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41 ITAICI – REVISTA DE ESPIRITUALIDADE INACIANA, n. 104 (Junho/2016) artigo O autor é Editor da Revista, Assessor Nacional da CVX e orienta Exercícios. Considerações sobre o Corpo e as Adições nos Exercícios Inacianos Emmanuel da Silva e Araujo, SJ 1. Introdução S anto Inácio de Loyola atribui grande valor e importância ao corpo, seja no processo dos Exercícios, seja em toda a vida de louvor e serviço a sua Divina Majestade. No início de sua vida de convertido, com a intensão de rejeitar o espírito mundano e a intemperança, ele se entregou a penitências abusivas e com grandes excessos. Com o conselho de seus confessores, percebeu esse desequilíbrio e aprendeu que penitências muito rigorosas infligidas ao corpo são nocivas à alma e dificultam a experiência de união com Deus. Mais tarde, ele ensinará a seus primeiros Companheiros de Paris, Pedro Fabro e Francisco Xavier, que se preparavam para fazer os Exercícios, a ponderarem sobre o excesso de mortificação. E vendo que São Francisco de Borja, que tinha uma tendência para longas horas de oração e extrema austeridade, corria os mesmos perigos que ele correu, escreve-lhe: “Desejo muito imprimisse V. S. a em sua alma que ela e o corpo pertencem ao seu Criador e Senhor, e deles lhe deve dar inteira conta, e para isso não deve deixar-se enfraquecer a natureza corporal: sendo ela fraca, a espiritual não poderá executar suas ações. (…) Porque tanto devemos querer e amar o corpo, quanto obedece e ajuda a alma, e ela, com tal ajuda e obediência, mais se dispõe ao serviço e louvor de nosso Criador e Senhor. (…) Assim, quando o corpo corre perigo pela demasiada fadiga, coisa sã é procurar tais dons [os dons espirituais] por atos do entendimento e outros exercícios moderados, para que não só a alma seja sã, mas também, com a mente sã em corpo são, tudo se torne mais

Considerações sobre o Corpo e as Adições nos Exercícios … Emmanuel... · Ele não considera o composto da alma e corpo como separados em dois — alma inocente e corpo malicioso

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41ItaIcI – revIsta de espIrItualIdade InacIana, n. 104 (Junho/2016)

artigo

O autor é Editor da Revista, Assessor Nacional da CVX e orienta Exercícios.

Considerações sobre o Corpo e as Adições nos Exercícios Inacianos

Emmanuel da Silva e Araujo, SJ

1. Introdução

Santo Inácio de Loyola atribui grande valor e importância ao corpo, seja no processo dos Exercícios, seja em toda a vida de louvor e

serviço a sua Divina Majestade. No início de sua vida de convertido, com a intensão de rejeitar o espírito mundano e a intemperança, ele se entregou a penitências abusivas e com grandes excessos. Com o conselho de seus confessores, percebeu esse desequilíbrio e aprendeu que penitências muito rigorosas infligidas ao corpo são nocivas à alma e dificultam a experiência de união com Deus.

Mais tarde, ele ensinará a seus primeiros Companheiros de Paris, Pedro Fabro e Francisco Xavier, que se preparavam para fazer os Exercícios, a ponderarem sobre o excesso de mortificação. E vendo que São Francisco de Borja, que tinha uma tendência para longas horas de oração e extrema austeridade, corria os mesmos perigos que ele correu, escreve-lhe:

“Desejo muito imprimisse V. S.a em sua alma que ela e o corpo pertencem ao seu Criador e Senhor, e deles lhe deve dar inteira conta, e para isso não deve deixar-se enfraquecer a natureza corporal: sendo ela fraca, a espiritual não poderá executar suas ações. (…) Porque tanto devemos querer e amar o corpo, quanto obedece e ajuda a alma, e ela, com tal ajuda e obediência, mais se dispõe ao serviço e louvor de nosso Criador e Senhor. (…) Assim, quando o corpo corre perigo pela demasiada fadiga, coisa sã é procurar tais dons [os dons espirituais] por atos do entendimento e outros exercícios moderados, para que não só a alma seja sã, mas também, com a mente sã em corpo são, tudo se torne mais

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são e mais disposto para o maior serviço divino” (Ep. II, 233-237, 20/09/1548).

Neste artigo, refletiremos sobre alguns pontos referentes a essa visão integrada de corpo e alma, própria de Santo Inácio, situando-a em alguns pontos do processo dos Exercícios, para depois refletir sobre a 1ª a 9ª adições1.

2. Inácio de Loyola e o Corpo nos Exercícios Espirituais

Para Santo Inácio, o corpo não é só um meio de expressão: é fundamental e integrante para se viver a experiência de Deus proposta nos Exercícios Espirituais. Desde o início do texto, o corpo está em destaque: “assim como passear, caminhar e correr são exercícios cor-porais, da mesma forma se dá o nome de Exercícios Espirituais a todo e qualquer modo de preparar e dispor a alma, para tirar de si todas as afeições desordenadas e, afastando-as, procurar e encontrar a vontade divina, na disposição da vida para a salvação da alma” [1].

Ao longo do processo dos Exercícios, destacará as necessidades corporais do ser humano, que precisam ser equilibradas e ordenadas para favorecer o bom andamento da experiência do exercitante, tais como: um lugar propício para se retirar [20], sua necessidade de dormir [84] e de cuidar de suas forças corporais [83-85], o equilí-brio na penitência, não exagerando para não prejudicar a saúde, mas também não fugindo dela, com medo de prejudicá-la [86;89]. Na Terceira Semana, depois de indicar as contemplações do dia [204], observa que é preciso cuidar para que não haja excessos prejudiciais à pessoa: “Conforme a idade, as disposições e o temperamento, o exercitante fará a cada dia cinco exercícios ou menos” [205]. E trata até da maneira de comer, nas Regras da Temperança [210-217].

As indicações que Inácio dá para cada exercício sempre destacam a unidade entre o espiritual e o corporal. “A oração pessoal, mesmo que chamada de ‘mental’, nunca será um discurso abstrato e interior, do qual o corpo está ausente”2: posição corporal à distância do local da oração, inclinação com reverência antes de iniciar a oração, não mudar de posição enquanto encontrar fruto na oração… Diversas atitudes corporais que expressam o movimento interior daquele que ora. A única regra é que a alma se satisfaça com a atitude ou postura escolhida [76].

1. Não trataremos da 10ª adição, sobre a penitência. Remetemos ao artigo do Pe. Luis Quevedo, SJ, nesta edição.

2. CORDONNIER, CH. La place du corps dans les Exercices. Christus, n. 35, 1988, p. 511.

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Essa unidade é visível também em algumas maneiras de orar: refletir sobre os cinco sentidos corporais e examinar-se para veri-ficar que faltas cometeu em relação a eles, pedindo a graça de no uso dos sentidos imitar a Jesus Cristo nosso Senhor [238; 247-248]; ou orar segundo o ritmo da respiração [258-260]; ou na aplicação de sen-tidos [121-125]. Aqui Santo Inácio não diz sentidos espirituais mas “aplicação dos cinco sentidos”; depois dirá que “será útil exercitar os cinco sentidos da imaginação” sobre a contemplação feita. Mesmo que nos livros de Exercícios haja notas explicando que esse exer-cício é de ordem intuitiva, que transcende o nível da materialidade dos sentidos corporais, é fato que não podemos exercitar os sentidos da imaginação em uma experiência espiritual profunda, sem passar pela experiência dos sentidos corporais: “separar o corpo da imaginação é uma perfeita ilusão”3.

Para chegar à meditação ou à contemplação, um dos preâmbulos ativa a imaginação [47; 103]. Nas contemplações, a imaginação nos insere na história de Cristo, no seu tempo, nos lugares por onde andou e na vida das pessoas com quem conviveu. E ver as pessoas [106], ouvir o que dizem [107], ver o que fazem [108] — mais ainda, participar da cena contemplada [114] — através da imaginação orante, só é possível pela mediação do corpo. Assim, o exercitante pode colocar-se corporalmente na história de Cristo, relacionar-se com Ele e “crescer no conhecimento interno do Senhor que por mim se fez homem, para mais amá-lo e segui-lo” [104]. Como ex-pressa a primeira Anotação [1], o corporal e o espiritual estão inti-mamente implicados.

3. Um ponto que merece atenção4

Há um ponto na Primeira Semana que merece atenção; o leitor mais atento já o terá recordado. Na primeira composição de lugar dos Exercícios, repetida nos quatro exercícios seguintes, Santo Inácio diz: “ver com o olhar da imaginação e considerar minha alma encarcerada neste corpo corruptível e todo o composto humano neste vale, como que desterrado entre animais irracionais” [47]. Essas imagens fortes podem levar a pensar que ele tinha uma visão dualista, em que o corpo aparece como a parte corrupta do humano e a alma como sua parte pura. Não é essa a sua intenção.

3. LEPPERS, ETIENNE. L’aplication des sens. Christus Hors-série 124 (1984) 107.

4. Cf. CORDONNIER, La place… art. cit., p. 512-514; LEPPER, L’aplication… art. cit., p. 108.

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Como o assunto da meditação é coisa invisível — o pecado —, Inácio usa imagens vigorosas que pretendem ajudar a ver com os olhos da imaginação essa coisa invisível, para assim poder compreender que é todo o composto humano que é lugar do pecado e sofre as suas conse-quências: prisão, desterro e corrupção. Ele o afirma ao final: “Digo todo o composto, isto é, da alma e corpo”. Desse modo “o pecado, cuja raiz é sempre invisível, será reconhecido em um imaginário ‘visível’, como uma espécie de degradação, de ‘desarmonia’, de contradição interna, que só podem causar aborrecimento e repulsa no exercitante, que se considera como ‘uma chaga e abscesso, donde saíram tantos pecados e tantas maldades e veneno tão hediondo’ e que não pode ver mais que sua ‘corrupção’ e sua ‘fealdade corporal’ [58]”5.

Portanto, Santo Inácio não propõe a rejeição a um corpo cor-ruptível e prejudicial à alma. Ele não considera o composto da alma e corpo como separados em dois — alma inocente e corpo malicioso — e nem que, pela malícia do pecado, uma torna-se prisioneira do outro. Sua intenção é mostrar a força infecciosa do pecado, sua ilusão, que conduz à solidão, desfiguração e deformidade extremas do humano. Na meditação do inferno, ele ressalta a unidade de corpo e alma, do hu-mano que padece: “Ver com os olhos da imaginação os grandes fogos e as almas como que em corpos incandescentes” [66]. Em suma, o corpo não é uma realidade separável da totalidade da pessoa.

4. “Adições para melhor fazer os Exercícios e melhor encontrar o que se deseja”

Os Exercícios pedem uma grande disposição e empenho do exercitante. Eles não são um conjunto de práticas diversas e descone-xas, que se realizam durante um mês, mas tudo forma uma unidade, com um processo interno bem articulado, em vista do fruto a ser alcançado. Cada Semana, cada dia dentro da Semana e cada oração em um dia tem seu lugar nesse processo interno e, por isso, há um “modo e ordem” [2] e tudo deve ser dado “na mesma ordem” [20], respeitando uma estrutura e uma pedagogia que ensinam o exercitante a dispor-se para deixar o Criador que se comunica com a criatura agir em sua vida [15]6. Por isso, ele precisa ser ajudado para não se distrair com nada que não tenha relação com a etapa em que se encontra, mesmo que sejam “pensamentos bons e santos” [206].

5. CORDONNIER, La place… art. cit., p. 513.

6. Cf. PALAORO, Adroaldo. A ex-periência espiritual de Sto. Inácio e a dinâmica interna dos Exercícios. São Paulo: Loyola, 1992.

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Dentre as ajudas que Santo Inácio oferece para o exercitante fazer melhor os Exercícios e encontrar o que deseja [73], estão as adições: são prescrições complementares, com orientações pedagógicas que, se observadas, ajudam efetivamente a consegui-lo. Elas proporcionam os meios para que o exercitante tenha o espírito centrado na busca do fruto desejado, pois quem tem o entendimento dividido entre muitas coisas [20] fica disperso, perde o foco e compromete esse fruto. O Diretório do Pe. Ceccotti7 diz:

“Além disso, a norma segura para medir essas coisas toma-se do proveito interior da alma, ao qual tudo isso de exterior deve ordenar-se. Por exemplo, a separação do trato externo visa a que o ânimo se separe do pensamento e solicitações das coisas que perecem; o encerrar o corpo entre as estreitezas de um aposento é para que a alma se recolha toda em si mesma e se esconda no mais íntimo do coração; o fechar as janelas, a privação de luz, o manter os olhos baixos, ajuda para que a alma não se ponha a voar pelos sentidos caso encontre as portas abertas. Busca-se, pois, a solidão da alma, não a do corpo, para que reunidas todas as suas forças e aplicadas a uma só coisa, realize melhor o trabalho de sua salvação. Esses cuidados exteriores são ne-cessários como meios subsidiários e, portanto, devem ser muito estimados” (D 47,43).

Santo Inácio recomenda que se aplique “todas as dez adições com muito cuidado” [130] e que, ao final do dia, no exame particu-lar, o exercitante verifique se as observou bem [90]. E, caso ele não experimente o movimento de espíritos durante os Exercícios, quem o acompanha deve perguntar-lhe se está observando diligentemente as adições [6].

“A palavra adição ou acréscimo significa que existe uma coisa que ocupa o lugar principal e que a esta se lhe acrescentam outras de ordem secundária”8. O principal e mais importante nos Exercícios é o fim a que se propõem: tirar de si as afeições desordenadas para buscar e encontrar a vontade de Deus na disposição da própria vida [1]. Essa é a sua alma e a sua vida e, desaparecendo esse fim, teríamos em mãos apenas um manual com uma série de práticas devotas. Por isso, Santo Inácio quer manter o exercitante sempre focado nesse fim, recordando-o constantemente, fazendo com que penetre nele e o ame até enamorar-se dele, e que o ponha como fundamento de todas as suas ações e operações durante os Exercícios.

7. Diretórios são compilações de indicações práticas sobre como dar os Exercícios, escritas por Jesuítas das primeiras gerações. Cf. VV. AA. Los Directorios de los Ejercicios 1540-1599. Bilbao-Santander: Mensajero-Sal Terrae, 2001.

8. CASANOVAS, Ignacio. Ejercicios de San Ignacio (Tomo II). Barce-lona: Balmes, 1954, p. 385.

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Assim, as adições não são simplesmente meios práticos para aju-dar a rezar melhor, como se fossem rubricas adicionais aos Preâmbulos, voltadas somente a cada exercício. Sua amplitude e importância são muito maiores: elas estão direcionadas ao processo inteiro, à totali-dade do tempo de Exercícios, e visam criar as condições indispensáveis para fazê-los melhor e para melhor encontrar o que se deseja [73]. Elas “têm a finalidade de assegurar a plena fecundidade do retiro em seu desenvolvimento progressivo e segundo sua finalidade própria”9, mantendo o foco do exercitante no fim que ele persegue, que é a finalidade última dos Exercícios e o fruto esperado em cada etapa. Por isso, as adições são ajustadas, de acordo com as características de cada Semana [73-87; 130;206;229], para que os ambientes interno e externo contribuam sempre para essa busca.

A finalidade das adições é, então, “manter vivo o espírito do exercitante, concentrando-o por inteiro no fim buscado nos Exercícios”10. Elas atuam como “um despertador que nos acompa-nha a todas as horas, impulsionando-nos continuamente para que não percamos de vista o fim que buscamos”11: servem de aviso para que a rotina e a distração não tomem conta do exercitante e para que ele se sinta sempre estimulado a empenhar-se na busca desse fim. Como expressa o próprio título, as adições querem levar a um magis: destinam-se a melhor fazer os Exercícios e a melhor encontrar o que se deseja [73]. Isso significa que a pessoa buscará viver os Exer-cícios e cada exercício com muito “ânimo e generosidade para com seu Criador e Senhor” [2].

5. As adições e o corpo

Uma fonte das dificuldades encontradas pelo exercitante pode ser “uma aproximação demasiadamente mental dos Exercícios, que não deixa espaço suficiente para a dimensão corporal na experiência espiritual. Os Exercícios, no entanto, apelam à pessoa toda para entrar na experiência”12. Conforme aparece desde o início, na Anotação 1, trata-se de Exercícios corporalmente espirituais13; sem a integração da experiência corporal, o processo todo fica comprometido. Portanto, “para que os Exercícios Espirituais produzam hoje todos os seus frutos, temos que devolver às adições toda a sua importância, pois o que está em jogo é que estas podem despertar a sede dos afetos através de experiências corporais”14.

9. COATHALEM, Hervé. Com-mentaire du livre des Exercices. Paris: Desclée de Brouwer, 1965, p. 142.

10. Ibid., p. 101.

11. Ibid., p. 386.

12. FORNOS, Fréderic; HERVé, Véronique. Ejercicios “para gustar de las cosas internamente”. La ex-periencia corporal de las adiciones. Manresa, n. 74, 2002, p. 219.

13. Cf. GARCÍA-MONGE, J. Antonio. Los Ejercicios corporalmente es-pirituales. In ALEMANY, C.; GARCÍA MONGE, J. (Orgs). Psicologia y Ejercicios Ignacianos v. I. Bilbao-Santander: Mensajero-Sal Terrae, 1996, p. 294-309.

14. FORNOS, Ejercicios para… art. cit., p. 227.

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As adições, como foi dito, não são simplesmente regras com-plementares às orientações da oração. Esse enfoque pode “levar a considerar os exercícios de oração como momentos um tanto desen-carnados, aos quais seria necessário adicionar algo exterior, corporal”15. O lugar do corpo nas adições não deve ser entendido somente em termos de exterioridade, como lugar de expressão de alguns gestos durante a oração. Nesse caso, a dimensão corporal apareceria como parte de um ritual vazio de sentido, um movimento exterior que não se conecta com a experiência interior.

Na experiência de Santo Inácio não é assim. Ele não foi um pensador teórico, mas um homem que forjou uma pedagogia espi-ritual a partir de sua própria experiência de encontro pessoal com Deus, enraizada na longa tradição de homens e mulheres de oração na Igreja. Ele sabia que, além das disposições interiores, o tempo e o lugar da oração, os gestos e as posições corporais da pessoa que ora, são fundamentais para o encontro fecundo com Deus. E sabia da íntima ligação desses elementos todos. Assim, ele elabora uma série de orientações16 para ajudar o exercitante a viver a experiência de encontro com Deus nos Exercícios. Essas são verdadeiros ri-tuais17, que devem ser praticados com consciência de seu significado e intenção e não como mera formalidade.

Os rituais são importantes para a vida humana. O ser huma-no se comunica e se relaciona não só pelas palavras, mas por uma grande variedade de sinais: o olhar, o sorriso, o abraço, o aperto de mão… Os gestos são muitas vezes mais eloquentes que a palavra na expressão do que se passa no interior da pessoa. Daí a importância desses rituais corporais na oração: eles introduzem a pessoa no espaço do sagrado [75], ajudam a manter a unidade do tempo de Exercícios [73-74], a aprofundar a experiência dos gestos [77] e a aprender a dar tempo à ação divina [77], a proporcionar o ambiente externo e interno que colabore com a experiência [78-79], a recolher o fruto da experiência com posturas corporais que facilitem esse momento [76] e a vencer as tendências que podem prejudicar o processo de busca da vontade de Deus [80-87].

A psicologia atual mostra que corpo e mente estão unidos, de modo que “não há nada mental que não tenha um substrato e reper-cussão corporal, nem há nada corporal que não tenha uma repercussão na mente”18. Inácio demonstra uma fina intuição psicológica e articula todas as dimensões humanas para estimular a experiência afetiva do exercitante, fazendo-o compreender que a realidade corporal e os

15. Ibid, p. 220.

16. “Anotações”, “Regras”, “Preâm-bulos”, “Adições”, “Notas”.

17. Cf. BARREIRO, Álvaro. Buscar a Deus e encontrar-se em Deus. Como orar no mundo de hoje. São Paulo: Loyola, 2005. O autor descreve esses rituais inacianos, mostrando como entrar na ora-ção e como orar com o corpo e com o afeto.

18. DOMÍNGUEZ MORANO, Carlos. Psicodinámica de los Ejercicios Ignacianos. Bilbao-Santander: Mensajero-Sal Terrae, 2004, p. 65.

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estímulos externos são essenciais para a experiência de oração nos Exercícios. Nestes, o falar vocal ou mentalmente com Deus com-promete o afeto, de modo que o exercitante deve, simultaneamente, deixar que seus afetos sejam mobilizados e envolver-se na relação com o Criador que se comunica com ele [15].

Esse movimento do afeto envolve também o corpo e as adições contribuem para buscar a postura e as disposições corporais que mais o ajudem. Não se trata de algo mecânico ou externo. O conjunto das adições cria um clima que possibilita o encontro com o Criador. A postura não é neutra: depende do tema da oração, dos sentimentos e desejos do exercitante, das lutas, resistências, encontros e desencontros que experimenta durante o exercício. O exercitante deve estar sempre à escuta da postura corporal, atento àquela que mais o ajude a melhor fazer os Exercícios e a melhor encontrar o que deseja. A seguir, vamos refletir sobre essas questões comentando algumas dessas adições.

6. A primeira adição

“Depois de me deitar e estando a ponto de adormecer, pensar, pelo espaço de uma Ave-Maria, na hora em que e para que devo levantar-me, resumindo o exercício que tenho de fazer” [73].

A primeira adição “refere-se ao último ato deliberado do dia que termina, e ordena-o à etapa do dia seguinte e ao fruto que se espera dele”19. É uma atitude prospectiva: coloca-se uma semente que, durante o sono, amadurecerá para o dia seguinte. Inácio não deixa nada solto à mera impulsividade e ao capricho. Ele intui que o espaço do sono não está vazio e vê a importância do último ato consciente antes de dormir — “pronto para dormir” — para as dis-posições da manhã seguinte. Desse modo, apresenta meios para que, ao terminar o dia, o exercitante concentre todos os dinamismos da alma nessa direção20.

Há aqui uma intuição dos nexos entre consciente e inconsciente: “Com essa técnica, Inácio nos introduz no âmbito do inconsciente, sobre o qual não temos controle, para colocá-lo a favor do processo de ordenar a vida e de buscar e encontrar a vontade de Deus. Ou seja, nos umbrais do sono, as imagens e o pensamento sobre o assunto da meditação ou contemplação do dia seguinte ficam presentes no inconsciente enquanto dormimos e vão deixando suas marcas”21. A adição tem três elementos, descritos a seguir22.

19. COATHALEM, Commentaire du livre… op. cit., p. 143.

20. O Pe. Mariano Ballester faz uma leitura da primeira adição a partir dos conhecimentos da psicologia profunda e de suas de-rivações sobre os sonhos. Mostra como podem ajudar no cresci-mento espiritual, especialmente nas experiências de sonhos que acontecem nos Exercícios. Cf. BALLESTER, Mariano. “Ya que me quiera dormir…”. La prime-ra adición, clave de integración onírica, in ALEMANY, Psicologia y… op. cit., p. 22-34. Cf. também BALLESTER, Mariano. Meditar um sonho. Dimensão religiosa do mundo onírico. São Paulo: Loyola, 1988; GRÜN, Anselm. Os sonhos no caminho espiritual. Curitiba: Lyra Editorial, 2002.

21. DOMÍNGUEZ MORANO, La psicodinámica… op. cit., p. 66.

22. Cf. CASANOVAS, Ejercicios de… op. cit., p. 387-388.

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Determinar a hora de levantar-se. Decisões desse tipo são de grande eficácia para o caso de, no dia seguinte, a pessoa ser tomada pelo desânimo, por alguma aridez ou desolação. É fundamental que não se deixe nada ao acaso, mas se estabeleça uma disciplina que evite a preguiça e a dispersão do entendimento dividido entre muitas coisas [20], mantendo a unidade interior e o foco, indis-pensáveis para se fazer bem os Exercícios. Isso estabelece um marco que possibilita ao exercitante, conscientemente, agir contra essas resistências que podem surgir ao acordar e para não deixar-se tomar pela tibieza.

Pensar no “para que” vou me levantar na hora marcada. Não é um projetar-se friamente ao início do próximo dia; é, antes de dormir, fazer um ato fervoroso da vontade, manifestando que quer e deseja o fruto da oração do dia seguinte, dispondo-se internamente a buscá-lo decididamente. Recolher-se mantendo esse foco ajuda também a despertar o desejo de iniciar a jornada de exercícios do dia seguinte com ânimo e generosidade [2].

Resumir o exercício que tenho que fazer. Aqui não se trata de mais um exercício no dia, mas de, em um tempo breve, interiorizar o conteúdo da oração do dia seguinte e dispor-se a manter a unidade interior também durante o sono. Inácio diz pelo espaço de uma Ave-Maria, isto é, durante o tempo que se leva para rezá-la (quando rezada piedosamente, é claro; não em ritmo atropelado).

7. A segunda adição

“Ao despertar, não dando lugar a estes nem a aqueles pensamentos, atender logo ao que vou contemplar no primeiro exercício…” [74].

A segunda adição ordena o primeiro ato do dia e estabelece uma conexão com o conteúdo que foi projetado no ato prospectivo da noite anterior, conforme a primeira adição. Santo Inácio reconhece a eficácia desse primeiro ato do dia, como maneira de garantir a unidade interior, fundamental para evitar a dispersão que pode levar a pessoa a perder o foco na busca da vontade de Deus nos Exercícios23.

Ela tem duas partes. Uma é negativa: não dar espaço para outros pensamentos. Os primeiros pensamentos do dia influem na maneira como a pessoa vai vivê-lo. Ao despertar, é comum que venham mui-tas coisas à mente, relativas ao que temos que fazer naquele dia, e, muitas vezes, lembramos disso com frequência, até que o façamos. Se

23. Nesse sentido, ajuda propor ao exercitante uma Revisão do dia, a cada noite: simplesmente lançar um olhar retrospectivo sobre o dia que passou e tomar consciência do seu principal fruto. Registrá-lo, em uma ou duas palavras, e recordá-lo ao amanhecer. Trata-se não só de fazer memória, mas de uma atitude prospectiva decidida, da vontade e do coração, para manter o foco na unidade interior que pedem os Exercícios: “inicio meu dia a partir do fruto do dia anterior”.

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o exercitante já começa o dia distraído e disperso com coisas alheias aos Exercícios, terá dificuldade em manter a unidade interior.

Nos Exercícios, nos afastamos de amigos, conhecidos e preocupações [20], mas, mesmo nesse contexto Santo Inácio quer concentrar a atenção por inteiro no exercício que se há de fazer em seguida, e aqui está a parte positiva da adição: dar logo atenção ao que vou contemplar. Ao despertar, o exercitante deverá focar imediatamente sua atenção no assunto que vai contemplar ou meditar, sem dar lugar a outros pensamentos [74]. Essa conexão interior entre o dia anterior e o que se inicia, mantendo o foco nas matérias de oração é fundamental para que ele possa encontrar a vontade de Deus na disposição de sua vida.

Aqui não se trata de recordar fria ou mecanicamente o resumo do exercício que tenho que fazer, mas de, com essa memória, mobilizar o desejo de fazer a oração e de, já ao despertar, entrar no espírito dela. Assim, o exercitante criará o ambiente espiritual que lhe possibilitará entrar nesse dia de Exercícios com ânimo e generosidade para com seu Criador e Senhor [2], determinado e empenhado a melhor achar o que deseja.

“Não se cumpre bem, pois, a segunda adição resumindo os pontos que vou meditar. O principal é renovar e avivar o melhor possível o sentimento que devo ter e que exige o ponto dos Exercícios em que me encontro, pois esse sentimento contém todo o fruto obtido até o momento”24. Se a pessoa entra na contemplação com esse ânimo, terá assegurado o caminho para chegar ao fruto desejado. Daí que devem ser feitas mudanças fundamentais nessa adição, em função da Semana em questão [74; 130; 206; 229].

8. A terceira adição

“A um ou dois passos do lugar onde hei de fazer a contemplação ou meditação, por-me-ei de pé, pelo espaço de um Pai-Nosso, com o pensamento dirigido para o alto, considerando como Deus Nosso Senhor me olha etc. Fazer depois uma reverência ou hu-milhação” [75].

As duas primeiras adições nos colocam no espaço da preparação anímica e espiritual para a oração. Mas Inácio sabe que o ser humano é uma unidade e, por isso, preparar o anímico e o espiritual envolve também o corpo. A unidade interior é cultivada na pessoa toda, e não só na memória que recorda. Por isso, é fundamental a atitude

24. CASANOVAS, Ejercicios de… op. cit., p. 391-392.

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corporal. Ao deter-se, em pé, a um ou dois passos do lugar onde fará a oração, com o pensamento para o alto, e considerar como Deus o olha, o exercitante faz um gesto que estabelece a consciência de uma presença: a presença do Criador que age com a criatura.

A atitude interior da criatura que se aproxima do Criador e experimenta que Ele se aproxima dela é a reverência: ela é o “sinal claro da consciência que se adquire diante do mistério de Deus, assim como de sua radical alteridade. É um Tu, diferente do meu eu que reza”25. Assim, falar vocal ou mentalmente com Deus nosso Senhor requer, de nossa parte, maior reverência [3]. Esta expressa-se em gestos externos, corporais, e, por isso, tomando consciência da presença de Deus, o exercitante fará uma reverência ou gesto de humildade.

O reverente exercitante reconhece que Deus está presente e se dispõe à aproximação e ao encontro. “A reverência feita a Deus e a humildade de que devemos nos revestir quando nos colocamos em sua presença, a dois ou três passos do lugar onde vamos fazer a meditação, formam uma só peça com a oração preparatória que vem a seguir e não são mais que uma viva reprodução do Princípio e Fundamento, renovada ao começar a oração”26.

Na oração, Deus tem a iniciativa de vir ao encontro do exercitante: o Criador agindo com a criatura, que olha para ela. O exercitante — a criatura — deve situar-se sob o olhar de Deus: “considerar como Deus me olha”. Ao tomar consciência de que o Senhor olha para ele, aqui e agora, não de maneira genérica, mas única — o como Deus me olha é a maneira amorosa e misericordiosa pela qual só Ele sabe e pode olhar — cria também a consciência e o sentimento de sua presença neste lugar. Não se trata de um olhar neutro: é penetrante e amoroso. Sentindo-se olhado pelo Amor, que se aproxima e o acolhe, o exercitante dirige um olhar para si mesmo, que marca sua entrada na própria interioridade, onde se encontrará com o Deus que habita nele, dando-lhe o ser, o viver, o sentir e o entender [235].

A terceira adição aponta a maneira como o exercitante se expressa, ao nível de seu corpo, de seus gestos e postura, diante dessa iniciati-va de Deus. “A verdade do gesto contém, nela mesma, a verdade da relação que se instala”27. Estando a um ou dois passos — fisicamente à distância do lugar em que fará a oração –– e em pé — posição que antecede a qualquer uma que possa assumir na oração — o exercitante delineia o espaço no qual se dispõe a entrar: espaço interior profundo, lugar do encontro com Deus. Este movimento de encontrar-se é marcado pelo gesto de reverência.

25. DOMÍNGUEZ MORANO, La psicodinámica… op. cit., p. 69.

26. CASANOVAS, Ejercicios de… op. cit., p. 101.

27. CHAPELLE, Albert et alii. Les Exercices Spirituels d’Ignace de Loyola. Un commentaire litterál et theólogique. Bruxelles: IET, 1990, p. 136.

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9. A quarta adição

“Entrar na contemplação, ficando ora de joelhos, ora prostrado por terra, já estendido com o rosto voltado para o céu, já sentado, ou de pé, procurando sempre achar o que quero. Chamamos a atenção para duas coisas: a primeira, se de joelhos acho o que quero, não mudarei de posição; se prostrado, do mesmo modo etc.; a segunda, no ponto em que achar o que quero, deter-me-ei, sem ter ânsia de passar adiante, até que me sinta satisfeito”. [76]

A quarta adição trata do comportamento do exercitante durante a oração, a nível de corpo e espírito, em vista do fruto desejado: tudo o que se faz, todo o tempo de oração, postura corporal, gestos, é para ter as condições necessárias para andar sempre buscando o que quer [76]. E o comportamento exterior forma unidade com o comportamento inte-rior. Assim, se a pessoa encontra aquilo que quer e que busca estando de joelhos, permaneça nessa posição, sentindo, degustando, refletindo, aprofundando, sem pressa de passar adiante. Aqui é a aplicação prática do princípio dado na Anotação 2: “Não é o muito saber que sacia e satisfaz a alma, mas o sentir e saborear as coisas internamente” [2].

Para isso, é preciso desarmar dois mecanismos que muitas vezes afligem o exercitante e não deixam que ele saboreie demoradamente as coisas: a ânsia de fazer tudo e o mais rápido possível. Entrar no tempo de Deus exige “esperar em calma contemplativa a chegada dos horários do Espírito”28. A impaciência dos imediatismos, típicos de nossa cultura à moda mídia, em que as notícias sucedem-se em instantâneos que não dão tempo de pensar e assimilar, e a ânsia de resultados produtivos não contribuem para a vida no Espírito.

O Profeta Jeremias nos ensina que Deus é um artesão, e o artesão não se apressa com sua obra, mas a modela segundo o ritmo que pede a sua arte ( Jer 18,1-7). O exercitante deve compreender que, nos Exercícios, ele é como o barro nas mãos do oleiro e que o tempo é o tempo do oleiro. Para entrar no tempo de Deus, ele deve ordenar seus tempos, ser o dono de suas horas e do ritmo de sua vida interior, sem pressa de passar adiante, enquanto Deus estiver fazendo a sua obra. Por isso, “as posturas indicadas conduzem todas à quietude: nenhuma delas expressa movimento”29. A quietude é fundamental para o exercitante achar o que deseja e buscar a postura adequada é fundamental para se chegar à quietude.

Por outro lado, a postura e os gestos expressam corporalmente a atitude interior e ajudam a cultivá-la e aprofundá-la, pois “é a pessoa

28. GONZÁLEZ BUELTA, Benjamin. Las adiciones de los Ejercicios en la cultura actual. Manresa, n. 74, 2002, p. 208.

29. TEJERA, Manuel. Para aden-trarse en la experiencia de Ejer-cicios: las adiciones [73-81]. Manresa, n. 69, 1997, p. 123.

53ItaIcI – revIsta de espIrItualIdade InacIana, n. 104 (Junho/2016)

inteira que ora, não só o espírito e a mente. O corpo expressa nossa interioridade e modifica nossa atitude interior. O corpo se faz dócil e receptivo à ação do espírito no homem”30. Mas nenhuma delas é um absoluto: conforme a circunstância e a busca, a moção e o sentimento, uma ou outra pode ser útil. Por isso, o exercitante pode provar todas, como meios para melhor achar o que deseja. E quando o encontra, deve repousar a alma na oração.

No Diário Espiritual, Santo Inácio escreve: “Sentindo muita confiança e parecendo-me ser propício para interceder por mim, eu, não querendo nem buscando mais ou maior confirmação do passado, ficando quieto e repousado nesta parte, demandava e suplicava a Jesus para conformar-me com a vontade da Santíssima Trindade” (80,2). Deliberando sobre a pobreza da Companhia, Santo Inácio rezava e celebrava missas nessa intenção, buscando a vontade do Senhor. Aqui, tendo encontrado o que buscava, ele não interpelou mais a Divina Majestade, mas permaneceu quieto e repousado, sem pressa de passar adiante.

Santo Inácio dá grande valor a esse repousar, que equivale a sentir e saborear internamente as coisas até que se satisfaça [2], porque aí o Criador está se comunicando com a criatura [15] e é preciso assimilar em profundidade o significado dessa comunicação. Só há experiência de verdadeiro encontro quando a pessoa se dispõe a ele. Por isso é fundamental repousar: não se mover daí, manter a postura corporal, permanecer na matéria de oração, não se preocupar em ter que passar adiante, até que se satisfaça.

10. A quinta adição [77]

Santo Inácio, além de cuidar de todas as condições necessárias para se fazer uma boa oração, cuida também para que o exercitante tome consciência do fruto da oração e para que esse fruto não se perca. E também cuida para que ele fique atento ao seu comportamento na oração, verificando se observou as indicações e adições, se pediu a graça, se foi fiel ao tempo estipulado. Depois de uma hora de oração, um tempo de 15 minutos de revisão pode parecer desproporcional à oração mesma: isso indica a importância que ele dá a esse exame ou revisão31. Este tem cinco características32:

a) Momento: “depois de acabado o exercício”. A revisão é parte integrante de cada exercício e deve ser feita imediatamente

30. Ibid., p. 126.

31. Cf. CASANOVAS, Ejercicios de… op. cit., p. 175-177.

32. Cf. CALVERAS, José. Comen-tario a la quinta adición. Manresa, n. 29, 1932, p. 3.

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após terminá-lo, enquanto se tem vivo na memória tudo o que se passou.

b) Duração: “pelo espaço de um quarto de hora”. Inácio não determina tempo para o exame particular nem para o exa-me geral, mas o faz para o exame da oração. Um quarto de hora para cada exercício, sendo 4 ou 5 ao dia, significa que teremos de uma a uma hora e quinze de revisão da oração por dia. É um tempo longo, pois trata-se de um exercício fundamental para o processo de discernimento que se vive nos Exercícios. Por isso é importante animar o exercitante a fazê-lo com seriedade e diligência.

c) Posição corporal: “sentado ou caminhando”. Aqui Inácio indica as duas posições que acha mais apropriadas para fazer a revisão da oração. Trata-se de um exercício de reflexão, depois de uma hora de oração, em que o espírito e o corpo podem estar fatigados pelo empenho aí colocado. Sem se distrair, o exercitante pode dar-se a um relaxamento e movimentação corporal, passeando sossegadamente, para favorecer essa reflexão. Cada pessoa poderá fazer o que a ex-periência ou o momento lhe mostrar que é de mais ajuda.

d) Matéria: “examinarei como me saí na contemplação ou me-ditação”. Note bem que Santo Inácio não disse examinarei como fiz a oração, pois se não se trata simplesmente de verificar como praticou aquilo que foi indicado para o exercício ou como se portou — como aplicou as anotações, preâmbulos e adições ou que atenção deu aos pontos dados: isso seria uma avaliação puramente formal e o exercitante não veria sentido em gastar 15 minutos com ela. Evidentemente, o fruto depende também do que ele fez, ou seja, de como se portou na oração, e isso deverá ser examinado, mas sem ocupar o foco principal da revisão.

e) Por isso é preciso ter bem claro qual é o foco central dessa revisão: o como me saí (no texto Autógrafo: miraré como me ha ido). “Como me saí é sinônimo de que êxito tive, e esse êxito é o fruto que pretendia tirar do exercício que acabo de fazer, tanto aquele geral, indicado na oração preparatória, como o particular, proposto com toda precisão depois das palavras ‘pedir o que quero’ [48, 55, 65]. Terei me saído mal ou medianamente, se não alcancei os frutos que buscava ou se foram mal alcançados, e terei me saído bem se busquei e

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alcancei os frutos desejados”33. O Pe. Géza afirma que “a revisão de um exercício terminado deve ter caráter de oração contemplativa; é uma reflexão sobre a operação de Deus em nós, sobre os movimentos e agitação dos espíritos, sobre a nossa cooperação com a graça; é um retorno sobre nós mesmos na oração, para seguirmos com maior segurança e inspiração do Espírito Santo”34.

f ) Modo: “Se mal, procurarei a causa disso e, ao descobri-la, arrepender-me-ei, para corrigir-me no futuro; se bem, agra-decerei a Deus Nosso Senhor e procederei do mesmo modo na vez seguinte”. Trata-se de um verdadeiro exercício espiritual, que ensina o exercitante a tomar consciência de como se saiu na oração e a discernir a causa disso, com a finalidade de agir de acordo da próxima vez. Assim, ele poderá sempre colocar os meios para melhor fazer os Exercícios e melhor achar o que se deseja, já que “a oração não é tanto algo que eu faço, mas algo que acontece, ainda que aquilo que acontece tenha a ver com o que eu faço, com minha disposição para que aconteça”35.

11. Adições sexta a nona [78-81]

Essas adições tratam dos meios para proporcionar o clima exte-rior necessário ao recolhimento interior, através do cuidado com o ambiente externo e da guarda dos sentidos, especialmente dos olhos e a língua. Devem ser observadas o tempo todo durante a Semana a que se destinam, ajustando-se apenas o conteúdo específico de cada uma [130; 206; 229]. Elas convergem para o mesmo ponto — o fim próprio ou fruto de cada Semana — que deve ocupar totalmente o entendimento e a atenção do exercitante, e que ele deve querer e buscar com toda diligência: “Nós obtemos esse fim concreto na oração, mas as adições o preparam antes de entrarmos nela e o conservam e fazem com que penetre na alma quando saímos dela. Desta maneira, andamos todo o dia ocupados com um mesmo assunto, certamente essencial”36.

Trata-se de criar e manter o ambiente e o clima favoráveis ao resultado fecundo dos Exercícios, de acordo com o fruto buscado em cada Semana. Por isso, várias dessas adições serão ajustadas de acordo com as características da Semana, para ajudar o exercitante a alcançar este fruto.

33. Ibid., p. 5.

34. Cf. SANTO INÁCIO DE LOYO-LA. Exercícios Espirituais. Trad. KÖVECSES, Géza, SJ. São Leo-poldo: Cecrei, nota 1 sobre a adição 5, p. 65.

35. TEJERA, Para adentrarse… art. cit., p. 127.

36. CASANOVAS, Ejercicios de… op. cit., p. 407.

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Nesse sentido, em nossos tempos, é fundamental contextualizar essas adições acrescentando aquilo que poderíamos expressar da se-guinte maneira: Desligar celulares, smartphones, tablets etc. Desconectar-se da internet, do facebook, do whatsapp. Ter moderação quanto à ânsia de fotografar tudo ao redor. Quando orientamos Exercícios, vemos muitas pessoas rezando com o celular ao lado. No refeitório, colocam-no sobre a mesa e trazem-no no momento de acompanhamento. Nos tempos livres ficam tirando fotos. Quando chegam à Casa de Retiros, logo querem saber a senha do wi-fi. Uma vez, durante a missa, o celular de uma exercitante tocou enquanto ela fazia a leitura. Outra vez alguém comentou que acompanhava on-line um retiro que eu dava, pois várias vezes ao dia alguém postava fotos e comentários.

Pois em tempo de Exercícios, a capacidade de efetivamente afastar-se de seus negócios e silenciar-se é fundamental para poder buscar e encontrar a vontade de Deus na disposição da própria vida. E se o exer-citante não decide desconectar-se, não chegará ao silêncio necessário. E nos Exercícios há tempos intensivos de oração, onde devemos estar em silêncio diante do Senhor, e tempos mais distendidos: um intervalo, uma caminhada, as refeições, o descanso após o almoço… Tudo forma uma unidade e Deus fala em todos esses tempos. Muitas vezes a pessoa não encontra o que procura em um tempo formal de orações — ou durante alguns deles seguidos — e, repentinamente, caminhando no jardim da Casa de Retiros ou à mesa da refeição, ela o encontra. Mas, para que isso se concretize, é necessário que a pessoa seja capaz de ficar sozinha consigo mesma e com Deus, retirando-se efetivamente. Daí a importância de desconectar-se durante o tempo de Exercícios, afastando-se de seus negócios, amigos e contatos das redes sociais e dos dispositivos de comunicação.

A 6a adição [78] cuida para que o exercitante mantenha-se em alerta no que diz respeito à preservação do clima de silêncio interior, conforme o que pede a Anotação 20: não tendo o espírito dividido por muitas coisas, poderá pôr a atenção em uma só. Em nota a ela, o Pe. Géza diz que essas adições visam a assegurar o maior recolhi-mento interior possível e a disposição mais apropriada para receber a graça própria da Semana37. Assim, elas são indicações de uma ascese que envolve gestos e posturas do exercitante, para criar o clima de silêncio interior e exterior, que nos Exercícios é fundamental para buscar e encontrar aquilo que se quer e deseja.

A 7ª adição [79] ajuda o exercitante a criar o hábito e a sensibi-lidade de fazer com que as coisas naturais ao seu redor lhe falem uma

37. Cf. SANTO INÁCIO DE LOYO-LA. Exercícios Espirituais. Trad. KÖVECSES, Géza, SJ. São Leo-poldo: Cecrei, nota 2 sobre a adição 6, p. 65.

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linguagem espiritual. É notória a influência que as coisas sensíveis podem ter em nosso estado psicológico e anímico. Usando deste misterioso envolvimento entre as coisas espirituais e as sensíveis, Inácio dá essas orientações sobre o modo de usar a luz e a tempe-ratura para ajudar a melhor fazer os Exercícios e a melhor buscar o que deseja. Na Primeira Semana, quando o exercitante ainda está na via purgativa, ele determina o que fazer: “Para o mesmo efeito, privar-me de qualquer claridade, fechando janelas e portas enquanto estiver no quarto, a menos que seja para rezar, ler ou tomar refeições” [79]. Depois, a cada Semana, essas orientações serão atualizadas, deixando a sua aplicação ao discernimento do exercitante: “quanto sentir que lhe pode ser de proveito e ajuda para encontrar o que deseja” [130] e “na medida em que a alma pense ou suponha poder auxiliar-se com isso” [229].

Na 8ª adição [80], Santo Inácio alerta que a alegria típica da consolação não deve ser confundida com “rir ou dizer coisas que pro-voquem riso”, com uma agitação ou euforia que dispersa e distrai. Ele “quer que os Exercícios estejam revestidos de uma seriedade externa matizada pela alegria ou tristeza interiores, assim como afasta deles os risos ou as palavras que provocam risos e atribui à influência do inimigo a obscuridade da alma, a tribulação, inquietude, desconfiança e a mesma tristeza que não nasce de causa espiritual [317]38”.

Por isso é preciso corrigir as manifestações desordenadas através das quais os sentimentos internos se mostram ao exterior. Eviden-temente esse gesto externo não é transformador em si mesmo; ele está associado ao processo interno de ordenação dos afetos vivido nos Exercícios e serve a ele. Mas é de grande ajuda nesse processo. É isso que Santo Inácio nos apresenta nesta oitava adição, tendo como objeto o riso e as palavras que provocam riso. Aqui se poderia dizer: não fazer nem falar nada que distraia ou provoque dispersão.

A 9ª adição [81] mostra os grandes inimigos do bom andamento dos Exercícios Espirituais: um coração frívolo e um entendimento disperso e distraído. A vista é a porta por onde entram a frivolidade e a distração. Assim, refreá-la é fechar essa porta, não deixando entrar essas coisas que podem impedir a pessoa de melhor fazer os Exercícios e de melhor buscar o que deseja.

O Dicionário Aurélio dá os seguintes significados para o verbo refrear: “Conter com freio; frear, enfrear. Reprimir, conter, suster. Dominar, sujeitar, subjugar, vencer. Tornar menor ou menos intenso; moderar, reprimir. Conter-se, comedir-se, reprimir-se. Abster-se,

38. CASANOVAS, Ejercicios de… op. cit., p. 408.

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privar-se”. Assim, Inácio nos indica que é preciso colocar algumas leis para a vista, dada sua tendência de distrair-se com as coisas de fora; deve-se colocá-la sob domínio com energia e privar-se e abster-se de olhar para coisas externas que possam dispersar ou esfriar o coração e conter-se diante de tudo que dispersa, moderando o olhar para manter o foco nos Exercícios.

12. Conclusão

Esta afirmação do Diretório do Pe. Gagliardi serve-nos de conclusão e reafirma a importância das adições e do corpo nos Exercícios:

“A medida e regra mais certa em tudo isso, além do que já se disse, é o próprio fruto e fim que pretendemos; porque as coisas exteriores e corporais têm por fim a edificação do homem interior; assim, por exemplo, afastar-se do trato exterior se faz para que a alma deixe os pensamentos, afetos e solicitações das coisas mundanas; o recolhimento no aposento, para que se recolha totalmente na cela interior de seu coração; a clausura e a privação de luz, para ver-se livre das distrações dos sentidos. Por isso, há que servir-se de meios exteriores, quando, sem eles, parece que não se pode alcançar, ou se alcançará com dificuldade, os meios interiores que lhes correspondem. Caso contrário, se há de omiti-los ou moderá-los” (D 46,73)39.

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39. VV. AA., Los Directorios…, op. cit., p. 409.

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