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03/08/2015 COMO SE DÁ A SUJEIÇÃO DO SUJEITO http://www.urutagua.uem.br//03rodrigues.htm 1/6 Resumo Tratase de um exercício de reflexão sobre a liberdade e as razões que levam os homens à servidão consentida. E mais, sobre o poder, que é comumente exercido através de mecanismos que submetem os indivíduos até o ponto em que negamse a si mesmos e se sujeitam a situações que, por vezes, sequer são condizentes com sua condição humana. Observamos que a busca da liberdade tem se constituído numa das lutas mais presentes na história dos homens e que, talvez, jamais seja alcançada na sua plenitude. Palavras chave: Liberdade, poder. Ano I Nº 03 Dezembro de 2001 Quadrimestral Maringá PR Brasil ISSN 1519.6178 A sujeição em La Boétie e Foucault: refletindo sobre liberdade Ana Lúcia Rodrigues * “Ousarei o que um homem pode ousar!“ Macbeth INTRODUÇÃO Buscaremos refletir sobre a liberdade, ou antes, sobre a constante perda que sofre o homem toda a vez que consente em submeterse. Após estudar O Discurso da Servidão Voluntária de Etienne de la Boétie (15301563), é impossível não se sentir muito incomodado com a seguinte questão: por que consentimos em submeternos? Para refletir sobre os mecanismos de submissão do poder, estudaremos paralelamente a La Boétie, algumas obras de Michel Foucault, nas quais ele discute a relevância alcançada pelo poder sobre os homens, reconhecendo a existência da liberdade apenas como reação ao poder. Foucault (1985:8889) concebe poder, ...como a multiplicidade de correlações de força imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua organização; o jogo que, através de lutas e afrontamentos incessantes as transforma, reforça, inverte; os apoios que tais correlações de força encontram umas nas outras, formando cadeias ou sistemas ou, ao contrário as defasagens e contradições que as isolam entre si; enfim, as estratégias em que se originam e cujo esboço geral ou cristalização institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na formulação da lei, nas hegemonias sociais. (...) é o suporte móvel das correlações de força que, devido a sua desigualdade, induzem continuamente estados de poder, mas sempre localizados e instáveis.(...) O poder está em toda parte; não porque englobe tudo, e sim porque provém de todos os lugares.(...) o poder não é uma instituição e nem uma estrutura, não é uma certa potência de que alguns sejam dotados: é o nome dado a uma situação estratégica complexa numa sociedade determinada. As relações entre a questão inspirada por La Boétie e as discussões de Foucault sobre o poder é que buscaremos alcançar nesse trabalho. O aprofundamento das razões de nossa submissão é uma daquelas necessárias tentativas de escapar à tendência atual de se retirar das pessoas os desejos de liberdade, as utopias em torno de sociedades de indivíduos integrais, enfim, os sonhos que têm dado uma direção para a humanidade. Hoje há carência de questionamentos sobre sermos livres, provavelmente porque, admitese comumente a liberdade como pressuposto, sendo impossível afirmar em determinados lugares o contrário. A sociedade é legalmente constituída e a liberdade só se efetiva nas relações com o poder, porquanto a submissão ao “poder” é que garante aos cidadãos a condição de livres. Continuamos perguntando: que espécie de liberdade é essa? Será a única possível? Ao homem não deve restar então a esperança de encontrar aquela chama ardente que tem perseguido ao longo das gerações? Várias são as concepções de liberdade que encontramos. Por exemplo, para Rosseau o homem nasceu livre mas a sociedade impede a liberdade; em Kant os homens para serem livres devem obedecer as leis que são externas a eles; da mesma forma Hobbes considera a impossibilidade do homem exercer livremente sua existência. Essas e outras leituras acrescentam noas questões à primeira: Em que medida a liberdade não é usurpada pelo poder? Em que medida a liberdade passa a ser um elemento que justifica o poder político? Como falar em liberdade se existe poder? Como falar em liberdade se não existe poder? Por que o valor liberdade foi apropriado e é utilizado por diferentes campos do pensamento e por diferentes campos das práticas e das ideologias? O gozo da liberdade será sempre insuficiente?

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Artigo que analisa a concepção de sujeito na obra de Michel Foucault.

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ResumoTrata­se de um exercício de reflexão sobre a liberdade e as razões que levam os homens à servidãoconsentida. E mais, sobre o poder, que é comumente exercido através de mecanismos que submetem osindivíduos até o ponto em que negam­se a si mesmos e se sujeitam a situações que, por vezes, sequersão condizentes com sua condição humana.

Observamos que a busca da liberdade tem se constituído numa das lutas mais presentes na história doshomens e que, talvez, jamais seja alcançada na sua plenitude.

Palavras chave: Liberdade, poder.

Ano I ­ Nº 03 ­ Dezembro de 2001 ­ Quadrimestral ­ Maringá ­ PR ­ Brasil ­ ISSN 1519.6178

A sujeição em La Boétie e Foucault: refletindo sobreliberdade

Ana Lúcia Rodrigues*

“Ousarei oque umhomem podeousar!“

Macbeth

INTRODUÇÃO

Buscaremos refletir sobre a liberdade, ou antes, sobre a constante perda que sofre o homemtoda a vez que consente em submeter­se. Após estudar O Discurso da Servidão Voluntária deEtienne de la Boétie (1530­1563), é impossível não se sentir muito incomodado com a seguintequestão: por que consentimos em submeter­nos? Para refletir sobre os mecanismos desubmissão do poder, estudaremos paralelamente a La Boétie, algumas obras de MichelFoucault, nas quais ele discute a relevância alcançada pelo poder sobre os homens,reconhecendo a existência da liberdade apenas como reação ao poder. Foucault (1985:88­89)concebe poder,

...como a multiplicidade de correlações de força imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de suaorganização; o jogo que, através de lutas e afrontamentos incessantes as transforma, reforça, inverte; osapoios que tais correlações de força encontram umas nas outras, formando cadeias ou sistemas ou, aocontrário as defasagens e contradições que as isolam entre si; enfim, as estratégias em que se originam ecujo esboço geral ou cristalização institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na formulação da lei, nashegemonias sociais. (...) é o suporte móvel das correlações de força que, devido a sua desigualdade, induzemcontinuamente estados de poder, mas sempre localizados e instáveis.(...) O poder está em toda parte; nãoporque englobe tudo, e sim porque provém de todos os lugares.(...) o poder não é uma instituição e nem umaestrutura, não é uma certa potência de que alguns sejam dotados: é o nome dado a uma situação estratégicacomplexa numa sociedade determinada.

As relações entre a questão inspirada por La Boétie e as discussões de Foucault sobre o poderé que buscaremos alcançar nesse trabalho. O aprofundamento das razões de nossa submissãoé uma daquelas necessárias tentativas de escapar à tendência atual de se retirar das pessoasos desejos de liberdade, as utopias em torno de sociedades de indivíduos integrais, enfim, ossonhos que têm dado uma direção para a humanidade.

Hoje há carência de questionamentos sobre sermos livres, provavelmente porque, admite­secomumente a liberdade como pressuposto, sendo impossível afirmar em determinados lugareso contrário. A sociedade é legalmente constituída e a liberdade só se efetiva nas relações como poder, porquanto a submissão ao “poder” é que garante aos cidadãos a condição de livres.Continuamos perguntando: que espécie de liberdade é essa? Será a única possível? Ao homemnão deve restar então a esperança de encontrar aquela chama ardente que tem perseguido aolongo das gerações?

Várias são as concepções de liberdade que encontramos. Por exemplo, para Rosseau o homemnasceu livre mas a sociedade impede a liberdade; em Kant os homens para serem livresdevem obedecer as leis que são externas a eles; da mesma forma Hobbes considera aimpossibilidade do homem exercer livremente sua existência. Essas e outras leiturasacrescentam noas questões à primeira: Em que medida a liberdade não é usurpada pelopoder? Em que medida a liberdade passa a ser um elemento que justifica o poder político?Como falar em liberdade se existe poder? Como falar em liberdade se não existe poder? Porque o valor liberdade foi apropriado e é utilizado por diferentes campos do pensamento e pordiferentes campos das práticas e das ideologias? O gozo da liberdade será sempre insuficiente?

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PRIMEIRA PARTE: LA BOÉTIE PERGUNTA ACERCA DAS CONDIÇÕES DA SUBMISSÃO

Etienne de La Boétie escreveu em 1548 um “panfleto” [1] chamado Discurso da ServidãoVoluntária no qual busca responder sobre as razões que levam os homens a obedecerem a umou mais senhores. Inicia­o com uma fala de Ulisses em Homero que diz ser preciso obedecer aum só rei.

Porém vai afirmar ser um infortúnio estar sujeito quer a um ou a mais de um homem, “o qualnunca se pode se certificar de que seja bom, pois sempre está em seu poderio ser mau quandoquiser; e em ter vários senhores, quantos se tiver quantas vezes se é extremamente infeliz”(La Boétie, 1999:11). Para ele (Ibid., p.12) importa entender

...como pode ser que tantos homens, tantos burgos, tantas cidades, tantas nações suportam às vezes umtirano só, que tem apenas o poderio que eles lhe dão, que não tem o poder de prejudicá­los senão enquantotêm vontade de suportá­lo, que não poderia fazer­lhes mal algum senão quando preferem tolerá­lo acontradizê­lo. Coisa extraordinária, por certo; e porém tão comum que se deve mais lastimar­se do queespantar­se ao ver um milhão de homens servir miseravelmente, com o pescoço sob o jugo, não obrigados poruma força maior, mas de algum modo (ao que parece) encantados e enfeitiçados apenas pelo nome de um,de quem não devem temer o poderio pois ele é só, nem amar as qualidades pois é desumano e feroz paracom eles.

Para La Boétie (Ibid., p.13) é sempre lamentável que a maioria sirva à minoria, muitas vezescomposta não de um forte que se impõe por isso, mas, de “homenzinhos” covardes. E os quese submetem? Serão igualmente covardes?

Ora, naturalmente em todos os vícios há algum limite além do qual não podem passar; doispodem temer um e talvez dez; mas mil, um milhão, mil cidades, se não se defendem de um,não é covardia, que não chega a isso, assim como a valentia não chega a que um só escaleuma fortaleza, ataque um exército, conquiste um reino. Então, que monstro de vício é esseque ainda não merece o título de covardia, que não encontra um nome feio o bastante, que anatureza nega­se ter feito, e a língua se recusa nomear?

A defesa da liberdade parece ser um imenso incentivo a toda e qualquer luta. A bravura queum homem mostra quando empunha uma bandeira para ser livre é de se admirar. Esse é umdaqueles momentos raros em que vem à luz as características melhores do humano; em quevislumbramos um sentido para a vida que cotidianamente não encontramos.

Para deixar de servir La Boétie mostra que não é necessário tirar nada do tirano, basta nadalhe dar, basta não fazer nada contra si. Restabelecer a liberdade significa “...de bicho voltar aser homem” (Ibid., p.14), pois os homens só não terão a liberdade, se não a desejarem. Oautor (Ibid., p. 16) pergunta:

Aquele que vos domina tanto só tem dois olhos, só tem duas mãos, só tem um corpo, e não tem outra coisaque o que tem o menor homem do grande e infinito número de vossas cidades, senão a vantagem que lhedais para destruir­vos. De onde tirou tantos olhos com os quais vos espia, se não os colocais a serviço dele?Como tem tantas mãos para golpear­vos, se não as toma de vós? Os pés com que espezinha vossas cidades,de onde lhe vêm senão dos vossos? (...) Semeais vossos frutos para que deles faça o estrago; mobiliais eencheis vossas casas para alimentar suas pilhagens; criais vossas filhas para que ele tenha com queembebedar sua luxúria, criais vossos filhos para que ele faça com eles o melhor que puder, leve­os em suasguerras, conduza­os à carnificina, torne­os ministros de suas cobiças e executores de suas vinganças; (...).Decidi não mais servir e sereis livres...

A seguir busca as raízes da servidão, para ele tão profundas que o homem já nem sente aliberdade como um bem natural, pois se assim fosse “...seríamos naturalmente obedientes aospais, sujeitos à razão e servos de ninguém” (Ibid., p. 17). Outrossim reconheceríamos a todosos demais como iguais (“irmãos”). A natureza não teria enviado para cá a todos como se fossepara uma guerra, onde o mais forte dominaria sobre o mais fraco.

Prossegue argumentando em favor da liberdade ser natural, utilizando exemplos apanhadosentre os animais: os bois que gemem sob peso do jugo, o pássaro que se debate na gaiola, oelefante que, na iminência de ser capturado crava seu marfim nas árvores, etc. e pergunta:“...que mau encontro foi esse que pôde desnaturar tanto o homem, o único nascido de verdadepara viver francamente, e fazê­lo perder a lembrança de seu primeiro ser e o desejo deretomá­lo?”(Ibid., p. 19)

Sendo homem só duas razões podem levar à sujeição: “que sejam forçados ou iludidos” (Ibid.,p. 20). Os primeiros que são subjugados o são pela força, porém os que vêm depois aceitam aservidão de bom grado. “Desse modo os homens nascidos sob o jugo, mais tarde educados e

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criados na servidão, sem olhar mais longe, contentam­se em viver como nasceram; e comonão pensam ter outro bem nem outro direito que o que encontraram, consideram natural acondição de seu nascimento” (Ibid).

La Boétie reconhece que a natureza tem menos poder sobre os homens do que o costume, poisé natural ser livre, mas se a liberdade não for cultivada ela se perde e aí o homem seacostuma à servidão e a acha natural. Aí está portanto a primeira razão da servidãovoluntária: o costume (Ibid., p. 24).

Desta primeira, afirma decorrer outra: “que sob os tiranos as pessoas facilmente se tornamcovardes e efeminadas”(Ibid., p. 25). Exemplifica com Hipócrates, que não se corrompeu pelospresentes e promessas do rei, mantendo­se fiel aos seus bons princípios. Gente subjugada éincapaz de grandes coisas sendo sempre muito frouxas. E mais, afirma que: “o natural daarraia miúda, cujo número é cada vez maior nas cidades, é que seja desconfiada para comaquele que a ama e crédula para com aquele que a engana” (Ibid., p. 27).

Uma série de ferramentas são utilizadas pelo tirano para entorpecer o povo: teatros, jogos,farsas, espetáculos, gladiadores, bichos estranhos, medalhas e principalmente festas commuita comida. Porém adverte La Boétie (Ibid., p. 28) que, “Os broncos não percebiam queapenas recobravam parte do que era seu e que até mesmo no que recobravam o tirano nãolhes tivesse tirado.”

Uma característica da tirania, conforme La Boétie (Ibid., p. 29), é criar um ambiente demistério em torno dos superiores:

Os reis da Assíria e também, depois deles, os de Média só se apresentavam em público o mais tarde quepodiam, para fazer a populaça se perguntar se não eram algo mais que homens e deixar nesse devaneio agente de bom grado imaginativa para com as coisas que não pode julgar com os olhos. Assim, com essemistério, tantas nações, que durante muito tempo pertenceram ao império assírio, acostumavam­se a servir eserviam com mais boa vontade por não saberem que senhor tinham nem a muito custo se tinham, e todostemiam acreditando em um que ninguém jamais vira.

Os tiranos alcançam a obediência dos súditos também por devoção. La Boétie (Ibid., pp. 31­32) apresente a seguir as bases onde se apoia a tirania:

No meu juízo, muito se engana quem pensa que as alabardas, os guardas e a disposição das sentinelasprotegem os tiranos. Creio que a eles recorrem mais como formalidade e espantalho do que por confiança. Osarqueiros proíbem a entrada do palácio aos mal­vestidos que não têm meios, não aos bem­armados quepodem fazer alguma empresa. Certamente é fácil contar que entre os imperadores romanos não foram tantosos que conseguiram escapar de algum perigo graças aos seus guardas quanto os que foram mortos por seuspróprios arqueiros. Não são os bandos de gente a cavalo, não são as companhias de gente a pé, não são asarmas que defendem o tirano; de imediato, não se acreditará nisso, mas com certeza é verdade. São semprequatro ou cinco que mantêm o tirano; quatro ou cinco que lhe conservam o país inteiro em servidão. (..)Cinco ou seis (...) Esses seis têm seiscentos que crescem debaixo deles e fazem de seus seiscentos o que osseis fazem ao tirano. Esses seiscentos conservam debaixo deles seis mil, cuja posição elevaram; aos quaisfazem dar o governo das províncias ou o manejo do dinheiro para que tenham na mão sua avareza e crueldadee que as exerçam no momento oportuno; e, aliás, façam tantos males que só possam durar à sua sombra eisentar­se das leis e da pena por seu intermédio. Grande é o séquito que vem depois e quem quiser divertir­seesvaziando essa rede não verá os seis mil mas os cem mil, os milhões que por essa corda agarram­se aotirano servindo­se dela como Júpiter em Homero, que se gaba de trazer a si todos os deuses ao puxar acorrente...

Assim que um governante declara­se tirano, toda escória, tudo o que é ruim o cerca, buscandorealizar sob o vilão maior, suas pequenas vilanias. Mas, pergunta o autor: “...o que éaproximar­se do tirano senão recuar mais de sua liberdade e, por assim dizer, apertar com asduas mãos e abraçar a servidão?” (Ibid., p.33) A um tal ponto de submissão chegam, que osespezinhados do povo são mais livres e felizes que eles; todos os seus sentidos têm que estarvoltados o tempo todo para a satisfação do tirano. É o preço que pagam para ter bens, “comose alguém pudesse ter algo de seu sob um tirano” (Ibid.). Muitos dos tiranos antigos, por todasessas razões, acabavam mortos pelos mais próximos e favoritos, como por exemplo,Domiciano por Estéfano, Cômodo por uma de suas amantes, Antonio por Macrino, etc., numademonstração de que amizade só pode haver entre pessoas de bem. Diz que, “Não pode haveramizade onde está a crueldade, onde está a deslealdade, onde está a injustiça; e entre osmaus, quando se juntam, há uma conspiração, não uma companhia; eles não se entre­amam,mas se entre­temem; não são amigos, mas cúmplices” (Ibid., pp. 35­36).

Encerra o texto conclamando as pessoas a fazer o bem, argumentando que, em caso contrário,haverá o encontro com o castigo, o que ao tirano e seus súditos por certo está reservado,considerando­se que a tirania é totalmente contrária a deus.

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SEGUNDA PARTE: REFLETINDO SOBRE PODER E LIBERDADE EM MICHEL FOUCAULT

Em Michel Foucault, nosso contemporâneo, podemos reencontrar a mesma discussão acerca decomo se dá a sujeição, ou, em suas palavras: “... de que regras de direito as relações depoder lançam mão para produzir discursos de verdade? Em uma sociedade como a nossa, quetipo de poder é capaz de produzir discursos de verdade dotados de efeitos tão poderosos?”(Foucault, 1985: 179)

Para esse autor, a liberdade só pode existir em oposição ao poder, pois o poder não é contra aliberdade. Não importa sua origem, importa como ele é, como é exercido. Ainda mais,Foucault (Idem, pp.148­149) afirma que o poder não é apenas repressivo, ele também écriador, subtraindo­lhe a característica negativa quando afirma que,

...se o poder só tivesse a função de reprimir, se agisse apenas por meio da censura, da exclusão, doimpedimento, do recalcamento, à maneira de um grande super­ego, se apenas se exercesse de um modonegativo, ele seria muito frágil. Se ele é forte, é porque produz efeitos positivos a nível do desejo ­ como secomeça a conhecer ­ e também a nível do saber. O poder, longe de impedir o saber, o produz. Se foi possívelconstituir um saber sobre o corpo, foi através de um conjunto de disciplinas militares e escolares. É a partir deum poder sobre o corpo que foi possível um saber fisiológico, orgânico.

Não se deve falar de poder apenas institucional, pois suas relações são muito flexíveis. Opoder exercido pelo síndico de um prédio ou por um policial na esquina é o mesmo poder dopresidente da república ou de um ministro de estado. Poder é diferente de dominação, que nãoé a sua essência; não pode ser reduzido a instituição disciplinar. As reações contrárias aopoder buscam resistir a ele, não eliminá­lo, pois não existe verdadeiramente relações bináriasdo tipo, dominante e dominado. É possível compreender sua racionalidade no seufuncionamento, pois há uma intencionalidade (estratégia) nos fins, que são decifráveis. AfirmaFoucault (1985:91):

...não busquemos a equipe que preside sua racionalidade; nem a casta que governa, nem os grupos quecontrolam os aparelhos do Estado, nem aqueles que tomam as decisões econômicas mais importantes, geremo conjunto da rede de poderes que funciona em uma sociedade (e a faz funcionar); a racionalidade do poder éa das táticas muitas vezes bem explícitas no nível limitado em que se inscrevem (...) que, encadeando­seentre si, invocando­se e se propagando, encontrando em outra parte apoio e condição, esboçam finalmentedispositivos de conjunto: lá, a lógica ainda é perfeitamente clara, as miras decifráveis e, contudo, acontecenão haver mais ninguém para tê­las concebido e poucos para formulá­las: caráter implícito das grandesestratégias anônimas, quase mudas, que coordenam táticas loquazes, cujos “inventores” ou responsáveisquase nunca são hipócritas.

Há dentro das relações de poder um espaço de enfrentamento: daí a liberdade, ou a suapossibilidade, que só existe pois o poder deflagra reação e quando reagimos, quandoenfrentamos alguém é porque esse espaço existe. Pois, por exemplo, quando as relações sãode constrangimento ou de escravidão não se pode falar sequer em exercício do poder, que sóse exerce efetivamente, afirma Foucault (Ibid.), sobre homens livres.

...lá onde há poder há resistência e, no entanto (ou melhor, por isso mesmo) esta nunca se encontra emposição de exterioridade em relação ao poder. Deve­se afirmar que estamos necessariamente “no” poder, queele não se “escapa”, que não existe, relativamente a ele, exterior absoluto, por estarmos inelutavelmentesubmetidos à lei? Ou que, sendo a história ardil da razão, o poder seria o ardil da história ­ aquele que sempreganha? Isso equivaleria a desconhecer o caráter estritamente relacional das correlações de poder. Elas nãopodem existir senão em função de uma multiplicidade de pontos de resistência que representam, nas relaçõesde poder, o papel de adversário, de alvo, de apoio, de saliência que permite a preensão. Esses pontos deresistência estão presentes em toda a rede de poder.

E aqui, no campo das correlações de força, nossa questão se põe mais explicitamente, atravésda análise dos mecanismos do poder. Pode­se dizer que o sujeito que aceita se submeter ésuprimido. As exceções são os que sabem se libertar. É possível a constituição do sujeito semsujeição? Para Foucault isso implica na transformação do homem como objeto do saber, sendoa liberdade construída num processo, numa vida construída na maneira como cada umdeterminar, “mas, isso não quer dizer que resulte da escolha ou da decisão de um sujeito,individualmente”(Ibid., p.90). Esse paradoxo nos lembra Shakespeare na peça A tempestade,especialmente quando Próspero, o senhor da ilha, se dirige a Ariel, seu súdito, e diz: “Serástão livre como os ventos das montanhas, só porém quando exatamente cumprires em todos osseus pontos as minhas ordens” (Shakespeare, 1914:44).

Por que somos reprimidos, ou como pergunta o autor: “por que dizemos, com tanta paixão,tanto rancor contra nosso passado mais próximo, contra nosso presente e contra nós mesmos,

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que somos reprimidos?” (Foucault, 1985:14).

O poder se mascara sob o aparato jurídico e, afirma o autor, somente assim consegue sertolerável, pois se totalmente cínico fosse, talvez não seria aceito. É admitido pelos homens,“...talvez porque lhes é, na mesma medida, indispensável: aceitá­lo­iam, se só vissem neleum simples limite oposto a seus desejos, deixando uma parte intacta ­ mesmo reduzida ­ deliberdade? O poder, como puro limite traçado à liberdade, pelo menos em nossa sociedade, é aforma geral de sua aceitabilidade”(Ibid., p.83).

Portanto nos caminhos que escolher trilhar ­ não importa onde se chegue ­ e mais, na própriaescolha é que há a liberdade, numa vida construída como cada um determinar, ao criar ascondições de coexistência com o outro, ao se relacionar com todos os demais, pois a liberdadenão pode ser exercida a partir do sujeito e para o sujeito, mas vivenciada por ele nas relaçõescom todos os demais.

TERCEIRA PARTE: POUCAS RESPOSTAS

“...a partir deste momento, os primeiros impulsos do meu coração hão de sertambém os primeiros impulsos da minha mão.”Macbeth

As relações entre a questão primeira levantada por La Boétie e as discussões de Foucaultsobre o poder podem ser vislumbradas nos apontamentos precedentes. É possível encontrar LaBoétie respondendo que a submissão se dá pois o indivíduo a deseja, do contrário dela selibertaria e Foucault afirmando que a liberdade só se constitui dentro das relações de poder,num espaço de enfrentamento que o sujeito estabelece, ou não.

É possível observar que as respostas de ambos têm áreas de confluência. Por exemplo, quandoatribuem ao indivíduo a possibilidade do alcance da liberdade; o primeiro ao afirmar quedizendo não ao jugo o sujeito se livraria das amarras e o segundo imputando ao indivíduo aescolha entre reagir ou não à submissão que sofre.

Se nos processos construídos pelos homens ­ individualmente ou em coletividade ­ é que aliberdade pode ser encontrada, resta­nos buscá­la como um valor que direcione nossas ações.Importante destacar aqui: possivelmente jamais seja encontrada integralmente nenhumaespécie de liberdade, pois toda vez que nos aproximamos o objetivo se afasta constantemente,constituindo­se na “eterna busca” dos homens.

Daí a dificuldade de responder a todas as questões que surgiram dessas nossas reflexões.Parece que a única liberdade possível é aquela constituída nos mecanismos jurídicos a partirdos embates com o poder e, assim sendo, esta seria a liberdade que tanto temos buscado. Amesma que é usurpada pelo poder e então, concedida através de um aparato político que,aliás, se legitima nas próprias concessões.

Diferentes campos do pensamento e diferentes campos das práticas e das ideologias seapropriam da liberdade atribuindo­lhe concepções que identificam a si mesmos, todavia nãoconseguem imprimir à realidade, que muitas vezes coordenam, uma prática efetiva deliberdade.

Enfim, se é necessário continuar questionando para continuarmos a construir o que é maisvaloroso no ser humano, esse trabalho é um exercício que busca contribuir para talconstrução, pois iniciamos com perguntas e finalizamos com muitas mais. Principalmente umaque permaneceu após todas as discussões dessa matéria: o gozo da liberdade será sempreinsuficiente?

* Professora do Departamento de Ciências Sociais da UEM­Universidade Estadual de Maringá edoutoranda no Programa de Pós­Graduação em Ciências Sociais­PUC/SP

[1] No sentido estrito, ou seja, um pequeno escrito polêmico em estilo veemente.______________________

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BIBLIOGRAFIA

LA BOÉTIE, Etienne de. Discurso da Servidão Voluntária. São Paulo, 1999, 239 p.FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade vol. I. Rio de Janeiro, 1985, 152 p._________________. Microfísica do poder. Rio de Janeiro, 1985, 295 p.SHAKESPEARE, W. A Tempestade. Porto, 1914, 188 p._________________. Macbeth. Lisboa­Paris, 1925, 178 p.