de proteção e efetivação. São “fundamentais” e, justamente

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por isso, merecedores de prioritário respeito pelos indivíduos, entidades da sociedade civil e instâncias oficiais de poder. Daí serem previstos em normas constitucionais dentro do sistema de direito positivo.

Tal previsão em normas constitucionais pode ser textual ou implícita. Neste sentido, a doutrina e a jurisprudência, com lastro no disposto no § 2° do art. 5° da nossa Constituição, reconhecem a existência de direitos fundamentais não expressamente previstos no texto da Constituição. Estes direitos, ainda que fora de catálogo, são fundamentais, tendo o status de direitos constitucionais, porque decorrem do regime e dos princípios adotados pelo Texto Magno ou dos tratados internacionais dos quais o Brasil faça parte, mostrando-se de destacada importância à proteção da dignidade dos homens. Entra-se, portanto, na seara dos direitos materiais e formalmente fundamentais. Em sentido formal, os direitos fundamentais comportam os posicionamentos jurídicos da pessoa, em sua dimensão individual, coletiva ou social, que, havendo decisão categórica do legislador constituinte, tiverem sido ratificadas no rol dos direitos fundamentais; em sentido material, os direitos fundamentais são aqueles que, ainda que se encontrem fora deste rol, devido a seu conteúdo e importância também podem ser considerados como direitos formalmente (e materialmente) fundamentais.

Há um elo entre a fundamentalidade (causa) e a intangibilidade (efeito). O adjetivo “fundamental” que se incorpora ao substantivo “direito”, indica que estamos diante de direitos subjetivos privilegiados, o que importará em vedação de sua abolição pelo legislador em virtude da: 1) imunidade em face do legislador ordinário, funcionando como limites materiais à competência do legislador e ao modo de legislar e da 2) imunidade em face do constituinte reformador, resguardada sob o estatuto das cláusulas pétreas (CRFB/88, art. 60, §4°), por procedimento legislativo agravado (CRFB/88, art. 60, § 2°) em relação àquele, mais simples, previsto para a elaboração das leis em geral (CRFB/88, arts. 47, 65 e 69), e por um limite circunstancial ao poder de reforma, que impede que a Constituição seja emendada na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio (CRFB/88, art. 60, § 1°).

Assim, os direitos fundamentais podem ser reconhecidos como “direitos pétreos”, obtendo essa proteção caso haja uma preordenação à realização efetiva do princípio da dignidade da pessoa humana, expressando o juízo fomentado pelo constituinte originário no que se refere aos bens jurídicos essenciais, sob pena de aquele valor supremo ser comprometido (BREGA FILHO, 2002).

Os direitos fundamentais têm a natureza normativa de princípios, constituindo-se em normas de otimização que permitem a solução de eventual colisão com outros direitos e valores constitucionais da melhor maneira possível.

Outra nota dos direitos fundamentais é a sua historicidade, já que as normas que os consagram são produtos culturais decorrentes do enfrentamento

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das necessidades e carências que se colocaram no curso da história para a proteção da dignidade da pessoa humana.

Bobbio (1992) desenvolve uma exposição muito esclarecedora sobre a consagração dos direitos do homem, fruto de lenta conquista histórica, na qual podem ser distinguidas três fases, as quais coincidem com as três dimensões dos direitos fundamentais apontadas por Vieira de Andrade: a filosófica, a constitucional e a de direito internacional, respectivamente.

Os direitos fundamentais não são produtos da natureza, mas da cultura, eles são direitos históricos. Por conseguinte, tem-se que as transformações das condições econômicas e sociais, a ampliação dos conhecimentos e a intensificação dos meios de comunicação produzirão mudanças na organização da vida humana e das relações sociais e criarão condições favoráveis para o nascimento de novas carências e, portanto, para o surgimento de novas demandas de liberdades e garantias.

5. LIMITES DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Há duas formas de se materializar o desenvolvimento normativo dos direitos fundamentais: a restrição ou limitação que, na visão de Queiroz (2002), é uma modificação normativa ou factual não contrária à Constituição de algum dos elementos configuradores do direito fundamental (titular, destinatário e objeto) com a consequência que afeta o seu exercício. Outra maneira de se efetivar este desenvolvimento normativo é mediante a conformação ou configuração, que, ainda segundo este autor, é a dotação do conteúdo material de alguns dos elementos configuradores do direito fundamenta ou da sanção vinculada a seu sentido prescritivo. Significa, portanto, a determinação do conteúdo ou a fixação da forma de exercício e das garantias.

A partir dessa conceituação depreende-se que tanto a restrição aos direitos fundamentais quanto a conformação desses direitos se fazem através de normas.

Tais normas podem ser restritivas, que reduzem ou restringem disposições que, prima facie, são incluídas no campo de proteção dos direitos fundamentais; e conformadoras, que complementam, indicam com precisão, efetivam ou determinam o conteúdo de proteção de um direito fundamental.

Como assevera Vieira de Andrade (2001), os direitos fundamentais não podem ser considerados absolutos nem ilimitados, inclusive enquanto valores constitucionais, já que a comunidade não apenas reconhece o valor da liberdade, como também unifica os direitos a uma ideia de responsabilidade social e os integra no conjunto dos valores comunitários.

Robert Alexy (2002), abordando este tema, afirma que, à primeira vista, a existência de restrições aos direitos fundamentais não traz problemas,

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restando apenas à fixação do conteúdo e alcance das restrições e também na distinção entre restrições e regulações, configurações e concreções.

Alexy faz referência a Friedrich Klein que, apoiado na lógica pura, afirma não existirem restrições às disposições de um direito fundamental, existindo, tão-somente, o conceito delas mesmas.

O autor alemão avalia que o conceito de restrição envolve a existência do próprio direito e de suas restrições, entre as quais existe uma relação de tipo especial, a de restrição. A este entendimento, Alexy chama Teoria Externa. A Teoria Interna, por sua vez, revela a existência de apenas uma situação: o direito com um determinado conteúdo (teoria de Klein). Nesta o conceito de restrição é substituído pelo conceito de limite. As dúvidas acerca dos limites do direito não se referem ao fato de o direito dever ou não ser limitado, mas, ao conteúdo do direito. Quando se fala em “limites” em lugar de “restrições”, fala-se em “restrições imanentes”.

Segundo Alexy (2002), para encontrar correção na teoria externa ou na teoria interna, importa considerar as normas jusfundamentais como regras ou princípios e as posições jusfundamentais como posições definitivas ou prima facie. Então, partindo-se de posições definitivas, é possível refutar a teoria externa e, partindo-se de posições prima facie, a teoria interna.

A própria Constituição cuida de prever limites ao exercício dos chamados direitos fundamentais ou essenciais, seja de forma expressa, seja autorizando a restrição.

Limites Internos - Quando a limitação se encontra no texto Constitucional, afirma-se que se está diante de limites internos. Esses limites, previstos pelo próprio constituinte, causam celeuma, entre os autores, se realmente configuram restrições aos direitos fundamentais ou não. São dois os posicionamentos. No primeiro, afirma-se que não estamos a falar de restrições, mas em situação de não-direito.

Suzana De Toledo Barros cita como exemplo da limitação expressa o art. 5º, XVI, da CF, “todos podem reunir-se pacificamente e sem armas, em locais abertos ao público (...)”. Não se está a frustrar do direito de reunião, mas há a exigência – limite – para que esse direito seja reconhecido.

Limites Externos – segundo Queiroz (2002), os limites externos ou intervenções em um sentido estrito, são normas de origem infraconstitucional que modificam algum dos elementos configuradores do direito fundamental (titular, destinatário e objeto) e que supõem a implicação a tais modificações do sentido prescritivo ou qualificatório de um direito fundamental como consequência da utilização por parte do Poder Legislativo de uma norma de competência.

Nesses casos a Constituição prevê uma reserva de lei, ou seja, uma competência a ser exercida pelo Legislador Ordinário. Essa competência se revestirá de parâmetros de ordem pessoal, procedimental e material.

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Limites Imanentes - Finalmente, cabe lembrar que os limites podem ser imanentes, ou seja, não escritos, mas que operam com a mesma carga restritiva ou até maior do que os limites expressos. De acordo com Queiroz (2002), não há como se imaginar que apenas existem limites que decorrem diretamente do texto constitucional, internos (ou cláusulas restritivas diretamente constitucionais) e externos (ou cláusulas restritivas indiretamente constitucionais) autorizados pelo constituinte. Há situações em que os direitos fundamentais, até pelo seu caráter prima facie podem ser limitados.

6. CLASSIFICAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Com base na Constituição Federal Brasileira de 1998, os direitos fundamentais estão classificados e divididos em: direitos individuais (art. 5º); direitos coletivos (art. 5º); direitos sociais (arts. 6º e 193); direitos à nacionalidade (art. 12) e direitos políticos (arts. 14 a 17). A Constituição não inclui os direitos fundados nas relações econômicas, entre os direitos fundamentais, mas eles existem e estão estabelecidos nos arts. 170 a 192.

O art. 5º da Constituição arrola direitos e deveres individuai s e coletivos. O referido artigo começa enunciando o direito de igualdade de todos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Dentro desse prisma, Silva (2002, p. 189) lembra que:

Embora seja uma declaração formal, não deixa de ter sentido especial essa primazia ao direito de igualda-de, que, por isso servirá de orientação ao interprete, que necessitará de ter sempre presente o princípio da igualdade na consideração dos direitos fundamentais do homem. Em consequência, o dispositivo assegu-ra aos brasileiros e estrangeiros residentes no País, a inviolabilidade do Direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos dos incisos que integram este artigo. Quando o artigo 5º estiver sendo analisado, deve-se considerar, prima facie, a hipótese do direito à igualdade, devendo este princípio servir de parâmetro de interpretação para esta análise. Cabe, aqui também, fazer uma breve consideração a respeito da diferenciação entre direi-tos individuais e direitos coletivos.

Sobre a diferença entre direitos individuais e direitos coletivos, Sarlet (2001) afirma que os primeiros são direitos fundamentais do homem-indivíduo,

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que reconhecem autonomia aos particulares, assegurando que cada indivíduo possua iniciativa e independência quando confrontados com os demais mem-bros da sociedade política e do próprio Estado; já os direitos coletivos podem ser considerados como direitos fundamentais do homem-membro de um de-terminado grupo, e que estão rubricados na Constituição (no rol do artigo 5º) são, na verdade, direitos individuais de expressão coletiva, como as liberdades de reunião e associação, ao passo que outros se encontram dispersas no texto constitucional. Portanto, entende-se por direitos individuais, aqueles pertinen-tes ao particular, garantindo a independência dos indivíduos diante dos demais membros da sociedade e com maior razão ante o Estado. E por direitos coleti-vos, aqueles que cabem ao indivíduo, enquanto este é parte de um determinado conjunto, ou seja, enquanto ser social e fazendo parte da sociedade.

Consoante Silva (2002, p. 193), há uma distinção entre três grupos de direitos individuais, pois:

1) direitos individuais expressos, são aqueles explici-tamente enunciados no art. 5º da CF; 2) direitos indi-viduais implícitos, aqueles que estão subentendidos nas regras de garantias, como o direito à identidade pessoal, certos desdobramentos do direito à vida, o direito à atuação geral (art. 5º, II); 3) direitos indivi-duais, decorrentes do regime de tratados internacio-nais subscritos pelo Brasil, aqueles que não são nem explícita nem implicitamente enumerados, mas pro-vêm ou podem vir a provir do regime adotado, como direito de resistência entre outros, de difícil caracte-rização a priori.

Assim, esses são os grupos nos quais é possível subdividir os direitos individuais, sendo tais direitos bastante amplos e merecedores desta classifica-ção. Os direitos individuais se classificam, conforme estabelece a Constituição de 1988, em: direito à vida, à intimidade, de igualdade, de liberdade e de pro-priedade.

Vale ressaltar, ainda, algumas considerações no que concerne ao direito de nacionalidade, que também se apresenta como subclassificação dos direitos fundamentais. Nacionalidade é o vínculo do indivíduo ao território estatal, seja por nascimento, seja por naturalização. Silva (2002) corrobora que somente quem é titular da nacionalidade brasileira é que pode ser cidadão. Este direito à nacionalidade está estabelecido no art. 12 da CF/88, que afirma são brasileiros somente aqueles que nasceram no Brasil, ou os naturalizados, que são estran-

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geiros que abrem mão de suas nacionalidades e adotam segundo as leis vigentes em outro país.

Já os direitos políticos, que constam da última classificação dos direitos fundamentais, substanciam-se no direito de votar e ser votado. Essa modalidade de direitos fundamentais encontra respaldo legal na Constituição em seus arts. 14 a 16 e pode ainda, ser separada em duas espécies, sem que com isso ocorra a divisão deles; são apenas espécies do seu exercício, sendo eles direitos políticos ativos e direitos políticos passivos, onde o primeiro, cuida do eleitor e da sua atividade e o segundo, refere-se aos elegíveis e aos eleitos.

7. FUNÇÕES DESEMPENHADAS PELOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Uma das mais tradicionais funções desempenhadas pelos direitos fun-damentais é a de defesa da autonomia privada.

Para Canotilho (2002), a função primordial dos direitos fundamentais é a de defender dos cidadãos a partir de uma dupla perspectiva: no plano jurídico--objetivo, configurando-se como normas de competência negativa para os Po-deres Públicos, que coíbem as intervenções destes na esfera jurídica individual; no plano jurídico-subjetivo, possuem o poder de efetivar, de forma positiva, os direitos fundamentais (liberdade positiva), além de exigir omissões dos poderes públicos, visando com isso impossibilitar agressões lesivas por parte dos mes-mos (liberdade negativa).

Por exemplo, ao se garantir o direito de exprimir e divulgar livremente o pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, está se garantindo uma liberdade positiva; já, quando se enfoca o direito de liberdade de expressão e informação ser realizado sem impedimentos ou discriminações por parte dos Poderes públicos, está-se diante de uma liberdade negativa; além disso, impõe-se objetivamente aos Poderes públicos a proibição de qualquer tipo ou forma de censura.

Os direitos fundamentais contam com uma função dignificadora, em vista de seu objetivo principal, ou seja, o resguardo da dignidade humana, tan-to na defesa na esfera individual de possíveis interposições do Poder público, como também na exigência, deste Poder público, da efetivação de certas ativi-dades que possibilitem o desenvolvimento absoluto do homem como ser so-cial. Por isso, alguns direitos fundamentais são realizados mediante prestações sociais. Neste sentido, significam o direito de se obter algo por intermédio do Estado, como cuidados de saúde, instrução escolar ou assistência social.

Há uma estreita ligação entre os direitos fundamentais e os princípios da justiça social, impondo a realização de políticas públicas na área social que conduzam à criação e manutenção de instituições (como hospitais e escolas),

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serviços (como os de assistência social) e ao fornecimento de prestações (como renda mínima, seguro desemprego, bolsas de estudo, habitações econômicas).

Vincular os Poderes públicos a proteger perante terceiros os titulares de direitos fundamentais é outra importante função destes direitos. Nesse sentido, fala-se, por exemplo, que o Estado tem o dever de proteger o direito à vida perante eventuais agressões de outros indivíduos, criando normas penais, bem como, colocando em funcionamento um aparato policial de prevenção e apu-ração dos crimes, além de toda uma estrutura que permita o funcionamento da justiça criminal.

Na visão de Canotilho (2002), o mesmo acontece com o direito de in-violabilidade de domicílio, o direito de proteção da intimidade, o direito à ima-gem, o direito à associação, o direito ao sossego e muitos outros casos em que a garantia constitucional resulta no dever do Estado de adotar medidas positivas destinadas a proteger o exercício dos direitos fundamentais em face de ativida-des perturbadoras ou lesivas praticadas por terceiros.

Esta função de proteção perante terceiros obriga também o Estado a con-cretizar normas reguladoras das relações jurídicas civis deforma a assegurar a observância dos direitos fundamentais, como ocorre, por exemplo, com a regu-lamentação do casamento para assegurar a igualdade entre os cônjuges, ou com a regulação dos contratos comerciais para proteger os direitos dos consumidores.

Outra finalidade dos direitos fundamentais é a assegurar aos cidadãos um tratamento igual, o que decorre do princípio e dos direitos de igualdade es-pecíficos consagrados na Constituição. Esta função de proteger contra discrimi-nações se alarga a todos os direitos, aplicando-se tanto aos direitos, liberdades e garantias pessoais (exemplo: o direito à não discriminação em virtude de reli-gião), como aos direitos de participação política (exemplo: direito de acesso aos cargos públicos), bem como aos direitos dos trabalhadores (exemplo: direito ao emprego e à formação profissional) e aos direitos a prestação (saúde, habitação) (CANOTILHO, 2002).

É com base nesta função de não descriminação que se discute o proble-ma das discriminações compensatórias, abordadas por Ronald Dworkin, tendo como exemplos o estabelecimento das cotas de emprego para pessoas portado-ras de deficiência, cotas de candidatas mulheres por partidos políticos, cotas de vaga no ensino superior público para pessoas da raça negra, dentre outra “ações afirmativas”. Baseados na função antidiscriminatória dos direitos fundamen-tais, alguns grupos, como os homossexuais, prostitutas e pessoas portadoras do HIV, defendem a efetivação plena da igualdade em direitos.

O respeito aos direitos fundamentais serve de critério de legitimidade aos regimes políticos. Neste sentido, Farias (1996, p. 67) lembra que, “quanto mais um Estado consagra e procura tornar eficazes os direitos humanos, mais

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legitimidade adquire perante a comunidade internacional. Ao revés, será consi-derado menos democrático e menos legítimo o regime político que desrespeita e propicia a agressão a esses direitos”.

Por seu turno, Lopes (2001), ao abordar o garantismo de Luigi Ferrajo-li, destaca que tal ideário se baseia na tutela dos direitos fundamentais, os quais – da vida à liberdade pessoal, das liberdades civis e políticas às expectativas so-ciais de subsistência dos direitos individuais aos coletivos – dizem respeito aos valores, bens e interesses materiais e pré-políticos que instituem e legitimam a existência do Direito e do Estado, que devem ser desfrutados por parte de todos, como estabelecem os fundamentos da democracia. Assim, dessa declaração de Ferrajoli é possível retirar um imperativo básico: a essência do Direito é a tutela dos direitos fundamentais.

A autora acima citada também entende que os direitos fundamentais exercem a função de legitimação do sistema jurídico de um Estado. Nessa linha, observou Sarlet (2001) que a legitimidade de uma Constituição encontra-se no seu reconhecimento como ordem justa, isto é, na convicção, por parte da cole-tividade, da sua bondade intrínseca.

8. TITULARES DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Segundo Ávila (2006), os direitos fundamentais conectam dois ou mais sujeitos de direito, concebendo, de um lado, o sujeito ativo, possuidor ou titular do direito e, de outro, o sujeito passivo estabelecido como destinatário da obrigação de acatar o direito.

A Constituição não assegura a titularidade global dos direitos fundamentais; no entanto, alguns grupos de pessoas e cada uma das categorias de direitos instituem titulares distintas.

O princípio da igualdade, proclamado na primeira parte do caput do art. 5º da CF, leva ao entendimento de que todas as pessoas que se submetem à legislação brasileira contam com o direito de a ela se subordinarem sem qualquer tipo de discriminação. Ainda que se perceba a boa intenção oriunda do constituinte, este princípio, atualmente, tem funcionado mais como uma norma programática, assumindo o caráter de mera igualdade formal, se distanciando, ainda, da desejada igualdade de fato.

Os outros direitos determinados do caput do art. 5º assumem titularidade mais limitada, por terem garantia expressa: “aos brasileiros e estrangeiros residentes no País”. O termo “brasileiros” engloba quem possui nacionalidade brasileira, independente da maneira e do momento em que esta nacionalidade foi adquirida, exceto na proteção da extradição, que é integral exclusivamente para os brasileiros natos (art. 5º, LI, da CF).

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No que tange à expressão “estrangeiros residentes no País”, Ávila (2006) e Guerra Filho (2001) afirmam que não existe fundamentação constitucional, nesta equivalência entre os residentes aos não residentes, na intenção da doutrina de consagrar uma interpretação mais ampla que considera como residente todo estrangeiro que esteja em trânsito no território nacional.

Nos incisos do artigo em análise, percebe-se a designação dos titulares como: “todos”, “ninguém”, “homens e mulheres”, “qualquer pessoa”, “o preso”, “qualquer cidadão”, “o condenado”, “os reconhecidamente pobres”, ainda que vários incisos não apresentarem nenhuma referência explícita. De acordo com Lopes (2001), quando ocorre esta ausência de alusão no inciso, ou ainda quando aparecem apenas termos genéricos, como “todos” ou “ninguém”, os direitos fundamentais são atribuídos apenas aos “brasileiros e os estrangeiros residentes no País”.

Entende-se que os estrangeiros que se encontram em trânsito, sem residência fixa, também são protegidos pelos direitos estabelecidos no caput do art. 5.o, assim como pelos demais direitos de resistência do referido artigo, por atenção ao regime e aos princípios abraçados pela Constituição, como é o caso do princípio do “in dubio pro libertate” que por si só já teria como conciliar a problemática. Contudo, nada impede que o constituinte derivado o melhore, de forma a pôr termo a tais polêmicas, já que, neste caso, não se estaria retirando nenhum direito.

O rol de direitos fundamentais estabelecidos no art. 5º é marcadamente exaustivo, não podendo haver qualquer tipo de acréscimo ser por outros designados mediante fontes infraconstitucionais. Ávila (2006) acrescenta que, visando corrigir a omissão do constituinte no caso dos estrangeiros não residentes, mostra-se necessária emenda à Constituição ou ainda a incorporação de tratado internacional, em conformidade com o que estabelece o § 3º, art. 5º, da CF.

9. COLISÕES DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

A colisão de Direitos Fundamentais sucede quando a Constituição protege ou resguarda dois ou mais direitos que estão em contradição no caso concreto. Segundo Andrade (2001, p. 220), haverá conflito sempre que se deva entender que a Constituição protege simultaneamente dois valores ou bens em contradição concreta. Têm-se, assim os conflitos de bens jurídicos tutelados. Steinmetz (2001, p. 63) afirma que:

os conflitos acontecem por que não estão dados de uma vez por todas e não se esgotam no campo da interpretação in abstracto. As normas de direito fun-

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damental surgem abertas e dinâmicas sempre que houver sua realização ou concretização na sociedade. E é por este motivo que ocorrem as colisões, pois se existe um rol de direitos fundamentais constituciona-lizados, haverá colisão in concreto.

Percebe-se, assim, que estes conflitos ocorrem em vista da flexibilidade da efetivação das normas de direitos fundamentais na vida social das pessoas.

Para diferenciar os tipos de conflitos que surgem é fundamental esclarecer quais são as situações conflitantes. Essas podem ser subdividias em concorrência de direitos fundamentais, colisão de direitos fundamentais e conflitos entre um direito fundamental e um bem jurídico tutelado.

Canotilho (2002) afirma que a concorrência de conflitos entre direitos fundamentais pode se manifestar de duas maneiras:

a) cruzamento de direitos fundamentais, que sucede quando a mesma conduta de um titular é inserida no campo da proteção de uma variedade de direitos, liberdades e garantias e;

b) acúmulo de direitos, quando um dado bem jurídico permite que uma mesma pessoa conte com vários direitos fundamentais ao mesmo tempo.

Entende-se, portanto, que na concorrência dos direitos fundamentais não ocorre uma oposição de pretensão jurídica demandada por mais de um titular, o que há é a existência de apenas um titular com mais de um direito fundamental que possibilitam a subsunção da conduta ou comportamento do titular.

Sobre a colisão de direitos fundamentais, De Cara (1995) esclarece que o exercício de um direito fundamental implica em uma contradição ou um prejuízo de um bem jurídico protegido pelo texto constitucional.

Por fim, tem-se a última situação, que se refere aos conflitos entre o direito fundamental e o bem juridicamente tutelado. Na visão de Canotilho (2002) esses conflitos surgem a partir de duas situações: entre diversos titulares de direitos fundamentais e entre direitos fundamentais e bens jurídicos pertencentes à comunidade e ao Estado. Dessa forma, esta colisão se a conflitos entre direitos fundamentais e bens jurídicos constitucionais e o embate entre os referidos direitos fundamentais, sendo ambas as situações consideradas espécies de colisão.

Tal caracterização se apresenta de duas maneiras, conforme aponta Alexy (2002): colisão de direitos fundamentais em sentido estrito, que pode ser observada quando o a efetivação do direito fundamental resulta em efeitos negativos sobre direitos fundamentais de outros titulares de direitos fundamentais; e colisão de direitos fundamentais em sentido amplo, que

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acontece sempre que há um choque de direitos individuais fundamentais e bens coletivos protegidos pela Constituição.

Com os princípios constitucionais, como os da dignidade humana, da liberdade, da igualdade e da democracia, o Estado de direito e o Estado social, é possível perceber a incorporação das principais formas de direito racional da modernidade. Não são normas vagas, e sim uma tarefa de otimização, enquanto que na forma jurídica, a base sempre foi de conteúdo moral.

Se o conflito é entre direitos fundamentais, ou entre um destes e outro bem constitucional, a norma que resolve a colisão é a norma jusfundamental anexa, que opera como premissa maior da fundamentação interna da sentença que resolve o caso. Para Piovesan (1996), racionalidade, proporcionalidade e razoabilidade são os critérios que servem para avaliar as normas jurídicas, analisando e estudando detidamente as disposições legislativas e constitucionais.

CONCLUSÃO

A partir do que foi exposto neste artigo, é possível compreender que não é a disposição de direito fundamental que possui uma dada estrutura, mas sim a norma de direito fundamental, que nada mais é do que o resultado da interpretação da disposição.

A estrutura de uma norma de direito fundamental se relaciona ao seu caráter de regra, de princípio, de diretriz política. Essa tipologia estrutural sofre variações conforme o ajuste das condições de aplicação e da conduta deontologicamente estabelecida pela norma. Sendo assim, esta estrutura só pode ser estimada após a interpretação da disposição de direito fundamental.

Nesta perspectiva, os direitos fundamentais são considerados tanto em sua função geradora de instrumentos de defesa da liberdade individual quanto em seu caráter de elementos da ordem jurídica objetiva, compondo um sistema axiológico que opera como alicerce material de todo ordenamento jurídico.

Isso implica em dizer que os direitos fundamentais são avaliados como objetivos basilares da comunidade, determinações valorativas cuja eficácia pode ser encontrada em todo o ordenamento jurídico, provendo regulamentação para os órgãos legislativos, judiciários e executivos.

Cumpre também consignar que a proteção dos direitos fundamentais constitui elemento essencial da democracia, salvaguardando os indivíduos e as minorias na medida em que impede que o critério da maioria converta-se num princípio absoluto, desviando a função legitimadora da soberania popular. Di-versas, pois, são as funções desempenhadas pelos direitos fundamentais.

A efetivação dos direitos fundamentais pode sofrer limitações e apa-rentes colisões de normas, cabendo ao legislador e ao administrador público

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realizar uma função de grande importância, que é possibilitar esta efetivação a partir de alguns critérios solucionadores, com destaque para os princípios da racionalidade, da proporcionalidade e da razoabilidade para obter a solução destes conflitos.

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POLÍTICA DE RECONHECIMENTO: DA OPOSIÇÃO DOS PALESTINOS À OCUPAÇÃO DE JERUSALÉM

Léa Carta da Silva148

RESUMO

O presente artigo visa analisar como o não reconhecimento pode trazer consequências danosas à todo um povo, sobretudo quando desprezada sua identidade como direito fundamental. Nesse caminho, além das categorias referidas, aborda também a política de Charles Taylor, e a sua aplicação no conflito entre palestinos e israelitas. O principal objetivo do texto não é ofertar solução para o problema, posto que se trata de uma discussão profunda e sim compreender o complexo cenário político-filosófico na contemporaneidade.

Palavras-chave: Política de Reconhecimento; Charles Taylor; Direito Fundamental; Identidade.

SUMÁRIO: Introdução. 1. A Política de Reconhecimento. 2. O Modelo de Identidade. 3. O conflito atual entre israelenses e Palestinos. 4. A Perspectiva Política sobre a divisão de Jerusalém. Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO

Longe de tentar analisar sob a ótica com relação a quem teria razão sobre os atuais conflitos que envolvem palestinos e israelenses, o presente artigo busca entender a problemática à luz da política de reconhecimento de Charles Taylor com a contribuição filosófica hegeliana, trazendo no primeiro capítulo não só a noção desta política na visão de Charles Taylor, mas de outros teóricos que escreveram a respeito. No segundo capítulo será apresentada a aplicação da política de reconhecimento em seus modelos clássicos (identidade) e contemporâneo (status) na atual dinâmica entre os povos palestino e israelense. No terceiro capítulo serão apontados um breve histórico sobre cada um dos Estados e os motivos que levaram à disputa pelo território de Jerusalém, desde a decisão das Nações Unidas que autoriza a criação

148 Advogada graduada pelo Centro Universitário FIEO – UNIFIEO, Mestranda em Positivação e Concretização Jurídica dos Direitos Humanos Fundamentais pelo Centro Universitário FIEO – UNIFIEO, Especialista em Direito Imobiliário pela FMU/SP, Presidente da Comissão de Cidadania da OAB subseção Osasco/SP.

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do Estado de Israel à atual necessidade da criação de um Estado Palestino independente, de modo a esvaziar os motivos que tem levado esses dois povos a conflitos cada vez mais violentos, permitindo o reconhecimento recíproco e a efetividade de seus direitos. No último capítulo será apresentada a perspectiva política da divisão de Jerusalém, numa perspectiva de paridade participativa que possa tornar viável a convivência de ambos em um mesmo território, com uma divisão reconhecida por todos os outros Estados.

1. A POLÍTICA DE RECONHECIMENTO

A ideia de reconhecimento tem adquirido cada vez mais, importância relevante na contemporaneidade. A filosofia política cresce a medida que se acirram os debates em torno deste conceito. Vários são os autores que escrevem a respeito deste tema: Axel Honneth, Charles Taylor e Nancy Fraser são alguns exemplos. Seja para falar de dilemas tratados no multiculturalismo nas sociedades modernas, ou para compreender possíveis efeitos de sua atuação nas políticas públicas que se intitulam inclusivas, a categoria reconhecimento se agiganta na medida em que consegue descrever os problemas decorrentes da interação humana.

Dentre os motivos desse interesse é a tentativa dos autores de elucidar a relação existente entre subjetividade e intersubjetividade. Assim, revela-se uma relação frutífera entre universalidade e particularidade, entre os indivíduos e sua comunidade, ou ainda entre diferença e identidade.

Segundo Taylor, a filosofia sistemática hegeliana mostra-se fundamental para a realização de uma reflexão sobre as atuais conjecturas históricas, principalmente no que diz respeito a dilemas éticos e conflitos sócio-políticos com os quais as sociedades cada vez mais se deparam, uma vez que através delas, sentimos uma necessidade de criticar ilusões e distorções de perspectivas resultantes das concepções atomistas, utilitaristas e instrumentais acerca do homem e da natureza (TAYLOR, 2000, p. 95). Ele destaca ainda como a reflexão filosófica de Hegel apresenta-se, para ele, como fonte inesgotável de inspiração intelectual. Se hoje temos dificuldade em refletir sobre acontecimentos fenomênicos no campo das ciências naturais, que refletem no comportamento dos indivíduos em sociedade em perspectivas existenciais, construir uma reflexão com base nos estudos de Hegel pode parecer muitas vezes uma viagem insólita. Assim, de modo geral, a base estrutural da filosofia de Charles Taylor é construída a partir da ideia hegeliana que leva em conta que o homem somente pode alcançar a sua mais completa existência moral quando ele existe como membro que pertença a uma comunidade.

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Dito isto, iniciaremos este capítulo com a Política de Reconhecimento segundo o próprio Charles Taylor que inicia suas considerações com a discussão e o incentivo das possibilidades e formas de realização das políticas públicas que anseiem o reconhecimento das diferenças existentes entre os indivíduos e os grupos culturais minoritários presentes em todas as sociedades, em diferentes países. Para isso, começa a analisar os processos de identidades, uma vez que estas são moldadas a partir do reconhecimento ou por ausência dele, ou ainda por um falso reconhecimento por parte de terceiros que pode acarretar ao indivíduo e ao grupo danos, já que isto pode levar alguém a interpretar de maneira errônea ou deformada o modo de ser. Diante disso, a questão do reconhecimento passa a ser vista como uma necessidade humana vital (TAYLOR, 2000, p. 46). Importante destacar que, Hegel havia colocado em sua filosofia política a tarefa de tirar da ideia kantiana de autonomia individual o caráter de uma mera exigência do dever-ser, expondo-a na teoria como um elemento da realidade social já atuante historicamente. (HONNETH, 2009, p. 29). E complementa:

Hegel defende naquela época a convicção de que resulta de uma luta dos sujeitos pelo reconhecimento recíproco de sua identidade uma pressão intrassocial para o estabelecimento prático e político de instituições garantidoras da liberdade; trata-se da pressão dos indivíduos ao reconhecimento intersubjetivo de sua identidade, inerente à vida social desde o começo na qualidade de uma tensão moral que volta a impelir para além da respectiva medida institucionalizada de progresso social e desse modo conduz pouco a pouco a um estado de liberdade comunicativamente vivida, pelo caminho negativo de um conflito a se repetir de maneira gradativa (HONNETH, 2009, pp. 29/30).

Destaca-se ainda, uma elaboração no pensamento de Hegel, cujo

propósito é esclarecer os processos de mudança social que reporta as pretensões normativas estruturadas na relação de reconhecimento recíproco, assim o descrevendo:

O ponto de partida dessa teoria da sociedade deve ser constituído pelo princípio no qual o pragmatista Mead coincidira fundamentalmente com o primeiro Hegel: a reprodução da vida social se efetua sob o imperativo de um reconhecimento recíproco porque os sujeitos

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só podem chegar a uma autorrelação prática quando aprendem a se conceber, da perspectiva normativa de seus parceiros de interação, como seus destinatários sociais (HONNETH, 2009, p. 155).

Dessa maneira, o fato de pertencer a uma nação, uma família, um partido, uma etnia, contribui, em certa medida, para a definição dos bens que devem ser buscados. A identidade é definida a partir do horizonte em cujo âmbito posso determinar caso a caso o que é bom ou valioso (TAYLOR, 2000, p. 46). Quando não se tem o reconhecimento de um povo sobre o outro, não há meio de entender suas necessidades, seus valores, sua condição de existência naquele local. Assim, Hannah Arendt preconiza:

Pois, embora o mundo comum seja o terreno comum a todos, os que estão presentes ocupam nele diferentes lugares, e o lugar de um não pode coincidir com o de outro, da mesma forma como dois objetos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço. Ser visto e ouvido por outros é importante pelo fato de que todos vêem e ouvem de ângulos diferentes. É este o significado da vida pública, em comparação com a qual até mesmo a mais fecunda e satisfatória vida familiar pode oferecer somente o prolongamento ou a multiplicação de cada individuo, com os seus respectivos aspectos e perspectivas (ARENDT, 1995, p. 67).

Assim, passamos a falar do modelo de identidade definido por Charles Taylor, que demonstra o quanto é importante, pois esta se define como horizonte dentro do qual os selves são capazes de tomar decisões, fazer distinções qualitativas de valor e se desenvolver de acordo com a natureza do bem o qual orienta a ação dos sujeitos. Dessa forma, a identidade tayloriana somente se faz entender por meio dos selves, seu agir voltado para o bem e sua interação articulada dentro das redes de interlocução em que se inserem, uma vez que, nas palavras de próprio Taylor, “descobrimos o sentido da vida articulando-o”.

2. O MODELO DE IDENTIDADE

Ao projetar a hipótese acerca da identidade individual, em As fontes do Self, Taylor elabora a seguinte questão: “Quem sou eu?”, e na sequência complementa:

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Minha identidade é definida pelos compromissos e identificação que proporcionam a estrutura ou o horizonte em cujo o âmbito eu posso tentar determinar caso a caso o que é bom, ou valioso ou o que se deveria fazer ou aquilo que endosso ou a que me oponho. Em outros termos, trata-se do horizonte dentro do qual sou capaz de tomar uma posição (TAYLOR, 2000, p. 44).

A identidade de um indivíduo, então, dependeria de sua adesão a um determinado complexo de bens, que não seriam pré-determinados, mas hermeneuticamente construídos a partir de determinada faticidade e historiedade. Só somos um self na medida em que nos movemos num certo espaço de indagações, em que buscamos e encontramos uma orientação para o bem (TAYLOR, 2000, p. 53).

A integridade de cada ser humana estaria intimamente ligada a padrões específicos de reconhecimento, não sendo aceitáveis comportamentos que denigrem ou desrespeitem determinado indivíduo. Entretanto, difícil relacionar cada cultura para saber quando se estaria cometendo uma ofensa ou rebaixamento.

Assim, após analisar a efetivação do reconhecimento, Honneth procura situações em que o desrespeito aparece. Para isso, conclui que os momentos negativos seriam; a) aqueles que afetam a integridade corporal dos sujeitos e que acabam afetando sua própria autoconfiança; b) a denegação de direitos, destruindo a possibilidade de autorrespeito e aceitar que exista igualdade; c) referência negativa ao valor de certos grupos.

No primeiro grupo, pode-se usar como exemplo o estupro ou tortura, em que a pessoa se vê privada de dispor livremente de seu corpo, experimentando além da dor física o sentimento de estar indefesa e à disposição de outro indivíduo, o que acaba comprometendo não só sua integridade, mas também seu senso de realidade. Seria esta a forma de desrespeito mais impactante sobre uma pessoa, abalando sua autoconfiança, conquistada desde a infância, em poder gerir e coordenar-se autonomamente.

No segundo grupo, tem-se como exemplo a escravidão, em que o indivíduo se vê diante da negação ou privação de seus direitos como membro igual de uma comunidade, comprometendo sua dignidade e autorrespeito. Assim, sua condição fundamental de relacionar-se como um parceiro de interação com iguais direitos em relação aos outros fica prejudicado.

No terceiro grupo, a humilhação e desvalorização de estilo de vida individual ou coletivo são os exemplos mais comuns. Nela o indivíduo deixa de participar de relacionamentos intersubjetivos que acabam por abalar sua autoestima.

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O autor exalta que essas formas de desrespeito acabam por impedir que o indivíduo se realize e consiga se desenvolver dentro de suas potencialidades, inserido na sociedade.

Entretanto, se por um lado tais humilhações são ruins, por outro, ao ameaçar a identidade de um povo, por exemplo, acabam se tornando molas propulsoras para um processo de desenvolvimento, de modo que acaba por tornar-se o combustível necessário para lutas sociais na medida em que se cansam de não alcançarem a realização daquilo que entendem ser necessário para o bem viver.

Assim também se apresenta a teoria de Charles Taylor. Para ele, através das lutas simbólicas, os indivíduos negociam identidades e buscam reconhecimento nos domínios intimo e social. Aponta ainda que as lutas por reconhecimento tenham ocorrido com mais frequência, ultrapassando o foro interno, através de protestos públicos. Protestos esses que não buscam a simples tolerância ou condescendência, mas o respeito e valorização do diferente (TAYLOR, 2000, p. 68).

3. O CONFLITO ATUAL ENTRE ISRAELENSES E PALESTINOS

Uma das principais características do Oriente Médio é sua instabilidade no que diz respeito ao convívio entre diferentes povos e etnias, principalmente por profetizarem diferentes religiões, por causas políticas e sociais e por necessidades relacionadas à distribuição de recursos naturais, o que faz com que as disputas nestes territórios se arrastem a milhares de anos até os dias atuais e que constituem uma das maiores problemáticas da região. O reconhecimento e identidade de cada povo que vive na região fica ameaçado a medida que essas disputas tornam-se cada vez mais violentas e corriqueiras. Localizada entre o oeste do continente asiático e a Ásia Ocidental, parte do território que compõe Oriente Médio é composta por Palestina, Israel, Faixa de Gaza e Cisjordânia. A Palestina encontra-se delimitada pela Costa Oriental do Mar Mediterrâneo e o Rio Jordão. O Estado de Israel constitui uma república parlamentar independente que se define como estado judeu e democrático e está localizado dentro da região da Palestina. O Estado de Israel ocupa um pequeno território da região do Oriente Médio que tem como principais centros urbanos Jerusalém – onde se concentra a maior parte da população – e Tel Aviv – Capital e centro financeiro do país (Fonte: Anistia Internacional). Banhado pelo Mar Mediterrâneo faz fronteira com a zona da Faixa de Gaza e Egito, ao sudoeste e com Cisjordânia e Jordânia ao leste. Tem uma

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população estimada em aproximadamente 7 milhões e oitocentas mil pessoas das quais aproximadamente 5 milhões e novecentas mil se declaram judias (Fonte: Anistia Internacional). Falaremos um pouco de cada uma das divisões feitas naquele território.

3.1. FAIXA DE GAZA

A Faixa de Gaza é um pequeno território, densamente povoado em uma zona geográfica que ocupa um total aproximado de 360km², onde habitam quase um milhão e meio de pessoas (Fonte: BBC Brasil). O professor Antonio Gasparetto Junior o termo “Faixa de Gaza” tem origem na Antiguidade sendo seu nome uma referência à principal cidade da região, Gaza, sendo que o território foi dividido em cinco partes: Rafah, Khan Yunis, Dayr Al-Balah, Cidade de Gaza e Norte de Gaza, sendo uma região árida de clima temperado, tendo como maior altitude 105 metros. Ainda segundo Gasparetto, o território foi durante séculos dominados pelo Império Otomano, vindo a mudar esse panorama somente ao término da primeira guerra mundial, quando os britânicos passaram a ter o controle daquela região. É um território extremamente conflituoso porque é disputado e ocupado militarmente por vários países. A região não é oficialmente reconhecida como parte integrante de algum país soberano, sendo ela toda cercada por muralhas nas divisas com Israel e com o Egito. Entretanto, a Autoridade Nacional Palestina, reivindica a região como território exclusivo dos palestinos. Com uma economia escassa assim como a própria infra-estrutura, as condições de vida ali são muito precárias. Apenas 13% das terras da Faixa de Gaza servem para o plantio de alimentos. Mesmo com a precariedade do local, a Faixa de Gaza é um dos territórios mais densamente povoados do planeta, sendo sua população de aproximadamente 1 milhão e quatrocentas mil pessoas, sendo que religião predominante é a islâmica, sendo a maioria de muçulmanos sunitas e apenas 1% da população local é cristã. A língua mais falada na Faixa de Gaza é o árabe, seguida pelo hebraico (Fonte: www.infoescola.com). E Antonio Gasparetto Junior ainda complementa:

A inconsistência sobre quem é o verdadeiro dono do território da Faixa de Gaza gerou vários conflitos no local. Além disso, fazem parte do conflito as características religiosas dos habitantes do local, os quais se chocam principalmente com os israelenses. Israel, por sinal, ocupou militarmente a região entre

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junho de 1967 e agosto de 2005. Hoje ainda, Israel é o responsável pelo controle do espaço aéreo e do acesso marítimo à Faixa de Gaza.

Em junho de 2007, um confronto armando envolvendo o Fatah e o Hamas transferiu o controle da Faixa de Gaza para o Hamas (Fonte: BBC Brasil).

3.2. CRIAÇÃO DO ESTADO DE ISRAEL NO ORIENTE MÉDIO

Umas das grandes movimentações de imigração moderna, conhecida como a primeira Aliyah – derivado do hebraico, considerada a primeira onda de imigração sionista para a Palestina – data de 1881, quando aproximadamente 35 mil judeus fugiram dos progroms – denominação de ataque violento maciço às pessoas - na Europa Oriental. Theodor Herzl, um advogado e jornalista judeu de origem austro-húngaro, escreveu em 1895 o livro “O Estado judeu”, sendo este considerado o ponto de partida do movimento Sionista, que dizia que o problema do anti-semitismo só seria resolvido quando os judeus dispersos pelo mundo pudessem se reunir e se estabelecer em um Estado nacional independente (Fonte: http://www.mideastweb.org). Com a queda do Império Otomano, a Inglaterra transforma a região em colônia britânica, instituindo um protetorado – apoio que uma nação mais poderosa dá a outra menos poderosa – na região que então passa a ser pleiteada pro palestinos e israelenses. Hannah Arendt, na obra “Origens do Totalitarismo”, assim descreve esse protetorado:

Dois fatos reais foram decisivos para a formação dos conceitos errôneos e fatídicos que ainda permeiam as versões populares da história judaica. Em parte alguma e em tempo algum depois da destruição do Templo de Jerusalém (no ano 70) os judeus possuíram território próprio e Estado próprio; sua existência física sempre dependeu da proteção de autoridades não-judaicas, embora se lhes concedessem, em várias regiões, alguns meios de autodefesa, como por exemplo, aos “judeus da França e da Alemanha até começos do século XIII”, o direito de portar armas (ARENDT, 2009, p. 19).

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Depois do inicio da segunda guerra mundial, com a perseguição de Hitler aos judeus, os problemas se agravam e os israelenses, mais do que nunca, desejam retornar à Palestina, que há muito tempo é consagrada como território árabe. Originalmente, a partilha do território controlado pelos britânicos seria entre judeus e palestinos. Importante ressaltar que, conforme aduz Hannah Arendt, os judeus não pertenciam a qualquer classe nos países em que viviam, pois não participavam ativamente de nenhum desenvolvimento capitalista, sendo que, os serviços especiais que prestavam a governos, impediam que submergissem no sistema de classes, e que se estabelecessem como classe (ARENDT, 2009, p. 33). Em 1947, em assembleia realizada pela Organização das Nações Unidas e presidida pelo brasileiro Oswaldo Aranha, foi deliberada a divisão da Palestina em dois Estados: O Estado Judeu e o Estado Árabe. Em 14 de maio de 1948, os judeus, então liderados por David Bem Gurion, fundaram oficialmente o Estado de Israel. O professor Henrique Rattner, descreve a rejeição da proposta pelos estados árabes vizinhos e a invasão do país pelas tropas do Egito, Síria, Iraque e Jordânia, levou a primeira guerra contra o Estado Judeu que terminou com um armistício em 1949, mas que não houve ali um tratado de paz, o que culminou com novos enfrentamentos militares em 1956, 1967 e 1973, seguidas por Intifadas e a invasão do Líbano em 1982 que ceifou inúmeras vítimas dos dois lados. Segundo Rattner, é importante ressaltar o papel dúbio e as políticas contraditórias dos países árabes na luta dos palestinos:

Instigando a liderança palestina a recusar qualquer acordo através de negociações, forneceram armas em profusão, sem contudo estimular e financiar o desenvolvimento do território ocupado pela população palestina, na margem ocidental do rio Jordão. Pior ainda, em setembro de 1970, as tropas jordanianas massacraram 20.000 palestinos e, em 1982, provavelmente com a conivência das tropas israelenses, as milícias libanesas cometeram o massacre de Sabra e Chatila, nos subúrbios de Beirute. Nem os acordos e consequentes tratados de paz com o Egito de Anwar Sadat e o reino Hashemita de Hussein foram suficientes para influenciar os outros países, mais belicosos e radicais, a tentar uma aproximação com o estado de Israel (RATTNER).

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Sucessivas tentativas de trazer os dois litigantes à mesa de negociações – Camp David, Oslo, Wye Plantation – sob o patrocínio dos Estados Unidos, fracassaram, dando início a um novo ciclo de violências. Quando todas as aparências indicaram que um acordo estava ao alcance nas negociações entre Ehud Barak e Yasser Arafat, este endureceu sua posição e rejeitou a proposta israelense que, segundo os observadores internacionais, teria sido um ponto de partida favorável para o encerramento das hostilidades e os primeiros passos para uma longa trajetória de negociações e ajustes. A intransigência dos palestinos, além de causar a demissão de Barak, levou a maioria da opinião pública israelense a apoiar Ariel Sharon e suas políticas agressivas, inclusive a expansão dos assentamentos de colonos judeus nos territórios do futuro estado palestino. Atualmente, o principal confronto entre palestinos e israelenses está ligado ao exercício da soberania e do poder sobre terras envoltas em questões históricas e antigas, cujos laços permeiam ainda questões religiosas e culturais. Tanto os povos árabes quanto judeus reivindicam a posse do território em que se encontram seus monumentos sagrados. Na Bíblia Sagrada, no velho testamento, em que Deus teria feito uma aliança com Abraão. Assim, obedecendo as ordens de Deus, saiu com Ló de Harã, juntamente com sua esposa e seus bens, indo em direção à Canaã.

Então, disse a Abraão, saibas, decerto, que peregrina será a tua semente em terra que não é sua; e servi-los-á e afligi-la-ão quatrocentos anos. Mas também eu julgarei a gente à qual servirão, e depois sairão com grande fazenda. E tu irás a teus pais em paz; em boa velhice será sepultado. E a quarta geração tornará para cá; porque a medida da injustiça dos amoritas não está ainda cheia (BIBLIA SAGRADA).

Os judeus alegam que a área em que Israel foi fundado é a terra prometida por Deus ao primeiro patriarca, Abraão, e seus descendentes.

Com isso, a Comissão Especial das Nações Unidas para a Palestina, disse em seu relatório à Assembleia Geral de 3 de setembro de 1947 que as razões para estabelecer um Estado Judeu no Oriente Médio era baseado em argumentos com base em fontes bíblicas e históricas, na Declaração de Balfour de 1917.

Neste mesmo relatório, foi recomendado que o Estado Árabe ficaria com a área oeste da região da Galiléia, a região montanhosa de Samaria e Judéia, com a exclusão da cidade de Jerusalém e a planície costeira de Isdud até a fronteira com o Egito, dividindo assim em dois territórios palestinos.

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Assim, no final de 2012, a ONU reconheceu a Palestina como um Estado observador não membro, deixando de ser apenas uma entidade observadora. A mudança permitiu aos palestinos participarem de debates da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas e de outros Organismos. Entretanto, o voto não criou o Estado Palestino, sendo que um ano antes, em 2011, os palestinos haviam tentado, mas não conseguiram apoio suficiente no Conselho de Segurança que garantisse a criação deste Estado.

4. A PERSPECTIVA POLÍTICA SOBRE A DIVISÃO DE JERUSALÉM

Após a criação do Estado de Israel e o deslocamento de milhares de pessoas que perderam suas casas, o movimento nacionalista palestino começou a se reagrupar na Cisjordânia e em Gaza, controlados pela Jordânia e Egito, respectivamente, e nos campos de refugiados criados em outros países árabes.

O Hamas nunca aceitou o reconhecimento feito pela OLP e Israel em 1993, que gerou o acordo de paz de Oslo, no qual a Organização Palestina renunciava ao terrorismo e a violência e reconhecia o direito de Israel existir em paz e segurança. Após a assinatura deste tratado é que foi criada a Autoridade Nacional Palestina.

O principal motivo pelo qual o Hamas não aceita que Israel permaneça naquele território é que Jerusalém Oriental, então considerada a capital histórica de palestinos, não está incluída neste acordo.

Além deste aspecto, hoje os principais pontos do conflito giram em torno da demora na criação de um Estado Palestino independente, a construção de assentamentos israelenses na Cisjordânia e a barreira construída por Israel – que já foi condenada pelo Tribunal Internacional de Haia.

O Estado de Israel reivindica a soberania sobre a cidade inteira de Jerusalém – que é a cidade sagrada tanto para judeus, muçulmanos e cristãos – afirmando que a capital é eterna e indivisível.

Segundo a ONU, a única forma de impedir que continuem aumentando as tensões e conflitos entre palestinos e israelenses – principalmente entre jovens palestinos e as forças de segurança israelenses em Jerusalém Oriental e na Cisjordânia – é que cada Estado assuma compromissos e selem definitivamente um acordo de paz. Para isso, é necessário um cessar fogo na região, tendo em vista que nas últimas semanas os conflitos vêm ocorrendo quase que diariamente, causando muitas mortes.

Para que seja possível a reconstrução da Faixa de Gaza – que atualmente encontra-se praticamente toda destruída – Toyberg-Frandzen, secretário Geral da ONU, afirmou que alguns sinais de progresso gradualmente começaram a surgir, mas que de modo geral, a região continua volátil e cheia de armadilhas potenciais. (Fonte: ONU)

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CONCLUSÃO

É certo que o mundo tem caminhado cada vez mais em direção à uma integração, com a consideração de um povo com relação à outro no que diz respeito ao exercício de sua soberania, ao respeito de seus cultos e crenças, a tolerância e reciprocidade. Esse entendimento do exercício do reconhecimento e identidade de um povo acaba por amenizar possíveis desentendimentos, sobretudo em regiões que um dia já foram palco de animosidades e violência. Vimos no presente artigo que os conflitos entre árabes e judeus são seculares e envolvem uma série de fatores, tais como, diferentes culturas, religiões, políticas. Se levarmos em conta a História de muitas regiões, onde inclusive hoje há prosperidade e entendimento, como por exemplo, a Europa que foi palco de guerras intermináveis entre reis e príncipes feudais cujas riquezas eram geradas à custa de trabalho escravo e exploração dos menos abastados, ou do extermínio de populações indígenas na América Latina, na Ásia e na África, sendo seus habitantes transformados em escravos para sustentar as colônias, chegaremos à conclusão de que as mesmas mãos escravas que produziram riquezas permitiram à burguesia ascensão e conquista do estado absolutistas permeados por direitos civis, liberdade, igualdade e exercício de cidadania por todos os indivíduos. É mais do que urgente a criação de um Estado Palestino, democrático, que possa receber todas as pessoas que encontram-se expatriadas, excluídas do convívio de seus amigos ou parentes porque tiveram que deixar suas casas, bairros, cidades, por conta da destruição que hoje assola toda a Faixa de Gaza, dividindo a Palestina e atuando como freio ao consumo do desperdício e a corrida armamentista irracional, que consomem boa parte dos lucros auferidos com a extração e venda de petróleo, por grupos cada vez mais violentos e ávidos por vingança e sangue. Por outro lado é necessário que a Autoridade Palestina reconheça de uma vez por todas a soberania e identidade do povo de Israel, deixando que aquele Estado se desenvolva de maneira tranquila e equilibrado. Deste modo, é certo que o conflito entre palestinos e israelenses volte às mesas de negociações, onde o ódio, a covardia e principalmente o armamento bélico seja deixado de fora, pois certamente somente o respeito à diversidade cultural, o convívio pacífico e a estrita observância dos direitos humanos, há muito esquecidos naquela região, deverão prevalecer como princípio máximo a regerem as relações e entendimento entre os povos. Entretanto, para que isto aconteça, todos devem estar dispostos a fazer concessões e principalmente, ao cessar fogo. Para isso a Organização das Nações Unidas deverá acompanhar o encaminhamento para a criação de um Estado Palestino Independente,

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com a delimitação de suas fronteiras – aqui, deve-se levar em consideração que Jerusalém pode ser dividida, de modo que ambos os povos, judeus e árabes, possam profetizar sua fé – que deverá ser acompanhado de perto por representantes do Estado de Israel, reconhecendo o trabalho da ONU e, sobretudo a identidade do povo árabe. Na discussão do problema dos refugiados palestinos e seu direito a retornar às suas casas, além de considerar o caso de centenas de milhares de judeus expulsos dos países árabes após 1948, deverá ser explicitado que esse retorno se refere ao futuro Estado da Palestina e não ao Estado de Israel. Os assentamentos de colonos israelenses nos territórios da Cisjordânia e da faixa de Gaza terão de ser desativados, compensando-se os colonos pelos investimentos realizados e oferecendo-lhes oportunidades de novos assentamentos nos territórios de Israel. Esta certamente seria uma solução aceitável para os dois lados, representando um primeiro passo de transição para os dias anunciados na profecia de Isaias: “E será nos últimos dias, quando os povos não mais guerrearão e transformarão suas espadas em arados...”, refletindo, também, a visão espiritual expressa nas rezas dos judeus – “... pois minha casa será o templo de orações para todos os povos...”.

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REFERÊNCIAS

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Bíblia Sagrada – Velho Testamento. Livro de Genêsis. Capítulo 2, versículo 13-22.

HEGEL, Georg Wilhelm Fridrich. Princípios da Filosofia do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

HONNETH, Axel. Luta pelo Reconhecimento: A Gramática Moral dos Conflitos Sociais. Traduzido por Luiz Repa. São Paulo: Editora 34, 2003.

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TAYLOR, Charles. A Política do Reconhecimento. In: ______. Argumentos filosóficos. Tradução de Adail U. Sobral. São Paulo: Loyola, 2000._____. A Política de Reconhecimento. In: ______. Multiculturalismo. Lisboa: Piaget, 2005._____. As Fontes do Self: A Construção da Identidade Moderna. Tradução de Adail U. Sobral; Dinah de A. Azevedo. São Paulo: Loyola, 1997._____. Organizaçao das Nações Unidas. Disponível em: http://onu.org.br/ Acesso em 17 nov. 2014._____. Anistia Internacional. Disponível em: https://anistia.org.br Acesso em 17 nov. 2014._____. BBC Brasil. Disponível em: http://www.bbc.co.uk/portuguese. Acesso em 17 nov. 2014.

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EIXO TEMÁTICO 3EDUCAÇÃO E PRODUÇÃO JURÍDICAS

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ENSINO JURÍDICO E DIREITO DIGITAL: POR UM NOVO TEMPO

Roseli Aparecida Casarini Bossoi149

Fernando Henrique da Silva Horita 150

RESUMO

Todos os setores da civilização estão sendo obrigados a recepcionar o impacto da alta tecnologia em seu habitat natural, modificando sobremaneira o dia-a-dia de todos os profissionais da área do direito. O assunto a ser abordado, na melhor das hipóteses, busca uma reflexão sobre a necessidade da inserção do ensino do Direito Digital no currículo dos cursos jurídicos. O artigo trás em primeira instância o direito de aprender Direito Digital sob a ótica de renomados pensadores, retratando também o fenômeno contemporâneo e consagrado como a nova realidade tecnológica de comunicação, sendo esta responsável pela gênese de um novo ramo do Direito, repensando assim os projetos tradicionais do ensino jurídico. No bloco seguinte o texto retrata a importância do Direito Digital como disciplina a ser implementada no ensino jurídico, quebrando paradigmas, deixando evidenciado ainda a necessidade do construtor do direito adquirir um novo perfil frente às mudanças. Segue-se com as considerações finais sobre esse novo Direito dos bits resultante das transformações da sociedade e das novas formas de sociabilidade, responsável pela construção do Direito moderno. Para tanto, o método utilizado é o hipotético-dedutivo, com uma análise bibliográfica de estudiosos especializados em referida temática.

Palavras-Chave: Ensino Jurídico; Direito Digital; Currículo.

“O analfabeto do século XXI não será aquele que não conseguir ler ou escrever, mas aquele que não puder aprender, desaprender e, por fim, aprender de novo”.Patrícia Peck

149 Mestranda pela Univem, Advogada, Bacharel em Administração de Empresas e Ciências Contábeis, Pós-Graduada em Controladoria, Direito Civil e Direito Processual Civil pela UNIVEM, Especialização em Tribunal do Júri pela APDCRIM/SP, Membro efetivo da Comissão de Direito Eletrônico e Crimes de Alta Tecnologia da OAB/SP.150 Possui graduação em Direito pela UNIVEM (2012). É Pós-Graduado em Formação de Professores Para Educação Superior Jurídica na Universidade Anhanguera UNIDERP (2013). Mestrando em Teoria do Direito e do Estado pela UNIVEM (2013), sendo bolsista CAPES e monitor de Direito Civil I. Membro associado do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (CONPEDI). Diretor de Relações Públicas Internacionais da Federação Nacional de Pós-Graduandos em Direito (2013-2015). Integrante do grupo de pesquisa GEP Grupo de Estudos e Pesquisas - Direito e Fraternidade, cadastrado no diretório de grupos de pesquisa do CNPq.

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SUMÁRIO: Introdução. 1. Refletindo sobre o direito digital. 2. A importância do direito digital como disciplina no ensino superior jurídico brasileiro. Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO

A sociedade contemporânea apresenta um traço peculiar em relação a todas as demais formações que a história já registrou, não concedendo tempo para a assimilação em torno das inovações tecnológica, pois novas ferramentas surgem e se sobrepõe às anteriores, aproximando, quase que a um só tempo, passado, presente e futuro.

Nesse entretempo, uma nova sociedade se formou, ou, em outros termos, a velha sociedade se modernizou através dos avanços tecnológicos provocando movimentos rápidos em nossos costumes, trazendo consigo uma complexidade, ausência de fronteiras e inovando completamente as relações sociais. Assim, a tecnologia impôs à ciência jurídica uma série de novas abordagens, provenientes de uma mudança social e comportamental, deste modo, nada mais natural do que trazer esse universo para a sala de aula.

Diante deste novo panorama, passamos a assistir ao surgimento de uma miríade de novas tecnologias, ferramentas de armazenamento de dados, formas de comunicação eletrônica, que trouxeram consigo novos fatos sociais, fenômenos antigos repaginados a clamarem, de um modo ou de outro, pela atenção do legislador, dos profissionais do Direito e em especial, das instituições voltadas para o ensino jurídico no Brasil.

Com o propósito de fomentar o debate sobre a temática em questão, inicia-se, nas próximas linhas, com o objetivo precípuo de inserir o ensino do Direito Digital no currículo dos cursos jurídicos, uma breve investigação sobre o ensino jurídico e o direito digital, utilizando-se como método, o hipotético-dedutivo com uma análise bibliográfica de estudiosos especializados em referidas temáticas.

1. REFLETINDO SOBRE O DIREITO DIGITAL

Emílio García Méndez (2004, p.12) dá a exata dimensão da importância do tema ao afirmar:

Na atual etapa do desenvolvimento tecnológico, em que o acesso ao conhecimento constitui a variável decisiva e fundamental de uma existência humana digna, que constitui a finalidade última dos direitos

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humanos, o direito à educação não pode ser submetido a qualquer tipo de negociação, devendo ser entendido como prioridade tão absoluta quanto a abolição da escravidão ou da tortura.

Lincoln, (apud Cândida, 2008, p. 19) figura emblemática fundadora da democracia norte-americana tinha uma percepção única; e já dizia: “Os dogmas do passado sossegado são inadequados para o presente tempestuoso. A ocasião está avassalada por dificuldades, e precisamos estar à altura da ocasião. Como nosso caso é desafio novo, assim precisamos pensar novo”, sendo este pensamento muito atual para o momento presente.

Segundo a educadora e pedagoga Raquel C. Ferraroni Sanches (2011, p. 19),

Dadas as constantes mudanças que atingem as sociedades, ajustar os processos de ensino à realidade é uma necessidade indiscutível. Até mesmo instituições centenárias, como as Instituições de Educação Superior, então mergulhadas nesse cenário conturbado. [...] As Instituições de Educação Superior necessitam repensar constantemente suas práticas, seus valores, sua missão.

Toda reflexão sobre educação, para ser completa, deve incluir um olhar sobre as transformações da sociedade e sobre o futuro (DIAS SOBRINHO, 1995, p. 19). As mudanças causadas pela disseminação e penetração das plataformas e das tecnologias digitais na sociedade dão lugar à Era da Inovação, e com isso, surgem questionamentos sobre o valor de uma educação universitária mais elevada.

A formação de profissionais para o terceiro milênio exige das Instituições de Educação Superior um reflexivo processo sobre as habilidades necessárias para essa formação, pois estamos imersos em processos de internacionalização e de globalização da economia. Esses desafios atuais exigem um novo dinamismo educacional, [...] as Instituições de Educação são espaços privilegiados para a construção de novas posturas, de novos olhares (SANCHES, 2011, p. 61).

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Por sua vez, as Universidades, ainda, não percebem que o desenvolvimento das novas tecnologias de informação altera o papel da instituição no processo educacional. Não se pode deixar de reconhecer, a inserção dos novos modelos de tecnologia, tomando em conta o cenário de mudanças que os humanos presenciam.

Esta modernidade, cada vez mais veloz, conturbada, complexa, não linear, imprevisível, estonteante, e que a cada conquista decorrente dessa sociedade da informação é acompanhada de um mar de problemas.

Constata-se, com raríssimas exceções, que não há, entretanto, no panorama do ensino superior brasileiro, por exemplo, a oferta, seja em instituições de ensino publicas ou privadas, nos cursos jurídicos de graduação, como também nos cursos de pós-graduação, de uma proposição de configuração curricular, da contemplação da disciplina específica da educação jurídica no contexto do meio ambiente digital, na sociedade da informação. A educação jurídica digital nas novas áreas e tendências observadas no Brasil e no mundo, direta ou indiretamente, repercute não apenas no processo de formação dos estudantes, mas no próprio ensino e na concepção do Direito moderno, constituindo-se, nesse aspecto, um paradigma de conteúdo cultural positivo de currículo jurídico (FIORILLO, 2013, p. 147).

Assim, para que o ensino jurídico não fique isolado, sem saber o que fazer ou como agir, e que o construtor do direito seja capaz de dialogar com esta nova realidade, há que se estabelecer um novo compromisso com um desenho curricular, prevendo uma disciplina inovadora e que tem a ver com a atualidade, sendo esta o Direito Digital, com suas bases e fundamentos e o mais adequado para dar conta desta avalanche de novos fatos que vem repercutindo no mundo jurídico, reformulando uma cultura jurídica focada no tradicionalismo.

A partir de um modelo de projeto pedagógico, plano de ensino e plano de aulas tradicionais, estaria o Direito Digital, à frente dos tempos, focando exclusivamente as relações no ambiente virtual, estudando as relações jurídicas, normas, aplicações, processos, doutrina, jurisprudência, a fim de que sejam desenvolvidas as capacidades analíticas e crítica dos estudantes, bem como extrair conhecimento e inteligência do ambiente hiperinformacional.

O processo de ensino dos profissionais não pode, não mais, dissociar-se das transformações sociais, uma vez quer o conhecimento percorre,

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paralelamente, o momento histórico, impondo-se uma articulação com a realidade contemporânea, em especial a educação digital. Segundo Linhares (2010, pp. 250-252).

Não há como negar que pensar o ensino e o currículo jurídico implica ter presente esse contexto de transformações e circunstâncias que envolvem o Direito e o Estado contemporâneo. [...] O fenômeno da globalização tanto pode supor possibilidades negativas incidentes no ensino do Direito, como também trazer novas possibilidade de ter acesso ao estranho, de se enriquecer com o estranho, de rever e relativizar o que é próprio, de adquirir novas competências em Educação. De propor assim, estímulos que melhorem e complementam a cultura escolar e refazer o currículo jurídico.

A este propósito, adverte também Morin (2002, p. 17):

É necessário educarmos nosso pensamento justamente para os desafios da complexidade. Pois o pensamento e a inteligência que só sabem separar, rompem o caráter complexo do mundo em fragmentos desunidos, fracionam os problemas e unidimensiona, o multidimensional. Essa inteligência é cada vez mais míope, daltônica e vesga; termina a maior parte das vezes cega, porque destrói todas as possibilidades de compreensão e reflexão, eliminando na raiz as possibilidades de um juízo critico e também as oportunidades de um juízo corretor ou de uma visão a longo prazo.

Dessa maneira, estando o homem inserido num mundo onde surgem a cada dia novos conflitos e novos direitos, o que deve ser proposto é uma educação do pensamento, do homem e da ciência humana jurídica e social; considerando isso, importa ampliar, expandir e diversificar as perspectivas de análise e reflexão no enfrentamento dessas problemáticas (LINHARES, 2002, p. 254).

Neste sentido, o desenvolvimento científico e prático da disciplina Direito Digital, vincula-se à aquisição de conhecimento e enquadra-se,

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perfeitamente, nos moldes do texto constitucional, em seu art. 205, que prevê: “a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.

Importante ressaltar que a Portaria Ministerial n° 1.886, de 30 de dezembro de 1994, que antecedeu a Resolução CNE/CES N° 9/2004 do Conselho Nacional de Educação Câmara de Educação Superior, em vigor, trazia em seu bojo, especificamente no artigo 6º, parágrafo único: “As demais matérias e novos direitos serão incluídos nas disciplinas em que se desdobrar o currículo pleno de cada curso, de acordo com suas peculiaridades e com observância de interdisciplinaridade”. Ao que parece, o legislador anteviu os desafios da educação na era pós-internet, e já previa este conteúdo ao Projeto Pedagógico do curso jurídico.

Com a publicação da Resolução CNE/CES N° 9, de 29 de setembro de 2004 pelo Conselho Nacional de Educação Câmara de Educação Superior, em vigor, a expressão “novos direitos” foi suprimida quando da elaboração das diretrizes curriculares, sendo estabelecido um conteúdo mínimo do curso jurídico disposto no artigo 4º, inciso VIII, estabelecendo que o curso de graduação em Direito deva possibilitar a formação do profissional, habilidades e competências, “domínio de tecnologias e métodos para permanente compreensão e aplicação do Direito”.

A Resolução também permite a inclusão ao Eixo de Formação Profissional, condizentes com o Projeto Pedagógico, de conhecimentos segundo a evolução da Ciência do Direito e sua aplicação às mudanças sociais, econômicas, políticas e culturais do Brasil, estando esta previsão contida no artigo 4º, inciso II.

Constata-se que a sociedade se vê mergulhada neste oceano cibernético. Logo, para Sanches, essas transformações,

Desafiam diretamente as universidades, pois estas [...] passaram a viver uma nova especificidade: favorecer a articulação entre o pensar e o fazer, objetivando produção de novos saberes, de novas competências necessárias ao novo processo produtivo e social (2011, p. 65).

O educador Rubem Alves já dizia que a educação deve estar ligada com a vida, pois é para isso que a gente aprende, para viver melhor, ter mais prazer, poupar tempo, não se arriscar, e em especial, ter mais eficiência. Deste

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feita, o que realmente importa é o futuro dos estudantes, por isso, todo o esforço educacional tem que estar comprometido, pois “um sujeito assim preparado estará dotado de competências e de habilidades que lhe proporcionarão atuar na sociedade em que está inserido” (SANCHES, 2011, p. 66).

2. A IMPORTÂNCIA DO DIREITO DIGITAL COMO DISCIPLINA NO ENSINO SUPERIOR JURÍDICO BRASILEIRO

Crespo (2011, pp. 39-40) pontua que “são cada vez mais frequentes as relações entre o Direito e a Informática, de modo que se chega até a defender a existência de um novo ramo do Direito”. Cada ramo do direito que insurge, requer para si o reconhecimento de sua autonomia, esta pode ser de ordem legislativa, jurisdicional e didático-docente, todas oriundas da manifestação prática de uma autonomia precedente: a autonomia científica. Vale lembrar o que nos ensina o eminente Ráo (1960, p. 308).

As disciplinas jurídicas, cedendo às pressões das vicissitudes contemporâneas da vida social, se dividem e subdividem em um número sempre crescente de ramos e sub-ramos, os quais, por sua vez, padecendo de gigantismo, tendem a se constituir em disciplinas autônomas e distintas.

Segundo Paiva (2002, p. 1):

A princípio poderemos constatar que tudo que é novo principalmente na área jurídica sofre uma série de resistências por parte de estudiosos que não estão abertos ao debate e insistem no isolamento intelectual apegando-se a institutos tradicionais que jamais preveriam a revolução pela qual estamos vivenciando. Assim o tradicionalismo de alguns pensadores expurgam terminantemente a criação de um ramo autônomo do direito pelo simples fato, acreditamos, da inércia na evolução de idéias. Outra categoria de pensadores entendem que as relações que envolvem o direito e a informática são um mero elastecimento do direito posto, ou seja apenas um meio diferenciado de cometer, por exemplo, delitos ou acordar por meio de contratos eletrônicos que poderão ser resolvidos

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ou dirimidos com a simples aplicação dos institutos tradicionais do direito, sendo somente necessária a correta interpretação da legislação vigente. Porém, de certa forma entram em contradição os mesmos estudiosos quando admitem e defendem a necessidade de criação de normas aplicáveis a determinados casos que não tenham sido previstos pela legislação em vigor. Tal raciocínio só vem a corroborar com nosso entendimento de que em virtude do ambiente virtual ser diferente e suas relações possuírem uma série de novos mecanismos.

Com o advento da internet e o uso da tecnologia no dia-a-dia, os profissionais de Direito tiveram que evoluir para atender às mudanças de comportamento e fortalecer os novos controles de conduta gerados por esta nova onda cibernética. Presencia-se, então, a evolução do próprio direito que busca resolver os complexos, e muitas vezes novos, problemas jurídicos ocasionados no âmbito da sociedade da informação.

Para Paiva, o Direito Digital é o conjunto de normas e instituições jurídicas que pretendem regular aquele uso dos sistemas de computador - como meio e como fim - que podem incidir nos bens jurídicos dos membros da sociedade; as relações derivadas da criação, uso, modificação, alteração e reprodução do software; o comércio eletrônico e as relações humanas estabelecidas via internet.

Para Almeida Filho (ALMEIDA FILHO, 2005, pp. 11-18), trata-se do conjunto de normas e conceitos doutrinários destinados ao estudo e normatização de toda e qualquer relação em que a informática seja o fator primário, gerando direitos e deveres secundários. É, ainda segundo o autor, o estudo abrangente, com o auxílio de todas as normas codificadas de direito, a regular as relações dos mais diversos meios de comunicação, dentre eles os próprios da informática.

Complementando, Patrícia Peck (2009) afirma que o Direito Digital rege o comportamento e as novas relações dos indivíduos, cujo meio de ocorrência ou a prova da manifestação de vontade seja o digital, gerando dados eletrônicos que consubstanciam e representam as obrigações assumidas e sua respectiva autoria: “deve, portanto, reunir princípios, leis e normas de auto-regulamentação que atendam ao novo cenário de interação social não presencial, interativo e em tempo real”.

De acordo com Pereira (2001), o Direito Digital possui todas as características para ser considerado uma disciplina autônoma, justificando sua posição por meio de três argumentos:

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- possui um objeto delimitado, qual seja a própria tecnologia, dividido em duas partes, sendo a primeira o objeto mediato, ou seja, a informação, e o segundo o objeto imediato, ou a tecnologia;- existência de uma metodologia própria, a qual visa possibilitar uma melhor compreensão dos problemas derivados da constante utilização das novas tecnologias da informação (informática) e da comunicação (telemática); tal tarefa se realiza mediante o uso de um conjunto de conceitos e normas que possibilitam a resolução dos problemas emanados da aplicação das novas tecnologias às atividades humanas;- existência de fontes próprias, ou seja, fontes legislativas, jurisprudenciais e doutrinárias; não havendo como negar a existência dessas fontes no âmbito do Direito Digital; foi justamente a existência de ditas fontes que possibilitaram, em um grande número de países, principalmente os mais desenvolvidos, a criação da disciplina do Direito Digital nos meios acadêmicos.

No mesmo sentido está o entendimento de Pinto (2001) ao afirmar que apesar do direito ser algo uno, faz-se necessário sua fragmentação a título de estudo e melhor aplicação:

A grandeza do direito não nos permite conhecer todo o seu universo, o que praticamente obriga o jurista a especializar-se em determinada área e desenvolver novas disciplinas a medida que o direito compreende novas situações, o que não implica necessariamente na alienação frente às demais áreas.

O autor ainda complementa dizendo que a criação do ramo Direito Digital provoca um avanço jurídico rumo às novas demandas por regulamentação de uma matéria ainda incipiente, pois a partir do momento que se circunscreve a matéria a um âmbito de estudo específico, surgem diversas soluções doutrinárias que tendem a confluir para uma uniformização, pré-requisito para uma possível organização de leis específicas.

É possível dizer que o Direito Digital é o resultado da relação entre a ciência do Direito e a ciência das novas tecnologias, destacando-se, porém, que

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esta relação não assume apenas um caráter regulador, onde a informática ou a telemática parece surgir como fonte de novas questões problemáticas a serem tratadas ou mitigadas pelo Direito.

A tecnologia também trouxe ao ambiente jurídico uma série de inovações e facilitadas, proporcionadas pelo advento do computador e da Internet. Há ainda os que designam esta área do Direito como “Direito Informático”, “Direito Eletrônico”, “Direito da Tecnologia da Informação”, “Direito da Internet”, ou ainda “Direito Cibernético”, termos que parecem ter menor aceitação na comunidade acadêmica.

No âmbito internacional se encontra várias terminologias para o Direito Digital, dentre elas, na França, recebe a nomenclatura Droit de l’informatique, no Reino Unido, Information Technology Law, na Alemanha, Informatikrecht; na Espanha, Derecho Informático ou Derecho de las Nuevas Tecnologías; e nos Estados Unidos e Índia, CyberLaw ou, ainda, Computer Law e em Portugal fala-se em Direito da Sociedade da Informação.

Direito Digital deve ser considerado como uma espécie de plus inserido nos ramos existentes ou se possui ou necessita ser idealizado como um ramo autônomo e distinto das demais matérias, pois já é uma verdade, bem como um ramo específico do direito constituído, abordado internacionalmente, além de possuir estudos específicos exclusivos sobre o tema.

Segundo o doutrinador Morena Pinto (2000):

Apesar do direito ser algo uno, faz-se necessário sua fragmentação a título de estudo e melhor aplicação. A grandeza do direito não nos permite conhecer todo o seu universo, o que praticamente obriga o jurista a especializar-se em determinada área e desenvolver novas disciplinas a medida que o direito compreende novas situações, o que não implica necessariamente na alienação frente às demais áreas. Destarte, instituir-se o ramo Direito da Internet é um avanço jurídico rumo às novas demandas por regulamentação de uma matéria ainda incipiente, pois a partir do momento que se circunscreve a matéria a um âmbito de estudo específico, surgem diversas soluções doutrinárias que tendem a confluir para uma uniformização, pré-requisito para uma possível organização de leis específicas.

O Direito Digital, dada a amplitude de suas relações, está presente

em outras áreas jurídicas como evidencia Paiva (2002) sendo elas: a) Direito

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Constitucional voltado para a liberdade de comunicação e tutela da intimidade e da vida privada de cada indivíduo; b) Propriedade Intelectual ensejando uma série de preocupações por parte dos estudiosos, advindas de implicações jurídicas provenientes da facilidade de reprodução e utilização da propriedade intelectual, que pode ser violada com um simples toque de comando por intermédio de um computador, facilitando a rápida disseminação das cópias, sem custo de distribuição; c) Direito Civil que apresenta inúmeros pontos de convergência materializados pelo direito contratual e das obrigações, dentre os quais, os relativos à contratação por meio eletrônico, focando também a jurisdição ou Tribunal competente para se julgar o caso, já que na rede mundial de computadores a existência de espaços virtuais dificulta, senão inviabiliza, a individualização do lugar onde se deu o evento danoso; d) Direito Comercial atrelado às questões relacionadas ao comércio eletrônico; e) Direito Tributário, no que tange as atividades realizadas virtualmente gerando discussões polêmicas, sendo que as principais em torno do comércio eletrônico, mais especificamente sobre se a tributação incide ou não sobre esse tipo de transação e, caso incida, como tributá-la; f) Direito do Consumidor, atrelado à proteção aos direitos do consumidor por conta do comércio pelos meios eletrônicos; g) Direito Eleitoral no que se refere a modernização do processo eleitoral em todo o país, bem como à propaganda eleitora via internet, passando essas inovações a implicarem em questões jurídicas, vinculando-as a este novo ramo do direito; Direito Penal, com a discussão quanto aos acessos não autorizados a sistemas, spam, engenharia social, estelionato, vírus, legítima defesa relativa a ataques em sistemas computacionais, crimes digitais, lugar do crime, Direito de Intervenção e de Velocidades, harmonização, invasão de soberania; Direito Trabalhista, nos casos de trabalho realizado à distância através de instrumentos informatizados, limites de uso do e-mails corporativo e de comunicadores instantâneos durante o expediente, monitoramente de funcionários e sua legalidade e constitucionalidade; Direito Administrativo, relacionado com os serviços de E-CPF e E-CNPJ, SPED, pregão eletrônico virtual.

Conforme bem expressam as palavras do professor André Franco Montoro (2000, p. 9),

Não existe um número fechado de direitos, pois a dinâmica da vida econômica e social e as transformações que se operam especialmente no campo de novas tecnologias fazem surgir novas realidades e situações que repercutem sobre as pessoas e sua relação.

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A formação de profissionais na área do direito que saibam lidar com questões jurídicas atuais, isto é, que envolvam tecnologias é de competência das instituições de ensino e é delas o papel de lançar no mercado de trabalho um profissional realmente preparado. Certamente, não há, nos dias atuais, como cumprir essa tarefa sem que o graduando estude o Direito Digital.

A doutrinadora Patrícia Peck Pinheiro (2010, p. 67), faz uma indagação pertinente sobre o tema:

A grade de ensino da graduação em direito não mais atende às exigências atuais do mercado de trabalho. Como passar cinco anos sem ser instruído sobre Privacidade Online, Crimes Eletrônicos, Territorialidade em Fronteiras da Informação, Coleta de Provas Eletrônicas, Processo Eletrônico, Fisco Eletrônico, Uso Social dos Direitos Autorais, Consumidor Online, Legítima Defesa na Internet, Perícia Digital, Distinção de Dolo e Culpa em Equipamentos computacionais, e tantos outros temas que desafiam o pensamento jurídico vigente no Brasil e também no mundo?

Apesar de predominar a ausência da disciplina específica nos cursos de direito, algumas entidades de ensino já inseriram o Direito Digital em suas grades curriculares, entre essas entidades estão a Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, Centro Universitário de Lavras, Unidade de Ensino Dom Bosco – UNDB, Instituto de Ensino Superior de Nova Venécia – INESV, Faculdade Boa Viagem – FBV, Universidade Federal de Goiás – UFG, Faculdade de Direito da Fundação Antônio Álvares Penteado – FAAP, Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Escola Paulista de direito – EPD, Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas – FGV, Escola Paulista de Magistrados - EPM, entre outras.

O advogado Renato Opice Blum, coordenador do curso de Direito Digital da GVLaw e do MBA em Direito Eletrônico da Escola Paulista de Direito, disse em recente palestra junto ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que, para se conseguir dar conta com eficiência desse grande volume que só tende a aumentar seria necessário que o Legislativo Judiciário, Polícias, Ministério Público e advogados se especializassem no assunto, e assim acompanhar a velocidade do avanço tecnológico utilizado indevidamente151.

151 http://tj-sp.jusbrasil.com.br/noticias/100076800/gapri-promove-palestra-sobre-direito-digital.

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Neste mesmo evento o Presidente da Seção de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, Desembargador Antonio José Silveira Paulilo disse que a matéria relacionada ao Direito Digital é complexa e que há muito ainda por se fazer, e que já é uma preocupação da Presidência desta Seção oferecer treinamento constante para os servidores com o intuito de aprimorar a prestação jurisdicional.

O fato da disciplina já fazer parte da grade curricular de algumas instituições de ensino, e ter também integrado a pauta dos Tribunais de Justiça, fazendo parte inclusive da programação do canal oficial do Supremo Tribunal Federal152, evidencia que a sociedade acadêmica e os operadores de direito estão começando a perceber a necessidade de acompanhar as mudanças sociais e identificando a importância do Direito Digital no contexto atual.

Em vista do exposto, é possível afirmar que o Direito Digital é um novo ramo autônomo da ciência do Direito relativo às relações sociais, comerciais, econômicas estabelecidos no ambiente cibernético onde o operador do direito poderá atuar tanto num trabalho preventivo quanto contencioso. No primeiro, realizando análise e/ou auditorias de segurança da informação, elaboração de normas, políticas, contratos (especialmente de TI e Telecom) e pareceres sobre uso de tecnologias. No contencioso há todo tipo de demanda, desde disputa de domínio à questões de fraude eletrônica, furto de dados, vazamento de informações e até análise de provas trabalhistas baseadas em e-mails, logins de rede e pontos eletrônicos.

Essas condições implicam na ampliação do curso de direito com a implantação do novo ramo do direito, o Direito Digital, e deve ser pensado como uma evolução natural do ensino jurídico, buscando acompanhar a tendência da sociedade, preparando profissionais para a realidade atual do mercado de trabalho, caso contrário,

Os cursos de direito, tendentes a olhar o novo com os olhos do velho, tem dificuldades em conceber projetos e estratégias pedagógicas diferenciadas dos projetos e estratégias tradicionais, visando a contemplar o foco das habilidades e competências (ABRAÃO, BAGGIO, TORELLY, 2006, p. 399).

Por conta disso, tem-se uma grande resistência quanto à inclusão do Direito Eletrônico nas grades curriculares dos cursos de direito do Brasil. Contudo, considerando a sua importância vale a pena buscar meios de superar todos os obstáculos.

152 http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=196934 dia 30 dezem-bro de 2011.

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CONCLUSÃO

Este artigo procurou pontuar as principais características da Era Digital tratando sobre os fenômenos de transformação social que estão ocorrendo na sociedade, provenientes da difusão das tecnologias da informação pelo globo terrestre, em especial a internet, discorrendo também sobre o direito de aprender Direito Digital, ficando demonstrada sua autonomia como um novo ramo a integrar a ciência do Direito.

Insta salientar que a tendência é dos avanços tecnológicos ocorrerem de forma cada vez mais veloz na atual sociedade. Isso significa dizer que os problemas jurídicos relacionados às tecnologias também se multiplicarão em pouco tempo, predominando nos assuntos jurídicos, de modo que, será imprescindível o seu estudo por parte dos graduandos.

Como se pode ser constatado, as tecnologias são frutos tanto da sociedade como de sua cultura, unidas se autocondicionam e a cada versão nova há um remodelamento, uma reconfiguração de práticas e processos que envolvem os seres humanos.

Cabe salientar nesta oportunidade que não basta inserir o Direito Digital nas grades curriculares, para que a disciplina tenha sucesso e possa realmente preparar os formandos para o mercado de trabalho e melhorar a qualidade do ensino superior jurídico. Para tanto é necessário também algumas modificações quanto a metodologia de ensino cujo tema merece uma análise particularizada.

Adentrando de forma superficial sobre a questão, o Direito Digital, por ser constituído de temas novos, propicia a aplicação do moderno modelo do ensino-aprendizagem, colocando os alunos para construir o conhecimento, debatendo os problemas, participando ativamente, criando e contribuindo efetivamente com novas descobertas e teorias.

Por outro lado, é importante observar que entre os objetivos das universidades está à socialização do saber. Assim as transformações, no plano social global, apontam, portanto, para um novo enfoque no currículo do Curso de Direito, ressaltando o domínio de competências favoráveis à intervenção do operador do direito na realidade atual cuja vivência se opera também no virtual, incorporando assim novos saberes e práticas jurídicas, sendo papel primordial das instituições de ensino lançar no mercado de trabalho um profissional realmente preparado.

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INTERDISCIPLINARIDADE ENTRE DIREITO E POLÍTICA:QUESTÕES CONCEITUAIS NO CONTEXTO DA

PRODUÇÃO ACADÊMICO-JURÍDICA

Manoel da Nave Pires153

RESUMO

O propósito deste artigo é problematizar a diretriz da interdisciplinaridade na qual se pretende uma expansão política do Direito no âmbito da pesquisa e da produção acadêmica. Examinando os limites atuais dessa concepção epistêmica, vislumbram-se possíveis insuficiências teórico-conceituais que implicam em textos político-jurídicos com uma qualidade inferior àquela desejada pela academia. Este artigo sugere elementos para a formação de uma postura teórica sólida – valendo-se de uma maior preocupação com a definição dos conceitos políticos e sua teorização – que seja capaz de articular um diálogo entre Política e Direito à altura do mérito da iniciativa dos estudos interdisciplinares.

Palavras-Chave: Interdisciplinaridade; Política; Direito; Conceitos.

SUMÁRIO: Introdução. 1. A Interdisciplinaridade. 1.1. O mérito da iniciativa da interdisciplinaridade. 1.2 Interdisciplinaridade entre Direito e Política. 1.3 Interdisciplinaridade: um novo problema? 2 Questões conceituais. 2.1 Um primeiro esboço. 2.2 Uma coisa é o que é e não outra! 2.3 Os conceitos não nascem do nosso texto. 2.4 Validade do conceito e a falha na sua articulação. 2.5 Conceitos jurídicos, políticos, político-jurídicos e jurídico-políticos. 3 Teorizações político-jurídicas 3.1 Filosofia e teoria políticas ou ideologias políticas? 4 O futuro da produção acadêmica político-jurídica. Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO

A demanda por interdisciplinaridade entre as áreas do saber tem aumentado significativamente a quantidade de cursos de pós-graduação em Direito que propõem uma expansão política do Direito no âmbito da pesquisa e da produção acadêmica. O mérito da iniciativa é inquestionável e não precisa ser debatido nesta introdução.

153 Mestrando em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) e em Direito Político e Econômico pela Faculdade de Direito Mackenzie. E-mail: [email protected].

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Para se adequar ao novo paradigma interdisciplinar, a nova safra de produção acadêmico-jurídica deverá saber articular teorias e conceitos jurídicos com o pensamento político e social já produzido se quiser participar do debate contemporâneo em que se discutem temas tão relevantes como exercício da cidadania, modelos de Estado, e formas de participação na democracia.

Ocorre que a linguagem política é notoriamente ambígua. A maior par-te dos termos habitualmente utilizados no discurso político tem significados diversos e sofrem mutações ao longo da história. Além disso, tais termos adqui-rem um significado técnico que entra na linguagem da luta política do dia a dia através da elaboração daqueles que usam referida linguagem para fins teóricos (BOBBIO, MATTEUCCI & PASQUINO, 2008).

É nesse contexto que vislumbramos possíveis insuficiências que implicariam em uma teorização político-jurídica abaixo do esperado, considerando que possivelmente o cientista do Direito não detenha um domínio teórico-conceitual essencial para enfrentar esse desafio.

Tal situação apresenta-se indesejável, pois a falta de definição conceitual (ou sua superficialidade) é característica do discurso ideológico (no qual os interlocutores já comungam da mesma doutrina) e da retórica política (marcada pela subjetividade). A subutilização da linguagem política compromete a seriedade da discussão, pois inibe a compreensão dos pressupostos e consequências advindas da negligência com o conteúdo conceitual dos termos empregados.

O propósito deste artigo é problematizar a diretriz da interdisciplinaridade de modo que forneça algum rigor conceitual às produções acadêmicas e favoreça a construção de teorias político-jurídicas consistentes e longes de análises simplistas e superficiais, que nada agregam à academia.

Metodologicamente, caracterizamos o problema identificando os prin-cipais equívocos acerca do conteúdo dos conceitos (desprezo pela definição, univocidade, imutabilidade etc.) e da teorização (abordagens ideológico-retóri-cas), sugerindo atitudes acadêmico-teóricas a fim de evitá-los.

As reflexões apresentadas neste artigo são norteadas por obras que já trataram do tema da pesquisa e da produção acadêmica em Direito (CARVALHO, 2013; NOBRE, 2011; OLIVEIRA, 2003), bem como pela interdisciplinaridade na educação de um modo geral (BRANDÃO, 2002; JAPIASSU, 1976). Fazem, ainda, uso de um viés empírico, observando uma produção por enquanto esparsa e fragmentada, mas que já se encontra nos moldes da diretriz da interdisciplinaridade entre Direito e Política154.

154 As formulações desenvolvidas aqui não devem ser vistas como uma nova proposta de metodologia de ensino. Embora se encontre nelas algumas prescrições, pretendem representar apenas um início de diálogo sobre aspectos da pesquisa e da produção acadêmico-jurídica que

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1. A INTERDISCIPLINARIDADE

1.1. O MÉRITO DA INICIATIVA DA INTERDISCIPLINARIDADE

Se originalmente “universidade” estava relacionada com “universalidade”, o elemento da especialização passou a caracterizá-la quando o ensino foi separado em áreas, departamentos e disciplinas. Dando um salto na história, entretanto, um novo e abrangente consenso tem se formado em torno da ideia de que conhecimentos inter-relacionados são, além de mais adequados, imprescindíveis para a interpretação de problemas jurídicos, políticos, sociais e econômicos considerados de maior complexidade.

Nesse contexto, tensões e oposições são postas à prova quanto às identidades e fronteiras entre as disciplinas, num forte apelo para gerar conhecimento a partir de outras perspectivas. Assim, “interdisciplinaridade” tornou-se uma palavra-chave do nosso tempo155. Eis que a demanda surge nas Ciências Humanas para agregar contribuições de variadas disciplinas e impulsionar e consolidar a reflexão que nos permite enfrentar os grandes desafios e conflitos típicos de uma sociedade plural, que por sua vez exige respostas cada vez mais complexas às crescentes reivindicações sociais.

1.2. INTERDISCIPLINARIDADE ENTRE DIREITO E POLÍTICA

Se durante muito tempo a Ciência Jurídica foi tida como a “ciência rainha” impulsionada pelo “princípio da antiguidade” característico do direito como exercício do poder político (NOBRE, 2011), hoje não há mais razões para o isolamento desse estudo em relação às outras disciplinas das Ciências Humanas.

Partindo dessa constatação, figura aqui como “problema complexo” a tensa articulação entre concepções políticas e conceitos jurídicos em que, por exemplo, constituições deixam de representar a composição pacífica de valores

não vêm ocupando um lugar central nesse debate.155 Nas palavras de Japiassu (1976, p. 75): “Podemos dizer que nos reconhecemos diante de um empreendimento interdisciplinar todas as vezes em que ele conseguir  incorporar os resultados de várias especialidades, que tomar de empréstimo a outras disciplinas certos instrumentos e técnicas metodológicos, fazendo uso dos esquemas conceituais e das análises que se encontram nos diversos ramos do saber, a fim de fazê-losintegrarem e convergirem, depois de terem sido comparados e julgados. Donde podermos dizer que o papel específico da atividade interdisciplinar consiste, primordialmente, em lançar uma ponte para ligar as fronteiras que haviam sido estabelecidas anteriormente entre as disciplinas com o objetivo preciso de assegurar a cada uma seu caráter propriamente positivo, segundo modos particulares e com resultados específicos”.

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para tornarem-se palco de disputa político-jurídica de conteúdos concorrentes (BERCOVICI, 2013).

Neste novo estado de coisas, o Direito deixa de ser visto exclusivamente do ponto de vista normativo – como um conjunto (complexo) de regras reunidas num ordenamento – para ser entendido também fenômeno político e prática social.

Como o objeto demanda uma metodologia mais sofisticada, o paradigma epistêmico interdisciplinar implica necessariamente na inserção do eixo de estudos políticos provenientes da Filosofia Política156, da Teoria Política157 e da Ciência Política158 nos estudos pertinentes ao Direito, mesmo naqueles considerados mais dogmáticos.159

Tais disciplinas podem efetivamente auxiliar na compreensão política do Direito por servirem de ferramenta de análise conceitual e de reflexão crítica daquilo que já foi, é, ou será positivado em normas. Em termos mais objetivos: ao estudarem-se as obras políticas de Aristóteles, Maquiavel e Carl Schmitt, por exemplo, ver-se-á que as relações entre política e ética (ou moral) guardam entendimentos diversos que, em última análise, refletem na compreensão do Direito.

Nesse sentido, cabe aos profissionais do ensino jurídico, em consonância com o desejo contido em diretrizes educacionais160, dar nova forma ao método de abordagem de estudo do direito, oferecendo aos estudantes ferramental necessário para a compreensão política do fenômeno jurídico.

Admitida tal interpretação, dificilmente haverá discordância entre os estudiosos quando se trata da conclusão geral de que a diretriz é bem-vinda – e daí dizermos que o mérito da interdisciplinaridade é inquestionável.

156 Basicamente, trata de estudos que visam fornecer ideias teóricas e pontos de referência para a práxis política.157 A Teoria Política se divide em normativa (reflexão crítica sobre a realidade e projeção do dever ser da ordem política) e histórica (elabora narrativas sobre o desenvolvimento da própria tradição do pensamento político), tomando como objeto de investigação as ideias de autores clássicos, os conceitos políticos centrais (e as mudanças conceituais) em dada época ou sociedade, e os embates ideológicos situados em contextos históricos específicos.158 Entre os grandes eixos que definem o campo próprio da Ciência Política estão as instituições políticas, os regimes políticos entre nações e os modelos de explicação na abordagem do sistema político.159 Dogmáticos no sentido de tratar de questões internas de uma área com princípios próprios e certas peculiaridades no objeto que a identificam e a diferenciam de outras. Em geral, um estudo dogmático do direito exige conceituações de um instituto, definição de sua natureza jurídica, classificação e diferenciação de institutos análogos, a exposição de seus desdobramentos formais (espécies) e a definição dos efeitos jurídicos derivados.160 Conferir Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9394/1996) e Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Direito (Resolução nº 09/2004).

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1.3. INTERDISCIPLINARIDADE: UM NOVO PROBLEMA?

Em que pesem todas as razões para justificar a iniciativa da interdisciplinaridade, a convicção de acerto quanto à “nova reflexão acadêmica” pode não ser encontrada quando pensamos na aplicação prática dessa reflexão em termos de qualidade do texto acadêmico político-jurídico. Explica-se.

Retomando a diretriz da interdisciplinaridade, sugere-se a inclusão de uma perspectiva “extrajurídica” no ensino do Direito (através de uma abordagem política do fenômeno jurídico), a qual, assumidos alguns pressupostos, faz-se necessária em face da complexidade que o Direito adquiriu numa sociedade pluralista.

A questão problemática que se coloca é a da adequação do cientista do Direito ao novo paradigma interdisciplinar e as insuficiências teórico-conceituais que uma produção político-jurídica pode conter. Tratar-se-ia agora de um problema “novo”, e que vem na esteira da iniciativa da interdisciplinaridade.

Entre as frequentes preocupações que os profissionais de ensino jurídico e estudiosos do assunto têm de lidar estão a da confusão entre prática profissional e pesquisa acadêmica e da relação precária que o estudo do direito guarda com outras disciplinas (NOBRE, 2011). Desta última, interessa-nos discutir, especificamente, a relação entre Direito e Política161.

Pensada como solução, a tese de que uma abordagem política do Direito supriria os defeitos da pesquisa acadêmico-jurídica não encontraria correspondência na concretude da produção acadêmica por dois motivos: (I) porque a ampliação da subjetividade característica da análise política dos conceitos juridicamente definidos poderia esvaziar seus conteúdos; (II) porque a insuficiência teórico-conceitual já detectada na produção acadêmico-jurídica muito provavelmente se apresentaria também na produção acadêmico-política.

Em texto datado de 2002, Zaia Brandão (2002, p. 47) já problematizava o apelo à interdisciplinaridade. Referindo-se ao campo da educação, alertava para

161 Há muitas outras inquietações de estudiosos quanto à qualidade da educação jurídica. Veja, por exemplo, a discussão relativa aos mestrados profissionais (e a forma como foram regulamentados) em Chiarello (2005), ou quanto à avaliação do ensino jurídico no Brasil, em Chiarello (2007). Susana Mesquita Barbosa (2007, p. 107) discorre sobre a dificuldade no reconhecimento da linha epistemológica das obras de referência no processo de educação: “Ora, se retomarmos o método cartesiano e os outros métodos racionalistas, lembrar-nos-emos que para que seja realizada uma escolha – uma eleição – é preciso que aquele que escolhe tenha o mínimo de conhecimento possível sobre os diversos tipos de objeto. Perceba-se, não estamos falando da construção do conhecimento científico, ainda. Estamos apenas trabalhando com a identificação dos conhecimentos científicos e com o ‘método de separação’ entre as diversas correntes de entendimento. Como o estudante pode, por si só, descobrir ou identificar a linha epistemológica de determinada obra se não possui um panorama geral, ou seja, uma acepção precisa do quadro de referências existentes e se não se apropriou deste conhecimento”.

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o risco de “uma costura eclética e incongruente de perspectivas disciplinares distintas”:

Estimulados, quer pelas exigências do próprio objeto (educação), quer pelas mutações do campo científico (flexibilização das fronteiras disciplinares) parece-me que temos corrido o risco de, sob o rótulo da interdisciplinaridade, estar multiplicando práticas de pesquisa pouco rigorosas. (BRANDÃO, 2002, p. 47).

No campo específico da Ciência do Direito, a inquietação se dá porque esse “novo” ponto de partida epistemológico (interdisciplinaridade) exigirá do cientista a necessidade de uma teorização mais ampla do fenômeno jurídico, com um nível bem mais elevado de abstração – precisará lidar com categorias e conceitos políticos que tendem a adquirir maiores graus de refinamento e precisão a partir das contribuições oriundas de disciplinas como a Teoria Política, por exemplo.

Além de ter de demonstrar o domínio pleno do arcabouço teórico-jurídico específico de sua área de atuação, o cientista do Direito terá agora que articular os elementos desse arcabouço dentro de um quadro conceitual muito maior do aquele que sua disciplina abordava.

Assim, ainda que não conheça muito bem nem todas as teorias do Direito terão que apropriar-se de concepções políticas complexas e muitas vezes conflitantes. Não bastará que domine substancialmente conceitos jurídicos – terá que relacioná-los com conceitos políticos, cuja característica predominante é a subjetividade.

Não se trata, neste novo contexto, de construir um discurso solitário ou um monólogo conceitual com seus pares no Direito, mas sim de uma produção teórica inserida num verdadeiro debate plural: o da discussão político-jurídica, em que da dúvida de um nasce a origem do conceito de outro (e que por sua vez poderá ser refutado pela argumentação de um terceiro).

O problema é que muito raramente o cientista do Direito domina termos e temas elementares de política necessários para a discussão de problemas teóricos relevantes (termos ambíguos e imprecisos como democracia, liberdade, igualdade, justiça), de modo que a questão não se resolve somente no âmbito do método, por conter um problema prévio de “conteúdo” (ou da falta dele).

Recorrendo à sistematização e ilustrando o problema com temáticas pertinentes, o cientista do Direito precisaria: (I) dominar o conteúdo dos conceitos políticos (o que é soberania popular?); (II) articulá-lo a ponto de compreender concepções da Política (qual a relação entre soberania popular

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e representação popular?); (III) perceber como as articulações teóricas desses elementos produzem teorias conflitantes (poder do povo ou uma mera ficção?); (IV) adequar esse arcabouço ao conhecimento adquirido previamente com os estudos jurídicos (soberania jurídica estatal); e só então (V) esboçar tentativas de teorização que inter-relacionem as temáticas do Direito e da Política (em que medida o conceito jurídico de cidadania representa o poder do povo no Estado?)162.

Face à árdua exigência cognitiva, o resultado, em termos de produção acadêmica político-jurídica a partir dessa exigência reflexiva gera algumas inquietações: considerando um quadro atual de conhecimento “mecanicista”163 do Direito, que tipo de texto político-jurídico será construído? Afinal, seja como for, todo esse contexto abstrato/reflexivo repercutirá na prática concreta através da produção e publicação de artigos, dissertações, teses, livros didáticos etc.

A pergunta formulada no parágrafo anterior tem caráter retórico, mas presume-se que não se espera dessa nova produção interdisciplinar meros comentários políticos a textos jurídicos, nem apenas o simples uso de um vocabulário específico ou de referência à literatura clássica. O que se espera são tentativas eficazes de discutir problemas teóricos relevantes para a vida em sociedade, seja qual for o enfoque dado164.

Neste novo contexto, além de aprofundar-se nos conceitos contidos no comando normativo (e mesmo nas interpretações do ordenamento que os agregam), o cientista do Direito ver-se-á tentado a produzir intelectualmente com elementos da Política, lidando com teses e teorias cujos raciocínios e conclusões ainda não estão plenamente dominados e internalizados. E relacionar duas áreas do saber não assegura uma prática interdisciplinar consistente e produtiva.

Em última análise, o novo problema é que a interdisciplinaridade traz consigo a questão do contraste entre superficialidade do conhecimento entre duas áreas do saber (Política e Direito) e o aprofundamento em uma dessas áreas; e a questão muitas vezes é pouco discutida, quando não negligenciada totalmente.

162 Na prática, não se trata exatamente de dominar “dois pacotes de saber” para juntá-los depois num “terceiro”. A própria pesquisa já conta com um caráter multidisciplinar porque encontra sobreposição dos objetos de conhecimento, ou seja, conexões intrínsecas entre política e direito.163 Não entraremos na discussão do mérito, mas o termo “mecanicista” remete à ideia de que o estudioso do direito estaria mais para um operador técnico dos textos legais do que um operador das relações sociais.164 É certo que existem conceitos que ganham tamanha força histórica devido à aceitação de seus significados que não precisam ser explicitados. Como exemplos desse tipo de conceitos: “materialismo histórico” (Marx); “hegemonia” (Gramsci); “liberdade dos modernos” (Benjamin Constant); “paradigma distributivo” (John Rawls); “reconhecimento” (Alex Honneth); “princípio da distinção” (Bernard Manin).

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Assim, se nossa interpretação da situação está correta, temos um pano-rama em que a junção plena dessas duas qualidades desejáveis – amplitude de abordagem e profundidade – figura apenas no plano do ideal.

É bem verdade que essa visão dos efeitos da aplicação prática da interdisciplinaridade soa um tanto quanto pessimista e até apologética. Trata-se, no entanto, de uma hipótese que, desenhada nesses moldes, permite especular sobre o futuro da produção acadêmica e agir no sentido de estabelecer uma espécie de blindagem contra a subutilização teórico-conceitual expressa em forma de superficialidade textual.

Evolui-se, então, ao apontamento de alguns equívocos já conhecidos (e ainda cometidos) acerca de questões conceituais e das teorizações político--jurídicas.

2. QUESTÕES CONCEITUAIS

2.1. UM PRIMEIRO ESBOÇO

Do ponto de vista analítico, a inteligibilidade das ideias político-jurídicas depende de alguma racionalidade, disciplina, rigor de análise e de algum compromisso com a objetividade no sentido de atribuir aos conceitos um significado técnico.

A discussão acerca dos conceitos não pode ser subestimada como se se tratasse de mera questão terminológica. Em grande parte das vezes, somente um enquadramento conceitual correto pode representar a essência de uma teoria. Para que isso seja feito de modo apropriado é necessário que se aplique certo rigor e racionalidade na construção da pesquisa e da produção acadêmica. Na prática, muito dos problemas da superficialidade dos textos podem advir da falta de observância na utilização dos conceitos165.

Merece também atenção a falta de univocidade dos termos – principalmente os políticos. Norberto Bobbio (2008) discorre sobre o problema:

[...] como da circunstância de não existir até hoje uma ciência política tão rigorosa que tenha conseguido determinar e impor, de modo unívoco

165 Basta uma rápida olhada no debate entre os teóricos contemporâneos da justiça social Alex Honneth e Nancy Frasier: os termos-chave “reconhecimento” e “redistribuição” figuram no cerne da questão e marcam o lugar preciso para uma diferença decisiva entre as abordagens propostas pelos autores. Dirá Honneth (2003, p. 95): “Qual das línguas conceituais ligadas aos respectivos termos é mais adequada para reconstruir de forma consistente e justificar as demandas políticas [...] no quadro de uma teoria social crítica?” (tradução nossa).

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e universalmente aceito, o significado dos termos habitualmente mais utilizados. A maior parte destes termos é derivada da linguagem comum e conserva a fluidez e a incerteza dos confins. Da mesma forma, os termos que adquiriram um significado técnico através da elaboração daqueles que usam a linguagem política para fins teóricos estão entrando continuamente na linguagem da luta política do dia-a-dia, que por sua vez é combatida, não o esqueçamos, em grande parte com a arma da palavra, e sofrem variações e transposições de sentido, intencionais e não-intencionais, muitas vezes relevantes (BOBBIO, 2008, p. 01, grifo nosso).

A título de exemplo da problemática no vocabulário político, quase sempre um termo precisa receber um adjetivo que lhe qualifique e lhe forneça alguma compreensão. Assim é com a noção de liberdade “negativa”166 ou com todos os atributos já dedicados ao termo democracia (liberal, proletária, minimalista, plebiscitária etc.), o que inclusive levou Robert Dahl (2012, p. 03) a afirmar que “‘democracia’ [...] não é tanto um termo de significado restrito e específico, quanto um vago endosso de uma ideia popular”.

Outra questão que preocupa é a ausência de atenção para a ocorrência da mutabilidade histórica do conceito. Aqui, a ideia é simples e óbvia: um conceito muda de conteúdo. Basta a afirmação de Jaime Pinsky (2005, p. 09) acerca do conceito de cidadania: “cidadania não é uma definição estanque, mas um conceito histórico, o que significa que seu sentido varia no tempo e no espaço”. No mesmo sentido, a concepção que temos de democracia hoje não é a mesma que se tinha em Atenas. Para citar Macpherson (1966):

Democracy used to be a bad word. Everybody who was anybody knew that democracy, in its original sense of rule by the people or government in accordance with the will of the bulk of the people, would be a bad thing – fatal to individual freedom and to all graces of civilized living. That was the position taken by pretty nearly all men of intelligence from the earliest historical times down to

166 O termo foi cunhado por Isaiah Berlin em seu clássico ensaio de 1958 (2002), intitulado Dois conceitos de liberdade.

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about a hundred years ago. Then, within fifty years, democracy became a good thing167. (MACPHERSON, 1966, p. 01).

Assim, qualquer afirmação quanto a conceitos políticos absolutos deve ser vista com cuidado, pois as conceituações não surgem alheias ao seu tempo histórico.

Problema diverso é quanto aos diferentes níveis de complexidade que se pode atribuir a alguns conceitos. Como exemplo, tome-se um conceito jurídico (aparentemente mais simples do que um conceito político). Supondo-se que a expressão “norma jurídica” figure num texto com a conotação de “uma manifestação de poder” e, noutro, meramente como “regra”, parece haver maior complexidade na primeira afirmação em detrimento da simplicidade da segunda, pois a primeira remete à ideia de que “quem produz uma norma exerce um ato de poder”, enquanto a segunda afirmação soa até inocente ao vislumbrar-se no vocábulo apenas a ideia de “uma regulamentação de caráter geral”.

Poder-se-ia ainda tomar o conceito “norma jurídica” caracterizando-o como “gênero” que alberga, como uma das “espécies”, as regras, e, como outra, os princípios. O que importa notar são os graus diversos de aprofundamento conceitual.

Destaca-se ainda que os conceitos podem sofrer diferentes tipos de abordagem – ora políticas, ora jurídicas. Para ilustrar, o conceito de “povo”, que poderia ser problematizado como “ícone” (MULLER, 2009) ou como mero conceito jurídico (KELSEN, 2005); poder-se-ia, ainda, perquirir sobre sua invenção, como em Morgan (1989), ou questionar a racionalidade do próprio cidadão, como fez Schumpetter (1961).

2.2. UMA COISA É O QUE É E NÃO OUTRA!

A confusão entre conceitos também tem sido preocupação de vários autores. Só para citar alguns, o filósofo Isaiah Berlin (2002) já dizia que “cada coisa é o que é: liberdade é liberdade, não é igualdade, ou equidade, ou justiça, ou cultura, ou felicidade humana, ou uma consciência tranquila”. Por seu turno, Álvaro de Vita (2000, p. 05) lecionou que “Democracia e Justiça têm ambas

167 “Democracia costumava ser um palavrão. Todo mundo que foi ‘alguém’ sabia que a democracia, em seu sentido original de governo pelo povo ou do governo de acordo com a vontade da maioria, seria uma coisa ruim – fatal para a liberdade individual e de todas as graças da vida civilizada. Essa foi a posição assumida por quase todos os homens de inteligência, desde os primeiros tempos históricos para cerca de uma centena de anos atrás. Então, em 50 anos, a democracia tornou-se uma coisa boa” (MACPHERSON, 1966, p. 01, tradução nossa).

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valor intrínseco, e não são redutíveis uma à outra”, enquanto Cícero Araújo (2002, p. 75) afirmou que “A distinção entre democracia e justiça é pertinente”.

As assertivas servem para alertar que não obstante existam certas dificuldades de conceituação (falta de univocidade, mutabilidade, múltiplos níveis de elaboração), deve-se afastar qualquer banalização conceitual no sentido de desgastar um termo por inserir nele quaisquer conteúdos. Assim, o termo cidadania não significa “distribuição de renda”, nem é sinônimo de “diminuição das desigualdades materiais”. Algumas acepções não se sustentam em nível conceitual (embora seja plenamente defensável atribuir algumas “funções” à noção de cidadania).

2.3. OS CONCEITOS NÃO NASCEM DO NOSSO TEXTO

Pelo menos essa é a regra. O conhecimento filosófico e teórico já produzido na literatura nos fornece muitas vantagens quanto às conceituações. Ainda que permaneçam em nível abstrato, trata-se de um tipo de conhecimento que só a história pretérita pode ensinar, sendo útil do ponto de vista de uma produção acadêmico-científica por apresentar algum suporte para novas teorizações168.

Nesse sentido, a criação de novas denominações utilizadas para designar velhas práticas e crenças do mundo político-jurídico podem ser apenas redundâncias que não precisam ser consideradas uma necessidade real. A melhor lição sobre o assunto talvez seja a aplicação da “regra da parcimônia”, conhecida como “navalha de Ockham”, que diz que os conceitos não devem se multiplicar além do necessário169.

2.4. VALIDADE DO CONCEITO E A FALHA NA SUA ARTICULAÇÃO

É possível que um conceito esteja tão bem inserido em um texto acadêmico que seja considerado um conceito objetivo. Todavia, ainda que isso resolva o problema quanto à subjetividade do conteúdo em si, a mera definição conceitual não basta para o desenvolvimento de um raciocínio coerente: também é necessária a organicidade desses conceitos na formulação teórica do pensador e a apresentação dos pressupostos filosóficos considerados, demonstrando-se o “fio condutor” que dá sentido às definições e teorias.

168 É plenamente possível – e até bem provável – que não seja preciso a reconstrução histórico-teórica do conceito. Mas ao menos a referência a algum conteúdo sobre o termo parece ser fundamental para a correta transmissão da ideia. 169 A “Navalha de Ockham” é um princípio lógico atribuído ao lógico e frade franciscano inglês Guilherme de Ockham (século XIV).

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A falta de articulação teórica acusa a deficiência em levar a cabo uma ideia em potencial. Por vezes, conhecem-se os conceitos, mas ao relacioná-los a outros não se os articula devidamente, culminando num texto composto por substantivas contradições internas, sem qualquer unidade lógica. Embora se tenha conceitos objetivamente construídos, cujas definições estão bem contornadas, permanece a subjetividade do texto como um todo, prejudicando a objetividade da mensagem.

2.5. CONCEITOS JURÍDICOS, POLÍTICOS, POLÍTICO-JURÍDICOS E JURÍDICO-POLÍTICOS

Relacionando conteúdos conceituais e métodos de abordagem, pode-se dizer, sucintamente, que o Direito refere-se ao conjunto de leis que regulam as relações sociais. Em termos de disciplinas, a Ciência Jurídica é a área que estuda esse ordenamento; a Filosofia do Direito, o campo em que se especula sobre a justiça desse ordenamento etc. Já a política refere-se à vida coletiva de um grupo de homens civilizados. Quanto às disciplinas, a Teoria Política se encarrega das ideias que levaram a essa organização; a Ciência Política, das instituições dessa organização etc.170.

Entretanto, comparando todos esses conteúdos, notamos que na Ciência Jurídica os conceitos tornam-se mais definidos e objetivos por estarem inseridos num texto normativo, que por sua vez remete a um ordenamento jurídico específico, “bastando”, assim, interpretá-los. Já nos escritos políticos, os conceitos tendem a apresentar maior subjetividade e daí a necessidade de estabelecer os contornos de seus conteúdos. Por isso, fala-se em conceitos “jurídicos” e conceitos “políticos”.

Alguns termos são ser estudados por duas áreas de conhecimento (Ciência Jurídica e Ciência Política, por exemplo), pois seu conteúdo interessa a ambas. Todavia, cada área aborda o conteúdo por uma perspectiva peculiar. Situando-se na zona de interseção entre Direito e Política, os conceitos são chamados jurídico-políticos e/ou político-jurídicos, a depender da ênfase que se dá ao tema. Um exemplo pode ilustrar melhor a situação.

Tomando os termos Constitucionalismo e Constituição, teríamos o primeiro como um fenômeno político, estudado pela Ciência/Teoria Política, e o segundo como um fenômeno jurídico, estudado pela Ciência Jurídica. Assim

170 De acordo com Abbagnano (2007, p. 904), política é entendida como “[…] o conjunto de atividades necessárias ao governo de um país que pressupõem alguns elementos essenciais, sem os quais não pode haver governo. Um desses elementos é a autoridade política que, num Estado, comporta a existência de um poder estabilizado e institucional com a pretensão de obediência incondicional por parte dos cidadãos”.

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seria porque, antes da Constituição, não haveria ainda o “jurídico”, ou seja, a Ciência Jurídica não poderia explicar o “poder originário”, por exemplo, através das regras de competência.

Contudo, como esses termos estão na zona de interseção, interessando a duas áreas do saber, consideramo-los ora como conceitos jurídico-políticos (predominância do estudo através do Direito), ora como conceitos político-jurídicos (predileção pelo estudo através da perspectiva política)171.

Outra afirmação se mostra pertinente para evidenciar a diferença quanto aos fins desejados por cada método de estudo e não negar-lhes a especificidade: embora a distinção entre disciplinas paire sempre sob uma linha tênue, ao cotejar Ciência Jurídica e Ciência Política temos que a primeira contém o elemento da “decidibilidade”172 – sendo norteada para prescrever um comportamento –, enquanto a segunda tende a prezar mais pela descrição das instituições políticas.

3. TEORIZAÇÕES POLÍTICO-JURÍDICAS

Não obstante teorias políticas serem, por vezes, formulações passíveis de várias leituras (até mesmo contraditórias), a pluralidade de sentidos – assim como ocorre com os conceitos políticos – não deve impedir que o intérprete reconheça algumas questões centrais que as identifiquem, servindo-lhe como marco teórico ou como referencial para novas e autônomas elaborações.

Por isso, teorizar acerca de ideias político-jurídicas requer reconheci-mento e algum domínio prévio das tradições intelectuais clássicas. Afinal, só são consideradas assim, como clássicas, porque produziram algum conheci-mento de caráter duradouro, que dialoga com o passado e que não se esgota no presente, sobrevivendo ao crível do tempo.

A afirmativa consubstancia-se na constatação de que estudiosos e teó-ricos contemporâneos do Direito e da Política, ao desenvolverem suas próprias concepções sobre os fenômenos em pauta, utilizam-se do arcabouço teórico--conceitual já produzido por outros autores desse porte intelectual.

Todavia, note-se que tal consideração não deve ser feita somente pelo valor intrínseco que as tradições carregam – no sentido de referencial que per-dura no tempo –, mas também pela oportunidade de apreender com os debates que surgiram em decorrência dessas propostas teóricas, e que ainda se multipli-cam até os dias de hoje.

Entretanto, se essa abordagem é necessária, ainda não é suficiente. A ideia é que se identifique e investigue os problemas teóricos em questão e não

171 A própria divisão acadêmica entre Teoria Política, Ciência Política e Teoria do Direito perde sentido diante da interdisciplinaridade do assunto “Constitucionalismo/Constituição”.172 Consultar a respeito a obra de Tércio Sampaio Ferraz Júnior (FERRAZ JR, 2001).

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propriamente “os autores e as teorias”. Afinal, não presta à academia mera ex-posição de caráter honorífico de alguns deles: é necessário serem questionados e confrontados com outros que lhe sejam contrapostos num contexto específico.

Estudos prévios devem ser conhecidos e reconhecidos, mas é impres-cindível que se formule algo minimamente adequado ao contexto espacial e temporal real das situações problemáticas, sempre com domínio teórico-con-ceitual, objetividade, profundidade e poder de articulação.

3.1. FILOSOFIA E TEORIA POLÍTICAS OU IDEOLOGIAS POLÍTICAS?

No debate contemporâneo que se orienta pela interdisciplinaridade entre Direito e Política sempre estarão em discussão termos como poder, Estado, democracia, cidadania e outros correlatos, imprimindo perspectivas políticas às quais se formulam e desenvolvem concepções de mundo e padrões de pensamento mais ou menos identificáveis. Assim, a ideologia, como concepção de mundo, seja ela qual for, está intrinsecamente relacionada à produção acadêmica.

É evidente que a sensibilidade teórica e política – e, claro, ideológica – influencia a posição de cada um na academia, principalmente quando são abordados temas mais controvertidos. Assim, a luta político-ideológica não acontece somente no debate propriamente político, mas também no discurso teórico, ainda que muitas vezes de forma implícita173.

Se assim é, como inserir no estudo do Direito – que por si só já é complexo – correntes teóricas da tradição do pensamento político se a maioria delas envolve também uma prática e uma ideologia?

Ora, em geral, não há nenhum problema nas obras elaboradas que visam justificar certas correntes político-ideológicas. A questão é saber em que medida essa postura prejudica a compreensão objetiva das ideias em discussão, já que quase sempre o estudioso se encontra obrigado a navegar entre o compromisso com a isenção valorativa e suas inclinações políticas174.

Reconhecendo a dificuldade em trabalhar com conceitos e correntes teórico-políticas, Cícero Araújo (2002), ao abordar o liberalismo, aponta uma direção:

“Liberalismo”, sem dúvida, é um termo muito gené-rico [...]. A dificuldade maior talvez resida no fato de

173 A própria Teoria Política abriga ilimitado pluralismo de perspectivas ideológicas e visões de mundo.174 É a conhecida polêmica sobre a possibilidade de neutralidade axiológica por parte do observador face ao objeto abordado. Consultar Max Weber (1993).

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que o liberalismo não é apenas uma corrente teórica da tradição do pensamento moderno (isto é, da filosofia e teoria política), mas é também uma prática e uma ideo-logia políticas, cujo teor varia de um lugar para outro e de um momento histórico para outro. Para diminuir a vagueza do termo, vamos tentar tratá-lo mais do ponto de vista da filosofia e teoria políticas do que do ponto de vista da prática e da ideologia políti-cas, embora tenhamos de adiantar que nem sem-pre será possível preservar essa fronteira com todo rigor. [...] Isso implica enfrentar a questão de um patamar mais abstrato e conceitual; o que não deixa de ter seu interesse prático, se esse patamar nos ajudar a entender melhor o significado das práticas políticas associadas à tradição liberal e suas heranças contem-porâneas (ARAÚJO, 2002, p. 77, grifo nosso).

Na esteira do entendimento e da posição firmada pelo autor, nota-se a possibilidade de compreensão dos principais debates do campo da Teoria Polí-tica e do Direito sem ser através de um ponto de vista político-ideológico extre-mista, como, por exemplo, a polarização ideológica entre liberais e marxistas que por vezes parece um diálogo de surdos.

Indo direto ao ponto: pouco importa se o texto produzido “é de esquer-da”, “de centro”, ou “de direita”. O fundamental é reconhecer que as concep-ções também são conceitos relacionais. Consequência inexorável: qualquer um deles pode ser trabalhado somente se articulado com o outro – e para que isso aconteça, algum substrato conceitual deve ser fornecido. Percebe-se logo que não se escapa da questão conceitual se se quer discutir de modo sério conceitos políticos e teorizações com alto teor ideológico.

O argumento ora defendido é o de que, valendo-se de uma abordagem direcionada para o estudo teórico-conceitual (um nível de abstração mais eleva-do) em detrimento daquele voltado para a militância (prática política concreta), quaisquer concepções político-ideológicas podem ser trabalhadas sem maiores problemas (como neoliberalismo, igualitarismo, welfarismo, libertarismo, co-munitarismo, multiculturalismo etc.). O único requisito talvez seja que se per-mita efetivamente um diálogo entre teses opostas e/ou conflitantes.

Ainda que a construção textual não possa abdicar de assumir alguma posição específica e controversa nesse debate e que em algum momento o teó-rico tenha que optar, por exemplo, por dar ênfase sobre “os limites do governo” (liberais) ou sobre “os limites da esfera privada” (socialistas, republicanistas),

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acredita-se que a produção acadêmica pode – e deve – resguardar-se da doutrinação político-ideológica pura e simples175.

Evidentemente, tentar esquivar-se do embate ideológico em assuntos que envolvem Política e Direito – mais propriamente a interpretação política do Direito – não é tarefa fácil. Isso porque certos autores carregam tamanha polêmica em torno de si que a simples presença de seus nomes num texto acadêmico é capaz de despertar as mais diversas reações dos interlocutores – desde uma convicta curiosidade acadêmica sobre o que se afirmará até mesmo à prévia preparação para uma contra-argumentação retórica. Seja como for, a indiferença a tais autores é exceção.

Na Filosofia Política, o nome de Karl Marx é com certeza o que desperta maior apreensão. Já na tradição da Ciência Jurídica, esse papel é reservado a Hans Kelsen. O que ambos têm em comum é que basta citá-los num texto acadêmico – não importa se para o bem ou para o mal – que posições ideológicas começam a tomar forma176.

Imagina-se que numa construção textual acadêmica em que tais nomes estejam inseridos não seja difícil a discussão encaminhar-se para a tal polari-zação ideológica a que nos referimos anteriormente, permanecendo o debate subteorizado, o que impossibilita dimensionar até mesmo se as contribuições teóricas podem ser confrontadas, analisando, sem demasiadas paixões, os pon-tos em que tais se distanciam ou se aproximam.

É plausível reforçar que nesse contexto, em que pese quaisquer convicções, deve primar-se por uma construção teórica em que se apresente fidedignamente as ideias das vertentes abordadas, estabelecendo um diálogo teórico de alto nível intelectual (sem fraturar esquemas interpretativos) em detrimento de apresentações superficiais que descaracterizam os argumentos de um dos oponentes para a vitória retórica do outro. A omissão ou a simplificação do rival pode até ser o método mais fácil de derrotá-lo, mas trata-se de desones-tidade intelectual177.

Por tudo o que foi dito, talvez o único consenso seja mesmo que há conflito. Resta àquele que o aborda, discuti-lo e teorizá-lo, até para não ficar refém de suas próprias ideias e convicções, isolando-se do debate na academia.

175 Não estamos aqui interessados em versões específicas dessas doutrinas, mas apenas no quadro macro que a uma certa distância se obtém delas.176 De uma maneira geral, a visão marxista defende a proeminência da economia sob outras relações sociais de modo que o Direito e o Estado funcionam como superestrutura enquanto aquela, economia, é sua infraestrutura. Numa perspectiva diversa, Kelsen coteja as dimensões filosófico-política e científico-jurídica sempre pensadas sob um viés estatal – e sem necessariamente vinculá-las à economia.177 Já dizia Montaigne (1592) que estamos sempre dispostos a atribuir aos escritos dos outros sentidos que favoreçam as nossas opiniões sedimentadas.

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4. O FUTURO DA PRODUÇÃO ACADÊMICA POLÍTICO-JURÍDICA

Nesse esforço reflexivo, identificou-se uma indesejada produção teórica político-jurídica no contexto da interdisciplinaridade. Resta fazer alguns apontamentos sobre o que efetivamente se considera desejável em termos de inter-relações entre Direito e Política.

Evidentemente que para ser considerada respeitável, uma produção político-jurídica não precisa conter uma tese inédita, completamente original e autônoma a ponto de causar algum alvoroço acadêmico. Contudo, requer-se ao menos que apresente argumentos ancorados em conceitos e teorias do Direito e da Política que permitam um diálogo inteligível entre teóricos. O nível de complexidade que a interdisciplinaridade implica, entretanto, é desafiador. Considerem-se alguns exemplos de abordagens políticas a conceitos que por vezes também são reconhecidos como jurídicos, apenas para ilustrar a situação.

Quanto à verdadeira participação do povo no poder, poder-se-ia (I) questionar os motivos das extensões e restrições do sufrágio ao longo da história, denunciados por Keyssar (voto como um direito natural?) e trabalhados por Przeworski (sufrágio concedido ou conquistado?); (II) analisar a representação dos partidos políticos, como em Hofstadter (representantes legítimos ou ilegítimos do povo?), e as condições necessárias para a ocorrência de competição eleitoral, como em Bartolini; (III) rever as concepções de responsiveness e accountability propostas por Przeworski (governo deve prestar contas a quem?); (IV) fornecer subsídios para a discussão sobre a corrupção dos governos, como em Posada-Carbó (governo corrupto versus povo virtuoso?); e, ainda, (V) trazer inquietações à apreensão da “aposta universalista” de O’Donnel, na qual o “agente” ultrapassa a definição de cidadão, mero eleitor.

Configura-se então uma situação que demanda esforço, dedicação, paciência, tempo e persistência. Numa produção político-jurídica é imprescindível certa entrega intelectual, pois é preciso aprender a formular boas perguntas, reconhecer a estrutura do argumento, colocar a discussão em base mais sólida, mastigar, digerir, exercitar as faculdades especulativas, meditar sobre o que é lido.

Ainda, é necessário procurar, pelo esforço da mente, resolver as questões que foram pensadas; ordenar e comparar as ideias propostas com outras criticadas; apontar vantagens que um texto agrega ao assunto; examinar suficientemente as obras para julgar com cuidado; e, somente depois, propor-se a formular algo novo – e já se preparando para aprofundar as próprias reflexões em resposta aos argumentos do outro.

É preciso ser realista: nem todos têm a pretensão de analisar conceitos e teorizar soluções nem mesmo para problemas previamente formulados.

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Daqueles que produziram textos político-jurídicos, supõe-se que boa parte nem tem muito apreço pelo que escreveu.

Embora descarte-se qualquer tipo de retrocesso da interdisciplinaridade entre Direito e Política e nem se cogite evitar uma abordagem política do fenômeno jurídico, convém registrar que o primeiro passo para evitar uma produção político-jurídica de baixa qualidade é a tomada de consciência da árdua tarefa que a interdisciplinaridade impõe – que só não é maior do que os méritos de sua inserção eficaz.

Parafraseando o subtítulo do livro de Salo de Carvalho (CARVALHO, 2013), Provocações úteis para orientadores e estudantes de Direito, entendemos que toda essa reflexão possa servir como uma “provocação útil para cientistas do direito” no contexto de uma nova safra de produção acadêmica, tratada aqui desde o início como “político-jurídica”.

CONCLUSÃO

Este artigo se insere no panorama acadêmico da interdisciplinaridade, uma realidade bem-vinda. Nesta, a abordagem política do Direito trata-se de uma convicção generalizada da qual compactuamos, pois entendemos que a absorção dos conceitos e teorias político-jurídicas é fundamental para aprimorar o próprio conhecimento do Direito, além de fornecer um nível mais elevado de compreensão intelectual acerca da realidade social.

Todavia, considerando a dificuldade de dominar a linguagem política e de articulá-la com o conhecimento jurídico, argumentamos que o domínio teórico de conceitos-chave da Política não pode – no contexto da interdisciplinaridade – estar pressuposto, bem como as teorizações políticas devem considerar seus componentes ideológicos intrínsecos sem sobrepor a ideologia à produção teórica.

Vislumbrando a hipótese de que deficiências teórico-conceituais pudessem comprometer a qualidade dos textos, evidenciamos alguns equívocos quanto ao tratamento dado aos conceitos e registramos algumas considerações sobre a teorização política. Interfaces entre Direito e Política poderão ser exploradas, mas desde que a literatura político-jurídica seja examinada com afinco e substancialmente incorporada ao trabalho de aproveitamento expresso nos textos acadêmicos. Nesse sentido, somos a favor do ecletismo, mas contra a inconsistência teórica na pesquisa e produção político-jurídica.

A proposta de precisão conceitual provoca mudanças nos eixos filosófico, teórico e político da questão. Filosófico porque indica uma concepção objetiva dos conceitos que não determina seu conteúdo (apenas o esclarece); teórico porque permite a formulação de complexos argumentativos coesos e

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coerentes com os conceitos centrais; político porque promove a função social da universidade, que é o aprimoramento do saber em prol da coletividade.

Por fim, estimular e consolidar a reflexão (preciso dizer “crítica”?) a respeito das relações entre Direito e Política é importante porque nos permite enfrentar os grandes desafios e conflitos típicos de uma sociedade – cidadãos como um corpo coletivo – moderna e pluralista. E, para não ficar na superficia-lidade dessa afirmação generalista, vale lembrar que “moderna” não significa “melhor”, e que “pluralista” é um eufemismo para dizer que há discordância quanto a valores nessa sociedade. Cabe a nós interpretá-la e teorizá-la, valendo--nos de estudos jurídicos e políticos de uma maneira minimamente consistente.

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FUNÇÃO SOCIAL DA EDUCAÇÃO: CONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO ÉTICO COMO DISPOSIÇÃO DE CARÁTER EM TEMOS DE DESENVOLVIMENTO

ECONÔMICO CENTRALIZADO

Fernando Rodrigues de Almeida178

RESUMO

As instituições liberais necessitam de meios para reduzir o risco de o capital perder seu valor axiológico como mercadoria. Nesse sentido, não apenas é suficiente a utilização de aparelhos ideológicos do Estado e a manutenção da força de trabalho. Na verdade, do modo em que a educação passa a ser também comercializada por meio da iniciativa privada, novos meios de mercantilização e redução de riscos são criados. A ideia de meritocracia baseada na capacitação de estudantes colocada como método de preservação da estrutura liberal deixa de lado a função da educação de, por meio da cultura, desenvolver a disposição de caráter do ente social inserindo-o no ideal de ação virtuosa, mas, pelo contrário, comercializa o ser humano como investimento de força de trabalho, não mais deixando com que o ente social seja livre para vender sua força e, dessa forma dificultando o entendimento sistêmico da batalha de classes. Com esse intuito, por meio do método hipotético-dedutivo, baseado em analise critica bibliográfica desenvolveremos a ideia da educação como promoção do ser humano e não apenas como manutenção dos baixos riscos das instituições liberais.

Palavras chave: Filosofia do direto; Meritocracia; Educação; Estado Liberal.

SUMÁRIO: Introdução. 1. A educação sob o discurso meritocrático do lucro. 2. A ética aristotélica como supedâneo da construção do ser. 3. A educação como instrumento da incorporação da virtude ética; conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO

A educação ocidental tem como desafio a formação do cidadão para uma participação democrática. A visão política da educação não é apenas um objeto de estudo sociológico, porém é inserida em um discurso de instrumentalização da dignidade do ser humano.

A democracia moderna exige a participação do cidadão para combater os problemas da representatividade, que, em função da pluralidade, dificulta

178 Mestrando do Programa de Mestrado em Direito do Centro Universitário Eurípides de Marília e Bolsista CAPES/PROSUP.

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o poder legislativo e a administração pública da finalidade de garantidor de direitos.

A direção política sobre os entes sociais deve estar muito mais próxima da ontologia do que a observação da sociedade de forma abstraída do ente social e apenas em noções de grupo, baseados no pluripartidarismo.

Justamente nesse ponto que encontramos a necessidade da eticidade no indivíduo social e, por óbvio, é inegável a necessidade do Estado em obrigar-se a colaborar na função educacional da sociedade, visando a melhor estrutura social e promoção do ser nos modelos de Estado que vivemos.

O Estado não pode mais se concentrar na educação de forma apenas técnica, porém a formação do ente social deve compreender a observância da subjetividade, promovendo no ser o desenvolvimento de competências humanas, para isso a ética deve estar estritamente ligada com a formação do indivíduo.

1. A EDUCAÇÃO SOB O DISCURSO MERITOCRÁTICO DO LUCRO

No modelo econômico em que vivemos, o desenvolvimento econômico é tido como supedâneo da dignidade humana. Não poderia ser de outra forma, visto que, conquanto as políticas públicas regem-se por um discurso de social democracia, implementando e garantindo direitos sociais, a estrutura econômica capitalista não se afasta da necessidade de bem estar.

Com o crescimento da classe média, ou melhor, com o poder de compra se expandindo entre todas as linhas de renda da população brasileira, a busca pelo desenvolvimento econômico pessoal é grande.

A classe trabalhadora busca novos modos de uma ascensão em termos de bens, a preocupação com a qualificação torna-se ponto central da competição sistêmica de espaço no mercado de trabalho em searas condizentes com a necessidade de remuneração de acordo com os anseios do crescimento econômico da classe trabalhadora.

Como toda forma capitalista de mercado há necessidade de força de trabalho, porém as lutas de classe tomaram uma forma diversa de estrutura com a ascensão do poder de compra. O discurso meritocrático do lucro torna-se célula de procura. A classe trabalhadora passa a procurar meios de, utilizando-se dos princípios da dignidade humana e da função social da iniciativa privada, procurar meios para o crescimento econômico por meio de remuneração.

Diferente das teorias marxistas clássicas, a luta de classes, na atualidade, rege-se pela meritocracia do proletariado. Garantido os direitos sociais que o Estado moderno oferece, a força de trabalho encontra meios de erição de remuneração, insistimos, por meio do mérito. Nesse ponto a educação

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mais qualificada é um dos instrumentos mais importantes para o mérito do crescimento econômico meritocrático.

O princípio da social democracia ainda se funda no liberalismo, a liberdade à iniciativa privada é uma garantia constitucional, mesmo com a necessidade do Estado gerar educação gratuita, a iniciativa privada tem meios de fornecer educação de forma que gere lucro.

Nesse sentido, a iniciativa privada vê a possibilidade de investir, de forma a gerar lucro, em meios de educação e, como forma de manutenção de estrutura capitalista, cria meios para que o método meritocrático gere ao mesmo tempo força de trabalho qualificada e setorização de trabalho necessária para o desenvolvimento econômico da potência capitalista.

O ensino técnico é um grande exemplo dessa empreitada. A possibilidade de criar força de trabalho de base, mas qualificando e melhorando as condições salariais de seus empregados, não exaure determinados campos de trabalho, mas ao mesmo tempo, incentiva o mérito do trabalhador na procura de salários maiores.

Escolas particulares de ensino médio e fundamental, cursos de capacitação, ensino técnico, ensino superior fornecido pela iniciativa privada é uma realidade cada vez maior em nosso país, a estrutura capitalista em meio a uma democracia liberal com foco nos direitos sociais, viu a oportunidade de geração de renda na produção de capacitação de trabalho com contraponto do mérito natural do capitalismo, agora, atingindo o proletariado de todas as camadas econômicas.

Ao dizer isso, estamos analisando a necessidade de formação de capital prático. Em tempos que o próprio dinheiro é negociado como mercadoria – um conceito que certamente deixaria Marx confuso – a ganância de riquezas em moeda é um enigma que não é vencido pelo simples discurso de necessidade de incentivo à educação. Para que isso faça sentido aos olhos daqueles que negociam a moeda como um produto palpável e não mais ficto de troca, é necessário um discurso baseado na pessoa, no conceito metafísico de pessoa.

Para isso, necessitamos entender o conceito de lucro na modernidade, assim necessitamos observar como a produção de capital acontece para entendermos os efeitos da centralização econômica como base da necessidade educacional.

O conceito de lucro, por mais intrigante que seja, deixou de ser a vantagem da troca, ou melhor, deixou de ser o meio moralmente aceito de injustiça axiológica de bens de consumo, em uma teoria clássica, a moeda não teria como ser vista senão em um prisma de ficção de troca.

O capitalista dirá talvez que empregou seu dinheiro na intenção de multiplicá-lo; mas o inferno está cheio de boas intenções. O capitalista poderia

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muito bem ter a intenção de fazer dinheiro sem produzir. Ele ameaça e jura que não o pagarão mais, que ao invés de fabricar ele próprio suas mercadorias as comprará doravante prontas no mercado. Mas se todos os capitalistas fizessem o mesmo, como encontraria ele mercadorias no mercado? Ele não pode comer seu dinheiro (MARX, 1982, p. 37 – grifo nosso).

Na análise clássica do lucro, como é possível observar, a produção de capital ainda como uma necessidade de vantagem sobre a moeda como forma de troca por mercadorias.

Pois bem, para uma análise do tratamento do dinheiro como mercadoria em si, na forma de juros (seja por investimentos ou por acumulação sobre o justo meio) podemos entender o capital como um fetiche econômico, uma necessidade de produção de riquezas desenfreadas. Nesse sentido, Chemiaténkov (1985, p. 95):

Ao converter em fetiche o capital que proporciona juro, a Economia Política clássica burguesa chega ao termo da sua desintegração e, simultaneamente, dá início a todas as modernas teorias não marxistas do lucro. Depois de Böhm-Bawerk, as categorias de juro e lucro na Economia Política burguesa viram-se definitivamente ligadas numa sucessão diretamente oposta à sua interconexão na realidade viva e à teoria autenticamente científica. O critério do juro como o verdadeiro fruto do capital, como algo originário, e o do lucro... como simples acessório ou aditamento acrescentado no processo de reprodução adquiriu o caráter de dogma indiscutível.

Nas teorias socialistas clássicas temos o questionamento do capital em desfavor econômico do proletariado, ou seja, a ideia de força de trabalho tida como o crédito antecipado da mercadoria fornecida pelo trabalhador livre, em troca de remuneração em espécie, remuneração essa que integra os meios de produção e é vendida acima do valor destes meios.

Até tal abordagem, temos o questionamento da injustiça da troca, vez que, por ser ficto, a moeda deveria representar uma troca, e trocas são feitas por bens de mesma natureza axiológica, daí a exploração.

No entanto, a axiologia moderna não repousa mais na mercadoria, mas no próprio dinheiro, o valor dado a ficção da moeda é o que difere a substituição do escambo por, agora, uma valorização de moeda, na forma de mercadoria de troca.

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O tratamento da moeda como finalidade da negociação foi trazida pela necessidade natural do liberalismo de lidar com a falência inevitável. A instabilidade da natureza do meio capitalista trouxe a necessidade de adaptação de recursos de risco. Como é observado, a necessidade de gerar lucro pelo dinheiro ignora os prejuízos sociais que podem ser causados com a instabilidade das classes econômicas. A mercadoria da moeda deve ser multiplicada independente de seu modo, uma vez que, pouco importa o produto consumido, mas sim o desenvolvimento do capital lucrado, para que este possa gerar mais capital, não mais como um meio de troca, mas como um meio de gerar moeda.

A previsibilidade do futuro depende inversamente da rapidez do progresso técnico-científico e socioeconômico. Quando eram relativamente lentas as mudanças, típicas das fases iniciais do capitalismo, os patrões podiam-se guiar pela extrapolação das condições das condições existentes, pelo menos para o futuro previsível. Só interrompiam o curso tranquilo da vida económica factores (sic) externos casuais: guerras e calamidades. Com a transição da fase manufactureira (sic) de desenvolvimento da grande produção capitalista para a mecanizada formou-se o caráter cíclico da produção social. O aparecimento de crises fez vacilar a ideia de progresso estável e previsível da economia como tal. Na dinâmica dos ciclos e na sucessão das suas fases cresceu o papel das leis imanentes da reprodução capitalista. Na época da crise geral do capitalismo, o crescimento da instabilidade da economia, a ampliação da escala de atividade dos diferentes consórcios, a aparição da concorrência monopolista e a revolução científica e técnica converteram o problema da previsibilidade do futuro em importante problema da vida econômica da atividade dos empresários (CHEMIATÉNKOV, 1985, p. 110).

Como é possível perceber, a produção de capital está acima do modo como é produzido, o que significa que o discurso de necessidade de educação não é suficiente, tal discurso deve ser condizente com os fatores de risco da instabilidade que a axiologia dada ao dinheiro é passível de preocupação dos produtores. Nesse sentido, podemos observar que a ascensão do poder de compra coloca em risco a estabilidade do valor, no caso a axiologia da moeda, dessa forma é necessário criar formas de mérito da classe trabalhadora que não coloquem em risco a produção de capital.

A fórmula de fetiche do capital somada a ascensão do poder econômico desenvolve uma nova batalha de classes, qual seja, a busca por melhor poder de compra, uma vez que o proletariado deixa a condição de remuneração pela estrutura básica de vida, e de outro lado a necessidade da iniciativa privada de multiplicar seu ganho capital.

A vida social desintegra-se simultaneamente por um lado, numa totalidade de relações coisificadas, nascidas espontaneamente, (como o são

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todas as relações econômicas: nível dos preços, taxa de mais valia, taxa de lucro, etc.), isto é, relações onde os homens não têm outra significação que não seja a de coisas, e, por outro lado, numa totalidade de relações onde o homem se determina tão só quanto é oposto a uma coisa, isto é, onde é definido como sujeito. Tal é precisamente a relação jurídica. Tais são as suas duas formas fundamentais que originariamente se distinguem uma da outra, mas que ao mesmo tempo, se condicionam mutuamente e estão muito intimamente ligadas entre si. Deste modo o vínculo social, enraizado na produção, apresenta-se simultaneamente sob duas formas absurdas, por um lado, como valor de mercadoria e, por outro, como capacidade do homem para ser sujeito de direito (PASUKANIS, 1972, pp. 112-113).

O discurso da meritocracia é apenas a forma menos prejudicial de tratar a força de trabalho de forma ontológica sem perder a característica de sujeito de direito no meio econômico. A necessidade de o capital ser produzido para que a moeda tenha valor passível de negociação deve estabelecer meios de menor risco, os quais necessitam, hodiernamente, de incentivos de força de trabalho para que sejam mantidos.

A educação, por sua vez, é um meio de estruturação da classe trabalhadora, de modo que se é retirada a humanização da educação nada sobra senão um instrumento de diminuição de risco de capital futuro.

O Estado em sua finalidade de provedor e garantidor, independente das discussões políticas, quando falta com seu dever de provedor, a empresa, em sua finalidade de lucro, pode utilizar-se de recursos diversos e distribuição de malefícios para suprir a falta de políticas públicas e, consequentemente, manter o lucro e, mais ainda, exercitar a produção de capital como mercado. Vê-se que em questão de finalidade não é possível compreender a possibilidade do puro discurso de humanização da educação como promoção do ser humano ser mais forte que a manutenção do fetiche do capital.

A interpretação da sociedade como um todo é a interpretação do ente social como pessoa, a dignidade relativa a esta pessoa não depende apenas da promoção econômica desta, mas sim a interpretação de uma propriedade em si.

Educar tem a função básica de emancipar o ser, dentre suas funções, o crescimento intelectual e sua formação ética estão condicionadas a dignidade da pessoa humana.

Portanto, a humanização da educação é condição sine qua non do escopo do processo educacional, seja em qual for o nível de ensino. Entretanto, a necessidade de geração de lucro como garantia da iniciativa privada dá o foco da educação no desenvolvimento econômico meritocrático, dessa forma, não se pode falar em promoção do ser humano, mas sim em especificação do sujeito de direito garantido pela ordem jurídica em meio ao método de produção capitalista.

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O desafio aqui gerado é, dentro de um modelo de democracia liberal e suas organizações liberais, gerar a promoção do ser humano e, bem ou mal, manter a liberdade de capital, o antigo desafio ao lidarmos com o liberalismo frente a dignidade da pessoa humana.

Sob esse raciocínio e, necessariamente, sob a necessidade de garantir o desenvolvimento humano, resta observar como é possível o desenvolvimento econômico capitalista e o desenvolvimento econômico do proletariado, baseado em educação, sem substituir a construção ética da disposição de caráter, responsabilidade também do estado, pela meritocracia do lucro baseada no fetiche do capital dos detentores de meios de produção.

Para isso recorreremos à filosofia antiga, buscando uma base do desenvolvimento do ser e a assertiva do justo meio para a promoção do ser humano e a garantia do desenvolvimento econômico.

2. A ÉTICA ARISTOTÉLICA COMO SUPEDÂNEO DA CONSTRUÇÃO DO SER

Aristóteles, em seu conceito de construção da virtude ética como possibilidade racional do ser, continua sendo referência da construção do conceito ético ainda na modernidade. O conceito de ética em Aristóteles está envolto em um tratado de uma virtude moral, que define a ética como aquilo que tem por finalidade mostrar a possibilidade da felicidade.

Esta felicidade é colocada em um plano absoluto que só pode ser estimado e objetivado como aquela a reinar em um mundo da possibilidade seguida por meio de atividades virtuosas e vida contemplativa. Desta sorte, é justamente nesse sentido de “virtude” que buscaremos um norte ético.

Para que os atos humanos sigam uma virtude ética é necessário que sejam impulsionados por uma disposição de caráter ético, o qual só pode ser formado pelo hábito, não surgindo por natureza, logo, só com a educação e a repetição é que a razão humana tem o desejo natural de agir conforme a ética.

A excelência no resultado de qualquer ato, para a ética nicomachéia, está intimamente vinculada à virtude, sendo que toda virtude dá excelência a alguma coisa. É clarividente um mérito naquilo considerado virtuoso, por conseguinte, faz com que o desempenho da função dessa coisa seja satisfatório. No Homem, o que o faz bom e dá resultados positivos em suas funções são as disposições de caráter.

Traz-se a baila, finalmente, o conceito mater da ética de Aristóteles, a justa medida (justo-meio ou meio-termo), para justificar o mérito e o desempenho satisfatório intrínseco nas coisas munidas de excelência.

Divide-se, portanto, o meio-termo em duas partes, iniciando pelo meio-termo no objeto, que se digna naquilo que é equidistante entre os extremos,

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respeitando um critério lógico e matemático, que apresenta um caráter erga omnes. A seguir, define-se o meio-termo relativo a nós, que significa não ser excessivo ou escasso, contudo, não é comum a todos.

Por exemplo, se dez é muito e dois é pouco, toma-se o seis como meio termo da coisa, pois ultrapassa e é ultrapassado de modo igual; este meio termo ocorre segundo a proporção aritmética. O meio termo relativo a nós não deve ser concebido assim: com efeito, se alguém comer dez minas de peso é muito e duas é pouco, não é verdade que o treinamento prevalecerá seis minas, pois isto talvez seja pouco ou muito para quem receberá: para Mílon será pouco, para o principiante nos exercícios será muito (ZINGANO , 2008, p. 50).

O corpo de regras a priori de Kant é deixado de lado nesse ponto, uma vez que não se pode mensurar a justa medida por um conceito lógico e sim pelo contexto e ainda, ao trabalharmos com o conceito que pela educação e, consequentemente pela cultura, pode-se formar a eticidade no indivíduo, de forma que, mesmo os conceitos mais básicos do ser-humano podem ser debilitados por meio das ferramentas ideológicas do Estado e a produção de verdade das instituições liberais.

O atributo da virtude deve ser a busca da justa medida entre as paixões e as ações, ou seja, a virtude moral concernente a essas paixões e ações, que existem em excesso, carência ou justo-meio e é justamente este último que dará a excelência característica da virtude, que resultam no acerto e no louvor do agente moral.

Quero dizer a virtude moral, pois ela concerne a ações e emoções, nas quais há excesso, falta e meio termo. Por exemplo, é possível temer, ter arrojo, ter apetite encolerizar-se, ter piedade e, em geral, aprazer-se e afligir-se muito e pouco, e ambos de modo não adequado; o quando deve, a respeito de quais, relativamente a quem, com que fim e como deve é o meio termo e o melhor, o que justamente é a marca da virtude (ZINGANO, 2008, p. 50).

É possível errar de muitos modos enquanto acertar é algo particular do meio-termo, o que facilita o erro. O que é ainda mais certificado quando é posto que algumas ações, por si, obstam um meio-termo, por implicarem seu cerne a um extremo.

É o caso do assassinato, por exemplo, que se executado em sua “excelência”, visando que seu resultado seja perfeitamente satisfatório, estaremos diante de um crime ainda mais agravado por seu resultado, que provavelmente estará próximo da perfeição do intuito final, que é um extremo por si só. O assassinato que envolve o melhor resultado não atinge o justo-meio e sim um extremo ainda pior, que provavelmente dificultará muito a punição do agente do delito.

Podemos observar, em se tratando de disposições de caráter, que a justa medida é a diferenciação específica da virtude quanto aos vícios.

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Ademais, a virtude é, portanto, uma mediana relativa a nós que é determinada por um princípio racional próprio do ser humano dotado de sabedoria e prática. O meio termo entre dois extremos viciosos. O curioso na afirmação de Aristóteles (2007, [1106 b] p. 49) é que a “virtude é uma mediana; com referencia ao sumo bem (felicidade) e ao mais justo, é, porém, um extremo”.

Mas de que valeria a justa medida em apenas um ato, se o que se busca é a razão desiderativa que impulsiona a ação naturalmente e como hábito formando uma disposição ética? Lembra Aristóteles (2007, p. 30) que, ”além disso, o homem que não se compraz com as ações nobres não é sequer bom; e ninguém chamaria de justo o homem que não sente prazer em agir justamente, nem liberal o homem que não sente prazer nas ações liberais; e do mesmo modo em todos os outros casos de virtude”.

Neste sentido, como as disposições de caráter só podem ser compreendidas pelo hábito, Aristóteles tona ao estado (polis) a responsabilidade da educação. Para a obra, a figura do Estado tem relação íntima com a virtude ética em cada ente singularizado, o político tem de ser senhor da justa medida para que seus atos sejam virtuosos e gerem reflexos suficientes para a educação moral da sociedade.

Por virtude humana, entendemos não a do corpo, mas a da alma, e, por felicidade, entendemos atividade da alma. Se for assim, o homem político deve evidentemente conhecer de certo modo o que concerne à alma, assim como quem vai curar os olhos de alguém também deve conhecer de certo modo o corpo, e tanto mais deve conhecer quanto a arte política é mais estimada e melhor do que a medicina: os médicos talentosos emprenham-se muito no estudo do corpo. O estudo da alma também deve ser feito pelo homem político, mas ele deve estudá-las em função destes objetivos e tanto quanto for suficiente em relação ao que analisa, pois examinar com minúcia talvez seja por demais laboriosos para o que se propõe (ZINGANO, 2008, p. 38).

Aceitar uma ética a priori significaria considerar que as disposições morais surgem por natureza, nesse caso, no direito, por exemplo, nenhuma conduta poderia ser punida, pois por ela ser natural não haveria possibilidade de conduta diversa excluindo a culpabilidade do agente em qualquer caso. Por esta sorte, defende-se aqui, a disposição de caráter formada pelo hábito, que é perfeita quando ajustada a uma justa medida.

Entretanto, ao homem, é conferida a razão, certamente, em um conceito de Aristóteles, é o que difere este ser dos outros. Tal razão confere ao homem a possibilidade matemática de calcular a melhor ação entre aquelas que são possíveis. A razão, em contato com o desejo incorpora, de maneira variável, a ação necessária ao enfrentamento da decisão. Para isso é

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necessária a potência de fazer o bem relacionado à potência racional, ou seja, a ato, necessariamente está ligado à potência, a disposição que o inclina a determinada faculdade de agir.

Aristóteles evidencia que a potência racional é passível do exercício. A educação pode evidenciar a potência racional da escolha mais próxima da justa medida. Dentro de tal concepção observamos que a potência racional é o instrumento necessário para a eticidade. Aristóteles (1047b31-1048a24, 1991) nos evidencia que as “potências adquiridas, para serem possuídas, exigem um precedente exercício da atividade; as potências congênitas e as potências passivas, ao contrário, não tem necessidade dele”.

Porquanto o homem tenha em seu nascimento potências que guiem sua disposição a uma formação virtuosa ou não, o exercício de determinadas potências são capazes de inserir um pensamento ou um agir ético.

Nesse sentido a importância da educação. Esta como função promocional da eticidade, uma necessidade incontestável da impermeabilidade da ação firme.

Ora, como já visto, de nada adianta uma ação virtuosa forçada, por mais que as contingências interfiram no estudo da razão mediante o ato. A educação, por conseguinte, é necessidade para a busca natural do fazer o bem, de modo que “o homem que foi bem educado já possui esses pontos de partida ou pode adquiri-los com facilidade. Quanto àquele que nem os possui, nem é capaz de adquiri-los” (ARISTÓTELES, 1991, 1094b7).

Não obstante, como já se constatou anteriormente pelo entendimento de vários autores, é de um esforço particular que decorre o resultado positivo concernente à educação. Por isso, no plano de valores, recomenda-se o exercício continuo do aprendizado, visando a competência do ato de efetivar escolhas adequadas, corretas e satisfatórias. Aprender a escolhar é um aprendizado que se perpetua ao longo da vida humana. A ninguém é dado eximir-se de decidir: a cada dia, a cada instante, bem ou mal, o ser humano se obriga a decisões (NUNES, 2014, p. 193).

A educação familiar, bem como políticas públicas de acesso ao exercício de boas ações, é fundamental para que o pensamento ético seja implementado no ser. Não apenas a necessidade de orientação com um ente social que seja fonte de uma disposição de caráter virtuosa, mas também a necessidade de uma atividade legiferante que permita a inclusão de boas políticas para uma atividade virtuosa.

Veja-se que se a educação é peça fundamental para o exercício da potência racional e, por conseguinte, a busca do bem comum seja guiado pelo ato virtuoso e a capacidade se ser ético, podemos observar a educação como função social para erigir uma sociedade de virtudes.

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3. A EDUCAÇÃO COMO INSTRUMENTO DA INCORPORAÇÃO DA VIRTUDE ÉTICA

Como foi possível observar, o desenvolvimento econômico centralizou-se como função de busca do desenvolvimento intelectual. Isso quer dizer que, a busca da educação, qual seja o nível educacional, tem o intuito no mundo moderno de buscar condições de melhor remuneração frente a qualificação da força de trabalho.

Pelo mesmo viés, observamos que, ao indicar a educação como forma de promoção meritocrática de mercado, dá-se margem para que a iniciativa privada tome medidas de garantia do risco natural do liberalismo, aplicando a educação mercantil e investindo em setorização de especialidades, direcionando o mercado educacional com a finalidade de manter os padrões de trabalho, consumo e, consequentemente, o lucro.

Entretanto, aos óculos de Aristoteles, podemos identificar a função real da educação, qual seja, em suma, a formação ética do ser humano e, além disso, a formação humanista baseada na disposição de caráter, célula mater da dignidade da pessoa humana.

Justamente nesse aspecto que nos concentramos em observar a necessidade de humanização da educação. Por mais que no atual modelo econômico seja necessário o investimento em qualificação de trabalho para que os meios básicos de consumo sejam atingidos, a massificação e comercialização de ensino com o fim de manter o sistema capitalista sem riscos iminentes e repreender o ente social à condição básica, abstrata e objetiva de sujeito de direito, interferem diretamente na formação ética do ser humano, mais especificamente, em seu caráter de eticidade pelo exercício da razão.

O papel do Estado na obrigatoriedade da educação é uma função muito mais social do que de política de acesso público. Isso porque a condição humana do ente social só existe em detrimento de seu convívio em sociedade. É o sistema social que obriga o ente social a necessitar de conceitos éticos e prática da razão hipotética para possibilitar um acordo de virtude e alcance de objetivos de conjunto.

Não que tal virtude seja uma simples criação manipuladora de ideologia cultural, pelo contrário, o que diferencia o ser humano de outros animais é justamente sua capacidade de convívio e desenvolvimento social, desta forma a garantia da dignidade está justamente na conscientização do estímulo ao comportamento virtuoso e, de outra forma, a humanização dos atos corriqueiros por meio do costume.

E certamente não é possível desvincular o costume da educação, a prática de conceitos ideológicos tidos como morais ou virtuosos não se adquirem do instinto primitivo, mas sim da prática do ensinamento de que tal ou qual ato se

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amolda ao contrato social. Por esse exemplo, se vê a que se reduziria o homem, se se retirasse dele tudo quanto a sociedade lhe empresta: retornaria à condição de animal. Se ele pode ultrapassar o estádio em que os animais permanecem, é porque, primeiramente, não se conformou com o resultado único de seus esforços pessoais, mas cooperou sempre com seus semelhantes, e isso veio reforçar o rendimento da atividade de cada um. Depois, e, sobretudo, porque os resultados do trabalho de uma geração não ficaram pedidos para a geração que se lhe seguiu. Os frutos da experiência humana são quase que integralmente conservados, graças à tradição oral, graças aos livros, aos monumentos figurados, aos utensílios e instrumentos de toda espécie, que se transmitem de geração em geração. O solo da natureza humana se recobre, assim, de fecunda camada de aluvião, que cresce sem cessar. Ao invés de se dissipar, todas as vezes que uma geração se extingue e é substituída por outra, a sabedoria humana vai sendo acumulada e revista, dia a dia, e é essa acumulação indefinida que eleva o homem acima do animal e de si mesmo (FORACCHI, 1970, pp. 47-48).

A ligação entre condição de humanidade e educação é intima, a subjetividade do ente social está diretamente ligada àquilo que a cultura o proporciona. Dessa forma, a eticidade é conseguida por meio do costume. E, se é eticidade, está presente a virtude. O grande problema da educação baseada na meritocracia econômica é justamente o rompimento da finalidade social do ser humano.

O valor de moeda é uma ficção de troca, por conseguinte a humanidade não pode ser tida como troca, como bem assevera Marx (1989, p. 30), “a força de trabalho só pode figurar no mercado quando é colocada à venda por seu próprio possuidor. Para que seu possuidor a venda como mercadoria, é preciso que possa dispor dela e que ela seja, consequentemente, livre proprietário de sua capacidade de trabalho, de sua pessoa”. Do contrário, estaríamos atribuindo um valor de troca a própria humanidade do ente social.

É justamente nesse ponto que a crítica à meritocracia econômica do sujeito é colocada, a interferência da iniciativa privada no método de educação social é uma manutenção do sujeito de direito - no conceito de sujeito de direito de Pasukanis (1972) – como engrenagem autopoiética do sistema liberal capitalista. Por mais que a remuneração pela força de trabalho seja necessária, as instituições de ensino destinadas à formação de força de trabalho definem o ser humano como valor de mercado e não mais apenas sua força de trabalho, o ente social torna-se mercadoria axiológica, o que foge da condição de trabalho socialmente necessário, porém se coloca como fórmula de redução de riscos das instituições liberais.

O sistema de desenvolvimento de capital aprisiona a sociedade em uma estática cultura de desenvolvimento econômico. Como já mencionamos,

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a característica de risco do modelo liberal necessita da manutenção de padrões culturais para manter a valorização do capital, não apenas a manutenção de forças básicas de trabalho, mas também a cultura social no que tange a cultura de consumo e os institutos liberais ideológicos.

A criação de educação como discurso de verdade para o convencimento de que o mérito da qualificação para serviços oriundos da força de trabalho se amolda em tais métodos de aproximação da estabilidade liberal. Da mesma forma que a classe trabalhadora se acomoda na esperança de desenvolvimento econômico, a força de trabalho é garantida e, ao mesmo tempo, as batalhas de classe são estabilizadas.

Tais institutos liberais, sob a perspectiva de Carl Schmitt, como um instrumento de representatividade democrática que tem o intuito de evitar discussões em nome da representatividade. Para a manutenção do sistema econômico e o desenvolvimento de redução de riscos do tratado social em virtude da axiologia do capital, os ideais e cultura burguesa são mantidos pelo lobby dos institutos liberais, dentre eles o próprio poder legislativo, que necessita da manutenção da produção de verdade capitalista, conforme se observa:

A teoria de esquerda é anti-liberal. Mas a mais convincente e coerente critica das instituições liberais neste século foi desenvolvida por Schmitt. Como muitos alemães que se posicionaram contra o liberalismo, a crítica de Schmitt foi fundamentada na metafísica e na cultura. Em seus ensaios anteriores a primeira guerra mundial (Schattenrisse, 1913; theodor Däubler’s “Nordlicht”, 1916, “Die Buribudken”, 1918) ele questionou valores e gostos burgueses e desafiou a crença liberal no progresso tecnológico. Political romanticism (1919) foi a ponte para seu trabalho que viria sobre política e lei. Sua crítica cultural se transformou em uma crítica da razão que identificou os objetivos do liberalismo Alemão, o que Schmitt chamou de “romantismo político”. A atitude burguesa foi satirizada em trabalhos iniciais que foram transformados através da figura de Adam Müller em “occasio”; Romanticismo foi “ocasionalmente subjetivado” quando Schmitt veio a analisar o parlamentarismo liberal, concluindo que a atividade central dos românticos – diálogo infinito (ewige Gesprache) – encontrou expressão no

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hábito liberal burguês de evitar decisões através de discussões. (tradução livre do autor) (KENNEDY in LUKE, PICCONE, SIEGEL, TAVES, 1987, p. 39)179.

A discussão por método de adiar compromissos dilatórios é uma característica liberal de forma que a manutenção dos pilares do liberalismo devem ser mantidas para o desenvolvimento puramente econômico.

As instituições de ensino cumprem papel de educadoras do modelo liberal capitalista. A necessidade, ou melhor, o desafio de se ensinar por meio de costume cultural a aceitação da evolução tecnológica face a manutenção de valores que preservem a cadencia capitalista deixam a educação ética em segundo plano.

Por mais que valores sejam ensinados, existe uma lacuna entre ideais liberais de cultura e a eticidade, a formação do caráter ético está muito mais ligada ao exercício da razão para a disposição de caráter. O ensino humanista do ente social. De fato, o ser humano só é considerado pessoa digna de direitos em razão de seu estado de convivência social, entretanto, tal característica obriga a necessidade do entendimento ético da virtude em razão de sua humanidade e, nesse ponto, encontramos a necessidade da educação como fórmula de norteamento da disposição de caráter virtuoso.

Nossos sentimentos e crenças relativos às instituições sociais e às suas funções podem ser afetados pelas mudanças tecnológicas da sociedade moderna. Por essa via, o sistema educacional, estimulando a mudança tecnológica, exerce uma influencia sobre a estrutura e a cultura da sociedade que o mantém. É justamente aí que reside uma das principais dificuldades da educação. Espera-se que ela estimule a mudança no campo material e tecnológico e, ao mesmo tempo, que preserve o sistema capitalista, demonstre que o inimigo é sempre culpado pela guerra, que impeça a intervenção do governo nos negócios, que mantenha inalterados os padrões de relações familiares, que ensine o respeito à

179 In verbis: Leftist theory is anti-liberal. But the most cogent and coherent critique of liberal institutions in this century was developed by Schmitt. Like much of German opposition to liberalism, Schmitt’s critique was fundamentally metaphysical and cultural. In essays written before and during WWI (Schattenrisse, 1913; theodor Däubler’s “Nordlicht”, 1916, “Die Buribudken”, 1918) he questioned burgeois values and tastes and challenged the liberal belief in progress and technology. Political Romanticism (1919) was a bridge to his later works on politics and law. His cultural criticism turned into a critique of reason that identified the goals of German liberalism with what Schmitt called “political romanticism”. The bourgeois attitude he had satirized in earlier works was transformed through the figure of Adam Müller into “occasio”; Romanticism was “subjecfied occasionalism” Whn Schmitt came to analyses liberal parliamentarism he conclude that the Romantics’ central activity – “endless conversation” (ewige Gesprache) – found expression in the liberal bourgeoisie’s habit of avoiding decision through discussion (KENNEDY in LUKE, PICCONE, SIEGEL, TAVES, 1987, p. 39).

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propriedade privada, e que proteja a classe média perpetuando a crença de que os pobres são inerentemente preguiçosos, pessoas para as quais nada pode ser feito. Em outras palavras, espera-se que o sistema educacional impeça qualquer mudança nos sentimentos e crenças relativas às relações humanas e que, ao mesmo tempo, ensine a ciência e a tecnologia – as quais, quase certamente, tornarão obsoletas algumas formas de relações humanas. Desde que a maioria dos norte-americanos não esta consciente desse dilema em que ela coloca a escola, as pessoas continuam a admitir – e os professores continuam a ensinar 0 a conveniência da mudança num setor e da estabilidade em outro. Além do mais, ao agirem desse modo, os professores comportam-se de acordo com as normas da sociedade, pois esta acredita ser benéfica a mudança tecnológica, mas indesejável qualquer modificação mais profunda nas relações sociais (FORACCHI, 1970, pp. 84-85).

A cultura é a única forma de definição de valores éticos, sendo necessário educar uma ideologia cultural baseada na necessidade de humanização em relação ao convívio social. Daí vem a insistência do termo “humanizar”. Reduzir o ente social a simples sujeito de direito integrado aos aparelhos ideológicos do Estado180 reduz sua condução de ser sujeito à dignidade a simples aparelho de manutenção de estrutura ideológica econômica.

Para isso, a intervenção do modelo de Estado nas instituições liberais faz-se necessária. Inicialmente, tendo em vista o modelo atual de globalização e, mesmo com a função do mercado internacional entre estados soberanos como um método importante da regência do mundo, a legitimação entre estados, como fundamento necessário de sua soberania territorial e política, exige uma humanização da visão do Estado para a sociedade em tempos de largo discursos sobre direitos humanos.

O fenômeno das sociedades globalizadas tem relação direta com as necessidades da manutenção das instituições liberais, uma vez que, o comércio internacional é um dos modelos necessários de redução de riscos e, ao mesmo tempo, manutenção da legitimidade da soberania. Entretanto, ao tratar de educação a visão da necessidade de existência é vista como peça fundamental do ponto de vista de confiabilidade na autossuficiência do Estado. Portanto, podemos

180 Segundo Althusser (1970, p. 43): “Não se confundem com o aparelho (repressivo) do Estado. Lembremos que na teoria marxista, o Aparelho de Estado (AE) compreende: o Governo, a Administração, o Exército, a polícia, os tribunais, as Prisões, etc., que constituem aquilo a que chamaremos a partir de agora o aparelho repressivo de Estado. Repressivo indica que o Aparelho de Estado em questão <funciona pela violência> - pelo menos no limite (porque a repressão, por exemplo administrativa, pode revestir formas não fisicas). Desifnamos por Aparelhos ideologicos de Estado um certo número de realidades que se apresentam ao observador imediato sob a forma de instituições distintas e especializadas. Propomos uma lista empírica destas realidades que, é claro, necessitará de ser examinada pormenirizadamente, posta à prova, retificada e reelaborada”.

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considerar que a sociedade moderna é fundada em uma ideia de práticas estatais instrumentalizadoras de elementos de poder, que a partir do elemento biológico humano busca exercer controle, ou seja, a técnica de poder na sociedade é exercida por meio do famigerado contrato social, ou no conceito mais schmittiano baseia-se na existência do ordnung e ortung181, o que, por sua vez, que limita tanto o poder daqueles que detêm legitimidade como daqueles que estão sob sua égide, assim classificando as sociedades e a necessidade de atendimento da função de reconhecimento de legitimidade fora do seu distrito territorial.

A estrutura educacional tem duas visões necessárias sobre sua implementação, a visão de direito fundamental como legitimação de soberania ante uma política globalizada de políticas implementadas em seu território e, por sua vez, a necessidade de redução de riscos das instituições liberais, o que gera um discurso das instituições liberais em seara de legitimidade.

Em consequência da personalização, as relações entre os Estados soberanos tornam-se suscetíveis de comitas, cortesia, assim como de jus, juridicidade. Também aqui são diferentes as interpretações filosóficas e as jurídicas. Mas também aqui não devemos deixar que questões secundárias nos distraiam do caráter espacial do novo ordo, um ordo menos espiritual do que espacial. Uma questão secundária é, por exemplo, a controvérsia sobre se esses “grandes homens”, para além de uma linha de amizade, devem ser imaginados entre si em “estado de natureza” e se esse estado, por sua vez, será representado (segundo Hobbes) como um combate associal entre Liviatãs ou (segundo Locke) como uma comunidade social de gentlemen no fundo já saturados; ou se as relações dos grandes entre si será concebida, de um modo supostamente jurídico-positivo, segundo a analogia de uma societas de direito civil, ou como uma communitas de direito civil (SCHMITT, 2014, p. 156).

O que nos resta ao questionamento é, sem projetar a ambição de aniquilar as instituições liberais e o modelo globalizado de mercado, concentrarmos na necessidade de observação do foco ideológico dos aparelhos educacionais.

Veja-se que, de certo, a educação deriva da cultura e, consequentemente, a ideologia liberal está presente em qualquer discurso educacional, não poderia ser de outra forma, vez que, mesmo a educação pública, se preocupa com a necessidade de emancipação econômica de classe.

O discurso meritocrático, por sua vez, que deve ser tomado da análise cuidadosa da retórica. É função do Estado por meio da educação garantir a

181 Para Schmitt (2014) vige o Nómossoberano, ou seja, naestrutura do ordenamento, em seu âmbito territorial e político, o operador da nacionalidade, quais sejam, as nações, no modelo de sociedade capitalista hodierno não se restringe ao Landnahume (tomada da terra por meio de posse), porém necessita de legitimação por meio da fixação de um ordenamento jurídico (ordnung) bem como a fixação de um ordenamento territorial (Ortung).

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predicação dos padrões culturais presentes em uma determinada sociedade, porém, em tempos modernos o discurso da dignidade da pessoa humana é apregoado como parte da necessidade ideológica de cultura, da mesma forma.

No seu trabalho de 1969 Ideologias e Aparelhos Ideológicos do Estado, Althusser recoloca a questão da ideologia, agora com um enfoque mais política e menos epistemológico. É neste trabalho que explicitará sua concepção sobre o papel do sistema escolar na sociedade capitalista. Para garantir a reprodução dos meios de produção, o capitalismo precisa garantir também a reprodução da força de trabalho: ora, esta reprodução da força de trabalho está sendo assegurada pelo sistema escolar e por outras instituições, situadas fora da produção, e pressupõe, além da qualificação dos trabalhadores, a submissão à ideologia domunante como meio de preservar os lugares sociais, de acordo com seu interesse. A escola é a instituição encarregada de incular a ideologia dominante, pelo conhecimento e valores que transmite (SEVERINO, 1986, p. 46).

Como é possível observar, a análise não trata dos efeitos dos aparelhos ideológicos do estado, ou da presença da ideologia liberal sobre o sistema educacional. O escopo se concentra no conflito da necessidade de proliferação da força de trabalho, somada a comercialização da educação, sem esquecer da implementação do discurso meritpcrático da classe trabalhadora. Tudo isso em confronto com a dignidade da pessoa humana e sua promoção como ente social.

A existência da classe trabalhadora não pode ser confundida com o fomento da mercantilidade educacional. O discurso de verdade envolvendo a promoção do ser limitado ao seu mérito e, ainda mais, limitado a sua eterna condição de produção de foça de trabalho exclui até mesmo a ideia de trabalho socialmente necessário. Não mais estamos diante de uma troca calculada pela média da força de trabalho vendida pelo ser humano trabalhador, mas, na verdade, da comercialização do corpo humano, sob o discurso da capitalização da educação como ponte de mérito, para se prender em um patamar econômico e, ao mesmo tempo, evitar as lutas de classe.

A importância das lutas de classe acontece justamente para controle da segregação da hegemonia do capital e o combate a hipossuficiência de igualdade em função do modelo capitalista. As lutas de classe servem para o modelo econômico assim como uma constituição serve para o Estado.

A necessidade de demonstração de que o poder econômico se limita a compra de força de trabalho e não de elemento humano se dá justamente pela conscientização do trabalho socialmente necessário e da função limitadora da venda dessa força, que só pode ser legítima se vendida sob o escopo da liberdade do ente social.

Incentivar a meritocracia econômica por meio da “qualificação” de instituições liberais cega a luta de classes. A iniciativa privada deve sempre

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ser munida de função social, como texto constitucional. E nesse ponto que insistimos na humanização da educação.

A mera fomentação da educação com a finalidade de sentimento de desenvolvimento econômico, porém, sem a conscientização de que se trata de força de trabalho sob a égide da iniciativa privada faz com que surja um óbice nas lutas de classe e, por conseguinte, a hegemonia da iniciativa privada perante a promoção do ser humano em razão de sua dignidade, ou melhor, uma produção de verdade absoluta livre de batalhas ideológicas e com falhas na microfísica do poder.

CONCLUSÃO

O desenvolvimento econômico é natural no modelo de sociedade em que vivemos. Da mesma forma, como é condição de existência do liberalismo, as instituições liberais trabalham com o necessário risco de desvalorização do capital.

Isso porque, não apenas se trabalha com trocas no mercado atual, mas também no fenômeno axiológico da própria moeda.

Como necessidade de redução de riscos em um sistema liberal as instituições ligadas aos interesses burgueses necessitam de métodos de legitimação de seus interesses, dessa forma criam-se aparelhos ideológicos do estado que predicam a necessidade da implementação do discurso do desenvolvimento econômico na cultura.

O discurso, por sua vez, passa a atingir o modelo de educação, não mais apenas para difundir em forma de cultura a ideologia liberal, porém para criar um discurso de verdade que prega a meritocracia em determinados seguimentos da classe trabalhadora.

Investindo em aumentos de salário, a iniciativa privada cria a comercialização da educação, com o método do ensino particular e entidades de ensino técnico com status de ensino superior para criar uma sensação de ascensão e manter a reprodução da força de trabalho e reduzir, além de tudo, a incidência das lutas de classe e a sensação de conforto do mérito ou o estímulo de um crescimento fadado a um limite necessário da produção de capital.

A análise, entretanto, se funda no risco da produção de verdade sobre o reflexo das batalhas sociais ideológicas, da conscientização da importância educacional para a formação humana e a produção de trabalho humano e não mais da venda da força de trabalho humana.

Para isso, a função da filosofia aristotélica nos incentiva a entender o papel da educação no desenvolvimento da humanização.

O método educacional é um dos principais formadores da virtude moral. Para Aristóteles não se pode desvincular a necessidade do costume das virtudes morais para que a disposição de caráter sempre tenda a atividade virtuosa.

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Somente com o exercício da razão desenvolvida por meio de ensino existe a possibilidade de julgamento da ação baseada no justo-meio e na ação virtuosa por natureza.

Por meio desse raciocínio, percebemos que a educação como fórmula de mérito econômico ignora a formação humana do ente social, o que faz com que toda a estrutura microfísica do poder entre em modificação.

A redução das lutas de classe autoriza a massificação do desenvolvimento econômico o que, por sua vez, recai sobre o ensino que legitima não mais a liberdade do ser em vender sua força de trabalho, porém trabalhar o ser como peça de trabalho.

A liberdade é peça fundamental da existência do capitalismo, a força de trabalho deve ser vendida livremente, o contrato de trabalho é a manifestação máxima da liberdade dentro de uma ideologia liberal, aquele que vende sua força de trabalho não vende sua humanidade, mas oferece a troca de sua força por pagamento respectivo ao trabalho socialmente necessário.

Injusta ou não, a troca é a base da liberdade que se diferencia da escravidão. A cultura da massificação de ideologia de ascensão econômica baseada na qualificação especifica para o mérito, comercializada como forma de crescimento limitado a um determinado setor de classe, sempre como força de trabalho, faz do ente social um investimento de mercadoria para redução do risco natural do liberalismo.

A necessidade de humanização do ensino não é apenas um combate as desigualdades sociais ou a promoção econômica do ente social, porém é necessidade de desenvolvimento humano do ser moral. Não é possível a implementação das ideologias culturais formadoras dos conceitos éticos do ser humano baseado no acaso, a educação que tem o papel de instrumento ideológico de cultura e método de pelo costume estender os valores morais.

A educação por sua vez, não é só mais da família ou do estado, vez que a educação passou a estar presente na iniciativa privada, de tal forma que, resta também ao instrumento máximo da ideologia liberal a responsabilidade de formar a possível razão voltada para a ética do ser humano.

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PROFESSORES READAPTADOS: CARACTERIZAÇÃO À LUZ DO ORDENAMENTO JURÍDICO VIGENTE

Mariana Carolina Lemes182

RESUMO

Conquanto sejam os atores principais do processo educacional juntamente com os discentes, os docentes são objeto de uma grande variedade de violências: não apenas dos baixos salários e da ausência de reconhecimento, mas, também, de outras violações, especialmente psicológicas, que os tornam um grupo de risco, mais suscetíveis ao acometimento por doenças que o comum das pessoas. Não é a toa que, o número de professores em todo o mundo vem diminuindo, minguando, nos últimos anos. Atualmente, poucas pessoas veem a academia como uma primeira opção para suas carreiras; há muitos contras e poucos prós, poder-se-ia dizer. Para aqueles que optaram pela docência, ou acabaram apenas seguindo esta senda, os problemas não arrefecem: fragilizados, muitos professores acabam sendo afastados ou readaptados em outras funções, passando, a partir daí, a enfrentar situações ainda mais desgastantes no seu dia a dia. Por sua vez, o processo de readaptação do professor é um ilustre desconhecido para grande parte da população e esconde uma realidade perversa. Afinal, da perspectiva jurídica, quem são os professores readaptados? Como se dá o processo de readaptação? O que os difere dos demais professores? Ciente deste problema, o presente artigo aborda a figura do professor readaptado e tem por escopo caracterizar-los, auxiliando os pesquisadores a deter uma visão mais ampla das questões que os envolvem, de modo a torná-los [a si e a seus direitos] objeto de maior visibilidade no mundo acadêmico. No desiderato de alcançar o objetivo científico da pesquisa proposta, são analisadas disposições constitucionais, leis e atos administrativos que tratam do instituto da readaptação e dados oficiais acerca do professorado e do provimento derivado retromencionado. Os resultados obtidos oferecem um perfil dos docentes readaptados, esclarecendo as principais etapas da transmutação (readaptação) e de suas consequências à luz do ordenamento pátrio.

182 Mestranda em Direitos Sociais, Difusos e Coletivos pela UNISAL – Campus Lorena. Especialista em Direito Constitucional pela PUC-SP. Especialista em Direito Processual Civil pela UNITAU. Especialista em Direito Material e Processual do Trabalho pela Universidade Cândido Mendes. Especialista em Direito Público pela UNITAU. Professora da Universidade de Taubaté - UNITAU. Professora da Faculdade de Ciências Humanas de Cruzeiro – FACIC. Professora da Faculdade Santa Cecília de Pindamonhangaba – FASC.

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Palavras-Chave: Professor Readaptado; Caracterização; Ordenamento Jurídico Vigente.

SUMÁRIO: Introdução. 1. Professores. 1. 1 Caracterização. 2. Readapção docente. 3. Mudanças na percepção da figura dos professores. Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO

A educação é um direito social a todos assegurado, esculpido na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 6º, o qual prevê que, a educação é direito de todos e dever do Estado e da família, devendo ser promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

A educação pode ser definida como a “ação exercida pelas gerações adultas sobre as gerações que não se encontram preparadas para a vida social” (DURKHEIM, 1978, p. 41), sendo através dela desenvolvidas as competências requeridas para o convívio em sociedade.

Nos dizeres de FREIRE (2014, p. 44), “a educação tem sentido porque o mundo não é necessariamente isto ou aquilo, porque os seres humanos são tão projetos quanto podem ter projetos para o mundo”.

A própria Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, a denominada “lei de diretrizes e bases da educação”, esclarece que, a educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais (artigo 1º, caput), demonstrando a gama de campos de ação das ações – e, por conseguinte, das investigações – acerca do tema.

Isso porque, o direito à educação integra “o catálogo dos direitos fundamentais e [está] sujeito ao regime jurídico reforçado que lhes foi atribuído pelo Constituinte (especialmente art. 5º, §1º, e art. 60, §4º, IV)” (SARLET; MARINONI, MITIDIERO, 2012, p. 591).

Resta evidente, portanto, a preocupação permanente do Estado com a realização de tal direito, incluindo-o na lei constitucional como forma de demonstrar-lhe a importância. Isso porque, ao inserir tal direito no rol dos direitos sociais, o Estado assumiu a obrigação de concretizá-lo, impedindo-se de ocupar qualquer posição de inércia até que se ofereça a todos, mesmo às minorias, uma educação de qualidade.

Ademais, a educação se constitui num dos mecanismos aptos a assegurar a isonomia substancial e social, devendo ser compreendida como

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um instrumento emancipatório, transformador da pessoa em cidadão, que, preparando-a para os atos da vida civil e política, a qualifica para o labor e fortalece a sua dignidade, instalando-lhe o sentimento de irredutibilidade e melhorando sua condição de existência.

Mais do que direito social, a educação é direito social básico, passível de concretização através da propositura de ações judiciais para a assecuração do direito (cf. Supremo Tribunal Federal – STF, ARE 639.337 AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 23-8-2011, Segunda Turma, DJE 15-9-2011).

À luz do entendimento do STF, poder-se-ia afirmar que, como direito social básico, a educação deve ser compreendida como um direito fundamentalíssimo (cf. VIEIRA, apud PEREIRA E SILVA, 2005, p. 195), ou seja, antecede os direitos humanos fundamentais, sendo considerado, portanto, como direito ligado à salvaguarda da própria pessoa humana.

A educação colabora para o pleno desenvolvimento da pessoa, para o seu crescimento, sendo indispensável à noção de dignidade humana.

Ora, na acepção vocabular, digna é a pessoa considerada merecedora, apropriada, e, dificilmente se poderia imaginar alguém que fosse assim percebido e que não tenha sofrido nenhuma ação educativa.

Outrossim, a educação é compreendida como “indutor embrionário dos demais direitos” (CUSCIANO, 2011, p. 12), já que prepara para a cidadania, viabilizando o conhecimento e fruição de direitos civis e políticos vigentes, e qualifica a pessoa para o trabalho e para a vida política.

Como se verifica, a educação é considerada como uma necessidade vital do ser humano. Por seu turno, a concretização do direito à educação é uma prioridade a muito relegada, clamando por satisfação imediata.

A cada dia e hora que relegamos a educação, esta deixa de atender ao escopo pretendido em relação a milhares de pessoas. Essa fração de tempo jamais poderá ser reposta e nunca alcançará a finalidade pretendida. Há, nesse caso, prejuízo irreparável ao processo de formação de inúmeras pessoas, cujos danos decorrentes de um acesso incerto e a destempo podem nunca vir a serem mitigados.

Difícil e tormentosa é a questão da efetivação dos direitos sociais, demandando estes “medidas redutoras de desigualdades” (MENDES; COELHO; BRANCO, 2008, p. 711), também denominadas, “medidas de igualação”, motivo pelo qual, muitos juristas se insurgem contra a entronização da reserva do possível como limite fático à concretização dos direitos sociais.

À vista de todas estas considerações, optou-se, dentro do tema da educação, pela análise dos problemas atinentes à figura dos professores e, mais especialmente, dos professores readaptados. Isso porque, mostra-se inadmissível que, objetivos tão nobres como os apregoados e perseguidos pela

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educação possam ser alcançados à custa da integridade física e/ou psicológica daqueles que a promovem.

Diante do desconhecimento quase que geral acerca da readaptação e das incipientes pesquisas acerca do tema, verificou-se a premente necessidade de se compreender quem são os professores readaptados, como se dá o processo de readaptação e o que os difere dos demais professores.

Para a coleta dos dados necessários à apresentação de respostas aos problemas formulados foi utilizada a pesquisa bibliográfica, com a leitura de obras doutrinárias de autores consagrados e contemporâneos, cuja consulta – pela importância da contribuição – poderia ser reputada impositiva, e o método documental, com a análise das principais leis e atos administrativos que dispõem sobre a readaptação, bem como dados oficiais acerca do professorado e do provimento derivado retromencionado, inclusive jurisprudência dos principais tribunais.

O tema é vasto e poucas são as contribuições científicas, especialmente na seara jurídica. Se neste primeiro momento o que se buscou foi apresentar um panorama geral do contexto em que inseridos os professores readaptados, uma próxima oportunidade viabilizará a produção de artigos mais delimitados, com a possibilidade de deslinde de apenas um prisma do problema.

Nesse diapasão, o presente estudo importa contribuição potencial para o estudo de temas afetos à concretização de direitos dos professores, servindo como ponto-de-partida para o estabelecimento de metas e planos de ação para as gestões educacionais e para todos os atores da vida acadêmica, inclusive os próprios profissionais prejudicados pela ausência de efetivação de seus direitos.

Espera-se que, o oferecimento de uma melhor caracterização dos professores readaptados ofereça uma visa mais ampla das questões que os envolvem, de modo a torná-los [a si e a seus direitos] objeto de maior visibilidade no mundo acadêmico, viabilizando, ainda, o prosseguimento da pesquisa científica ora proposta e servindo de auxílio aos demais pesquisadores que desejem dedicar-se a um prisma mais específico do tema.

Os resultados obtidos oferecem um perfil dos docentes readaptados, esclarecendo as principais etapas desta transmutação à luz do ordenamento pátrio, fornecendo, assim, subsídios para o enfrentamento de questões referentes a este grupo e à concretização de seus direitos.

1. PROFESSORES

A educação está protegida constitucionalmente na Lei Fundamental de 1988, sendo reconhecida como direito humano – verdadeiro meio de desenvolvimento pleno da pessoa –, que a prepara para o exercício da cidadania e a qualifica para o trabalho.

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Mostra-se inadmissível, portanto, que, objetivos tão nobres possam ser alcançados à custa da integridade física e/ou psicológica daqueles que a promovem.

A educação e os educadores devem partilhar do mesmo destino; onde um não estiver bem, o outro também não poderá estar; o direito à educação não pode ir de encontro com a própria noção de dignidade daquele que lhe serve de instrumento facilitador: o professor.

Inviável caracterizar os professores readaptados sem antes conhecer os professores. Isso porque, todos os professores já readaptados ou que venham a sofrer o ato de readaptação já foram, anteriormente, professores. Leia-se: “Professores. Ponto”. Não eram readaptados; não estavam “quebrados”, no sentido de física ou emocionalmente vulnerados e, portanto, não sofriam qualquer ato de discriminação183.

Imprescindíveis, portanto, algumas considerações acerca deste grupo de profissionais, motivo pelo qual, a presente seção dedica-se a esclarecer quem, principalmente do ponto-de-vista jurídico, são os professores hoje no Brasil.

1.1. CARACTERIZAÇÃO

Os professores podem atuar na rede pública ou privada de ensino.Para atuarem na rede privada, basta que, detendo as qualificações necessárias, sejam contratados diretamente pela instituição de ensino; para atuar na rede pública, deverão, suprimidas as habilidades e qualificações requestadas, submeter-se a provas de concurso, quando, aprovados e classificados, poderão ser chamados a trabalhar na qualidade de servidores públicos municipais, estaduais ou federais, a depender da unidade federativa a que vinculados.

Quanto ao regime jurídico, professores que não sejam servidores públicos ou não gozem de situação análoga ou proteção especial, são protegidos pelo Direito do Trabalho, sendo chamados de celetistas, por estarem sujeitos às proteções elencadas pela Consolidação da Leis do Trabalho – CLT, que lhes dedica a seção XII, do capítulo I, do seu título III.

Não se aplicam as normas constantes da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), porém, aos servidores públicos da União, dos Estados e dos Municípios e aos servidores de autarquias paraestatais, desde que sujeitos a regime próprio de proteção ao trabalho que lhes assegure situação análoga à dos servidores públicos (regime estatutário), nos termos do quanto preceituado pelo

183 A palavra é utilizada aqui no sentido de imposição de discrimen, ou seja, de tratamento diferenciado, sem qualquer especificação quanto a ser tal conduta positiva ou negativa do ponto-de-vista desses sujeitos de direito.

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artigo 7º, alíneas “c” e “d” da CLT184.Segundo CARRION (2007, p. 58):

Os professores servidores públicos são investidos em cargo público, criado por lei, sendo regidos pelas normas de direito administrativo, unilateralmente impostas pelo Poder Público, que constituam o respectivo estatuto dos funcionários públicos da União, do Estado ou do Município, e que estão, entretanto subordinadas às normas e princípios da CF (art. 37).

O estatuto dos funcionários públicos da União, do Estado ou do Município não poderá contrariar o quanto disposto na Constituição Federal, sendo este o documento que ditará seus principais direitos e obrigações.

Segundo WEBBER; VERGANI (2010, p. 8808), “o magistério sempre foi tido pela legislação como uma atividade penosa, que causa desgaste no organismo, de ordem física ou psicológica, em razão da repetição de movimentos, pressões e tensões psicológicas que afetam emocionalmente o trabalhador”, motivo pelo qual, o decreto 53.831/64 enquadrava a função como penosa185.

Mas, quem é o professor?Professor (ou docente) é aquele que instrui ou treina outras pessoas,

especialmente em ambientes denominados escolas186, alguém cujo trabalho é ensinar.

184 O artigo 7º da CLT reza que “Os preceitos constantes da presente Consolidação, salvo quando for, em cada caso, expressamente determinado em contrário, não se aplicam: (...) c-) aos funcionários públicos da União, dos Estados e dos Municípios e aos respectivos extranumerários em serviço nas próprias repartições; d-) aos servidores de autarquias paraestatais, desde que sujeitos a regime próprio de proteção ao trabalho que lhes assegure situação análoga à dos funcionários públicos.” Anote-se que, a CLT utiliza a expressão “funcionários públicos”, sendo a expressão “servidores públicos” prestigiada pela Constituição Federal de 1988. CARRION (2007, p. 58) afirma que, “a CF de 1988 evitou o vocábulo “funcionário” e adotou exclusivamente o de “servidor”; mas refere-se constantemente a cargos, empregos e funções (arts. 37 e 38), denunciando a distinção.185 O artigo 2º do mencionado decreto dizia que para os efeitos da concessão da aposentadoria especial, seriam considerados serviços insalubres, perigosos ou penosos os constantes de quadro anexo. Tal quadro trazia, em seu item 2.1.4 o magistério como atividade penosa. A disposição foi revogada e a Constituição de 1988, que prevê o pagamento de adicional de penosidade, não teve tal direito regulamentado até a presente data, mais de 25 anos depois do termo inicial de sua vigência.186 Teacher.noun [C] /ˈti·tʃər/.A person who instructs or trains others, specially in a school: an English/math/ kindergarten teacher. Disponível em: <http://dictionary.cambridge.org/us/dictionary/american-english/ teacher?q=teacher>. Acesso em: 21 abr. 2014.

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Segundo BRUM et al (2012, p. 145), “a educação é uma preocupação mundial na qual o trabalho docente contribui de forma significativa na formação e na transformação da sociedade”.

O professor deve transmitir valores, técnicas e conhecimentos, gerais ou específicos da matéria que ensina, sendo parte de sua função pedagógica facilitar a aprendizagem para que o aluno, também chamado de estudante ou discente, a alcance da melhor maneira possível. Assim, tanto o professor quanto o aluno são agentes efetivos do processo de ensino-aprendizagem.

Como ressaltado por NASCIMENTO; ALKIMIN (2010, p. 2813):

A escola como espaço para inclusão, socialização, civilização, politização e de construção e prática da cidadania só tem sentido diante dos dois sujeitos principais no processo ensino-aprendizagem e de formação integral: o professor e o aluno ou o aluno e o professor.A relação entre aluno-professor e vice-versa deve se pautar nos princípios éticos, incluindo o respeito e consideração à pessoa do próximo, onde cada autor desempenha seu papel para que a escola seja um ambiente de construção de saberes e de formação moral e de socialização, com base na solidariedade, fraternidade e democracia.

O professor não está excluído, como se verifica, das garantias ofertadas ao corpo discente: ele merece respeito e consideração, devendo as relações com o mesmo serem pautadas pelos princípios éticos.

A palavra professor vem do latim professus187ou professum188, do verbo profitare189, palavra formada pela junção da palavra fateri (confessar) com o prefixo pro (à vista de todos) significando aqueles que professam, ou seja, declaram publicamente.

187 Disponível em: <http://origemdapalavra.com.br/site/palavras/professor/>. Acesso em: 23 jul. 2014. 188 Disponível em: <http://www.educacaopublica.rj.gov.br/biblioteca/educacao/0033.htm>. Acesso em: 23 jul. 2014.189 Aquele que professou, que tomou ordens religiosas e que, por ser membro da igreja, podia proferir sermões publicamente, lecionar. Profateri vem de pro (em lugar de) e fateri (conhecimento, saber, aquilo que só a Igreja possuía). Ou seja, ‘profateri’ seria aquele que está no lugar do, ou representa, o conhecimento. ‘Fateri’, por sua vez, do germânico arcaico ‘fader’, origina-se do grego ‘pater’ que significa pai. Assim, professor seria aquele que fala em lugar do pai. Disponível em: <http://letratura. blogspot.com.br/2006/04/etimologia-e-semantica-professor.html>. Acesso em: 23 jul. 2014.

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Os primeiros professores da história teriam sido os cristãos, que declaravam frente a todos sua convicção e fé, mas, com o passar do tempo, a palavra passou a ser utilizada para denominar as pessoas que possuíam conhecimento em alguma área do saber, determinando-se a transmiti-lo a outros190.

Na América latina, os professores de todos os níveis de educação recebem o nome de professor, desde a educação infantil, passando pela educação primária e secundária e, até mesmo, a educação superior. Já no sistema universitário anglo saxão e norte europeu, denominam-se professor exclusivamente os acadêmicos com posições permanentes que ensinam e investigam em nível universitário; geralmente possuem título de doutorado. No sistema educativo francês, se utiliza a palavra ‘professor’ muito mais amplamente, para educação de ensino médio e superior.

No Brasil, o professor é o profissional que ministra aulas ou cursos em qualquer dos níveis educacionais (educação infantil, ensino fundamental, ensino médio, ensino superior e educação profissional).

Para o exercício dessa profissão, são requeridas qualificações acadêmicas e pedagógicas no intuito de que o profissional esteja apto a transmitir o objeto de estudo ao aluno (também denominado discente), da melhor maneira possível.

O dia dos professores é comemorado todo dia 15 de outubro no país, feriado escolar oficializado pelo Decreto Federal nº 52.682, de 14 de outubro de 1963, que preconiza a comemoração condigna do dia do professor, a fim de que se enalteça a função do mestre na sociedade moderna.

Na América, como um todo, se comemora o Dia Panamericano dos Mestres no dia 11 de setembro, relembrando o falecimento de Domingo Faustino Sarmiento, no ano de 1888191.

O Dia Mundial dos Docentes se comemora todo dia 5 de outubro, desde 1994, ano de sua instauração pela UNESCO - United Nations Educational Scientific and Cultural Organization192, no aniversário de subscrição da

190 Disponível em: <http://letratura.blogspot.com.br/2006/04/etimologia-e-semantica-professor.html>. Acesso em: 23 jul. 2014.191 Em 1943, por ocasião da 1ª Conferência de Ministros e Diretores de Educação das Repúblicas Americanas, celebrada no Panamá, foi proposta uma data unificada para a celebração do dia dos mestres, catedráticos e professores no continente americano, de forma a homenagear as pessoas que fazem do ensino seu trabalho habitual, escolhendo-se o dia 11 de setembro, aniversário de falecimento do argentino Domingo Faustino Sarmiento. Sarmiento dedicou-se à pesquisa do sistema de educação na Europa, na tentativa de implantar melhorias àquele adotado na Argentina à época. A data continua a ser comemorada na Argentina, mas foi abandona no resto do continente. Disponível em: <http://www.buenosaires.gob.ar/ areas/ciudad/historico/especiales/11septiembre/vida_logros.php?menu_id=24316>. Acesso em 04 out. 2014.192 Disponível em: <http://www.5oct.og/2012/index.php/es/>. Acesso em 21 set. 2014.

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recomendação UNESCO/OIT relativa à situação pessoal docente, de 1966 e, posteriormente, com a inclusão da recomendação da UNESCO/OIT relativa ao estatuto do pessoal do ensino superior, de 1997193.

Desde sua adoção, a recomendação UNESCO/OIT relativa à situação pessoal docente, de 1966, tem sido considerada como um importante conjunto de orientações para a promoção do estatuto dos professores com relevância para a qualidade da educação. Já a recomendação UNESCO/OIT relativa ao estatuto do pessoal docente do ensino superior foi adotada pela Conferência Geral da UNESCO em 1997, depois de anos de trabalhos preparatórios entre a UNESCO e a OIT – Organização Internacional do Trabalho194.

Os dois instrumentos normativos noticiados são cruciais para a aplicação de políticas sólidas relativas à condição docente, por representarem padrões internacionais para a profissão docente195, mas são pouco ou nada conhecidos no Brasil.

Para a Recomendação UNESCO/OIT de 1966, em seu parágrafo I, item 1, a:

O termo “pessoal docente” ou “professores” serve para designar todas as pessoas encarregadas da educação dos alunos.

Desse modo, o pessoal docente ou os professores são identificados pela dedicação ao objetivo de educar alunos.

Em seu parágrafo III, item 6, a mencionada Recomendação giza, ainda, que:

O ensino deve ser considerado uma profissão: é uma forma de serviço público que requer dos professores conhecimentos e competências especializados, adquiridos e mantidos através de estudo rigoroso e contínuo; também requer um sentido de responsabilidade pessoal e corporativa para a educação e o bem-estar para os alunos a seu cargo.

193 Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0016/001604/160495por.pdf>. Acesso em 03 out. 2014.194 Id., Ibid..195 “A Recomendação de 1966 cobre todos os professores, desde o pré-primário até ao nível secundário em todas as instituições, quer sejam públicas ou privadas, quer assegurem ensino acadêmico, técnico, vocacional ou artístico. A Recomendação de 1997 complementa a de 1966 e cobre todos os docentes e investigadores do ensino superior. Pessoal do ensino superior inclui “todas as pessoas em instituições ou programas de ensino superior comprometidos com a docência e/ou com a vida acadêmica e/ou os que desenvolvem investigação e/ou os que asseguram serviços educativos a estudantes ou à comunidade em geral”. (Id. Ibid.).

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Importante ressaltar, à vista de tal aclaramento, que, a educação é considerada também no Brasil um serviço público, essencial e não-privativo, como frisa CUSCIANO (2011, p. 12), que afirmou ser a mesma

(...) direito a um serviço público essencial não privativo, fundamental para o desenvolvimento humano, social e econômico, preparatório para o exercício da cidadania, qualificador para o trabalho e indutor embrionário dos demais direitos, entendimento este corroborado tanto pela legislação quanto pela jurisprudência.

Já a Recomendação UNESCO/OIT de 1997, em seu parágrafo III, item 6, diz que a docência

é uma forma de serviço público que requer dos professores conhecimentos e competências especializados, adquiridos e mantidos através de estudo rigoroso e contínuo; também requer um sentido de responsabilidade pessoal e institucional para a educação, o bem-estar para os alunos e a comunidade em geral e um compromisso com padrões altamente profissionais na vida acadêmica e na investigação.

Assim, pode-se destacar que, internacionalmente, a docência é considerada, objetivamente, uma forma de serviço público e que os professores gozam, no cenário internacional, de um reconhecimento muito superior àquele outorgado ao grupo no âmbito nacional.

No Brasil, gize-se, a própria educação se constitui num serviço público, estando o Estado obrigado a realizá-la – não excluindo a sua realização através de particulares – através de prestações positivas, com qualidade, donde o cabimento de ações afirmativas com vistas e.g. à garantia de vagas em creches e pré-escolas. A diferença, portanto, é que, ainda não se concebeu, no país, a própria docência como uma forma de serviço público, cujos direitos dos professores também exigem imediato atendimento.

A preocupação que aflige o país demonstra cuidado com apenas uma parte da equação: a da relação do aluno com a escola, com os professores, mas descuida da relação do professor com esse meio ambiente.

NASCIMENTO; ALKIMIN (2010, p. 2811) informam que

muito além de ser um local de transferência de saberes, a escola contemporânea tem como finalidade

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promover a formação integral do aluno, para que tenha condições de enfrentar a vida adulta de forma equilibrada, tanto sobre o aspecto pessoal, como social, familiar e profissional. Através da formação escolar, o educando deve superar problemas como a pobreza, exclusões sociais e discriminações.

Como se pode perceber, muito se espera do professor, mas pouco se lhe é dado.

O Evangelho de São Lucas (12:48) preceitua que “porque a todo aquele a quem muito foi dado, muito será pedido, e ao que muito confiaram, mais contas lhe tomarão”.

Do ponto-de-vista subjetivo professor-aluno, depreende-se a exigência de que os professores (a) detenham conhecimentos e competências especializados, adquiridos e mantidos através de estudo rigoroso e contínuo e, (b) possuam um sentido de responsabilidade pessoal e corporativa/institucional para com a educação e o bem-estar de seus alunos, de forma a viabilizar-lhes a solução de problemas como pobreza, exclusão social e discriminações.

Já da perspectiva do ponto-de-vista escola-professor ou aluno-professor, não há exigência alguma expressamente estabelecida.

É certo que, deve-se esperar que o tratamento dispensado pela escola ou pelos alunos aos professores seja respeitoso, digno, ético, mas, as exigências são muito mais rigorosas em relação aos professores, não tendo existido avanços recentes na história do país que pudessem indicar a modificação deste paradigma.

Evidente que as Recomendações da UNESCO/OIT clamam por um tratamento mais humano, mais digno, do professorado, mas seu conteúdo é ignorado pela maioria esmagadora da população e não seriam de base a quaisquer modificações legislativas que pudesse contemplar a melhoria da situação do professorado.

Ressalte-se, que, nos termos do quanto preconizado pela UNESCO e pela OIT, as recomendações de 1966 e 1997 foram idealizadas para servir de base às leis nacionais e às práticas respeitantes aos professores e para influenciar o desenvolvimento e interpretação das leis e práticas adotadas nacionalmente196.

Dessa forma, conquanto as recomendações da OIT não estejam sujeitas a ratificações dos países, nem tenham signatários nacionais, todos os Estados-membros da OIT e UNESCO têm o dever de conhecê-las e devem comprometer-

196 Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0016/001604/160495por.pdf>. Acesso em 03 out. 2014.

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se a aplicá-las, sendo este o caso do Brasil197.Buscando ressaltar a importância da profissão docente, a UNESCO

lança anualmente campanhas por ocasião do dia mundial do docente. Para o ano de 2014, o tema escolhido para a comemoração do dia

mundial do docente é “desenvolvimento profissional dos professores e suas condições de trabalho”. Já a campanha de 2013 da UNESCO tinha por principal mote o combate à escassez de professores: o tema da comemoração foi “Um chamado à docência”.198 O tema ressaltava que, os docentes são a força mais enérgica em prol da equidade, do acesso e da qualidade do ensino, exortando a luta por uma educação de melhor qualidade para todos. Ainda segundo a campanha

(...) a educação de qualidade oferece ensino e entranha a promessa de melhores níveis de vida. Não há cimento mais sólido para a paz duradoura e o desenvolvimento sustentável que uma educação de qualidade, oferecida por mestres competentes, estimados, apoiados e motivados199.

A campanha de 2012 trazia o tema “Apóie seus professores”200, gizando

197 “A produção normativa da OIT é composta de convenções e de recomendações (Constituição da OI, art. 19), que formam o chamado “Código Internacional do Trabalho”. (...) As recomendações são propostas de normas ou de medidas que podem ser adotadas pelos Estados em seus respectivos ordenamentos internos. Não são vinculantes, exceto pelo fato de que criam para o Estado que as adota a obrigação de submissão ao seu conteúdo à autoridade nacional competente para legislar ou para adotar outras providências referentes à matéria versada dentro do prazo máximo de doze meses ou, excepcionalmente de dezoito meses. Sua aprovação requer o voto favorável de dois terços dos delegados presentes à sessão da OIT. A recomendação é, em regra, utilizada para tratar de temas controvertidos ou acerca dos quais o Direito comparado ainda não permita que se constate a existência de soluções generalizadas para certas questões, com o intuito de motivar a universalização de determinadas regras. É também empregada para regulamentar a aplicação de princípios gerais inseridos nas convenções. É, ainda, o recurso adotado quando não for possível a adoção imediata de uma convenção. Na prática, funcionam, juntamente com as convenções não-ratificadas, como soft Law ou como verdadeiras fontes materiais de direito, inspirando e orientando a elaboração de fontes formais. O procedimento detalhado referente à preparação da recomendação consta do art. 19, par. 6º da Constituição da OIT. No Brasil, as recomendações devem ser submetidas ao processo legislativo cabível no Congresso Nacional, para que seu conteúdo seja transformado em lei.” (PORTELA, pp. 484-486).198 Un llamamiento a la docência.199 Habida cuenta de que los docentes son la fuerza más enérgica en pro de la equidad, el acceso y la calidad de la enseñanza, un llamamiento a la docência significa uma exortación en favor de la educación de calidad para todos. La educación de calidad ofrece esperanza y entraña la promesa de mejores niveles de vida. No hay cimiento más sólido para la paz duradera y el desarrollo sostenible que una educación de calidad, impartida por maestros competentes, estimados, apoyados y motivados. 200 Apoya a tus docentes.

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a necessidade de toda a sociedade e o Estado oferecerem apoio em sentido amplo à docência, facilitando a atuação desses profissionais e incentivando-os em sua profissão.

Além das campanhas em prol da valorização da docência, a UNESCO disponibiliza dados que confirmam a situação preocupante da docência no Brasil e no mundo: 1,58 milhões de novos postos de magistério eram requeridos em 2013 para alcançar uma educação primária universal até 2015; 3,66 milhões de recolocações seriam necessárias de 2013 até 2015; de 2013 até 2015 seriam precisos mais 5,24 milhões de docentes adicionais; na atualidade, 57 milhões de crianças com idade para cursar estudos primários estavam sem escolarizar-se e 54% destas eram meninas; as carências anuais em pessoal docente na Nigéria poderiam ser superadas contratando o equivalente a 1,2% da população de 20 anos, 0,5% dessa população nos Estados Unidos e 1% para China201.

Ainda segundo a UNESCO, o acesso à escola segue aumentando, mas não existem docentes suficientes para garantir a todas as crianças e adolescentes a educação primária ou o ciclo de educação secundária. Se nada mudar, muitos países seguirão enfrentando em 2030 uma grave escassez de docentes em ambos os níveis educativos202.

Segundo WEBBER; VERGANI (2010, p. 8808) “não é de hoje que a profissão professor é tratada como diferenciada, ante a complexidade e o nível de desgaste físico e emocional que encerra a rotina docente”.

2. READAPTAÇÃO DOCENTE

Interessa aqui investigar o que vem a ser a readaptação do servidor, e, mais especificamente, a readaptação do professor.

Readaptação é um substantivo feminino, do verbo readaptar; o servidor submetido à readaptação é denominado pelo adjetivo readaptado203.

O vocábulo readaptação (re + adaptação), em termos leigos, possui o sentido de “nova adaptação a condições anteriores que se fizeram presentes”204.

201 Disponível em: <http://www.unesco.org.br/new/es/unesco/events/prizes-and-celebrations/celebrations/international-days/ world-teachersday-2013/>. Acesso em: 21 set. 2014.202 El acceso a la escuela sigue aumentando, pero no hay suficientes docentes para garantizarles a todos los niños, niñas y adolescentes la educación primaria o el ciclo básico de educación secundaria. Si nada cambia, muchos países seguirán afrontando em 2030 uma grave escasez de docentes em ambos niveles educativos, según nuevas proyeccionaes del Instituto de Estadística de la UNESCO. Disponível em: <http://visual.ly/la-escasez-crónica-de-docentes>. Acesso em: 21 set. 2014.203 Disponível em: <http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=23>. Acesso em: 30 jul. 2014.204 Disponível em: <http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua= portugues-portugues&palavra= readapta%E7%E3o>. Acesso em: 30 jul. 2014.

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Já para o Direito, traduz-se, simplificadamente, em “aproveitamento dos serviços do funcionário público, em cargo ou carreira de acordo com sua capacidade intelectual ou vocacional”205.

Trata-se a readaptação de instituto previsto nos estatutos de servidores da União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios.

O instituto não encontra previsão na Constituição Federal de 1988 ou em suas antecessoras, tendo a Constituição de 1934 tratado do instituto do aproveitamento do professor ao dispor que, extinta a cadeira, este seria aproveitado na regência de outra, em que se mostrasse adaptado206.

A readaptação consiste no reconhecimento de uma situação especial de saúde na vida do servidor, que se encontra em condições de limitação profissional.

O professor efetivo poderá ser readaptado ex officio ou a pedido do interessado, sempre que for julgado necessário pelo órgão competente, em função compatível, em caráter temporário ou definitivo, por motivo de saúde ou incapacidade física, após conclusões médicas acerca da restrição laborativa.

CARVALHO FILHO (2012, p. 613) ensina que

Readaptação é forma de provimento pela qual o servidor passa a ocupar cargo diverso do que ocupava, tendo em vista a necessidade de compatibilizar o exercício da função pública com a limitação sofrida em sua capacidade física ou psíquica.

A readaptação funcional é definida pela Prefeitura do Estado de São Paulo como a

atribuição de atividades compatíveis com a capacidade física ou psíquica do servidor que, a critério médico, apresente comprometimento parcial, permanente ou temporário de sua saúde, que o incapacite para o exercício de suas tarefas habituais.207

205 Loc. cit.206 O artigo 158 da Constituição de 1934 dizia ser “vedada a dispensa do concurso de título e provas no provimento dos cargos do magistério oficial, bem como, em qualquer curso, a de provas escolares de habilitação, determinadas em lei ou regulamento. §1º- (omissis). §2º- Aos professores nomeados por concurso para os institutos oficiais cabem as garantias de vitaliciedade e de inamovibilidade nos cargos, sem prejuízo do disposto no Título VII. Em casos de extinção da cadeira, será o professor aproveitado na regência de outra, em que se mostre habilitado”. 207 Disponível em: <http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/planejamento/ portal_do_servidor/ manual_de_saude _do_servidor/index.php?p=15350>. Acesso em 21 set. 2014.

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O Observatório de Educação – Ofício Docente (2009) define readaptação como

(...) a situação jurídica que envolve o trabalhador que não se encontra na capacidade laborativa para exercitar as tarefas de seu cargo. Trata-se de uma pessoa que não está clinicamente apta para fazer o trabalho rotineiro, relacionado à sua função, mas também não é considerada, pela perícia médica, clinicamente inapta para receber uma licença ou se aposentar por invalidez208.

FALCONI (2011) define a readaptação como

instituto previsto nos diversos estatutos de servidores públicos dos entes da federação (União, Distrito Federal, Estados e Municípios). Tecnicamente, trata-se de uma forma de provimento derivado, por força da qual o servidor deixa um cargo antigo e assume um novo cargo, não sofrendo ascensão ou rebaixamento. O que motiva esse provimento são limitações físicas e mentais supervenientes.

Trata-se, como definido pelo SIASS Inconfidentes – Subsistema Integrado de Atenção à Saúde do Servidor, da “investidura do servidor em cargo de atribuições e responsabilidades compatíveis com a limitação que tenha sofrido em sua capacidade física ou mental, verificada em inspeção médica”209.

SANGIACOMO leciona que, “a readaptação é uma das formas de provimento derivado em cargos públicos; como o próprio nome indica, não é provimento autônomo, mas sim proveniente de relação jurídica anterior mantida entre o servidor e o Poder Público”210.

A Resolução SGP 04, do Departamento de Perícias Médicas do Estado de São Paulo, de 21/02/2013211, dispõe sobre a importância de promover condições para a recuperação e reabilitação laborativa dos servidores readaptados, bem

208 Apud ANTUNES, 2014,p. 25.209 Disponível em: <http://www.proad.ufop.br/siass/index.php/pericia/licencas/65-readaptacao-funcional-de-servidor-por-reduca-de-capacidade-laboral-2>. Acesso em: 24 jul. 2014.210 Disponível em: <http://portaltj.tjrj.jus.br/c/document_library/get_file?uuid=a61c3108-0669-4497-adec-d8a9edc48f6f &groupId=10136>. Acesso em: 24 jul. 2014.211 Disponível em: <http://www.dpme.sp.gov.br/mais220213.html>. Acesso em: 21 set. 2014.

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como de conferir maior agilidade e eficiência à padronização do instituto da readaptação e editar normas relativas ao tema, dispondo em seu artigo 1º que:

O servidor público estadual poderá ser readaptado quando ocorrer modificação de suas condições de saúde que altere sua capacidade de trabalho.

O servidor efetivo212, in casu, o professor, que apresente limitações de ordem física ou psíquica para o desempenho de suas funções, faz jus a requerer ou pode ser encaminhado por indicação médico-pericial para a readaptação funcional.

A readaptação funcional é necessária quando o funcionário sofre restrição física ou mental, que redunde na necessidade de mudanças em relação às atividades até então executadas. Se o servidor ainda pode executar a maior parte das atividades inerentes ao cargo para o qual prestou concurso, não pode ser reaproveitado em outro cargo.

A readaptação se mostra não apenas necessária para adaptar o trabalho a uma situação de vida experimentada pelo servidor, mas, também, imprescindível, como meio de impedir que a saúde do professor seja agravada. Nesse sentido o seguinte julgado do Tribunal de Justiça de Minas Gerais:

Mandado de segurança – Servidor – Doença – Readaptação – Possibilidade. O servidor público que se encontra impossibilitado de exercer as funções inerentes ao cargo que ocupa, por motivo de doença, deve ser readaptado, a fim de que a sua situação de saúde não seja agravada, mormente por constar tal forma de provimento no Estatuto Municipal.(Processo nº 1.0134.06.067373-5/001 – Relator Des. Teresa Cristina da Cunha Peixoto. Julgamento em 11/10/2007. Publicação em 17/01/2008. Disponível em <http://www.tjmg.jus.br>. Acesso em: 26 set. 2014).

Anote-se que, a readaptação encontra previsão no Estatuto do Servidor Público Federal e nos Estatutos dos Estados-membros e dos Municípios, sendo observado por estes o princípio do paralelismo da forma.

212 O servidor admitido a título temporário vinculado compulsoriamente ao Regime Geral de Previdência Social (RGPS) não faz jus à readaptação. Disponível em: <http://www.portaldoservidor.sc.gov.br/index.php? option=com_ content &task =view&id=66>. Acesso em: 23 jul. 2014.

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A readaptação está prevista, em âmbito federal, no artigo 24 da Lei Federal nº 8.112/1990, Estatuto do Servidor Público, o qual reza que, “readaptação é a investidura do servidor público em cargo de atribuições e responsabilidades compatíveis com a limitação que tenha sofrido em sua capacidade física ou mental, verificada por inspeção médica”.

Pode ocorrer ainda que, ao invés ou além da modificação das funções anteriormente realizadas, seja necessária a mudança de lotação, ou seja, de local de trabalho do servidor, de forma a adequar-se o trabalho com as limitações vivenciadas pelo profissional e devidamente reconhecidas por uma junta médica designada pelo órgão competente213.

Nesse caso, o novo cargo a ser ocupado pelo servidor readaptado deve ter atribuições e nível de escolaridade semelhantes, bem como equivalência de vencimentos com o cargo anteriormente ocupado.

Inicialmente, a readaptação ocorre por prazo certo, para aproveitamento do profissional na realização de atribuições diferentes, compatíveis com o cargo ocupado e a sua condição funcional.

No caso de persistirem as limitações funcionais, o servidor pode encaminhar novo pedido, pugnando pela prorrogação do benefício.

De outro lado, cessando as condições que impuseram a readaptação, o servidor retornará às suas funções anteriores.

A readaptação pode ser cancelada antes do seu término se o servidor, reavaliado em perícia da competência da Gerência de Perícia Médica, se mostrar recuperado.

Em geral, tanto o servidor, como sua chefia imediata, como o médico perito do departamento responsável pela avaliação daquele, podem solicitar a sua avaliação para readaptação.

Para solicitação pelo servidor, este deve levar o pleito ao conhecimento de sua chefia imediata, informando a dificuldade funcional experimentada, de forma que possam ser tomadas as providências administrativas necessárias ao caso.

Em muitos casos, o servidor deseja ser readaptado para continuar em atividade, o que deve ser prontamente atendido, desde que previamente autorizado pelos médicos. Tal providência visa atender única e exclusivamente a dignidade da pessoa humana, servindo de importante passo para a recuperação pessoal.

A readaptação é um direito do servidor, condicionado à permissão médica exarada em laudo pericial para exercer nova atividade compatível com a situação física e mental ostentada à época do retorno ao trabalho, como se

213 Disponível em: <http://www.senado.gov.br/senado/portaldoservidor/jornal/jornal105/ qualivida_readaptação. aspx>. Acesso em: 23 jul. 2014.

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verifica do aresto a seguir, do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais:

Reexame necessário – Mandado de segurança – Readaptação – Funções compatíveis com as condições físicas – Necessidade de perícia a ser realizada por perito do INSS – Imprescindível para a concessão da readaptação funcional que o laudo pericial oficial, a cargo do INSS, recomende o afastamento do servidor das funções inerentes do seu cargo, definindo as atribuições e responsabilidades compatíveis com sua capacidade física ou mental. Ausência de ofensa a direito líquido e certo (Processo nº 1.0309.05.009579-8/001 – Relator: Des. Belizário de Lacerda. Relator do acórdão: Des. Heloisa Combat – Julgamento em 27/02/2007 – Publicação em 22/05/2007).

Agendada a pericia, a decisão sobre a concessão ou não do benefício pode ocorrer logo após a primeira avaliação pericial pela junta médica, ou, após avaliação a ser procedida por assistente social e/ou psicólogo, ficando, ainda, a critério dos peritos examinadores solicitar exames complementares, parecer especializado ou perícia móvel, antes de opinar favoravelmente ou não pelo benefício (denominados ‘casos inconclusivos’).

Não concordando com a decisão que determine ou negue a readaptação, o servidor pode interpor pedido de reconsideração e recurso.

Realizada a perícia médica e emitido laudo pericial, o servidor tem direito, inclusive, a pedido de reconsideração pericial, que deve ser formulado por escrito, com justificativa técnica, e encaminhado à junta de peritos, que concluirá pelo indeferimento definitivo ou reagendamento da prova.

Constatada a incapacidade do servidor para as atribuições do seu cargo, será solicitada a lista das atribuições inerentes ao cargo à área de recursos humanos, para fins de avaliação dos itens que podem ou não ser realizados pelo servidor.

A readaptação se fará por (i) redução ou cometimento de encargos diversos daqueles que o servidor estiver exercendo, respeitadas as atribuições da série de classes a que pertencer ou de que for ocupante e (ii) pelo provimento em outros cargos, quando não poderá haver descenso nem elevação de vencimento. O servidor público que for reaproveitado não pode ter seus vencimentos reduzidos, tendo em vista que tal medida é proibida pela Constituição Federal em seu artigo 37, inciso XV.

Nesse sentido os julgados a seguir colacionados:

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MANDADO DE SEGURANÇA – SERVIDOR PÚ-BLICO ESTADUAL – PROFESSOR READAPTA-DO EM FUNÇÕES BUROCRÁTICAS POR RE-COMENDAÇÃO MÉDICA – SUPRESSÃO DA GRATIFICAÇÃO DE REGÊNCIA DE CLASSE E ABONOS PREVISTOS NAS LEIS ESTADUAIS 12.667/03 E 13.135/04 – IMPOSSIBILIDADE DE DECESSO REMUNERATÓRIO – DIREITO LÍQUI-DO E CERTO. É entendimento pacífico nesta Corte que o professor afastado de sala de aula por motivos de saúde e readaptado para outra função administrativa não pode, em razão disso, sofrer a perda da gratificação de regência de classe, que já compunha a sua remune-ração. Nessa mesma linha, idêntica interpretação deve ser concedida aos abonos previstos nas leis estaduais n. 12.667/03 e nº 13.135/04, eis que ambos decorrem do mesmo fato, o efetivo exercício de serviço em sala de aula como professor quando, por recomendação médi-ca, teve que se afastar, visto que a readaptação funcio-nal não pode redundar em prejuízo financeiro ao pro-fessor (TJSC – MS: 88494 SC 2005.008849-4, Relator Min. Volnei Carlin, Data de julgamento 10/08/2005, Grupo de Câmaras de Direito Público, Mandado de segurança da capital. Disponível em <http://www.tjsc.jus.br>. Acesso em: 26 set. 2014).

MANDADO DE SEGURANÇA. PROFESSORA READAPTADA EM FUNÇÕES BUROCRÁTICAS. GRATIFICAÇÃO DE REGÊNCIA DE CLASSE SUPRIMIDA. ILEGALIDADE. DIREITO À SUA PERCEPÇÃO. PRECEDENTES. SEGURANÇA CONCEDIDA (TJSC – MS: 162545 SC 2004.016254-5, Relator: Vanderlei Romer, Data de julgamento 08/09/2004, Grupo de Câmaras de Direito Público, Mandado de segurança da capital. Disponível em <http://www.tjsc.jus.br>. Acesso em: 26 set. 2014).

SANGIACOMO214 (p.7) anota que, o provimento em outros cargos “é de constitucionalidade duvidosa, pois a readaptação não está prevista na Cons-

214 Disponível em: <http://portaltj.tjrj.jus.br/c/document_library/get_file?uuid=a61c3108-0669-4497-adec-d8a9edc48f6 f&groupId=10136>. Acesso em: 24 jul. 2014.

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tituição, e a lei, em tese, não pode prever hipótese de provimento de cargo pú-blico não prevista no texto constitucional”.

A junta oficial em saúde, de posse da listagem das atribuições do cargo, sugerirá os itens que poderão ser realizados pelo servidor, devido à limitação imposta por sua doença ou lesão215.

A readaptação tem início quando oficializada mediante publicação oficial (exemplo: Diário Oficial da Cidade de São Paulo – DOC; Diário Oficial do Estado de São Paulo - DOE), através do Ato de Readaptação.

Readaptado o servidor, é expedido laudo de Readaptação Funcional, declinando as atividades compatíveis a serem atribuídas. É condição para o ato de readaptação que o servidor seja considerado apto física e psicologicamente para realizar as atividades determinadas.

Se o servidor encontrar dificuldades na realização das atividades relacionadas no laudo de Reabilitação Funcional, deve expô-las à chefia imediata, que poderá oferecer solução para o caso. Se o resultado de tal providência se mostrar insatisfatório, o servidor readaptado poderá recorrer a órgão ou servidor investido da função de interlocutor de readaptação funcional.

O servidor readaptado pode solicitar avaliação de licença médica quando estiver incapacitado para o desempenho de suas atividades em razão de piora da moléstia que originou sua readaptação, ou apresentar patologia diferente daquela. O médico perito do departamento de perícias avaliará, então, a necessidade de afastamento.

Em casos de prorrogação de readaptação funcional, procede-se da mesma forma como a primeira solicitação, com apresentação de formulário no qual é informado o desempenho do servidor no período já readaptado216.

Caso não haja um cargo para o qual o servidor possa ser readaptado, compatível com suas limitações, a junta médica deverá sugerir sua aposentadoria por invalidez217.

215 A SIASS utiliza o seguinte critério para verificação da necessidade ou não de readaptação: “Caso o servidor seja capaz de executar mais de 70% das atribuições de seu cargo, configura-se caso de restrição de atividades e deverá retornar ao trabalho no seu próprio cargo, mesmo que seja necessário evitar algumas atribuições. A junta orientará a chefia imediata quanto às atividades que deverão ser evitadas. Caso o servidor não consiga atender a um mínimo de 70% das atribuições de seu cargo, deverá ser sugerida a sua readaptação para um cargo afim, nos termos da legislação vigente (Oficio Circular nº 37, de 16 de agosto de 1996). Nesse caso, estando o servidor capaz de atender a mais de 70% das atribuições de seu novo cargo, a junta deverá indicar a sua readaptação, ficando a critério dos recursos humanos as providências necessárias para a publicação do Ato de Readaptação”. Disponível em: <http://www.proad.ufop.br/siass/index.php/pericia/licencas/65-readaptacao-funcional-de-servidor-por-reduca-de-capacidade-laboral-2>. Acesso em: 24 jul. 2014.216 Disponível em: <http://www.portaldoservidor.sc.gov.br/index.php?option=com_content&task=view&id=66>. Acesso em: 23 jul. 2014.217 Disponível em: <http://www.proad.ufop.br/siass/index.php/pericia/licencas/65-readaptacao-

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MANDADO DE SEGURANÇA – PROFESSOR ESTADUAL – READAPTAÇÃO FUNCIONAL – EXERCÍCIO DE ATIVIDADES ADMINISTRA-TIVAS E DE CARG DE DIRETOR DE ESCOLA – CÔMPUTO PARA APOSENTADORIA ESPECIAL – POSSIBILIDADE – NOVA ORIENTAÇÃO DO STF – ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA – AGRAVO REGIMENTAL PREJUDICADO. A readaptação o professor por motivo de saúde decorre de recomendação médica e, a partir do diagnóstico, a Administração Pública é quem determina, com base na limitação da capacidade física ou mental constata-da, quais as atividades poderão ser por ele exercidas, de modo que absolutamente nada depende da vontade do docente. Então, se o problema de saúde que leva à readaptação funcional não depende do livre arbí-trio do professor, mormente porque ele não tem esse poder de escolha (adoecer ou não), é evidente que o tempo de serviço referente ao período em que estiver readaptado, exercendo atividades administrativas bu-rocráticas, deve ser computado para fins de aposenta-doria especial de professor ou professora. Precedente do STF nesse sentido: RE n. 481798/SC, Rel. Min. Carmem Lucia, DJe de 03/06/2009. De igual modo, de acordo com o Supremo Tribunal Federal, a partir do julgamento da ADI n. 3772, o tempo em que o professor exerceu o cargo de Diretor de Escola deve ser considerado como “função de magistério” e, por isso, computado para fins de aposentadoria especial.(Processo nº 1.0134.06.067373-5/001 – Relator Des. Teresa Cristina da Cunha Peixoto. Julgamento em 11/10/2007. Publicação em 17/01/2008. Disponível em <http://www.tjmg.jus.br>. Acesso em: 26 set. 2014).

Finalmente, esclareça-se que, a readaptação não pode ser cancelada se persistirem as condições que a determinaram. Como gizado pelo Des. Antônio Sérvulo no julgamento do processo nº 1.0134.06.066286-0/001, do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, supracitado, “concedida a readaptação funcional por motivo de problema de saúde, seu cancelamento é indevido se estão mantidas as condições que a determinaram”.

funcional-de-servidor-por-reduca-de-capacidade-laboral-2>. Acesso em: 24 jul. 2014.

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Necessária a observância da competência do servidor por ocasião de sua readaptação. Isso porque, mesmo numa condição especial, de limitação parcial da sua capacidade laboral, o professor readaptado ainda pode contribuir de forma eficaz para com o processo educacional, desde que lhe seja dada oportunidade de desempenhar suas atividades em local que lhe permita melhor adaptação a sua peculiar situação.

Há, portanto, que se considerar as necessidades de cada professor readaptado per si, maximizando suas condições e capacidade laborativa, de um lado, e, reinserindo-o no seu grupo de trabalho e processo educativo de outro218, minimizando, assim, para o professor, os reflexos negativos que possam advir da readaptação.

Indispensável a análise das competências funcionais do servidor, adequando-as a suas limitações funcionais, lotando-o em lugar adequado e proporcionando-lhe meio ambiente de trabalho equilibrado, para que possa bem desempenhar suas funções, sob pena de caracterização de lesões ao direito subjetivo do professor readaptado.

A adequada verificação das competências e limitações, bem como a supressão de tarefas que possam ser consideradas difíceis de serem executadas, substituindo-as por outras, tem a possibilidade de oferecer ao readaptado uma vida funcional quase tão plena quanto antes.

3. MUDANÇAS NA PERCEPÇÃO DA FIGURA DOS PROFESSORES

Segundo VASCONCELOS (1997, p. 20), desde 1983 a OIT aponta os docentes como sendo a segunda categoria profissional que mais sofre com doenças de caráter ocupacional em nível mundial.

Afirmam WEBBER; VERGANI (2010, p. 8820) que, “a profissão de professor vem sofrendo crescente desprestígio e, paradoxalmente, cada vez maiores cobranças: ritmo acelerado, maior tempo despendido, maior responsabilidade e complexidade das tarefas”.

De acordo com a UNESCO, mudanças nas políticas de contratação e formação docente poderiam ajudar a resolver parte dos problemas com a escassez de docentes, mas poder-se-ia questionar: se a oferta de professores já é tão insuficiente e ainda assim estes profissionais não são valorizados, a que quadro submeter-se-iam se existissem em quantidade e qualidade suficientes para suprir a necessidade do país?

218 SANGIACOMO afirma a necessidade de se formar um paralelo entre as necessidades dos profissionais readaptados e suas competências. Disponível em: <http://portaltj.tjrj.jus.br/c/document_library/get_ file?uuid=a61c3108-0669-4497-adec-d8a9 edc48f6f&groupId=10136>. Acesso em: 24 jul. 2014.

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Impõe-se a mudança da forma como são percebidos e tratados os professores com vistas à melhora de sua condição e de nosso país.

Essa mudança é possível e está, inclusive, em consonância com os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, de “construir uma sociedade livre, justa e solidária”, de “garantir o desenvolvimento nacional”, de “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” e, finalmente, de “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (artigo 3º, I a IV, CF/88).

Todos esses objetivos são mais possíveis com uma educação de qualidade, com professores respeitados, dignificados.

É dever de todos e de cada um, lutar por esta mudança de compreensão dos professores, de forma a não apenas imputar-lhes a obrigação de servirem como catalisadores do processo de transformação que somente a educação pode oferecer mas, também, outorgando-lhes os merecidos direitos e garantias que necessitam para bem realizar o seu mister.

FREIRE (2014, p. 45) assim leciona

Saliente-se que o discurso da impossibilidade da mudança para a melhora do mundo não é o discurso da constatação da impossibilidade mas o discurso ideológico da inviabilização do possível. Um discurso por isso mesmo, reacionário; na melhor das hipóteses, um discurso desesperadamente fatalista.O discurso da impossibilidade de mudar o mundo é o discurso de quem, por diferentes razões, aceitou a acomodação, inclusive por lucrar com ela. A acomodação é a expressão da desistência da luta pela mudança. Falta a quem se acomoda, ou em quem se acomoda fraqueja, a capacidade de resistir. É mais fácil a quem deixou de resistir ou a quem sequer foi possível em algum tempo resistir aconchegar-se na mornidão da impossibilidade do que assumir a briga permanente e quase sempre desigual em favor da justiça e da ética.Mas, é importante enfatizar que há uma diferença fundamental entre quem se acomoda perdidamente desesperançado, submetido de tal maneira à asfixia da necessidade, que inviabiliza a aventura da liberdade e a luta por ela, e quem tem, no discurso da acomodação, um instrumento eficaz de sua luta – a de

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hostilizar a mudança. O primeiro é o oprimido sem horizonte; o segundo, o opressor impenitente.

É preciso mudar; é possível mudar. Como ressaltado no excerto supra, quem se acomoda desiste da luta pela

mudança por ser um “oprimido sem horizonte” ou um “opressor impenitente”. Decerto que, a população está mais para “oprimida sem horizonte”, eis que, de forma geral, se acomodou desesperançada, como ressaltado pelo autor, e hoje já não luta mais. Cabe indagar, porém, sobre os governos, que não podem repousar na ausência de perspectivas, já que eleitos justamente para entreve-las; esses são “opressores impenitentes”.

CONCLUSÃO

O direito à educação deve ser compreendido como direito fundamentalíssimo, e mecanismo de acesso a uma sociedade justa, sendo forçosa a compreensão da figura dos professores, em razão da importância do papel que desenvolvem no processo de ensino-aprendizagem.

Mostra-se inadmissível, portanto, que, objetivos tão nobres possam ser alcançados às custas da integridade física e/ou psicológica daqueles que a promovem.

A importância da educação como direito e a inegável contribuição e importância dos professores para a sua efetivação são questões são inegáveis, como também são inegáveis as diversas preocupações contemporâneas acerca da saúde e integridade dos professores (mais especialmente dos professores readaptados) na atualidade.

Resta assim evidenciada a necessidade de análise do panorama jurídico de professores e readaptados, como meio de contemplação dos mecanismos disponibilizados pela Constituição Cidadã para a sua garantia e da forma como os mesmos vêm sendo ou podem ser utilizados.

A compreensão do instituto da readaptação e dos diversos conflitos jurídicos daí decorrentes é tema complexo, dos mais importantes para a área da Educação (por tratar de direitos dos seus atores principais) e do Direito (em razão das inúmeras lides e controvérsias acerca de questões que lhe são correlatas).

No intuito de atender às necessidades dos professores readaptados, cumpre ao Direito reconhecer os mecanismos e instrumentos necessários e mais adequados à garantia de seus direitos, motivo pelo qual, mostra-se imperativa, num primeiro momento, o conhecimento do cenário de readaptação docente no Brasil, com a continuidade da pesquisa, viabilizando-se, dessa maneira, o esmerilhamento do problema, haja vista que, a vida na sociedade

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do risco219 e a modernidade líquida220 tornam imprescindíveis a prevenção e a reparação de danos decorrentes de condutas antijurídicas que maceram os interesses patrimoniais e morais dos indivíduos (professores readaptados, no caso particular), lesionando não apenas o professor-readaptado, mas, também, a parcela da coletividade composta por este grupo de pessoas.

Busca-se, portanto, aferir, a partir deste estudo, se os direitos dos professores, especialmente dos readaptados, sua integridade física e psíquica, vem sendo ou não realizado.

Como ressaltam ANDRADE; MASSON; ANDRADE (2012, p. 1), “historicamente, à medida que a sociedade evolui, traz consigo novos tipos de conflitos de interesse”. Para estes autores, a pacificação necessita da atuação do direito para a reordenação do direito material e aperfeiçoamento do direito processual para sua solução eficiente, garantindo os novos direitos reconhecidos.

Os professores estão submetidos a fatores de risco, que agravam a possibilidade de seu adoecimento e retiram inúmeros profissionais anualmente das salas de aula. Não bastasse o déficit de professores no Brasil, este número ainda sofre redução devido a licenças de saúde, exonerações, aposentadorias, readaptações etc., interessando especialmente esta última.

Muitos são os motivos que podem deflagrar a readaptação de professores, estando as patologias divididas, basicamente, em físicas e psíquicas. As patologias físicas são, de modo geral, facilmente identificáveis, ao contrário, das de fundo psíquico, silenciosas, invisíveis, e, até hoje, pouco pesquisadas.

São diversos os problemas noticiados nos principais meios de comunicação sobre o sistema de ensino e que afetam diretamente o professorado: desvalorização do professor, precarização de suas condições de trabalho, pagamento de baixos salários e sobrecarga de trabalho etc.

Impõe-se, pois, a reflexão sobre o tema da concretização de direitos dos professores readaptados, com vistas a que sejam delimitados as principais lesões perpetradas contra este grupo, cujo mal estar e adoecimento cresce cada vez mais, evidenciando, dessa forma, a importância da preservação da

219 A expressão é utilizada pelo alemão Ulrich Beck em seu livro La sociedad del riesgo: Hacia uma nueva modernidad, explicitando o fato de as transformações sociais, políticas, econômicas e tecnológicas vivenciadas no mundo nas últimas décadas influenciarem as novas realidades, escapando cada vez mais das instituições de controle e proteção da sociedade. Como características da sociedade do risco podemos destacar, exemplificativamente, que: os riscos causam danos sistemáticos e, geralmente, irreversíveis; a repartição e o incremento dos riscos segue um processo de desigualdade social; as fontes que davam significado coletivo aos cidadãos estão em processo de “desencantamento” (BECK, 2006, passim).220 A expressão é utilizada por Bauman em suas obras – e especialmente no livro Modernidade líquida – para tratar do fenômeno de suplantação da modernidade “sólida”, acarretando, assim, profundas mudanças em todos os aspectos da vida humana, tornando-a mais “leve”, “líquida”, “fluida” (BAUMAN, 2001, passim).

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sua incolumidade física e psíquica e, ressaltando o papel da ciência jurídica nessa empreita.

As conclusões ofertadas buscam impedir que os professores readaptados sofram com a ausência de concretização de seus direitos e com ambientes de trabalho deteriorados, sendo despojados de direitos que lhes são assegurados por lei; tal objetivo, porém, não será possível enquanto esse grupo não for corretamente identificado e se tornar objeto de maior interesse e visibilidade legal e acadêmica.

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