consumo de luxo

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL ESCOLA DE ADMINISTRAO PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ADMINISTRAO MESTRADO ACADMICO EM ADMINISTRAO

VALORES E SIGNIFICADOS DO CONSUMO DE PRODUTOS DE LUXO

ANDR CAUDURO DANGELO

Porto Alegre, maro de 2004

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL ESCOLA DE ADMINISTRAO PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ADMINISTRAO MESTRADO ACADMICO EM ADMINISTRAO

VALORES E SIGNIFICADOS DO CONSUMO DE PRODUTOS DE LUXO

Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Administrao da Universidade Federal do Rio Grande do Sul como requisito para obteno do ttulo de Mestre em Administrao. rea de concentrao: Marketing

ANDR CAUDURO DANGELO

Orientador: Dr. Carlos Alberto Vargas Rossi

Porto Alegre, maro de 2004.

AGRADECIMENTOS

Agradeo: ao CNPQ e ao PPGA; ao meu professor-orientador Carlos Alberto Rossi; aos professores Nique, Slongo e Luce, pelas observaes ao projeto desta dissertao; a todos aqueles que contriburam de alguma forma com esta dissertao, indicando entrevistados, sugerindo bibliografia ou dando dicas para a conduo da pesquisa: Andres, Francine, Stefnia, Juliano, Jonas, Heleno, Thas, Sabine, Laetitia, Patrcia Menda, Mariana Bacaltchuck, Guilherme e Jordana Liberali, professor Everardo Rocha, Letcia Bellia, Luciana Walther, Marcos Ferreira, Tatiana Soter, Denise Amon, Clia Barth e Suzane Strehlau. a todos os entrevistados que se dispuseram a colaborar, dedicando parte do seu tempo a falar sobre suas experincias como profissionais ou consumidores do mercado de luxo. E sobretudo, agradeo: ao Totonho, Dorothy e Alessandra, pela acolhida em So Paulo e a contribuio decisiva para a viabilidade desta pesquisa; e minha famlia pais, irm, tios e avs que ajudaram de inmeras formas na realizao deste trabalho. A todos, o meu muito obrigado.

SUMRIO

RESUMO.................................................................................................................................06

ABSTRACT ............................................................................................................................07

INTRODUO .......................................................................................................................08

1 DELIMITAO DO TEMA E QUESTO DE PESQUISA...........................................11 1.1 DEFINIES DE CONCEITOS....................................................................................12

2 OBJETIVOS ........................................................................................................................16 2.1 OBJETIVO GERAL ........................................................................................................16 2.2 OBJETIVOS ESPECFICOS.........................................................................................16

3 JUSTIFICATIVA .................................................................................................................17 3.1 O MERCADO BRASILEIRO DE BENS DE LUXO...................................................17 3.2 ESTUDOS SOBRE O CONSUMO DE PRODUTOS DE LUXO NO BRASIL ......20

4 FUNDAMENTAO TERICA.......................................................................................22 4.1 CONSUMO: CULTURA E SIGNIFICADOS ...............................................................22 4.1.1 Algumas Definies Necessrias..........................................................................24 4.1.2 O Mundo do Consumo: Caractersticas, Componentes e Funcionamento ... ..................................................................................................................................................27 4.1.3 O Consumidor e seus Objetos ...............................................................................32 4.1.4 O Ato de Fazer Compras: Caractersticas...........................................................34 4.1.5 A Dimenso Moral do Consumo: Uma Breve Discusso ...............................35 4.2 CONSUMO DE PRODUTOS DE LUXO .....................................................................38 4.2.1 Definio e Classificao dos Produtos de Luxo.............................................39 4.2.2 Luxo: Motivaes e Pblico Consumidor ...........................................................45

5 MTODO .............................................................................................................................49 5.1 FASES DA PESQUISA..................................................................................................53

6 RESULTADOS ..................................................................................................................75 6.1 OBSERVAES PRELIMINARES .............................................................................75 6.1.1 Sobre Caractersticas Gerais do Captulo ........................................................75 6.1.2 Sobre a Obteno dos Resultados e sua Estrutura de Apresentao ......77 6.2 SOBRE A AMOSTRA: CARACTERSTICAS DOS ENTREVISTADOS...............80 6.3 RESULTADOS DE PESQUISA....................................................................................82 6.3.1 Valores do consumo de luxo..................................................................................85 6.3.1.1 Valor: qualidade intrnseca..................................................................................86 6.3.1.2 Valores: aparncia e hedonismo........................................................................91 6.3.1.3 Valor: distino .......................................................................................................96 6.3.2 Significados do Consumo de Luxo.................................................................... 119 6.3.2.1 Significado: prazer ............................................................................................. 119 6.3.2.2 Significado: impulsividade/compensao............................................ 126 6.3.3. Influncias sobre o consumo de produtos de luxo...................................... 130 6.3.4 Caractersticas da compra ................................................................................... 134 6.4 RESUMO ....................................................................................................................... 137 6.5 VALIDAO DOS RESULTADOS .......................................................................... 138

7 CONCLUSES................................................................................................................ 141 7.1 REFLEXES ACADMICAS E SUAS IMPLICAES ....................................... 141 7.2 DISTINO E CAPITAL CULTURAL...................................................................... 144 7.2.1 Fontes de Capital Cultural.................................................................................... 149 7.2.2 A Questo da Moda ................................................................................................ 152 7.3 SACRALIZAO, MITO E SEDUO.................................................................... 155 7.4 A QUESTO MORAL ................................................................................................. 164 7.5 COMENTRIOS FINAIS ........................................................................................... 171 7.6 SUGESTES DE FUTURAS PESQUISAS ............................................................ 175 7.7 IMPLICAES GERENCIAIS ................................................................................... 176 7.8 LIMITAES ................................................................................................................ 181

REFERNCIAS................................................................................................................... 183

ANEXOS .............................................................................................................................. 202

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 Transferncia de Significados na Sociedade de Consumo.................27

Figura 2 Dimenses dos produtos de luxo ...............................................................42

Figura 3 Fases da pesquisa ..........................................................................................53

Figura 4 ...................................................................................................................................66

Figura 5 ...................................................................................................................................67

Figura 6 Sntese dos procedimentos de anlise de dados ..................................69

Figura 7 Sntese dos procedimentos de confiabilidade e validade....................74

RESUMO

O mercado de produtos de luxo apresentou grande crescimento no Brasil nos ltimos dez anos. Apesar disso, pesquisadores de marketing no dedicaram grande ateno a este fenmeno. A presente pesquisa tem o objetivo de suprir parcialmente essa lacuna, ao investigar quais os principais valores e significados do consumo de produtos de luxo no Brasil. A pesquisa valeu-se de um mtodo qualitativo de investigao, com trs fontes de evidncia principais: entrevistas em profundidade, consulta a materiais e observao. O foco do estudo recaiu sobre duas categoriais de produtos: vesturio e joalheria. Identificaram-se quatro valores fundamentais a orientar o consumo de produtos de luxo - a qualidade intrnseca dos produtos, o hedonismo, a preocupao com a aparncia pessoal e a distino , e dois significados fortemente associados a ele prazer e impulsividade / compensao. A pesquisa indicou ainda que o consumo de bens de luxo influenciado pelos meios social, profissional e familiar. A comparao dos resultados deste estudo com trabalhos realizados em outros pases mostrou que os produtos de luxo compartilham diversos significados e valores em sociedades do mundo todo. A pesquisa aponta tambm para a presena de caractersticas da moderna sociedade de consumo no Brasil.

ABSTRACT

In the last ten years, Brazilian luxury market has experienced an expressive growth. However, the consumption of luxury products has rarely been studied by marketing researchers. This research has the goal of exploring this gap by investigating the main values and meanings of consumption of luxury products in Brazil. The research was based on a qualitative approach, using three sources of information: in-depth interviews, desk research and observation. The research focused on two products categories: apparel and jewelry. Four values and two meanings were found as central to the consumption of luxury goods. The values are: intrinsic quality of goods, hedonism, concerns about good looking and distinction. The meanings identified are pleasure and impulsive behavior. The research also found that social, professional and familiar environments influence the consumption of luxury products. The comparison of the results of this research with the results found in studies in other countries indicates that the consumption of luxury products has values and meanings that are common to many societies around the world. This research also unveils aspects of the modern consumption culture in Brazil.

INTRODUO

Things R Us James Twitchell

A frase que abre esta dissertao possivelmente seja um misto de provocao e exagero, especialmente se considerado o retrospecto de seu autor, um notrio defensor do consumo; para Twitchell, o materialismo nos preenche e possuir e gastar so as mais apaixonantes e geralmente as mais imaginativas tarefas da vida moderna (TWITCHELL, 1999, p. 286). Porm, concorde-se ou no com suas afirmaes, o fato que o consumo um dos fenmenos mais importantes das sociedades modernas. O exame das relaes entre os seres humanos e os objetos permite conhecer inmeras caractersticas e peculiaridades individuais e culturais, constituindo um retrato das pessoas e dos grupos sociais.

Respaldado por conceitos oriundos da Antropologia, Sociologia e Psicologia, o estudo do carter simblico e dos significados sociais e psicolgicos do consumo tem merecido ateno dos acadmicos de Marketing. A ascenso de tal interesse representa a evoluo do conhecimento para alm das fronteiras utilitaristas e essencialmente racionais da teoria econmica tradicional (JAIME Jr., 2001), superando, inclusive, a restrita viso vebleniana do consumo como fator de status e diferenciao social (MCCRACKEN, 1988; ROCHA et al., 1999; CAMPBELL, 2001). Est-se, em ltima instncia, a reconhecer que (...) h smbolos no capitalismo tanto quanto h simbologias e mitologias entre os ndios do Amazonas, os nativos da Polinsia e os negros da frica Equatorial (DA MATTA, 1984, p.9) e que objetos de

09 consumo so a parte visvel da cultura (DOUGLAS, ISHERWOOD, 1996, p. 38), contribuindo para torn-la mais tangvel (MCCRACKEN, 1988).

Considerando todas estas vises, nada mais natural do que lanar um olhar atento ao cotidiano, palco do chamado teatro do consumo, para tentar captar um pouco da lgica simblica e do emaranhado de significados presente nos mais corriqueiros atos de consumo. H que se desprender um pouco da condio de partcipe dessa realidade, tornando-a estranha aos olhos, como manda a tradio de pesquisa da Antropologia Social (ROCHA, 1984; BARBOSA, 1999), na ambio de entend-la mais profundamente. No Marketing, essa tem sido a proposta encabeada por pesquisadores daquilo que se convencionou chamar de antropologia do consumo ou de estudos da cultura do consumo, geralmente marcados pela imerso de pesquisadores em um locus determinado de investigao e a transposio de seus relatos, impresses e sentimentos em forma de produo acadmica. Foi assim com algumas etnografias conhecidas motoqueiros Harley Davidson (SCHOUTEN, MCALEXANDER, 1995), praticantes de pra-quedismo (CELSI, ROSE, LEIGH, 1993), celebraes familiares do Dia de Ao de Graas (WALLENDORF, ARNOULD, 1991) e alguns trabalhos menos divulgados, mas igualmente interessantes como o que abordou a experincia de consumo na Nike Town (PENALOZA, 1998). Procurou-se, em todos eles, promover o casamento do Marketing e do Comportamento do Consumidor com tradies de pesquisas qualitativas oriundas das cincias sociais, unindo conceitos e interpretaes dos dois campos. Os resultados foram estimulantes.

No Brasil, o Coppead da UFRJ possivelmente o principal centro incentivador de pesquisas desta natureza. Recentemente, vrias teses e dissertaes tm sido produzidas com o intuito de focar valores e prticas de diversos grupos sociais, a fim de compreender o universo simblico com o qual constroem suas experincias de consumo (ROCHA et al., 1998). Entre esses grupos esto os novos-ricos do Rio de Janeiro, profissionais liberais negros, patricinhas e yuppies.

Talvez poucas categorias de consumo sejam to interessantes, do ponto de vista acadmico, quanto a dos produtos de luxo. Afinal, esses so os objetos que

10 melhor exemplificam a subjetividade individual e a influncia da cultura sobre o ser humano (BERRY, 1994; TWITCHELL, 2002), prestando-se a abordagens

multidisciplinares de pesquisa (BERRY, 1994). So possivelmente os objetos mais repletos de significados dentro da cultura material (TWITCHELL, 1999), sendo considerados verdadeiros signos de uso poltico e social (APPADURAI, 1990). O luxo o que melhor corresponde expresso dos desejos e das emoes humanas (BERRY, 1994; ALLRS, 2000), de forma que atravs deles pode-se conhecer um pouco do universo das pessoas que os consomem. Um universo no qual, supe-se, os objetos sejam uma parcela importante e altamente representativa, visto que tangvel de um sistema de valores e de uma viso de mundo compartilhada que lhes confere significado.

justamente desses objetos, e do contexto no qual esto inseridos, que se ocupa essa dissertao.

1 DELIMITAO DO TEMA E QUESTO DE PESQUISA

A despeito das dificuldades que possam surgir na tentativa de definir o que um produto de luxo (KAPFERER, 1998), fato que as sociedades modernas trataram de disseminar, via empresas e seus instrumentos de marketing, uma noo razoavelmente compartilhada do conceito de luxo (BERRY, 1994). Em estudos de Administrao e Marketing, convenciona-se chamar de luxo todo aquele produto ou servio dotado de qualidade, esttica, preo e imagem de marca superiores aos convencionais (LOMBARD, 1989; DUBOIS, PATERNAULT, 1997), podendo pertencer a vrias categorias de bens, embora algumas delas, naturalmente, estejam mais associadas ao conceito.

Por isso, no objetivo do presente trabalho promover discusses quanto ao carter relativo do luxo o que luxo para uns pode ser absolutamente comum para outros, afinal (BERRY, 1994; KAPFERER, 1997) e sim partir de um conjunto de produtos e servios que, para as principais sociedades capitalistas rotulado como luxo, dado o seu carter diferenciado em relao aos bens e servios convencionais. No se pretende conceber luxo como um contraponto necessidade1, at mesmo porque, numa sociedade de consumo, difcil afirmar o que diferencia uma necessidade real de uma social (GUIMARES, 2003), j que o avano dos mercados transforma o luxo de uma poca em necessidade de outra (BERRY, 1994; TWITCHELL, 2002). Por um processo cultural, operado pelas ferramentas do capitalismo, possvel afirmar que existe um grupo de marcas, objetos e servios universalmente associados ao conceito de luxo,

1

Para uma discusso a respeito deste tema, ver Berry (1994) e Kemp (1998).

12 independentemente das peculiaridades culturais de cada pas ou regio. Estas peculiaridades tendem a emprestar nuances prprias sem, contudo, demover significados fundamentais amplamente compartilhados (WONG, AHUVIA, 1998; PHAU, PRENDERGAST, 2000), o que torna a viso quanto a um produto de luxo menos contraditria e mais consensual.

A tentativa de garantir objetividade definio do que luxo contrasta com a subjetividade prpria do consumo destes produtos. Frank (1999) claro quanto a isso: o consumo de bens de luxo depende mais fortemente do contexto scio-cultural do que o consumo de produtos comuns. Comea-se a justificar, assim, que se procure entender o consumo do luxo como um fenmeno social, representativo de manifestaes culturais, e no como uma categoria de mercadorias que responde a necessidades objetivas (APPADURAI, 1990).

No se trata de uma tarefa exatamente simples, visto que se trabalha com elementos abstratos e subjetivos por natureza. Por esse motivo, fundamental que, ao estabelecimento do problema de pesquisa fundamental dessa dissertao quais os valores e significados presentes no consumo de produtos de luxo?2 siga-se a definio de alguns conceitos essenciais dos quais far-se- uso ao longo da investigao, buscando elucid-los de maneira mais precisa.

1.1 DEFINIES DE CONCEITOS

O uso de termos como significados e valores pode obscurecer, por vezes, a acepo real de cada uma dessas palavras dentro dos estudos sobre consumo. Desenvolver um trabalho acadmico demanda que o emprego de alguns termos seja efetuado valendo-se de definies conceituais mais precisas, de modo a facilitar a compreenso e eliminar eventuais ambigidades. A exatido conceitual se impe, portanto, como uma necessidade ao incio dos trabalhos.

2

Adota-se aqui a definio de consumo como todas as instncias em que uma pessoa tem contato com aspectos do mundo material (Kozinets, 2002), podendo desempenhar o papel de criador, comprador e usurio de produtos e servios (McCracken, 1988).

13 O mais importante ter claros os dois termos presentes na questo de pesquisa: valores e significados. Valores so crenas parti lhadas ou normas de grupo internalizadas pelos indivduos, adquiridas atravs do processo de socializao do ser humano (ENGEL, BLACKWELL, MINIARD, 2000). Podem ser culturais e sociais, quando amplamente partilhados por um grupo de pessoas, ou pessoais, quando especficos de um indivduo (ENGEL, BLACKWELL, MINIARD, 2000). A adoo de alguns valores presume que determinados objetivos ou condutas sejam preferveis a outros, guardando qualidades intrnsecas (ROKEACH, 1973). Por isso, aquilo que uma pessoa ou grupo preconiza como ideal e recomendvel pode ser considerado um valor (REZSOHAZY, 2001), j que os valores estabelecem as posturas e condutas consideradas positivas e negativas, atribuindo-lhes, tambm, diferentes nveis de importncia (DE VRIES, 1999). A importncia dos valores em uma sociedade est no fato de que eles guiam aes, comportamentos, julgamentos, comparaes, atitudes e objetivos das pessoas e dos grupos (ROKEACH, 1973), guardando relativa estabilidade ao longo do tempo (DURGEE, OCONNOR, 1996).

Destas definies e caractersticas, depreende-se que os valores influenciam o comportamento do consumidor, ajudando a moldar preferncias, escolhas e modos de uso dos produtos (ENGEL, BLACKWELL, MINIARD, 2000). Desse modo, quando colocada a inteno de conhecer os valores do consumo de produtos de luxo, est-se supondo que determinado grupo de consumidores ou profissionais enxerga nesses objetos elementos congruentes com suas crenas e normas.

Significado, por sua vez, uma combinao de percepes que permite ao ser humano categorizar experincias dentro de seu modo de encarar a realidade, conferindo-lhes sentido (BECKER, 1962; LEVY, 1963, apud WOLF, 2002; KLEINE III, KERNAN, 1988). Os significados no so inerentes aos objetos e aos eventos e sim atribudos por quem os interpreta (KLEINE III, KERNAN, 1988). Da a sua caracterstica polissmica - um mesmo objeto ou experincia pode assumir diferentes significados (KLEINE III, KERNAN, 1988 e 1991) - e o seu carter essencialmente subjetivo (KLEINE III, KERNAN, 1991).

14 Todo significado est inserido em um contexto, sendo dele dependente, de modo que mudanas no contexto podem acarretar mudanas nos significados (KLEINE III, KERNAN, 1988 e 1991). Entretanto, a despeito de diferenas contextuais e individuais, um conjunto mnimo de significados compartilhado pelas pessoas, permitindo, assim, a comunicao sobre experincias e objetos (KLEINE III, KERNAN, 1988 e 1991).

Os significados atribudos aos produtos determinam o comportamento dos consumidores em relao a eles (KLEINE III, KERNAN, 1991). A resposta dos consumidores, inclusive, d-se em relao aos significados de um produto ou servio, e no a eles propriamente (KLEINE III, KERNAN, 1991). A maneira pela qual pode-se acessar os significados atribudos a uma experincia ou objeto est nos rtulos pelos quais os consumidores tendem a identific-los (KLEINE III, KERNAN, 1991). Os rtulos so, geralmente, palavras, expresses ou nomes atravs dos quais as pessoas expressam o sentido que determinado evento, experincia ou elemento assume para elas (KLEINE III, KERNAN, 1991).

A partir destas definies, cabe fazer uma observao: se a maneira pela qual pode-se acessar os significados atravs do rtulo que as pessoas atribuem, fica evidente que numa pesquisa qualitativa como a que se realizou aqui - os significados so obtidos a partir da explicitao dos mesmos nos discursos dos entrevistados. Naturalmente, o rtulo atribudo pode apresentar maior ou menor preciso e clareza, confo rme o nvel de familiaridade do objeto ou da experincia para o entrevistado (KLEINE III, KERNAN, 1991). No entanto, somente o prprio entrevistado seja num questionamento direto ou via anlise conjunta do seu discurso capaz de concordar se o rtulo atribudo condizente com as suas intenes. Nem sempre isso possvel, contudo, o que empresta um carter inferencial captao de significados (KLEINE III, KERNAN, 1991) em um processo de pesquisa.

De qualquer maneira, os significados so explcitos, pois existe um rtulo a identific-los. Os valores, entretanto, podem estar explcitos ou implcitos

15 (KLUCKHOHN, 1951, apud DURGEE, OCONNOR, 1996). Um valor pode ser depreendido atravs do testemunho de um entrevistado (maneira explcita), mas tambm atravs da observao de suas escolhas, da estrutura cultural e social onde transita e dos seus prprios padres de conduta numa interao social (OYSERMAN, 2001).

2 OBJETIVOS

2.1 OBJETIVO GERAL

Descrever e analisar o conjunto de valores e significados presente no consumo de produtos de luxo.

2.2 OBJETIVOS ESPECFICOS

Identificar as principais fontes de influncia sobre o consumo de produtos de luxo. Identificar caractersticas da compra de produtos de luxo.

3 JUSTIFICATIVA

Na Introduo, foram oferecidas justificativas tericas para a realizao desse trabalho. Por isso, este espao ocupar-se- de dois outros aspectos que reforam o interesse pelo tema e por sua forma de abordagem: 1) a dimenso que o mercado de produtos de luxo apresenta no Brasil, fartamente reportada pela imprensa nos ltimos anos; e 2) o (ainda) baixo nmero de trabalhos acadmicos sobre esse universo de consumo no Brasil.

3.1 O MERCADO BRASILEIRO DE BENS DE LUXO

Em 2002 e 2003, a economia brasileira viveu alguns perodos especialmente turbulentos. Ainda sob o impacto do racionamento de energia e dos atentados terroristas aos EUA, ambos em 2001, e da eleio e posse dos novos governos estaduais e federal, o pas enfrentou a diminuio dos investimentos e a retrao do consumo (SAFATLE, PACHECO, 2003). Nas montadoras de automveis, ptios repletos; nas lojas, pouco movimento; nos restaurantes, menos clientes. Em sntese, aquilo que freqentemente se observa em perodos de recesso ou de estagnao econmica: consumidores comprando menos.

O setor de produtos de luxo, no entanto, se no passou inclume por essa crise, ao menos no sofreu tanto com ela. Segundo a imprensa, a loja brasileira da Dior superou suas metas de venda em quase 40%, enquanto Zegna, Montblanc e Emprio Armani experimentaram, em 2003, crescimento de 72%, 10% e 48%, respectivamente, em relao ao ano anterior (TEIXEIRA, 2003). O Brasil

18 considerado o segundo mercado mundial para bens de luxo, em termos de potencial de expanso (UPDATE, 2000), representando 40% do mercado sul-americano desses produtos (Casado e Horta, 2001). O pas ocupa o segundo lugar em vendas das canetas Montblanc no mundo e o nono em carros Ferrari (WEINBERG, 2002). Recentemente, Tiffany, Montblanc e Louis Vuitton abriram novas lojas no pas (ALMEIDA, 2003).

Chama a ateno que cresa no pas um mercado aparentemente to restrito quanto esse. De fato, a chamada classe A1 (com renda familiar mdia de R$ 7,8 mil) representa apenas 1% da populao brasileira (ANEP, 2003). Pouco, certamente, para sustentar um mercado estimado em quase US$ 1 bilho no Pas em 2000 (CASADO, HORTA, 2001), mas que se soma a outros 5%, constituintes da chamada classe A2 aquela que, com uma renda familiar mdia de R$ 4,6 mil, (ANEP, 2003), se permite desfrutar de alguns produtos caros e sofisticados (VARELLA, 2001). Os integrantes desta classe profissionais liberais, executivos, pequenos e mdios empresrios valem-se de compras parceladas e formam, hoje, cerca de 40% da clientela da Louis Vuitton e representam entre 60% e 65% das vendas da Emporio Armani (VARELLA, 2000).

De fato, a incorporao desse segmento de consumidores fundamental para explicar a atratividade do mercado brasileiro. Segundo o consultor Carlos Ferreirinha, no a bolsa de R$ 27 mil que sustenta o luxo em pas algum (STEIN, 2003, F1). No Brasil, menos ainda; por aqui, depende-se muito do chamado

consumidor aspiracional, capaz de ficar seis meses pagando uma bolsa Louis Vuitton, segundo o consultor Alberto Sorrentino, e ainda assim comprar pelo menos uma pea por ano (ALMEIDA, 2003). Dadas as dimenses do pas, o investimento das empresas no mercado brasileiro compensa. A Bang & Olufsen, fabricante de equipamentos sofisticados de udio e vdeo, calculou que apenas 0,7% da populao brasileira teria condies de adquirir seus produtos. Esse percentual equivale a aproximadamente 1,2 milho de pessoas, pouco menos da metade do mercado potencial da Dinamarca, sede da empresa (VEJA, 2002b). A concluso da empresa, segundo a revista Veja, foi de que o Brasil tem uma populao to grande que quase sempre possvel ganhar dinheiro (VEJA, 2002b, p.28), fato para o qual

19 o professor de marketing Raimar Richers j havia alertado anos antes: mesmo no Brasil, o mercado de luxo elevado (RICHERS, 1996, p. 121).

A cidade de So Paulo constitui exemplo evidente dessa realidade. Principal reduto do consumo desses produtos, a cidade ostenta, numa regio formada por quatro ruas no bairro dos Jardins, quase 50 lojas de produtos sofisticados, sendo mais da metade delas de grifes 3 internacionais (KALIL, 2000). Tambm em So Paulo localiza-se a Daslu, uma loja brasileira sem semelhante no mundo inteiro. Nos seus 11 mil metros quadrados, so comercializadas as mais importantes grifes nacionais e internacionais de produtos que vo desde vesturio at peas de decorao, passando por prataria, jias e chocolates finos. A Daslu, que tem faturamento anual estimado em R$ 130 milhes (PINHEIRO, 2000), j foi motivo de reportagem em revistas estrangeiras, como a norte-americana The New Yorker, tal seu carter mpar no mundo.

O auge do mercado de produtos de luxo no pas ocorreu no final da dcada de 90 (LIPPI, BOCCIA, 2003) e incio dos anos 2000, quando as marcas aproveitaram-se de uma demanda reprimida por tudo o que era considerado grife (STEIN, 2003, p. F1). Na poca, o Brasil acompanhou uma tendncia mundial: ao contrrio do incio da dcada, marcada por uma retrao no consumo devido recesso e Guerra do Golfo (THE ECONOMIST, 1992), o mercado de bens de luxo mostrou no perodo flego invejvel nas grandes economias mundiais e, em especial, na dos Estados Unidos. A ascenso das empresas de alta tecnologia e de internet, alm da distribuio de bnus de desempenho como remunerao complementar de altos executivos, fizeram o consumo do luxo chegar a patamares antes vistos s nos anos 20, pr-quebra da bolsa de Nova Iorque (NUSSBAUM, 1998). Carros, viagens, roupas, jias, servios profissionais, equipamentos domsticos, manses tudo o que de mais sofisticado e luxuoso houvesse teve

3

Neste trabalho, a palavra grife ser utilizada como sinnimo de marca de luxo, a despeito da diferenciao entre os termos proposta por Kapferer (1997). A razo principal desta escolha est no fato de que so palavras utilizadas de maneira intercambivel na imprensa e por alguns autores acadmicos, o que facilita a comunicao e a compreenso do presente texto.

20 incremento de vendas nos Estados Unidos nesse perodo (NUSSBAUM, 1998; FRANK, 1999; VEJA, 2002a). O fenmeno no se restringiu aos EUA. Em Paris, formaram-se filas nas portas das grifes mais famosas, obrigando os lojistas a racionarem o nmero de peas por cliente. A maior parte dos consumidores era turista, especialmente japons (SCHMIDT, 2001; AQUINO, 2002).

No Brasil, relatos semelhantes, poca, deram uma idia da fora deste mercado. Nas lojas de luxo, houve lista de espera por alguns produtos (MOHERDAUI, 2001; KALIL, 2000), obrigando as filiais brasileiras de determinadas marcas a pedirem socorro s butiques de Mnaco e da Califrnia para atender demanda (KALIL, 2000, p. 85). Entre os lojistas, repetiram-se relatos de produtos que vendem como gua, chegam e acabam ou que somem antes de chegar s prateleiras (VARELLA, 2000, p. 138). At mesmo acessrios de grifes famosas para animais de estimao coleiras, roupinhas, bolsas, perfumes passaram a ser comercializados, com sucesso, nas principais lojas de So Paulo (VEJA, 1998; PIEMONTE, 2002).

Observa-se, a partir dos dados e informaes referidos acima, que h no pas um mercado significativo para produtos de luxo. Investigar o que pensam e sentem seus consumidores e profissionais revela -se interessante, medida que a aceitao e a legitimao do consumo de produtos de luxo dependem da cultura de cada local (TIDWELL, DUBOIS, 1996; PIRON, 2000), o que nos impede de supor que o comportamento e as motivaes dos brasileiros simplesmente assemelhem-se aos dos norte-americanos, europeus ou asiticos. Wong e Ahuvia (1998, p.423) lembram que s porque muitos produtos so os mesmos na sia e no Ocidente no significa que os consumidores os adquirem pelas mesmas razes, ou que os produtos apresentem funes sociais semelhantes em cada sociedade, pois itens materiais podem ser facilmente movidos ou copiados, mas seus significados so difceis de ser transferidos atravs de culturas.

21 3.2 ESTUDOS SOBRE O CONSUMO DE PRODUTOS DE LUXO NO BRASIL

No Brasil, em que pese o crescimento do mercado de produtos de luxo e o interesse com que vem sendo documentado pela imprensa, aparentemente pouco se produziu at agora acerca de seus consumidores e empresas. Sobre o tema, tem-se conhecimento de apenas uma dissertao de mestrado, defendida na EAESP/FGV em 1996, com o ttulo Marketing de Produtos de Luxo: Simbolismo, Marcas e Estratgia, de Celia Barth. Trata -se de um estudo focado no setor sua estrutura, caractersticas e estratgias preponderantes e no nos seus consumidores e profissionais.

Tambm oriundo dos quadros da EAESP/FGV, foi publicado em 2002, nos Anais do ENANPAD, estudo que buscava a validao de uma escala para consumo de status. Sua autora, Suzane Strehlau, prepara tese de doutorado em que analisa, junto aos consumidores, a questo da falsificao das marcas de luxo.

Naturalmente, a procura por artigos e trabalhos jamais exaustiva. Porm, a consulta s mais tradicionais bases de dados e fontes de informao acadmicas apontou a existncia, apenas, dos estudos supracitados como semelhantes ao que se apresenta aqui. Assim, esta dissertao constitui o primeiro relato acadmico a respeito dos consumidores e profissionais de um dos mercados que mais tm chamado a ateno no Brasil nos ltimos anos.

4 FUNDAMENTAO TERICA

Duas so as divises dessa reviso bibliogrfica: a primeira lana um olhar sobre o consumo enquanto manifestao cultural, envolta em valores e significados. A segunda, mais especfica, relaciona-se aos produtos de luxo.

4.1 CONSUMO: CULTURA E SIGNIFICADOS

Maximizao da utilidade, escolha racional, objetividade de avaliao. Inmeros termos so capazes de sintetizar a teoria econmica tradicional referente ao comportamento do consumidor em suas decises cotidianas. As premissas so claras: as escolhas do consumidor so racionais e objetivas, visando sempre a uma compra ideal- aquela em que a mxima utilidade e o menor dispndio monetrio se combinam. O consumidor, ademais, visto quase como um indivduo isolado; suas decises no sofrem influncia do meio social (DOUGLAS, ISHERWOOD, 1996), estando unicamente submetidas disponibilidade e ao preo dos produtos. Disciplina me do Marketing (ROSSI, 2001), no de admirar que os conceitos fundamentais da Economia tenham predominado na viso de profissionais e estudiosos das relaes de mercado por tanto tempo.

O estgio atual de desenvolvimento da disciplina, entretanto, exige que outras reas de estudo venham ao socorro do Marketing na tentativa de compreenso do comportamento do consumidor e dos atores do mundo do consumo. O papel fundamental que o consumo desempenha nas sociedades capitalistas demanda que disciplinas mais distantes do Marketing e da Economia caso da Psicologia,

23 Antropologia e Sociologia somem esforos na tentativa de explicar, entender e prever o fenmeno do consumo na sua dimenso micro o indivduo e macro como sistema social. A racionalidade do consumidor e a utilidade dos objetos no so, h muito, os elementos predominantes nas relaes capitalistas, se que um dia o foram. Sidney Levy j atentava para tal fato em 1959, atribuindo a necessidade de analisar os aspectos simblicos do consumo expanso da quantidade de produtos disponveis no mercado. Segundo ele, no clssico artigo Symbols for Sale, em contraposio ao perodo em que somente gneros bsicos constituam as opes existentes no mercado, uma infinidade de mercadorias fazia parte do universo do consumo de ento, tornando a funo dos objetos um mero coadjuvante dos significados que representavam.

Levy pavimentou os primeiros caminhos para um entendimento dos significados do consumo. No entanto, sua viso oferece apenas uma perspectiva parcial desse fenmeno, que te m em algumas razes histricas sua explicao mais profunda e reveladora.

A Revoluo Comercial entendida aqui como a combinao da Revoluo Industrial iniciada na Inglaterra no sculo 18 com a Revoluo do Consumidor, aquela que deu vazo a gostos, modas e interesse dos indivduos pelo consumo representa a passagem da sociedade tradicional para a moderna (SLATER, 2002). Na sociedade tradicional, o consumo vinculava-se ao status social, geralmente fixo, imvel; na modernidade, a estabilidade das posies sociais d lugar a uma ordem marcada pela mobilidade e pelo quase desapego s tradies, em que as possibilidades de escolha e os ideais de ascenso perpassam, legitimamente, todos os grupos sociais (SLATER, 2002). As relaes capitalistas, mediadas pelo mercado, tomam o lugar da regulamentao e da restrio da sociedade tradicional e assumem papel central na vida econmica, cultural e social (SLATER, 2002).

Nessa nova ordem, os objetos de consumo deixam de ser privilgio de alguns e passam a ser aspirao de todos. De elementos funcionais ou de mera sinalizao de status, ganham, gradativamente, significados novos, reflexo da celeridade das mudanas sociais e das novas esferas de manifestao e expresso coletivas e

24 individuais. Na sociedade moderna, a identidade social, outrora uma herana que se mantinha estvel ao longo da vida de uma pessoa, passa a ser construda pelo prprio indivduo, que se vale, principalmente, de produtos e servios para mold-la (CASOTTI, 1998; SLATER, 2002). assim que os produtos se tornam, na referncia de Levy, smbolos e significados (LEVY, 1959; SLATER, 2002), a ponto dos consumidores no desenvolverem lealdade s marcas propriamente, mas sim aos smbolos e imagens que produzem no momento do consumo (FIRAT, VENKATESH, 1995).

No sculo 20, aprimoramentos contnuos nas tecnologias de produo associam-se sofisticao das tcnicas de marketing e propaganda e disseminao dos meios de comunicao de massa para potencializar as caractersticas da sociedade moderna, em comparao com a tradicional (SLATER, 2002). Toma forma, ento, a sociedade de consumo a sociedade em que o consumo o elemento central da vida social, as aspiraes de compra e uso so legtimas e em que a insaciabilidade dos desejos de posse de objetos, mais do que uma caracterstica, uma necessidade manuteno do sistema (FULLERTON, PUNJ, 1998). Uma sociedade em que no existem barreiras a quem possa consumir e nem ao que possa ser consumido (SLATER, 2002) e onde os produtos so o principal reflexo da ordem social vigente (FULLERTON, PUNJ, 1998).

Em suma: a sociedade em que vivemos hoje.

4.1.1 Algumas Definies Necessrias

Finalizada esta breve exposio, surge naturalmente a suspeita de que cultura e consumo guardem ntima relao nos nossos dias. Embora no to popular quanto a expresso sociedade de consumo, o termo cultura do consumo, tentativa de sintetizar a busca de compreenso dos fenmenos sociais da modernidade, indica claramente que o entendimento de um termo passa pela compreenso do outro (ROCHA, 2000).

25 Para abord-los, so necessrios, de imediato, que se promovam algumas definies bsicas. O consumo, numa viso abrangente, pode ser definido como a criao, a compra e o uso de produtos e servios (MCCRACKEN, 1988). Cultura, por sua vez, o conjunto de valores compartilhados por uma coletividade que impe uma ordem e uma classificao ao mundo, naturalmente heterogneo e disperso (APPADURAI, 1990; KOPYTOFF, 1990; SLATER, 2002). a expresso, via idias e atividades, do carter de uma sociedade, indicando aquilo que considerado desejvel (NICOSIA, MAYER, 1976). A cultura contribui para conferir identidade a uma comunidade e dot -la de parmetros que a permitam construir e interpretar o mundo que a cerca (MCCRACKEN, 1988; SLATER, 2002). So as lentes com as quais as sociedades enxergam os fenmenos e os guias pelos quais os compreendem e assimilam (MCCRACKEN, 1988).

A cultura do consumo, por sua vez, diz respeito ao modo dominante de reproduo cultural desenvolvido no Ocidente durante a modernidade, designando um acordo social onde a relao entre cultura vivida e os recursos sociais (...) so mediados pelo mercado. (SLATER, 2002, p. 17). o modo de reproduo cultural em que o mercado e as relaes capitalistas, atravs de seus mais diversos elementos, desempenham papel central.

Cultura e consumo encontraram, a partir do sculo 20, uma ligao sem precedentes na Histria da humanidade (MCCRACKEN, 1988), visto que o consumo tornou-se a forma pela qual a sociedade passou a assimilar sua prpria cultura (SLATER, 2002). O consumo se tornou, nas palavras de Baudrillard, a palavra da sociedade contempornea sobre si mesma, o modo como a nossa sociedade se fala (1981, p. 241). Mais do que a mensagem de um sistema, tornou-se o sistema em si (DOUGLAS, ISHERWOOD, 1996, p. 49), de modo que as significaes assumidas pelos objetos no se manifestam isoladamente, e sim na relao de uns com os outros (BAUDRILLARD, 1981). Todo o consumo, por conseqncia, cultural, pois envolve valores e significados partilhados socialmente e porque tudo o que consumimos possui um significado cultural especfico, atravs do qual reproduzimos nosso sistema de relaes sociais (SLATER, 2002). No territrio do consumo possvel enxergar parcela representativa dos valores (crenas e normas

26 vigentes, segundo Engel, Blackwell e Miniard, 2000) existentes em uma sociedade, assim como compreender caractersticas sociais e individuais atravs da leitura dos significados (formas de categorizao) imputados a produtos e servios.

A esta altura, o leitor poder sentir-se tentado a concluir que a unio entre cultura e consumo um privilgio do mundo capitalista e, portanto, um fenmeno relativamente recente na Histria da humanidade. Na verdade, nunca se observou uma separao entre cultura e consumo, simplesmente porque todos os fenmenos sociais so culturalmente determinados, j que emergem do interior da sociedade (SLATER, 2002). Ou seja: os objetos no tm significado algum fora daqueles atribudos pelos homens (APPADURAI, 1990) e mesmo a funo de um objeto definida culturalmente, j que ela inexiste de maneira inerente ao objeto (SLATER, 2002). Poder-se-ia afirmar at que a funo um significado, dada sua

determinao cultural (SLATER, 2002). O entendimento que se pretende transmitir de que em nenhuma outra poca os significados atribudos aos objetos se multiplicaram com tamanha velocidade, reproduzindo-se constantemente e

suplantando inclusive as caractersticas funcionais, como atualmente. O sistema de signos e smbolos vinculado aos objetos jamais foi to forte e to representativo da ordem social e to enredado na coletividade. Essa a caracterstica que distingue a sociedade contempornea das suas predecessoras: o mundo do consumo uma rede de signos e significados interligados e interdependentes e oferece um modo de socializao aos seus indivduos (BAUDRILLARD, 1981).

Evidencia-se, ento, que para entender o consumo necessrio entender a cultura, e, na sociedade moderna, a recproca tambm verdadeira: s possvel compreender a cultura contempornea se entendermos as relaes capitalistas e de consumo que nela vigoram. No momento em que cultura e consumo so operados conjuntamente, o consumo deixa de ser um mero produzir, comprar e usar produtos para se tornar um sistema simblico, atravs do qual a cultura expressa seus princpios, categorias, ideais, valores, identidades e projetos (ROCHA, 2000).

27 4.1.2 O Mundo do Consumo: Caractersticas, Componentes e Funcionamento

Produtos e servios tm significados e importncia que transcendem sua utilidade e valor comercial, carregando consigo a capacidade de transmitir e comunicar significados culturais. A partir dessa premissa, fundamentada na literatura, o antroplogo Grant McCracken prope uma espcie de sntese do modus operandi do mundo do consumo nas sociedades capitalistas. Segundo McCracken, da produo at o consumidor final existiria um fluxo de significados culturais transferidos de um agente a outro, atravs de mecanismos diversos (1988; 1989). Esse fluxo de significados permearia as atividades de diversos agentes (empresas, instituies, etc.) e categorias profissionais (como publicitrios, designers, etc.) e culminaria com o prprio consumidor que, em ltima instncia, consumiria smbolos em forma de produtos. A partir desse esquema geral de McCracken representado na Figura 1 poder-se-ia compreender o funcionamento da sociedade de consumo e de seus principais atores.

Contexto Cultural Contexto Cultural

Propaganda

Moda

Produtos Produtos

Rituais de Posse, Troca, Arrumao e Descarte

Consumidor ConsumidorFigura 1 Transferncia de Significados na Sociedade de Consumo Fonte: adaptado de McCracken (1988)

28 Segundo McCracken, ento, o contexto cultural meio social e cultural no qual as pessoas convivem a origem do significado imputado a produtos e servios. A partir das representaes scio-culturais dos grupos sociais que se busca a matria-prima atravs da qual a propaganda e a moda iro transferir a produtos e servios seus diversos significados. A transferncia desses significados do produto at o consumidor ocorre atravs de diversos rituais tpicos da sociedade de consumo, como a posse (comparao, avaliao, demonstrao de bens pessoais), a troca (especialmente o ato de presentear), a arrumao (cuidados dedicados a pertences pessoais) e o descarte (aquisio de produtos que eram de outra pessoa ou descarte de um produto prprio).

Existem no modelo de McCracken, portanto, trs locais de significado (contexto cultural, produtos e consumidor) e dois momentos de transferncia de tais significados: do contexto cultural para os produtos e dos produtos para o consumidor.

O esquema de McCracken constitui uma boa sntese e um referencial proveitoso para estudos na rea de antropologia e sociologia do consumo. Torna evidente, atravs de uma representao grfica simples, a dimenso scio-cultural do papel de cada ator no mundo do consumo e oportuniza uma interpretao integrada das aes que marcam o cotidiano das sociedades capitalistas. Como afirma Allrs (2000), (...) difcil e intil distinguir os atos totalmente individuais dos atos sociais, pois (...) cada ato individual se reveste de uma dimenso social (p. 49). O consumo, lembra Solomon (1983, p. 319), no ocorre em um vcuo, visto que produtos e servios fazem parte da vida social. Ou seja: necessrio, para ambicionar a compreenso das questes relacionadas ao significado do consumo, reconhecer que os agentes no podem ser analisados isoladamente e que somente a compreenso de seu papel no conjunto de relaes permite captar a essncia de cada atuao (SOLOMON, 1983; ROCHA et al., 1999).

oportuno, agora, proporcionar uma anlise sinttica de cada elemento do esquema proposto por McCracken (1988).

29 O contexto cultural, segundo o autor, divide-se em categorias culturais (que classificam inmeros fenmenos sociais de acordo com referenciais como gnero, idade, classe social, etc.) e princpios culturais (idias e valores que organizam e avaliam os fenmenos e que fundamentam sua categorizao). A importncia do contexto cultural evidente e j foi referida anteriormente; entende-se que foram mudanas no contexto cultural do sculo 18, por exemplo, que fomentaram a ascenso da chamada sociedade de consumo (MCKENDRICK, 1982, apud Cahill, 1994; CAMPBELL, 2001). Mudanas no contexto cultural ocorridas na metade do sculo 20 seriam, tambm, a fonte de novos referenciais de consumo que perduram at hoje nas sociedades capitalistas, especialmente a dos EUA (BUCHHOLZ,1998).

Propaganda e moda refletem o contexto cultural, atribuindo aos produtos determinados significados. Segundo McCracken (1989) a propaganda um mecanismo extremamente poderoso para transferncia de significados, a ponto de poder atribuir qualquer significado a qualquer produto. Valendo-se de uma narrativa de vida idealizada, a propaganda cria mitos e assim refora valores e idias oriundos do contexto cultural (ROCHA, 1984; RANDAZZO, 1997). Sua importncia na cultura do consumo fundamental: a propaganda um dos principais elementos que completa a transio das mercadorias do mundo da produo para o do consumo, em um processo de decodificao e conferncia de significados. A propaganda e os demais instrumentos de marketing, em menor escala torna possvel o consumo ao oferecer um sistema classificatrio que permite a circulao dos smbolos e significados atrelados s mercadorias. Desempenha, portanto, uma funo decisiva de socializao do consumo (ROCHA, 1984 E 2000; SLATER, 2002).

A moda, por sua vez, realiza o mesmo processo de socializao dos significados, mas de maneira um pouco diferente, visto que constitui um mecanismo mais complexo devido s suas inmeras fontes de significado, agentes de transferncia e formas de comunicao. H sempre uma tendncia de associar a moda s mudanas constantes no vesturio e em outros elementos de adorno pessoal. Essa , contudo, uma viso parcial do fenmeno; a lgica da moda a efemeridade, a mudana peridica, a valorizao da novidade tem permeado

diversas esferas sociais, indo do consumo difuso de idias e comportamentos

30 (LIPOVETSKY, 1989). No prprio consumo um fenmeno irrestrito ao vesturio, valendo praticamente para todas as categorias de produtos. No caso da cultura material, pode-se compreender o funcionamento deste mecanismo de maneira semelhante ao da propaganda transferncia de significados com, entretanto, uma distino: a moda capaz tambm de criar novos significados culturais atravs dos meios de comunicao, de formadores de opinio e de grupos geralmente margem da sociedade, como homossexuais, hippies e punks (MCCRACKEN, 1988). Os significados genricos transferidos atravs da moda podem ganhar contornos mais especficos junto aos consumidores, que os utilizam na elaborao de suas identidades sociais. Assim, a moda, para o indivduo, assume dimenses diversas, derivadas daquelas descritas anteriormente; no caso do vesturio, por exemplo, pode funcionar como um instrumento de comunicao, de integrao (entre o indivduo e a sociedade), de individualidade, de teatralizao (no desempenho de papis sociais), de autoestima e de transformao (em um carter teraputico, na busca de compensaes afetivas via consumo), conforme a realidade vivenciada pelo consumidor (MIRANDA, MARCHETTI, PRADO, 1999).

Os produtos so depositrios de significados culturais que podem estar evidentes ou escondidos para o consumidor (MCCRACKEN, 1988).

Independentemente da forma como se manifestam, so os signos e smbolos contidos em um produto que lhe conferem poder social (Allrs, 2000), pois o consumo ocorre, propriamente, no momento em que o objeto produzido inserido na sociedade, tornando-se um objeto social (DA MATTA, 1984). Deixa, portanto, de ser um produto fabricado em srie e passa a ganhar nova significao (DA MATTA, 1984).

Os rituais so a forma pela qual o significado finalmente transferido do produto para o consumidor. Os rituais so aes simblicas que manipulam o significado cultural de modo a favorecer a comunicao e a categorizao entre grupos e indivduos (MCCRACKEN, 1988). uma forma que a sociedade tem de falar de si prpria (Rocha, 1984), tornando pblicos seus valores e definies sociais (DOUGLAS, ISHERWOOD, 1996). O consumo possui rituais prprios, conforme mencionado anteriormente (posse, troca, arrumao e descarte) e considerado, de

31 maneira mais genrica, como o ritual da vida moderna (WRIGHT, SNOW, 1980, apud ROOK, 1985, p. 252). Os rituais ganham aspecto tangvel atravs da utilizao de artefatos (objetos e produtos utilizados/consumidos no ritual), da existncia de scripts (guias que especificam a utilizao dos artefatos e a seqncia de procedimentos e comportamentos), da performance de papis por parte dos participantes e da presena de expectadores, que acompanham o ritual (Rook, 1985). Apesar de McCracken no inclu-lo entre os rituais que promovem a transferncia de significados, razovel afirmar que o prprio ato de fazer compras por si s um ritual, como poder ser observado mais adiante.

Por fim, o consumidor, ltimo locus de significado, faz uso dos significados culturais a fim de se autodefinir socialmente. Atravs dos objetos e produtos que o indivduo adquire percepo da sua prpria vida, j que a utilizao ou exibio de um produto contribui para a construo da personalidade (SOLOMON, 1983; DA MATTA, 1984; WALLENDORF, ARNOULD, 1988; MCCRACKEN, 1988 e 1989; TWITCHELL, 1999; BELK, 2000). O consumo, convm lembrar, no depende somente de recursos financeiros do consumidor seu capital econmico, segundo Bourdieu (2002) , mas tambm da teia de relaes pessoais e institucionais na qual est inserido seu capital social , que um potencial influenciador da aquisio. Depende, igualmente, do conjunto de conhecimentos e gostos desse consumidor chamado de capital cultural que reflete caractersticas pessoais desse indivduo ou do agrupamento no qual transita, e que funciona como elemento classificador e hierarquizante no contexto social. Cada um desses trs capitais pode funcionar como instrumento para a aquisio de outro: capital social ajuda a conquistar capital econmico, que por sua vez, conduz ao capital cultural, por exemplo (SLATER, 2002).

A importncia dos produtos e de seus significados na construo da identidade dos indivduos merece um exame mais detido, pois, em ltima anlise, representa o principal foco de interesse em estudos de comportamento do consumidor. O tpico seguinte traz este enfoque.

32 4.1.3 O Consumidor e seus Objetos

Belk (1988; 2000) definitivo quanto relao das pessoas com seus pertences; para ele, (...) ns consideramos nossos pertences como partes de ns. Ns somos o que temos e possumos (2000, p.76). Belk (1988) prope que os objetos constituem uma extenso do self de cada pessoa, que abrangeria tambm pessoas e lugares. Enquanto o self representa a identidade do ser humano, o eu, a extenso do self representaria tambm aquilo que pertence a cada um, ou seja, o eu e o meu.

Os objetos no so apenas parte das pessoas; como Solomon (1983), McCracken (1988) e Belk (1988; 2000) apontam, os pertences a judam a desenvolver o sentido de self de cada um. O mundo do consumo prov aos indivduos o material cultural necessrio formao da identidade pretendida por cada um

(MCCRACKEN, 1988). Os produtos funcionam, dessa forma, como guias de comportamento, estando relacionados ao processo de desempenho de papis na vida social (SOLOMON, 1983). A importncia de determinados objetos muda ao longo da vida, visto que a necessidade e o desejo de desempenhar diferentes papis tambm se modifica (Belk, 1984, 1985 e 2000). Porm, a despeito das diferentes maneiras que os objetos podem ser utilizados e das diversas simbologias que podem carregar, praticamente impossvel consumir produtos desprovidos de significados (TWITCHELL, 2000) e, em decorrncia, no comunicar ou desempenhar qualquer papel social ao adquiri-los e us-los.

Com uma viso um pouco diferente, Kleine III, Kleine e Kernan (1993) afirmam que os objetos guardam uma relao mais forte com as identidades de uma pessoa do que com o self propriamente. Os autores distinguem identidades e self ; segundo eles, o self global seria composto de inmeras identidades sociais papis sociais desempenhados na vida cotidiana e que, embora separados uns dos outros, em conjunto formam um senso geral de quem somos. Os indivduos difeririam no s em relao s identidades que atribuiriam a si prprios, como

33 tambm em relao importncia conferida a cada uma delas. Os objetos que mais atrairiam o consumidor, ento, seriam aqueles que mais contribuiriam para o reforo das identidades consideradas relevantes para o indivduo.

Paralelamente importncia que os objetos apresentam para o indivduo, sobrevm novamente a necessidade de destacar a dimenso social e coletiva dos produtos e das atividades de consumo. Aqui, pode-se estabelecer a ligao entre os significados assumidos na relao do indivduo com os objetos e a sua insero em determinados grupos sociais. Convm destacar que o self mantm quatro nveis de representao o individual, o familiar, o comunitrio e o grupal (BELK, 1988) dos quais trs so eminentemente coletivos. Uma das formas de se expressar e definir a participao em qualquer um dos trs nveis coletivos do self atravs do compartilhamento de smbolos de consumo (BOORSTIN, 1973, apud BELK, 1988).

Tais smbolos de consumo assumem contornos diferentes em cada um dos trs nveis coletivos do self, mas no deixam de estar presentes em nenhum deles. No mbito familiar, por exemplo, objetos relacionados decorao da casa so os mais proeminentes, enquanto que no mbito comunitrio aqueles relacionados ao exterior dos domiclios assumem maior relevncia (Belk, 1988). Nos grupos, o uniforme informal semelhana encontrada no modo de vestir e na utilizao de determinados objetos - identifica os seus membros. No caso dos grupos os exemplos so muitos, podendo ser citados desde aqueles com interesses bastante especficos e fortemente integrados como os motoqueiros Harley Davidson (SCHOUTEN, MCALEXANDER, 1995) at outros mais genricos e dispersos, como executivos (ver, por exemplo, WICKLUND, GOLLWITZER, 1982, apud BELK, 1988).

O que os conceitos desenvolvidos at aqui reafirmam, em sntese, a importncia dos objetos para a formao e a manuteno da identidade do ser humano. To importante e interessante quanto a relao das pessoas com seus pertences a forma pela qual os objetos so adquiridos. Faz-se necessrio, assim, prover um breve apanhado terico relacionado ao ato de comprar.

34 4.1.4 O Ato de Fazer Compras: Caractersticas

Comprar, segundo O'Shaughnessy (1989), uma atividade motivada e direcionada pela crena de que suas conseqncias faro a vida de uma pessoa mais feliz. , igualmente, um ato que transcende o mero suprir de algumas necessidades, pois conforme Underhill valemo-nos das compras como terapia, passatempo, entretenimento, uma desculpa para sair de casa, para matar o tempo ou at mesmo para paquerar, encontrar pessoas (GRECCO, 2002). inevitvel que assim seja, pois os mercados shoppings, supermercados, ruas comerciais, etc. apresentam caractersticas marcadamente sociais, mais do que puramente econmicas, e funcionam como foco de reunio social (SLATER, 2002). Ademais, a diversidade de atrativos que um mercado oferece corrobora essa viso: exibio de bens, diverso, comodidades e atraes sociais, tudo em um espao s (SLATER, 2002). A profuso de apelos comerciais existentes em um shopping center, por exemplo, emblemtica quanto experincia de fazer compras pois, conforme Underhill, comprar pode ser definido como um ato de catarse, que mobiliza vrios de nossos sentidos. uma experincia sensorial, corporal, sensual. (GRECCO, 2002). Por esse motivo, para muitos consumidores o produto adquirido menos importante do que a experincia de compra em si (BENSON, 2000).

Comprar , tambm, um ritual. Olhar vitrines, examinar e testar produtos, comparar preos e caractersticas so atos que precedem a aquisio de um objeto ou que, s vezes, so realizados pelo puro prazer que proporcionam, sem a consumao da compra. Como afirma Campbell (2001, p. 134-135)

(...) ainda que as pessoas possam ir s compras de um lado para outro procura de mercadorias, no sentido de comparar preos e de tentar, desse modo, averiguar o que pode ser a melhor aquisio, elas tambm se entregam s compras sem, na verdade, adquirir absolutamente nada, embora, claro, extraindo prazer da experincia.

O motivo, Campbell explica, advm do

35(...) prazer proveniente do uso imaginativo dos objetos vistos, isto , de experimentar mentalmente as roupas examinadas, ou ver os mveis arrumados dentro de sua sala. (p. 135)

Assim, o processo de transferncia de significados e de interao simblica que caracteriza as relaes de consumo est presente no ato de comprar tambm. No por acaso os shoppings centers, espaos principais do consumo nas grandes cidades, desempenham um papel significativo na formao da identidade social das comunidades, inspirando relaes de cunho afetivo entre as pessoas e esse espao pblico (ARNOULD, 2000). Para Benson (2000, p. 502), comprar o modo pelo qual

(...) ns procuramos por ns mesmos e pelo nosso lugar no mundo. Embora conduzido a maior parte das vezes em espaos pblicos, comprar essencialmente uma experincia ntima e pessoal. Comprar experimentar, tocar, analisar, refletir (...). Comprar conscientemente no procurar somente externamente, como em uma loja, mas internamente, via memria e desejo. Comprar um processo interativo atravs do qual ns dialogamos no apenas com pessoas, lugares e coisas, mas tambm com uma parte de ns mesmos.

, portanto, uma atividade que vai al m do simples comprar ou possuir. Ou como define Benson (2000, p. 502), (...) is not about buying, its about being.

4.1.5 A Dimenso Moral do Consumo: Uma Breve Discusso

Embora sinttica, a exposio de conceitos desenvolvida ao longo dessa fundamentao terica permite que, intuitivamente, depreenda-se que sentimentos de identidade depositados em pertences possam ser extremamente altos (BELK, 2000). Imediata e inevitavelmente vem mente a imagem das conseqncias negativas atreladas ao apego excessivo a bens materiais, crtica recorrente ao marketing e ao capitalismo (BELK, 1985). A prpria posio de Twitchell, citado na

36 abertura deste trabalho, contestada justamente por representar uma defesa candente do consumo como elemento essencial e benfico da vida das pessoas (BLINDER, 2000; SEVCENKO, 2002).

O que se est evocando, em questionamentos dessa ordem, diz respeito principalmente ao materialismo excessivo e s suas conseqncias negativas, assim como s psicopatologias vinculadas ao consumo. Explorar esse ngulo do mundo do consumo no constitui o alvo principal do presente estudo, o que no impede que se faa uma rpida abordagem do tema, tangenciado por alguns dos autores citados ao longo deste trabalho.

Assim, registre-se que, segundo Belk (2000), os objetos podem suscitar tanto sentimentos de bem-estar quanto de vazio e vulnerabilidade. Embora existentes, patologias relacionadas ao consumo constituem excees regra do

comportamento de consumo usual (MCCRACKEN, 1988; BENSON, 2000). Estariam associadas, primeira vista, com disfunes de natureza emocional que so canalizadas para o consumo. Por certo a existncia de tais disfunes no se deva atribuir ao mundo do consumo, visto que outros comportamentos compulsivos tendem a acompanh -las (FABER, 2000). Porm, no prudente descartar sua contribuio para um eventual agravamento. Afinal, o mundo do consumo apresenta uma multiplicidade insistente de apelos e legitima a busca do bem-estar individual atravs de objetos, o que sugere um efeito catalisador sobre as disfunes mencionadas.

A reboque das questes relacionadas s patologias de consumo vem a discusso quanto ao impacto societal das atividades de consumo. Inserem-se aqui questes relacionadas a toda influncia que as aes de consumo podem exercer na sociedade de maneira geral. Meio-ambiente, bem-estar social e polticas pblicas so alguns dos elementos que fazem parte dessa abordagem macro da questo do consumo (BUCHHOLZ, 1998).

37 A dicotomia entre cidado e consumidor emblemtica dessa abordagem. O mundo do consumo, por vezes, oferece ao consumidor apelos que o cidado presumivelmente preocupado com as conseqncias dos seus atos desaprovaria, criando, ao menos aparentemente, um conflito. Todo ato de consumo tem uma repercusso social e, por isso, pode ser examinado do ponto de vista coletivo, e no somente individual.

Na contramo das idias de Twitchell, um entusiasta do consumo, h, por exemplo, o professor Robert Frank, um questionador da sociedade de consumo. Para ele, enquanto os norte -americanos gastam com produtos suprfluos, a infraestrutura pblica do pas se deteriora, exigindo uma reflexo sobre a melhor aplicao dos recursos individuais, em nome de uma sociedade melhor (Frank, 1999). Prope, como alternativa, o aumento de impostos dos produtos considerados suprfluos, e enfatiza que (...) mudar nossos padres atuais de consumo encerra uma dimenso moral tambm (p. 12).

Frank aborda um tpico ao qual outros autores tambm tm se dedicado: os perigos da insaciabilidade. Embora consideremos este um fato natural dos nossos dias, Borgmann recorda que essa naturalidade s ocorre em um ambiente de superabundncia (p. 421), pois um ambiente natural oferece limites ao apetite humano. Csikszentmihalyi (2000, p.270) refora: comprar e nos cercarmos de objetos uma maneira relativamente fcil de evitar o temor da no-existncia, mesmo que isso possa ter srias conseqncias em termos de aumento de entropia.

Quando se traz tona vises como essas, inelutvel que se promova uma leitura sobre o sistema econmico e ideolgico vigente. A ascenso da sociedade moderna fez-se com a companhia ou pelas mos da ideologia liberal, cuja marca a soberania do indivduo e, conseqentemente, do consumidor. Os interesses pessoais, em forma de desejos, escolhas ou crenas, so as fontes da legitimidade social e um direito irrevogvel e intransfervel do cidado. Sobre eles, no cabe julgamento moral (SLATER, 2002). O problema, aponta Slater (2002), que

38No importa se os indivduos esto expressando uma preferncia por herona, esmaltes de unha ou entradas para pera (...) (pois) (...) a forma que a riqueza material da sociedade moderna deve assumir ditada no por objetivos e critrios sociais sobre o que uma vi da boa (...) e sim pelas preferncias constitudas dos indivduos de modo privado, que (...) no podem ser julgadas. (...) A beleza do mercado deve-se ao fato de abster-se do juzo moral: tudo tem seu preo quando os indivduos expressam uma demanda. O liberalismo rigoroso faz dos indivduos as nicas autoridades sobre seus desejos (...). (p. 52)

Forosamente, em um contexto como esse, s o constrangimento coletivo do Estado vem julgar a exacerbao dos individualismos (BAUDRILLARD, 1981, p.96).

Portanto, fica ntido que, se a discusso do consumo demanda uma compreenso do ambiente scio-cultural em que toma forma, tambm imperiosa a anlise do sistema ideolgico que o alimenta. Como afirma Baudrillard (2002, p. 16) (...) a descrio do sistema de objetos no se d sem uma crtica ideologia prtica do sistema.

Encerrada esta exposio geral de conceitos e temas ligados ao consumo, passa-se agora a tratar de um de seus espaos mais especficos e fascinantes: os bens de luxo.

4.2 CONSUMO DE PRODUTOS DE LUXO

A fundamentao terica relativa ao consumo de produtos de luxo ser dividida em dois tpicos: o primeiro tratar da definio e da classificao dos objetos e servios rotulados como luxo. O segundo abordar as motivaes para a aquisio do luxo e algumas consideraes sobre o pblico consumidor desses bens.

39 4.2.1 Definio e Classificao dos Produtos de Luxo

relativamente fcil arrolar produtos e servios que, na nossa percepo, fazem parte do universo do luxo. Para fins de uma investigao acadmica, entretanto, convm formalizar uma listagem mais precisa daquilo que est enquadrado como produto de luxo, esclarecendo, desde logo, a que conjunto de objetos est-se a fazer referncia. Para tanto, trs fontes principais de informao so utilizadas: o trabalho da professora francesa Danielle Allrs (1999, 2000), especializada em estudos sobre o universo do luxo; a proposio de Castarde (1992); e a anlise setorial da consultoria McKinsey & Co., publicada em 1991 (e referida pela THE ECONOMIST, 1992). O cruzamento das listagens dessas trs fontes e a adio de um item4 - indica que se pode incluir no universo do luxo as seguintes categorias:

Mercado cultural Objetos de arte Meios de transporte Automveis, iates, avies particulares Imveis Manses, apartamentos, propriedades territoriais (ilhas, fazendas, etc.) Produtos de uso pessoal Vesturio e acessrios (alta costura, prt-porter); Bagageria; Calados; Cosmticos e perfumaria; Relgios; Artigos de escrita; Joalheria e bijuteria

Objetos de decorao e equipamentos domsticos em geral Cristais; Porcelanas; Artigos de prata; Antiguidades; Faiana Alimentos Bebidas (especialmente vinhos e champanhes) e especiarias Servios Hotis, restaurantes, spas, vos de primeira classe, etc. Lazer Colees, esportes (plo, equitao), turismo (cruzeiros etc.).

4

A categoria includa pelo autor foi a de imveis, a partir da consulta a material publicado na imprensa e na literatura (LYNCH, 1992; BARTH, 1996; TOWNE, 1998; TEICH, 1999; CRTES, 1999; MOHERDAUI, 2000; SABOIA, 2001; PINHEIRO, 2001; CAPARRS, 2002).

40 primeira vista, pode causar certa estranheza que numa mesma listagem sejam rotulados como luxo produtos to dspares como carros e bijuterias. O motivo dessa aparente incongruncia reside no fato de que, em todas as categorias mencionadas, h oportunidade de diferenciao e de sofisticao da oferta, vislumbrando um segmento de consumidores especfico. Existem, assim, carros comuns e carros de luxo Ferrari, Jaguar, Rolls Royce; bijuterias comuns e bijuterias de luxo; e vinhos regulares e vinhos de luxo, por exemplo. Nenhuma destas categorias , por excelncia, o espao do luxo, mas alguns de seus representantes so, inegavelmente, expresses evidentes desse universo. Em todos eles, novamente, estar-se-ia a considerar marcas e produtos destinados a um determinado nicho de mercado e francamente identificados como superiores aos bens convencionais.

H que, no entanto, diferenciar os objetos de luxo daqueles considerados como premium ou top de linha de marcas convencionais. Estes produtos so verses incrementadas ou sofisticadas de objetos comuns. Produtos de luxo, por sua vez, so em geral produzidos por empresas que operam exclusivamente nesse mercado e cuja marca facilmente associada ao conceito. Assim, uma definio de produtos de luxo como a de Kapferer (1997) segundo a qual so objetos cuja relao preo/qualidade a mais elevada do mercado, conseguindo justificar, ao longo do tempo, preos significativamente maiores do que de produtos funcionalmente equivalentes apenas parcialmente vlida. ela, convm adicionar uma mais completa, extrada de Lombard (1989) e complementada por Dubois e Paternault (1997) 5. Assim, conforme Lombard (1989), produtos de luxo so aqueles

dotados de qualidade superior, devido excepcionalidade de sua matriaprima, de seu processo de fabricao (muitas vezes artesanal) ou da tecnologia empregada;

5

Listagem dos itens principais conforme Lombard (1989); caractersticas complementares de cada um deles extradas de Dubois e Paternault (1997)

41 caros, em termos absolutos e comparativos, especialmente frente queles produtos que apresentam utilidade semelhante; raros, ou seja, distribudos de maneira seletiva ou exclusiva; esteticamente bem elaborados, sendo donos de uma aparncia particular, o que conduz a um consumo emocional e hednico; dotados de uma marca famosa, de imagem reconhecida em vrios lugares do mundo; adquiridos por uma clientela especial, devido a uma capacidade de apreciao do produto ou apenas do poder aquisitivo elevado; esnobes, por valerem-se da atrao de pequenos grupos de formadores de opinio para difuso do produto e, tambm, por demandarem uma capacidade de apreciao do produto, no sentido artstico e sensorial (KAPFERER, 1997).

Pode-se afirmar que a combinao desses elementos que confere o carter de luxo a um produto; todas essas caractersticas, afinal, contribuem para criar o imaginrio e o glamour que circundam o objeto, algo fundamental para a manuteno de sua imagem (BECHTOLD, 1991).

Reunidos, esses atributos todos podem ser sintetizados em quatro categorias fundamentais (ALLRS, 1999), chamadas aqui de dimenses. Desse modo, os produtos de luxo apresentam quatro dimenses fundamentais (representadas graficamente na Figura 2): funcional, que se refere utilidade propriamente; cultural, representada pela histria do produto ou de seu criador; simblica, vinculada ao hedonismo e ao narcisismo do consumo do objeto; e

42 social, evidenciada atravs dos desejos de distino e imitao despertados.

Dimenso Funcional Produto de Luxo Dimenso Cultural

Dimenso Simblica

Dimenso Social

Figura 2 Dimenses dos produtos de luxoFonte: Allrs (1999)

De posse desses conceitos que ajudam a caracterizar os produtos de luxo e a entender o contexto que os cerca est-se apto a dar o passo seguinte: o da classificao dos bens de luxo. H nuances que diferenciam um objeto de luxo de outro, levando-nos a entender que nem todo luxo igual.

Existe, assim, o luxo inacessvel formado, entre outros, pela alta joalheria, obras de arte, alta costura, veculos e imveis , que tem um carter patrimonial, podendo ser transmitido ao longo de geraes de uma mesma famlia. H o luxo intermedirio, constitudo de objetos fabricados em poucas quantidades, como peles, prt-a-porter, acessrios e artigos de escrita. Nesta faixa encontra-se a maior parte dos produtos responsveis pelo crescimento do mercado de luxo no Brasil: bolsas Louis Vuitton, canetas Montblanc, trajes Armani. Por fim, h o luxo acessvel perfumes, produtos alimentcios, bebidas que atende s demandas hednicas do indivduo, sendo voltado essencialmente qualidade e ao bem-estar (CASTARDE, 1992; ALLRS, 2000).

43 Pela descrio, intuitivamente depreende-se que h um vnculo entre as categorias de produtos de luxo e sua utilizao pelos diferentes estratos sociais (conforme o Quadro 1).

Classe social

6

Motivaes

Estilo de vida

Modelos de consumo

Categorias de luxo

Distino absoluta; Objetos fuga para frente Conservao dos tradicionais raros (estabelecimento privilgios; e caros, alm de Classe abastada contnuo de padres distino de usos objetos novos e mais elevados de e escolhas. originais. consumo). Distino relativa; Certos objetos tentativa de reduzir Classe Imitao da tradicionais; as distncias sociais intermediria classe abastada. objetos de srie em relao classe limitada. abastada. Mimetismo de escolhas e de usos; acesso a um Vinculao a uma Classe mdia Objetos em srie. classe; distino. patrimnio cultural (representado pelas marcas famosas). Quadro 1 Classes sociais, estilos de vida e categorias de produtos de luxo Fonte: adaptado de Allrs (1999 e 2000)

Luxo inacessvel.

Luxo intermedirio.

Luxo acessvel.

leitura da hierarquizao dos produtos de luxo, cabe agregar o relato de uma tendncia interessante que tem marcado este mercado. A partir do incio dos anos 90, as grandes marcas vislumbraram em trs frentes de ao a possibilidade de expanso de seus negcios (THE ECONOMIST, 1992): a internacionalizao da sua atuao (com o conseqente desembarque das grandes grifes em mercados emergentes como a sia e o Brasil); a diversificao da oferta (operacionalizada pelas extenses de linha e de marca, alm dos licenciamentos); e a conseqente democratizao dos seus produtos.

6

Os termos utilizados para designar as classes sociais so oriundos dos trabalhos de Allrs publicados no Brasil (1999 e 2000), traduzidos diretamente do francs. Infelizmente, atravs dos termos empregados torna-se difcil fazer uma associao direta com a realidade brasileira; no se pode afirmar, por exemplo, se a designada classe intermediria seria um equivalente chamada classe mdia alta brasileira ou se essa seria mais bem definida pelo termo classe mdia simplesmente.

44 Interessante observar que a diversificao e a democratizao do luxo podem ser apontadas, junto com a flexibilizao das formas de pagamento, como responsveis pelo crescimento e pela atratividade do mercado brasileiro. No plano internacional, foram tambm estas duas caractersticas as responsveis por uma mudana no perfil dos consumidores de luxo: antes divididos entre consumidores e no-consumidores desses produtos, so agora escalonados em consumidores regulares, consumidores eventuais e no-consumidores (DUBOIS, LAURENT, 1995). O binmio diversificao/democratizao permite que consumidores sem recursos para adquirir um produto da linha principal de uma grife de luxo comprem itens que podem ser caros em comparao a similares de marcas inferiores, mas no em termos absolutos (TWITCHELL, 2002). Os perfumes so o exemplo principal dessa tendncia, e hoje representam, para muitas grifes, boa parcela de seu faturamento (AGINS, 1999).

Entretanto, cabe um alerta: luxo democrtico no sinnimo de luxo emergente, formado por produtos comuns subitamente incrementados. Ao luxo no se oferece a mobilidade permitida s pessoas, que podem ascender socialmente; o luxo, para ser luxo, deve nascer luxo (RICHERS, 1996). Por essa razo, elementos como antiguidade e tradio da marca, assim como origem geogrfica e genealgica (referente ao prestgio do criador) so eternamente essenciais nesse universo (CASTARDE, 1992).

O advento da democratizao do luxo, igualmente, no representa uma mudana na lgica preponderante no setor, que subverte o marketing convencional. Ao contrrio da viso de que a empresa deve adaptar-se aos desejos e necessidades dos consumidores (WEBSTER, 2002), no mundo do luxo o processo inverso: as grandes grifes forjam os desejos de sua clientela (AQUINO, 2002). Prepondera uma espcie de marketing de oferta sobre o de demanda (BARTH, 1996, p.68), ancorado na criatividade e na inventividade dos criadores e desprovido de um suporte maior no que concerne captao da opinio do consumidor (WETLAUFER, 2001).

45 De qualquer sorte, as empresas no esto alheias ao ambiente que as rodeia e, em especial, aos consumidores. Todas trabalham com um conjunto mnimo de informaes que lhes permite acertar no lanamento de produtos e manter uma imagem de marca positiva. Essas informaes dizem respeito principalmente s motivaes essenciais para a compra do luxo e ao perfil de cliente pretendido pela grife, ambos abordados no tpico a seguir.

4.2.2 Luxo: Motivaes e Pblico Consumidor

Por ser o consumo dos bens de maior excelncia prova de riqueza, ele se torna honorfico; reciprocamente, a incapacidade de consumir na devida quantidade e qualidade se torna uma marca de inferioridade e de demrito (VEBLEN, 1965, p. 79) Como falar de suprfluo a esse respeito, quando se trata do essencial, de um complemento da alma, sem o qual as coisas da vida pareceriam to insignificantes? (JACQUES MOUCLIER, 2000, p. 12)

Sem dvida, so um tanto distantes as perspectivas de Veblen e Mouclier a respeito dos produtos de luxo, at mesmo pelo espao temporal que as separa: A Teoria da Classe Ociosa foi originalmente publicado em 1899, enquanto a frase de Mouclier data do final do sculo 20. As biografias so igualmente bem distantes: o filsofo Thorstein Veblen o criador do conceito de consumo conspcuo, ilustrado no incio dessa seo o consumo cujo objetivo no estaria em desfrutar da qualidade dos objetos e sim em exibi-los como um sinal de distino (VEBLEN, 1965). Jacques Mouclier, por sua vez, preside uma associao de produtores de bens de luxo com sede na Frana. Independentemente da origem e da formao dos autores, e da centena de anos que os distancia, as duas vises abrem esta seo porque fornecem uma sntese do que o luxo representa, segundo a literatura: status e prazer.

Status porque, de fato, os produtos de luxo servem a uma busca de distino e reconhecimento social (STREHLAU, ARANHA, 2002), contribuindo para

46 reforar e elevar o conceito de um indivduo junto aos seus pares (NIA, ZAICHKOWSKY, 2000). Para os estratos superiores ou a classe ociosa, como preferia Veblen esses produtos funcionam como instrumentos de diferenciao de outras classes atravs de avanos contnuos no consumo; uma vez que seus padres so alcanados pelo grupo imediatamente inferior, o luxo usado para alargar novamente o espao que os separam (ALLRS, 2000). Desse modo, constituem-se instrumentos de hierarquia social (ALLRS 2000, p.74), gerando por vezes uma satisfao oriunda somente da reao causada pela exibio de poder pecunirio (MASON, 1983).

Plausvel, porm incompleta, a viso de Veblen no alcanou algumas das possibilidades que os estudos em comportamento do consumidor e de antropologia do consumo atingiriam mais tarde. No vislumbrou, por exemplo, o carter hednico e autoexpressivo que o consumo de objetos de luxo poderia oferecer. Aqui entra a frase de Mouclier, representativa daquilo que poderia ser batizado de luxo como prazer. O consumo desses bens apresenta tambm um carter hednico, funcionando como uma forma de autogratificao. Quando o prazer a motivao para o consumo de luxo, prevalece o self independente do consumidor, aquele menos amarrado s convenes sociais e s preocupaes com a observao externa, enquanto no consumo exibicionista o self interdependente seria o condutor das decises de compra (para uma discusso a respeito, ver Wong e Ahuvia, 1998).

A despeito das diferenas, pode-se afirmar que Veblen e Mouclier detm parte da razo, e quem confere o veredicto a prpria academia. A maior evidncia est no trabalho de Dubois e Duquesne (1993), que identificou duas formas principais de acesso aos produtos de luxo: a primeira, mais prxima teoria do consumo conspcuo, em que a ostentao a motivao principal para a aquisio e onde aspectos tangveis como preo, design e qualidade so fundamentais. A segunda, mais apegada a teorias recentes de comportamento do consumidor, vislumbra na compra e utilizao de objetos de luxo uma possibilidade de extenso do self e expresso de valores individuais ou do grupo, enfatizando seu carter simblico.

47 Ou seja: antes de inconciliveis, as vises de Veblen e Mouclier so complementares.

Se inexiste uma nica motivao para o consumo do luxo, razovel supor que inexista um pblico consumidor uniforme para esses produtos. A RISC International, consultoria europia que anualmente estuda os principais mercados do luxo no mundo, identificou algumas mudanas nesse universo entre as dcadas de 80, 90 e 2000. Segundo a empresa, nos anos 80, marcados pela ascenso dos yuppies (DAWSON, CAVELL, 1987; SILVEIRA, 2002), teriam prevalecido o hedonismo e a ostentao, em uma verdadeira competio de status. A dcada de 90, por sua vez, teria sido marcada por uma postura de menos ostentao e mais responsabilidade e tica. O luxo teria servido no exibio, e sim arte de viver (RISC, 2001, p. 4), saindo da esfera da emulao social para a da exclusiva satisfao pessoal do consumidor (DUBOIS, LAURENT, 1996). Os anos 2000 teriam iniciado, por fim, uma poca de otimismo, prazer e audcia, com os produtos de luxo servindo a uma erotizao da vida cotidiana (RISC, 2001, p. 4).

O leitor mais atento dever ter percebido que a anlise da RISC contraria, de alguma forma, algo que foi mencionado no item das Justificativas deste trabalho. Ali, citavam-se o crescimento do consumo de luxo nos EUA, Europa e Brasil no final da dcada de 90, sugerindo um cenrio contrrio quele referido pela consultoria como de menos exibicionismo e mais responsabilidade.

O que essa aparente discrepncia indica?

Ora, convm lembrar que a febre do luxo, nos anos 90, foi originada por um surto de crescimento econmico que criou uma nova classe de pessoas ricas, especialmente nos EUA. Da poder-se-ia especular que, a exemplo da dcada de 80, a ostentao e o exibicionismo tenham sido proporcionados pelo novo dinheiro, e no pelos ricos tradicionais, geralmente mais comedidos. As pessoas realmente ricas fogem ostentao, lembra Richers (1996, p. 127), ao que Allrs (2000, p.100) complementa, falando das sociedades dos sculos 18, 19 e 20:

48Duas classes sociais se enfrentam atravs de seus cdigos distintivos de reconhecimento social: aquela que, pelo nascimento e pela histria, persiste em guardar a distncia, em conservar seus privilgios e marcar sua diferena pelo recurso a usos inacessveis, e a outra, que tenta permanentemente esquecer as origens trabalhadoras, sonha em pertencer classe dominante, copia seus usos e compensa a vacuidade de sua histria com um frenesi de aquisies seletivas, com o fim de a pagar o fosso entre essas duas classes. (...) Sem histria, sem referncias sociais particulares, uma grande parcela dessa nova classe da burguesia recuperar suas diferenas atravs de uma avidez consumidora sem precedentes.

No surpreende ento que os anos 90 (ou qualquer outra poca fora do alcance dessa anlise) tenham sido marcados por posturas contraditrias quanto ao luxo, pois inexiste um perfil nico de consumidores desses produtos. Como bem coloca Barth (1996), o mundo dos consumidores dos produtos e servios de luxo no constituem (sic) uma massa uniforme, existindo uma segmentao que no somente determinada por estratificaes de poder econmico de compra (p.10), mas tambm por elementos culturais. Kapferer (1998), por exemplo, verificou a existncia de quatro perfis distintos de jovens consumidores na sua relao com o luxo, cada qual valorizando um conjunto de atributos nos produtos. A cada grupo de consumidores correspondiam marcas prototpicas, capazes de sintetizar as caractersticas preferidas por cada um deles.

Por isso, comprar um objeto de luxo comprar o ingresso a um clube (CASTARDE, 1992), seja ele qual for: o dos tradicionais, o dos novos-ricos, o dos yuppies, o dos fashion, etc. Na Louis Vuitton, por exemplo, so quatro os perfis de clientes: os que adquirem os produtos pela tradio, os que se preocupam essencialmente com a funcionalidade, os caadores de status e os lanadores de moda (GES, 1999, p. 64). Ou seja: uma mesma marca de luxo serve a quatro objetivos distintos de manipulao da cultura material.

Da poder-se dizer que o luxo serve a propsitos diferentes de um pblico relativamente heterogneo. A diversidade na oferta do luxo nada mais do que reflexo da diversidade da sociedade (DOUGLAS, ISHERWOOD, 1996), reafirmando, mais uma vez, que cultura e consumo esto sempre interligados.

5 MTODO

O mtodo de pesquisa , essencialmente, uma conseqncia dos pressupostos adotados pelo pesquisador quanto natureza dos fenmenos sociais e prpria forma como o conhecimento construdo. Esses pressupostos chamados de paradigmas (MERTENS, 1988, apud MILLIKEN, 2001)

compreendem uma srie de opes metodolgicas alinhadas com os princpios defendidos.

Em Marketing e nas cincias sociais em geral, os paradigmas de pesquisa so dois: positivista e interpretativista (tambm chamado de paradigma

naturalstico). O primeiro deriva de uma viso nica e objetiva da realidade, enxergando nos fenmenos sociais tendncias racionais e regulares de

manifestao, compostas de um conjunto observvel de fatores e dotadas de previsibilidade e causalidade (BURRELL, MORGAN, 1982; LINCOLN, GUBA, 1985). O positivismo acredita que a gerao de conhecimento ocorre medida que se repetem relatos conclusivos acerca de determinado fenmeno, eliminando eventuais ambigidades e vises conflitantes. O interpretativismo, ao contrrio, cr que os fenmenos sociais provm de uma construo cultural mltipla e complexa, derivada das interaes entre os indivduos (BURRELL, MORGAN, 1982; LINCOLN, GUBA, 1985). O conhecimento construdo justamente a partir da combinao de diferentes perspectivas sobre um mesmo tema, sem haver necessariamente concordncia entre elas. Para o interpretativismo no h possibilidade de estabelecer leis gerais ou alcanar previsibilidade atravs da pesquisa, dada a singularidade e complexidade dos fenmenos sociais, e sim, somente, descrev -los e interpret-los.

50

Revendo os conceitos relacionados aos estudos de antropologia do consumo expostos na Introduo e na Fundamentao Terica no qual enfatizase o interesse na dimenso simblica e nos significados scio-culturais da relao das pessoas com os objetos -, depreende-se que trabalhos com estas pretenses adotam uma viso predominantemente interpretativista dos fenmenos relacionados ao Marketing e ao consumo de maneira geral. No buscam, pois, alcanar a previsibilidade, nem sequer indicar relaes causais ou restringir o leque de explicaes e interpretaes; ao contrrio, buscam a diversidade de anlises e entendimentos sobre um mesmo fenmeno, de maneira a oferecer diferentes vises do tema investigado. A presente dissertao, portanto, filia-se ao paradigma interpretativista.

Do ponto de vista terico, as decorrncias metodolgicas da filiao a um paradigma so relativamente claras. Mtodos so desenvolvidos de acordo com determinados pressupostos quanto realidade e gerao de conhecimento; compartilham, portanto, de um conjunto de crenas e premissas e diferem na nfase a aspectos especficos, sejam eles de carter tcnico ou meramente operacional. No positivismo, emergem como mtodos 7 de pesquisa a psicologia cognitivista, o estruturalismo e o comportamentalismo, por exemplo (MURRAY, OZANNE, 1991), todos alinhados com a tentativa de oferecer uma perspectiva objetiva e tangvel da realidade. No interpretativismo, destacam-se a fenomenologia, a etnografia, a hermenutica e a semitica (MURRAY, OZANNE, 1991), todos observantes dos preceitos de pluralidade e subjetividade do paradigma em questo.

Contudo, a despeito da aparente facilidade em arrolar os mtodos principais de cada paradigma, no momento em que a escolha metodolgica se impe as fronteiras entre os procedimentos de investigao tornam-se um pouco mais nebulosas. A constante evoluo do pensamento epistemolgico e das prprias cincias sociais leva inevitvel combinao de mtodos e tcnicas, de modo que7

Est-se chamando de mtodo o que alguns autores chamam de estratgia de pesquisa (caso de Denzin e Lincoln, 2000). Mais adiante, utilizar-s e- o termo tcnica de coleta de dados quantitativa ou qualitativa para referir procedimentos que Denzin e Lincoln (2000) nomeiam mtodo de pes