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CONSTRUINDO UM PROJETO TERAPÊUTICO SINGULAR: UMA EXPERIÊNCIA DE CUIDADO EM SAÚDE MENTAL NA ESTRATÉGI A
SAÚDE DA FAMÍLIA EM JUAZEIRO-BA
RESUMO
Este relato destaca a experiência de um estudante de Psicologia junto a uma Equipe de Saúde da Família (EqSF) de Juazeiro-BA no contexto do Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET Saúde). Narram-se desdobramentos do processo de construção de um Projeto Terapêutico Singular (PTS) para uma usuária indicada pela EqSF, cujo caso foi eleito como prioritário. O PTS foi tomado como ferramenta potencial de corresponsabilização de trabalhadores, usuários e familiares na construção de modos de cuidado. Buscou-se com isso acionar recursos do território e articular diversos setores da rede, considerando, assim, o contexto de vida das pessoas envolvidas e as relações comunitárias estabelecidas. São destacadas compreensões produzidas a partir dessa experienciação no cotidiano de trabalho. A narrativa desvela sentidos de uma experiência onde o compartilhamento de ações entre os atores indicou desafios a serem encarados pela EqSF, relativos à organização do processo de trabalho e à gestão do cuidado. Pôs em evidência também a contribuição da educação permanente na assimilação de imperativos ético-políticos para a atuação no SUS.
Palavras-chave: Saúde Mental, Atenção Básica, Cartografia, Narrativa.
CONSTRUINDO UM PROJETO TERAPÊUTICO SINGULAR: UMA EXPERIÊNCIA DE CUIDADO EM SAÚDE MENTAL NA ESTRATÉGI A
SAÚDE DA FAMÍLIA EM JUAZEIRO-BA
Diego Dias Barrense
Orientadora:
Barbara Eleonora Bezerra Cabral Mestra em Psicologia Clínica, Docente do Colegiado de Psicologia da Universidade Federal do Vale do São Francisco – UNIVASF Endereço: Avenida José de Sá Maniçoba, S/N - Centro, Petrolina-PE, Brasil CEP: 56304-917 E-mail: [email protected]
BANCA EXAMINADORA:
Profª. Ma. Barbara Eleonora Bezerra Cabral
Profª. Ma. Alice Chaves de Carvalho Gomes
Esp. Luciana Florintino
Data da defesa: 29/11/2010
SUMÁRIO
1. APRESENTAÇÃO...............................................................................................................3
2. FUNDAMENTOS POLÍTICO-TEÓRICOS.....................................................................6 3.1. A Saúde Mental na Atenção Básica do SUS...................................................................6
3.2. (Re)inventando o cuidado............................................................................................. 9
3. ASPECTOS METODOLÓGICOS....................................................................................11
4. A EXPERIÊNCIA DE CUIDADO DE MARTA.................. ........................................... 14
5. DISCUSSÃO........................................................................................................................21
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS 24
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...............................................................................26
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1. APRESENTAÇÃO
Adiante narro uma experiência que vivi como estudante de Psicologia inserido no
contexto de trabalho de uma equipe multiprofissional de uma Unidade de Saúde de Saúde da
Família (USF) da cidade de Juazeiro-BA. A experiência advém de um processo de formação e
iniciação em serviço viabilizado pela minha participação no Programa de Educação pelo
Trabalho para a Saúde (PET-Saúde).
A partir da atuação como monitor bolsista em tal programa, na Linha de Ensino,
Extensão e Pesquisa Saúde Mental na Atenção Básica: Educação Permanente e Articulação
da Rede de Cuidados (SMAB), compartilhei com uma Equipe de Saúde da Família (EqSF) a
experiência de construção de Projetos Terapêuticos Singulares (PTS) voltados ao cuidado de
pessoas em sofrimento psíquico. Essas estratégias de cuidados foram direcionadas a casos
eleitos pela EqSF como desafiadores. A narrativa que se apresenta mais adiante foca ações
realizadas em torno de um caso específico, trazendo elementos para análise de tal processo.
Faz-se importante ressaltar que o PET-Saúde se configura como uma estratégia de
reorientação da formação para a atuação em saúde. A iniciativa tem abrangência nacional e é
financiada pelo Ministério da Saúde, sendo viabilizada a partir da articulação com o
Ministério da Educação. Tendo em vista a consecução do objetivo1 do programa, em Juazeiro-
BA, o Grupo PET-Saúde da linha SMAB2, fruto da parceria entre a Universidade Federal do
Vale do São Francisco (UNIVASF) e a Secretaria Municipal de Saúde (SMS), desenvolve
atividades desde abril de 2009.
A origem da linha SMAB relaciona-se ao reconhecimento dado pela SMS quanto à
importância da inserção da Estratégia Saúde da Família na rede de cuidados em saúde mental
do município, levando-se em consideração as diretrizes da atual Política Nacional de Saúde
Mental. O trabalho desenvolvido teve assim importância estratégica no tocante à qualificação
de equipes da atenção básica para assumirem o desafio do compartilhamento de
responsabilidades pelo cuidado junto a casos de sofrimento psíquico.
1 O objetivo geral do PET-Saúde é fomentar a formação de grupos de aprendizagem tutorial em áreas estratégicas para o
Sistema Único de Saúde (SUS), caracterizando-se como instrumento para qualificação em serviço de profissionais da saúde, bem como de iniciação ao trabalho e vivências dirigidas a graduandos da área, de acordo com as necessidades do SUS. Informação disponível em: http://portal.saude.gov.br/portal/saude/profissional/visualizar_texto.cfm?idtxt=32566
2 Grupo formado inicialmente por cerca de trinta estudantes entre bolsistas e voluntários (dos cursos de Enfermagem, Medicina e Psicologia da UNIVASF), por profissionais de diversas áreas da saúde (Farmácia, Nutrição, Psicologia e Serviço Social) ligados ao Núcleo de Apoio a Saúde da Família (NASF), atuando como preceptores, e por uma professora do Colegiado de Psicologia / UNIVASF, que durante o primeiro ano de projeto – de abril de 2009 a março de 2010 – foi tutora da linha. Ao longo do referido período houve no grupo desligamentos e adesões de novos membros. A partir de abril de 2010, por ocasião de renovação do projeto, a tutoria foi assumida por dois outros professores do Colegiado de Psicologia / UNIVASF. Com isso, parte dos demais membros do grupo inicial permaneceram e outros se integraram à linha.
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Por esta via, iniciei o contato com a realidade de dois bairros do Distrito Sanitário I do
município, inserindo-me com outros colegas3 na EqSF responsável pela cobertura dessa área
adscrita. Com o estímulo à entrada em campo, lançando mão da práxis de pesquisa
interventiva, mergulhamos numa experiência singular e desafiadora, que teve por objetivos,
inicialmente, o mapeamento de demandas em saúde mental e, o posterior, desenvolvimento de
outras ações em um território que fomos conhecendo à medida que a ele nos misturávamos.
Levamos à EqSF propostas de atividades a serem desenvolvidas, entre as quais, a
discussão de temas em saúde mental através de oficinas, visitas domiciliares a famílias do
território, estimulando a produção de informações referentes a questões que dissessem
respeito a casos de sofrimento psíquico no território e a construção conjunta de PTS para
casos identificados na comunidade. Todo investimento feito teve por objetivo a sensibilização
dessa equipe para a ampliação do cuidado a pessoas em sofrimento psíquico.
Disparamos um processo Educação Permanente buscando potencializar o trabalho da
EqSF na produção de estratégias de cuidado acionando recursos do território. Buscamos assim
direcionar as ações da EqSF ao preferencialmente acolhimento e acompanhamento de
demandas, desse modo, evitando encaminhamentos desnecessários a outros serviços
especializados ou priorizando a realização dessa prática em casos necessários de maneira
responsável.
Com relação à proposta de construção de PTS’s, partimos da compreensão de que
seria uma estratégia a ser apresentada à EqSF propondo a construção de cuidado a pessoas em
sofrimento psíquico de modo singularizado, tendo em vista o intuito de valorização do
contexto comunitário onde vivem esses usuários, trazendo por outro lado novidades e desafios
à organização do processo de trabalho, à medida que exigiria ações no sentido de uma
dinâmica efetivamente compartilhada em equipe.
Iniciamos a construção dos primeiros PTS’s em conjunto (equipe PET-Saúde e EqSF)
a partir de indicações de casos mobilizadores, eleitos pelos trabalhadores da EqSF, sob o
critério de que tais fossem tidos como os mais “difíceis” para a equipe. Buscamos provocar,
nessa EqSF com que tivemos contato, processos de reflexão e mudança das práticas, de forma
que o cuidado a pessoas com transtorno psíquico pudesse ser tido como possível, através de
ações num nível de complexidade que não exige especialismos mas, antes, a disponibilidade e
o despertar para potencialidades existentes no modo comunitário de conviver e oferecer
3 Inicialmente o grupo que se inseriu no trabalho dessa EqSF especificamente foi composto por um estudante de medicina,
dois estudantes de Psicologia (entre os quais o autor desse projeto), esses da UNIVASF e uma farmacêutica do NASF, no papel de preceptora. Houve posteriormente saídas e entrada de outros estudantes nessa equipe.
5
atenção, destacando-se inclusive, arranjos coletivos e solidários como espaços de pujantes
possibilidades de construção de estratégias de cuidado.
Com isso, foi possível entrar em contato com alguns desafios para se incluir a atenção
básica do Sistema Único de Saúde (SUS) como lócus estratégico de produção de cuidados
tendo em vista a consolidação da Política Nacional de Saúde Mental. Com o intuito de trazer
contribuições para o debate nesse cenário, aqui se pautam reflexões sobre uma experiência de
construção de PTS viabilizado pela atuação na linha SMAB, em um recorte de tempo de um
ano. A pretensão, entretanto, não é a de esgotar a compreensão sobre a construção de PTS
como via de cuidado em saúde mental na atenção básica, uma vez que experiências de outros
sujeitos podem sustentar a produção de sentidos diversos sobre o tema proposto.
Destaca-se que a construção de PTS é um arranjo metodológico que tem sua origem
ligada ao campo da saúde mental (Oliveira, 2008) e vem sendo utilizada, discutida e
aperfeiçoada a partir de experiências em diversos cenários. Cabe ressaltar que reflexões sobre
os resultados de algumas dessas experimentações são notáveis, tendo em vista alguns
potenciais demonstrados para se fazer valer, nessa prática, o exercício do cuidado integral a
sujeitos, sejam eles individuais ou coletivos. O PTS é visto atualmente como um meio de
produzir cuidado que não se dissocia do processo de organização do trabalho da equipe, sendo
uma ferramenta estimulada pela Política Nacional de Humanização.
Nesse sentido, me propus a refletir sobre a experiência vivida coletivamente, a partir
da experimentação de princípios e arranjos metodológicos na atuação cotidiana. Parti,
portanto, da seguinte questão norteadora para construir compreensões por meio de uma
narrativa sobre o processo: Como aconteceu um processo de construção de PTS em uma
Unidade de Saúde da Família, tendo em vista o cuidado em saúde mental? O fio condutor
desse debate são as possibilidades de articulação de redes de cuidados que encontramos no
experienciar de nossas práticas.
Deste modo, o principal objetivo do trabalho foi o de comunicar a experiência de co-
construção de Projeto Terapêutico Singular com uma equipe de saúde da família de Juazeiro-
BA, a partir de uma experiência no âmbito do PET-Saúde, na linha SMAB. Busco assim
descrever o processo de co-construção de um PTS em uma Unidade de Saúde da Família de
Juazeiro-BA nesse contexto e, além disso, produzir compreensões sobre as possibilidades de
se construir PTS’s a partir da experiência com essa EqSF para viabilização de cuidados em
saúde mental, analisando, por fim, as possíveis articulações viabilizadas com a rede de
cuidados.
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2. FUNDAMENTOS POLÍTICO-TEÓRICOS
A Saúde Mental na Atenção Básica do SUS
Mudanças no campo da saúde mental têm sido propostas em nosso país desde a década
de 1980, pautadas num ideal de desinstitucionalização que tem levantado questionamentos e
críticas ao modelo manicomial ligado à Psiquiatria Clássica. Diversas reflexões têm sido
realizadas no intuito de que sejam engendradas estratégias de ação, envolvendo toda a
sociedade, tendo em vista a conformação de um quadro assistencial complexo às pessoas com
transtorno psíquico. A garantia de atenção integral à saúde é tida como uma dessas principais
estratégias. A Reforma Psiquiátrica vem se constituindo no Brasil com um desafio de
incorporação de práticas de cuidado no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS)
(OLIVEIRA et. al., 2006).
No que diz respeito ao nível primário de atenção à saúde, ao qual corresponde a
Estratégia Saúde da Família (ESF), porta de entrada do sistema, vários autores apontam
relevantes aproximações entre os princípios teóricos e metodológicos tidos como norteadores
da prática das EqSF e os do cuidado em saúde mental na lógica antimanicomial (ONOCKO
CAMPOS e GAMA, 2008; OLIVEIRA et. al., 2006; LANCETTI, 2001b; DALLA VECHIA
e MARTINS, 2009; NUNES et. al., 2007). Os princípios tidos como fundamentais para essa
articulação são: noção de território; organização da atenção em rede; intersetorialidade;
reabilitação psicossocial; interdisciplinaridade; desinstitucionalização; promoção da
cidadania; construção da autonomia possível de usuários e familiares (BRASIL, 2003).
Ações de saúde mental na atenção básica são pensadas pela via da articulação da rede
de cuidados, de base territorial, buscando o estabelecimento de vínculos e o acolhimento aos
usuários, tendo em vista que a criação do Programa, depois Estratégia de Saúde da Família
(ESF) tem sido
um modo de promover a transformação do modelo tradicional de atenção à Saúde, valorizando o trabalho multidisciplinar, buscando aproximar as ações do território, fortalecendo o vínculo entre equipe de saúde e população, o trabalho de prevenção de doenças e promoção da Saúde (CARMAGNANI e SANTANA, 2001 apud. ONOCKO CAMPOS e GAMA, 2008, p. 224).
Indica-se, no entanto, que, em muitas ocasiões, é essencial que as EqSF´s tenham a
oportunidade de rever compreensões em relação ao tema saúde mental, de desmistificar
preconceitos e de construir outros modos de atenção aos usuários, com quem se relacionam
diariamente, podendo, dessa construção, fazer brotar sensibilidades com relação ao
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reconhecimento dos processos subjetivos como constituintes do processo saúde-doença
(FIGUEIREDO e FURLAN, 2008).
Compreende-se que “existe um componente subjetivo associado a toda e qualquer
doença”, que “todo problema de saúde é também – e sempre – mental, e que toda saúde
mental é também – e sempre – produção de saúde” (BRASIL, 2003, p. 79). Tendo em vista
isso, o Ministério da Saúde assume como necessários o diálogo e o vínculo entre saúde mental
e atenção básica. Assim, o princípio de integralidade é destacado como um dos eixos
norteadores da mudança nos modos de atenção à saúde, ficando evidente principalmente no
que se refere aos cuidados em saúde mental, pois “contrapõe-se à abordagem fragmentária e
reducionista dos indivíduos; o olhar do profissional, neste sentido, deve ser totalizante, com
apreensão do sujeito biopsicossocial” (ALVES, 2005, p.42).
Evidencia-se, portanto, um cenário onde o SUS, a ESF e a Reforma Psiquiátrica se
entrelaçam deste modo, Saúde Mental e Atenção Básica podem e devem constituir um
diálogo promissor, pois estas duas áreas trazem uma nova possibilidade ética, política e social
para a saúde em nosso país. Para Lancetti (2001a), possibilitar o cuidado ao sofrimento
psíquico no âmbito da Estratégia Saúde da Família implica uma proposta de radicalização da
desinstitucionalização, no sentido de assumir uma forma extrema de um cuidado eficaz,
menos medicalizante e menos invasivo.
Para Campos et. Al. (2008) a proximidade de equipes de atenção básica com redes
familiares e sociais de usuários facilita intervenções, e, a possibilidade de se construírem
vínculos duradouros com esses usuários faz aumentar a eficácia dessas intervenções. Tem-se,
portanto, que a clínica realizada na rede básica de saúde apresenta várias especificidades e,
com efeito, há grande complexidade nessas ações, uma vez que
o complexo se define em termos de número de variáveis envolvidas em um dado processo, nesse sentido é necessário intervir sobre a dimensão biológica ou orgânica de riscos ou doenças, mas será também necessário encarar os riscos subjetivos e sociais. Essas dimensões estarão presentes em qualquer trabalho em saúde, no entanto na rede básica atingem uma expressão maior, sendo necessário não somente considerar esses aspectos no momento do diagnóstico, mas também lograr ações que incidam sobre estas três diferentes dimensões (CAMPOS et. Al., 2008, p. 138, grifos meus).
Vislumbra-se que seja essencial a comunicação e construção de rede entre a atenção
básica e outros dispositivos de saúde mental como, por exemplo, os Centros de Atenção
Psicossociais (CAPS) – dispositivos estratégicos de referência – possibilitando ações
integradas por equipes CAPS e EqSF, e “uma atuação mais completa, na qual cada equipe
possa ora ser responsável direto pelo cuidado ou ação produzida, ora corresponsável na
8
tentativa de construir diversos dispositivos capazes de produzir saúde” (CABRAL, 2001 apud
DELFINI, 2009). Assim, a responsabilização da EqSF para com usuários com transtornos
psíquicos é tida como um indicador de integralidade por parte dos serviços prestados. Aponta-
se que a saúde mental é o “fiel da balança” que permite avaliar o grau de integralidade
mínimo do cuidado realizado na ESF (LANCETTI, 2001a).
A proposta de se efetivarem ações de cuidado em saúde mental na atenção básica é
atravessada, no entanto, de grandes desafios. Onocko Campos e Gama (2008) advertem que,
apesar de uma demanda importante relacionada à saúde mental chegar diariamente na
Atenção Básica, uma série de fatores dificulta o acolhimento e tratamento de usuários,
comprometendo a escuta qualificada do sofrimento psíquico no nível primário. Para os
autores, alguns problemas dizem respeito a realidades como: falta de qualificação de
profissionais, necessidade de combate a práticas preconceituosas e ações medicalizantes,
desarticulação entre os serviços, dentre outros. Com isso, ressalta-se a urgência na proposição
de estratégias de enfrentamento a essas dificuldades.
Faz-se importante, então, tecer considerações sobre mecanismos e arranjos
institucionais que vêm sendo pensados e construídos para sedimentarem a proposta de vínculo
entre os campos de produção de cuidado destacados. Em coletânea organizada por Lancetti
(2001b), há vários exemplos de experiências exitosas de ações de cuidado em Saúde Mental
na Atenção Básica, onde é possível observar potencialidades produzidas em ato por
profissionais em sua prática cotidiana, a partir de experimentações diversas, matizadas por um
permanente processo de reflexão sobre os resultados das ações. Ressalta-se que o
enfrentamento de resistências e dificuldades não são postos de lado nos registros
mencionados, já que essas são tomadas como fonte de análises para reelaborações capazes de
dispararem processos instituintes.
Conforme nos indicam outros estudos (OLIVEIRA, VIEIRA & ANDRADE, 2006;
TÓFOLI & FORTES, 2005/2007), são observadas tanto dificuldades e resistências vividas
por equipes da atenção básica ao lidarem com situações/questões relativas à saúde mental,
quanto algumas possibilidades de articulação entre saúde mental e atenção primária. Assim,
pode ser considerada como fundamental a continuidade da experimentação de modos de
cuidado, com o intuito de consolidação de dispositivos e estratégias atuando na promoção de
integralidade a partir do diálogo entre os serviços. (CABRAL, 2009b).
Nesta perspectiva, a partir da constituição da Política Nacional de Humanização foram
sistematizadas ferramentas e dispositivos para o trabalho em saúde, por meio dos quais vêm
sendo pensadas possibilidades de atuação para oferecer suporte ao processo de incorporação
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de práticas em saúde mental por profissionais de equipes de atenção primária, através de
estratégias educativas que se organizam em torno do contexto de trabalho dessas equipes.
A PNH foi criada pela Secretaria de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde no ano
de 2003 na intenção de melhorar a prestação de cuidados aos usuários no SUS, levando em
conta não apenas os avanços das tecnologias, mas incorporando as dimensões subjetivas e
sociais dos sujeitos usuários e trabalhadores. Aponta-se desse modo para a “indissociabilidade
entre processos de gestão e atenção à saúde,” (SOUZA e CABRAL, 2008, p. 25).
Operando com o princípio da transversalidade, a PNH lança mão de ferramentas e dispositivos para consolidar redes, vínculos e a co-responsabilização entre usuários, trabalhadores e gestores. Ao direcionar estratégias e métodos de articulação de ações, saberes, práticas e sujeitos, pode-se efetivamente potencializar a garantia de atenção integral, resolutiva e humanizada.
Por humanização compreendemos a valorização dos diferentes sujeitos implicados no processo de produção de saúde. Os valores que norteiam essa política são a autonomia e o protagonismo dos sujeitos, a corresponsabilidade entre eles, os vínculos solidários e a participação coletiva no processo de gestão (BRASIL, 2008, p. 7).
Entre os dispositivos e ferramentas propostas, destacam-se para o contexto deste
trabalho, a clínica ampliada, o trabalho em equipe e o PTS, discutidos adiante.
(Re)inventando o cuidado
A partir do pressuposto de aspectos que dizem respeito à subjetividade e ao contexto
sociocultural, a todo instante atravessando a possibilidade de compreensão sobre o processo
saúde-doença, questiona-se:
Como se revelam e se articulam essas dimensões na trama concreta da vida? Como operar com a complexidade dessas dimensões e relacioná-las em sua interdependência? Como repercute essa interdependência no cotidiano dos serviços de saúde? (FIGUEIREDO e FURLAN, 2008).
No ano de 2008 o Ministério da Saúde, assumindo a “valorização da dimensão
subjetiva e coletiva em todas as práticas de atenção e gestão no SUS” (BRASIL, 2008, p. 21),
propõe alguns dispositivos estratégicos de/para gestão da atenção, articulando-se à
necessidade de desenvolvimento da noção de clínica ampliada para o trabalho em saúde.
Dessa forma, ratifica-se um empenho na divulgação de propostas para que trabalhadores e
gestores de saúde possam enxergar e atuar na clínica evitando a fragmentação dos diferentes
saberes e ações envolvidas na produção de cuidado.
10
Considerando o desafio para que a clínica e a gestão sejam pensadas como
inseparáveis, faz-se relevante a discussão de dois dispositivos de gestão da atenção: a equipe
interdisciplinar de referência e o projeto terapêutico singular. A discussão apoia-se no
entendimento de que o compartilhamento de saberes e responsabilidades pautado numa ética
de trabalho entre-disciplinar (CECCIM, 2008), é capaz de criar condições para lidar com
questões emergentes no modo contemporâneo de produzir saúde, visando-se a modificação de
formas de atuação presentes no contexto atual, que têm se centrado na medicalização do
cuidado e redução dos sujeitos ao nível do biológico (FIGUEIREDO e FURLAN, 2008).
O conceito de Equipe de Referência se fundamenta na importância do vínculo entre
profissionais e usuários. Há uma aposta de que um significante estímulo à responsabilização
pela produção de saúde e referência terapêutica é possibilitado a partir do acompanhamento
longitudinal de cada usuário ou família de um território adscrito, pelo qual uma EqSF é
responsável. Assim, favorece-se a capacidade resolutiva de casos ao passo em que é permitido
aos profissionais das equipes que “conheçam na singularidade o modo de viver do sujeito, sua
história de vida, os sentidos e significados no adoecimento, participando ativamente e
colocando-se como corresponsável pela cura e resolução do que o aflige” (Op. Cit.).
Uma definição importante para equipe de referência diz respeito ainda, à sua
composição multiprofissional, numa dinâmica no mínimo, interdisciplinar. Partindo disso,
espera-se que seja cumprida a diretriz de compartilhamento entre os profissionais de saberes e
práticas que operem sobre a constituição do grande campo de atuação da saúde. Esse campo é
definido como produção de atos cuidadores por Merhy (2002). O autor, segundo Souza e
Cabral (2008), defende que há um núcleo cuidador comum a todas as profissões, atravessado
pelas relações entre trabalhadores e usuários, e, que tal concepção deve ser central nos modos
de operar os atos de saúde, pois se favorece a redução das relações hierarquizadas entre os
profissionais, criando a possibilidade de se obter, no trabalho da equipe, um lugar que explora
a cooperação entre diferentes saberes e o partilhamento decisório.
Pensando-se, então, na necessidade de implementar arranjos e dispositivos que possam
dar vida aos modos de trabalho propostos, o PTS é tido pelo MS como sendo “um conjunto de
propostas de condutas terapêuticas articuladas, para um sujeito individual ou coletivo,
resultado da discussão coletiva de uma equipe interdisciplinar” (BRASIL, 2008, p. 40). O
PTS é um dos dispositivos de gestão da atenção no âmbito da PNH. De acordo com o que é
proposto na cartilha da PNH, a construção de PTS tem quatro momentos, a saber: o
diagnóstico, no qual são traçadas avaliações psicológica, orgânica e social; a definição de
metas, com propostas a curto, médio e longo prazo; o momento correspondente à divisão de
11
responsabilidades entre os membros da equipe; e o momento da reavaliação, em que se
discute o desenvolvimento do caso.
Tomando o PTS como dispositivo cuja construção pode adquirir sentido de “artifício”,
Oliveira (2008) afirma que, quando acionado em um contexto de equipe, a utilização da
ferramenta metodológica é disparar um movimento de reflexão em sujeitos inseridos numa
organização de saúde. Para o autor, tal mobilização se direciona para a produção do cuidado,
que parte da prática compartilhada por entre diversos profissionais de uma equipe, num
sentido de corresponsabilização tanto pela gestão de práticas quanto pela ação clínica
propriamente dita.
Consoantes com a perspectiva do autor citado anteriormente, Souza e Cabral (2008)
destacam que, ao experimentarem o processo de construção de PTS em equipe, os
trabalhadores de saúde se abrem às possibilidades de repensarem seus próprios processos de
trabalhos, considerando que, atualmente, têm se moldado modos de preponderância de
domínios técnicos de conhecimento na produção de atos de saúde. Tal predomínio é, pois,
apontado como fator responsável pelo esvair-se de práticas “humanizadas” dos profissionais
de saúde, dado essas se afirmarem tão-somente em relações terapêuticas em que os usuários
possam ser acolhidos, com suas demandas variadas e singulares, e, de forma ativa, possam
assumir sua responsabilidade sobre o próprio processo saúde-doença.
Construído esse panorama, apresentam-se a seguir os aspectos metodológicos
assumidos na viabilização da pressuposta construção de conhecimento concebida por meio do
relato de uma experiência no âmbito da ESF. Nesse contexto foi proposta a experimentação
do PTS como dispositivo para viabilização de cuidados em saúde mental, sendo esse, por sua
vez, pensado como com estratégia de fortalecimento do processo de trabalho de uma EqSF, a
partir de sentidos construídos sobre a importância da co-responsabilização de sujeitos diversos
por ações de cuidado.
3. ASPECTOS METODOLÓGICOS
O traçado metodológico desse estudo baseou-se no relato de uma experiência de
prática crítica interventiva viabilizada por uma experiência de inserção em uma EqSF do
Distrito Sanitário I do município de Juazeiro-BA, que teve como objetivo a gestão coletiva de
práticas de cuidados para pessoas em sofrimento psíquico, destacando-se desse processo a
proposta de construção de PTS.
Deste modo, a proposta não foi a de quantificar dados e/ou fazer a generalização dos
resultados/sentidos construídos na experiência relatada, mas de valorizar os aspectos
12
singulares em relação à prática coletiva vivida, especialmente na tentativa de co-construção de
articulações em uma rede de cuidados buscando responder as demandas percebidas através do
processo. Cabe dizer ainda, que foi adotado um modo de pesquisa fundamentado na
perspectiva fenomenológica existencial (CRITELLI, 1996).
Cabral & Morato (2003) retomam esta perspectiva, indicando que a adoção de um
modo fenomenológico existencial de pesquisar permite uma flexibilidade,
a partir da compreensão de que tudo se forma e transforma na relação sujeito-mundo, sujeito-objeto. Tal relação é compreendida, nesse particular, não a partir da lógica das polaridades, mas da mútua afetação, da interpenetração, próprias da condição humana. (CABRAL & MORATO, 2003, p. 164-165).
O trabalho está ancorado ainda numa proposta de construção de uma narrativa,
compreendida a partir da leitura de Benjamim (1996), como processo pelo qual se revisita e se
resgata sentidos de uma experiência no ato de narrá-la. Entendendo-se, assim, que a narrativa
é uma forma de expressão caracterizada pelo modo intencionalmente singular com que se
expõe uma experiência no mundo. Nessa intencionalidade reside a sua importância, pois,
diante do cenário cotidiano atual, temos a marca do pragmatismo moderno como força que faz
sucumbir um modo artesanal de comunicação, cuja matéria prima é a experiência, a trama
existencial na qual o homem se constitui cuidando do seu existir (ALVES, MORATO e
CALDAS, 2009).
Os sujeitos envolvidos na experiência relatada foram os profissionais da EqSF já
referida, os componentes da equipe PET-Saúde e duas usuárias referenciadas pela equipe,
uma delas compreendida como interlocutora fundamental para o estudo. Além de seis agentes
comunitários de saúde a EqSF conta ainda com, uma auxiliar de consultório dentário, uma
dentista, uma enfermeira, uma técnica de enfermagem, um médico e uma recepcionista. Com
base em dados da SMS, à época do nosso primeiro contato a USF era responsável pelo
atendimento de 992 famílias (3.932 pessoas), abrangendo um território dividido em seis micro
áreas, cada uma sob responsabilidade de uma Agente de Comunitária de Saúde (ACS).
Alguns dispositivos públicos da rede municipal de Saúde Mental estão localizados no
território, quais sejam, o Caps AD e o Serviço Residencial Terapêutico. Além disso, o Caps II
localiza-se no bairro vizinho. Há ainda outros equipamentos sociais presentes nos bairros,
como: escolas de ensino básico e fundamental, creche, clubes, praças, centros religiosos
(igrejas, terreiros de candomblé), centro comunitário, posto policial, dentre outros.
Sobre os procedimentos, como já apontado a princípio, na linha PET-Saúde/SMAB
assumimos uma modalidade de pesquisa interventiva (ANDRADE, MORATO & SCHMIDT,
13
2007), que enfatiza a interação do pesquisador com o fenômeno estudado. Lancei-me, assim,
no território, desde os momentos iniciais do PET-Saúde, com a intenção de cartografar o
trabalho da EqSF inserindo-me e participando do cotidiano das práticas de saúde e dos modos
de vida da comunidade. Destaca-se que cartografia, neste contexto, refere-se à descrição e
compreensão das práticas da EqSF em relação à saúde mental, a partir da imersão em campo.
A cartografia é tida como um meio de investigação e construção de caminhos que se
faz junto ao território, onde, através do delineamento que se faz desse, ela o transforma pelos
rastros e trilhas deixados pelo cartógrafo (BRAGA e CUSTÓDIO, 2009). Tal noção implica
pensar que a ação de cartografar se faz junto à constituição da realidade de um território como
marcas produzidas por afetações do contato do cartógrafo com o território.
Uma vez que a pretensão do cartógrafo, de acordo com Aun e Morato (2009), não é a
do estabelecimento de verdade, esse vive para a descoberta de afetos e criação de linguagem e
sentidos no transito por experiências de encontro com outros sujeitos. Dessa forma, o
cartógrafo participa da constituição de uma dada realidade em um movimento de entrega para
descobrir e inventar.
Considerando que “o lugar de acontecimento do ser dos entes, desde a manifestação
dos entes, é o próprio mundo, o ser-no-mundo” (CRITELLI, 1996, p. 32), foi indispensável a
minha presença enquanto pesquisador, no território em que se concretizaram os espaços de
convivência e de construção de sentidos tanto meus quanto dos colaboradores envolvidos.
A cartografia, portanto, se deu no contexto das atividades da Linha SMAB ao longo do
tempo de duração da minha atuação no território. Essa foi uma ferramenta fundamental para o
estudo, que se circunscreve na apreensão de práticas realizadas no âmbito dessa atuação.
Assim, via PET-Saúde, acompanhei e participei do cotidiano de trabalho da EqSF na
USF e na comunidade para qual essa é referência, incluindo atividades como: visitas
domiciliares feitas juntamente aos profissionais da EqSF, mapeamento das demandas de
saúde mental das comunidades participantes do projeto, oficinas temáticas, observação da
rotina da USF e a construção de Projetos Terapêuticos Singulares (PTS) em conjunto com a
EqSF.
As experiências das atividades foram registradas em diário de campo e relatórios
mensais, onde foram reunidas impressões, percepções, sentimentos e afetações que brotam do
contato com a EqSF, com usuários, grupos familiares e seus contextos de vida. Esses
registros/relatos escritos serviram como matéria-prima para construção de compreensão
acerca do tema em questão.
14
Desta maneira, estão postos dois recortes, a) o de um ano de experiência como tempo
em que se desdobram as ações descritas na narrativa, b) e o outro diz respeito a delimitação à
eleição do caso de uma usuária sobre o qual focarei mais diretamente as análises que se darão.
A proposta de elaboração de sentidos baseou-se nos registros em diários de campo e
em relatórios feitos no decorrer da pesquisa, sendo tais escritos fundamentais para iluminar os
sentidos que surgiram para a narrativa, pois, como tematizado por Aun e Morato (2009, p.
123)
Diários são marcas em forma de escrita – depoimentos rememorados. (...) Um Diário de Bordo é feito por um protagonista, a próprio punho, disposto a compartilhar uma experiência. Comunicando algo vivido e sentido, um diário é como um tecer de muitas histórias interligadas. Histórias estas também tecidas por entre outras narrativas. Mas narrar é também deixar sangrar, recordando palavras que se deixam marcar como estilhaços de vidro ainda cortantes.
De acordo com Schmidt (1997, apud CABRAL, 2009a), os relatos de experiência
feitos por um sujeito ganham o estatuto de registro dessa experiência, sendo tais momentos
concomitantes de elaboração e de transmissão de experiência. Para a autora,
a experiência reporta a uma elaboração do fluxo do vivido que ocorre, no tempo, pela sedimentação e incorporação constantes do diverso e do plural que compõem a vida de um indivíduo e a narrativa é a forma de expressão afinada com a pluralidade de conteúdos e a constante mutação no tempo características dessa elaboração. (Schmidt 1997 apud CABRAL, 2009a, p. 14)
A narrativa extrapola a mera descrição de fatos acontecidos, uma vez que são
realizadas interpretações a partir da experiência vivida, destacando-se que os pensamentos,
sentimentos, pontos de vista e análise do pesquisador foram levados em conta, com o intuito
de que fossem compreendidas afetações pessoais com os fatos vividos. Por meio dessa
proposta assumo a perspectiva da construção de conhecimento baseada no caráter reflexivo,
próprio da tessitura de uma narrativa.
4. A EXPERIÊNCIA DE CUIDADO DE MARTA
A história de uma usuária ganhou destaque desde os momentos iniciais da constituição
da relação entre a equipe do PET-Saúde SMAB, de que fiz parte, e os profissionais da EqSF
atuantes na área relativa ao nosso campo de intervenção. O mapeamento de situações que
demandassem cuidados em saúde mental inaugurou o nosso mergulho no território, tendo esse
se iniciado pela micro área de responsabilidade da ACS na qual se localizava a casa de Marta,
15
de 48 anos, e sua mãe, D. Antônia, cuja frágil aparência física, na ocasião em que a
conhecemos, indicava algo perto dos 80 anos.
Nesse contexto, quando visitamos Marta pela primeira vez em seu domicílio, a ACS já
havia nos antecipado que ali encontraríamos um caso tal como, segundo sua compreensão,
nos interessava. Ela nos contou que Marta, após alguns episódios de “crise”, em que estivera
“agitada e “violenta”, já havia passado por algumas internações na clínica psiquiátrica do
município, e que, depois iniciara um tratamento no CAPS II, que no momento de nossa visita
estava interrompido.
Encontramos, então, Marta pela primeira vez, deitada em sua cama, no quarto que
dividia com a mãe. Uma mulher de cabelos curtos e brancos, contrastantes com a sua pele
negra; usando uns óculos de sol, fato que chamou a atenção de imediato, pois a janela estava
fechada. Com certo desinteresse em conversar, ela respondeu a algumas perguntas nossas e da
ACS, dizendo que não gostava mais de sair de casa e não sentia mais vontade de participar
das atividades do CAPS, apesar de tê-lo frequentado por 3 anos. Destacou as oficinas
artesanais de produção de tapetes como sendo a atividade que mais a atraiu em sua passagem
por lá.
D. Antônia se queixava de comportamentos da filha, enfatizando os seus hábitos de
fumar e beber café excessivamente – compreendidos por ela como “vícios” – e de permanecer
deitada durante boa parte do dia, não se dispondo às tarefas cotidianas do lar, como a limpeza
e organização do ambiente e da própria roupa, responsabilidades assumidas por uma moça
contratada por D. Antônia. A situação que parecia mais preocupar a senhora era a ausência de
apetite da filha, que não se alimentava bem fazia um tempo. Ouvimo-la, pois, também
queixar-se da própria condição de saúde - referindo-se a um mal crônico que afetava a sua
regulação intestinal e lhe acarretava frequentemente crises de dores muito agudas - e ainda, do
seu sentimento de abandono por parte dos demais filhos, ressaltando que a ACS era “uma
mãe” que ela tinha.
Saí marcado pelo contato intenso e pelo envolvimento afetivo da ACS com aquela
família, revelado especialmente na oferta de continência e apoio à senhora com poucas
palavras dirigidas a essa antes de sairmos. Da nossa afetação, aquele primeiro encontro se
desdobrou em visitas posteriores, de acordo com a disponibilidade dos integrantes da nossa
equipe PET-Saúde. Vislumbramos, após discutir a situação em reunião do grupo PET-Saúde
SMAB, conhecer mais detalhes do e fazer intervenções possíveis. Aos poucos, fomos, então,
colocando-nos em contato com mais detalhes da história de Marta.
16
A decisão de nos dedicar à elaboração do Projeto Terapêutico Singular (PTS) para a
usuária se deu em uma pactuação processual e um tanto quanto errática com profissionais da
EqSF nos contatos que tivemos, principalmente durante as oficinas que integraram o projeto
de intervenção da linha SMAB, momentos em que discutimos temas relacionados ao cuidado
em saúde mental, indicando em algumas dessas ocasiões, a intenção de, com o
amadurecimento de discussões, evoluirmos até à experimentação da construção de alguns
PTS’s como mediação de um processo de aprendizagem que tínhamos a pretensão de
compartilhar.
Ainda na terceira oficina do programa, ocorrida em setembro de 2009 e que teve como
proposta, a discussão sobre a política nacional de saúde mental e a apresentação da rede
municipal de cuidados, a história de Marta surgiu como exemplo concreto, a partir do qual
foram discutidas propostas de articulação dos diversos dispositivos da rede de cuidados
apresentados no início da atividade.
A escolha, então, experimental do caso de Marta partiu da instrução dada à EqSF para
que fosse feita uma avaliação de prioridade entre situações destacadas, tendo o mesmo sido
consenso das profissionais participantes daquela oficina – as ACS e a enfermeira da USF4. A
breve discussão da situação fez a equipe envolver-se; no entanto, a sensação de impotência,
por parte das profissionais, para cuidar de “casos de saúde mental”, foi evocada em várias
falas, reforçando-se um processo de produção de queixas à ineficiência de outros serviços,
como os CAPS, dos quais a EqSF carregava diversas impressões negativas.
Como resultado do encontro, foi possível ampliar a compreensão da situação de
vulnerabilidade de Marta e D. Antônia, a partir da preocupação de uma das ACS – referência
da micro área vizinha à de Marta e com relação profissional e pessoal muito próxima a ela –
sobre a falta de assistência familiar a D. Antônia e a Marta, associando o preconceito dos
irmãos de Marta com ela.
Segundo o que foi possível compreender, o grande temor de D. Antônia era Marta
ficar desamparada após sua morte, situação encarada pela equipe como muito possível. Na
discussão foi levantada, pela mesma ACS referida anteriormente, a sugestão de acionar a
justiça para garantir a responsabilização dos filhos/irmãos pelo cuidado, pois a situação era
tida como inadmissível. Foi notável, então, a rigidez do seu posicionamento, pois a medida
4 Nessa época, o médico e a odontóloga, após participação, cada um, em uma das oficinas anteriores, alegaram definição da gestão municipal de estarem mais voltados aos atendimentos na USF, em detrimento da participação nas atividades no PET-Saúde. Isso impedia também a participação de outras técnicas auxiliares da EqSF, das quais a continuidade do trabalho dos dois profissionais citados dependia.
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era tida como única saída possível para a questão, não sendo, no entanto, viabilizada, na
ocasião, uma discussão sobre outras estratégias de aproximação com a família.
Após a realização dessa oficina, não conseguimos marcar outras reuniões com a EqSF
até janeiro de 2010, pois tivemos que lidar com imprevistos que afetaram o desenrolar desse e
dos demais processos do PET-Saúde. Estiveram relacionados a isso fatores que acarretaram
em dificuldades para mantermos um processo mais contínuo junto à EqSF, tais como, alguns
processos burocráticos envolvidos no trabalho das ACS’s, como as entregas mensais de
produtividade; e o fato de na equipe PET-Saúde termos momentos de desfalque e
participações irregulares de integrantes, por conta de outros compromissos acadêmicos
assumidos. Também influíram diretamente, outras questões pontuais, como uma capacitação
oferecida pela gestão municipal aos ACS’s, que pela orientação dada deveria ser priorizada, e
inviabilizava, assim, a realização de atividades previstas, e ainda uma alteração da rotina da
EqSF devido à mudança provisória para a USF do bairro vizinho tendo em vista uma reforma
pela qual a USF passaria.
Diante desse panorama, havíamos iniciado um período de mais algumas visitas a
Marta em companhia da ACS, dada a intenção de realizar intervenções independentemente da
disponibilidade de espaços coletivos para discussão com a EqSF, pois nos preocupávamos
com a quebra de um processo de conquista de vínculo e a possibilidade de apreendermos mais
detalhes sobre o caso. É importante esclarecer, portanto, que a proposta de elaboração desse
PTS não evoluiu numa sequência linear de passos discutidos em espaços reservados com a
EqSF para tal fim específico. Assim, foram acontecendo, no decorrer do tempo, intervenções
junto ao caso as quais eram pensadas, muitas vezes, em conversas apenas da equipe PET-
Saúde. No entanto, mantivemos o cuidado de envolver a ACS, que sempre estivera disponível
a nos acompanhar em visitas que auxiliaram a construção de vínculo com a usuária.
Algumas necessidades de intervenções foram vislumbradas à medida que percebíamos
nuances do contexto complexo em que estava inserida a situação de sofrimento psíquico de
Marta.
Um esforço para que ela retornasse às atividades do CAPS de forma regular foi, pois,
realizado desde a primeira visita, visando a sua retomada de vínculos sociais por meio do
contato com pessoas no serviço e um modo de envolvimento dela com atividades que a
possibilitassem minimamente a ampliação de possibilidades de vida, indo além da sua relação
com a mãe, que tanto colocava em evidência as suas incapacidades e os “vícios”.
Após uma ida da equipe PET-Saúde ao CAPS, colhemos algumas poucas informações
sobre a história de Marta no serviço, como a data da última consulta (agosto de 2009), o
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código diagnóstico, que indicava esquizofrenia, e as últimas medicações prescritas, a partir de
evoluções do Psiquiatra em letras ilegíveis que predominavam no prontuário da usuária.
Diante da inviabilidade do acompanhamento da ACS em idas da usuária ao CAPS, por duas
ocasiões, entre novembro de 2009 e janeiro de 2010 foram perdidas consultas marcadas com o
psiquiatra.
Em uma dada visita ao domicílio que realizamos, em janeiro de 2010, um dos colegas
da equipe do PET-Saúde, estudante de medicina, notou nos exames laboratoriais da usuária
um quadro expressivo de anemia, que demandava tratamento específico.
Ao conversarmos, levantamos, então, a hipótese de que a apatia evidente no modo
como a usuária se comportava desde que a conhecemos, além de uma dificuldade que ela
relatava sentir para dormir, queixando-se da ausência de efeito dos medicamentos, podia estar
relacionada a esta condição clínica. Entendíamos, assim, que a falta de apetite que ela
apresentava, agravava ainda mais o quadro. A situação da sua arcada dentária também sugeria
que ela podia ter algum grau de comprometimento na mastigação dos alimentos. Outro
elemento que, possivelmente, influía no quadro era o uso que ela fazia de medicação
controlada, que, como identificado, já há algum tempo, não era reavaliada pelo especialista no
CAPS, sendo apenas repetida pelo médico da USF.
Alguns encaminhamentos em relação ao caso foram, então, vislumbrados como
necessários, abrangendo medidas para o tratamento da anemia da usuária e melhora de sua
saúde bucal, a serem resolvidas, no nosso entender, na própria USF, além da atualização de
suas medicações controladas, que seria de responsabilidade do CAPS. A essa época a sua
ACS referência estava por sair de férias.
Em fevereiro de 2010, a equipe PET-Saúde teve ainda a oportunidade de acompanhar
Marta e D. Antônia ao CAPS com a ACS que cobria a companheira. Na ocasião, ambas
participaram do grupo terapêutico coordenado pelo psiquiatra, do qual D. Antônia relatou não
ter saído satisfeita por não ter tido a atenção exclusiva do médico em uma consulta individual.
Ao ser questionada sobre o que havia conversado com o médico, Marta disse ter esquecido.
A partir da minha entrada como estagiário de Psicologia no CAPS II, em março,
articulamos, então, junto à coordenação daquele serviço, uma visita à residência de Marta
favorecida pelo nosso vínculo estabelecido com a ACS, a usuária e sua mãe. O enfermeiro do
CAPS II foi, então o profissional que nos acompanhou à visita e, na oportunidade, ficou a par
dos agravos à saúde de Marta devido à sua condição anêmica, reforçando a importância de ela
voltar a frequentar o CAPS. Foram pactuados, nesta oportunidade, compromissos entre a
19
usuária, profissionais de saúde da USF, CAPS II e equipe PET Saúde Mental, onde a
responsabilização mútua pelos agravos de saúde da usuária seriam assumidos.
Como tinha mais contato com médico e dentista na USF, a ACS entraria em contato
com esses profissionais. Alegando os riscos de hemorragia que trariam agravos à anemia de
Marta caso alguma intervenção cirúrgica fosse realizada, a dentista optou por não iniciar o
tratamento dentário de Marta antes que houvesse regressão do quadro. Já o médico
desresponsabilizou-se da situação a princípio, requerendo que o CAPS assumisse a condução
do tratamento da anemia a partir de um encaminhamento para reavaliação da medicação, que
foi levado diretamente pela ACS, mas que não teve resposta satisfatória e exigiu
envolvimento direto do médico, embora esse tenha se queixado do que entendia como
negligência do CAPS – como pude saber pela ACS.
A tentativa de formalizar a pactuação com os demais integrantes da EqSF para a
construção do PTS de Marta e de outros quatro usuários ocorreu durante a realização de mais
duas oficinas no início de 2010, entre janeiro e março – a primeira sobre reconhecimento de
sofrimento psíquico e a segunda sobre construção de PTS. Estes encontros foram marcados
para o horário de reunião de equipe. Foram recorrentes, nos dois encontros, os relatos de
dificuldades vividas pelas ACS’s ao lidarem com situações desafiadoras cotidianas, vindo à
tona os “furos” da rede de cuidado e a impotência para lidar com situações para as quais não
se sentem preparados.
Na primeira dessas oficinas foram eleitos casos prioritários para construção de PTS a
partir da breve discussão sobre os riscos que justificavam cada escolha. Na segunda
apresentamos a proposta de construção de PTS a partir da leitura de um fragmento de uma
cartilha do Ministério da Saúde sobre a PNH (Equipes de Referência, Clínica Ampliada e
PTS) e propondo um roteiro de elaboração antes de iniciar a discussão de um caso. No
entanto, não conseguimos tirar proveito do tempo para elaborar estratégias de intervenção e
definir metas para co-responsabilização.
Efetivamente, a evolução das ações de cuidado propostas no PTS de Marta sofreu
efeitos da impossibilidade de mais discussões sobre a co-responsabilização do processo, tendo
continuidade sem o compartilhamento das informações sistematizado em espaços de
discussões e avaliações e permanecendo centrado na ACS referência da família de Marta.
Após minha entrada no estágio, os contatos por telefone ou em outros encontros do
PET-Saúde5 com a ASC foram os principais meios encontrados para me colocar à disposição
5 Encontros previstos pelo plano de intervenção da linha SMAB PET-Saúde que não tiveram a finalidade de discussão de PTS’s.
20
do PTS. Assim pude acompanhar a grande dificuldade da usuária em aderir ao tratamento no
CAPS do modo como esperávamos, apesar das já referidas tentativas de articulação.
Algumas vezes a ACS foi ao CAPS para conversar com o psiquiatra em consultas com
Marta, uma vez que a autonomia da usuária para assumir os compromissos do tratamento se
mostrara comprometida, pois voltaram a ocorrer situações em que ela não compareceu ao
serviço nem mesmo que apenas para buscar a medicação.
A constituição de vínculo de referência de Marta com o CAPS evoluiu pouco no
sentido de ela voltar a frequentar regularmente. As oficinas de tapete às quais se referia como
prazerosas em outros tempos já não aconteciam e ela não se engajara também nas atividades
artesanais que o serviço estava oferecendo. Não foi possível, entretanto, obter diretamente
dela a justificativa para a falta de interesse em manter a frequência, pois os diálogos com ela
foram marcados, para mim, por suas dificuldades de falar e exprimir sentimentos,
singularidade que procurei sempre respeitar, apesar dos meus incômodos.
Da experiência que buscamos construir, ficou uma forte impressão causada pelo
envolvimento afetivo da ACS com Marta e D. Antônia. O forte vínculo que a faz bastante
presente na vida de ambas numa relação que, para a outra ACS a quem foi referido o
exercício de papel de liderança no grupo, extrapola os limites de sua “obrigação”. Muitas
impressões compartilhadas pela ACS durante essa convivência sobre o contexto de vida de
Marta e D. Antônia dizem de um modo extremamente implicado como ela se dispõe a cuidar
de ambas.
Durante essa experiência podemos saber, por exemplo, que ela se dispunha a sempre
fazer a separação da medicação fornecida à Marta em pacotes diários de acordo com a
prescrição. Ela, então entregava a moça que cuidava dos afazeres domésticos na casa de
Marta para que essa cuidasse do controle de entrega. Quando a moça saiu do serviço na casa,
Marta passou a ir buscar na casa da ACS à noite, já levando os do dia seguinte. Essas
estratégias nos foram apresentadas pela ACS como um modo de prevenção à ingestão da
medicação sem controle por Marta, pois ela relatou que a usuária, por vezes, já cometeu
abusos do ansiolítico prescrito no seu tratamento para combater a insônia, que parece muito
lhe incomodar. A ACS também falou que sua atenção a Marta tinha que ser redobrada sempre
em situações em que D. Antônia se encontrava mais debilitada pelos quadros de crise
ocasionadas por seu mal crônico, nas quais era previsível que Marta se sentisse mais ansiosa e
mais propensa ao abuso da medicação.
Como indicado, houve poucas oportunidades de sentarmos com a EqSF para discutir a
construção e continuidade de processos disparados com a construção do PTS. Somente no
21
início de setembro de 2010 conseguimos marcar um encontro de avaliação do processo com a
EqSF, mais uma vez no horário da reunião de equipe. No encontro, tentamos fazer o resgate
da dimensão processual de toda relação de cuidado, a partir do que foi possível refletir que a
maior evolução em relação ao PTS de Marta dependeria da capacidade de organização da
EqSF.
A conversa foi disparada pela leitura do PTS, que tinha sido sistematizado, e a
proposta de discussão de encaminhamentos. As falas indicaram, então, dificuldades de
enxergar mudanças em relação ao que fora escrito há mais de seis meses atrás, centrando-se
num debate que refletiu diretamente as dificuldades de diálogo entre USF e CAPS. Outras
falas se remeteram a uma compreensão de descumprimento de dever pela equipe do CAPS,
voltando-se diretamente à cobrança em relação ao acompanhamento de Marta quando ficasse
sem frequentar o serviço por muito tempo, como estava acontecendo então. Houve com isso a
constatação de que o CAPS precisaria ser chamado para uma conversa.
As colocações da enfermeira referiram-se à sensibilização da EqSF no tocante ao
“olhar diferenciado” para questões relativas à saúde mental, possibilitado pelo contato
conosco no âmbito do PET-Saúde, e me perceber uma abertura e um primeiro passo dado para
a construção de um diálogo entre serviços e da responsabilização da EqSF pela construção de
laços mais firmes com a rede.
Passado cerca de um mês da realização desse encontro, tivemos a notícia de um AVC
sofrido por D. Antônia, que repercute significativamente na dinâmica do caso. Entende-se,
então, que este fato poderá mobilizar uma maior apropriação do processo de cuidado a esta
família pela EqSF, equipe PET-Saúde, CAPS II e todos os envolvidos. Embora seja
necessário encerrar aqui essa “contação”, sabe-se que a história seguirá, sendo o seu desfecho
dependente do protagonismo possível de atores diversos, dos aqui referidos e outros que
possam surgir.
5. DISCUSSÃO
O desenrolar de ações e tentativas de articulação que permearam a experiência de
construção do PTS para viabilização de cuidados a Marta foi um desafio para os envolvidos,
uma vez que aconteceu em condições que se revelaram, sob vários aspectos, adversas à
experimentação de um modo coletivo e integral de atenção à usuária.
Na concretude de acontecimentos – e/ou na ausência desses – foram desvelando-se
dificuldades que marcaram a dinâmica da relação entre EqSF e Equipe PET-Saúde, na
coordenação desse processo, pela fragmentação das ações de elaboração e execução de
22
estratégias de cuidado à usuária (e seu grupo familiar). Compreende-se que a insuficiência de
espaços coletivos de discussões especificamente sobre o caso, foi um dos aspectos
preponderantes que levaram a EqSF a uma mínima assimilação da proposta de
compartilhamento da construção de um processo mais contínuo.
Nesse sentido, faz-se pertinente considerar alguns dos desafios da formulação e da
operacionalização do PTS como “movimento de co-produção e co-gestão de processo
terapêutico”, de acordo com o que propõe Oliveira (2008). Os três movimentos pensados pelo
autor como operações sobrepostas e articuladas demandadas a uma equipe que se propõe à
construção de um PTS – co-produção da problematização, co-produção de projeto e co-
gestão/avaliação – não aconteceram de modo bem definido nesse processo, levando à quase
que total falta de envolvimento direto e contínuo da EqSF no processo, visto como de
responsabilidade apenas da equipe PET-Saúde.
Em relação à organização do processo de trabalho da EqSF, pôde-se notar que, a
priorização das atividades voltadas ao alcance de metas de produção pré-estabelecidas, foi um
fator preponderante para a ausência desses espaços coletivos, que poderiam ter viabilizado
com mais consistência a discussão da proposta de compartilhamento da construção do PTS e a
co-gestão do andamento desse.
A tentativa de constituição de um vínculo, de nossa equipe PET-Saúde com a EqSF,
pautado sob a lógica do apoio, esbarrou na dinâmica cotidiana do trabalho na USF, instituída
sob um modo de fracionamento de processos e imposição de um ritmo de produção aos
trabalhadores, que, a partir da presunção de “prejuízo” na produtividade, que a EqSF indicava
assumir, atribuindo valor de efeito indesejado às “paradas” na sua dinâmica cotidiana e
inserção de processos reflexivos que demandam envolvimento, como os propostos pela
experiência de construção desse PTS e por outras ações no âmbito do PET-Saúde. É
relevante, nesse aspecto, ressaltar que mesmo a EqSF contando com um turno da agenda
semanal como proposto para atividades de educação permanente, os horário de reunião de
equipe fora o priorizado para as atividades propostas.
Essas questões apontam para as dificuldades de gestão de cuidados por essa EqSF, a
partir do comprometimento da organização do processo de trabalho cotidiano, que é regido
por uma lógica de fragmentação apontada como predominante atualmente em serviços de
saúde. Entende-se que tal panorama tem levado a uma tendência de organização de ações nos
serviços para atendimentos pontuais a queixas específicas, sem estabelecimento
acompanhamentos longitudinais por projetos terapêuticos. (DIMENSTEIN, et. al., 2009). A
23
falta de envolvimento do médico e da dentista, mesmo nos poucos espaços disponíveis para
discussão, também reflete essa fragmentação na produção de saúde.
Salta-nos aos olhos, na experiência narrada, a evocação dos sentimentos de angústia e
impotência vividos pelos trabalhadores diante de uma rede formal de cuidados incipiente na
provisão de ações integradas, que se fizeram recorrentes nas ocasiões de encontro da EqSF e
equipe PET-Saúde, onde foram pautadas discussões sobre possibilidades de organização de
respostas a serem dadas em situações complexas pela via da articulação de rede.
Deparamo-nos, de fato, com precárias condições do CAPS II para realizar ações de
referenciamento e quiçá de apoio matricial à EqSF, funções sob as quais se ampara a
viabilidade do princípio de territorialização que orienta a organização da atenção
desinstitucionalizada às pessoas com sofrimento psíquico, com regulação prevista por esse
tipo de serviço substitutivo.
Destaca-se que, no encontro em que foi proposta a avaliação do processo de
construção de cuidados narrado, foram percebidos avanços na conquista da disponibilidade da
EqSF para um maior envolvimento com a proposta de articulação da rede, no sentido da
apreensão da importância do cuidado co-responsabilizado e com participações menos restritas
dos atores e mais solidarização, ao invés das críticas que despotencializam o exercício do
cuidado em um território que se evidenciou como já sendo bastante árido.
Em relação à possibilidade de potencialização da EqSF para utilizar a tecnologia PTS
como ferramenta de trabalho coletivo, reconhecem-se, ainda, como lacunas relacionadas ao
modo como aconteceu o processo, insuficientes discussões sobre desdobramentos conceituais
importantes ligados ao tema construção de PTS, como por exemplo, o de técnico de
referência, “Aquele que assume a gestão da clínica (e do cuidado) num projeto terapêutico em
andamento” (OLIVEIRA, 2008, p. 286), noção importante, que se afirma sob experiências
diversas no campo da saúde mental (LANCETTI, 2007).
Na experiência, houve também dificuldades de nos apropriar da tentativa de
aproximação com outros atores familiares, como filhos/irmãos e da discussão sobre qual
participação possível desses no projeto de cuidados, que se compreende como não focado
apenas em um único sujeito. Cabe com isso, destacar a situação concreta eleita como
circunscrita à ideia de “sujeito coletivo” (LANCETTI, 2001b), o que implica pensar em
singularidades operando em situações de vida complexas.
Por fim, compete refletir sobre a questão da garantia de cidadania e o desenvolvimento
de graus de autonomia possíveis proporcionadas à usuária através desse processo, partindo-se
da sinalização dada pelo envolvimento afetivo da ACS como uma potente via de acesso de
24
mão dupla (do serviço à usuária e da usuária ao serviço), já que muitos momentos, uma micro
rede local, organizada informalmente em torno da figura da profissional, esteve atuando de
modo minimamente resolutivo no caso. Como olhar para o vínculo entre a usuária e ACS para
além de uma relação de dependência que extrapola os limites de uma “obrigação” (vide
sugestão de sentido sinalizada no relato)?
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Faz-se importante retomar a afirmação de que a proposta desse trabalho não é a da
generalização dos sentidos construídos na experiência relatada, mas a de valorizar os aspectos
singulares em relação ao processo vivido pensando-se possíveis desdobramentos a serem
dados aos achados dessa experiência.
Por meio dessa tentativa de co-construção de articulações em uma rede de cuidados,
buscando atuar sobre demandas percebidas através do contato com uma realidade concreta,
foi possível compreender alguns dos desafios a serem enfrentados na perspectiva de se incluir
na ESF ações diversas de cuidado, visando a integralidade da atenção a pessoas com
sofrimento psíquico.
Para mim, essa experiência possibilitou o exercício de um modo de cuidado
conhecido, anteriormente, apenas no âmbito teórico, pelo qual nutria grande curiosidade e
desejo de experimentação. Tal modo, para mim, implicava pensar a colocação dos sujeitos
atendidos e suas famílias em um lugar no qual lhes fosse possível assumir lugar de
protagonismo no “tratamento”, estimulando-se, com isso, o desenvolvimento de maiores
graus possíveis de autonomia. Sendo assim, via a proposta como um desafio de efetivação de
uma prática com a qual a EqSF não estava habituada, tampouco nós mesmos.
A experiência reafirmou um dos pressupostos com que partimos para o campo, o de
que a clínica dos transtornos psíquicos que atende eficientemente a situações complexas de
adoecimento não se faz sem práticas capazes de dar voz a saberes diversos, constituintes de
singulares processos de saúde-doença. Mas, somente promovendo-se a integralidade do
cuidado a pessoas em sofrimento psíquico, através de um olhar para aspectos de vida desses
sujeitos que não se restringe à dimensão biológica ou qualquer outra dimensão.
Nesse sentido, é importante destacar que é fundamental a compreensão, por parte dos
profissionais, de que os usuários podem e devem participar da construção dos próprios
projetos terapêuticos. Não compartimentalização da atenção aos sujeitos e não restrição de
tratamentos ao âmbito da medicalização são pontos críticos com que vimos, portanto, nos
preocupando no âmbito de nossa atuação na linha SMAB.
25
Como tivemos oportunidade de refletir a partir de nossas ações, a experiência de co-
construção de PTS’s pode ser fértil no sentido de tornar possível a apreensão, pelos
sujeitos/profissionais implicados na experiência, de uma prática sustentada pelos preceitos da
clínica ampliada, tendo em vista que essa apreensão requer a invenção de modos de operar
sobre a realidade voltando-se olhares às experiências singulares dos diferentes
sujeitos/usuários nas próprias produções de saúde-doença, para além de aspectos do
adoecimento que se deixam capturar apenas por domínios de saberes técnico-teóricos.
26
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