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AUREA SATOMI FUZIWARA
CONTRIBUIÇÃO DO ASSISTENTE SOCIAL PARA A
JUSTIÇA NA ÁREA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE: O
LAUDO SOCIAL E A APLICAÇÃO DA LEI -
ENCONTROS E DESENCONTROS
Mestrado em Serviço Social
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA –PUC/SP
SÃO PAULO – 2006
AUREA SATOMI FUZIWARA
CONTRIBUIÇÃO DO ASSISTENTE SOCIAL PARA A
JUSTIÇA NA ÁREA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE: O
LAUDO SOCIAL E A APLICAÇÃO DA LEI - ENCONTROS
E DESENCONTROS
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção de título de Mestre em Serviço Social sob a orientação da Profª Drª Myrian Veras Baptista.
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA –PUC/SP
SÃO PAULO - 2006
“A criança é o princípio sem fim, o fim da criança é o princípio do fim.
Quando uma sociedade deixa matar as crianças
é porque começou seu suicídio como sociedade.
Quando não as ama é porque
deixou de se reconhecer como humanidade.
Afinal, a criança é o que fui em mim e em meus filhos,
enquanto eu e humanidade.
Ela como princípio é promessa de tudo.
É minha obra livre de mim.
Se não vejo na criança uma criança,
é porque alguém a violentou antes
e o que vejo é o que sobrou de tudo o que lhe foi tirado.
Mas essa que vejo na rua sem pai, sem mãe, sem casa, cama e comida;
essa que vive a solidão das noites sem gente por perto,
é um grito, é um espanto. (...)
Diante dela, o mundo deveria parar para começar um novo encontro,
porque a criança é o princípio sem fim e o seu fim é o fim de todos nós.”
Herbert de Souza (Betinho)
AGRADECIMENTOS
Para chegar a estas páginas recebi muitas e diferentes contribuições.
Agradeço primeiramente aos meus pais, por expressarem o valor da eqüidade e da
liberdade. Ao meu irmão e minha irmã, meus amigos.
A militância me trouxe grandes amigos, inspiradores e onde tenho pouso seguro, em
quaisquer circunstâncias. Agradeço aos amigos de sempre: Kátia Cilene Barbosa, Mauricio
T. Bispo de Menezes, Andréia Mösken, Joel do Nascimento, Sandro Pereira, Maria Rita
Rodrigues. Pelos grandes debates e pelas simples coisas boas da vida: Mauricléia,
Giva(nildo), Edson Cabral, (Auxilia)Dora, Tânia, Andréia Torres, Renato de Paula, Roseli de
Albuquerque, Marlene Merisse, Renata M. de Souza, Célia de Souza, Julina Alves e Sr
Orlando Boico. Amiga Maria Suzete Caselatto, por nossas conversas, por me ajudar a rever
idéias e tê-las com mais clareza, como fez ao revisar este trabalho.
Francisca Rodrigues de Oliveira Pini e João Clemente de Souza Neto, amigos que
encontrei em caminhos diferentes, mas com um horizonte em comum, meu agradecimento
especial por terem me incentivado para que eu voltasse à academia. Defensores de novas
praticas pedagógicas, me ensinaram muito com sua generosidade e crítica corajosa. À
Terezinha Rodrigues, que trilhando o debate sobre a ética profissional, me incentivou a
perseguí-lo também no espaço acadêmico.
Agradecimento especial a Eunice Teresinha Fávero e Maria Liduína de Oliveira
Silva, pela importância de suas contribuições na banca de qualificação e em outros espaços.
Também um agradecimento ao Dr Edson Sêda, que, como elas, contribuiu decisivamente
para o delineamento da pesquisa.
Ao Edu, pela serenidade e companheirismo, pelo bom humor, e por tudo que
significa a nossa trajetória.
Aos companheiros – diretores, base e funcionários - da gestão do CRESS SP/ 2002-
2005, o agradecimento pela confiança em tantos momentos difíceis, pelas reuniões
madrugadas a dentro, tensões e conquistas que pudemos compartilhar
Aos companheiros persistentes do Fórum Estadual de Defesa dos Direitos da
Criança e do Adolescente. Às colegas de trabalho que sabem muito do que trago nas linhas
destas reflexões.Aos docentes e discentes da Faculdade Mauá, por terem contribuído com
meu crescimento pessoal e profissional. Ao Grupo AmpliAçõeSS, que já faz parte da história
do Serviço Social em São Paulo, por tudo que vivemos juntos.
Agradeço a todos os professores da PUC-SP, particularmente àqueles com os quais
pude realizar as atividades acadêmicas, pela atenção e a seriedade dispensadas em todas
as ocasiões. No ensejo, ressalto a necessidade de investimento na pesquisa, registrando
meus agradecimentos à CAPES pela bolsa financiada. À Carmem e à Kátia, pela atenção e
preocupação em momentos importantes.
A todos aqueles que direta e indiretamente contribuíram para esta pesquisa.
Muitas reflexões somente foram possíveis por ter vivenciado importantes situações,
no “miúdo do cotidiano”, onde os usuários expressam sincera – ou desesperada - confiança
no trabalho que podemos realizar. Agradeço aqui as(os) usuárias(os), que massacrada por
inúmeras expressões da violência, é a denúncia da necessidade de construir outro mundo.
Em especial, agradeço a Dra Myrian Veras Baptista, pela riqueza, generosidade,
rigor científico e coerência ético-política das suas orientações. Certamente, estes momentos
têm um valor ímpar, que penso ser compreensível apenas para quem tem a oportunidade de
vivenciá-los. Myrian nos mostra que o conhecimento só faz sentido quando compartilhado e
quando direcionado para a superação da barbárie.
BANCA EXAMINADORA
Profª Drª Myrian Veras Baptista
Profª Drª Eunice Teresinha Fávero
Profª Drª Maria Lúcia Martinelli
INTRODUÇÃO.................................................................................................... 01 Capitulo I Serviço Social e Justiça ................................................................................... 09 1. Histórico do Serviço Social no Judiciário ........................................................ 09 1.1. O Serviço Social e os espaços sócio-ocupacionais: o campo sócio-jurídico. 34 1.2.Processos de trabalho do assistente social no Judiciário ............................ 49 1.2.1.Dimensão técnico-operativa do Serviço Social .......................................... 54 1.2.1.1. Procedimentos metodológicos: estudo social e perícia social................ 58 1.2.1.2. Formas de REgistro................................................................................ 60 .. CAPÍTULO II Relações Sociais e Justiça .............................................................................. 63 2.Relações sociais e Ciência do Direito................................................................ 63 2.1.Transformações sociais e judiciário................................................................ 73 2.2. Direitos sociais e Justiça............................................................................... 79 2.3.Infância e Adolescência: caso de Polícia ou de política? .............................. 86 2.3.1. Política Social, Justiça e a infância vulnerabilizada: assistir para prevenir................................................................................................................ 88 2.3.2. O bem-estar do menor............................................................................... 92 2.3.3. A Era do ECA............................................................................................. 95 2.3.4. Enfrentar a questão social e pensar as próximas gerações...................... 103 . CAPITULO III Exercício Profissional e construção do conhecimento................................. 111 3.1 Ciência e expressões ideológicas ................................................................ 114 3.1.1.Metodologia e ideologia ............................................................................ 120 3.1.2.Linguagem e ideologia ............................................................................. 126 3.1.3. Reflexões sobre Ética ............................................................................. 145 3.2. Jurisprudência e Serviço Social ................................................................ 150 3.3. Construção da pesquisa .......................................................................... 154
sobre a instituição ..................................................................................... 155 sobre os atores envolvidos no judiciário ................................................... 158 sobre os termos do campo sócio-jurídico, utilizados na pesquisa ............ 159 3.3.1 Aproximações ao objeto ..................................................................... 163 3.3.2. Casos selecionados ........................................................................... 178 Caso A .............................................................................................. 183 Caso B ............................................................................................... 191 Caso C ............................................................................................... 205
CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................. 223 Bibliografia ......................................................................................................... 252
SIGLAS AASPTJSP – Associação dos Assistentes Sociais e Psicólogos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo ABEPSS – Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social CAPES – Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CFESS – Conselho Federal de Serviço Social CRESS SP – Conselho Regional de Serviço Social – 9ª Região –SP ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente LOAS – Lei Orgânica da Assistência Social LDB- Lei de Diretrizes e Bases da Educação SUS – Sistema Único de Saúde FEBEM – Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor FUNABEM – Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor TJSP – Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo MP – Ministério Público UNICEF – Fundo das Nações Unidas para a Infância
RESUMO
A partir do conhecimento acumulado sobre a atuação do assistente social
junto ao Poder Judiciário, a pesquisa buscou levantar a contribuição deste
profissional nos casos relacionados ao direito da criança e do adolescente. Frente às
expressões da questão social contemporânea, também refletiu sobre o papel da
ciência na contemporaneidade, abordando as expressões ideológicas e suas
implicações nas metodologias adotadas. As reflexões sobre instrumentalidade,
teleologia e ética profissional foram inerentes ao percurso da pesquisa. Há,
inclusive, um horizonte ideopolítico que orienta este pesquisar. Esse conjunto de
elementos se mostra nas linhas de sustentam esta análise.
Para a pesquisa de campo, elegeram-se casos jurisprudenciais, em que se
expressam conflitos conformados num processo judicial. Do conjunto de casos
julgados em dez anos (1991 a 2001) extraiu-se uma amostra intencional, com casos
significativos. Numa reavaliação, oito casos foram estudados integralmente e três
casos apresentados em detalhes, por sua complexidade e sua relevância para o
estudo.
Afirma-se que os operadores do Direito reconhecem a importância do trabalho
do assistente social para subsidiar sua atuação, e a pesquisa, então, levantou os
elementos que foram utilizados com esse fim. Pautado num olhar crítico-propositivo,
identificou algumas fragilidades. Assim, o estudo evidencia algumas pistas para um
exercício profissional que contribua não apenas para a aplicação das leis, mas,
principalmente, para que as decisões sejam as mais benéficas para a efetivação de
direitos e da justiça social.
PALAVRAS CHAVES: Serviço Social, Judiciário, instrumentalidade, projeto
ético-político-profissional, ECA.
ABSTRACT
From the gathered information concerning the social worker performance
related to the Judicial Power, the goal of this research is to bring up the joint action of
this professional in cases related to child and adolescent rights. Viewing the
expressions of contemporary social issues, there is also a reflection on the science
role now, approaching ideological expressions and its implications in the adopted
methodologies. The reflections on instrumentality, teleology and professional ethics
were inherent to the research sequence. In addition, this research is guided by an
ideopolitical horizon. This set of elements appears in the lines, which support this
analysis.
In relation to the field research, jurisprudential cases were elected, in which
conformed conflicts are expressed in a civil action. Among the cases judged in ten
years (1991 to 2001), an intentional sample with significant cases was extracted.
Eight cases were wholly studied and three cases presented in detail due to their
complexity and for the study relevance.
It is affirmed that law professionals acknowledge the importance of the social worker
performance because it supplies them with data to support their performance, so the
research brought up the elements used in this way. Also, oriented through a critical-
propositive prospective, it identified some fragilities. Therefore, the study makes
evident some clues for a professional exercise that contributes for not only law
enforcement, but also mainly for decisions which are the most beneficial in order to
bring into effect social justice and rights.
KEY WORDS: Social Work, Judiciary, instrumentality, ethical-political-professional
project, ECA – Childhood and Adolescence Statute.
AUREA SATOMI FUZIWARA
CONTRIBUIÇÃO DO ASSISTENTE SOCIAL PARA A
JUSTIÇA NA ÁREA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE: O
LAUDO SOCIAL E A APLICAÇÃO DA LEI - ENCONTROS
E DESENCONTROS
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção de título de Mestre em Serviço Social sob a orientação da Profª Drª Myrian Veras Baptista.
Mestrado em Serviço Social
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA –PUC/SP
SÃO PAULO – 2006
1
INTRODUÇÃO
A atuação dos assistentes sociais nas Varas da Infância e Juventude iniciou-
se em 1948, portanto, há mais de meio século. Assim, atualmente são, conforme
dados do Departamento de Pessoal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo,
em 2004, 699 assistentes sociais e 313 psicólogos, distribuídos em Foros da capital
e do interior do Estado de São Paulo, atendendo a população especialmente nas
Varas da Infância e Juventude, além das Varas Cíveis e eventualmente em ações
decorrentes de processo-crime envolvendo crianças e adolescentes vitimizados. Os
profissionais do Serviço Social e da Psicologia realizam perícias para subsidiar as
decisões judiciais e fundamentam seus pareceres nas várias áreas das ciências e
nas Leis. Diante da diversidade das situações atendidas, do volume do trabalho e
das divergências teóricas, há pareceres também diversos e por vezes contraditórios
no seu conjunto.
Os múltiplos olhares técnicos e, conseqüentemente, os laudos emitidos,
considerando que estes subsidiam as decisões que muitas vezes alteram a vida das
pessoas atendidas na esfera do judiciário, trazem questões relevantes: o que
desvelam os laudos técnicos do assistente social sobre as expressões da questão
social? Que direção social o profissional imprime ao seu fazer profissional? Quais
são os procedimentos e os elementos apresentados para subsidiar um julgamento?
E quais suas influências na aplicação das Leis? Há influência na jurisprudência?
2
As reflexões consideram ainda as recentes conquistas legais, como a
Constituição Federal de 1988, com o princípio da participação social e o Estatuto da
Criança e do Adolescente – ECA, que traz o paradigma da proteção integral. Face a
este novo texto legal, fundamentado em novas concepções, e à exigência das
mudanças sociopolíticas, torna-se essencial o reordenamento das diversas
instituições e das suas práticas e, assim, também, do Poder Judiciário.
A literatura científica tem buscado compreender vários fenômenos
relacionados à violência, à criminalidade, aos Direitos Humanos e à Justiça.
Especificamente, o Serviço Social vem pesquisando vários aspectos da intervenção
profissional, procurando suas implicações ético-políticas e metodológicas. Nesta
temática, há muitos estudos sobre a efetivação do Estatuto da Criança e do
Adolescente e da implantação das políticas de atendimento, com muita atenção às
políticas sociais e às medidas de internação e abrigamento da população infanto-
juvenil. Esta reflexão sobre a defesa das políticas públicas parece consensual na
categoria, bem como de outras profissões e pesquisadores. Embora o Estatuto da
Criança e do Adolescente, que regulamentou o artigo 227 da Constituição Federal
de 1988, trate dos deveres da família, da sociedade e do Estado, a exigência do
cumprimento destes parece recair muito mais sobre a família. Assim, é fundamental
refletir os fatores que influenciam a pertinácia dessa tendência que confronta com os
princípios dos marcos legais mencionados.
Abordar os deveres dos pais/responsáveis em relação às crianças e
adolescentes, é tratar sobretudo de um cenário de desigualdade social e de
ausência de políticas garantistas que consolidem um viver com dignidade. Contudo,
3
o judiciário ainda parece majoritariamente tratar estas demandas como questões
estritamente de âmbito privado.
O assistente social, na perspectiva teórico-metodológica que adotamos, é um
trabalhador que na sua trajetória pessoal e profissional reelabora sua leitura da
realidade, apreendendo no seu trabalho os valores, os comportamentos, as visões
de mundo, ou seja, está, como todos, implicado em uma realidade histórico-social
criada pelos homens na sua relação com o mundo, entre si e consigo mesmo. Por
este caminho analítico, buscamos refletir sobre os pareceres do assistente social,
como seu conteúdo é reinterpretado por outros profissionais atuantes no judiciário e
que elementos fundamentaram possíveis jurisprudências decorrentes do trabalho
desse profissional.
Os documentos elaborados pelos assistentes sociais, que devem ser
efetivados num processo de relação democrática e participativa com os usuários dos
serviços prestados, são um dos produtos do seu trabalho especializado, não se
encerrando em si mesmo, mas possibilitando um acúmulo que pode resgatar
trajetórias das pessoas, das comunidades, das instituições, todas elas implicadas e
parte da produção e reprodução social. Demonstram, ainda, o pertencimento dessa
população a nossa sociedade pela exclusão: um lugar determinado pela ordem
sócio-econômica, política e cultural vigente. Se esses “produtos” do trabalho do
assistente social registram e interpretam a vida e suas contradições, também
demonstram a importância da linguagem como instrumento para a afirmação de um
projeto societário que possibilite a autonomia, a emancipação e a plena expansão
dos indivíduos sociais, bem como a democracia enquanto a socialização da
4
participação política e da riqueza socialmente produzida, sendo esses princípios
afirmados no Código de Ética Profissional do Assistente Social.
Há motivação nesta pesquisa em analisar como o conteúdo do laudo social,
produto do trabalho especializado, pode contribuir para a efetivação da justiça social,
ao desvelar aspectos objetivos e subjetivos do que se apresenta como litígio num
processo judicial e seus determinantes sociais, culturais, políticos e econômicos. A
leitura técnica não está isenta de um viés ideológico que, no conjunto das ações
profissionais, afirma representações sociais nos espaços sócio-ocupacionais. Tem-
se afirmado que os Juízes reconhecem a importância do trabalho do assistente
social no Judiciário, e buscou-se verificar, então, quais elementos apresentados no
trabalho deste profissional que proporcionam um laudo técnico revelador de fatos
que provoquem uma nova interpretação da situação em julgamento. Assim, a análise
buscou compreender quais elementos sobressaem na decisão que deve ser
aplicada considerando sempre “o mais benéfico para a criança/adolescente”, como
determinado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.
Tais elementos são necessários para a análise do impacto da intervenção do
assistente social junto ao trabalho do magistrado, do promotor de justiça e do
advogado, que culminem em jurisprudências pós ECA.
Para o exercício profissional com qualidade está implicada a capacidade do
assistente social de reelaborar a leitura de realidade, apresentando elementos a
partir de uma abordagem teórico-metodológica, com orientações ético-políticas. Há
um desafio de provocar a apropriação do conteúdo deste trabalho por parte dos
5
operadores do direito para a sua intervenção. Considerando que há sempre um filtro
ideológico na comunicação, nem sempre o que é relevante para um profissional
pode sê-lo para outro. Nessa dinâmica, ocorrem encontros e desencontros,
revelando-se valores e representações sociais que orientam as práticas dos atores
em questão.
A intenção foi a de buscar elementos para o aprimoramento do trabalho
profissional pautado no projeto ético-político-profissional hegemônico do Serviço
Social e na perspectiva de outro horizonte societário.
Nesse sentido, no Capítulo I “Serviço Social e Justiça” recorreu-se
especialmente a duas autoras, Colman e Fávero, que também tiveram atuação no
Judiciário Paulista, para resgatar o histórico do Serviço Social nesse espaço sócio-
ocupacional, problematizando os projetos profissionais e sua teleologia. O enfoque
foi o de compreender a inserção do assistente social no Judiciário, bem como os
seus processos de trabalho. Nesse contexto, foram abordadas também a
instrumentalidade e a dimensão técnico-operativa do Serviço Social.
Para este estudo também precisou-se recorrer a teóricos que estudam a
Justiça e a necessidade de novas interpretações das legislações, considerando a
dinâmica da sociedade, bem como a construção histórica de seus valores e normas.
Nesse sentido, no Capítulo II serão abordadas as relações sociais e a justiça,
quando são tratadas as dinâmicas das transformações sociais e a inter-relação
destas com as instituições. Considerando que a questão da criança e do
adolescente permeia toda a pesquisa, buscaram-se pesquisas historiográficas para
6
compreender o trato em relação à criança e ao adolescente, bem como as políticas
públicas.
No decorrer da pesquisa identificou-se a necessidade de aprofundar as
reflexões teóricas sobre a ideologia, vez que a ciência, sendo construção humana e,
portanto, histórica, tem, impregnadas, diferentes expressões ideológicas. Com essa
preocupação foram abordadas as relações entre ciência, ideologia, metodologias e
linguagem. Como um elo para dar sentido a este conjunto, foram elaboradas
reflexões sobre a ética. Essas reflexões estão contidas no Capítulo III intitulado
“Exercício profissional e produção de conhecimento.
Nessa parte da pesquisa se explicita o caminho percorrido, ou a “Construção
da Pesquisa”, realizada em torno de casos que são considerados jurisprudenciais,
ou seja, que são referências para os operadores do direito. Contudo, a abordagem
não se interessou pela aplicação da lógica jurídica, mas em levantar quais
elementos apresentados pelo assistente social judiciário, por meio do laudo social,
subsidiaram ou não as decisões tomadas em cada caso. Contudo, os procedimentos
estabelecidos a priori foram sendo alterados com base nos estudos teóricos, nas
discussões e no processo de levantamento de dados. Este foi composto pelas
ementas publicadas no site do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em
publicações científicas especializadas e nos autos analisados. Assim, chegou-se a
uma amostra intencional, colhida em documentação de fonte primária constituída por
autos judiciais.
7
Para a apreciação dos autos, foram analisados oito autos judiciais, somando
2.076 folhas (ou 4.152 páginas, se assim consideradas). A princípio, os
procedimentos metodológicos previam estudar os documentos elaborados pelo
assistente social, individualmente ou em parceria com o profissional de psicologia, e
os documentos gerados pelo processo, nos quais fossem mencionados os
elementos apresentados pelo profissional do Serviço Social. Contudo, o pesquisar
demonstrou a necessidade de se ater integralmente a todas as folhas dos autos,
pois todos os atos processuais interferem no andamento e na conclusão dos autos.
Verificando as informações, às vezes insuficientes até para a tomada de algumas
decisões, os casos foram analisados com base nos elementos lá existentes.
Eventualmente, são colocadas algumas indagações que não foram respondidas ou
que foram suscitadas pelo conteúdo dos autos. O olhar, contudo, foi o de pensar os
casos como expressões de parte da totalidade, manejadas no interior do poder
judiciário.
Este trabalho é também a oportunidade de reflexão e de análise, sistemática
e acadêmica, sobre a instrumentalidade e a teleologia da profissão, face às
demandas, aos desafios e às possibilidades existentes na dinâmica social da
atualidade.
Por ser parte constituinte desta realidade saturada de contradições, o Serviço
Social também vivencia divergências no confronto das tendências ético-políticas e
profissionais dentro da própria categoria. Portanto, neste estudo há um fio condutor
que busca refletir sobre os caminhos adotados, os quais afirmam, de forma
8
consciente ou não, um projeto político-profissional, entendendo, inclusive, a
categoria dos assistentes sociais enquanto potencial sujeito político que está na
arena da disputa de projetos societários.
9
CAPÍTULO I
SERVIÇO SOCIAL E JUSTIÇA
1. Histórico do Serviço Social no Judiciário
Para refletir sobre a atuação do assistente social no judiciário é
importante compreender como se iniciou esta inserção e sua modificação no
decorrer das décadas, impulsionada pelas conjunturas e pelas demandas sócio-
políticas e institucionais.
Para tanto, faz-se necessário considerar a historicidade da profissão,
indissociável que é do desenvolvimento da sociedade. Nesta perspectiva, adotamos
10
a concepção da profissão como uma especialização do trabalho coletivo, construída
e inserida numa realidade sócio-histórica.
Para autores da tradição marxista, o Serviço Social vem se consolidando
enquanto profissão fundada e inserida numa realidade contraditória, cuja estrutura
mantém e alimenta a luta de classes. Utilizamos aqui as referências marxistas
expressas por Iamamoto (2003, p. 57), que considera “a questão social como base
de fundação sócio-histórica do Serviço Social” e “a ‘prática profissional’ como
trabalho, e o exercício profissional inscrito em um processo de trabalho”.
Conforme Netto (1999), os projetos profissionais também expressam as
tensões sociais, sendo estruturas dinâmicas que respondem às alterações das
demandas sociais sobre e com as quais atua. Apresentam a auto-imagem de uma
profissão, elegem valores que a legitimam socialmente (expressos num código de
ética), delimitam e priorizam seus objetivos e funções (com leis/normas legais que a
regulamentem), formulam requisitos para seu exercício (aspectos teórico-
metodológicos) e prescrevem normas que balizam suas relações com usuários,
entre si e com outras categorias profissionais, bem como com as instituições
públicas e privadas.
Os projetos profissionais são necessariamente coletivos, expressando
respostas às requisições da dinâmica social. É esse processo de construção de
respostas que, ao se legitimar por meio das instituições e da ação profissional dos
sujeitos, consolidam espaços das diferentes profissões na sociedade.
11
Essa dinâmica social vem exigir que profissionais desenvolvam,
portanto, conhecimentos teóricos e práticos. E esses profissionais formam um
sujeito coletivo heterogêneo, com indivíduos que têm diferentes opções
teóricas, ideológicas e políticas.
No Serviço Social não é diferente: a pressão exercida pela sociedade, devido
às suas expectativas em relação aos produtos produzidos pelos profissionais,
também influencia o processo de trabalho destes. O sujeito coletivo é composto por
uma heterogeneidade de indivíduos e grupos e, assim, pode gerar projetos
profissionais diferentes, os quais são parte da expressão de determinadas
perspectivas societárias.
Assim como em outras situações, as Leis vigentes na sociedade e as
normativas da profissão não são suficientes para orientá-la. No exercício
profissional são confrontadas escolhas teóricas, ideológicas e políticas, que
expressam projetos de sociedade e, portanto, com posicionamentos ético-políticos.
Nessa perspectiva, “uma indicação ética só adquire efetividade histórico-concreta
quando se combina com uma direção político-profissional” (Netto, 1998, p. 99). Este
é um grande desafio no cotidiano dos trabalhadores da área social.
Para resgatar o histórico do Serviço Social no Judiciário Paulista a produção
de Fávero (1999)1 e Colman (2004)2 foram fundamentais, pois as autoras articulam
em suas análises as determinações sócio-institucionais que influenciaram o
exercício neste espaço sócio-ocupacional.
1 Eunice FÁVERO. Serviço Social, práticas judiciárias, poder.São Paulo, Veras, 1999. 2 Silvia Alapanian COLMAN, A formação do Serviço Social no Poder Judiciário, 2004.
12
Segundo suas pesquisas, em 1935 foi criado o Departamento de Assistência
Social do Estado de São Paulo, ao qual competia:
[...] a estruturação dos Serviços Sociais de Menores, Desvalidos,
Trabalhadores e Egressos de reformatórios, penitenciárias e hospitais e da
Consultoria Jurídica do Serviço Social (Iamamoto e Carvalho, 1982, p. 178,
apud Colman, 2004, p. 195).
Resgata ainda Colman que:
Desde o início, o Comissariado esteve fortemente ligado ao Departamento de
Assistência Social e, não obstante estar vinculado à estrutura do Juízo de
Menores, passou a ser dirigido e organizado pelo Departamento de
Assistência Social, numa relação que começou a criar alguns problemas com
o mesmo Juízo de Menores, que até então era o único responsável pelas
diretrizes no atendimento aos menores (p.195).
Após muitos tensionamentos decorrentes da disputa pelo controle das ações
junto a essa população, foi publicado em 1938 o Decreto que
reorganizou o Serviço Social de Menores, determinou que os cargos de
subdiretor de vigilância de comisssários de menores e de monitores de
educação passariam a ser privativos de assistentes sociais (Iamamoto e
Carvalho, 1982, p. 195, apud Colman, p. 199).
13
A introdução de assistentes sociais no exercício dessa função buscava
atenuar o seu caráter3 eminentemente policial, dando-lhe uma conotação
técnico-profissional e protetiva. Porém, o Juízo de Menores da Capital não
partilhava dessa opinião, dando preferência à constituição de um corpo de
comissários ‘de sua confiança’ e sob sua subordinação. (Colman, p. 199)
No levantamento do histórico do Serviço Social no Judiciário verifica-se a
grande importância das Semanas de Estudos do Problema de Menores, no total de
13 semanas. As oito primeiras ocorreram de 1948 a 1957, “[...] protagonizadas pelas
forças políticas que podiam determinar a política de menores, à época” (Colman:
2004, p. 200) e a última ocorreu em 1983.
Segundo Colman, após a II Semana foi criada uma comissão, com o objetivo
de estudar a colocação familiar como alternativa à internação de crianças. Essa
comissão propôs um Projeto de Lei – que foi aprovada em 20 dias, entrando em
vigor a Lei Estadual nº560 em 27 de dezembro de 1949 –, o qual criava o Serviço de
Colocação Familiar, junto aos juízes de menores. Essa Lei colocava que
§ 3º Os componentes do Serviço devem ser pessoas de reputação ilibada e,
sempre que possível, assistentes sociais diplomados por Escola de Serviço
Social ou professores, educadores sanitários, ou orientadores educacionais,
com certificado de curso intensivo de serviço social ou de higiene mental.
[...]
3 A autora refere-se ao caráter do Comissariado.
14
§5º Na Comarca de São Paulo, o chefe do Serviço, de preferência assistente
social diplomado por Escola de Serviço Social, será designado pelo Juiz de
Menores (idem:212).
Sendo esse Serviço de Colocação, assim, o marco da inserção formal do
Serviço Social no Judiciário, em 1955 contava com nove profissionais, era chefiado
por uma assistente social e contava com mais uma profissional do Serviço Social e
uma estagiária. É importante observar que a conjuntura política das décadas de 50 e
60 foi extremamente conturbada. Porém,
Do ponto de vista da política social e apesar do discurso desenvolvimentista
de Juscelino Kubitschek, a estrutura assistencial voltada aos menores durante
toda a década de 50 e início da década de 60 manteve-se intacta. Em
realidade, a prioridade da política social do governo federal seguiu o mesmo
modelo dos anos anteriores, dando ênfase especial apenas à educação em
razão da necessidade de formação de mão-de-obra para o parque industrial
que se ampliava no país (Colman, p. 224).
Em 1956, as assistentes sociais Idalina Montecarlo César, Zilnay Catão
Borges e Celina Celli foram convidadas para estruturar o Serviço Social nas Varas
de Menores. Nesse ano, juízes de menores realizaram em Porto Alegre o 1º
Encontro Nacional de Juízes de Menores, no qual elaboraram uma proposta para
reformulação do Código de Menores, em vigor desde 1927. Os juízes “enfatizavam a
sua posição de que o Judiciário era o órgão normativo e o Executivo deveria cumprir
as suas determinações” (Colman, p. 226).
15
Nesse período, avolumavam-se as denúncias contra Comissários e
voluntários, por seu despreparo e falta de qualificação, havendo exigências de parte
da sociedade esclarecida para que o Juizado realizasse uma ação tutelar e não
policial junto aos menores. Nessa conjuntura, e com uma avaliação muito positiva do
corpo de profissionais do Serviço de Colocação Familiar, foi convidado
[...] em 1956, o assistente social José Pinheiro Cortez para retomar a
coordenação do Serviço de Colocação Familiar, desta vez com remuneração,
numa clara tentativa de profissionalizar o quadro dos funcionários do Juizado
de Menores, cercando-se de auxiliares capacitados (Colman, p. 233).
Um sujeito significativo desse processo, José Pinheiro Cortez, assistente
social e advogado, foi um colaborador voluntário por muitos anos, posteriormente
coordenou o Serviço de Colocação Familiar como funcionário e protagonizou muitos
momentos de conquistas para o Serviço Social e a organização da atenção à
criança e ao adolescente no Judiciário. Sua ação técnica e política influenciou
decisivamente a inserção do Serviço Social no Judiciário Paulista. Atribui-se a ele a
autoria da conceituação de que o assistente social que atua no judiciário é também
um perito judicial4, condição que se soma às demais atribuições consolidadas e em
construção pelos profissionais.
Colman levantou em sua pesquisa que em 1964 o Serviço de Colocação
Familiar atendia 47.439 crianças e adolescentes, colocados em 10.065 famílias. A
4 Colman, op. cit. e informações obtidas nas sessões de orientação desta pesquisa
16
maior parte deles recebia subsídio para permanecerem em suas próprias famílias e
apenas 836 estavam em famílias substitutas. Para a realização desse trabalho,
Colman refere que em 1967 foi realizado um concurso público, do qual, contudo, não
há registros no Departamento Pessoal do Tribunal de Justiça do Estado de São
Paulo.
O Serviço Social foi sendo integrado a vários departamentos e setores. Havia,
por exemplo, o Setor de Bolsas de Estudos, a pedido do Sindicato das Escolas
Particulares de São Paulo, vez que havia uma lei que obrigava essas instituições a
disponibilizarem vagas para crianças e adolescentes carentes. Em interessante
depoimento colhido por Fávero (1994), Zilnay relatou que havia uma compreensão
de que não bastavam as vagas disponíveis, mas que as crianças tivessem recursos
para comprar material escolar, uniforme, a fim de ter uma inserção sem
constrangimentos nas escolas da elite. Outros serviços também foram criados, como
o Recolhimento Provisório de Menores (adolescentes que cometiam delitos), Serviço
de Assistência Judiciária (tanto para defesa dos adolescentes que praticaram
infrações, quanto para os que sofreram violências), Serviço de Fiscalização do
Trabalho de Menores (com assistentes sociais do Juizado e também vinculados ao
SESI) e outras entidades, como casas para abrigamento das crianças e dos
adolescentes.
Em relação ao contexto sócio-político, é importante lembrar o movimento de
Reconceituação do Serviço Social, que marcou as décadas de 60 e 70. Nesse
mesmo período ocorreram, em vários países, questionamentos e mobilizações das
17
classes subalternas devido à crise no padrão de desenvolvimento capitalista que
vinha tensionando as relações sociais desde o fim da Segunda Guerra Mundial.
Explica Netto :
A segunda metade dos anos 1960 marca, na maioria dos países em que o Serviço
Social já se institucionalizara como profissão, uma conjuntura de profunda erosão
das suas práticas tradicionais (e, compreensivelmente, dos discursos teóricos ou
pseudoteóricos que as legitmavam). No século passado, a transição da década de
1960 para 1970 foi, de fato, assinalada em todos os quadrantes por uma forte crítica
ao que se pode, sumariamente, designar como “Serviço Social tradicional’”: a prática
empirista, reiterativa, paliativa e burocratizada, orientada por uma ética liberal-
burguesa, que, de um ponto de vista claramente funcionalista, visava enfrentar as
incidências psicossociais da “questão social” sobre indivíduos e grupos, sempre
pressuposta a ordenação capitalista da vida social como um dado factual ineliminável
( 2005, p. 06).
Netto afirma que diante das mobilizações em todo o mundo, bem como de
processos importantes como o impacto da Revolução Cubana, a inserção dos
países latino-americanos na divisão internacional de trabalho e o surgimento de
novos sujeitos políticos impactaram sobre os assistentes sociais, trazendo como
indagação central: “qual a contribuição do Serviço Social na superação do
subdesenvolvimento?” (idem, p. 09).
18
Nesse contexto houve o que ele nomeou de grande união, que marcou os
primeiros passos do Movimento de Reconceituação, na qual uma frente renovadora
buscava o desenvolvimento econômico e social.
Segundo Netto, identificam-se nessa frente dois grandes segmentos, um que
buscava tornar o Serviço Social compatível com as
demandas macrossocietárias, vinculando-o aos projetos desenvolvimentistas de
planejamento social; outro, constituído por setores mais jovens e radicalizados,
jogava numa inteira ruptura com o passado profissional, de modo a sintonizar a
profissão com os projetos de ultrapassagem das estruturas sociais de exploração e
dominação [...]
Em pouco tempo, já por volta de 1971-72, a grande união se fratura,
dividindo-se os seus protagonistas em dois grandes blocos: os reformistas-
democratas (rigorosamente desenvolvimentistas) e os radicais-democratas (para os
quais o desenvolvimento supunha a superação da exploração-dominação nativa e
imperialista). Mas esta decisiva diferenciação não pôde se desenvolver (op. cit.
2005, p.10), pois, nesse período, primeiramente no Brasil e, após, em todo o Cone
Sul, “as ditaduras patrocinadas pelos Estados Unidos e a serviço das oligarquias
derrotaram todas as alternativas democráticas, reformistas e revolucionárias (2005,
p.10).
19
Netto demonstrou que em meados de 1970 esse processo fundamental de
renovação da profissão, visando romper com o tradicionalismo que não impactava
em mudanças sociais, foi calado, assim como o pensamento crítico na América
Latina, devido à repressão dos regimes ditatoriais.
Em relação ao Judiciário, é possível identificar nos anais das Semanas de
Estudos do Problema de Menores realizadas em 1969, 70, 71 e 73 o discurso que
enfatiza o alinhamento do Judiciário Paulista com a política do governo militar. Havia
um longo caminho percorrido por diferentes atores em busca do atendimento às
crianças e aos adolescentes. Porém, inserida no contexto político, verificou-se a
tendência assumida na instituição:
[...] Sob o comando do Desembargador Marrey, filho do eminente
jurista Dr. Marrey Jr., as Semanas foram retomadas, mas agora com
outro objetivo: o de desmontar a estrutura do Juizado de Menores.
[...]
Reproduzindo o discurso ufanista do regime militar e da FUNABEM, o
Dr. Marrrey ignorou, nos seus pronunciamentos, os debates que
vinham sendo travados entre os juízes de menores do próprio Estado
de São Paulo com outros juízes de posicionamentos opostos, além de
pouco citar os serviços construídos pelo Juizado da Capital (Colman, p.
291).
20
Nesse contexto, foi criada a Fundação Paulista de Promoção Social do Menor
– Pró-Menor – em dezembro de 1973, que teve vida curta, vindo a ser transformada
na Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor – FEBEM-SP, em abril de 1976.
Com essas mudanças, o Juizado de Menores da Capital permaneceu com o
Serviço de Gabinete, Serviço de Plantão Permanente, Serviço de Administração do
Comissariado, Serviço de Colocação Familiar, Serviço de Menores Desaparecidos,
Serviço de Autorização e Fiscalização do Trabalho do Menor, Serviço de Relações
Públicas e Seção Anexa à Curadoria.
A existência de ações explicitamente do Executivo no Judiciário trazem
algumas indagações. Buscando compreender esse fato, as portarias, resoluções etc.
do Judiciário, levantados por Colman, exigem que se avance na reflexão sobre o
Serviço Social neste espaço articulado aos debates da renovação da profissão.
Considerando a argumentação de Colman de que os assistentes sociais
tiveram papel fundamental na organização do judiciário frente às demandas sociais
afetas à criança e ao adolescente, é preciso avançar na compreensão das marcas
deixadas por esta profissão na instituição.
Os estudos sobre o Movimento de Reconceituação e a renovação da
profissão, sob a perspectiva da tendência de ruptura com o conservadorismo, trazem
elementos que permitem afirmar que no Judiciário paulista, na década de 70, houve
tentativas nesse sentido, por parte dos profissionais inseridos naquele processo.
21
Esta inserção evidencia que houve uma direção técnica de cunho
desenvolvimentista. A preocupação com os instrumentos e métodos de intervenção,
mas sobretudo com o planejamento e a execução do atendimento direto aos
menores é visível em alguns documentos do Judiciário.
Refletindo sobre as pesquisas relacionadas à história do Serviço Social e
dialogando com a sua inserção no Judiciário Paulista é possível afirmar que a
profissão incorporou a tendência dos “vetores desenvolvimentistas”. Assim como
outras instituições, o Judiciário sofreu a reestruturação impulsionada pela orientação
ideopolítica do período ditatorial, e o Serviço Social, em sua inserção nessa
instituição, foi fortemente influenciado por essa tendência, não sem resistências,
mas é possível identificá-la como dominante na sua organização e
instrumentalidade, principalmente nas décadas de 70 e de 80.
Além disso, pretendia-se ter maior definição sobre o papel do
assistente social, buscando sua qualificação como perito judicial.5 Nesse sentido, é
importante observar que, a partir da inserção do Serviço Social no Judiciário, alguns
juízes de Varas de Família também requisitavam estudos sociais de caso e, por volta
de 1978,
[...] se discutiu a formalização e ampliação deste trabalho.
Num movimento paralelo ao que ocorria no Juizado de Menores, José
Pinheiro Cortez – que era assistente social e advogado e havia saído da
coordenação do Serviço de Colocação Familiar –, contando com o apoio de
5 Este tema será melhor aprofundado quando da abordagem dos processos de trabalho no Judiciário.
22
alguns juízes das Varas de Família, construiu uma justificativa para propor a
contratação de assistentes sociais para as Varas de Família (Colman, p. 309).
Essa justificativa
[...] passou a constar como anexo do Provimento nº.136, de 15 de abril de
1980, do Conselho Superior da Magistratura que fundamentava e
normatizava a atuação desses profissionais (idem, p.309).
Segundo os depoimentos colhidos por Colman, com essa mobilização foi
realizado, em 1979, concurso público para o provimento de 22 cargos de assistente
social para as dez Varas de Família e Sucessões do centro e mais 12 para as Varas
Distritais. Havia uma característica marcante nessa atuação, que era mais voltada
para a ação judicante e menos para a área assistencial. Nesse período havia 80
assistentes sociais na Vara de Menores.
Porém, como mencionado anteriormente, havia o propósito de desmontar a
estrutura assistencial do Juizado de Menores, agora sob a luz do Código de
Menores, publicado em 10 de outubro de 1979. O novo Juiz Titular da Capital, que
assumiu em 1980, Dr. Antonio Luís Chaves de Camargo, concluiu o processo de
descentralização da justiça na cidade. Com a publicação da lei nº 3.947 em 08 de
dezembro de 1983, alterou-se parcialmente a organização judiciária da comarca de
São Paulo, criando-se os Foros Regionais.
23
Evidenciam-se no histórico do Judiciário Paulista as reformas administrativas
que estavam ocorrendo no Estado, quando se ampliou a burocratização das
atividades institucionais. Nesse contexto, dava-se ênfase a
aperfeiçoar o instrumental operativo, com as metodologias de ação, com a
busca de padrões de eficiência, a sofisticação de modelos de análise,
diagnóstico e planejamento (Iamamoto 2002, p. 32).
Em 19 de dezembro de 1984 foi aprovada a lei 4.467, que transferiu o Serviço
de Colocação Familiar para o Poder Executivo, sendo chamado de Instituto de
Assuntos da Família – IAFAM. Esta transferência aconteceu sem resistências
internas ou externas (COLMAN, p.321) e em 1985 o Tribunal de Justiça convocou
concurso público para provimento de 50 cargos de assistentes sociais para as Varas
de Menores, Família e Serviço Social do Trabalho. Este último setor, cuja criação
vinha sendo discutida desde 1982, foi efetivado em 1983 e sofreu muitas alterações
até os dias de hoje.
A resistência à ditadura, conduzida no plano legal por uma frente
oposicionista hegemonizada por setores burgueses descontentes, ganhou
uma profundidade e uma qualidade nova quando, na segunda metade dos
anos 70, a classe operária reinseriu-se na cena política, por meio da
mobilização dos trabalhadores termomecânicos do cinturão industrial de São
Paulo (o ABC paulista). A partir de então, a ditadura – que promovera a
modernização conservadora do país contra os interesses da massa da
população, valendo-se para isso inclusive do terrorismo de Estado – foi
24
levada, de derrota em derrota, à negociação que, culminando na eleição
indireta de Tancredo Neves (1985), concluiu seu ciclo desastroso (Netto,
1999, p. 99).
Nessa fase, os assistentes sociais brasileiros vinham também realizando
intensos debates, inseridos inclusive nas lutas pela redemocratização do país,
repensando as diretrizes curriculares do curso de graduação em Serviço Social,
buscando novas perspectivas para a formação e para a intervenção profissional.
Integrado no sistema universitário em todos os níveis, nos anos 1980 o
Serviço Social brasileiro assistiu ao desenvolvimento de uma perspectiva
crítica, tanto teórica quanto prática, que se constituiu a partir do espírito
próprio da Reconceituação. Não se tratou de uma simples continuidade das
idéias reconceituadas, uma vez que as condições históricas, políticas e
institucionais eram muito diversas das do período anterior (Netto, 2005, p.
17).
Na passagem dos anos 80 para os 90, conforme Netto (1999), o Serviço
Social passa pelo quadro de maturação, através da democratização dos diferentes
posicionamentos teórico-metodológicos e ideopolíticos. Esta é uma fase de recriação
da profissão, marcada pela busca de rompimento com o conservadorismo histórico,
fundamentando seus posicionamentos principalmente na Teoria Social de Marx e,
em decorrência disso, sob a influência do pensamento de Marx e de autores
marxistas. A conjuntura adversa dos anos 80 impulsionou a definição “[...] dos rumos
técnico-acadêmicos e políticos para o Serviço Social” (Iamamoto, 2003, p. 50),
sendo que o projeto profissional hegemônico defendido atualmente foi gestado
25
coletivamente. Esse projeto se expressa inclusive no Código de Ética Profissional do
Assistente Social e na Lei de Regulamentação da Profissão de Serviço Social –
ambos aprovados em 1993 – e nas atuais diretrizes curriculares.6 Estes avanços,
porém, por serem frutos da dinâmica social, não são homogêneos, lineares e
estáticos. Assim, temos a convivência entre continuidade e ruptura com o histórico
conservador da profissão e com as conquistas da sociedade e da categoria
profissional, principalmente no processo de redemocratização.
Nesse contexto de mudanças, o Brasil aprovou a Constituição Federal, a qual
tem como um dos eixos fundamentais a participação popular na formulação e
controle das políticas sociais. A regulamentação dos direitos sociais previstos na
Carta Magna foi realizada por meio da aprovação de várias leis,7 sendo fundamental
a apropriação das mesmas para o trabalho em diferentes campos ocupacionais e
nas lutas gerais da sociedade civil organizada com vistas a garantir tais direitos.
Destaca-se, dentre essa legislação, o Estatuto da Criança e do Adolescente
– ECA –, que regulamentou o artigo 227 da Constituição Federal, trazendo também
elementos relacionados aos artigos 226, 228 e 229, criando um sistema de proteção
integral aos direitos da população infanto-juvenil.
6 Parece-nos de peculiar importância a luta das entidades da categoria para garantir a integral aprovação destas Diretrizes junto ao MEC. Este estudo pode ser realizado por meio das publicações da ABEPSS e documentos do conjunto Cfess-Cress e da Enesso. 7 Dentre elas: Lei Orgânica da Saúde (Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990 e a posterior criação do Sistema Único da Saúde – SUS (lei nº8.142, de 28 de dezembro de 1990); Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB (lei nº 9.394 de dezembro de 1996); Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990); Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS ( Lei nº 8.742 de 7 de dezembro de 1993); Sistema Único da Assistência Social (Resolução CNAS nº145, de 15 de outubro de 2004 e Resolução CNAS Nº 130, de 15 de julho de 2005).
26
É importante considerar que o ECA foi gestado no período de
redemocratização do país, por ser fundamental que o Brasil rompesse também com
o autoritarismo no trato da questão da infância e da adolescência. Setores da
sociedade civil organizada mantiveram essa bandeira após a promulgação da Carta
Magna, com vistas a criar outro marco legal, substituindo o Código de Menores e as
estruturas criadas que não garantiam o desenvolvimento da população infanto-
juvenil, principalmente da mais vulnerável.
Silva (2005, p. 34-36) apresenta uma densa reflexão sobre a conquista do
ECA, abordando questões jurídico-sociais:
Assim, o ECA nasceu em resposta ao esgotamento histórico-jurídico e social
do Código de Menores de 1979. [...]
É no movimento endógeno e exógeno que consideramos o ECA uma
conquista tardia das lutas sociais. [...] Ocorre que foi uma conquista obtida
tardiamente nos marcos do neoliberalismo, nos quais os direitos estão
ameaçados, precarizados e reduzidos, criando um impasse na “cidadania das
crianças”.
A autora se refere à conquista legal, decorrente da luta dos movimentos
sociais, mas tece a crítica frente ao fato de não terem sido criadas condições reais
para os direitos da criança e do adolescente serem efetivados e usufruídos.
O ECA traz uma nova filosofia e uma programática de ação, com princípios e
diretrizes para uma política direcionada ao segmento infanto-juvenil, devendo ser
aplicado sempre para garantir o que for mais benéfico para a criança e o
27
adolescente. O ECA está dividido em duas partes: no “Livro I – Parte Geral, afirma
as concepções gerais necessárias para a efetivação do paradigma da proteção
integral, tratando dos direitos fundamentais e da prevenção à ameaça ou violação
desses direitos; no “Livro II – Parte Especial” trata da Política de atendimento, que
inclui as medidas protetivas e sócio-educativas, das ações voltadas aos pais ou
responsáveis, do Conselho Tutelar, do acesso à Justiça e dos procedimentos
processuais, dos crimes e das infrações administrativas. Nas disposições transitórias
estabeleceu que em noventa dias as entidades governamentais e não
governamentais deveriam adequar seu funcionamento aos termos dessa legislação.
Nesse sentido, o ECA é um instrumento jurídico que superou a divisão entre
“crianças” e “menores”, existente no Código de Menores, provocada pela diferença
entre as classes sociais. Estabelece, assim, um marco jurídico, com a previsão de
responsabilidades da família, da sociedade e do Estado, determinando a execução
de políticas sociais que devem garantir essa proteção especial aos direitos da
criança e do adolescente.
É importante ter um olhar sobre o conjunto formado por esses princípios,
diretrizes e atores, para se ter o entendimento de que o ECA estabelece medidas
para que gradativamente seja consolidada uma nova cultura em relação à criança e
ao adolescente.
Contudo, Silva (2005, p. 46) alerta que para este cenário ser consolidado
exige-se muita luta.
28
É claro que o Eca se diferenciou da lei que o antecedeu, mas não rompeu
visceralmente com os pressupostos do projeto de sociedade consolidado
pelos Códigos de Menores brasileiros (1927 e 1979), que vêm desde o final
do século XIX.
Por isso, para essa discussão é sempre necessário resgatar o movimento
sócio-político que gerou esse novo marco legal, inclusive para compreendermos as
resistências contra a sua efetivação. O ECA estabeleceu o princípio da proteção
integral e a concepção da criança e do adolescente como sujeitos de direitos,
garantindo ainda a participação popular na formulação e controle das políticas
públicas. No caso do ECA, o controle social será feito pelo Conselho Municipal dos
Direitos da Criança e do Adolescente (artigo 88).
O paradigma da proteção integral visa dar o pleno atendimento à criança e ao
adolescente, considerando-os sujeitos em condição peculiar de desenvolvimento e,
portanto, demandantes de cuidados da família, da comunidade e do Estado. Nesse
sentido, o Estatuto estabelece a criação de órgãos para o atendimento e a
fiscalização dos direitos da população infanto-juvenil.
No ECA, a Justiça da Infância e da Juventude está prevista no capítulo II, que
estabelece as suas competências para a garantia daqueles direitos. Para tanto,
dentre outras questões, normatiza a criação das equipes interprofissionais:
“Seção III – Dos Serviços Auxiliares
29
Artigo 150 – Cabe ao Poder Judiciário, na elaboração de sua proposta
orçamentária, prever recursos para manutenção de equipe interprofissional,
destinada a assessorar a Justiça da Infância e da Juventude.
Artigo 151 – Compete à equipe interprofissional, dentre outras
atribuições que lhe forem reservadas pela legislação local, fornecer subsídios
por escrito, mediante laudos, ou verbalmente, na audiência, e bem assim
desenvolver trabalhos de aconselhamento, orientação, encaminhamento,
prevenção e outros, tudo sob a imediata subordinação à autoridade judiciária,
assegurada a livre manifestação do ponto de vista técnico.
Alguns fatos relacionados ao aprimoramento profissional e organização
das categorias foram muito significativos para os assistentes sociais e os
psicólogos no Judiciário. Dentre eles, ao final da década de 80 dois encontros
estaduais foram organizados, um em 1987 e o segundo, em 1988, quando se
avaliou a necessidade de realizar cursos de capacitação e iniciação funcional.
Decorrente desse processo, foi criada uma Comissão de Representantes, e
na sua vigência, 1989, criou-se a “Comissão de Desenvolvimento e
Capacitação Profissional dos Assistentes Sociais e Psicólogos do Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo”. Essa Comissão foi incorporada à estrutura
do Tribunal de Justiça, com a denominação de “Equipe Técnica de
Coordenação e Desenvolvimento Profissional dos Assistentes Sociais e
Psicólogos Judiciários do TJSP”, tendo sido oficializada em 1994. Ainda em
decorrência desse processo, foi criada a Associação dos Assistentes Sociais
e Psicólogos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – AASPTJ-SP,
30
no âmbito organizativo dos trabalhadores.8 Em 2005, como conquista dessa
Associação, chegou-se à criação do Núcleo de Apoio Profissional de Serviço
Social e Psicologia, que possui, dentre outros, o objetivo de propiciar
encontros entre os técnicos para capacitação e troca de experiências.
Outro aspecto relevante é que o Judiciário foi o primeiro órgão público a
contratar formalmente um profissional de Serviço Social, embora somente em 2004
tenham sido regulamentadas as atribuições e competências do assistente social
nesta instituição. Observamos, ainda, que essa regulamentação foi uma conquista
importante na qual houve intensa atuação da Associação dos Assistentes Sociais e
Psicólogos do Tribunal de Justiça – AASPTJ/SP –9 e também a contribuição do
Conselho Regional de Serviço Social do Estado de São Paulo – Cress 9ª Região/SP
– que, enquanto órgão de classe, apresentou documentos esclarecendo o papel
profissional e o compromisso ético-profissional do assistente social, expressos na
Lei de Regulamentação da Profissão e no Código de Ética Profissional.
O Serviço Social brasileiro, inserido nas mudanças sociais e políticas,
sempre enfrentou grandes desafios na afirmação de um projeto profissional, pois
buscou, no decorrer de sua história, a sua auto-superação e aprimoramento para dar
respostas às demandas. Estas considerações permitem afirmar que há um grande
desafio para os assistentes sociais que exercem a profissão no Judiciário: buscar
realizar o projeto profissional hegemônico, nesta instituição marcada pelos conceitos
positivistas e conservadores, inclusive devido à perspectiva ideológica da Ciência do
Direito no Brasil. 8 Dados extraídos da pesquisa realizada pela AASPTJ: “O Serviço Social e a Psicologia no Judiciário: construindo saberes, conquistando direitos”. São Paulo, Cortez, 2005. 9 A AASPTJ SP foi criada em 1992.
31
No histórico do Serviço Social identificam-se passagens importantes e
significativas na constituição da identidade profissional. As profissões podem ter
respostas com diferentes características ideopolíticas frente a uma demanda
(preservadas as devidas proporções) conforme o seu objeto e a função na
sociedade.
[...] a consolidação de uma determinada direção social estratégica não
equivale à supressão das diferenças no conjunto da categoria ou à
equalização dos vetores que compõem a cultura profissional [...].
Nesse sentido,
[...] há que lembrar que estamos diante de um processo e não, de um
monopólio, mas de luta por hegemonia, de direção: não se trata de consagrar
identidades cristalizadas, mas de promover unidades dinâmicas. Nas
condições contemporâneas, uma categoria profissional jamais é um bloco
identitário ou homogêneo – é sempre, sob todos os prismas, um conjunto
diferenciado e em movimento (Netto, 1996, p. 116).
E neste contexto é preciso refletir que há grande diversidade nas
características da ação profissional, na interpretação e na intervenção face às
demandas. Dentre as questões que têm sido debatidas no âmbito da organização da
32
categoria, há uma ênfase sobre a necessidade de maior aprofundamento sobre
competências e atribuições profissionais. Tal debate exige que se tenha como
parâmetros os princípios fundamentais da profissão, com vistas a garantir a direção
ética e política do projeto profissional.
Diante, assim, desse histórico de lutas da profissão para consolidar um
espaço dentre as profissões, enquanto especialização do trabalho coletivo, há
cotidianamente a interlocução com vários profissionais: Juiz, Promotor, Psicólogo,
Psiquiatra, Advogado, Oficial de Justiça e os próprios colegas de categoria. Além
desses, também há os outros profissionais, médicos, professores, pedagogos etc. e
os membros dos Poderes Legislativo e Executivo. Obviamente, um interfere mais
diretamente que outro nesta inter-relação, mas todos são significativos para a
consolidação do projeto ético-político-profissional, vez que é nesta dinâmica que se
são colocadas as requisições a um trabalho particular, bem como a sua qualificação
e importância na composição da totalidade do processo coletivo de trabalho.
Nessa composição de trabalhadores especializados, é possível verificar que
por vezes os assistentes sociais se deparam com ações que demonstram a
heterogeneidade das posturas profissionais. Na relação com a população e nos
pareceres técnicos apresentados podem ocorrer posicionamentos arbitrários,
pautados em juízos de valor pessoal, contrários aos princípios afirmados no Código
de Ética em vigor. Tal aspecto tem grande relevância, na medida em que este
profissional apresenta elementos que podem contribuir para as decisões judiciais.
33
Em pesquisa realizada pelo Cress-SP (2003) junto às Varas da Infância e da
Juventude e abrigos e unidades da FEBEM, no Estado de São Paulo, constatou-se
que, se por um lado o Código de Ética Profissional afirma a posição hegemônica da
profissão, é ainda um instrumento a ser apropriado pelos profissionais.
No Seminário “Políticas Públicas para a Infância e Adolescência”, onde se
apresentaram os resultados da pesquisa, verificaram-se dados preocupantes nesse
aspecto. No item em que se questionou “Possui/conhece a edição atualizada do
Código de Ética?”, 190 profissionais do Judiciário responderam que sim, 140 que
não e 03 deixaram em branco.
São múltiplos os determinantes que poderão contribuir para um exercício
mais aproximado ou não dos princípios afirmados no Código de Ética. Buscar uma
leitura crítica, articulando os pressupostos teórico-metodológicos e ético-políticos da
profissão frente às contradições da realidade pode propiciar uma intervenção voltada
à garantia do acesso aos direitos conquistados e a conquistar. Nesse caminho,
Iamamoto afirma:
[...] as alternativas não saem de uma suposta “cartola mágica” do Assistente
Social; as possibilidades estão dadas na realidade, mas não são
automaticamente transformadas em alternativas profissionais. Cabe aos
profissionais apropriarem-se dessas possibilidades e, como sujeitos,
desenvolvê-las, transformando-as em projetos e frentes de trabalho (2003, p.
21).
34
Assim, o assistente social que atua no judiciário, para efetivar o projeto
profissional hegemônico, comprometido com o aprofundamento da democracia como
socialização das riquezas socialmente produzidas e com a construção de uma nova
ordem societária,10 necessita estar atento às múltiplas expressões da questão social
e suas diferentes manifestações. Sua ação deve identificar não apenas as
desigualdades, mas as possibilidades de enfrentamento. Conhecer a complexidade
da realidade é necessário para a intervenção profissional que não culpabilize o
usuário, mas o compreenda enquanto sujeito social que sofre determinações que
incidem sobre a sua existência material e subjetiva.
1.1. Serviço Social e campos sócio-ocupacionais: o campo sócio-jurídico
No resgate de algumas passagens importantes sobre a inserção e trajetória
dos assistentes sociais no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, identifica-se
que alguns documentos e pesquisas acadêmicas utilizam o termo “Serviço Social
Judiciário”. Assim, é necessário debater algumas questões.
Como já foi exposto, a profissão é criada para responder às demandas da
sociedade. O Serviço Social, nesse sentido, afirmou-se como profissão na sociedade
capitalista industrial, atuando sobre as diferentes expressões da questão social. No
Brasil, o Serviço Social conseguiu extrapolar as “marcas de origem no interior da
Igreja, quando o Estado centraliza a política assistencial, efetivada através da 10 Princípios do Código de Ética Profissional do Assistente Social.
35
prestação de serviços sociais implementados pelas grandes instituições” (Iamamoto,
1992, p. 95) Porém, a conjuntura sociopolítica foi fundamental para essa
institucionalização: é no processo de formação e luta operária que surge uma
movimentação política em direção aos direitos da classe dos trabalhadores. Essa
situação exige a intervenção do Estado nas relações dessa classe com o
empresariado, formulando legislações sociais e trabalhistas e prestando serviços
sociais por meio de políticas sociais.
Esta é a característica fundamental do Serviço Social: uma profissão criada
frente aos conflitos gerados na relação entre capital e trabalho. Assim, possui
autonomia relativa, uma vez que não tem controle sobre as condições objetivas para
a realização de suas atribuições, as quais se expressam na forma de tais serviços.
Para compreender o que vêm a ser “serviços”, as produções de Iamamoto,
com base na sociologia das profissões, colocam que:
Os trabalhos que são desfrutados como serviços são aqueles que não se
transformam em produtos separáveis dos trabalhadores que os executam e,
portanto, não têm existência independente deles como mercadorias
autônomas. Esta forma de materialização do trabalho nada tem a ver com a
sua exploração capitalista, visto que os serviços podem se constituir como
trabalhos produtivos (de mais-valia), dependendo das condições e relações
sociais em que são produzidos. [...] Assim, o mesmo trabalho [...] pode ser
realizado pelo mesmo trabalhador a serviço de um capitalista industrial ou de
um consumidor direto, tratando-se, no primeiro caso, de um trabalhador
produtivo e, no segundo, de um trabalhador improdutivo (2003, p. 68).
36
A autora traz vários elementos que bem ilustram a característica contraditória
imposta à profissão:
A expansão dos serviços sociais na sociedade moderna está estreitamente
ligada à noção de cidadania. [...] A luta pelos direitos sociais é perpassada
pela luta contra o estigma do assistencialismo. São antecedidos pelas leis
beneficentes que tratavam as reivindicações dos pobres como alternativa aos
direitos dos cidadãos. [...]
Porém, se os direitos sociais têm por justificativa a cidadania, o discurso de
igualdade, seu fundamento é a desigualdade de classe (1992, p. 96).
Inserido no processo contraditório da sociedade, o Serviço Social vem
também se alterando, seja por demandas do Estado, das instituições, seja pelas
diferentes formas com que a questão social rebate sobre a vida dos cidadãos com
os quais atua. A categoria profissional tem intensificado as discussões na academia,
nos Congressos de Assistentes Sociais e em outras atividades técnico-científicas, no
interior das entidades organizativas e nos seus espaços de trabalho.
Nos últimos anos têm-se adensado os estudos em torno de alguns campos
sócio-ocupacionais, dentre eles o que se tem denominado “campo sócio-jurídico”,
que engloba o sistema penitenciário, o judiciário, o Ministério Público, as medidas
sócio-educativas (adolescentes) e as de proteção, relacionadas à população infanto-
juvenil, entre outros.
37
Para realizar esse debate para além da dimensão técnico-operativa, o Serviço
Social tem se aproximado de vários autores que buscam compreender o processo
sócio-histórico e o modo de produção e reprodução da vida social e das
representações sociais.11
Além das pesquisas já realizadas, outros elementos da realidade trazem
significativas contribuições para a reflexão do trabalho do assistente social e o
tensionamento que pode gerar numa instituição como o judiciário paulista.
Ao atuar nos diferentes espaços ocupacionais os profissionais exercem uma
capilaridade de saber e de poder. A literatura científica tem buscado
compreender vários fenômenos relacionados à violência, à criminalidade, aos
Direitos Humanos e à Justiça. Especificamente, o Serviço Social vem
pesquisando vários aspectos da intervenção profissional, procurando suas
implicações ético-políticas e metodológicas. Nessa temática, há muitos
estudos sobre a efetivação do Estatuto da Criança e do Adolescente e da
implantação das políticas de atendimento, com muita atenção às políticas
sociais. Sobressaem as indagações e a busca de metodologias relacionadas
às medidas sócio-educativas, principalmente de internação; em relação a
medidas protetivas, a maioria das quais trata do abrigamento e do
atendimento a vítimas de violência (sexual, exploração, trabalho infantil). Esta
segmentação ocorre mais a título de limitação exigida para o aprofundamento
analítico, pois sabe-se que muitas vezes há várias situações coexistentes,
cabendo aos profissionais identificar quais são as principais determinantes. 11 Conforme Oliveira, R.N.C. “A representação é um complexo de fenômenos do cotidiano que penetra a consciência dos indivíduos, assumindo um aspecto abstrato quando essa percepção do imediato está desvinculada do processo real que determina sua produção” (p.39).
38
Assim, tais reflexões sempre exigem um debruçar-se sobre as características
e as peculiaridades dos processos de trabalho nos diversos campos sócio-
ocupacionais.
Recorrendo novamente a Colman e Fávero, verifica-se que ambas
elaboraram reflexões nesse sentido.
Para Colman:
Atualmente o fazer profissional do Serviço Social neste significativo campo de
trabalho tem sido pensado como uma pratica inserida no que se está
chamando de sistema sócio-jurídico. [...] As peculiaridades da ação
profissional no interior do Poder Judiciário estão marcadas pela natureza
diferenciada da organização cuja função não está diretamente vinculada à
prestação de serviços sociais (2004, p. 19).
A autora reflete sobre a construção do papel profissional no decorrer da
história do próprio Judiciário.
Essa problematicidade reforça a necessidade de conhecer como se deu a
construção dessa modalidade peculiar de ação profissional, longe de
considera-la um ramo ou uma especialidade do Serviço Social – daí a
impropriedade do uso da expressão Serviço Social Judiciário -, consideramos
apenas um tipo de resposta, uma adaptação da profissão às necessidades de
uma organização cuja função determina uma forma de ação específica [...]
(idem, p. 20).
39
Compreendemos que Fávero trouxe uma grande contribuição com sua
conceituação, a qual vem sendo adotada pelo Serviço Social na sua literatura
técnico-científica, pelos seus órgãos representativos e pela categoria:
Campo (ou sistema) sócio-jurídico diz respeito ao conjunto de áreas em que a
ação do Serviço Social articula-se a ações de natureza jurídica, como o
sistema judiciário, o sistema penitenciário, o sistema de segurança, os
sistemas de proteção e acolhimento como abrigos, internatos, conselhos de
direitos, dentre outros. O termo sócio-jurídico, enquanto sínteses destas
áreas, tem sido disseminado no meio profissional de Serviço Social (2004, p.
10).
No I Encontro Nacional “Serviço Social Sócio-Jurídico” realizado em pelo
Conjunto CFESS-CRESS, em Curitiba, no ano de 2004, discutiu-se que a categoria
central para este debate é o “campo sócio-jurídico”.
Analisando essa categoria no conjunto de debates sobre o projeto ético-
político-profissional pode-se afirmar que é preciso pensar o campo sócio-jurídico
atrelado à teleologia e à instrumentalidade do Serviço Social.
Há que considerar que não é a temática que define o Serviço Social, mas sim,
o conjunto das dimensões teórico-metodológica, técnico-operativa e ético-política da
profissão, manifestadas no posicionamento do assistente social diante das
expressões da questão social. Portanto, temos como pressuposto que não é a
dimensão jurídica que define o Serviço Social neste campo, mas a complexidade da
profissão e sua teleologia.
40
Tânia Dahmer, assistente social e estudiosa dos direitos humanos,
especialmente em relação ao sistema penitenciário brasileiro, afirmou no citado
Encontro que é fundamental aprofundar as discussões sobre o aspecto sociopolítico
em comum nos diferentes espaços sócio-ocupacionais, vez que no cotidiano
enfrentamos as diferentes expressões da violência.
Beatriz Aguinsky, que também compôs a organização de tal Encontro,
afirmou que é um desafio realizar uma reflexão totalizante, buscando compreender o
que está posto na realidade. Na sua análise, trouxe a contribuição de que a
legalidade da moral é um princípio regulador no judiciário e mistificador da aparente
igualdade. Esta análise é fundamental, pois a normatização legal apresenta uma
igualdade que não se realiza, posto que não se implantaram mecanismos que
garantam o acesso à Justiça para sequer pleitear os direitos. Citou, na ocasião, o
exemplo da inexistência da defensoria pública em São Paulo (que foi criada somente
em 2006). Saliente-se que este órgão, previsto na Constituição Federal, deve
garantir a ampla defesa. Sem um mecanismo adequado, a norma legal não se
efetiva.
No debate atual há problematizações ao termo “sócio-jurídico”, considerando-
se o risco de retirar a determinação maior da profissão, que é o processo sócio-
histórico. Neste enfoque, Aguinsky ponderou que nos diferentes espaços sócio-
ocupacionais o assistente social, ao construir mediações, pode realizar passagens
totalizantes. Contudo, é importante considerar que o enfrentamento da questão
social é uma “tarefa” para um coletivo amplo, que defenda princípios comuns. Neste
sentido alertou sobre o risco de se reatualizar o discurso missionário. Compreender-
41
se como ator inserido neste processo mais amplo é fundamental para realizar ações
profissionais e políticas coletivas para a superação desses cenários.
O grande desafio posto, nos diferentes espaços sócio-ocupacionais do
assistente social, é o de não realizar práticas que reiterem a violência em suas
diversas expressões e que atue juntamente com um coletivo maior para o
enfrentamento das situações que emergem no seu cotidiano. Todas as práticas
institucionais podem se tornar meramente instrumentos da produção e reprodução
do capital, à medida que não se apóie numa análise mais complexa. Por este
entendimento, a ação profissional deve reafirmar a teoria social crítica como
fundamento para um novo projeto societário.
É inegável que no exercício profissional no judiciário há dimensões imediatas,
voltadas à administração da justiça (reparação dos direitos violados) e mediatas
(pensar a defesa dos direitos por meio de lutas sociais mais amplas, antecipando-se
às violações). Em geral, o assistente social no campo sócio-jurídico está inserido na
dimensão da reparação, condição imposta pela estrutura institucional e pela cultura
política no trato das demandas sociais no país. Porém, os efeitos de sua
intervenção, enquanto parte do processo coletivo de trabalho, pode gerar pautas e
conquistas na direção da Justiça.
Um outro espaço dentro desse campo que agrega muitos profissionais é o
relacionado à execução de medidas sócio-educativas. Qual o lugar dessas medidas
quando defendemos o caráter pedagógico do Estatuto da Criança e do
Adolescente? Se, por um lado, as medidas são aplicadas por força de lei (tanto que
42
comumente se discute a execução dessas medidas em analogia à execução penal,
evidenciando na verdade a realização de uma política penal juvenil)12, por outro, há
uma ênfase nas discussões sobre a responsabilização do adolescente como parte
de um processo pedagógico. Porém, embora o objetivo seja realizar uma ação
sócio-pedagógica, prevalece ainda na sociedade o entendimento e a defesa de que
a medida sócio-educativa seja aplicada como punição realizada por meio de ações
coercitivas e opressoras.
Nesse sentido, temos a questão cultural da sociedade brasileira, que é
bastante conservadora, defendendo a punição como resposta imediata, sem
conseguir realizar uma reflexão sobre os determinantes sócio-históricos dessa
sociedade desigual, opressora, violenta. Por fim, implicitamente parece haver um
entendimento majoritário afirmando que o elo com a justiça (responsabilização) deve
prevalecer na aplicação dessas medidas, sendo necessário refletir sobre as
intervenções técnico-legais em relação aos princípios filosóficos que fundamentam o
Estatuto da Criança e do Adolescente.
A realidade e a postura punitiva da sociedade impulsiona o discurso do
senso-comum, que não avalia que tais práticas repressivas já foram vastamente
aplicadas no Brasil e no mundo, sem, contudo, frear definitivamente os índices de
violência e criar novas relações que tenham possibilitado melhoria na vida da
população infanto-juvenil e das comunidades.
12 Maria Liduína de Oliveira SILVA (2005) traz uma discussão crítica e significativa neste sentido.
43
Assim, o termo sócio-educativo merece também maior discussão não apenas
para o Serviço Social. Contudo, entendemos que no debate hegemônico do projeto
ético-político-profissional do Serviço Social, temos como parâmetro comum a defesa
do adolescente como sujeito de direitos, portanto, que tenha garantido um
atendimento que respeite sua individualidade, mas sem perder de vista o olhar
totalizante sobre as determinações dessa sua situação.
Estudando estes conflitos da sociedade, Faria relaciona a explosão da
litigiosidade.
... a um movimento de despolitização dos conflitos sociais, transformando
esses conflitos em questão de natureza econômico-administrativa.
Para ele, esses conflitos sociais, após serem retirados da esfera política da
luta de classe, são “repolizitados” no interior do aparelho estatal, através de outros
mecanismos de controle. (apud Colman, 2004, p. 118)
Colman considera que
... é o agravamento das contradições próprias do regime capitalista que
inviabiliza a possibilidade de aplicação das leis. Contudo, é o Poder Judiciário
que, através de seus organismos (tribunais, juizados etc.), experimenta
cotidianamente as conseqüências dos problemas sociais e, dele, a sociedade
cobra soluções.
44
Diante da impossibilidade de resolver esses problemas que se expressam
como problemas individuais, mas são em realidade profundos problemas da
sociedade como um todo, impõe-se o reconhecimento da falência das
estruturas de operacionalização do Direito. (2004, p.121)
Face à complexidade da atual conjuntura, há preocupação de que o
profissional não esteja atento à direção social que imprime ao seu trabalho no
âmbito da Justiça e que possa estar cegamente exercendo um poder que limita o ser
humano.
O Conjunto CFESS-CRESS13 realizou em duas gestões (1996 a 1999 e 1999
a 2002) um amplo trabalho envolvendo a Comissão de Orientação e Fiscalização
Profissional dos Conselhos Regionais de Serviço Social, debatendo as
competências e as atribuições privativas do assistente social. Diante dos estudos
coletivos, foi publicado um livreto “Atribuições Privativas do Assistente Social em
Questão”, no qual consta um texto de Iamamoto:
[...] É comum os profissionais se identificarem com os cargos nomeados pelas
organizações, por exemplo, analistas de recursos humanos, assessores
internos, coordenadores de programas e projetos, confundindo cargo ou
função com profissão. Ora, não é a função atribuída pelo empregador que
define a qualificação profissional, as competências e atribuições que lhe são
inerentes. A profissionalização depende da formação universitária que atribui
o grau de assistente social e do Conselho Profissional que dispõe de poder
13 Conjunto formado pelo Conselho Federal de Serviço Social e Conselhos Regionais de Serviço Social, sendo que existem 24 CRESS no país. Autarquias federais, os Conselhos são órgãos de regulamentação e fiscalização do exercício profissional e, neste caso, do Serviço Social. O Conselho Federal normatiza na esfera federal e atua como tribunal recursal dos processos éticos.
45
legal para autorizar e fiscalizar o exercício, a partir das atribuições e
competências identificadas historicamente e reguladas por lei. (2002, p. 40)
Há atualmente um intenso debate sobre a organização dos trabalhadores
frente à desregulamentação das conquistas trabalhistas, à criação de cargos
genéricos (por exemplo: analista técnico), à precarização das condições de trabalho
e das estratégias do mercado em desincumbir-se das obrigações trabalhistas, à
resistência em alterar a política tributária do mercado produtivo em detrimento do
financeiro etc.
O Serviço Social realizou em 1979 o Congresso Brasileiro de Assistentes
Sociais, que foi chamado de “Congresso da Virada”. Nesse período também foi
fechado o Sindicato dos Assistentes Sociais, orientado pela Central Única dos
Trabalhadores – CUT, por haver o entendimento de que os trabalhadores devem se
organizar por ramo de atividade (saúde, assistência, funcionalismo público etc.) e
não, por categoria profissional. Esta orientação foi fundamentada na compreensão
de que há necessidade de superar a perspectiva corporativista de categorias,
adotando a posição de classe trabalhadora, sobre a qual recaem as dificuldades
acima elencadas..
A categoria dos assistentes sociais tem debatido a necessidade de retomar a
dimensão sindical, ou a “transição inconclusa”. Porém, é imperativo maior o debate
anterior, sob o entendimento de que o assistente social compõe um trabalho coletivo
46
e que é toda a classe trabalhadora, e não uma categoria específica, que vem
sofrendo os rebatimentos da reestruturação produtiva14.
Considerando, nesta ótica, os impactos da reestruturação tecnológica, da
organização da administração pública e do mercado, os assistentes sociais
necessitam incorporar-se às lutas mais amplas da sociedade e dos trabalhadores,
atentos às mudanças exigidas pela ordem neoliberal, mas com a clareza de seu
papel profissional inscrito num projeto ético-político-profissional.
Neste caminho analítico, Iamamoto esclarece que:
Importa afirmar enfaticamente que tratar as particularidades de uma profissão
na divisão social e técnica do trabalho não significa uma regressão aos velhos
dilemas presentes na busca de uma suposta especificidade profissional
aprisionada nos muros internos da profissão, em geral reduzida à dimensão
dos “métodos e técnicas do Serviço Social”, tal como estabelecido pela
tradição conservadora da profissão (2002, p. 42).
Portanto, é fundamental o resgate sobre a historiografia da profissão,
compreendendo-a no processo sócio-histórico, e das demandas apresentadas aos
sujeitos profissionais e seus órgãos representativos. Sem esta abordagem
historicizada, apreendem-se apenas alguns aspectos residuais do papel profissional
preso à instituição, e não inserido no campo de lutas da sociedade.
14 Atualmente existem 8 sindicatos de assistentes sociais filiadas à Federação Nacional de Assistentes Sociais, FENAS. Fonte: www.fenas.org.br
47
Com a crescente desregulamentação e precarização das condições de
trabalho, voltado cada vez mais para o fortalecimento e aprimoramento do
capitalismo neoliberal, os trabalhadores podem cair na armadilha de desenvolver
lutas corporativistas, em busca da sobrevivência. Cabe às lideranças provocar
reflexões sobre essas condições, elaborando coletivamente estratégias de lutas. Os
assistentes sociais, quando não ampliam sua participação nos espaços coletivos,
tendem a recair em alternativas que parecem imediatamente satisfazer a sua
inserção no mercado de trabalho, mas que, na prática, podem fragilizar o projeto
profissional. Assim, sob outras feições e terminologias, podem-se retomar
perspectivas já superadas teoricamente. Tem havido a retomada do “Serviço Social
Clínico” como um indício dessa tendência, embora combatida pelas entidades da
categoria.
Assim, Iamamoto subsidiou as reflexões do Conjunto CFESS-CRESS ao
afirmar que:
...o trabalho coletivo não impõe a diluição de competências e atribuições
profissionais. Ao contrário, exige maior clareza no trato das mesmas e o
cultivo da identidade profissional, como condição de potenciar o trabalho
conjunto (2002, p. 42).
Compreende-se, assim, nesta pesquisa, que o assistente social Judiciário tem
essa denominação por identificar sua inserção. Adota-se conceitualmente que o
Serviço Social está inserido no campo sócio-jurídico, não se consolidando um outro,
denominado Serviço Social Judiciário. Para essa assertiva, portanto, é essencial que
48
se tenha clareza do que é o espaço institucional e o papel profissional inscrito em tal
relação.
Por exemplo, o assistente social pode ser o Perito Judicial, nomeado por ser o
“especialista enquanto detentor de conhecimentos” (Fávero, 2003, p. 19) na área
de Serviço Social. Assim, é a qualificação como assistente social que efetiva o
espaço como especializado.
É importante salientar que no ano de 2003 foi criado o curso de pós-
graduação lato senso denominado Serviço Social na Área Judiciária, realizado pela
Coordenadoria Geral de Especialização, Aperfeiçoamento e Extensão – COGEAE-
PUC/SP, com carga horária de 360 horas e duração de três semestres. Na
apresentação há referência à ampliação do trabalho nesse campo “sobretudo no que
se refere a subsídios técnico-científicos para melhor fundamentar a decisão
judicial”.15
Neste sentido, conclui-se que o termo “campo sócio-jurídico” informa qual a
inserção sócio-ocupacional, sendo esta uma das condicionantes das
particularidades no fazer profissional. Não é, portanto, o campo que define a
profissão, mas sim o projeto ético-político-profissional que o faz e, em decorrência
disso, informa sua inserção em determinado campo.
15 Extraído do folder de divulgação do curso.
49
1.2. Processos de Trabalho e Serviço Social
Ao pensar o Serviço Social e sua inserção no Judiciário, Colman e Fávero
resgataram a sua história, tensionamentos e conquistas e apontaram desafios.
Tendo essas produções como referência para compreender o exercício profissional
no Judiciário Paulista, buscou-se nesta pesquisa entender melhor o impacto do
trabalho do assistente social sobre as decisões judiciais. Identificamos na
constatação de Iamamoto a importância deste estudo:
Pensar a atividade do sujeito, isto é, o seu trabalho, supõe decifrar esses e
outros traços socioculturais que sustentam o imaginário existente sobre a
profissão na sociedade. É muito interessante observar que a maioria das
pesquisas especializadas focaliza a Instituição Serviço Social. Poucos são
aqueles estudos que têm como foco o sujeito profissional, e a análise do
Serviço Social sob o ângulo dos processos de trabalho permite dar-lhe a
atenção devida (2003, p. 65).
A autora, ao problematizar a necessidade de compreender os processos de
trabalho, fundamenta suas reflexões na tradição marxista, apontando que:
... o Serviço Social é um trabalho especializado, expresso sob a forma de
serviços, que tem produtos: interfere na reprodução material da força de
trabalho e no processo de reprodução sócio-política ou ideopolítica dos
indivíduos sociais. (p. 69)
50
Verifica-se, nesse sentido, que as profissões assumem características
peculiares, determinadas pelas instituições onde se inserem. No caso do Serviço
Social, que é uma profissão generalista, é possível verificar que a forma como
compreende e explica os processos sociais vivenciados por diferentes sujeitos
(individuais e coletivos) incide sobre as estratégias e os processos de trabalho que
desenvolvem cotidianamente. No Judiciário, é possível dizer que há um produto
coletivo de tal trabalho, as decisões judiciais, que podem ser expressas nas
jurisprudências.
Os assistentes sociais que atuam no Judiciário têm buscado seu
aprimoramento permanente, lutando contra condições adversas (excesso de
trabalho, reduzido quadro da equipe interprofissional, problemas estruturais e
ambientais no local de trabalho, falta de uma política de incentivo ao aprimoramento
profissional etc.). Há algum tempo a Associação dos Assistentes Sociais e
Psicólogos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – AASPTJ-SP tem
ampliado as formas de ação coletiva, aprimorando a ação da diretoria e a
organização da base em comissões de trabalho, obtendo vitórias importantes. Além
disso, provocou a criação do Núcleo de Apoio Profissional de Serviço Social e
Psicologia do Tribunal de Justiça, que vem buscando efetivar demandas da
instituição e acolher as dos técnicos. Esta relação não ocorre sem tensionamentos,
mas pelo fato de haver ações voltadas ao coletivo, os avanços são mais
significativos. Assim, é fundamental que ocorram essas lutas cotidianas, visando não
apenas conquistas coletivas relacionadas às condições de trabalho, mas
51
essencialmente voltadas à direção ético-política e à instrumentalidade da ação
profissional.16
E é nesse contexto que, tanto o assistente social quanto o psicólogo,
acompanham parte das ações judiciais. As demandas que lhes são colocadas
exigem uma atuação de grande aprofundamento teórico-metodológico, mas se
deparam com muitos fatores institucionais e conjunturais que provocam dificuldades
para a realização das suas atribuições, competências e papéis profissionais.
O Serviço Social no Judiciário, ao atender diversos casos individuais, lida com
expressões da questão social que, muitas vezes, não são respondidas por meio das
políticas públicas que deveriam garantir a resolução dessas situações. Este não
atendimento decorre da precariedade e/ou insuficiência ou mesmo devido à
ausência de tais políticas de competência do Poder Executivo. Com o agravamento
das situações, o que deveria ser atendido no âmbito dos serviços do Poder
Executivo, acaba se tornando “caso de polícia” e remetido ao Judiciário.
Essa realidade é recorrente no cotidiano profissional nos diferentes campos
sócio-ocupacionais. Quando o assistente social busca compreender essas múltiplas
expressões da questão social, decorrentes das relações da sociedade capitalista na
qual estamos inseridos, pode levantar elementos relativos à sua produção e
reprodução social. Além disso, com fundamento em conhecimentos, pode levantar
como essas expressões são vivenciadas por sujeitos sociais, com suas diferentes
trajetórias sócio-culturais e econômicas.
16 A ASSPTJ-SP realizou uma pesquisa importante neste sentido, que foi publicada no livro Serviço Social e Psicologia no Judiciário.
52
Assim, um dos meios de trabalho do assistente social é o conhecimento, o
que exige constante aprimoramento e capacitação (um dos direitos do
profissional),17 e um dos seus instrumentos de trabalho é a linguagem (Iamamoto,
2004; Magalhães, 2003).
Além disso, o assistente social, compondo esse trabalho coletivo, em que
compartilha de conhecimentos e competências, consolida também atribuições
privativas, ou seja, exclusivas de sua formação profissional.
Uma importante obra nesse campo foi realizada por Guerra (1995), em que a
autora discute a instrumentalidade do Serviço Social. Guerra, ao considerar também
a construção histórica da profissão, problematiza que
Há algo que precede a discussão de instrumentos e técnicas para a ação
profissional, que no nosso entendimento refere-se à sua instrumentalidade,
ou melhor, à dimensão que o componente instrumental ocupa na constituição
da profissão. Para além das definições operacionais (o que faz, como faz),
necessitamos compreender “para que” (para quem, onde e quando fazer) e
analisar quais conseqüências no nível “mediato” as nossas ações
profissionais produzem (p.30)
Inserido nesse contexto sócio-institucional, ideocultural e político, consolida-
se o projeto profissional, com suas conquistas, desafios e dificuldades. Nessa
inserção e permeado pelas tensões, inerentes às disputas de projetos, podem ser
17 Nos termos do Código de Ética Profissional
53
buscados elementos para melhor entendimento a respeito do trabalho do assistente
social, seus processos e produtos. Dentre eles, é possível verificar sua contribuição
junto às decisões judiciais e às jurisprudências que podem, ou não, propiciar a
efetivação de direitos legalmente previstos e/ou socialmente demandados.
Nesta investigação categorizaram-se as decisões judiciais e as
jurisprudências como produtos do trabalho coletivo realizado no Judiciário, com a
participação de vários trabalhadores, dentre os quais está o assistente social. Os
processos de trabalho serão analisados com base nos registros existentes nos
autos. Os produtos serão arrolados neste levantamento: talvez se expressem em
despachos, decisões pontuais e, por fim, nas decisões judiciais e jurisprudenciais,
manifestadas nos termos de audiência, em primeira instância, e nos relatórios e
acórdãos do Tribunal de Justiça, instância recursal.
Há um leque de relações que são estabelecidas nos diferentes processos de
trabalho do assistente social, em que afirmamos valores, influenciando nas relações
sociais, na cultura, que interferem diretamente na vida dos sujeitos e nas relações
socioinstitucionais. Nas reflexões de Iamamoto, o Serviço Social tem como produto
“... um efeito que não é material, mas é socialmente objetivo...” (2003 p. 67).grifo
nosso
54
1.2.1. Dimensão técnico-operativa do Serviço Social
Para a realização de suas atribuições, o assistente social utiliza-se
geralmente de entrevistas (individuais ou em grupo), visitas domiciliares, contatos
institucionais, discussão de caso com profissionais da rede de atendimento, reuniões
de equipe, pesquisas, dentre outras atividades.18
Além de Guerra (op. cit., 1995), que tratou da instrumentalidade do Serviço
Social ao problematizar o percurso histórico da profissão e sua teleologia frente à
realidade social, Fávero também traz reflexões importantes sobre os instrumentos e
técnicas que as diferentes profissões dispõem para realizar os processos de
trabalho:
Os instrumentos e técnicas de intervenção são meios geralmente
comuns a diferentes profissões. Os fundamentos é que distinguem a
especificidade de cada uma delas (2004, p. 36, grifo nosso).
Esta rica síntese de Fávero permite afirmar que a perspectiva a partir da
Teoria Social é que fundamenta o manejo destes instrumentos e técnicas. É a
perspectiva teórico-metodológica que direcionará as perguntas, trará “conteúdos” e
atribuirá significados neste processo e na sistematização das “respostas”.
18 No campo desta instrumentalidade, vale registrar a reflexão original de Fávero, que sugeriu, nos seus estudos, a importância da técnica da história de vida, que, contudo, não tem sido objeto de estudo e problematização na graduação em Serviço Social.
55
Assim, conforme a perspectiva, a visita domiciliar pode erroneamente ser
utilizada com olhar fiscalizador, ao invés de subsidiar a leitura das relações sócio-
familiares que os diferentes sujeitos estabelecem dentro de condições particulares.
Uma entrevista pode recair não na possibilidade de os sujeitos se expressarem, num
momento de reflexão, de reconstrução de suas trajetórias, de busca de direitos, de
elaboração de estratégias e projetos, mas num momento de aconselhamento
policiador e pretensamente normatizador de condutas e comportamentos. Pode ser
realizado não a partir do sujeito de direitos, mas do lugar de um profissional que
detém o controle e o saber. Neste sentido, mesmo com um discurso emancipatório,
o profissional pode revelar em suas ações um posicionamento que não considere as
determinações da vida social e, pior, com viés moralizador.
Vale ressaltar que a visita domiciliar é um importante instrumento na
perspectiva de respeito ao usuário, para que no seu próprio espaço possa se
expressar. Assim, é antes a possibilidade de conhecer melhor este sujeito, seu
percurso, suas conquistas, dificuldades, e as respostas que elabora diante das suas
vivências. É mais uma possibilidade de permitir voz e vez. Ainda que não se possam
igualar os lugares que cada um ocupa nesta relação criada por um conflito judicial, é
uma estratégia para o profissional identificar outros elementos que fogem à
artificialidade imposta pelas instituições. Fundamentalmente, pode ser uma ação que
permita empatia e alteridade. Por meio da visita é possível verificar as relações
sócio-familiares, muito mais a partir da lógica do pertencimento dos usuários em
seus territórios e dos seus laços de sociabilidade. Para tanto, é preciso se despir de
preconceitos e estar aberto a ouvir e ver a realidade.
56
É comum que nos despachos dos juízes esteja determinada a “realização de
estudo social por meio de visita domiciliar”. Não constitui um excesso que, no laudo,
se resgate que no cumprimento da determinação o técnico realizou o estudo social,
utilizando para tanto os instrumentos necessários para a situação a ser analisada.
Este tipo de posicionamento tanto auxilia na melhor compreensão do papel
profissional, quanto favorece a boa instrução dos autos, vez que os elementos que
são apresentados nos laudos são originados de procedimentos técnicos.
Evidentemente, as reflexões acima não podem ser “coladas” de forma linear à
realidade, posta a sua dinâmica contraditória e socialmente construída. Apenas
levantam aspectos que compõem os processos de trabalho, podendo evidenciar
posturas profissionais inseridas nas contradições da sociedade contemporânea.
Tem sido debatida, em espaços de discussão do Serviço Social, a relevância
de uma maior reflexão sobre a instrumentalidade do Serviço Social, a fim de
aprofundar o domínio da dimensão técnico-operativa da profissão. O avanço e
gradativa apropriação dos profissionais quanto ao debate das dimensões teórico-
metodológica e éticopolítica imprimiram a direção hegemônica da profissão. Ao
mesmo tempo, a fragilidade de organização da grande maioria dos profissionais os
faz buscar a legitimidade na sociedade por meio de respostas às demandas
imediatas. Os profissionais ainda persistem na falsa idéia de que “na prática a teoria
é outra”, evidenciando a dificuldade em se apropriar da teoria social crítica e articular
a dimensão teórico-metodológica. Vale observar que, por ser um debate que exige
substrato intelectual e cultural, torna-se menos atraente do que respostas imediatas.
Assim, é compreensível o interesse e a busca, nos espaços de discussão e
57
capacitação profissional, por questões instrumentais, em detrimento de uma crítica
macrossocietária e histórico-dialética.
Conforme Netto,
[...] o conservadorismo e as proposições pós-modernas se dão as mãos: o
combate e a crítica ao ideal de sociabilidade posto pelo programa da
modernidade jogam claramente no sentido de desqualificar a direção social
que se construiu contra o conservadorismo. Eis por que, aqui, investir na pós-
modernidade é também levar água ao moinho do conservadorismo.
[...] As implicações, naturalmente, estendem-se ao plano operativo: o
privilégio da ‘mudança cultural’, a centralização nas singularidades, a ênfase
nas especificidades, a valorização do trabalho focalizado etc. (1996, p. 118).
Por essa perspectiva, os processos de trabalho em que se insere o assistente
social, bem como a sua dinâmica e seus produtos, podem trazer pistas para esta
reflexão sobre a ação profissional e seus impactos. Para tanto, levantar
informações sobre o percurso da atuação em casos que geraram jurisprudências
pode trazer elementos significativos sobre a atuação do assistente social e a
contribuição do Serviço Social para a utopia da Justiça Social.
58
1.2.1.1. Procedimentos metodológicos: Estudo Social e Perícia Social
Fez-se necessário introduzir reflexões sobre a profissão, seus campos sócio-
ocupacionais e os processos de trabalho para, então, organizar os principais procedimentos
realizados pelo assistente social no Judiciário: o Estudo Social e a Perícia Social, bem como
as formas de registro: os relatórios, laudos e pareceres sociais. Para a realização desses
processos estão implicados instrumentos e meios, sobre os quais haverá referência
somente quando necessário. Portanto, a sistematização abaixo abordará como se
expressam os processos de trabalho em que se insere o assistente social.
ESTUDO SOCIAL
O estudo social é um processo metodológico específico do Serviço Social,
que tem por finalidade conhecer em profundidade, e de forma crítica, uma
determinada situação ou expressão da questão social, objeto da intervenção
profissional – especialmente nos seus aspectos sócio-econômicos e culturais
(Fávero, 2004, p. 42).
O Estudo social é, portanto, um processo em que se resgata a trajetória de
um indivíduo, grupo ou sujeito coletivo, criticamente, numa perspectiva não apenas
compreensiva, interpretativa, mas explicativa de possíveis causas da situação
vivenciada. O conjunto de ações na realização do Estudo Social deve ser efetivado
de maneira fundamentada, planejada e com vistas a reelaborar intelectualmente a
trajetória dos sujeitos, articulando-a a análises sobre as determinações do contexto
sociocultural, ideopolítico e econômico. Para tanto, são utilizados instrumentos,
59
técnicas e procedimentos fundamentados nos princípios ético-profissionais,
orientados pelos objetivos profissionais, institucionais e sociais.
PERÍCIA SOCIAL
A perícia, no âmbito do judiciário, diz respeito a uma avaliação, exame ou
vistoria, solicitada ou determinada sempre que a situação exigir um parecer técnico
ou científico de uma determinada área do conhecimento, que contribua para o juiz
formar a sua convicção para a tomada de decisão.
... quando solicitada a um profissional de Serviço Social, é chamada de
perícia social, recebendo essa denominação por se tratar de estudo e parecer
cuja finalidade é subsidiar uma decisão, via de regra, judicial. Ela é realizada
por meio do estudo social, e implica na elaboração de um laudo e na emissão
de um parecer (Fávero, 2004, p. 43).
Essa perícia é realizada tanto por um profissional funcionário do Tribunal,
nomeado nos autos para tal fim, quanto por profissionais contratados pelas partes,
denominados assistentes técnicos, que emitem o seu parecer após aquele emitido
pelo funcionário nomeado. Esta situação é mais usual nas Varas de Família e de
Sucessões.
Junto à determinação de realizar a perícia, podem constar quesitos
formulados pelos advogados/defensores a serem respondidos pelos técnicos. É
comum verificar em tais quesitos conteúdos que não são pertinentes ao Serviço
Social, ocasião em que o profissional geralmente responde como “quesito
60
prejudicado”. Por exemplo, há quesitos que tratam das condições psicológicas, de
traumas decorrentes dos conflitos, de situações relacionadas ao desenvolvimento
cognitivo da criança, enfim, de matérias pertinentes a outras profissões.
A perícia social, portanto, é o estudo social especificamente voltado para uma
avaliação e/ou julgamento.
1.2.1.2. Formas de registro
Relatório Social e Laudo Social
O relatório social é utilizado em diferentes campos sócio-ocupacionais do assistente
social. Quando utilizado no judiciário, cumpre a função de
informar, esclarecer, subsidiar, documentar um auto judicial [...] ou enquanto
parte de registros a serem utilizados para a elaboração de um laudo ou
parecer (Fávero, 2004, p. 45).
O laudo social é o registro formal decorrente do estudo social ou da perícia
social, que reúne as principais informações, a análise técnica e o parecer que
poderão servir como subsídio para a decisão judicial.
Ambos são elaborações técnicas, não sendo necessário apresentar todo o
detalhamento dos dados obtidos. Estes, contudo, devem ser registrados e
61
arquivados no Setor Técnico, para eventual necessidade de consulta pelo
profissional ou sua equipe envolvida no caso.
Parecer Social
O parecer social diz respeito a esclarecimento e análises, com base em
conhecimento específico do Serviço Social, a uma questão ou questões
relacionadas a decisões a serem tomadas (Fávero, 2004, p. 47).
No judiciário é mais usual que se apresentem os principais elementos
decorrentes do estudo social ou da perícia social e, após, adicione-se o fechamento
com o parecer social.
Conforme o Código Processual Civil, denomina-se parecer a manifestação do
assistente técnico contratado pelas partes sobre o conteúdo do laudo do perito
judicial. Assim, fará observações, comentários e questionamentos sobre tal
conteúdo.
[...] No âmbito do Sistema Judiciário, o parecer pode ser emitido enquanto
parte final ou conclusão de um laudo, bem como enquanto reposta à consulta
ou à determinação da autoridade judiciária a respeito de alguma questão
constante em um processo já acompanhado pelo profissional (Fávero, 2003,
p. 47).
62
Embora seja usual que, em outras profissões, os pareceres sejam uma
síntese ou uma conclusão, sem serem apresentados os elementos que
fundamentaram tal avaliação, o Serviço Social e a Psicologia no Judiciário ainda
formulam um corpo de informações para, posteriomente, apresentar o seu parecer
técnico. Verifica-se, por exemplo, que o médico pode afirmar em seu parecer “lesão
ocasionada por objeto contundente”, sem ter de explicar como chegou a essa
conclusão. No caso do trabalho do assistente social e do psicólogo, há uma prática
que parece ter consolidado que é preciso que expliquem como chegaram às
conclusões apresentadas. Tal observação indica um caminho adotado
majoritariamente por estes profissionais, que afirmam a identidade atribuída e a
construída no judiciário.19
É necessário, também, refletir sobre as dissonâncias nos processos de
trabalho, se estes colidem com os imperativos legais e os princípios éticos afirmados
pela categoria, suas repercussões nas relações e nos produtos do trabalho. Essas
indagações serão aprofundadas na análise dos casos escolhidos para esta
pesquisa.
19 Cf. Maria Lúcia Martinelli. Serviço Social: Identidade e alienação do Serviço Social, 2001.
63
CAPÍTULO II
Relações Sociais e Justiça:
2.1. Relações sociais e Ciência do Direito
Para a problematização proposta, faz-se necessária a aproximação de
algumas análises sobre o pensamento e o conhecimento jurídicos. Para tanto, foi
necessário recorrer a citações, por vezes longas, para melhor apresentar tais
análises.
Segundo Faria,
a abordagem estrutural da Ciência do Direito forjou um pensar jurídico
altamente sistematizante e pouco criativo. Em termos ideológicos, esse
pensar está impregnado pelo liberalismo político do século XIX e início do
século XX – ou seja, vinculado à concepção burguesa de Estado minimalista
64
e ao reconhecimento da individualidade humana como ponto básico de
referência institucional no plano social (família), econômico (propriedade) e
político (livre-arbítrio). Em termos metodológicos, a rígida estrutura lógico-
formal da dogmática jurídica embotou sua percepção, por um lado,
impedindo-a de identificar a base histórica de seu aparelho conceitual e, por
outro, atrelando a divisão intelectual do saber normativo aos inflexíveis
critérios da hierarquização e classificação das leis e dos códigos (1988, p.
25).
Nessa direção, não se pretende aqui aprofundar a discussão sobre a ciência
do Direito, mas debatê-la frente à realidade contemporânea e diante do caráter
normativo da legislação.
Faria, em suas produções, afirma que a Ciência do Direito parte de um
discurso aparentemente objetivo e técnico, com clara tendência a projetar a
possibilidade de conciliar severas contradições sociais. Deste modo, o conhecimento
e a prática jurídica afirmam cotidianamente a visão positivista da realidade.
Faria questiona tal tendência e argumenta que “... o conhecimento jurídico
deve ser analisado no conjunto das determinações sociais, políticas, econômicas e
culturais” (1988, p. 27).
Sob a mesma perspectiva, Warat (1988, p. 31) afirma que “o Direito é uma
técnica de controle social” e que, nesse sentido, as teorias jurídicas visam assegurar
a eficácia desse controle. De tal forma, também estão elaboradas para não permitir a
mudança, permeada pela ideologia dominante.
65
As elaborações reflexivas desses autores vêm ao encontro da preocupação
contida nesta pesquisa, ao tratar da pseudo-neutralidade do Direito positivo. A
realidade e sua dinâmica revelam cotidianamente facetas que interagem no conjunto
de determinações. E nesse contexto é possível identificar que diferentes sujeitos são
obrigados a responder com comportamentos irrealizáveis nas condições em que se
encontram. Por exemplo, já se abordou que a questão da negligência com os
cuidados de crianças/adolescentes não pode ser dissociada das condições
concretas mediatas e imediatas em que se verifica. Ou seja, se por um lado há um
acúmulo do que a sociedade considera “o bom trato"20 da criança e do adolescente,
há também a necessidade de confrontá-lo com as condições reais para sua
efetivação. Assim, por vezes, é possível identificar que os operadores do Direito
abordam o dever ser sem, no entanto, articulá-lo com a realidade e sua dinâmica.
Lopes considera que
há três espécies de conflitos emergindo com maior freqüência e intensidade
na última década, vindo a desaguar em controvérsias judiciais (1994).
Identifica que a primeira espécie é relativa a problemas do poder político,
onde há
[...] questões de limitação dos poderes, atribuições, funções e competências
entre os diversos poderes do Estado, sejam eles os poderes tradicionais do
liberalismo, sejam as novas agências e agentes, guindados de fato ou de
direito à linha de frente do cenário político (1994, p. 22-23)
20 Expressão criada pelo jurista Edson Sêda
66
Nessa linha, avalia a crise das instituições que não se adaptaram às
mudanças sociais. Assim, embora tenhamos o direito à participação social, a
organização do Estado prejudica o exercício desse direito, impulsionado pelas
demandas de grupos, numa disputa desigual.
Em segundo lugar há os conflitos chamados coletivos, divididos em duas
categorias.
Uns mostram grupos organizados que reivindicam benefícios sociais ou
individuais coletivamente fruíveis (saúde, moradia, educação, transporte etc.).
Nestes casos, a solução natural não é um ato de adjudicação (típico do
Judiciário), mas uma política pública. Trata-se de uma solução que requer não
apenas um reconhecimento de um direito subjetivo e de um dar/entregar ou
obrigar a dar/entregar alguma coisa ou alguma quantia de dinheiro, mas um
fazer ou prover um serviço público (contínuo, ininterrupto, impessoal etc.).
(idem)
Compreender esses conflitos na perspectiva dos direitos coletivos pode
favorecer a criação de estratégias para a exigibilidade da efetivação de políticas
públicas. A solução ideal seria conquistar direitos por meio do serviço público que
garanta políticas estatais – permanentes – e não, ações de governo – condicionadas
a um determinado período administrativo. É mais que conhecido que os serviços
públicos que não se tornam permanentes ficam sujeitos à interrupção conforme as
decisões do grupo político eleito para determinado período de gestão e seus cargos
políticos.
67
Explicitar a ausência do Estado na realização do seu papel e o
direcionamento das decisões que prejudicam direitos conquistados faz-se
fundamental para que a comunidade tenha uma atitude proativa na busca de seus
direitos.21 Sem esse entendimento dificulta-se a luta coletiva, mascarando como
individual o que é direito de toda uma coletividade. Além disso, ocorre a fragilização
das forças sociais que visam romper com a concentração de poder político e
econômico.
Essas lutas podem fortalecer os movimentos sociais em busca da efetivação
de tais políticas e, principalmente e enquanto princípio de maior relevância, a
incorporação de um sentimento de coletividade. Não apenas buscar aquilo que
individualmente o sujeito percebe como seu direito, mas reconhecer-se parte de um
coletivo que, embora excluído de um direito, tem possibilidade de exigi-lo
coletivamente. Esse processo traz muitos ganhos no tocante à organização da
população.
Uma terceira espécie de conflito, correspondente à segunda espécie de
conflito coletivo, é aquela aparentemente individual e tradicional (controvérsia
entre partes claramente limitadas e com objeto definido, como numa
obrigação contratual, uma separação, um crime ou uma contravenção). Na
sociedade de massas e de classes, porém, a repetição dos casos individuais
semelhantes indica a existência de classes, grupos, conjuntos em que a
21 No período da revisão deste texto estava em andamento a “CPI dos sanguessugas”, que verificou o desvio de recursos destinados à compra de ambulâncias, tendo suspeita de um grupo expressivo numericamente de parlamentares (no relatório parcial, em julho de 2006, eram 116 investigados). Foi noticiado que está sendo criado um sistema de controle do recurso público através dos Conselhos de Saúde. A notícia, embora traga a importância destes mecanismos de controle social, não esclarecia de que tais Conselhos deveriam estar em pleno funcionamento desde a aprovação do SUS.
68
solução de um caso antecipa a de outros semelhantes. Assim, a adjudicação
em um caso pode ter conseqüências em muitos outros semelhantes,
podendo-se pôr em dúvida se haveria necessidade de um processo judicial
completo para cada caso ou se bastaria uma decisão seguida do
reconhecimento dos casos individuais como participantes da mesma classe (o
problema da extensão da res iudicata). Um tipo ideal de conflito, assim, é o
das relações consumidor/fornecedor. Para complicar as coisas, os indivíduos
pertencem simultaneamente a grupos distintos: um consumidor de sapatos é
um fornecedor de serviços financeiros. Não apenas na esfera do direito
privado a "coletivização" é visível. Também no direito penal: a impunidade
vigorante no Brasil traz a marca do coletivo. Não é uma pessoa que passa
impune, mas uma classe, grupos inteiros jamais são punidos. Não apenas
deixam de ser punidos os responsáveis por crimes tradicionais e cometidos
individualizadamente Há os crimes novos, as fraudes mais diversas,
cometidas por grupos organizados, como prática comum em certos setores,
ou o dano causado ao patrimônio comum histórico, ambiental, urbano etc.)
(1994).
Temos observado que a dinâmica social e as mudanças estruturais trazem
impactos que distanciam os sujeitos de seu reconhecimento enquanto parte da
coletividade. Porém, se estes sujeitos percebem que outros também tiveram seus
direitos violados, pode-se fomentar uma luta maior, coletiva. Como exemplo, podem-
se verificar os direitos relacionados às conquistas das relações homoafetivas, seja
quanto aos direitos patrimoniais, seja quanto ao direito à maternagem/paternagem
por meio da adoção de filhos. As decisões jurídicas que favorecem o
reconhecimento desses direitos podem favorecer outras reivindicações.
69
Piovesan, Promotora de Justiça, expressa esse tipo de ação:
Nós temos também, paralelamente, que obter ganhos na Justiça, lidar com
casos paradigmáticos, exemplares, que possam criar jurisprudências
inovadoras. Tentar um encaminhamento da mesma maneira que fizeram os
portadores de HIV, até porque eles não podiam esperar a criação de uma lei,
então entravam com processos na Justiça. Depois, muitos ganhos de causa
permitiram que isso fosse universalizado por lei. O caminho dos direitos
humanos é duplo: no Legislativo e no Judiciário.22
Nesse sentido, a dinâmica da vida e a ampliação do exercício dos direitos de
alguns sujeitos são reiteradas na esfera judiciária, trazendo o costume como uma
fonte do direito.23 Se antes podíamos deparar com a alegação de que fatos como o
reconhecimento da convivência afetiva dentre pessoas do mesmo sexo ou a adoção
de crianças por este mesmo grupo seriam atos contra os costumes, hoje temos visto
o avanço no respeito à diversidade, quando a mesma situação é entendida como
costume que deve ser fonte para ampliar direitos.
Nesta problematização é preciso aprofundar a questão da interpretação da
realidade e da ideologia que a substancia. Conforme Warat:
A ciência social e jurídica, que aparece como suporte indiferente das relações
de poder, faz surgir, no entanto, uma instância ideológica, sobretudo e na
medida em que atribui significações discutíveis de realidade social, projetadas
imaginariamente como possíveis e desejáveis, ainda que nem sempre 22 Entrevista realizada em 12/10/2002 retirada da revista eletrônica EmCrise. http://www.emcris.com.br Acesso em 06 abr. 2004. 23 Fonte de Direito podem ser as leis,as jurisprudências, as Doutrinas e os costumes
70
factíveis, plasmando-as em discursos reificantes, a-históricos e com
pretensões de generalidades e universalidade (1988, p. 33).
É nesse contexto de análise que se insere o Serviço Social como uma das
profissões que participa da divisão sócio-técnica do trabalho e, no caso desta
pesquisa, inserida no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. É notável o
crescimento de situações que, por não terem sido respondidas pelas políticas
públicas, pela sociedade e pela família, acabam por ser apresentadas ao judiciário.
Considerando esse cenário, é necessário indagar se o trabalho especializado do
Serviço Social tem se posicionado criticamente diante dessa realidade e apontado
alternativas para a efetivação dos direitos. Faria (1991, p. 83) observa que a
realidade contemporânea apresenta novas formas de conflito, geradas em grande
parte pelos interesses do capital, e que “[...] a dogmática jurídica vai sendo obrigada
a assumir tarefas com dimensões ignoradas pelo liberalismo político que a inspirou”.
Lopes (1998, p. 113) provoca a reflexão questionando se os direitos sociais
seriam subjetivos. Referindo-se ao antigo Código Civil demonstra em seus
argumentos que a cada direito corresponde uma ação, que o assegura. Assim, a
falta de tutela, ou a falta de ação disponível, significa de fato a inexistência ou a
inexigibilidade do direito subjetivo. Outrossim, afirma que os direitos sociais
compõem uma classe de direitos destituídos de tutela. Por esse caminho, pergunta:
“Quais as ações que asseguram, garantem e viabilizam tais direitos sociais? A quem
corresponde o dever reflexo respectivo? (sic!)” Tal indagação
71
coloca-se na esfera da teoria geral do direito, pois trata do ordenamento de
modo geral e de uma categoria jurídica em si, antes de ser um instituto
jurídico particular. Coloca-se também na esfera da Teoria do Estado, pois diz
respeito às relações fundamentais da organização da cidadania.
Do ponto de vista prático, o tema é de relevância extraordinária para os
profissionais do direito: uma enorme série de questões hoje discutidas nos
tribunais, nos órgãos legislativos e na administração pública tem a ver com os
direitos sociais. O despreparo jurídico para lidar com o tema, no entanto,
parece tão grande quanto a gravidade das questões sociais brasileiras (1998,
p. 114).
Assim, a aplicação do Direito na contemporaneidade traz a exigência da
participação de outros atores na busca da efetivação da justiça.
É interessante e preocupante observar que mesmo os autores que tratam
dessas questões criticamente, pautados na perspectiva materialista-histórico-
dialética, conceituam e defendem suas reflexões compreendendo o Direito, o
Judiciário e a Justiça como assuntos de pesquisa e de trabalho exclusivos dos
chamados operadores do Direito (juízes, advogados, promotores de justiça,
procuradores de justiça, desembargadores). Porém, basta averiguar a realidade para
concluir que a instituição não caminha sem a atuação dos outros profissionais que
possuem e operacionalizam conhecimentos especializados de outras áreas (Serviço
Social, Psicologia, Medicina, Engenharia, Ciências Contábeis etc.) e sem o suporte
de outros trabalhadores (oficiais de justiça, escreventes, escrivãos etc.).
72
Problematizar se a Justiça é um assunto exclusivo dos operadores do Direito
é necessário para pensar o alcance e a efetividade da legislação vigente. Nas
palavras do importante jurista que debate essa questão, pode-se identificar parte
deste desafio:
A utopia faz sempre apelo à justiça. O ceticismo burguês acabou com a
justiça, como acabou com a verdade. A luta eficaz dos marginalizados
recolocou a justiça no centro da discussão. [...] Não há propriamente justiça:
há o fazer justiça. [...] Fazer justiça para o status quo é cumprir a lei. Mas a lei
desconhece a utopia. [...] A lei é o contrário da utopia, se for tomada pronta.
Aplicar a lei dispensa a justiça (Faria, 1988, p.71).
Assim, a Lei pode não alcançar a complexidade das contradições sociais se
for aplicada conforme a concepção positivista. Não se pode negar que as mudanças
sociais não são realizadas necessariamente em direção a valores libertários e
humanizadores: assim, há também o risco de que as alterações nas leis sejam
reacionárias. Ainda que teoricamente não se possam aprovar leis que regridam às
anteriores, trata-se também de disputa ideopolítica que se expressa nas instituições
e nas normas legais. Um importante exemplo é o debate sobre a redução da
maioridade penal, sendo que até 2004 havia vinte e dois projetos de lei em
tramitação24. Embora, conforme exposto no capitulo anterior, o ECA tenha sido
24 Cabem alguns registros sobre um caso muito publicizado: em 2003 quatro adultos e um adolescente de 16 anos foram acusados por estupro e homicídio de um casal de namorados. Em julho de 2006 foi realizada a cobertura jornalística sobre o julgamento de três desses adultos, quando em todas as matérias jornalísticas era anunciado que, contudo, “o adolescente jamais será julgado porque o ECA não permite”. Na verdade, o adolescente foi internado na FEBEM logo ao ser
73
aprovado no bojo das lutas sociais, é preciso persistir na sua afirmação, defesa e
implementação. O ECA afirma uma nova concepção, mas na sua realização se
confrontam resistências que representam os grupos que reconhecem na justiça
retributiva o único meio de solucionar conflitos sociais.
São essas as contradições, permeadas por inovações e resistências, que
trazem disputas na direção ética e política da sociedade. Assim, o grande desafio do
Judiciário é efetivar Justiça e não apenas aplicar a lei.
2.1. Transformações sociais e judiciário
Faria defende a
visão do direito como processo transcendente a questão relativa a fontes
formais do direito, pois os antagonismos, as clivagens e a transformação
rápida da sociedade de classes corroem, na prática, o monopólio da produção
jurídica detido pela lei. Logo, considerando o ordenamento jurídico como um
construído histórico, isto é, como um produto do universo cultural, em
permanente vir-a-ser, o jurista já não se concentra mais no exame de um
sistema de regras postas e transmitidas, mas sim, na busca de um direito in
encontrado; foi julgado e recebeu medida de internação de três anos. Portanto, a mídia apresentou os fatos de maneira distorcidas. A mídia, assim, distorceu os fatos visivelmente. Na ocasião do crime, uma ex-professora do adolescente disse algo como: “Ele era tão difícil que foi expulso da escola aos nove anos de idade”. Ora, realmente existisse interesse público a médio e longo prazo, e não apenas a reação imediata ao fato (que realmente foi um crime hediondo), teríamos no mínimo um amplo debate sobre a política educacional e a incompetência e incapacidade das escolas em trabalhar a sociabilidade, componente fundamental do processo pedagógico que priorize a formação do cidadãos para a vida. Vale salientar que o crime de Pimenta das Neves, que assassinou a namorada, e a absolvição do Coronel Ubiratan não provocou debates senão entre os defensores de Direitos Humanos. A mentalidade punitiva é tão arraigada que, ao invés haver maior engajamento social para se evitar que outros adolescentes tenham atos como o citado, a sociedade se mobiliza para pensar maneiras de punir. A punição, por lógica, viria após a ocorrência e, assim, o dano já teria sido causado.
74
fieri: um conjunto de regras em movimento, sujeito a contínua produção e
reprodução, onde se destacam as forças extralegislativas e extra-estatais.
Com isso, o objeto da Ciência do Direito acaba sendo deslocado: em vez do
conjunto de valorações dos fatos sociais cristalizados em regras jurídicas, ele
é constituído pelos próprios fatos sociais dos quais as regras são meras
valorações (1988, p. 24).
Martha de Abreu Esteves (1989) realizou uma importante pesquisa que
investigou como o Judiciário carioca, nos primeiros anos do século XX, atuou em
relação a crimes sexuais, cujas vítimas eram em sua maioria mulheres pobres
violentadas por seus patrões. A pesquisadora verificou uma tendência de julgamento
moral, onde o crime contra a mulher tinha pouca evidência e, majoritariamente,
invertia-se a ótica em relação aos fatos, de maneira moralizadora, culpabilizando-a
pela violência sofrida. Abreu verificou nos casos estudados os padrões de
comportamentos e valores aceitos, que se expressaram, tendo como resultado um
certo entendimento de culpa e inocência daquela época. Um fator importantíssimo
foi o de que, em tal período, as mulheres que saíam sós de casa, sem o
acompanhamento de um homem (marido, irmão ou parente mais velho) ou da mãe,
eram mal vistas socialmente e isso, se em tal situação sofria uma violência sexual,
era alvo de um julgamento antecipado sobre sua culpa. Ora, e qual seria a solução
para as jovens solteiras que precisavam trabalhar para o seu sustento e de sua
família? Além disso, era comum viverem como agregadas da família para a qual
realizavam serviços domésticos. No entanto, essas condições de vida eram pouco
consideradas e o aparelho judiciário somava, nesse contexto, várias funções
moralizadoras e de controle: controlava a moral dos pobres, estabelecia normas
sexuais e padrões para o comportamento feminino, justificando os atos violentos
75
cometidos por homens. Além disso, controlava também os nascimentos ilegítimos
(gerados sem a união formal, ou de homens casados com jovens solteiras) e até
preservava o direito dos homens para que não tivessem de assumir mulheres
desonestas como esposas. Isto porque o casamento era uma correção possível
caso fossem condenados pelo defloramento ou ofensa às mesmas. Todos esses
componentes eram aceitos visando a manutenção da ordem social defendida na
época.
O estudo de Abreu, ao tratar de situações ocorridas no início de 1900, traz
elementos que demonstram o quanto os valores sociais e a ideologia direcionam as
instituições e as práticas sociais.
Seu estudo expressa, ainda, que os fatos analisados devem ser considerados
dentro do contexto sócio-político, diante do desenvolvimento econômico, social e
cultural, bem como das forças sociais que se enfrentam para consolidar
hegemonias. Sem articular a forma de manifestação desses fatos às determinações
maiores podem-se tecer afirmações insuficientes, superficiais ou, pior, serem
estabelecidas não em função do conhecimento, mas com o propósito de justificar
situações de opressão, exploração e outras expressões de violência.
Os estudos de Faria têm buscado explicitar os danos à sociedade quando não
se articulam esses elementos:
O resultado desse conhecimento alienante é conhecido: a formação de um
conjunto de idéias gerais, proposições falsamente científicas, juízos éticos e
pontos de vista hegemônicos, todos contribuindo para a consolidação de um
76
discurso aparentemente objetivo, técnico, ideologicamente depurado e capaz
de provocar efeitos de realidade e coerência, de projetar uma dimensão
harmoniosa das relações sociais e de justificar a imposição de um padrão
específico de dominação com base na “natureza das coisas”. Além de
conciliar retoricamente as contradições sociais, esse “senso comum” dos
juristas também influi decisivamente tanto na definição dos “verdadeiros”
problemas da Ciência do Direito quanto nos seu possíveis equacionamentos,
“resolvendo-os” com esquemas ideais destinados à eliminação das
antinomias, à integração das lacunas e à identificação dos casos de abuso de
direito (1988, pp. 25-26).
As produções de Faria são importantes por demonstrar que o direito positivo
tem sido também um dos fatores que levam ao descompasso do Judiciário frente às
graves situações que lhe são colocadas. Mas, é verdade que também os valores
quanto ao que é justo e ao que é esperado da instituição são motivo de reflexão. Por
exemplo, a forma com que é tratada, no Brasil, a maioria das pessoas que cometem
crimes causa espanto e indignação àqueles que recusam toda forma de violência.
Porém, pessoas que discursam exigindo justiça consideram, muitas vezes,
adequado esse tratamento, ainda que seja cruel, desumano e violador das
legislações e protocolos internacionais. Esta é uma representação de justiça que
está arraigada na cultura da sociedade brasileira. Chauí (2004) atribui essa
representação à constituição autoritária do Brasil como nação, que até hoje possui
trabalho escravo, tem agravada a superexploração do trabalho, prostitui meninas e
trafica seres humanos.
77
Verificamos em estudos que alguns juristas têm sido importantes atores no
tensionamento pelo respeito aos direitos humanos, entendendo sua indivisibilidade e
a busca de uma atuação dos profissionais com visão crítica, que busque
compreender as contradições sociais existentes, defendendo uma sociedade sem
opressão. Shelma Kato, desembargadora do Tribunal de Justiça do Mato Grosso,
expressa bem este entendimento:
Só uma visão do direito voltada para a realidade social pode salvar o país e
impedir a desagregação de seu povo. Essa visão se dá através da
consciência crítica, que não pode ignorar as forças conflitantes a nível de
infra-estrutura, para que o capital, deificado em detrimento do suor humano,
não perpetue as injustiças a nível de superestrutura. [...] Através da visão
dialética, eminentemente crítica, o juiz coloca-se dentro da realidade social e
identifica as forças que produzem o direito, para estabelecer a relação entre
esse direito e a sociedade. Nessa postura, o juiz pode e deve questionar a
própria legitimidade da norma, para adequá-la à realidade social.
[...] Comprovado que o direito não é neutro; que a norma legal nem sempre é
o ponto de equilíbrio entre interesses conflitantes; que o poder muitas vezes
atua em benefício de uns em detrimento de muitos; que, no Brasil, a maioria,
constituída das classes trabalhadoras, está marginalizada e não tem acesso
aos bens da produção – em suma, que a ordem legal é injusta e opressora –
em que consiste a prática libertadora do advogado em função de seu
compromisso político? Ela se inicia pela defesa dos direitos individuais
violados emergentes nos conflitos motivadores da lide
[...] Mas a prática libertária só adquire dimensão social na medida em que
transcende tais limites e se manifesta coerentemente em todos os atos da
78
vida do homem-advogado. O compromisso político refere-se aos atos da vida
pública e particular, e não à atividade política e profissional em si. Ele envolve
a prática da libertação das classes dominadas (Kato, apud Faria, 1997, p.
10).25
É uma tarefa árdua e coletiva desmistificar a afirmativa de que os conflitos
são gerados exclusivamente por comportamentos individuais, verificando as
complexas relações existentes entre os contextos social, econômico, político, cultural
e como trazem conformações imprevisíveis quando se trata de relações humanas,
tensionadas por carências e violações. Pode-se afirmar que é importante o trato
individualizado daqueles que cometem crimes, infrações, contravenções penais, mas
sem retirar esse sujeito do contexto mais amplo, saturado de determinações sócio-
históricas.
Diz ainda Lopes,
O que está em jogo é o conjunto de instituições básicas da sociedade: leva-
se ao Judiciário o conflito entre projetos distintos de instituição social, uns
conservando as discriminações sociais e pessoais, outros propondo uma
sociedade menos excludente e opressiva. Em outras palavras, o processo de
judicialização dos conflitos no Brasil está atravessado por demandas de
justiça dinâmica (alteração de regras), algo que só pode ser realizado
judicialmente na esfera da discussão da constitucionalidade de leis, atos e
25 CF KATO, Shelma Lombardi de. O advogado e o compromisso político da libertação. Revista dos Tribunais, 589, nov. 1984. apud Faria: Direito e Justiça: a função social do Judiciário-, p.10-9, 1997.
79
políticas públicas. Além disso, está em questão a justiça distributiva
(realocação de riqueza e autoridade) (1994, p. 25).
Lopes considera, assim, que
trata-se de uma tensão permanente entre aplicação retrospectiva de leis
tradicionais em situações novas, gerais e que precisam de regulação (idem)
2.2. Direitos sociais e justiça
O percurso reflexivo acerca do direito e da justiça que se realiza nesta
pesquisa se insere nos limites da sociedade capitalista contemporânea. Assim, há
dois eixos analíticos que se cruzam: o primeiro, situado na realidade concreta, com
as contradições geradas pelo próprio sistema capitalista, nas relações de produção e
reprodução social e, um segundo, numa tentativa de buscar elementos para
aprofundamento do debate societário.
Tratando-se aqui de uma pesquisa científica, impondo-se a necessidade de
situar limites nas reflexões em curso, é também importante esclarecer algumas
questões com base na perspectiva societária anunciada no conjunto deste trabalho.
Para tanto, o texto “Socialismo Jurídico”26 pode trazer elementos para
fundamentar algumas questões que serão aprofundadas na análise dos casos
escolhidos. Este texto foi originalmente publicado em 1887, como resposta aos
26 Friedrich Engels e Karl Kaustky, 1995.
80
ataques que Marx vinha sofrendo, e buscou construir uma crítica à ideologia jurídica.
Na apresentação da sua publicação brasileira, Naves sintetiza que:
A crítica à visão jurídica aparece, de modo ainda mais expressivo, na análise
que Engels e Kautsky realizam da passagem da concepção teológica de mundo
feudal à concepção jurídica de mundo burguês, na qual se revela a natureza
especificamente burguesa do direito, como forma social intimamente relacionada ao
processo de trocas mercantis (1995, p. 15).
Nessa crítica, os autores afirmam que as normas jurídicas criam
artificialmente uma igualdade – a jurídica – estabelecida em contratos, com regras
universais. Assim,
[...] Temos aqui alguns elementos que autorizam a formulação de uma
concepção crítica do direito, que permita denunciar o “fetichismo da norma”, e
se oponha à teoria normativista, para a qual o direito aparece somente como
um conjunto de normas garantido pelo poder coercitivo do Estado” (idem, p.
15)
Consideramos também importantes as reflexões de Pachukanis publicadas no
livro intitulado “Teoria Geral do Direito e Marxismo”, originalmente publicado em
1924. Segundo ele, a Teoria Geral do Direito deve trazer explicações tanto sobre o
conteúdo como sobre as formas jurídicas, enquanto produtos históricos. Refletindo
principalmente sobre o conteúdo da regulamentação jurídica frente a uma
determinada época, pondera que:
81
[...] não resta dúvida de que a teoria marxista não deve apenas examinar o
conteúdo material da regulamentação jurídica nas diferentes épocas
históricas, mas dar também uma explicação materialista sobre a
regulamentação jurídica como forma histórica e determinada. (1988, p. 21)
Pachukanis provoca a reflexão sobre a necessidade de aprofundamento não
sobre o que chamou de “fenômeno jurídico”, mas no sentido de desmistificar quais
são as determinações que criam vínculos no conteúdo do direito, os quais têm
influência na conformação da estrutura do sistema jurídico.
Frente a essas reflexões na perspectiva do projeto socialista, em alguns
momentos da presente pesquisa colocou-se num impasse o avançar das reflexões,
dado que, em função dessa perspectiva de análise, evidencia-se o papel
conservador do Judiciário, onde há uma ilusão de que a norma jurídica efetiva o
direito, e mascara-se o conflito coletivo como sendo individual. A angústia era a de,
ao realizar a investigação proposta, não visualizar saídas em direção aos valores
emancipatórios.
As análises macrossocietárias direcionaram as reflexões sobre essa atuação,
levando a questionar se realmente é possível uma ação profissional não focalizada,
pontual e fragmentada nos casos atendidos no Judiciário. É evidente que existe a
atuação na defesa dos direitos sociais, fundamentando suas interpretações e
intervenções na leitura sobre as determinações socioeconômicas. Tem sido buscado
pelos assistentes sociais o exercício profissional de forma articulada à defesa de
outra sociedade, “sem dominação-exploração de classe, etnia e gênero”.27 Porém,
27 Um dos Princípios Fundamentais do Código de Ética do Assistente Social
82
nestas indagações, permanecia a angústia de que, ao atuar na dinâmica dos litígios,
o assistente social estaria apenas amortecendo situações crônicas.
Mezsáros expressou uma formulação bastante esclarecedora sobre as
possibilidades e os limites da atuação crítica, ainda que inserida no atual sistema:
O radicalismo metodológico da abordagem marxiana e sua importância para a
época em que se originou são determinados pela profunda crise de uma
ordem social cujos problemas só podem ser solucionados por uma
reestruturação radical da própria ordem social, nas suas dimensões
fundamentais. Na falta de uma tal solução, podem-se apenas manipular,
“pouco a pouco”, as contradições socioeconômicas em questão e suas
manifestações ideológicas, adiando temporariamente a erupção da crise
iminente sem, no entanto, instituir um remédio estrutural adequado (2004, p.
307).
Assim, os profissionais que “manipulam pouco a pouco” as situações
cotidianas, têm o desafio de viabilizar o acesso aos direitos dos cidadãos que
atendem no judiciário. Se, por um lado, atuam cientes de que muitas vezes realizam
ações que afetam o emergencial, o imediato e o superficial, por outro, há uma série
de mediações que se realizam nesse fazer profissional comprometido com a
emancipação dos sujeitos. Sem esta percepção, pode-se recair num discurso
messiânico (que também apenas traz falsa resolução) ou na inércia intelectual e
política.
83
Outro debate necessário é a institucionalização do conflito por meio de
mecanismos do Estado, em que persiste a mesma ilusão jurídica de igualdade, pois,
na verdade, quando a luta de classes se expressa no terreno jurídico,
[...] a luta já está antecipadamente ganha pela burguesia, já que o
funcionamento do direito implica necessariamente a reprodução das relações
sociais burguesas.
Essa legalização das lutas de classes significa que as formas de luta do
proletariado só são legalmente reconhecidas se observam os limites que o
direito e a ideologia jurídica estabelecem (Naves, 1995, p. 16).
Analisando a inserção do Serviço Social nesses enfrentamentos teórico-
metodológicos e político-ideológicos, pode-se afirmar que sua contribuição pode ser
a de explicitar as severas contradições da realidade. Desde sua inserção, o Serviço
Social contribui cotidianamente na realização das funções do Judiciário e traz
influências para o atendimento dos cidadãos (embora nem sempre garantindo a
democratização, reafirmando burocracias). Na vigência do ECA os profissionais das
equipes técnicas têm participado, embora com pouca expressão numérica, mas de
forma representativa, nos debates sobre as políticas públicas e legislações. Como
exemplo, temos a atuação da AASPTJ-SP com outros atores como representantes
do Fórum Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, do
Ministério Público, do Núcleo de Pesquisas sobre Criança e Adolescente, do
Conselho Regional de Serviço Social, dentre outras várias organizações, no debate
sobre o Projeto de Lei que dispõe sobre Adoção. Este coletivo verificou que, embora
esse Projeto afirmasse pretender garantir a convivência familiar por meio da adoção,
na verdade acelerava a destituição do poder familiar. A Carta de São Paulo,
84
resultado dos trabalhos desse coletivo, representou a posição deste Estado contrário
ao Projeto. Houve um olhar amplo, considerando aspectos da técnica jurídica, dos
fatores sociais, psicológicos, das pautas do movimento em defesa dos direitos da
criança e do adolescente na exigência do cumprimento do ECA e outras legislações
garantistas. Assim, evidencia-se a riqueza da articulação das forças junto com
outros atores coletivos e em espaços de luta política para além das instituições.
Essa conjugação de forças poderá viabilizar respostas para as necessárias
mudanças estruturais no “bom trato” da criança e do adolescente.
Outra contribuição importante foi a realização da pesquisa, na capital paulista,
coordenada por Fávero (2001), realizada por um grupo de assistentes sociais que
atuam no Tribunal de Justiça, sobre o rompimento de vínculos entre crianças e seus
pais (na maioria, apenas mães). Nesta pesquisa, que expressa o compromisso
técnico, científico e político dos profissionais, evidenciou-se a determinação sócio-
econômica para o desfecho da maioria dos casos, culminando na destituição do
poder familiar.
Os casos julgados permitem apreender um dos produtos gerados pelos
processos de trabalho no Judiciário, que envolvem diferentes atores. A atuação dos
operadores do Direito pode não apenas aproximar a lei à realidade social, mas pode
gerar jurisprudência e pautas para o debate sobre a Justiça.
Assim, se o Poder Judiciário é inerte, ou seja, atua somente sob provocação,
não só os operadores do direito, mas os profissionais já citados têm o papel de
trazer à tona elementos que expliquem os conflitos postos nos autos, não em si
85
mesmos, mas na processualidade histórica da sociedade e na forma com que
impactou e foi vivenciada por sujeitos sob essas mesmas determinações. Trata-se
do desafio de explicar como e por quê sujeitos determinados agiram desta ou
daquela forma, por haver determinantes sociais das suas condições objetivas e
subjetivas, impostas pela produção e reprodução das relações sociais nos marcos
do capitalismo contemporâneo.
É fundamental recusar a perspectiva de análise psicologizante28 dos conflitos
e contextualizá-los no universo macrossocietário, nas suas dimensões políticas,
econômicas, sociais e culturais, todas construídas no processo histórico. Ou seja,
embora as questões subjetivas sejam também determinações, são decorrentes das
condições objetivas postas na produção e reprodução social. Aos assistentes sociais
e psicólogos cabe articular as dimensões socioeconômicas e subjetivas vivenciadas
pelos sujeitos.
Naves, ao refletir sobre o texto “Socialismo Jurídico”, na apresentação desta
obra, explicita uma das significativas contradições e ilusões colocadas pelo
ordenamento jurídico burguês:
A emergência da categoria de Sujeito de Direito vai possibilitar, então, que o
homem circule no mercado como mercadoria, ou melhor, como proprietário que
oferece no mercado a si mesmo (1995, p. 16).
Enfim, entende-se, com fundamento na teoria social de Marx, que não é
possível avançar na construção de uma sociedade igualitária, com divisão de
riquezas e partilha de oportunidades, nos marcos do capitalismo. O Código de Ética
28 Este termo é utilizado quando se refere ao sentido vulgar e mistificador dos conhecimentos da Psicologia, que já foram utilizados em outros momentos desta ciência para culpabilizar indivíduos
86
do Assistente Social traz o conceito de democracia de forma muito clara: é a
socialização da participação política e da riqueza socialmente produzida.
Com base no pensamento histórico-dialético, Naves expressa um grande
desafio:
Toda a complexidade da questão reside em que a classe operária deve
apresentar demandas jurídicas ao mesmo tempo em que deve recusar o
campo jurídico. [...]
As reivindicações jurídicas do proletariado devem conter um elemento
desestabilizador que “perturbe” a quietude do domínio da ideologia jurídica
(1995, p. 19).
Portanto, enquanto não é possível uma outra ordem societária, as lutas
devem ocorrer de forma permanente, tensionando e alterando as relações, nas suas
mais básicas às mais complexas determinações.
2.3. Criança e Adolescente: assunto de Polícia ou de Política Pública?
As reflexões desta pesquisa transitam pela defesa dos direitos da criança e
do adolescente. Por isso, é necessário levantar alguns elementos históricos para
maior aprofundamento analítico.
No decorrer da história da humanidade é possível identificar algumas
tendências de análise e atendimento em relação ao segmento infanto-juvenil.
87
O jurista Edson Seda29 fez uma elaboração na perspectiva dos defensores
dos direitos dessa população e do processo democrático e participativo, que tem
atuado nessa direção:
O Estatuto [da Criança e do Adolescente] reflete o momento histórico
brasileiro e cada detalhe das suas exigências reflete, por sua vez, algum tipo
de mazela por que passa nossa população infanto-juvenil. Quanto mais ele
parece exigente em suas normas, mais ele espelha a falta de atendimento de
direitos de seus destinatários, seja pelo mundo governamental, seja na
própria trama das relações interpessoais. Sua aparência de lei boa demais
para o Brasil de hoje é o retrato em negativo do que ocorre à nossa volta!30
(s/d)
Comparando os dados de pesquisas sobre a criança e o adolescente,
principalmente os que se encontram em situações de vulnerabilidade, é possível
afirmar que historicamente a política social voltada a este segmento esteve
relacionada ao assistencialismo e à justiça.
29 Jurista, procurador federal aposentado. 30 O novo direito da criança e do adolescente. s/d. http://www.edsonseda.com.br
88
2.3.1. Política Social, Justiça e a infância vulnerabilizada: assistir para prevenir
Observa-se na história do desenvolvimento da sociedade ocidental uma
diversidade no trato que foi dado à criança vulnerabilizada, principalmente a que vive
em situações de pobreza e abandono. Porém, também se incluem naquela condição
as com deficiências físicas, mentais ou múltiplas, com doenças crônicas, e também
as que foram abandonadas devido a fatores de ordem moral (gravidez indesejada
causada por incesto, abuso sexual, “relacionamento extraconjugal”, “fora do
casamento” etc.) que ocorreram também entre famílias abastadas financeiramente.
Um aspecto relevante é que nos últimos séculos há uma permanência da
articulação entre o judiciário, a segurança pública e as práticas assistenciais
relacionadas à criança e ao adolescente.
Com o crescimento da população infanto-juvenil, que se avolumava com as
famílias que migravam para os centros urbanos devido à industrialização, começava
a haver um enfoque maior para o controle das crianças em abandono e que
cometiam pequenos delitos nas cidades.
[...] no final do século XIX, os juristas deixaram seu campo de atuação
tradicional e entraram decididamente no setor da infância desvalida e
delinqüente (Marcílio, 1998, p. 194).
89
Naquela ocasião, fundamentavam-se as análises jurídicas em Lombroso,
criminologista que pautava que as “tendências naturais” poderiam ser refreadas por
rigoroso controle e uma educação rígida; as idéias positivistas de Augusto Comte
ganhavam força na defesa de profissionais e da sociedade de que a “infância
problemática, desvalida e delinqüente” deveria ser separada em instituições totais
para correção de seus comportamentos.
Assim,
Medicina e Direito reelaboram, então, suas propostas de política assistencial,
enfatizando a urgência na reformulação das práticas e de comportamentos
tradicionais e arcaicos, com o uso de técnicas “científicas”. Seus adeptos
criticavam a velha assistência caritativa e davam ênfase à cientificidade da
filantropia [...] (idem, p. 195).
Contudo, essa defesa era de enfoque higienista, como parte constituinte de
uma intervenção junto ao “problema das crianças”. Nessa fase é cunhada a distinção
entre “criança” e “menor”, sendo esta categoria utilizada até hoje, no sentido
pejorativo e discriminatório.
Do início do século, quando se começou a pensar a infância pobre no
Brasil, até hoje, a terminologia mudou. De “santa infância’, “expostos”,
“órfãos”, “infância desvalida”, “infância abandonada”, “petizes”,
“peraltas”, “menores viciosos”, “infância em perigo moral”, “pobrezinhos
sacrificados”, “vadios”, “capoeiras”, passou-se a uma categoria
dominante – menor. O termo menor aponta para a despersonalização e
90
remete à esfera do jurídico e, portanto, do público. (Moncorvo Filho
apud Marcílio, 1998, p. 195).
Essa despersonalização possibilitou a intervenção ainda maior sobre tais
crianças enquanto objetos de intervenção.
A filantropia foi reforçada nesse período, em que a caridade foi repensada
com fundamentos mais humanistas, mas que, por suas características próprias,
foram (e são) incapazes de ter impacto na sociedade.31
No decorrer da história, inúmeras estratégias foram desenvolvidas e um
exemplo que perdurou por séculos foi a Roda dos Expostos, criada em Roma em
1471, mecanismo que teve sua concepção principalmente pautada na defesa da
ordem, da moral e do desenvolvimento das nações (MARCÍLIO, 1998). Combateria o
aborto e o infanticídio, bem como era uma forma de preservar a moral das famílias
cujas mulheres “erraram”.
Contudo, justamente os médicos higienistas começaram a combater a roda
dos expostos, que acabavam por “esconder” o que a sociedade não poderia tolerar,
que eram as mudanças dos costumes tão defendidos. Observou-se também que
havia um altíssimo índice de mortalidade das crianças das Rodas, por serem mal
cuidadas tanto naquelas casas, quanto pelas amas, fora dali. Alguns arquivos
demonstram que crianças também faleceram por falta de estimulação, ou seja, por
privação afetiva fundamental para o desenvolvimento infantil. Associando tais fatos,
31 Saliente-se que a solidariedade é um valor importante para a sociedade, mas com tal natureza, não pode consolidar direitos e ainda retira-os da arena do coletivo e do social.
91
os higienistas propuseram uma estratégia de combate à mortalidade infantil e ao alto
índice de nascimentos ilegítimos: a educação das mulheres.
Esta é outra marca persistente na política social: o papel atribuído à mulher
na proteção dos filhos e na prevenção do abandono e do crime. Há uma ênfase em
responsabilizar a mulher, a partir do enfoque mítico do amor natural maternal, sem
problematizar a construção histórica dessas relações. A cultura machista perpetuada
também por essa desresponsabilização do genitor é comum até os dias atuais,
quando enfrentamos o impacto da reestruturação produtiva e todas as suas
conseqüências nas relações sócio-familiares.
As Rodas foram extintas na Europa, mas aconteceram resistências no Brasil.
Uma das primeiras vozes contra a Roda no Brasil foi a do presidente da província do
Rio Grande do Sul, em 1858, quando se pronunciou contra a mera conveniência da
sua preservação. Somente em 1920 o enfrentamento conjugado de médicos e
juristas ganhou força. Em 1927 é aprovado o Código de Menores, que em seu artigo
15 tratava da extinção do sistema das Rodas.
Outra figura significativa nesse processo foi o médico provedor da Santa Casa
de São Paulo, que elaborou em 1932 “um longo e erudito relatório que demonstrava
que a Roda não trazia benefício algum para ninguém” (Marcílio, 1998, p. 200). A
Roda dos Expostos no Rio de Janeiro foi extinta em 1938; as últimas no mundo a
serem extintas foram as da Bahia e de São Paulo, esta em 1944, portanto, 17 anos
após a aprovação da Lei que as extinguia.
92
Vale ressaltar que no século XIX foram criados inúmeros “asilos” para abrigar
“crianças expostas”. No caso das meninas, estas recebiam educação geral, “prendas
domésticas” e aulas de artesanato, com o intuito de serem preparadas para agirem
“como boas mães” (ou seja, alimentar e prevenir a mortalidade ou o abandono). Os
recursos obtidos com a venda dos artesanatos eram aplicados em dotes para
promover seus casamentos. Os meninos também recebiam educação geral, mas
com ênfase na sua profissionalização em atividades de oficinas e agricultura. Esses
“asilos” não atendiam somente crianças expostas e órfãs, mas aquelas oriundas das
famílias pobres, sendo estas consideradas incapazes de educar e formar um
cidadão. Reforçava-se a concepção de abrigos como instituições totais, preparando
as crianças para o mundo do trabalho, combatendo a ociosidade, a prostituição, o
crime e o abandono.
2.3.2. O bem-estar do menor
Rizzini (1993, 2004) resgatou que o Juízo de Menores no Brasil foi criado em
20/12/1923, pelo decreto nº 16.272, o qual estabeleceu uma nova prática jurídica em
relação ao “menor”. Este era examinado e qualificado, por meio “de ‘pedagógico’,
‘médico-pedagógico’, ‘médico-psicológico’, ‘de discernimento’ e de ‘qualificação do
menor” (1993, p. 83). Esses procedimentos permitiam enquadrá-lo conforme suas
características morais, físicas, sociais, afetivas e intelectuais. O objetivo era chegar a
93
um diagnóstico com caráter científico sobre sua “personalidade normal ou
patológica”.
Rizzini verificou que no decorrer da atuação do Juízo, gradativamente foram
se incorporando ao entendimento das “causas morais” da situação do menor
elementos relacionados com as mudanças, como problemas de ordem biológica
(hereditários, distúrbios físicos e psíquicos) e de desenvolvimento social (urbanismo,
industrialismo e pauperismo). Porém, a mesma autora identificou que o Juízo,
pautado nesses exames técnicos, depositava no indivíduo as causas de seu
comportamento, garantindo legitimação científica a uma prática de exclusão e
discriminação.
Essa autora, estudando o período de 1923 a 1941, identificou que houve uma
ênfase no uso técnico (como acima ilustrado) e doutrinário. Neste caso, evidenciou-
se nos textos doutrinários a presença de explicações da medicina, da psiquiatria e
da psicologia. Porém, sua pesquisa verificou que um juiz (Sabóia Lima) havia
denunciado que, ainda que se conseguisse realizar tais diagnósticos, havia outro
problema: que as instituições onde se internavam as crianças e adolescentes não
seguiam as prescrições lá indicadas. Ou seja, já havia a lacuna entre a orientação
de tratamento e o atendimento efetivo, seja por falta de qualificação, seja por
ausência do recurso para tanto. Vale salientar, contudo, que, apesar dessas
considerações, o enfoque era a da “reforma do menor”, realizada a partir de
conhecimentos científicos que a justificariam. Tal perspectiva se configurava numa
prática discriminatória e de reclusão de crianças e adolescentes, sem qualquer
direito a garantias processuais e de defesa.
94
O Código de Menores de 1927 tinha como eixo o controle da infância e da
adolescência abandonada e em risco, “potenciais delinqüentes”. Neste Código, o
Juiz de Menores tornou-se a maior autoridade, cabendo-lhe o duplo papel de
fiscalizar e punir. Para apoio dessa ação do judiciário, foi criado o SAM, Serviço
Nacional de Menores, voltado à assistência ao “carente” e ao “infrator”.
Novamente pressionado pela tendência internacional e pelo agravamento da
situação “dos menores”, o Brasil precisou rever a forma de proteção à criança e ao
adolescente. Em 1964, sob o regime militar, foi aprovada a Fundação Nacional do
Bem-Estar do Menor, Funabem. Ao final de 1970, também com fortes
tensionamentos políticos no contexto nacional, foi aprovado o Código de Menores de
1979, tendo como desdobramentos a ênfase na família e a criação das FEBEMs nos
Estados e outras entidades similares. É importante considerar que muitas entidades
que assumiram essa intervenção já existiam no século anterior, tanto com natureza
pública quanto privada. Assim, a FUNABEM ditou a política no combate à situação
dos abandonados e infratores, fortalecendo o controle fiscalizador e repressor do
Estado.
Sem uma política que realmente enfrentasse as causas deste cenário e com a
pobreza crescente nos centros urbanos, a sociedade civil, vendo a pouca efetividade
dessas ações, começou a se organizar. Além disso, os procedimentos no
atendimento das FEBEMs motivaram questionamentos de organizações de direitos
humanos, lideranças populares e da Igreja. Com a redemocratização do Brasil, essa
mobilização manteve-se em torno da defesa dos direitos da criança e do
95
adolescente, bem como de políticas públicas para a família. Decorrente dos debates
da Constituinte e da Declaração Universal dos Direitos da Criança e do Adolescente,
foi aprovado no Brasil o ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente.
2.3.3. A era do ECA
O Estatuto da Criança e do Adolescente resultou do entrelaçamento de três
vertentes que, raramente, se entrecruzaram com tanta felicidade na vida
brasileira: o
movimento social, o mundo jurídico e as políticas públicas (Edson Sêda)
A história demonstra o quanto tem sido difícil tratar da questão da infância,
principalmente a que sofre todos os tipos de violações. Por um lado, há a face
punitiva, a tutela caritativa e paliativa realizada pela sociedade e pelo Estado, sem
uma política permanente que garanta os direitos fundamentais desde a gestação
das novas gerações.
O jurista, educador e procurador federal aposentado Edson Seda bem
conceituou acima o salto ético e político que o ECA representa. Porém, como tal, é
fundamental que o movimento social realize o controle para que esse marco político
seja efetivado.
96
Para compreender as resistências à efetivação do ECA, é preciso levantar
alguns elementos da conjuntura brasileira, que nos demonstram graves cenários de
desigualdade e diferentes expressões de violência.
Segundo a pesquisadora Laura Tavares,
O Brasil é “campeão” em todos os quesitos relativos à concentração da renda:
a distância entre a renda dos 10% mais ricos com a dos 40% mais pobres é
de 32 vezes, enquanto que a média latino-americana é de 19,3 vezes; [...] e o
Brasil é o único caso da AL [América Latina] onde mais da metade da
população recebe uma renda inferior a 50% da renda média nacional. (Estes
indicadores permitem constatar o quanto a “era dos Fernandos” – Collor e
FHC – foi extremamente bem-sucedida!) (2004, p. 8).
Laura Tavares, analisando os relatórios de diferentes organismos
internacionais, cujo conteúdo aborda a pobreza na América Latina, observou que há
uma tendência de apontar como problemas dos seus países a incapacidade política,
as dificuldades de gestão, a corrupção. Assim, há inúmeras sugestões, desde
“aprender a votar nos políticos”, até regras de ajuste fiscal e mobilização social.
Diante disso, diz a pesquisadora:
Mas o que fazer com a pobreza enquanto o prometido “desenvolvimento
sustentável” não chega? Demonstrando a sua enorme “sensibilidade
social” com o aumento da pobreza (presente em todos os discursos recentes
dos presidentes desses organismos), eles estão dispostos a nos ajudar
através do “apoio” técnico e financeiro aos chamados programas focalizados
97
de combate à pobreza. Estes programas também apresentam algumas
aparentes “inovações” através do que eles chamam as “boas práticas” ou
“práticas saudáveis” através de uma maior “participação da comunidade local”
que quase sempre significa uma redução de custos e a concomitante
ausência do Estado. Tudo isso com o pomposo e atraente nome de
“Modernização do Estado e fortalecimento da sociedade civil” (2004, p. 2).
Considerando a globalização e o aprofundamento da perspectiva da política
neoliberal, ao se avaliarem as atuais condições da infância e da adolescência, é
imprescindível articular esses vários elementos. Rizzini (2000) bem observou que a
política social sempre abordou a criança em risco, ou seja, focando um recorte da
realidade. Para pensar a infância e a adolescência na sua relação com a política
intersetorial, é preciso partir do reconhecimento de que esta população se encontra
em condição peculiar de desenvolvimento, é sujeito de direitos e tem prioridade
absoluta. Seu processo de sociabilidade demanda o fortalecimento e a garantia do
convívio familiar e comunitário, reconhecendo suas trajetórias e culturas.
Neste sentido, a política pública deve agir para afirmar essa concepção e
combater as violações. O Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA – estabelece
a política de atendimento (art. 87) e a Constituição Federal estabelece o direito à
participação popular na formulação e controle das políticas públicas (art. 204).
É inegável que há urgência de realizar uma proteção aos mais
vulnerabilizados. Porém, a historiografia que aborda o trato da infância demonstra
que a tendência de pensar a “situação de risco” acarreta as ações fragmentárias,
98
residuais, emergenciais, que não possibilitam o enfrentamento das reais causas
desse cenário e, muito menos, a sua superação.
Com base nessas constatações, é bastante significativo levantar alguns
dados que ilustram essa realidade.
Segundo o Instituto de Pesquisas Econômica Aplicada – IPEA (2003), em
2000 havia 57 milhões de pessoas com renda per capita mensal inferior a meio
salário mínimo. No mesmo ano, o Censo do IBGE levantou que existiam 60 milhões
de crianças e adolescentes entre 0 a 17 anos, representando 36% da população
brasileira. Desse universo, indicou que 45% viviam em famílias com renda per capita
inferior a meio salário mínimo. O mesmo censo indicou que as principais formas de
exploração do trabalho infantil são relacionadas à violência sexual, ao tráfico de
drogas, ao narcoplantio e aos lixões. De acordo com o UNICEF, em 2003 existiam,
no Brasil, 29 milhões de pessoas vivendo em famílias com renda até meio salário
mínimo, um milhão de crianças entre 07 a 14 anos fora da escola; 1,9 milhões de
jovens analfabetos; 2,9 milhões de crianças entre 05 e 14 anos trabalhando. Destas,
220 mil com até 14 anos são empregadas domésticas e 45 mil expostas nos lixões.
Nesse cenário é importante levantar outros dados alarmantes. O Brasil não
passou por guerras, mas tem, segundo pesquisa do IPEA, 80 mil crianças
abrigadas32 . Deste universo, o “Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e
Adolescentes”, abrangeu cerca de 20 mil crianças, abrigadas em 626 instituições,
em todas as regiões brasileiras. Destas, 589 oferecem programa de abrigo para 32 A metodologia desta pesquisa trouxe alguns problemas quanto à fidedignidade dos dados. Assim, é tomada aqui como levantamento ilustrativo, não sendo tomado como mapa absoluto, mas representativo principalmente quanto a alguns elementos qualitativos.
99
crianças e adolescentes em situação de risco pessoal ou social, segundo a definição
adotada na referida pesquisa. Temos os seguintes percentuais de motivos de
abrigamento:
% Motivo
24,1 pobreza
18,8 abandono
11,6 dependência química
7 em situação de rua
Sobre os vínculos familiares observou-se percentualmente que:
% Situação
86,7 têm família
58 mantêm vínculo
5 são órfãos
É inegável que a manutenção de crianças nos abrigos é muito mais onerosa,
do ponto de vista financeiro e dos prejuízos emocionais que traz às crianças, do que
se houvesse ações voltadas para a melhoria das condições psicossociais das
famílias. Outro dado impressionante é que na ocasião da pesquisa apenas 54% das
crianças estavam sendo acompanhadas judicialmente, o que de certo modo vem
configurar uma espécie de cárcere privado, onde elas se tornam novamente objeto
da caridade. Há ainda resistência em criar mecanismos para dar suporte para que as
famílias possam assumir suas crianças e adolescentes.33
33 Há pesquisas importantes sobre este tema realizadas, dentre várias, por Marina França, Abigail Franco e Irene Rizzini
100
No tocante aos dados sobre saúde e natalidade,34 segundo o Ministério da
Saúde, em 1999 mais de 50% das meninas, dentre 15 e 19 anos, de famílias com
baixa escolaridade, tiveram pelo menos um filho. De 1993 a 1998 aumentou em 31%
o número de partos de meninas entre 10 e 14 anos. 20% das mães brasileiras estão
na faixa de 10 a 19 anos. Assim, este cenário, considerado epidêmico pela OMS,
traz outros agravantes: graves riscos ao desenvolvimento e à saúde das mães
adolescentes, que têm na gravidez precoce o principal fator de morte; além disso,
são gerações que não vivenciam todas as fases de desenvolvimento e ficam
expostas a várias situações de risco. Outro fator decorrente, agravado pelas baixas
condições socioeconômicas e também pela falta de amadurecimento das jovens
mães (inclusive por terem deixado de vivenciar as referidas fases), é a colocação
dos filhos de adolescentes para adoção.
Nesse mesmo sentido, o planejamento familiar e a prevenção de DST/Aids
têm sido realizados ainda do ponto de vista do controle de natalidade e das
doenças. Excluem uma atenção que aborde os sentidos, o afeto, a sexualidade, os
projetos, o respeito, os direitos. A adolescente não é considerada um sujeito, mas
um corpo a ser preservado. Muitas vezes verificamos a falta de metodologia para
tratar do tema com adolescentes. O atendimento à gravidez da mãe adolescente
muitas vezes exclui o pai da criança, reproduzindo a mentalidade machista da
sociedade brasileira.
Vale ressaltar que a atenção exclusivamente no setor da saúde, sem se
considerar a fase peculiar de desenvolvimento de adolescentes mães e pais, acaba 34 Sobre o tema há um artigo importante de Regina Célia Tamaso Mioto, intitulado “A maternidade na adolescência e a (des)proteção social”. In: Revista Serviço Social e Sociedade nº83. p. 128-146. Volume Especial:Criança e Adolescente. 2005.
101
por atender parcialmente a questão, focando mais na sobrevivência dos bebês, do
que na possibilidade de vivência da maternagem/paternagem dos jovens para uma
relação parental sadia, que lhes possibilite inclusive desenvolverem-se
emocionalmente. Assim, qual a possibilidade de mudanças a médio e longo prazos,
se não se investir também nas relações intergeracionais, nas figuras parentais e de
afeto e segurança? Neste sentido, os programas relacionados a adolescência,
sexualidade e saúde reprodutiva contribuirão favoravelmente, a médio e longo
prazos, se agregarem outros elementos. Novamente, verifica-se a importância de
não pensar apenas os riscos, mas as particularidades e potencialidades da
população infanto-juvenil para a consolidação de uma outra sociedade.
Outra face da atenção à adolescência é a da violência. Observa-se a
tendência de uma sociedade punitiva, que aponta o jovem como o problema da
violência. Segundo dados do Ministério da Justiça (apud Volpi, 2001), a cada 100 mil
habitantes adultos há 88 presos e, no caso dos adolescentes, a cada 100 mil
habitantes, 3 estão internados. Para este autor, há fatores que se conjugam: o
hiperdimensionamento do problema, a periculosidade dos adolescentes e o mito da
impunidade juvenil.
Costa (2005) afirma que para compreender esta situação é preciso menos
buscar o conjunto de normas em que foi socializado e focar mais a sua perspectiva a
partir da interpretação das normas. O que se observa é que, ao invés de buscar
compreender os fatores que motivam os comportamentos, tem-se focado a
organização dos órgãos de controle e punição. Como exemplo, temos o modelo da
Febem no Estado de São Paulo, que há décadas consome vidas e recursos
102
públicos, buscando um pretenso aprimoramento, sem se pensar caminhos reais de
inserção social com dignidade, o vínculo familiar e comunitário, a efetivação dos
direitos fundamentais e o respeito à condição peculiar de desenvolvimento. Vale
ressaltar que a massificação não é contestada pelos defensores de Direitos
Humanos apenas por ser cruel com a maioria dos adolescentes privados de
liberdade, mas também por não ter nenhuma capacidade de atuar em relação aos
pouquíssimos casos de jovens que cometeram atos de extrema violência e daqueles
que são portadores de graves distúrbios de ordem psíquica. Dizem alguns críticos
que os adolescentes foram tornados números, mas nem isso o são, pois são
flagrantes os casos de superlotação de unidades.
Além disso, de uma maneira generalizada, jovens, universitários, profissionais
com especialização estão sem perspectivas, pois há uma grande competência em
superexplorar o trabalhador. Com a mídia alimentando os falsos valores de que há
lugar para todos, temos pessoas cada vez mais frustradas, sentindo-se
incompetentes, quando, na verdade, para a manutenção do sistema, é necessário
justamente maior concentração de poder político e econômico e exploração do ser
humano. Neste contexto, há um aumento da dependência química e de doenças
relacionadas à depressão e psicoses. Um país jovem, assim, tem imensa dificuldade
em construir um projeto de nação, pois seus sujeitos não têm condições de
vislumbrar horizontes diferentes.
Frente a esse cenário temos de pensar num processo permanente de
enfrentamento para a garantia e ampliação de direitos, tornando-o arena para o
exercício de participação política e afirmador de um projeto de gestão pública
103
emancipatório. É fundamental garantir e valorizar os mecanismos de controle e
participação popular, como os Fóruns, Conselhos e Conferências. Cada vez que se
fragiliza a credibilidade nesses mecanismos, comprometem-se esses caminhos
construídos em uma longa caminhada. Cada vez que as instâncias democráticas
que garantem a participação social são desrespeitadas, há um enfraquecimento da
democracia participativa.
Tanto na Constituição Federal, quanto no ECA, na LOAS, na LDB, temos
afirmada a concepção de sujeito de direitos, da participação social e de novos
conceitos sobre a família, a criança e o adolescente.
Numa sociedade em que se reafirmam práticas mercantilistas, em que tudo
tem um valor de mercado, há pouco espaço voltado para a formação de novos
atores e de sujeitos coletivos. E é nesse sentido que a democracia participativa pode
trazer novas possibilidades de inserção e mobilização.
2.3.4. Enfrentar a questão social e pensar as próximas gerações
Somada à herança cultural da moral cristã (no sentido punitivo, segregador)
no trato da infância, atualmente a sociedade autoritária e conservadora ainda pauta
o controle dos pobres pela minimização das seqüelas do sistema político e
econômico, ao invés de buscar a superação dos entraves para o real
desenvolvimento social.
104
Embora aparentemente pareça um raciocínio simples e de igual simplicidade
sua solução, a dificuldade para se enfrentar e superar o quadro nacional decorre
muito mais da existência de um projeto em pleno andamento, que se alimenta
dessas mazelas. A democracia somente poderá orientar a superação desse quadro
se efetivar a distribuição do poder e da riqueza socialmente produzida.
A democracia também deve ter instituições fortes, transparentes, com papel
definido e com controle da sociedade, para garantir sua efetividade. Se o Estado
está organizado em três poderes, sendo que o Executivo e o Legislativo são
compostos por representantes eleitos, é fundamental que a sociedade fiscalize e
acompanhe sua atuação. Porém, o Judiciário não sofre controle externo da
comunidade, apenas por seus próprios departamentos.
Portanto, ao discutir a atuação do Estado, é preciso confrontar a realidade
vivida cotidianamente no interior das instituições públicas, onde também se
expressam os conflitos da sociedade. Por exemplo, quando o Judiciário atende
situações de caráter social como se fossem matéria de conflitos judiciais, acaba
contribuindo para que o executivo não cumpra o que lhe cabe. Frente à constatação
de quem são os principais cidadãos envolvidos nos processos – por exemplo, na
área da Infância e da Juventude –, evidencia-se ainda mais o cunho punitivo e
controlador do judiciário em relação à população de baixa renda e de alta
vulnerabilidade social. Efetiva-se o mascaramento da realidade e a culpabilização de
uma determinada classe social. Esta situação não é simplesmente provocada por
intencionalidades de forma linear, racional e mecânica. Na verdade, no interior dos
105
três poderes, há um emaranhado de questões políticas, institucionais e ideológicas
da sociedade capitalista.
Pelo exposto neste resgate histórico, é possível afirmar que o direito não se
viabiliza, porque também inexiste o pressuposto para isso, que são as políticas
públicas. Estas deveriam garantir os direitos fundamentais previstos na Constituição
Federal e nas demais leis que os regulamentam35.
Planejar e executar políticas públicas em consonância com as leis vigentes,
como o ECA, a LOAS, a LDB-Educação, a LOS,36 parecem inspirar receio por
apresentarem componentes de perigo para a disputa política. Isso porque essas leis
originam-se na nova Constituição Federal, que tem entre seus princípios a
participação social, de forma indireta e direta. É preciso defender, contudo, que
devem acontecer ajustes nessa legislação, mas sempre voltados para a garantia,
não para a revisão de conquistas sociais. Por exemplo, há críticas quanto à abertura
no caso da educação à perspectiva neoliberal, com possibilidades de flexibilizar
alguns deveres do Estado, bem como a exploração do mercado, que tornou a
educação uma rentável mercadoria.
Houve um avanço dos mecanismos democratizantes, mas estes têm sido
colocados em descrédito e, como desdobramento, os princípios que os sustentam. 35 Art. 6 São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição Art. 227 É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar á criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. 36 Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei Orgânica da Assistência Social, Lei de Diretrizes e Bases da Educação, Lei Orgânica da Saúde.
106
Talvez esta seja a pior questão: os pilares que lhes dariam sustentabilidade são
corroídos pelas práticas dos diferentes atores. Esta é uma situação que falseia a
importância e a possibilidade da participação social em prol da mudança da
realidade.
O crescimento do que se tem denominado de “terceiro setor” traz outros
desafios para os trabalhadores da área social, dentre os quais, o assistente social,
pois muitos profissionais estão atualmente envolvidos com a área social, mas sem
necessariamente terem uma leitura macro das determinações da questão social. Por
outro lado, na tendência do gerenciamento, há organizações diversas investindo em
pesquisa sobre indicadores sociais para o planejamento e execução de ações na
área social, adotando a lógica e um know-how da administração privada.
Sob o argumento da boa administração não-estatal efetiva-se a diminuição da
intervenção do Estado, que se desresponsabiliza e atribui à “sociedade civil” um
papel que não lhe cabe. Esta “sociedade civil”, por sua vez, também argumenta
sobre a inoperância do poder público, dando força à idéia da privatização dos
serviços.
A realidade mostra os fenômenos em sua superfície, sendo necessário buscar
a origem, os encadeamentos entre fatos e causas, bem como suas
interdependências. Por exemplo, voltando à pesquisa mencionada inicialmente,
coordenada por Fávero (2000), sobre os casos de destituição do poder familiar,
temos importantes análises. Daqueles 201 autos pesquisados, em 16,2% dos casos
a iniciativa de buscar o judiciário partiu da pessoa que, posteriormente, foi destituída.
107
Outro dado importante é que do total das sentenças, 76,6 % das destituições
recaíram sobre mães e 23,4% sobre pais, evidenciando o aumento das famílias
mantidas pelas mães. Dentre os motivos da entrega ou destituição foram
identificados que em 47,3% dos casos a queixa principal era a de carência
socioeconômica, alegada pelo pai, pela mãe ou pelo guardião. 31,2% foram
motivados por abandono dos responsáveis, que deixaram a criança em entidades ou
com outros/terceiros, sem nunca mais retornar. Outros fatos, como gravidez
decorrente de estupro, mãe cumprindo pena ou sofredora mental totalizaram 7% dos
casos, sendo também um dado relevante. Um dado que mereceria maior estudo é
que 26,6% das mães eram brancas, 14,3% pardas, 8,4% pretas. Contudo, em 50,7%
dos casos não se mencionou esse dado.
Um dado alarmante é que nos autos, em 74% dos casos, nada consta em
relação ao acesso a programas de auxílio, sendo que em outros 22% dos casos não
houve acesso. 19,5% das mães estavam desempregadas e 10,4% eram do lar.
Destas, 23,4% não tinham renda, 5,2% tinham renda instável, 3,9% recebiam um
salário mínimo e em 59,8% nada constava sobre a renda. Em 71,4% não se
registrou informações sobre a moradia.
Tais estatísticas indicam uma tendência na fragilidade (negligência?) de
conhecimento sobre aspectos essenciais da trajetória e da vida daqueles que
serão julgados. A ação do judiciário deve basear-se sobre fatos concretos e
pelo que se constatou: que muitas famílias foram destituídas por estarem em
condições de vulnerabilidade socioeconômica. Outro dado alarmante é
pensar que em muitos casos o judiciário decidiu com informações parciais da
108
realidade. O enfoque centrado na figura materna também sugere a importância de
se pensar as relações de gênero.
Não se pretende banalizar e naturalizar a ação violadora de pais e
responsáveis contra crianças e adolescentes. Contudo, para se construírem ações
impactantes na cultura sócio-política relativa à criança e à família, é fundamental
questionar, antes, a trajetória histórica das políticas públicas que perpetuam os
cenários acima tratados. Evidentemente há fatores de ordem subjetiva, mas
partimos do pressuposto de que esta sofre grande influência também das relações
concretas dos homens. De outro modo, poderão ser fortalecidas ações públicas de
controle e punição. A ausência das políticas públicas inviabiliza a efetivação dos
direitos, que aparentemente existem, mas são inatingíveis pela precariedade,
insuficiência e/ou inadequação das políticas, impossibilitando atingir os patamares
que levem à emancipação. As políticas públicas que garantem justiça social
deveriam ser mecanismos redistributivos das riquezas socialmente produzidas e
estruturantes de novas relações na sociedade.
São muitos os elementos que merecem maior investigação científica e
posicionamento político quando tratamos das expressões da questão social. No
caso da leitura aqui proposta, pensando no Serviço Social, é fundamental
desconstruir práticas profissionais que acabam por perpetuar a punição da pobreza
e construir novas alternativas, pautadas em princípios como transparência,
democracia participativa, justiça social.
109
Da mesma forma é inaceitável que políticas sejam traçadas a partir de
especulações, devendo haver seriedade na construção de diagnósticos capazes de
melhor explicar a realidade, para nela intervir. Seja um laudo social apresentado ao
Juiz da Vara da Infância e da Juventude, seja um diagnóstico social de uma cidade,
tais ações podem apontar elementos reveladores dos conflitos e das lutas sociais,
indicando onde há necessidade de negociação ou rompimento. É fundamental que
nessa leitura crítica da realidade, que fundamenta o planejamento, a execução e a
gestão das políticas públicas, afirmemos uma nova cultura em relação à criança e ao
adolescente, enquanto sujeitos de direitos, pessoas em condição peculiar de
desenvolvimento (ECA). De outra forma, estaremos constantemente envolvidos em
políticas reformistas, ou pior, como temos visto, de contra-reforma, revendo
conquistas de lutas coletivas.
Pensar o trato da criança e do adolescente nos diferentes contextos sócio-
históricos levanta elementos para compreender os fundamentos e as práticas das
políticas públicas de atendimento a este segmento.
Tavares, ao refletir sobre a política social, coloca que esta deve deixar de ser
residual, vindo a representar
“uma alternativa real de cidadania para aqueles que certamente não terão
nenhuma condição de incorporar-se pelo “mercado”. Isso implicaria em perder
o medo (que persiste em muitos setores da esquerda) de pensar e reconstruir
o Estado como um espaço público e como uma alternativa democrática de
incorporação à cidadania das grandes maiorias que não têm voz nem poder
de pressão no âmbito da sociedade”. (2004, p. 8)
110
Para não cair na inércia é preciso buscar caminhos teóricos e políticos.
Pensar a política social, a justiça e a nova cultura em relação à infância e juventude
pressupõe percorrer o caminho crítico-dialético para apreender as contradições,
conhecer a trajetória sócio-histórica deste tema, construir novas possibilidades, mas,
fundamentalmente, ter um horizonte para a ruptura de velhas práticas e a sua
superação.
Portanto, o Estatuto da Criança e do Adolescente, ao estabelecer que as
decisões devem ser tomadas sempre no que for mais benéfico para a criança
sinaliza tanto a abordagem do caso particular, como generaliza o trato da
infância/adolescência como um valor fundamental para a construção de uma
sociedade. Nesse sentido, um enfoque que auxilia a pensar as conquistas e desafios
para a consolidação do ECA é assumi-lo como uma síntese ético-política, além de
marco legal, que agrega o anseio de realmente garantir uma infância e uma
adolescência plenas, reconhecendo que a humanidade precisa propiciar condições
de melhor desenvolvimento das novas gerações.
111
CAPÍTULO III
Exercício profissional e produção de conhecimentos
A produção das idéias, das representações e da consciência está. em
primeiro lugar, direta e intimamente ligada à atividade material e ao comércio
material dos homens; é a linguagem da vida real, [...] surge aqui como
emanação direta do seu comportamento material. O mesmo acontece com a
produção intelectual quando esta se apresenta na linguagem das leis, política,
moral, religião, metafísica etc., de um povo. São os homens que produzem as
suas representações, as suas idéias etc., mas os homens reais, atuantes e
tais como foram condicionados por um determinado desenvolvimento das
forças produtivas e do modo de relações que lhes corresponde, incluindo até
as formas mais amplas que estas possam tomar.37
A humanidade produz, reproduz, reordena, sistematiza e reelabora
conhecimentos. Estes são construídos historicamente e atingem estatutos de maior
ou menor relevância frente aos problemas que consegue explicar e, principalmente,
superar. Nesse processo, a busca do saber é orientada por diferentes interesses e
37 Karl Marx. A ideologia Alemã. São Paulo, Hucitec, 1974.
112
estes motivam, no seu processo, a luta por hegemonia. A produção do
conhecimento é, assim, uma expressão histórica permeada de mediações.
[...] a existência humana, histórica, real, concreta, se delineia como um efetivo
exercício de práticas produtivas, de práticas políticas e de práticas culturais
[...]. Em todas as esferas de sua prática, os homens atuam como sujeitos
coletivos. [...] Ainda que mediado pela ação singular e dispersa dos
indivíduos, o conhecimento só tem seu pleno sentido quando inserido nesse
tecido mais amplo do cultural.
O fundamental no conhecimento não é a sua condição de produto, mas o seu
processo. Com efeito, o saber é resultante de uma construção histórica,
realizada por um sujeito coletivo (Severino, 1998, pp. 51-53).
A prática profissional, como já assinalado, é uma dimensão da prática
social, construída historicamente. O Serviço Social, por sua vez, realiza a sua prática
profissional tendo como finalidade a intervenção social, a qual é evidenciada muitas
vezes ao serem dadas respostas urgentes a demandas postas no cotidiano. Assim,
acaba sendo identificada, por uma ação relacionada a esse imediatismo.
[...] os desafios postos no plano do imediato apontam para questões de
sentido estrutural, histórico e podem (devem) informar, na continuidade,
trabalhos mais conseqüentes (Baptista, 1995, p. 90).
Este é o desafio do Serviço Social nos diferentes campos sócio-ocupacionais.
Sua prática deve considerar a construção histórica da realidade, suas mediações,
mas, sobretudo, ter um horizonte delineado num projeto ético-político-profissional. A
leitura da realidade deve informar continuadamente o exercício profissional, dentro
113
da perspectiva crítico-dialética, consolidando uma prática que cria e recria
conhecimentos, não apenas os reproduz.
[...] Quando, em nossa prática profissional, nos colocamos frente a um
desafio, este se mostra com uma face que, à primeira vista, nos parece a
única. Na verdade, essa face aparente oculta sua verdade essencial (idem, p.
91).
Diante dessas considerações, ao se tratar do tema aqui proposto, é
necessário aprofundar questões relacionadas às ideologias e às metodologias na
construção de conhecimentos e nas práticas sociais.
Nesse processo, se constrói uma identidade e uma representação sobre algo
que se legitima e se legaliza e assume um nome no contexto das profissões.
[...] Contudo, nesse processo de construção, as ações individuais dos
profissionais podem assumir, as mesmo tempo, as dimensões de síntese –
resultante do processo coletivo de elaboração de conhecimentos e práticas
desenvolvido pela categoria – e de criação de novas propostas e de novos
conhecimentos (ibidem, p. 117).
3.1. Ciência e expressões ideológicas
No resgate do histórico do Serviço Social no Judiciário foram citados
elementos sobre as mudanças na profissão, realizadas e sofridas no bojo das
transformações sócio-econômicas e políticas. As diferentes ciências, as quais dão
sustentação teórico-metodológica e instrumental às profissões, também influenciam
e são influenciadas pelas alterações dos novos conhecimentos no conjunto de seu
114
conteúdo e/ou dos instrumentos e técnicas utilizados. Atualmente há um avanço no
campo tecnológico que não se limita às áreas das biológicas e exatas, havendo a
interdisciplinaridade e a “migração de tecnologias”.
Seguindo esse raciocínio, é necessário considerar que no campo das
ciências sociais há diferentes perspectivas teóricas para a explicação da realidade,
as quais expressam também posições ideológicas. O Serviço Social é uma profissão
que possui suporte teórico e instrumental a partir de diferentes áreas do
conhecimento científico, sobretudo nos campos das denominadas ciências humanas
e sociais. Por esse motivo, antes de avançar no estudo proposto, é fundamental
pontuar algumas questões sobre o conhecimento nestes campos e sobre as
ideologias.
Conforme Löwy,
[...] não existe a ciência pura de um lado, e a ideologia de outro. Existem
diferentes pontos de vista científicos que estão vinculados a diferentes pontos
de vista de classe. Existe, também, uma certa continuidade entre a obra de
Marx e a de Ricardo38, de Sismondi39 e de muitos outros, superando-as,
criticando-as, mas dando continuidade ao trabalho científico. Por outro lado,
há uma ruptura, um corte, introduzido pela ciência nova, que representa o
ponto de vista da nova classe (o proletariado), que é a crítica da economia
política de Marx (1985, p. 104).
38 David Ricardo, economista, “representa o máximo da consciência possível, porque ele representa o setor mais progressista dentro da burguesia do fim do século XVIII” Löwy, 1985, p.100. 39 “Sismondi foi um economista suíço do século XIX, para o qual Marx dá uma importância muito grande, porque ele é um dos poucos economistas, quase o único, que critica os fundamentos mesmo do capitalismo, que demonstra que o progresso do capitalismo produz necessariamente pobreza, desemprego, desigualdade social, exploração, crise etc..” Löwy, 1985, p.101.
115
Recorremos a Chauí que traz outros elementos sobre a ciência, nesta
atual fase histórica em que, diante da reestruturação produtiva e da fragmentação
das lutas sociais, são usuais afirmativas sobre o fim da história e a busca por
soluções pontuais e superficiais, que não atuam sobre as reais determinações
históricas.
[...] Através dessa identificação entre racional e não-contraditório, a ciência
está, como ideologia, afirmando a não história. Ausência de historicidade e
ausência de contradição aparecem como expressões privilegiadas da
racionalidade. É nessa racionalidade que confiamos na medida em que
confiamos cegamente na ciência (2001, p. 33).
Chauí reflete sobre essa criação artificial “reinante na produção de todas as
representações”, explicitando como um tipo de ciência que visa a manutenção da
situação tem como aliados conteúdos ideológicos que a justificam.
[...] Com isso, a ciência mantém e reforça o desejo da ideologia de coincidir
com aquilo que é proferido pelo seu próprio discurso, pois o que ela profere
(como ideologia), ela mesma (como ciência) construiu (idem, p. 33).
Um exemplo terrível foram as experiências nos campos nazistas, que por
várias questões levaram ao genocídio, realizando ainda diversas experiências onde
seres humanos foram utilizados como objetos descartáveis.
116
Lukács, no mesmo sentido, salientou a insuficiência de transportar o método
das “ciências da natureza” para compreender a realidade social. Porém, ressaltou a
necessidade de captar que tais medidas são premeditadas, pois há uma
intencionalidade em justificar o funcionamento da sociedade e do sistema capitalista
que lhe impõe forma e conteúdo. Nas suas análises reafirma a necessidade da
reflexão dialética para ultrapassar a análise superficial
O caráter ilusório desse método consiste em que o próprio desenvolvimento
do capitalismo tende a produzir uma estrutura da sociedade que previne tais
processos de pensamento; mas é precisamente nesse ponto e por isso
mesmo que precisamos do método dialético, para não sucumbirmos à ilusão
social assim produzida, para podermos entrever a essência por detrás dessa
ilusão” (1974, p. 20).
Sistematizando as reflexões produzidas por Marx, Lukács reflete sobre alguns
caminhos para a compreensão científica dos fatos.
[...] Portanto, se se pretender considerar os factos precisamente, convém
primeiro captar clara e exactamente esta diferença entre a sua existência real
e o seu núcleo interior, entre as representações que delas se formam e os
seus conceitos. Esta distinção é a primeira condição prévia a um estudo
verdadeiramente científico que, segundo as palavras de Marx, “seria
supérfluo se a aparência fenomenal e a essência das coisas coincidissem
imediatamente” [O Capital] Trata-se, por um lado, de destacar os fenômenos
da sua forma dada como imediata, de encontrar as mediações pelas quais
podem ser referidos ao seu núcleo e à sua essência e captados na sua
117
própria essência e, por outro lado, atingir a compreensão deste caráter
fenomenal, desta aparência fenomenal, considerada a sua forma de
manifestação necessária. Esta forma de manifestação é necessária em razão
da sua essência histórica porque eles [os fenômenos] se desenvolveram no
campo da sociedade capitalista. Esta dupla determinação, este
reconhecimento e esta superação simultânea do ser imediato é precisamente
a relação dialética (1974, pp. 22-23).
Visto que em toda interpretação da sociedade há uma ideologia que a
subsidia, a Teoria Social de Marx traz uma denúncia dos conflitos gerados pela
relação capital-trabalho e, portanto, implica numa defesa societária, da qual não se
pode furtar.
Vieira, ao refletir sobre a política social, traz esta problematização:
Não existe método, mas métodos. [...] Tomem-se os casos daqueles que
interpretam a política social do ponto de vista do liberalismo ou do
materialismo. Quando isto acontece, embaralha-se conceito de cunho
marcadamente econômico e político com outro conceito de reconhecido teor
filosófico. Mas tal interpretação sugere a realidade de duas concepções
antagônicas de política social; aliás, sugere duas diferentes concepções de
mundo: o liberalismo e o socialismo (2004, p. 149).
Desde o fim do modelo socialista do Leste Europeu, fortaleceu-se a defesa da
impossibilidade de uma sociedade anticapitalista. A globalização, o avanço
tecnológico e a permanência e o agravamento de velhas violações de direitos
humanos, por outro lado, alimenta a reação despolitizada com o retorno a práticas
missionárias, agora sob a roupagem do voluntariado. Paradoxalmente, o capital
118
utiliza desta tentativa de milhões de pessoas no mundo para seu próprio benefício.
O recurso público cada vez mais apropriado pelo próprio capital, na forma de
isenções fiscais devido aos projetos de “responsabilidade social”, se torna escasso
para as políticas públicas. Apesar das denúncias e protestos, não há sinais de que
haverá reorientação das ações governamentais voltadas ao capital produtivo,
mantendo-se o benefício ao capital financeiro. Ou seja, estas são evidências das
estratégias de manutenção e “aperfeiçoamento” do sistema capitalista. Assim, a
reestruturação produtiva se aperfeiçoa frente ao objetivo de acumulação e
expropriação. Ao mesmo tempo, há cada vez maior exploração e menos distribuição
da riqueza socialmente produzida. Autores como Meszáros (2004) explicam que as
crises cíclicas do capital fazem parte do seu próprio processo, posto que, após cada
crise, estabelecem-se novas estratégias, sem se alterar o objetivo da acumulação
predatória, onde são destruídas vidas humanas e a natureza.
Montaño descreve uma das tendências de “respostas” frente à questão social:
Essa tríplice modalidade de resposta à “questão social”, estatal, filantrópica e
mercantil, exige um processo que cumpre, como veremos, tanto uma função
ideológica quanto de viabilidade econômica (2002, p. 199).
Diante das graves contradições, combinam-se o apelo à solidariedade
(espontaneísta, despolitizada) e a “justificada” redução das responsabilidades do
Estado, que é, neste contexto, considerado ineficaz e incompetente para atuar e
enfrentar a realidade. Além de se pregar o Estado Mínimo, o mercado vai se
tornando árbitro do bem-estar social. Conseqüentemente, evita-se cada vez mais o
controle social e, portanto, diminui a possibilidade de exercício da democracia
119
participativa enquanto valor e prática social necessários para a consolidação de
outra lógica na sociedade contemporânea.
Assim, o discurso da crise do Estado passa a agregar indistintamente os
diferentes atores que ingênua ou deliberadamente estão afirmando o Estado
Mínimo, que tem graves conseqüências imediatas, na vida dos sujeitos, e mediatas,
no projeto de país e de sociedade.
[...] O tema da crise serve, assim, para reforçar a submissão a um poder
miraculoso que se encarna nas pessoas salvadoras e, por essa encarnação,
devolve aquilo que parecia perdido: a identidade da sociedade consigo
mesma. A crise é, portanto, usada para fazer com que surja diante dos
agentes sociais e políticos o sentimento de um perigo que ameaça igualmente
a todos, que dê a eles o sentimento de uma comunidade de interesses e de
destino, levando-os a aceitar a bandeira da salvação de uma sociedade
supostamente homogênea, racional, cientificamente transparente (Chauí,
2001, pp. 37 e 38).
Por várias razões, portanto, apreender determinantes ideológicos
implicados nas metodologias possibilita maior compreensão da fundamentação e da
teleologia destas. Nas pesquisas sobre a realidade deve-se considerar que outras
determinações existem, bem como analisar a articulação dialética entre objetividade-
subjetividade.
Guerra, ao refletir sobre a “Ontologia social e formação profissional”,
tratando do Serviço Social nesta problematização, refletiu que na disputa entre as
120
formas de conhecer e interpretar a realidade, os fenômenos sociais e naturais, tem
prevalecido o uso de correntes que enfocam apenas o aparente, a forma, o empírico
e o imediato, operando com
[...] procedimentos abstrativos – abstraem-lhes os seus conteúdos concretos
e os abstraem das relações que os engendram (1997, p. 49).
Com essa crítica, Guerra expressa o pensamento dos pesquisadores
marxistas, que rejeita os modelos predeterminados e a perspectiva que
desconsidera o movimento histórico, o qual é construído em condições objetivas,
mas também impulsionado por diferentes projetos.
3.1.2 Metodologia e ideologia
Para melhor subsidiar as reflexões sobre a contribuição do trabalho do
assistente social, que no judiciário é registrado nos laudos, relatórios e pareceres
sociais, foi necessário recorrer aos estudos sobre a metodologia e a ideologia. Para
tal empreitada, é possível encontrar em importantes autores, que fundamentam suas
análises na Teoria Social crítica, elementos para o aprofundamento neste sentido.
Conforme Chauí:
121
[...] O campo da ideologia é o campo do imaginário, não no sentido de
irrealidade ou de fantasia, mas no sentido de conjunto coerente e sistemático
de imagens ou representações tidas como capazes de explicar e justificar a
realidade concreta (2001, p. 19).
Na sociedade existem projetos em disputa, mas também há uma ideologia
dominante, o que exige do profissional preparo intelectual para identificar e enfrentar
tais questões. Considerando que as concepções e os valores são socialmente
construídos, há um tensionamento constante nesse processo de permanência e
inovação. Nessa situação, o profissional jamais fica neutro, pois ao tomar ou não
qualquer posição, já está assumindo valores e concepções.
Nesse sentido, o profissional, deliberadamente ou não, tem implicadas na sua
ação posições ideológicas, que, então, se expressam na sua forma de pensar e agir.
Para compreender melhor esta dinâmica, recorremos a Meszáros:
A preocupação intensa com problemas de método é particularmente
pronunciada em períodos históricos de crise e transição. Em tais períodos,
quando a ideologia anteriormente preponderante das classes dominantes não
pode mais ignorar ou simplesmente pôr de lado seu adversário, as
reivindicações hegemônicas de ambos os lados devem ser formuladas de
maneira que os mais abrangentes princípios metateóricos e metodológicos
dos sistemas rivais se tornem explícitos. Isto acontece precisamente para
reforçar as aspirações mutuamente exclusivas das partes opostas a ocupar a
posição dominante, tanto teórica quanto prática, na sociedade ( 2004, p. 318).
122
Por várias razões, mas também pela necessidade de se afirmar a perspectiva
da “intenção de ruptura com o conservadorismo” (cf. Netto, 1992; 1999; 2005), o
Serviço Social precisa ter clareza da teleologia profissional. Esta pode ser
evidenciada em alguns processos, como na sua interpretação da realidade, nas
suas reflexões, no domínio da instrumentalidade, nas alianças que constrói no
processo das lutas sociais.
Meszáros, que afirma em suas reflexões a sua perspectiva societária,
explicita a importância de se expressarem as diferenças no confronto das forças
sociais:
Ao mesmo tempo, as ideologias das forças sociais em ascensão também devem
expor a importância de sua posição, traçando claramente as linhas metodológicas de
demarcação por meio das quais as diferenças em relação aos adversários possam
ser apresentadas de modo mais marcante. De fato, as afirmações de sua novidade
radical e validade geral simplesmente não podem ser articuladas sem a rigorosa
formulação da nova abordagem em termos metodológicos explícitos (2004, p. 319).
Nesse sentido, no caso do Serviço Social, a perspectiva hegemônica pauta a
ruptura com o conservadorismo. Ela exige a denúncia e a rejeição do retorno às
abordagens que eram pautadas na busca da “reintegração social”, da
“reestruturação familiar”, pois parte do entendimento de que exclusivamente com a
mudança comportamental pode haver alterações e resoluções na vida da população.
Além disso, paira sobre a fiscalização e normatização dos comportamentos
individuais, ou seja, atribui aos sujeitos total e exclusiva responsabilidade pela
situação vivida, sem considerar os outros elementos que a provocaram e
influenciaram.
123
Portanto, ao realizar a abordagem interdisciplinar, exige-se que o profissional
tenha clareza do seu papel e das tarefas institucionais, seja para o bom exercício
profissional em direção aos direitos dos usuários, seja para a afirmação do projeto
ético-político-profissional. Neste sentido, o assistente social deve agir orientado
pelos princípios éticos fundamentais, tendo como princípio central a liberdade.
Com este entendimento, rejeita-se aqui que o objetivo do Serviço Social seja
a “inclusão social”, posto que, por todo o percurso discutido até aqui, ela supõe a
manutenção ou “aperfeiçoamento” do sistema capitalista, mas não se propõe à sua
superação.40 Evidentemente, este posicionamento não basta para o enfrentamento
das contradições sociais. Trata-se de uma posição ideológica pautada, como
expressou Vieira (op. cit.), numa concepção de mundo. Esse esclarecimento é
necessário para, inclusive, adentrar nos procedimentos de análise dos casos para
este estudo exploratório.
Por este caminho, considerando a complexidade da realidade social,
entende-se que para analisar os “fatos” que se apresentam no Judiciário como
demandas para a instituição e, assim, para o trabalho do assistente social, é
necessário adotar categorias analíticas da perspectiva marxista.
[...] as categorias exprimem portanto formas de modo de ser, determinações
de existência, freqüentemente aspectos isolados desta sociedade
determinada, deste sujeito,41 e que, por conseguinte, esta sociedade de
maneira nenhuma se inicia, inclusive sobre o ponto de vista científico,
40 Pudemos aprofundar esta reflexão em Robert Castel. “Armadilhas da Exclusão Social”. In: Desigualdade e a Questão Social.São Paulo: Educ, 2004. 2ª ed. 41 Marx se refere à sociedade burguesa.
124
somente a partir do momento em que se trata dela como tal (Marx, 1987, p.
21).
Considerando, a partir desta concepção, que é preciso também estabelecer
como se articulam dialeticamente essas categorias, recorremos novamente a essa
parte da obra de Marx:
[...] Em todas as formas de sociedade se encontra uma produção
determinada, superior a todas as demais, e cuja situação aponta sua posição
e influência sobre as outras. É uma luz universal de que se embebem todas
as cores, e que as modifica em sua particularidade. É um éter especial, que
determina o peso específico de todas as coisas emprestando relevo a seu
modo de ser (idem).
Compreende-se que, para a análise da realidade social, uma das
categorias essenciais é a da totalidade. Para compreender a conceituação desta
categoria, pode-se recorrer novamente à formulação de Lukács:
[...] A categoria da totalidade, a dominação do todo sobre as partes, que é
determinante e se exerce em todos os domínios, constituem a essência do método
que Marx tomou de Hegel e que transformou de maneira original para dele fazer o
fundamento de uma ciência inteiramente nova (1974, p. 41).
Nos termos de Löwy:
O princípio da totalidade como categoria metodológica obviamente não
significa um estudo da totalidade da realidade, o que seria impossível, uma
vez que a totalidade da realidade é sempre infinita, inesgotável (1985, p. 16).
125
Assim, é necessário distinguir que
a totalidade não se identifica meramente com o todo: significa, antes, “a
realidade como um todo estruturado, dialético, no qual ou do qual um fato
qualquer (classes de fatos, conjunto de fatos) pode vir a ser racionalmente
compreendido” [Kosic, 1969:35] (Apud Netto, 1995, p. 79).
É por essa linha de reflexão crítica que se busca, nas categorias de
análise, uma forma de apreender as determinações e os fatos, numa relação
dialética.
Mészáros tem problematizado sobre a dimensão ideológica das
metodologias, identificando as disputas existentes que refletem a conformação de
diferentes forças da sociedade. Refletindo sobre a contemporaneidade, observando
o desenvolvimento, por exemplo, do Fórum Social Mundial, suas pautas, atores e
tensões, levanta algumas conclusões:
Como pudemos ver, períodos históricos de crise e transição, quando os
antagonismos sociais latentes vêm à tona com grande intensidade, são, em
geral, acompanhados por agudas “disputas metodológicas”. Estas últimas não
são inteligíveis em termos estritamente metodológicos, devendo ser
analisadas à luz das reivindicações hegemônicas das partes envolvidas.
Assim, não obstante muitas opiniões contrárias, o aumento da preocupação
das principais forças antagônicas com questões metodológicas
aparentemente abstratas é prova da intensificação das determinações
ideológicas que influenciam – intelectual e politicamente – a orientação
126
estratégica dessas forças, quer elas estejam, quer não, conscientes de ser
movidas por tais fatores (2004, p. 324).
Portanto, as metodologias têm sustentação num corpo teórico e têm
imbricadas ideologias. Observar os percursos estratégicos e a instrumentalidade
envolvida na dimensão metodológica da ação profissional e política também traz
elementos significativos para a percepção das ideologias. Esta mútua relação não é
pensada aqui com vistas a estabelecer uma hierarquia entre ideologia e
metodologia: o que se observa é a sua recíproca influência que, sob certas
condições, faz uma ou outra ser dominante. A dinâmica da realidade é
extremamente rica em conteúdos, pois há um processo permanente de construção,
mudanças, permanências, renovações, resistências e confrontos. Assim,
metodologia e ideologia são também expressões dos diferentes projetos societários
em disputa. A sua forma de “aparecer” não é linear, pelo contrário, é cheia de
contradições, demonstrando a possibilidade de cotidianamente construir a luta,
aperfeiçoar os projetos, sendo fundamental ter um horizonte coletivo. É nesta
complexa construção que se pode evidenciar e/ou mascarar os projetos societários
que estão em disputa. Metodologias, portanto, sempre têm, implicadas, ideologias.
3.1.2.Linguagem e ideologia
Realizadas as pontuações sobre as ideologias e as metodologias, cabe
refletir sobre um instrumento fundamental para o assistente social no desempenho
das atividades profissionais: a linguagem.
127
Como outros profissionais, o Assistente Social necessita ter domínio de
instrumentos e técnicas para desenvolver sua intervenção. Sendo esta uma
atividade criativa, a ampliação do repertório cultural favorece uma melhor apreensão
da realidade por meio do processo congnitivo-intelectual. Neste enfoque, cabe
discutir que o Serviço Social também desenvolve cotidianamente ações de
comunicação, que estão orientadas por intencionalidades profissionais. A sua
comunicabilidade no judiciário se realiza verbalmente nos diálogos em entrevistas,
nos contatos institucionais, nas visitas domiciliares, nas audiências, quando
solicitado, e também na forma escrita, quando apresenta os relatórios e os laudos
sociais.
Para podermos aprofundar nossos estudos sobre estas questões, buscamos
em Bakhtin (1895-1975) as reflexões sobre a linguagem. Existe muita controvérsia
sobre a principal orientação teórica de Bakhtin, devendo-se este fato muito mais à
forma pela qual suas produções foram apreendidas pelos estudiosos nos diferentes
países, que ao conjunto de sua obra. Nesse sentido, há uma maior tendência de
reconhecê-lo como autor marxista, à medida que suas obras evidenciam tanto o uso
de categorias de análise, quanto a perspectiva sócio-política fundamentada na
Teoria Social de Marx.
Assim, nas leituras que subsidiaram este subitem verifica-se a predominância
do eixo relacionado à linguagem como produto sócio-histórico, fruto da produção e
reprodução social. Suas análises pautam este processo na relação dialógica, ou
seja, na interação social entre os interlocutores, enquanto sujeitos sócio-históricos.
128
Seu percurso, assim, leva à superação de Saussure42 e dos estruturalistas, que se
concentraram na estrutura abstrata da língua e nas suas regras reproduzíveis.
Bakhtin buscou compreender, para além da estrutura, as diferentes expressões da
linguagem nos diferentes contextos sociais. Nesta interação, demonstra que são
insuprimíveis a alteridade, a diferença e o processo coletivo.
O autor desenvolve particularmente em “Marxismo e Filosofia da Linguagem”
(publicado originalmente em 1929) seu entendimento sobre esta questão. Por este
caminho teórico, analisou a importância de considerar o conteúdo ideológico da
linguagem, enquanto processo social, e o cotidiano enquanto expressão dos
tensionamentos gerados pelas agudas contradições existentes na produção e
reprodução social.
Além disso, existe uma parte muito importante da comunicação ideológica
que não pode ser vinculada a uma esfera ideológica particular: trata-se da
comunicação da vida cotidiana. Esse tipo de comunicação é
extraordinariamente rico e importante. Por um lado, ela está diretamente
vinculada aos processos de produção e, por outro lado, diz respeito às
esferas das diversas ideológicas/ideologias especializadas e formalizadas.
[...] o material privilegiado da comunicação da vida cotidiana é a palavra. É
justamente nesse domínio que a conversação e suas formas discursivas se
situam (2004, p. 37).
O autor realizou reflexões alertando para a complexidade da dimensão
ideológica em relação à linguagem.
42 Considerado o “pai” da lingüística moderna.
129
[...] não pode ser abordada corretamente sem se recorrer aos conceitos
usuais de palavra e de língua tais como foram definidos pela lingüística e pela
filosofia da linguagem não sociológicas. É preciso fazer uma análise profunda
e aguda da palavra como signo social para compreender seu funcionamento
como instrumento da consciência. É devido a esse papel excepcional de
instrumento da consciência que a palavra funciona como elemento essencial
que acompanha toda criação ideológica, seja ela qual for. A palavra
acompanha e comenta todo ato ideológico (idem, 2004, p. 37).
Com base nessas análises, é possível problematizar a importância de
certas palavras que consolidaram significados, sendo utilizadas como veículo de
uma série de conteúdos. Por exemplo, inicialmente o termo “menor” foi utilizado de
forma genérica referindo-se à menoridade penal e civil. Gradualmente, foi utilizado
para “identificar” crianças e adolescentes que infracionavam ou viviam em
abandono, sendo este significado consolidado socialmente, demarcado inclusive
pelo Código de Menores, que tratava exclusivamente deste grupo (“delinqüentes”,
“desvalidos” etc.), portanto, um segmento diferenciado do restante da população
infanto-juvenil. Esta trajetória consolidou de tal forma o significado de que “menor”
refere-se à condição citada e não relacionada à menoridade penal e civil, que está
presente nos discursos atuais. Assim, se por um lado pode apenas aparentar a não
incorporação do termo utilizado no Estatuto da Criança e do Adolescente, ou seja,
“adolescente autor de ato infracional” ou “em situação de abandono”, por outro, pode
sinalizar resistências em aceitar este novo conceito e todo seu conteúdo.
130
Essa dimensão ideológica da linguagem, portanto, é construída
cotidianamente, no processo das relações sociais. Ela decorre da necessidade de
diferentes atores conseguirem se relacionar, consensuar entendimentos, expressar
diferenças, estabelecer acordos, enfim, estabelecer bases comunicativas.
As relações de produção e a estrutura sócio-política que delas diretamente
deriva determinam todos os contatos verbais possíveis entre indivíduos, todas
as formas e os meios de comunicação verbal: no trabalho, na vida política, na
criação ideológica. Por sua vez, das condições, formas e tipos da
comunicação verbal derivam tanto as formas como os temas dos atos de fala
(Bakhtin, 2004, p. 42).
Por este caminho, também é possível interpretar que as diferentes formas de
registro da intervenção do Assistente Social, são influenciadas pelos determinantes
institucionais, que são sócio-históricos. Essa intervenção também sofre influência da
representação social dos diferentes atores e da população usuária do Judiciário
sobre este profissional. A sua atuação num plantão social, numa entrevista social,
numa entrevista psicossocial, numa abordagem na visita domiciliar, na preparação
para o contato com uma criança a ser adotada, enfim, nos diferentes processos de
trabalho, recebe interferência dos valores sociais, da identidade atribuída
socialmente à profissão e do imaginário popular quanto ao poder judiciário. Essas
dinâmicas são vivenciadas nos contatos, mediados pelas linguagens verbais,
escritas e não verbais.
Estas formas de interação verbal acham-se muito estreitamente vinculadas às
condições de uma situação social dada e reagem de maneira muito sensível a
131
todas as flutuações da atmosfera social. Assim é que no seio desta psicologia
do corpo social materializada na palavra acumulam-se mudanças e
deslocamentos quase imperceptíveis que, mais tarde, encontram sua
expressão nas produções ideológicas acabadas (idem, p. 42).
As formas da comunicação verbal, que se efetivam a todo momento,
carregam conteúdos ideológicos e afirmam visões de mundo. Não é objeto deste
estudo tratar de questões da lingüística, mas deixar claro que esta traz elementos
que auxiliam a compreensão de como o processo de comunicação contribui para a
consolidação de posições ideológicas.
Bakhtin afirmou que as formas de comunicação verbal
[...] são inteiramente determinadas pelas relações de produção e pela
estrutura sócio-política. Uma análise minuciosa revelaria a importância
incomensurável do componente hierárquico no processo de interação das
relações sociais sobre as formas de enunciação (2004, p. 43).
Este caminho reflexivo tem relevância quando se considera que o laudo social
(ou psicossocial, se realizado em parceria com o profissional da Psicologia) é um
dos elementos que poderão fundamentar uma decisão judicial. Ao juiz é facultativo
acolher o conteúdo técnico apresentado pelos diferentes profissionais.43 Vale
problematizar que é possível identificar no interior da instituição diferenças no
acolhimento dos pareceres emitidos por técnicos de diferentes áreas. Por exemplo,
43 No judiciário, além da equipe técnica (psicólogo e assistente social), exercem atividades profissionais os peritos (especialistas como médicos, engenheiros etc., nomeados pelo juiz para um estudo específico) e os assistentes técnicos (que realizam trabalhos especializados contratados pelos advogados das partes).
132
raramente um parecer médico será desconsiderado, face ao reconhecimento social
dos conhecimentos específicos da profissão.
O assistente social está legitimado como profissional no judiciário, enquanto
funcionário, mas ainda assim parece não se admitir que o estudo social é uma de
suas atribuições privativas. Tal entendimento pode decorrer do senso comum de que
o “social” não é campo específico de nenhuma profissão. Nem assim o defendemos.
Porém, evidencia-se que há ainda a prevalência de que “qualquer” pessoa poderá
apontar suas considerações valorativas sobre o social, principalmente quando se
trata da vida de pessoas em vulnerabilidade. Nesse sentido, tais considerações,
muitas vezes, recaem no senso comum, pautado no saber popular, com enfoque de
cunho preconceituoso. Exemplificando, podemos mencionar o quanto uma mãe que
coloca seu filho para adoção é naturalmente julgada de modo negativo por ter, com
tal atitude, demonstrado sua incapacidade de realizar um papel socialmente
atribuído. Uma vez que se trata a maternagem como decorrente da “natureza”
feminina,44 são retirados os condicionantes sociais e históricos para o seu
desenvolvimento, bem como as condições objetivas e subjetivas para tal
“capacidade”. Exposta a todo tido de opinião, ela é julgada pela atitude e ao mesmo
tempo suas demandas são ocultadas.
O exemplo acima é uma das situações em que todas as pessoas se
consideram aptas a analisar e julgar, pois para tanto se pautam no viés moralizador.
Nesse sentido, suas impressões são emitidas através da linguagem. O indivíduo e a
44 Lucinete Santos escreveu um artigo sobre esse tema, realizando uma crítica ao mito do amor materno.
133
coletividade transmitem suas opiniões, bem como os veículos da comunicação de
massa.
Pode-se afirmar, ilustrando com tal exemplo, que todo enunciador que
emite uma opinião não deseja somente externá-la, mas agregar outros em torno dela
ou mesmo disputar o convencimento. Bakhtin buscou compreender como linguagem
e ideologia atuam para garantir coesão em torno de significados que orientam uma
determinada comunidade/sociedade.
Todo signo, como sabemos, resulta de um consenso entre indivíduos
socialmente organizados no decorrer de um processo de interação. Razão
pela qual as formas do signo são condicionadas tanto pela organização social
de tais indivíduos como pelas condições em que a interação acontece
(Bakhtin, 2004, p. 44).
Na obra mencionada anteriormente o autor reflete sobre a “tarefa das ciências
das ideologias [de] estudar esta evolução social do signo lingüístico”, buscando
aprofundar os estudos sobre a mútua influência entre linguagem e sujeito. Nos seus
estudos, aponta regras metodológicas para tanto:
1. Não separar a ideologia da realidade material do signo (colocando-a no
campo da “consciência” ou em qualquer outra esfera fugidia e indefinível).
2. Não dissociar o signo das formas concretas da comunicação social.
3. Não dissociar a comunicação e suas formas de sua base material (infra-
estrutura).
Realizando-se no processo da relação social, todo signo ideológico e portanto
também o signo lingüístico, vê-se marcado pelo horizonte social de uma
época e de um grupo social determinados (idem, p. 44).
134
Assim, parece plausível que, ao estudar os registros dos profissionais, seja
possível identificar alguns conceitos e a leitura da realidade, bem como verificar a
direção social pretendida nesse processo comunicativo.
Partindo do pressuposto de que tais registros expressam parte da interação
comunicativa que se estabeleceu entre os diferentes atores envolvidos no caso em
questão, o que é mais importante para Bakhtin não é a mera “descodificação” que
“consiste em reconhecer a forma utilizada, mas compreendê-la num contexto
concreto preciso, compreender sua significação numa enunciação particular” (2004,
p. 93).
Assim, estaria o assistente social consciente de que, ao utilizar determinadas
expressões (“família desestruturada”, “negligência”, “falta de condições sociais”),
sem contextualizá-las e historicizá-las, pode vir a reafirmar conceitos e
representações sociais, que, por sua vez, podem contribuir para a revitimização
daquela pessoa ou grupo?
Além dessa questão, considerar as instituições onde são emitidos os
enunciados, pensar quem são os interlocutores e a quem coube reproduzir o que foi
dito, pode trazer outros elementos para compreender a direção que é dada a um
determinado conteúdo. No caso do Judiciário, os despachos, as petições e os
registros dos assistentes sociais se referem à fala dos sujeitos, mas podem, nessa
reprodução, trazer não apenas o conteúdo dito, mas uma interpretação:
135
A cada etapa do desenvolvimento da sociedade, encontram-se grupos de
objetos particulares e limitados que se tornam objeto da atenção do corpo
social e que, por causa disso, tomam um valor particular (2004, p. 44).
Embora Bakhtin centre suas obras na crítica à teoria lingüística, nos estudos
sobre o romance, na ficção, nos textos históricos utilizados para a produção de
literatura de ficção, o conjunto de sua produção traz elementos que provocam
reflexões sobre a comunicação. Nesse sentido, pensou sobre aspectos filosóficos da
linguagem e dos enunciados, feitos pela palavra, verbal ou escrita.
[...] Na realidade, não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas
verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis
ou desagradáveis etc. A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou
de um sentido ideológico ou vivencial. É assim que compreendemos as
palavras e somente reagimos àquelas que despertam em nós ressonâncias
ideológicas ou concernentes à vida (2004, p. 95).
Essas indicações são essenciais ao se analisarem quais as explicações
contidas nos laudos dos assistentes sociais que causam a reação dos operadores
do Direito e que ressonâncias podem acarretar.
Entendendo o Judiciário como instituição que se adapta ao sistema
socioeconômico vigente e que possui o papel de garantir o cumprimento das normas
para seu funcionamento, é possível perceber no seu interior as expressões de
tensionamento provocadas pela necessidade de mudança.
136
Há outro aspecto que é a própria relação entre os diferentes operadores do
direito, cujas ações também são influenciadas por representações sociais que se
reafirmam ou são ressignificadas, conforme as experiências concretas que se
somam em tal instituição. Nesse sentido, pode-se afirmar que no seu exercício
profissional, esses sujeitos vão também se apropriando de perspectivas inovadoras
no exercício do poder jurisdicional. A palavra e seus significados são, então, veículos
desses processos.
Evidentemente, o arbítrio individual não poderia desempenhar aqui papel
algum, já que o signo se cria entre indivíduos, no meio social; é, portanto,
indispensável que o objeto adquira uma significação interindividual; somente
então é que ele poderá ocasionar a formação de um signo. Em outras
palavras, não pode entrar no domínio da ideologia, tomar forma e aí deitar
raízes senão aquilo que adquiriu um valor social (Bakhtin, 2004, p. 45).
Assim, o Serviço Social, que atua com a vivência dos usuários, tem um papel
social relevante ao reunir elementos que demonstram o quanto os litígios referem-se
na verdade a demandas sociais, que deveriam ter sido sanadas no âmbito das
políticas públicas.45 Faria (apud Colman, 2004, p. 118), por sua vez, relaciona a
explosão da litigiosidade “[...] a um movimento de despolitização dos conflitos
sociais, transformando esses conflitos em questões de natureza econômico-
administrativa”.
45 Fávero, E. T. demonstra em Rompimento dos vínculos do pátrio poder – condicionantes socioeconômicos e familiares, em que estudou 201 autos judiciais, que a precariedade das condições sócio-econômicas foi determinante da destituição do poder familiar.
137
Para ele, esses conflitos sociais, após serem retirados da esfera política da
luta de classe, são “repolizitados” no interior do aparelho estatal, por meio de outros
mecanismos de controle, podendo incluir aqui o Judiciário.
Observa-se que a pobreza, assim como os movimentos sociais, tem
sido objeto de intervenção do sistema de segurança e do judiciário. Tal tendência
evidencia o peso ideológico contra a situação de carência socioeconômica, o que
tem sido denominado “criminalização da pobreza”. Um processo parecido ocorre
contra os movimentos sociais que lutam por direitos difusos, demonstrando que
atualmente a criminalização é uma tendência que tem orientado o papel de
contenção de conflitos dos órgãos de Estado.
As estatísticas demonstram a atuação do Estado em relação a este
agravamento da miséria. Um dos indicadores é o aumento do volume de mulheres
apenadas, verificando-se que há grande incidência de crimes contra o patrimônio,
não raro furtos em supermercados, desde fraldas, latas de leite a cosméticos. Num
caminho similar está a população adolescente e jovem, avolumando-se nos
estabelecimentos de privação de liberdade, também julgados em geral por crimes
contra o patrimônio. Nesses conflitos se articulam as necessidades vitais
(alimentação, emprego, moradia etc.) e aquelas criadas pela sociedade que
incentiva o consumo, mas que paradoxalmente gera os sobrantes, conforme
definição de Castels. Antes se falava em “exército de reserva”; atualmente a
expressão sobrantes refere-se àqueles que foram tornados “descartáveis” pelo
sistema produtivo.46
46 Categoria social nova, constituída na sociedade salarial pelas pessoas e/ou grupos humanos que foram tornados supranuméricos em relação às competências econômica e social. Trata-se de pessoas normais, mas que foram tornadas inúteis, desestabilizadas, instaladas numa situação de
138
Portanto, os sujeitos atendidos nas Varas da Infância e da Juventude
podem ter as suas situações retratadas tecnicamente, mas a forma de descrever, de
analisar e compreender tais trajetórias, ao serem registradas nos autos, podem
traduzir posicionamentos ideológicos, mas nem sempre indicar um posicionamento
crítico diante da realidade.
Mas aquilo mesmo que torna o signo ideológico vivo e dinâmico faz dele um
instrumento de refração e de deformação do ser. A classe dominante tende a
conferir ao signo ideológico um caráter intangível e acima das diferenças de
classe, a fim de abafar ou de ocultar a luta dos índices sociais de valor que aí
se trava, a fim de tornar o signo monovalente (Bakhtin,2004, p. 47).
Por essas razões, os profissionais devem estar atentos aos seus
registros que são colocados para a apreciação de outros sujeitos. Conforme
fundamentado até o momento, é inevitável que o conteúdo da linguagem, e mesmo
a sua forma, deixe de ter, impregnadas, posições ideológicas. A visão fragmentada e
descontinuada do trabalho realizado no cotidiano pode mascarar o que significa o
conjunto formado pelas demandas, pulverizadas em diferentes expressões do
mesmo processo vivenciado no mesmo contexto contemporâneo de agravamento
das péssimas condições de vida.
[...] Esta dialética interna do signo não se revela inteiramente a não ser nas
épocas de crise social e de comoção revolucionária. Nas condições habituais
da vida social, esta contradição oculta em todo signo ideológico não se
precariedade geral caracterizada por déficit de lugar no mundo do trabalho e da sociabilidade. (cf. Arcoverde, 1999, p. 81).
139
mostra à descoberta porque, na ideologia dominante estabelecida, o signo
ideológico é sempre um pouco reacionário e tenta, por assim dizer, estabilizar
o estágio anterior da corrente dialética da evolução social e valorizar a
verdade de ontem como sendo válida hoje em dia. Donde o caráter refratário
é deformador do signo ideológico nos limites da ideologia dominante (idem, p.
47).
Por essa perspectiva, Bakhtin compreende que as normas morais, jurídicas,
estéticas etc., são construções e influenciam a coletividade. Nesse processo,
exercem diferentes graus de coerção e controle.
O debate sobre o conteúdo ideológico da linguagem é fundamental quando
analisamos o exercício profissional do assistente social, que no cotidiano de trabalho
se depara com inúmeras questões que tensionam suas relações e os efeitos de sua
ação técnica. São envolvidas, neste sentido, desde a sua trajetória pessoal, sua
formação profissional da graduação e continuada, até condições objetivas, como
ambiente e recursos materiais, e de representações sociais quanto ao seu papel na
instituição e na sociedade. Tais representações sociais vão também influenciar na
realização das suas ações, pois a cada caso há todo um processo de escuta,
aproximação, acolhida, vinculação, bem como momentos em que lhes cabem ações
mais continentes diante das angústias geradas pelas mais diferentes situações
sociais.
Não nos cabe neste estudo aprofundar um debate sobre as representações e
a identidade profissional, questões essas trabalhadas por autores como Martinelli
140
(1989) e Gentilli (1998). Contudo, é fundamental considerá-las ao situarmos a
dimensão da profissão nos diferentes contextos sócio-históricos e a sua trajetória.
Barros 47, a partir da análise das produções de Bakhtin, traz reflexões sobre o
caráter ideológico dos discursos:
[...] Se nos discursos falam vozes diversas que mostram a compressão que cada
classe ou segmento de classe tem do mundo, em um dado momento histórico, os
discursos são, por definição, ideológicos, marcados por coerções sociais (2001, p.
34).
Outro autor que dentre várias questões analisou a linguagem foi Vygotsky
(1896-1934) que, assim como Bakhtin, nasceu e viveu
num mesmo país, a Rússia e compartilharam da situação histórica pós-
revolucionária, desenvolvendo seu pensamento no mesmo ambiente teórico
ideológico. Entretanto, não há indícios seguros de que se tenham conhecido
pessoalmente (Freitas, 2001, p. 168).
Vygotsky interpreta que o homem é um ser social, histórico e cultural, sendo-
lhe fundamental a linguagem. Ambos tratam, portanto,
de um sujeito histórico, datado, concreto, marcado por sua cultura. O homem sujeito
histórico cria idéias e consciência ao produzir e reproduzir a realidade social, sendo
nela ao mesmo tempo produzido e reproduzido (idem, 2001, p. 171).
47 Embora esta autora faça tais reflexões pautada no estudo da lingüística e da literatura, parece-nos pertinente esta referência, por entender que estas duas disciplinas também são expressões da sociedade num dado tempo histórico.
141
A apropriação desses dois autores no Brasil deve-se também ao
entendimento da particularidade da produção de conhecimento nas ciências
humanas:
Bakhtin critica as ciências humanas que, sofrendo de um complexo de
inferioridade em relação às ciências naturais, sacrificam sua especificidade
esquecendo que seu objeto é precisamente não um objeto, mas um outro
sujeito. Como o objeto das ciências humanas é um outro sujeito que tem voz,
o pesquisador ao se colocar diante dele, não apenas o contempla, mas fala
com ele (idem, 2001, p. 170).
Portanto, ao se tratar no presente estudo sobre linguagem e ideologia,
evidencia-se a importância de analisar os laudos, pareceres e relatórios sociais não
no aspecto individual deste ou daquele profissional, mas eminentemente como
produto coletivo e sócio-histórico.
Assim, podem-se observar sínteses na linguagem e suas expressões no
judiciário, sendo o desafio aqui uma ampliação da compreensão dos mecanismos
que reforçam ou contribuem para a exclusão ou para a efetivação de direitos da
população atendida no judiciário.
Ao emitir um laudo social, o assistente social realiza um ato de síntese, nem
sempre passível de reformulação. É realizado naquele momento, num contexto
sócio-histórico concreto, podendo contribuir para o desfecho de um conflito judicial.
142
Outro elemento a considerar é a forma dos enunciados registrados nos autos.
Novamente os estudos sobre a lingüística podem trazer contribuições para esta
análise. Por este caminho, Bakhtin refere que:
[...] Na base da divisão do discurso em partes, denominadas parágrafos na
sua forma escrita, encontra-se o ajustamento às reações previstas do ouvinte
ou do leitor. Quanto mais fraco o ajustamento ao ouvinte e a consideração
das suas reações, menos organizado, no que diz respeito aos parágrafos,
será o discurso (2004, p. 141).
Com esse olhar, parece ser frutífero que esta pesquisa indique alguns
elementos registrados pelos assistentes sociais, que foram acolhidos pelos
operadores do direito. Estes poderiam trazer indicativos para uma melhor
organização do conteúdo, conforme as questões apontadas anteriormente, mas
considerando a forma de seus registros.
Os estudos da lingüística também sinalizam a importância, para a melhor
apreciação dos discursos, de se considerar o contexto narrativo. Quando o
profissional elabora o seu laudo ou outra forma de registro, está num contexto que é
o Judiciário, onde há conflitos interpretativos dessa mesma realidade social. Não se
pode perder de vista tampouco a hierarquia entre os sujeitos envolvidos e, assim,
das suas falas e conteúdos, nesta inter-relação. Um dos papéis do assistente social
talvez seja o de diminuir a distancia entre os cidadãos envolvidos no litígio e entre os
operadores do Direito. Embora pareça um horizonte utópico, traz um dos princípios
fundamentais: de igualdade na diferença, posta a permanência da sociedade
dividida em classes sociais. Vez que a hierarquia é necessária nesta estrutura de
143
sociedade capitalista, ter atitudes para reduzir esta distância pode ser uma
estratégia pertinente. O profissional poderia ampliar a possibilidade de escuta das
diferentes vozes envolvidas num conflito, no caso, judicial.
Nessa direção, um aspecto observado na análise de discursos é o da posição
do “falante”. Existe um peso atribuído conforme o seu status social ou o valor social
da questão em julgamento. Por exemplo, ao se registrar a fala de um líder
comunitário pode haver direções diferenciadas. Se prevalecer a concepção de que
este tipo de pessoa é prejudicial à ordem, haverá um peso; se reconhecido como
alguém que representa aquela comunidade, outro, e assim por diante. A posição do
falante na estrutura do judiciário também é relevante: por exemplo, um advogado
renomado, com reconhecimento social, influencia na relação com os demais atores.
O impacto de sua presença já traz uma relação diferenciada. Assim, há fatores
subjetivos que podem gerar um peso maior para uma informação, seja pela forma,
conteúdo ou locutor.
Por fim, vale salientar que a arte é uma importante expressão da sociedade,
onde se afirmam valores dos mais diversos e, como tal, pode retratar as mais
diferentes relações sociais, mostrar a realidade a partir de ângulos, de conflitos, de
projetos. Um trabalhador social pode buscar o enriquecimento de seu repertório e da
sua capacidade analítica por meio destas manifestações artísticas (literatura,
cinema, teatro, artes plásticas etc.) e apreender ângulos da realidade. O
enriquecimento desse repertório e seu uso, contudo, sempre receberá uma
orientação de valores. Obras clássicas trazem muitos elementos para aperfeiçoar a
capacidade analítica, aguçar a sensibilidade, agregar conhecimentos sobre outras
culturas em diferentes campos. Daí, a importância de conhecer autores de outros
144
campos de conhecimento que se referenciam na Teoria Social de Marx, como
Bakhtin, para pensar o Serviço Social contemporâneo. Afinal, os autores que
abordam qualquer objeto a partir da Teoria Social de Marx, o fazem sob a percepção
dos conflitos gerados pela relação capital-trabalho e defendem outro projeto
societário.
Caracteristicamente, a discussão que Bakhtin faz do discurso é ao mesmo
tempo técnica e literária, ética e política. A maneira como os autores tratam o
discurso de seus personagens, ou a maneira como personagens literários
tratam o discurso de outros personagens, é análoga aos processos
discursivos da vida cotidiana e revela o ethos de uma cultura e de uma
sociedade. A análise de Bakhtin reflete sobre a questão do grau de liberdade
concedido às palavras dos outros; as palavras são distorcidas, censuradas,
ignoradas, endossadas? Enquanto filósofo da liberdade, Bakhtin defende a
livre circulação das palavras, sem opressões hierárquicas (Stam, 2000, p. 34-
5).
Analogamente, como “historiadores do tempo presente”, mas sem perder a
leitura das determinações da História, como diz Martinelli, o assistente social registra
e direciona as situações através da sua capacidade de manejo de instrumentos e
técnicas, mas, principalmente, de análise crítica da realidade. Assim, os diferentes
atores são personagens reais, que se deparam com diferentes enredos, mas
gerados no cotidiano. Os cenários são determinações históricas, portanto,
construídas também por personagens reais da História. Os assistentes sociais, são
personagens de um coletivo maior, ora protagonistas, ora coadjuvantes. Se alguns
cenários estão determinados, há necessidade de construir outras condições
objetivas para criar novos enredos.
145
3.1.3. Reflexões sobre ética
Nas páginas antecedentes perpassaram elementos necessários para a
discussão proposta: os valores e a ética. Estes também foram evidenciados ao se
anunciar em vários momentos a linha teórica que sustenta esta pesquisa. Cabe,
portanto, esclarecer alguns aspectos da ética, que subsidiarão as análises dos
casos levantados neste estudo.
Dentre os autores que subsidiaram esta análise, destacam-se Maria Lúcia
Barroco e Adolfo Sanches Vázquéz. Pesquisadores de origens diferentes traçam um
caminho teórico em comum: a Teoria Social de Marx.
Para o exercício reflexivo proposto partimos da concepção de que a ética é
também um produto sócio-histórico e, como tal, mutável nas relações de uma
determinada época e contexto.
Nessa perspectiva, compreende-se que a moral é a prática dos indivíduos, no
cotidiano, de forma singular, enquanto a ética é a reflexão teórica sobre esse agir
dos indivíduos, buscando seus significados e possibilitando dar um salto do singular
para o humano genérico. A moral é relativa aos costumes, aos hábitos, que são
reproduzidos sem reflexão teórica, mas como respostas possíveis em determinado
contexto sociocultural.
146
Somente o homem pode agir eticamente, mas, para tanto, é necessário haver
condições adequadas, objetivas e subjetivas. Somente a adesão política não
garante o agir ético, pois toda ação é realizada num contexto sóciopolítico,
econômico e cultural. No mesmo sentido, “uma indicação ética só adquire
efetividade histórico-concreta quando se combina com uma direção
políticoprofissional” (Neto, 1998, p. 99).
Os princípios éticos, em qualquer tempo, ganham concretude através da
ação. O ser ético deve posicionar-se, pôr-se no mundo. Diz Barroco:
A ética é definida como uma capacidade humana posta pela atividade vital do
ser social; a capacidade de agir conscientemente com base em escolhas de
valor, projetar finalidades de valor e objetivá-las concretamente na vida social,
isto é, de ser livre. Tratada como mediação entre as esferas e dimensões da
vida social, e atividade emancipadora, a ética é situada em suas várias
formas e expressão (2003, p. 19).
Por este caminho, Barroco aborda a ética profissional como expressão de um
ethos sociocultural e profissional, da moralidade profissional, de suas bases
teóricas e filosóficas, do produto concreto de sua prática, de sua
normatização. Tais particularidades são situadas na relação entre as suas
demandas ético-políticas e as suas respostas, em cada momento histórico
(idem, p. 19-20).
147
Com a fundamentação no método crítico dialético de Marx, Barroco nos
mostra que a ética é uma ação prática pautada em valores, mas que extrapolando o
dever ser, projeta o vir-a-ser enquanto possibilidade para a emancipação dos
sujeitos. Assim,
Como mediação entre a singularidade e a genericidade, entre os valores
universais e sua objetivação, a ética perpassa todas as esferas da totalidade
social (2003, p. 64).
Com essas considerações, cabe problematizar que a ética profissional
é uma expressão da objetivação da ética. Neste sentido, é necessário analisá-la
também no contexto dos processos de trabalho do assistente social, que
cotidianamente está inserido nas práticas de avaliação e decisão junto às demandas
que lhes são colocadas.
Somente o homem é capaz de escolher os meios e os fins de suas
ações e projetos e, para realizar tais escolhas, baseia-se em valores e
intencionalidades. Ao se considerar que a ética tem fundamentos sócio-históricos,
entende-se que sua estrutura é determinada pelos diversos fatores e interesses
sociais, econômicos, políticos e culturais. Por esse prisma analítico, pode-se afirmar
que os valores, que compõem os princípios éticos, têm maior estatuto histórico
quando apontam para relações estruturantes, que possam alterar e responder às
demandas coletivas. Ou seja, não se colocam aqui com peso “absoluto”, nem com
uma causalidade linear, mas inseridos e construídos em contextos que causam
mútua influência.
148
Por este prisma, no caso do Serviço Social, os serviços prestados são
as principais mediações do exercício profissional e a ética perpassa as relações que
estabelece junto a todos os atores: usuários, empregadores, assistentes sociais,
outros profissionais, instituições etc. Enquanto especialização do trabalho coletivo, o
Serviço Social compõe com diversos atores na afirmação de princípios democráticos
e que propiciem a equidade na diversidade, mas não na desigualdade sócio-
econômica e política.
Além disso, para que se possa disputar a direção ético-política na sociedade
é necessário estar articulado com um coletivo maior e com as lutas sociais que
buscam uma realidade que rejeite a barbárie que vivenciamos atualmente,
perpetuada pela trajetória histórica do sistema capitalista que se reordena e se re-
arranja para manter os mesmos interesses de acumulação. Temos o exemplo da
escravidão, em diferentes momentos históricos, que foi tratada com naturalidade,
como algo inerente à organização da sociedade. Atualmente, os direitos
conquistados e afirmados em leis não permitem que a humanidade concorde com a
escravidão, havendo uma posição hegemônica contrária a essa expressão da
barbárie. Porém, ela ainda existe, porque a própria ordem social alimenta a
possibilidade de manutenção dessa realidade. Haja vista os imigrantes ilegais que
vivenciam a escravidão na relação globalizada da indústria de confecções na região
central da cidade de São Paulo. Assim, a sociedade vivencia a contradição de
existirem leis, como o ECA, que têm uma concepção filosófica, ética e política
coerentes com as demandas existentes, mas que, sem a prática sócio-política dos
sujeitos coletivos, expressam apenas intencionalidades e não são concretizadas.
149
Como colocado no Código de Ética Profissional do Assistente Social, adota-
se aqui a liberdade como valor central, que orienta a busca da emancipação
humana. Nesse sentido, a reflexão ética pode auxiliar o desvelar da realidade, não
no limite dos carenciamentos e necessidades, mas das contradições e
possibilidades para que os sujeitos sejam atendidos em seus direitos, inclusive
tensionando para a ampliação da esfera pública. Nessa relação é que o sujeito
poderia ter outras condições para sair do universo da necessidade para a liberdade,
onde realmente possa ter opções diante das requisições de sua vida cotidiana.
Vázquéz traz outros elementos importantes sobre a avaliação moral, os
quais podem auxiliar o estudo sobre o trabalho do assistente social no campo sócio-
jurídico:
Se avaliação é o ato de atribuir valor a um ato ou produto humano por um
sujeito humano, isso implica necessariamente que se levem em conta as
condições concretas nas quais se avalia e o caráter concreto dos elementos
que intervêm na avaliação (2004, p. 153).
O desafio que se impõe, portanto, é que no processo de trabalho o assistente
social articule os vários elementos, ultrapassando o olhar sobre a legalidade da
moral, mas possa relacioná-los, e a todos esses elementos, como produtos
construídos pelo homem no processo de atividade histórico-social. Vasquez aborda
essa dinâmica da relação dialética entre os valores e o desenvolvimento do homem
como ser histórico e social.
150
Dado que não existem em si, mas em função do homem e para ele, os
valores se concretizam de acordo com as formas assumidas pela existência
do homem como ser histórico-social (idem, p. 153).
O processo histórico e as relações vão trazendo mais elementos para
as práticas sociais e, assim, também para o interior da profissão, tensionando para
novas direções que podem levar ao rompimento, ou não, com os valores vigentes, e,
de toda forma, provocando a sua manutenção e/ou inovação, não de maneira linear,
mas sempre dialética. O assistente social compõe o conjunto de atores que de forma
imediata tensionam a consolidação de valores em determinadas situações da
realidade, seja afirmando-os ou questionando-os. Portanto, nesse processo
contraditório se efetiva a disputa de projetos profissionais, que são parte da
expressão dos diferentes projetos societários.
Considerando, portanto, que ao fazer ciência existem componentes de cunho
ideológico, que estão implicados nas metodologias, todas estas dimensões são
compostas por valores e princípios, objetos da reflexão ética. Com essas
considerações é possível avançar na defesa de que a reflexão ética deve ser
inerente e orientadora da prática profissional e da vida cotidiana.
3.2. Jurisprudência e Serviço Social
Frente a essas reflexões, esta pesquisa buscou identificar a
contribuição do Serviço Social para a aplicação do Direito, podendo trazer elementos
na geração de jurisprudências.
151
Compreendemos a Jurisprudência como “doutrina assentada pelas decisões
das autoridades competentes, ao interpretarem os textos pouco claros da lei ou ao
resolverem casos por esta não previstos”,48 e, portanto, portadora de evidências de
que as mudanças sociais podem ter respostas mais adequadas e eficazes, visando
reconhecer o conflito (e não negá-lo) e responder à sua especificidade. Esta análise
contrapõe-se ao caráter generalista e universalista das Leis.
[...] a aplicação do Direito, como todos sabem, não constitui singela operação
mecânica, dependente de esforço físico ou intelectual, mas um plus novo e
não apenas jurídico. A aplicação do Direito necessita de algo mais que os
fatos como matéria e o Direito como ferramenta. A tarefa do Juiz será de
acrescentar à norma jurídica um elemento peculiar que ela não tem: a
prudência. Este juízo jurídico, este resultado da aplicação do Direito a um
caso é, sem dúvida, uma criação jurídica. E sempre o é. nos casos
elementares e nos mais complexos.
[...] ao ser difundida, uma decisão deixa de ser singela resolução de conflitos
para converter-se em doutrina, alicerçada na autoridade dos Tribunais ao se
aplicar as verdadeiras fontes do Direito; e, como tal, extrapola os autos para
sujeitar-se ao crivo do leitor, do analista, do jurista, enfim. (Alike, 2002)49
O entendimento de que os assistentes sociais e psicólogos são os
profissionais que compõem a equipe interdisciplinar já se consolidou, frente à
complexidade das demandas apresentadas ao judiciário. Nas palavras de um
Promotor de Justiça paulista:
48 Dicionário Michaelis. 49 MINISTERIO PÚBLICO.Infância e Juventude: interpretação jurisprudencial, 2002.
152
Assim, referida a Justiça, mesmo tendo como fonte primária a Lei,
compreendeu que o seu campo de atuação não se limita apenas ao direito,
requerendo uma intervenção multidisciplinar, que proporcionou a abertura para que
profissionais de outras áreas, como psicólogos e assistentes sociais, passassem a
auxiliar no encaminhamento dos problemas enfrentados.50
Defende, ainda, a importância destes profissionais,
uma vez que a intervenção técnica, adentra em questões que fogem à esfera
do direito, mas que se mostram extremamente relevantes para o destino final
do processo(idem)
Numa aproximação, essas análises auxiliam a reflexão sobre as
possibilidades de atuação do assistente social no Judiciário como trabalhador e, ao
mesmo tempo, como agente do Estado para o controle e a aplicação das leis. A
realização do direito é uma possibilidade, mas não está garantida apenas pela
aplicação das normas legais.
Se, por um lado, as discussões marxistas fundamentam a defesa da
necessidade de outra sociedade, sendo este o horizonte aqui defendido, por outro,
as demandas colocadas ao assistente social referem-se sobretudo à “inclusão
social” nesta sociedade. Vale salientar que na perspectiva adotada por esta
pesquisa, rejeita-se como teleologia profissional a “inclusão social”, pois esta
condição pressupõe a concordância com o atual sistema capitalista neoliberal. Esta
50 Luiz Antonio Miguel Ferreira. Aspectos jurídicos da intervenção social e psicológica no processo de adoção, texto digitalizado, s/d.
153
expressão pode ser mais uma ilusão, pois nega a exclusão como necessária para a
manutenção do próprio sistema.
Nesta perspectiva ético-politica, entende-se, que o profissional realiza
intervenções técnicas com vistas à resolução de conflitos, ao acesso aos direitos e à
inclusão social. Porém, e especialmente, estas devem ser vistas como atividades
meio para outra finalidade: o exercício da autonomia e da emancipação dos sujeitos
sociais. A tão defendida inclusão social, nesta direção, é mais uma das estratégias
que podem contribuir no engajamento para a superação desta sociedade. São
exemplos disso a inclusão nas políticas públicas: na escola, no atendimento de
saúde, em espaços de profissionalização e de possibilidade de emprego formal.
Articuladas a isso estão as importantes reivindicações pelos direitos já adquiridos,
como os trabalhistas e previdenciários, confrontando o seu desmonte galopante.
Nessas relações há uma afirmação permanente de outra lógica societária.
Entende-se aqui, portanto, que aqueles denominados “excluídos” são os
sobrantes, conforme conceituou Castels,51 pois são tão “necessários” quanto os
“incluídos” para a manutenção das relações de produção e reprodução social.
Outro grupo de excluídos-incluídos são os adolescentes que cometem
infrações em São Paulo (na maioria dos casos, contra o patrimônio), cujas
características de atendimento ilustram de forma ímpar a inclusão social no Brasil.
Estes adolescentes são aqueles que a percepção imediata da sociedade identifica
como perigo, quando, na verdade, o que deveria horrorizar é que essas pessoas em
51 Castels. Armadilhas da Exclusão.
154
desenvolvimento estejam em abandono (não apenas material, mas afetivo e social)
e sem a orientação necessária nessa fase tão importante. Os programas, na maioria,
são elaborados com a premissa de punição. Há uma incapacidade de apreender a
realidade e a fase peculiar de desenvolvimento e, fundamentalmente, a
responsabilidade do Estado no direcionamento do processo de sociabilidade de
crianças e de adolescentes. O enfoque é na transgressão, sem compreender os
seus significados. Conforme já exposto, a realidade socialmente construída tem
feições das mais complexas, exigindo empenho maior da sociedade e do Estado na
formulação de enfrentamentos efetivos. Esses jovens estão incluídos no sistema
punitivo que se sobrepõe ao sócio-educativo, contrariando o previsto na legislação.
[...]os homens devem estar em condições de viver para poder “fazer história”. Mas, para
viver, é preciso antes de tudo comer, beber, ter habitação, vestir-se e algumas coisas mais.
(Marx, 1999, p. 39)
Saliente-se que autonomia e emancipação social podem ser apenas
conceitos abstratos quando não articulados com reflexões totalizantes da realidade e
com a teleologia profissional, vinculando-se a lutas mais amplas quando se pretende
romper com certas práticas e construir coletivamente outras que sinalizem para outro
projeto de sociedade.
3.3. Construção da pesquisa
O caminho percorrido pela pesquisa foi traçando a sua configuração final. Isto
porque não se localizaram outras pesquisas do Serviço Social sobre
155
Jurisprudência.52 Neste sentido, é interessante explicar alguns conceitos, antes de
explicitar como o pesquisar foi sendo construído.
Sobre a instituição53
É a Constituição Federal que determina a organização dos três poderes:
Legislativo, Executivo e Judiciário. Além do nível federal, existem as esferas
estadual e municipal. Abaixo será tratado apenas o Poder Judiciário, que, ao
contrário dos demais, não dispõe de esfera municipal.
Segundo Colman
[...] na esfera da União, além dos órgãos de cúpula citados, está concentrada
a justiça especializada (Federal, do Trabalho, Eleitoral e Militar) e na esfera
dos estados fica a chamada justiça comum, que é definida por exclusão, isto
é, julga tudo aquilo que não diz respeito a essas áreas especializadas (2004,
p. 153).
Existe a organização vertical, que “diz respeito à hierarquia dos tribunais
divididos em órgãos de primeiro e segundo graus e órgãos de cúpula” (idem, p.
154), e organização horizontal, que divide a justiça comum e as justiças
especializadas.
52 Durante a finalização desta pesquisa, tomou-se conhecimento de um levantamento feito pela Associação Nacional dos Centros de Defesa dos Direito da Criança e do Adolescente – ANCED – tratando de tema relacionado, mas não foi possível obter maiores dados. Há outras pesquisas, que tratam das decisões judiciais e da apreciação dos operadores do Direito quanto à relevância do trabalho da equipe técnica, porém, não abordam a relação com a jurisprudência. 53 Estas informações foram extraídas da tese de Colman, op. cit. e do Manual de Iniciação Funcional para Assistentes Sociais e Psicólogos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, 1991-1992. Também foram fundamentadas nas legislações vigentes.
156
Os órgãos de cúpula são o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal
de Justiça, e os órgãos de cúpula específicos das justiças especializadas da União,
que são o Tribunal Superior do Trabalho, o Tribunal Superior Eleitoral e o Superior
Tribunal Militar.
Colman esclarece, ainda, que a existência de juízes de Primeira e Segunda
Instâncias foi motivada pelo direito de questionar a decisão em outra instância.
[...] Com exceção dos órgãos de cúpula, em todos os casos pode-se recorrer
em uma instância superior de uma decisão tomada por um juiz. [...] Mas
Rodrigues esclarece [...] os órgãos aos quais compete julgar os recursos
ocupam posição de revisão, não de mando. Embora possam alterar a
decisão anteriormente proferida, não podem impor aos órgãos de
primeiro grau que passem a adotar as suas posições (2003, p. 19)
Vale salientar que não cabem recursos nas causas julgadas pelos Tribunais
de Júri, formada por cidadãos comuns como jurados que dão o veredicto final,
exceto se forem questões sobre erros processuais. Ou seja, erros no aspecto
técnico-jurídico, não quanto à decisão. O Supremo Tribunal Federal não comporta
nível superior e, por isso, é a última instância nacional para mover recursos.54
54 O Brasil é membro da Organização dos Estados Americanos, OEA, e signatário de vários protocolos internacionais sobre Direitos Humanos. Assim, quando esgotados todos os recursos internos disponíveis no Estado, quando a matéria de denúncia é a violação de tais direitos, é possível recorrer à Corte Interamericana da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. É possível ainda quando tal esgotamento não tiver ocorrido por falta de acesso aos recursos, por carência econômica, quando houver retardamento injustificado para a decisão final no país de origem e/ou quando não se assegurou o devido procedimento legal. Contudo, a Corte não é um tribunal de apelações, ou seja, não revisa as decisões, exceto em processo onde tenham ocorrido irregularidades. Para a acolhida neste mecanismo internacional tampouco poderá haver a mesma denúncia pendente na Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas (ONU). O movimento de defesa dos direitos da criança e do adolescente e o de direitos humanos realizou inúmeras denúncias sobre as violações cometidas pelo Estado na FEBEM, em São Paulo, e, por não haver soluções adequadas, o Brasil foi condenado por essa Corte. Se, por um lado, mecanismos como a Corte Interamericana demonstram um aprimoramento no sistema de justiça, por outro, também pode indicar a incapacidade dos Estados em punir os violadores de direitos. A militância nos movimentos sociais nos propicia essa leitura mais ampla das possibilidades e lacunas para a efetivação dos
157
Na esfera Estadual, existem o Tribunal de Justiça, o Tribunal de Justiça
Militar, os Tribunais do Júri, os Juizados Informais de Conciliação, os Juizados
Especiais de Pequenas Causas.
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
A divisão do Estado para a administração da justiça é feita por circunscrições
judiciárias, comarcas e distritos.
Nas comarcas existem os Juízes de Direito de Primeira Instância, atuando em
varas cíveis, criminais, de família e sucessões, da Infância e da Juventude, do Idoso,
quantas forem necessárias, que proferem as decisões.
A Justiça de Segunda Instância é órgão hierarquicamente superior que, por
meio das suas Câmaras, reexamina a matéria por provocação de um recurso. Estas
Câmaras são organizadas no interior das Seções Criminal, Especial, Primeira e
Segunda Seção Civil. Quem realiza essa apreciação são desembargadores. Com
exceção da Seção Criminal, todas possuem cinco desembargadores cada, sendo
que na Câmara Especial atua o Decano, desembargador mais antigo na carreira. Os
recursos procedentes das Varas da Infância e da Juventude são julgados pela
Câmara Especial.
A Corregedoria Geral da Justiça é órgão fiscalizador da Justiça, realizando a
fiscalização por intermédio de correição junto aos Ofícios de Justiça (Cartórios
Oficializados) e nos Cartórios não Oficializados ou Extrajudiciais. A correição é Direitos Humanos, na qual estão contidas, como sujeitos destes, as crianças e adolescentes. Para maior aprofundamento sobre o tema consultar www.oea.org, www.pnud.org, www.cejil.org, www.acat.com.br, www.justicaglobal.org
158
realizada por um conjunto de atos junto aos livros, autos judiciais e atos
administrativos, a fim de verificar a realização das competências nos termos legais.
Sobre os atores envolvidos no judiciário:
O juiz é bacharel em Direito e precisa estar investido no cargo, mediante
concurso público. Ele é o chefe mediato dos Assistentes Sociais e imediato do chefe
desses técnicos, isso no plano hierárquico administrativo. São atos do Juiz o
despacho (todos aqueles que não enfrentam o mérito e nem resolvem questões
incidentes), a decisão interlocutória (ato que no percurso do processo resolve
questão incidente – portanto, não encerra o processo) e a sentença (ato que põe
termo/fim ao processo).
O promotor de justiça é o representante do Ministério Público. Sua
atuação é obrigatória em todos os feitos relativos às crianças e aos adolescentes,
sob pena de nulidade de todos os atos praticados. Toda sua manifestação deve ser
orientada para propiciar o bem-estar das crianças e dos adolescentes. Essa atuação
é realizada por petição, cota (requerendo providencias diversas, sem se referir ao
mérito da causa) ou parecer (manifestação sobre o mérito da causa ou questão
incidental desta). Além da atuação nos autos, pode representar contra o Executivo
quando este não efetiva a política de atendimento prevista no ECA e outras
legislações.
O Setor ou Seção Técnica é órgão assessor dos juízes de Direito, no
qual o assistente social e o psicólogo realizam seu trabalho técnico.
159
Como técnicos, são auxiliares da justiça e, embora em conformidade
com o Código Processual Civil atuem como peritos, são funcionalmente
denominados assistente social judiciário ou psicólogo judiciário, conforme sua área
de formação universitária. No mesmo Código está prevista a existência do assistente
técnico, que, por sua vez, aprecia e se manifesta sobre o parecer do técnico do
judiciário, sendo contratado por uma das partes para realizar tal atividade. Tem sido
cada vez mais comum a presença do assistente técnico nas ações de Família e
Sucessões, sendo raro nas ações junto à Vara da Infância e da Juventude.
Nesta pesquisa, quando houver referência ao assistente social ou psicólogo
judiciário, estes serão citado sem a qualificação judiciário ou denominado “técnico”
quando a referência abranger os dois profissionais.
O Cartório tem como responsável o escrivão-diretor, cargo de confiança do
juiz de Direito. Sua principal função é dirigir o Cartório, garantindo seu bom
andamento. Alguns juízes delegam aos escrivães-diretores a chefia administrativa
do Setor Técnico.
Sobre os termos do campo sócio-jurídico, utilizados na pesquisa
• Autos judiciais
Popularmente se utiliza o termo processo tanto para se referir ao conjunto de
atos judiciais quanto ao conflito. Processo é uma série ordenada de atos que
compõem o litígio. Os autos refletem tal processo, pois neles estão contidas todas as
peças pertencentes ao processo (petição inicial, documentos, manifestações,
160
despachos, termos de audiência, decisões). Estas vão sendo anexadas nos autos
em ordem cronológica à sua apresentação
• Casos
Serão aqui utilizados como na linguagem popular para referir situações em
estudo.
• Partes
São os sujeitos do processo, sendo diferenciados por requerente (que fez o
pedido) e requerido (contra quem foi movido o pedido). Muitas vezes os assistentes
sociais e psicólogos utilizam outras nomeações para explicitar mais claramente
sobre quem tratam (genitores, genitora, genitor, avós etc.). Saliente-se que essa
terminologia decorre do Direito positivo, expressando a oposição de interesses.
• Suspensão ou destituição do poder familiar
Procedimento que objetiva suspender ou destituir os pais do exercício do
poder familiar, que abrange todos os deveres e direitos relacionados aos filhos.
Nesta pesquisa utilizou-se o termo destituição do pátrio poder devido a ser o termo
corrente na época em que ocorreram os casos em estudo. A nova terminologia –
poder familiar – foi introduzida com a mudança do Novo Código Civil, aprovado em
2002 e em vigor desde 2003, numa afirmação aos deveres e direitos de ambos os
pais, coerente com os termos da Constituição Federal.
• Colocação em família substituta
161
Quando esgotadas as possibilidades de os filhos serem mantidos no convívio
cotidiano dos pais ou de um deles, as crianças e os adolescentes são colocados em
família substitutas, em três modalidades:
- Guarda – não implica na suspensão ou destituição do poder familiar, mas
obriga à prestação de todos os cuidados à criança ou ao adolescente. O guardião
tem poderes para opor-se a terceiros, inclusive aos pais. Contudo, a criança pode
ser pleiteada pelos genitores a qualquer tempo, bem como por outros que discordem
da manutenção com o guardião. Pela revogabilidade, não oferece segurança
quando o guardião deseja a permanência definitiva da criança sob seus cuidados.
- Tutela – pressupõe suspensão ou perda do poder familiar ou falecimento
dos pais. O tutor passa a ter os mesmos deveres e direitos dos genitores, devendo
prestar contas sobre os cuidados e administração de eventuais bens dos infantes.
Para a tutela ser revogada é necessária a instauração de procedimento
contraditório, salvo ocorra a concordância do tutor.
- Adoção – Procedimento precedido pela decretação da perda do poder familiar, que
confere ao adotando a condição de filho e, aos adotantes, de pais. O registro
anterior é cancelado e é realizado novo registro, inclusive incluindo os avós, sem
nenhuma identificação de que a pessoa foi adotada. A adoção não pode ser feita por
irmãos ou por avós, ou seja, na linha de geração vertical.
• Recurso – ação recursal
Toda decisão judicial é passível de recurso, que deve ser interposto pela
parte que “perdeu” a ação. Quem move o recurso é um advogado ou um promotor
162
de justiça. Dois tipos de recursos são os mais utilizados nas Varas da Infância e da
Juventude e na de Família e Sucessões.
a) Agravo de Instrumento – utilizado contra decisão de questão incidental,
sem finalizar o processo e sem aprofundar sobre o mérito da causa.
b) Apelação – movido somente contra sentença que decidiu e encerrou o
processo. O juiz dá vista ao apelado, que responde e, após, é determinada a ida dos
autos ao Tribunal de Justiça.
São dois os tipos de efeitos desses recursos: há o recurso devolutivo, que faz
encaminhar os autos ao Tribunal para reexame da decisão, e o recurso suspensivo,
que suspende a execução (cumprimento) da sentença até o julgamento definitivo da
Segunda Instância.
É interessante observar que o ECA dispõe no seu artigo 198, inciso VI,
que a apelação será recebida em seu efeito devolutivo, ou seja, a sentença da
Primeira Instância pode ser cumprida, independentemente de se aguardar a decisão
de Segunda Instância. Porém, cabe efeito suspensivo quando for interposto recurso
contra adoção por estrangeiros ou quando a autoridade judiciária julgar que há
perigo de dano irreparável ou de difícil reparação.
• Acórdão
É a decisão de Segunda Instância, proferida em votação por três
desembargadores, integrantes de alguma Câmara. O acórdão poderá reformar
total ou parcialmente a sentença, ou mantê-la integralmente.
163
3.3.1. Aproximações ao objeto
O assistente social inserido no Judiciário atua com uma diversidade de
situações, que lhes são colocadas às vezes no cotidiano do plantão, mas,
principalmente, através de autos judiciais. Diante destas demandas, o assistente
social mobiliza conhecimentos, realiza intervenções e apresenta pareceres que
podem contribuir ou não para a decisão judicial.
Verifica-se o desafio, neste cotidiano profissional, de se perceberem as
particularidades de cada caso, sem perder a articulação de elementos sócio-
históricos que influenciaram tal situação.
Com base nessas reflexões buscou-se identificar casos significativos
para o estudo proposto, levantando inicialmente os autos judiciais relacionados ao
direito da criança e do adolescente, nos quais houve recurso de uma das partes
junto ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Esse levantamento foi
realizado pela Internet, através do site deste Tribunal e de outros especializados em
jurisprudência, e em bibliografias especializadas. Por se tratar de “segredos de
justiça”, os acórdãos não ficam disponíveis e, então, recorreu-se ao ementário, que
possibilitou levantar dados gerais dos casos.
O levantamento de jurisprudências junto à biblioteca do Tribunal de Justiça
do Estado de São Paulo propiciou verificar a incidência de alguns temas
164
relacionados a colocação em família substituta, abrigamento e violação dos deveres
do poder familiar:
A título de esclarecer a trajetória da pesquisa, é importante registrar
que a preocupação inicial havia sido a de pesquisar o que se considerava
“negligência” em relação à criança e ao adolescente, a qual tivesse sido
determinante para uma decisão judicial.
Existem diferentes conceitos elaborados por pesquisas das várias áreas.
Nesta aproximação foi possível identificar que, além da carência de uma
conceituação sobre o tema proposto, o mesmo foi utilizado com diversos
entendimentos. Encontramos dois conceitos que nos pareceram bastante
pertinentes dentro da perspectiva adotada:
A negligência se configura quando os pais (ou responsáveis) falham em
termos de alimentar, de vestir adequadamente seus filhos etc., quando tal
falha não é o resultado das condições de vida além do seu controle[...].
Quisemos enfatizar o relacionamento da negligência com as condições
sociais de vida dos pais, aspecto este tão relevante em uma realidade como a
brasileira (Azevedo e Guerra, 2002).
Sob o ponto de vista do Conselho Regional de Medicina de São Paulo:
Não é imperito quem não sabe, mas aquele que não sabe aquilo que um
médico, ordinariamente, deveria saber; não é negligente quem descura
alguma norma técnica, mas quem descura aquela norma que todos os outros
observam; não é imprudente quem usa experimentos terapêuticos perigosos,
165
mas aquele que os utiliza sem necessidade.... Esse argumento, utilizado pelo
procurador geral da Corte de Apelação de Milão, Itália, coloca a
responsabilidade médica sob a ótica da ponderação.
A negligência evidencia-se pela falta de cuidado ou de precaução com que se
executam certos atos. Caracteriza-se pela inação, indolência, inércia,
passividade. É um ato omissivo. Oposto da diligência, vocabulário que remete
à sua origem latina diligere, agir com amor, com cuidado e atenção, evitando
quaisquer distrações e falhas.55
Porém, no levantamento dos casos tratados nas jurisprudências, o
conceito, majoritariamente, foi utilizado para acusar mães, pais ou outros56 de terem
negligenciado cuidados. Não foi possível identificar decisões que argumentassem
que houve falta de condições articulando-a à ausência de políticas públicas para
atender a criança, o adolescente ou a família. Neste sentido, o recorte a partir dos
casos relacionados à negligencia traria uma grande dificuldade. Verificou-se que a
discussão conceitual de negligência se tornaria o tema central e exigiria um debruçar
intenso, desviando o norte da pesquisa, qual seja, os processos de trabalho do
assistente social e a identificação de elementos apresentados nos seus laudos e
pareceres que tenham contribuído para jurisprudências.
Para proceder ao levantamento das ementas dos casos julgados na
Justiça de Segunda Instância, que constam no ementário do site do Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo, foram adotados alguns procedimentos
55 (http://www.cremesp.com.br) 56 É significativo salientar que a grande maioria recai sobre a mãe, posteriormente sobre os pais, sobre o pai e, raras vezes, sobre outros responsáveis. Em relação à mãe, não se evidencia simplesmente o reforço à questão de gênero, mas como as mulheres vêm enfrentando sozinhas o desafio de criar os filhos. Somando-se a isso, temos o que tem sido chamado de “feminização da pobreza”, decorrente de fatores combinados e da precarização das condições de vida.
166
Realizou-se uma primeira leitura dos casos que envolviam crianças e
adolescentes por temas relacionados a situações de abrigamento, colocação em
família substituta (adoção, guarda, tutela), violação de direitos (individuais e
coletivos). Uma segunda leitura, seletiva, identificou aqueles que indicassem
elementos relacionados a questões sócio-econômicas e relações sócio-familiares
citados como subsídios para a decisão judicial, seja com realização ou não de
estudo ou perícia social. Esse processo de leitura foi fundamental para mensurar se
para se chegar aos objetivos pretendidos seria necessário verificar todos os casos
ou identificar uma amostragem intencional. No percurso deste levantamento,
verificando-se a necessidade de um olhar jurídico, mas também político sobre a
pesquisa, o Dr. Edson Sêda, foi entrevistado.
Alguns fatores levaram à escolha deste importante jurista. Edson Sêda
compôs o grupo que elaborou o texto do Estatuto da Criança e do Adolescente, foi
também consultor do Fundo das Nações Unidas para a Infância- UNICEF para a
América Latina, é Procurador Federal aposentado e tem engajamento na defesa da
implementação do ECA. Cabe ressaltar que esta pesquisa adota grande parte das
reflexões desse especialista como referência ético-política no trato da criança. Cabe
salientar que suas reflexões subsidiam a militância na defesa dos direitos da criança
e do adolescente, o que as tornam inerentes a esta pesquisa principalmente no
tocante à participação social e ao dever do Estado para a efetivação dos direitos da
criança e do adolescente.
Com tais posicionamentos, o Dr. Edson Sêda considerou que esta pesquisa
poderia ter dois enfoques. O primeiro seria de interesse mais jurídico, portanto,
167
relativo aos aspectos processuais do casos analisados. Nessa linha, caberia uma
análise global de todas as jurisprudências, observando suas tendências, ou seja, o
que a maioria dessas decisões defendeu e definiu, e suas especificidades, que
indicariam possíveis inovações ou exceções. Um segundo enfoque seria o de
verificar os casos significativos, que seria de grande relevância para a efetivação da
justiça logo na Primeira Instância.
Discutindo esses dois enfoques, pode-se aprofundar que há necessidade de
explicitar qual o papel do assistente social e sua contribuição para a efetivação dos
direitos da criança e do adolescente. Dr. Edson Sêda alertou sobre a relevância de a
profissão se colocar de maneira fortalecida, com clareza de seu projeto profissional
diante do agravamento e novas configurações das desigualdades sociais. Por
exemplo, citou que tem sido consultado sobre situações que evidenciam a
necessidade de esclarecer que o assistente social não realiza as mesmas
atribuições do Conselheiro Tutelar. Em sua percepção, o assistente social poderá
dar uma grande contribuição ao debate sobre a real distribuição de renda e sobre a
qualidade das políticas sociais públicas. Deixou explícita sua valorização da
profissão, mas implícita a crítica de que a categoria precisa ter maior organização e
se posicionar pelos direitos da população. Em outra oportunidade, em uma reunião
restrita organizada pelo Grupo Tortura Nunca Mais-SP, salientou em suas falas que
passamos por uma conjuntura em que o assistente social pode dar uma direção para
romper com o paternalismo e assistencialismo das políticas públicas. Reconhece
nesta categoria o potencial de mobilizar a participação social. No âmbito do
judiciário, reconhece que o assistente social deve se favorecer da concepção usual
de que “é o olho do juiz”, no sentido não policialesco, mas de permitir a leitura mais
168
ampla das dificuldades vividas pelas crianças e suas famílias, principalmente sem
apoio do poder público.
Com essa redefinição necessária, buscou-se selecionar os casos para estudo
integral dos autos. Visando também elucidar ao leitor não familiarizado com a forma
da linguagem jurídica e seus modos de apresentação, abaixo estão alguns
exemplos de como são apresentadas tais ementas:
MENOR - Pátrio poder - Perda - Inadmissibilidade - Alegado abandono da
criança pelo pai após o falecimento da esposa por complicações de parto -
Inocorrência - Genitor que deixou o filho aos cuidados de parentes apenas
aguardando sua estabilização material e emocional face à perda de sua
consorte - Diferença econômica entre os requerentes e o pai, que não justifica
a perda da guarda - Recurso não provido. O abandono, para autorizar a
medida gravíssima da perda do pátrio poder, consiste em deixar o menor em
desamparo, sem contar com uma pessoa que o proteja. (Apelação Cível n.
18.083-0 - São Paulo - Relator: SABINO NETO - CESP - M.V. - 23.06.94)
O texto das ementas geralmente apresenta o fato em julgamento, a situação
que levou ao recurso e, por fim, a decisão do Tribunal. Também é possível identificar
a origem dos autos e a Câmara responsável pela decisão. Nas pesquisas
realizadas foi possível observar que, em alguns casos, ao mencionar-se a realização
de estudo social ou psicossocial, foi colocada alguma apreciação a respeito deste
procedimento técnico.
169
MENOR - Modificação de guarda - Ação julgada procedente em parte,
concedida ao pai a guarda da filha, portadora de deficiência visual, mantida a
guarda do filho com a mãe - Ausência de estudo psicológico e deficiência do
estudo social tocante à dinâmica familiar da residência da genitora dos
infantes - Julgamento convertido em diligência. (Apelação Cível n. 124.566-4 -
Itápolis - 8ª Câmara de Direito Privado - Relator(não publicado)27.03.00 -
V.U.)
GUARDA PROVISÓRIA - Pelo prazo de 1 ano, conferida a casal interessado
em oferecer o apoio necessário à criança em tela, sensibilizados por tomar
conhecimento de que esta necessitava de tratamentos médicos
especializados - Interposição de agravo de instrumento pelo Ministério
Público requerendo a reforma da decisão, uma vez conferida a guarda a casal
não cadastrado, após a apresentação de simples relatório do assistente social
do juízo, inobservando-se a realização de estudo social mais aprofundado
quanto aos guardiães, bem como, pela ausência de intervenção do órgão
ministerial, que apenas manifestou-se nos autos tomando ciência da
concessão do pedido - Prevalência dos interesses da criança que, segundo
informações atualizadas, apresenta-se em condições de desenvolvimento
satisfatório, devendo ser mantida a guarda provisória, com acompanhamento
judicial - Recurso não provido. (Agravo de Instrumento n. 46.225-0 - São
Paulo - Câmara Especial - Relator: Yussef Cahali - 28.10.99 - V.U.) grifo
nosso
Outros exemplos, que evidenciam a contribuição do estudo social para a
decisão:
170
CRIANÇA - Ação de mudança de guarda - Cumulação com destituição de
pátrio poder - Suspensão concedida liminarmente pelo juiz -
Inadmissibilidade, notadamente se o autor já detém a guarda provisória do
menor - Medidas graves que impõem instrução processual robusta e cautela
extrema para serem efetivadas, com estudo social, inclusive, visando, antes
de tudo, à busca da verdade material, a fim de que sejam resguardados os
interesses da criança no que se refere à melhor formação moral, educacional
e social. PÁTRIO PODER - Pretendida suspensão liminar - Inadmissibilidade
se existe regulamentação de visitas aos filhos concedida a qualquer dos
ascendentes. (Tribunal de Justiça de Minas Gerais) grifo nosso.
AGRAVO DE INSTRUMENTO - Decisão que, em processo de adoção
requerida pelos agravados, determinou fossem feitas visitas da adotanda aos
pais biológicos, estando a adolescente sob a guarda dos adotantes - Estudo
social que indica o acerto da determinação - Necessidade de estabelecer qual
a melhor opção, considerados os interesses da adolescente - Recurso não
provido. (Agravo de Instrumento n. 69.659-0 - São Paulo - Câmara Especial -
Relator: Hermes Pinotti - 20.07.00 - V.U.)
SEPARAÇÃO JUDICIAL - Guarda de filhos - Decisão que acolheu o estudo
social para determinar que um filho ficasse com o pai e os demais com a mãe
- Sentença confirmada - Recurso improvido. (Apelação Cível n. 240.869-1 -
São Paulo - 1ª Câmara Civil - Relator: Alexandre Germano - 17.10.95 - V.U.)
Há também determinação para realização de estudo social em situações cujo
julgamento possui elementos quanto aos aspectos processuais e legais, mas que às
vezes inclui aspectos diante dos quais a posição ética é imperativa. Por exemplo,
171
houve um caso em que o crime cometido contra criança de nove anos de idade
poderia ser “extinto” se fosse realizado “casamento”.
SUPRIMENTO DE IDADE E CONSENTIMENTO - Hipótese em que o pedido
decorreu de ato ilícito praticado contra menor de 9 anos - Casamento que,
realizado, viabilizaria a extinção da punibilidade em sede criminal -
Superveniência de gravidez envolvendo outro parceiro sexual, não obstativa
do pedido por parte do pretendente de 30 anos - Pai da menor em local
incerto e não sabido - Dúvidas sobre a real situação pessoal da menor em
face da voluntariedade do pedido e relevância de seu interesse, único que
deve ser preservado - Artigo 1.107 do Código de Processo Civil - Conversão
do julgamento em diligência à eventual localização do pai e estudo social da
menor ao convencimento da adequação da medida postulada - grifo nosso -.
(Apelação Cível n. 003.361-4 - São Paulo - 6ª Câmara de Direito Privado -
Relator: Munhoz Soares - 02.10.97 - V.U.)
O mais aberrante é que o Novo Código Civil aprovado em 2002 e em vigor
desde 2003, manteve no seu artigo 1.520 a permissão de
...casamento de quem ainda não atingiu a idade núbil para evitar imposição
ou cumprimento de pena criminal. Em nosso entender, esse artigo relaciona-
se à extinção da punibilidade prevista no Código Penal, aplicável aos casos
em que a vítima de delitos sexuais se casa com o agressor. Pressuposto para
este benefício consiste no fato de a vítima ter sua “honra preservada” por
meio do casamento (Pimentel, 2002, p. 18).
Portanto, eventualmente são colocadas situações que são legalmente
previstas, com possíveis soluções dentro de tal legalidade, mas que estão
172
incompatíveis com valores humanos que têm sido defendidos. Cabe ao assistente
social, em tais casos, independentemente dos aspectos legais, posicionar-se
criticamente e com encaminhamentos coerentes com a ética profissional.
Esta reflexão se articula ao debate do capítulo anterior, onde se discutiu a
relevância de que a atuação profissional considere a totalidade da realidade, com
vistas a poder contribuir com a melhor aplicação das leis e ampliação/efetivação dos
direitos sociais. As conquistas nesta direção podem ser, assim, efeitos desta prática
persistente de sujeitos coletivos.
Assim, no levantamento das ementas não apenas do Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo, mas também de outros estados, do Superior Tribunal Federal
e outras pesquisas sobre jurisprudências, estudaram-se as mais variadas situações:
maus-tratos, disputa de guarda, destituição do poder familiar, tutela, adoção, idade
muito elevada do adotante, adoção por homossexual, crimes contra a criança,
pedofilia na Internet, filmes em televisão em horário impróprio, enfim, situações da
vida cotidiana que emergem no judiciário, quando muitas vezes, são solicitados os
assistentes sociais e psicólogos para elucidar alguns fatos e apontar elementos
importantes para a decisão do litígio.
Este levantamento dos casos foi permeado por reflexões sobre o
Judiciário, o cotidiano profissional, o projeto ético-político-profissional, a ausência
das políticas públicas, o agravamento da questão social e suas velhas e novas
expressões como objeto de intervenção do assistente social. Porém, havia um eixo
principal de reflexão: como o Serviço Social, compondo o trabalho coletivo, contribui
173
das mais diferentes formas para as decisões judiciais? Seria uma participação que
afirma a democracia, os direitos sociais, busca desvelar as desigualdades sociais
que se expressam no seu cotidiano de trabalho e, com isso, pensar enfrentamentos
e encaminhamentos? Assim, qual seria a sua contribuição e como ela se expressaria
neste campo?
Considerando essa inserção, a reflexão expressa por Iamamoto ecoou:
Como todo trabalho resulta num produto, qual é o produto do trabalho do
assistente social? Não dá pra dizer “não tem” ou “não sabe”, pois se assim
fosse este trabalho especializado não teria demanda ( 2003, p. 66).
Conforme resgatado no histórico sobre o Serviço Social e sua inserção
no Judiciário, ao refletir sobre os processos de trabalho, buscou-se não apenas
identificar os aspectos técnico-operativos, mas compreendê-los como resultado de
determinações sócio-institucionais e da conjuntura histórica em que se circunscreve
e se desenvolve a profissão.
Com este breve resgate pode-se afirmar que, para o Serviço Social
poder contribuir para a justiça social ao estar inserido no Judiciário, é preciso
compreender a profissão e sua trajetória, bem como a instituição.
Colman (2004) faz o debate sobre o Direito e o Judiciário, onde problematiza
que também esta instituição sofreu os impactos da ditadura brasileira. Portanto, a
reconstrução das instâncias democráticas e a construção de novos mecanismos da
democracia perpassam as profissões e as instituições nas quais se inserem.
174
Refletir sobre os processos de trabalho é fundamental quando se
busca compreender os rumos ético-políticos que orientam uma determinada
profissão, não apenas no seu papel cotidiano, respondendo a demandas
emergentes, mas como o faz enquanto projeto de uma categoria, que está articulada
a projetos societários.
Essas reflexões devem ser feitas a partir do cotidiano, mas superando
sua imediaticidade, percebendo-o como construção histórica, no qual sujeitos
compõem processos coletivos, embora pareçam individuais.
Por este percurso reflexivo, busca-se compreender o conjunto das
ações profissionais evidenciadas nos autos, os quais culminam numa decisão em
Segunda Instância. Ou seja, naquelas situações em que a decisão judicial de um
caso, atendido e julgado num determinado Foro, gera discordância, as partes e/ou o
Ministério Público movem um recurso judicial que será julgado na Instância Superior.
Empiricamente, verifica-se que muitos dos argumentos na Justiça da Infância e da
Juventude mencionam conteúdos dos laudos sociais ou psicossociais elaborados
pelos técnicos (assistentes sociais e/ou psicólogos).
Após o debate com a banca de qualificação, considerou-se o universo
bastante fluido e muito extenso para a dimensão de uma dissertação de mestrado.
Além disso, há diferenças, tanto processuais quanto de conteúdo dos conflitos, entre
as ações da Vara da Família e Sucessões, Cíveis e da Infância e da Juventude.
175
No âmbito da infância, empiricamente se observa que há maior atuação
recursal diante de casos de destituição do poder familiar, medidas sócio-educativas
e adoção. As medidas protetivas dificilmente são matéria de recursos, pois em geral
as crianças/adolescentes não contam com pais, responsáveis e advogados que
representem seu direito a tais medidas.
Articulando as considerações da banca, foram retomadas as ponderações do
Dr. Edson Sêda que também apontou a importância de seguir pelo caminho dos
casos significativos. Definitivamente, assumiu-se que esta pesquisa não seria um
levantamento jurisprudencial, mas objetivou qualificar quais foram os subsídios do
trabalho do assistente social que contribuíram para a aplicação da Lei e para as
jurisprudências. Para tal averiguação seria necessário, então, percorrer todo o
caminho processual dos casos.
Tal constatação, provocou novo levantamento, apenas do conjunto de ações
judiciais originadas numa determinada Comarca da região metropolitana de São
Paulo, as quais tramitaram na Vara da Infância e da Juventude e tiveram decisões
na Segunda Instância.
Em virtude da gravidade das conclusões sobre as situações observadas nos
autos, na elaboração final deste trabalho optou-se por omitir o nome da Comarca e a
identificação da Vara da Infância e da Juventude. Sendo o objetivo da pesquisa
subsidiar, com suas reflexões, o trabalho do assistente social, tal omissão apenas
deixa de ilustrar um lugar onde ocorre a intervenção judicial na vida da população,
não interferindo em nenhum aspecto na cientificidade dos procedimentos e das
176
análises. Nesse sentido, não agregaria nenhum conhecimento relevante permitir a
identificação da Comarca/Vara da Infância e da Juventude onde tramitaram os
autos. A pesquisadora não poderia deixar de realizar as críticas diante dos
elementos que foram sendo levantados, mas cabe preservar a identidade dos
profissionais envolvidos, os quais receberão a devolutiva dos resultados deste
estudo.
Por todo o exposto, quaisquer dados que poderiam levar à identificação
mencionada foram omitidos. Esta explicação se fez necessária, pois os resultados
decorrem do próprio pesquisar que se fundamentou numa perspectiva crítico-
dialética. Coerentemente, há pressupostos éticos que compõe esta perspectiva, o
que exige a crítica radical impessoal e objetiva, não podendo relevar qualquer dado
que informe a possibilidade de realizar um trabalho mais qualificado em direção à
efetivação dos direitos da criança e da família (biológica, substituta, e/ou extensiva).
Tratando-se de uma pesquisa exploratória, avaliou-se que os casos
significativos de uma amostra intencional possibilitariam verificar se e como o
trabalho do assistente social pode contribuir para a criação de jurisprudências.
Compreendendo que são necessários elementos que fundamentem a decisão
judicial, observou-se principalmente os nexos entre os elementos apurados no
estudo social e as análises da equipe técnica, dos representantes do Ministério
Público da Primeira e Segunda Instâncias, dos juízes e dos desembargadores.
Assim, procurou-se identificar quais elementos subsidiaram as manifestações, bem
como possíveis fragilidades.
177
Verificada a diversidade de situações que podem gerar novas
jurisprudências, foram necessárias outras aproximações. Para tanto, foram
estudados os casos de destituição do pátrio-poder,57 maus-tratos, adoção, guarda e
abrigamento. Além destes, relacionados às medidas protetivas, também foram
identificados casos sobre medidas sócio-educativas, mas que, devido às suas
particularidades, não foram incluídos na análise.
Com essas considerações, foram levantadas na Vara da Infância e da
Juventude escolhida as decisões da Primeira Instância que motivaram recursos
judiciais por alguma das partes, através do “Livro de Remessa ao Tribunal de
Justiça”. Alguns casos anteriores à abertura de tal livro foram registrados
posteriormente, mas é possível que nem todos constem no referido instrumento de
registro do cartório da Vara da Infância e da Juventude.
Frente a este universo, no período de 1991 a 2001, identificou-se um
total de 45 casos, originados na Vara da Infância e da Juventude escolhida, que
receberam recurso junto à Segunda Instância. Para chegar ao total real foi
necessário comparar os dados parciais obtidos pelos livros da referida Vara e todo o
levantamento junto ao Tribunal de Justiça.
Desses 45, estudamos as ementas dos 28 que são indicados como
casos jurisprudenciais. Eram 11 casos de destituição do pátrio poder; três casos de
destituição do pátrio poder cumulada com adoção; cinco casos de adoção; quatro
de modificação de guarda; dois sobre direito de visitas; um sobre inscrição no
57 O termo pátrio poder foi substituído por poder familiar a partir do Novo Código Civil, de 2003.
178
Cadastro de Pessoas Interessadas em Adoção;58 e dois sobre questão relacionada a
comunicação audiovisual.
3.3.2. Casos selecionados
Dentre eles, foram escolhidos 11 casos significativos, mas não foram
localizados três destes autos, e os oito localizados foram estudados integralmente. A
motivação foi intencional, devido à complexidade do caso, ao tipo de referência dos
operadores do Direito, ao estudo social e à influência na decisão.
Neste sentido, tratou-se especificamente de três casos desse universo,
denominados casos A, B e C, que serão peças principais das análises conclusivas,
sem perder de vista todo o universo explorado.
A fim de ilustrar o que compõe o estudo realizado, registrou-se que os
11 autos analisados são compostos por 2.076 folhas, (ou 4.152 páginas, se assim
consideradas)., embora nem todas sejam utilizadas no seu verso. Contudo, todas as
informações processuais naturalmente compõem o estudo do caso.
A pesquisa indicou um aspecto importante, que é popularmente citado
como a “morosidade” do Judiciário. Assim, vale registrar alguns dados sobre a
questão do tempo de tramitação. Ressalte-se que, obviamente, para validade dos
58 ECA. Art.50. A autoridade judiciária manterá, em cada comarca ou foro regional, um registro de crianças e adolescentes em condições de serem adotados e outro de pessoas interessadas na adoção. § 1ª – O deferimento da inscrição dar-se-á após prévia consulta aos órgãos técnicos do Juizado, ouvido o Ministério Público. Art. 29 – Não se deferirá colocação em família substituta da pessoa que revele, por qualquer modo, incompatibilidade com a natureza da medida ou não ofereça ambiente familiar adequado.
179
feitos, todos os procedimentos devem estar em acordo com o Código Processual
Civil e os procedimentos previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente. Abaixo
estão identificados alguns dados em relação a este tempo de tramitação, sobre os
casos que estão denominados como 1, 2, 3, 4 e 5. Os dois últimos, devido a
aspectos significativos para a pesquisa, foram abordados também nas
considerações finais deste trabalho. Considerando que os casos A, B e C foram
tratados em detalhe, tais dados estão contidos na análise e não foram descritos no
quadro, evitando-se tornar uma leitura repetitiva. O tempo relacionado à decisão na
Segunda Instância foi calculado considerando-se desde o dia em que os autos foram
recebidos no Tribunal de Justiça até a data do acórdão.
Caso 1 Adoção pleiteada com concordância inicial da genitora
Tempo até a
tomada de
decisão
Primeira Instancia
4 anos e 1 mês
Segunda Instância
8 meses
Total do processo
4 anos e 9 meses
observações Na Primeira Instância houve um esforço em localizar a genitora, bem como
verificar seus laços com a criança, constatando-se que, contrário ao
discurso, não havia mostras de empenho e interesse.
Caso 2 Denúncia de Conselho Tutelar, onde os pais negligenciavam os cuidados de
duas crianças, já com o desenvolvimento cognitivo e motor prejudicado.
Denúncia feita após tentativas de que alterassem a situação com apoio de
serviços municipais
180
Tempo até a
tomada de
decisão
Primeira Instancia
1 ano e 6 meses
Segunda Instância
5 meses
Total do processo
3 anos e 6 meses
observações As crianças foram colocadas para adoção, mas devido a deficiência que
ainda possuíam, decorrente de, dentre outros fatores, de severa negligencia
sofrida, não se localizou interessados no cadastro da Vara e nem no
Cadastro Central59. Observe-se a rapidez em que a Câmara julgou o caso,
que apresentava riqueza de detalhes sobre o nível de violação e sobre o
empenho dos órgãos envolvidos para favorecer a reorganização da família
biológica, o que, contudo, não atingiu os resultados pretendidos.
Caso 3 Pedido de adoção formulado por tios maternos
Tempo até a
tomada de
decisão
Primeira Instância
1 ano e 6 meses
Segunda Instância
1 ano
Total do processo
3 anos e 3 meses
Observações Caso que exigiu acompanhamento do Setor Técnico, posto tratar-se de
pedido de adoção e que requerentes não tinham elaborado adequadamente
a infertilidade e outros aspectos fundamentais para realmente assumirem a
criança como filha. Observou-se fragilidade da genitora e baixa adesão às
orientações e encaminhamentos. Após a decisão em Segunda Instância,
manteve-se acompanhamento técnico antes de se deferir a adoção. Houve,
ainda, demora para o cancelamento do registro anterior, realizada em
cartório de outro Estado.
59 Todos as pessoas aprovadas para adoção possuem seus dados no Cadastro Central do CEJAI – Comissão Estadual Judiciária de Adoção Internacional. Este Cadastro também possui entidades que atuam com adoção internacional e é acionado sempre que não existem casais ou pessoas inscritas na Vara local, dispostas a adotar a criança que está sendo colocada em família substituta nesta modalidade.
181
Caso 4 Criança entregue pela genitora a casal de conhecidos, com posterior
arrependimento.
Tempo até a
tomada de
decisão
Na Primeira Instância
1 ano e 1 mês
Segunda Instância
1 ano e 4 meses
Total do processo
3 anos e 1 mês
Observações Caso em que há poucos dados sobre a genitora, que manifestou
arrependimento em audiência três meses após a entrega. Há casos
jurisprudenciais que, tratando de situação semelhante, opina pelo retorno à
família biológica, vez que a entrega não constituiria abandono ( vide o caso
citado no início deste item, originado no Tribunal de Justiça de Minas
Gerais).
Caso 5 Caso de destituição do pátrio poder, havendo retorno da criança sob os
cuidados dos genitores, com concordância dos requerentes
Tempo até a
tomada de
decisão
Primeira Instância
1 ano e 3 meses
Segunda Instância
Primeira decisão em 8
meses; nova decisão
após mais um ano
Total do tempo
processual
3 anos e 3 meses
Observações Caso em que após manifestação favorável à destituição do pátrio poder pelo
Procurador de Justiça, foram juntadas novas peças, em que se informava a
desistência dos requerentes.
182
O quadro acima ilustra quais foram os prazos em que ocorreu o andamento
dos autos.60 Em geral, observou-se variação de prazos entre a chegada dos autos à
Secretaria do Tribunal de Justiça e a posterior distribuição ao Ministério Público para
dar vista ao Procurador de Justiça. Este, em geral, manifestou-se com agilidade nos
autos.
Levantaram-se a partir dos autos, os laudos, relatórios e outros documentos
relacionados à atuação da equipe técnica, os elementos que fundamentaram as
suas posições. Esses itens foram abordados quando tratamos do “conjunto dos
processos de trabalho”.61Além destes, consideraram-se também as manifestações
do Ministério Público e dos advogados, documentos de instituições, os termos de
audiência, a decisão judicial de Primeira e Segunda Instâncias e a decisão final do
´processo.
Ao averiguar o conteúdo que foi registrado e o que foi acolhido por tais
operadores podem-se levantar os procedimentos e formas utilizados para tanto. A
relevância está em poder verificar quais conteúdos contidos na leitura técnica do
assistente social tenham tido maior relevância no desfecho do litígio. Portanto, este
profissional deve cuidar da elaboração dos registros para que seu discurso provoque
a atenção do seu leitor e até oriente a sua reação.
Com tal intenção, também foram feitas análises do seu conteúdo quando
sugeriram divergência de significados entre si.
60 Avaliara-se que tais dados seriam dispensáveis, mas a equipe técnica em geral não tem tais referências e no seu cotidiano são consultados pelos usuários. Embora não seja um fato determinante para a efetivação do seu trabalho, parece ser um dado importante para poder prestar eventuais esclarecimentos ao usuário e, mesmo, para se ter conhecimento sobre o assunto. 61 Abordamos o tema no Capítulo 1 – Histórico do Serviço Social no Judiciário, quando tratamos dos processos de trabalho do assistente social.
183
CASO A
Neste caso a criança foi entregue pela genitora à Vara da Infância e da
Juventude. A mesma foi ouvida posteriormente em audiência, quando confirmou que
estava entregando a criança. Após a audiência, a criança passou vinte dias em
abrigo e, após, foi colocada em família substituta, que era um casal inscrito no
Cadastro de Pessoas Interessadas em Adoção da Vara.
A genitora contava 21 anos à época, sendo que o genitor da criança não
reconheceu a paternidade. A genitora declarou em Juízo que não possuía condições
para manter a filha consigo e “gostaria que a justiça encontrasse uma família” (termo
de audiência). Tinha outra filha, então com três anos de idade , sob os cuidados dos
avós maternos, em outro Estado.
O primeiro e único laudo foi apresentado após quatro meses da data de
início dos autos. Em razão de a criança ter sido entregue aos cuidados do casal
inscrito no Cadastro de Adoção, o casal era acompanhado
“desde que a criança foi entregue ao casal, em xx, [...] pois constantemente
os requerentes nos procuram (grifo nosso) para compartilhar suas vivências e para
expressar a felicidade que sentem ao estarem consolidando o sonho de se tornarem
pais”
O laudo afirma a boa adaptação da criança que “deu sinais de sua satisfação
por ter sido acolhida desde as semanas iniciais. Atualmente, a criança demonstra
estar com boa saúde física e extremamente vinculada a seus novos pais”.
184
Observam-se os seguintes elementos apresentados na Primeira Instância
pelo promotor de justiça, juiz de Direito e advogado, com base no estudo
psicossocial.
O Promotor de Justiça levantou objetivamente a legalidade e as
condições do casal requerente para adotar a criança:
“Há notícias nos autos de que o casal requerente é cadastrado no Banco de
Adoção deste Juízo[...], presumindo-se, pois, que tem condições morais, médicas e
econômicas[...]. Comprovada está a estabilidade familiar, pelos relatórios juntados e
depoimentos colhidos”.
O juiz também se manifestou em relação aos requerentes:
“Com os Requerentes, a criança vem recebendo todo o necessário para uma
correta formação, tendo havido plena adaptação em seu novo lar, como atesta a
avaliação técnica nos autos.
O deferimento do pedido, dessa forma, representa real vantagem à criança”
(artigo 43 da citada Lei [ECA]).
As técnicas citaram no laudo que por ocasião da avaliação para inscrição no
Cadastro de Pessoas Interessadas em Adoção foram “constatadas algumas
nuanças do relacionamento conjugal que chegaram a causar preocupações”, tendo
185
o casal sido encaminhado à terapia familiar. Esta informação foi problematizada pelo
advogado:
“Ainda que pareça que tais nuanças estejam plenamente superadas e
amadurecidas, faz-se necessário um certo rigor antes de se deferir uma adoção a
um casal com tal perfil.”
Cabe observar que o casal havia realizado avaliação psicossocial,
exigida para inscrição no Cadastro. As técnicas observam a dinâmica do casal, seu
histórico, e todos os aspectos de relevância para o propósito de adoção de uma
criança. Assim, se ocorreram situações e estas foram superadas, seja por dinâmica
do casal, ou decorrente de apoio técnico da equipe ou de profissionais externos ao
judiciário, não caberia resgatar este fato nos autos em questão. Por melhor que seja
a intenção dos técnicos de esclarecer que os problemas foram superadas, por outro
lado, é como se o casal estivesse em suspeição por fatos do passado (ainda que
superados). Tal dubiedade, como visto, pode ser utilizada de forma indevida.
Na dinâmica do contraditório, fazendo uso de tal informação, o advogado
moveu recurso contra a decisão, tendo, então, novo parecer dos operadores do
Direito.
Recurso em Primeira Instância:
Ressalte-se que neste momento atuou outra representante do Ministério
Público (substituta), a qual resgatou de forma muito clara toda a trajetória da
186
situação da criança, até sua chegada ao casal inscrito regularmente no Banco de
Adoção. Tal procedimento foi importante para o andamento do caso, vez que os
autos não deixavam claro que situações havia ocorrido para a criança ser colocada
em família substituta.
A Promotora apreciou os autos e levantou os dados para sua manifestação:
“a genitora biológica compareceu espontaneamente em juízo, com o intuito de
entregá-la à adoção, alegando ausência de condições para criá-la e educá-la, bem
como afirmando que ‘a menina não vai fazer falta pra mim’.”
Além disso, analisou que a genitora, em audiência
“novamente afirmou o desejo de entregar a criança para que fosse adotada.
Estando a criança sem responsável legal, foi encaminhada a entidade de abrigo,
enquanto se realizava consulta ao Cadastro de Adotantes deste juízo.”
Sobre a avaliação técnica, mencionou que
“Passado o prazo estipulado por lei para o estágio de convivência, foi
realizada a avaliação pela assistente social e pela psicóloga deste juízo,
constatando-se a plena adaptação da infante à nova família.”
É relevante registrar a importância da presteza do trabalho dos escreventes.
No presente caso, foi certificado que
187
“revendo em cartório os autos de nº xxx, em nome da crianças y, verifiquei
que não houve a destituição do pátrio poder da genitora, pois a mesma em
audiência manifestou o desejo de entregar (a criança) para adoção. Outrossim, há
nos autos supra, determinação para a juntada da oitiva da genitora e arquivamento
daqueles autos, a qual foi cumprida conforme fls.09 destes autos.”
O Juiz retomou os fundamentos jurídicos da decisão, explicitando que
foram respeitados todos os trâmites legais. Determinou, então, que fosse remetido
para o Tribunal.
Recurso na Segunda Instância
A Procuradora de Justiça manifestou-se um mês após receber os autos,
quando apontou as falhas da primeira manifestação do representante do Ministério
Público na primeira instância e alguns aspectos processuais.
Trouxe, então, os primeiros elementos relacionados aos direitos da genitora
para a preservação de seus vínculos com a criança. Considerando o teor deste
argumento, transcrevemos parte de sua manifestação:
“Consta que foi esclarecida [pelo magistrado] das conseqüências de sua
atitude, mas não consta que tenha sido de algum modo esclarecida que ante a
pobreza poderia ter sido incluída em algum programa de auxílio ou apoio, o que era
de rigor (art. 23 e seu parágrafo único, ECA) – grifo nosso.
188
Não há nos autos prova de que tenha abandonado material, emocional,
afetivamente a criança.
A simples declaração de que não tem condições de criar a criança, de que
procurou a Justiça Especializada para que colocasse a recém-nascida de nove
meses em família substituta não pode ser tida (sem outros elementos) como
abandono, se não se tentou colocar a família em programa de apoio, com
acompanhamento de técnicos especializados.
Como se infere dos autos que a criança foi institucionalizada somente após a
oitiva da genitora, é de presumir que, apesar dos parcos recursos materiais, a
apelante deu o atendimento possível à criança, cuja carteira de vacinas demonstra
que a menor foi levada a posto de saúde nas datas corretas.”
Essa apreciação foi bastante assertiva no que se refere aos direitos da
criança, vez que o ECA preconiza o direito ao convívio familiar, devendo haver ação
da política de atendimento para evitar o rompimento desses vínculos.
Considerando aspectos processuais, a representante opinou pela nulidade da
sentença.Após seis meses da manifestação da Procuradora de Justiça, os autos
foram, então, examinados pela Câmara Especial. O relator considerou que não havia
que se questionar os trâmites processuais indicados, posto que o caso constituía
hipótese de adoção consensual, cabendo respeitar as normas do ECA. Além disso,
apreciou o caso:
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“Insta consignar que o apelo interposto pela genitora não tem por objetivo o
resguardo dos superiores interesses da menor, mas, pelo que se infere de seus
termos, aos de caráter pessoal.”
Assim, a Câmara rejeitou o recurso. O caso tramitou e foi concluído em um
ano e nove meses.
Analisando os autos, verificou-se que há brevíssimo laudo psicossocial
(em uma lauda), referente apenas à apreciação sobre o estágio de convivência. Se
não existisse a manifestação da Promotora de Justiça substituta, diante do recurso
junto à Segunda Instância, provavelmente haveria o retorno dos autos para
diligência quanto à situação psicossocial do caso, gerando maior demora na solução
do litígio.
Assim, a relevância de estudar este caso deve-se ao fato de que a Promotora
de Justiça Substituta, que atuou após a titular, ao apresentar as contra-razões face à
apelação do advogado da genitora, resgatou elementos fundamentais que
explicaram a chegada da criança até o casal que pleiteava a guarda com fins de
adoção.
Esses autos evidenciam, ainda, que apenas um laudo, sumário, sobre a
adaptação de um bebê à família que pleiteia sua adoção, pode ser insuficiente para
preservar os direitos da criança. De fato, como alertou a procuradora de justiça, não
se vislumbram indícios de uma atuação do Setor Técnico para a preservação dos
190
vínculos e não há citação de que foram empreendidos esforços neste sentido,
esclarecendo se não houve atendimento pela política pública devido ao desinteresse
da genitora, por não ter havido encaminhamento pelos profissionais ou pela
inexistência dos serviços.
Vejamos: existiram dois processos. O primeiro de entrega da criança para a
Vara da Infância e da Juventude e, posteriormente, a abertura de um segundo, de
adoção desta criança por um casal devidamente cadastrado para tal fim, nos termos
legais.
Neste sentido, vale salientar que fica a dúvida se nos autos onde a genitora
fez a entrega houve tentativas de buscar familiares biológicos ou encaminhamentos
para recursos da comunidade para evitar o rompimento do vínculo entre mãe e
criança. Se, por um lado, o casal estava devidamente inscrito e recebeu a criança
por provocação da Vara da Infância e da Juventude, por outro, decorreram apenas
vinte dias entre a audiência de entrega da criança a tal juízo, que promoveu medida
protetiva de abrigamento, e a chegada da mesma ao casal adotante. Saliente-se que
pela informação contida nos autos analisados, parece improvável que tenha havido
acompanhamento pelo Setor Técnico no sentido ora problematizado.
Não cabe aqui avaliar a qualidade do atendimento técnico, sobre o qual não
temos todos os elementos para uma análise mais aproximada da realidade, mas a
pesquisa crítica deve explicitar quando ficam lacunas que não conseguiu aprofundar.
Fica, então, uma interrogação sobre o esgotamento das medidas para manutenção
da criança junto à família biológica. Observe-se que os operadores do Direito se
191
manifestaram quanto à correta aplicação da técnica jurídica. Por outro lado,
estudando este caso, ficam indagações sobre o trabalho técnico, que parece ter sido
realizado no estrito sentido de garantir a colocação da criança em família substituta.
Se foram esgotadas as possibilidades de manutenção dos vínculos da criança
com a genitora, não há informações nos autos que informem que isso ocorreu. Esta
observação é importante para alertar o assistente social, que deve considerar que
seus registros serão utilizados em outras instâncias da Justiça, não podendo ser
sumário nas informações. Devido ao acúmulo de trabalho, esta tendência pode ser
reiterada no cotidiano, deixando o profissional de refletir que, ao se posicionar no
laudo, ele perde o controle da informação, que irá percorrer outros caminhos quase
autonomamente, mas sujeita a interpretações sobre as quais o autor não terá
nenhuma possibilidade de esclarecer eventuais distorções.62
CASO B
Este caso teve início ao ser autuado um “pedido de providência”
provocado por um ofício do SOS Criança,63 assinado por uma educadora de rua,
denunciando maus-tratos contra dois irmãos, um menino de 1 ano e sete meses e
uma menina, de sete meses.
Indo os autos para o Setor Técnico, a assistente social informou após
27 dias, que a família havia se mudado e pedia que se oficiasse a Secretaria da
62 Vale reiterar a importância do estudo de Selma Magalhães sobre esta questão. 63 Equipamento ligado à Fundação do Bem-Estar do Menor, que, entre outras ações, recebia por telefone denúncias da população. Tais denúncias eram verificadas por técnicos e educadores de rua, sendo encaminhadas para as Varas da Infância e da Juventude, quando necessário.
192
Habitação, que, por sua vez, após dois meses conseguiu localizar o casal
denunciado e oficiou a Vara da Infância e da Juventude.
Outra assistente social, então, realizou o estudo social, elaborando um
relatório minucioso, resgatando o histórico familiar, identificando a situação que se
apresentava naquele momento, as demandas estruturais, no aspecto afetivo,
relacional e sócio-econômico e os problemas sofridos pela família em questão. Na
realização do estudo social, verificou as atitudes e a percepção dos genitores sobre
a situação: ambos se mostravam indiferentes à sua forma de lidar com os filhos,
considerando que estava tudo conforme a normalidade. Além disso, o genitor não
aceitou a sugestão da técnica quanto ao atendimento junto à Secretaria Municipal de
Promoção Social, onde também poderia requerer, na época, o registro da filha de
sete meses que não havia sido registrada.
Diante desta situação, a técnica orientou os genitores sobre os deveres
inerentes ao poder familiar e sugeriu novo estudo social em trinta dias e um estudo
psicológico do caso, o que foi determinado pelo Juiz.
Provavelmente devido à gravidade do quadro, o segundo estudo social
foi realizado por uma dupla de assistentes sociais, e uma avaliação psicológica,
também por outra dupla de psicólogos.
No prazo previsto, o novo estudo social verificou o agravamento da
situação, tendo inicialmente as assistentes sociais alertado o casal sobre a “natureza
da negligência material e afetiva para com os filhos”. Assim, foram encaminhados
193
para o Fundo Social, Casa da Criança (abrigo que acolhia crianças durante a
semana, devolvendo-as às sextas-feiras, com retorno na segunda pela manhã) e
Posto de Saúde. Advertida sobre as condições da moradia, a genitora “pareceu
concordar”, mas quando da última visita “nada se alterou”. As técnicas descreveram
as condições de vida, com evidências de que os cuidados para com os filhos eram
negligenciados. Como identificado pela denúncia, o casal sofria de dependência de
álcool, mas sem interesse em tratamento adequado. As assistentes sociais
afirmaram que “os genitores não atentam objetivamente para as necessidades dos
filhos”, sendo as crianças “privadas dos cuidados”, com comprometimento do
desenvolvimento, mostrando-se “deprimidas, inativas, desanimadas e pálidas”. O
menino, por exemplo, parou de falar e os pais não se mostram preocupados com tal
situação. As orientações em geral foram contestadas pelo casal, que apresenta
discurso contraditório e resistente. As profissionais procuraram levantar indícios que
explicassem esse quadro, articulando a esta análise as condições de miserabilidade
da família. Por fim, opinaram pelo “abrigamento ou por colocação em família
substituta”.
O laudo psicológico trouxe posteriormente a contribuição de que as
duas crianças encontram-se intensamente prejudicadas no desenvolvimento, com
atrasos motor e na formação de vínculos afetivos. Entrevistou, ainda, os outros três
filhos apenas do genitor em questão. Uma delas relata que a madrasta não sabia
cuidar de crianças, mas elogiava o pai. Conclui o parecer na mesma direção do
estudo social.
194
As crianças foram abrigadas. O Ministério Público manifestou-se,
resgatando todo o quadro descrito nos referidos laudos, afirmando
“Assim, demonstram os requeridos terem violado todos os deveres inerentes
ao pátrio poder, quais sejam o de sustento, guarda e educação, demonstrando que
não estão aptos a exercê-lo”.
Nesse sentido afirmou que a “destituição de pátrio poder visa proteger o
menor para dar-lhe oportunidade de ser integrado em família substituta na
modalidade de adoção”.
Os pais moveram a contestação, alegando serem inverídicas as
alegações da inicial e contestaram a ação de destituição do pátrio poder. O
advogado registrou o “compromisso [dos genitores] de cuidar bem dos filhos,
inclusive com acompanhamento de estudo social”.
O juiz manifestou-se afirmando ser cabível produção de prova oral, por
meio de depoimentos pessoais e avaliações técnicas, designando oitiva das
testemunhas, depoimento dos genitores, “Estudo Social no lar dos genitores,
submetendo estes a avaliação psicológica, devendo, ainda, a situação atual das
crianças ser avaliada, em comparação com aquela anterior à colocação em entidade
de abrigo”.
A avaliação psicológica apontou as contradições do discurso dos
genitores, que exageravam ao afirmar como cuidavam da bebê, que seria então, a
195
caçula, que vivia na ocasião em companhia deles: segundo eles, davam três banhos
por dia e a alimentavam a cada uma hora. A psicóloga verificou que o casal tinha
“caráter dissimulado” e que o desejo de retorno dos filhos “está(va) mais vinculado a
sentimentos de vaidade e posse do que uma preocupação genuína com o bem-estar
dos filhos”. A profissional percebeu, ainda, que o casal não buscou mudanças e nem
apresentava dados confiáveis; ambos procuravam “ocultar o modo de vida, atrás de
mentiras, contradições e dissimulações”. Não admitiam as “condições psicológicas
precárias em que se encontravam seus filhos”. Propôs, por fim, a colocação em
família substituta.
O novo estudo social verificou que a “situação habitacional continua(va)
inalterada”. Porém, a recém-nascida estava registrada, havendo organização dos
seus objetos e suas roupas. A genitora mostrou brinquedos que alegou serem dos
filhos abrigados, mas que inexistiam no período do primeiro estudo social. O mesmo
discurso fantasioso e exagerado da genitora observado pela psicóloga foi
evidenciado nos contatos com a assistente social, chegando a dizer que tiraram “03
certidões” da bebê recém-nascida. Esse discurso, porém, não evidenciou que havia
reflexões sobre o que seria melhor para os filhos, mas uma conduta que buscava o
convencimento da Justiça. A assistente social confirmou também que os outros três
filhos realmente não viviam com o genitor, mas tinham sido devolvidos à genitora
deles, que residia muito próximo dali. As outras duas crianças da genitora viviam
com os avós maternos, já passados quatro anos (as crianças tinham seis e sete
anos de idade na ocasião desse estudo).
196
A assistente social concluiu que o “casal ainda não reúne condições para ficar
com os filhos, já que também não demonstrou mudanças significativas no modo de
viver e pensar, denotando uma situação de insegurança e riscos às crianças. Os
mesmos não possuem auto-crítica de sua situação, ao contrário, procuram simular
uma situação que não existe”. Finalizou o estudo sugerindo colocação em lar
substituto.
O Juiz reiterou o pedido de avaliação do desenvolvimento da criança,
tendo a psicóloga exposto que o desenvolvimento das crianças no abrigo indica que
o vínculo afetivo com os pais era realmente frágil, pois o abrigamento pouco as
afetou. Foi confirmado que o desenvolvimento das crianças estava muito atrasado,
tanto no aspecto motor, quanto na aquisição de linguagem.
Diante disso, o representante do Ministério Público manifestou suas
alegações finais, articulando todas as provas apresentadas nos autos, concluindo
que a ação deveria ser julgada procedente. Destacou, ainda, que
“...cabe ressaltar que a presente ação tem como objetivo precípuo a defesa e
proteção dos menores envolvidos”, alertando que “apesar do aparente sofrimento
sentido pelas crianças devido à separação compulsória dos pais, o que se pretende
é justamente o seu bem-estar a longo prazo...” (grifo nosso).
É possível observar que a análise anterior não foi apresentada com
base nos dados informados nos autos, onde se dizia o contrário, de que não havia
um sofrimento da separação. Em outros casos também foi perceptível que os
197
operadores do direito externam mais suas convicções do que análises pautadas nos
dados existentes nos autos. O termo “aparente sofrimento” é contraditório à análise
da psicóloga, que descreveu que as crianças não sentiram a separação e, pelo
contrário, estavam dando bons sinais de desenvolvimento físico-motor e relacional.
Tal fato tem relevância. Ora, eventualmente, acrescentar elementos
para análise auxilia no andamento dos processos, mas há inadequação quando a
argumentação do operador do Direito contradiz os elementos contidos nos autos.
Na manifestação da promotora, esta apontou com clareza que os genitores
não prestavam cuidados aos outros filhos existentes. Considerou que as orientações
técnicas foram em vão ao se verificar que não ocorreram mudanças na vida do
casal. Concluiu que demonstraram “incapacidade absoluta para regerem suas vidas,
quanto mais de duas crianças pequenas” e que “Os laudos são todos, como se
verifica, negativos quanto ao retorno das crianças ao lar dos genitores”.
Manifestou-se, por fim, pela destituição do pátrio poder em relação às duas
crianças abrigadas.
O advogado, em suas alegações finais, manteve a defesa do direito à
convivência familiar e considerou que não se justificava a perda do pátrio poder
motivada por carência econômica. Sem adentrar na técnica jurídica, nas
argumentações sumárias do advogado foi possível identificar apenas esses dois
198
argumentos, que se tornam jargão quando não se fornece sustentação para eles,
dentro do contexto em julgamento.
O Juiz levantou os seguintes elementos apresentados nos estudos
realizados:
“Acionado o Setor Técnico deste Juízo, verificou-se que a família vivia em
condições sub-humanas, e que as crianças vinham sendo privadas das mínimas
condições de vida, apesar dos genitores, potencialmente, poder atendê-las. Foram
eles, então, encaminhados para os recursos da comunidade, com vistas à reversão
do quadro”.
Verificou-se que as orientações do assistente social não foram atendidas
“Como resultado, as crianças se apresentavam mal nutridas, [mal] vestidas, apáticas
e com retardo no seu desenvolvimento psicomotor. [...] verificou-se que o
relacionamento conjugal é instável.”
O termo “mal vestidas” relaciona-se à observação da profissional quando
realizou visita domiciliar e constatou que, apesar do tempo frio e da existência de
roupas de inverno, os genitores não cuidaram para que os filhos estivessem
devidamente agasalhados. Portanto, tratou-se do cuidado e não da estética. A
linguagem utilizada pela profissional demonstra tal fato com clareza, o que foi
articulado com outros fatos também.
199
“À avaliação social, seguiu-se a psicológica, com informação da negligência
no trato das crianças, o que motivou o retardo em seu desenvolvimento, [...] havendo
ainda agressividade entre si e com os filhos.”
“A avaliação social elaborada no lar dos genitores, de sua parte, passado
mais de um ano do início do feito, revela que as pequenas alterações ali introduzidas
têm mais a intenção de impressionar do que mudança efetiva de comportamento,
quando haveria, em tese, potencialidade para tanto. Conclui, também, pela não
devolução das crianças.”
O magistrado reafirmou que carência sócio-econômica não pode levar
ao afastamento de filhos da família natural, mas que “não menos certo que, se tal
situação vem influindo no pleno desenvolvimento das crianças, mesmo tendo os
genitores condições potenciais e auxiliados com recursos do município, quedando-
se inertes, a retirada das crianças, cujos interesses se sobrepõe a qualquer outro, é
medida de rigor, como demonstrada nos autos.”
À sua manifestação, adotou “como parte integrante desta decisão, as razões
constantes da manifestação [...] da Ilustrada Curadora da Infância e da Juventude,
que bem analisou os fatos tratados nestes autos”.
Recurso junto à Primeira Instância
O advogado recorreu da decisão de destituição do pátrio poder,
argumentando que “todas as provas colhidas em Juízo foram favoráveis” aos
200
genitores. A Promotora de Justiça apresentou as contra-razões de apelação,
argumentando que “outra realidade foi extraída das provas colhidas, isto é,
exatamente um quadro de negligência e desídia dos genitores em relação a seus
filhos”, sendo tudo comprovado através de prova técnica e testemunhal, mostrando
que os genitores não reuniam condições morais, emocionais e materiais de terem os
filhos sob sua guarda. Levantou ainda que
“Apesar de todas as orientações fornecidas pelas técnicas deste Juízo, os
recorrentes em nada alteraram sua situação por não aceitarem mudanças em seu
modo de vida, mesmo que isso significasse o risco de [perder] seus filhos.”
Observando os dados apresentados, concluiu que havia descaso não
somente com as duas crianças em tela, mas com os três filhos dele e com os dois
dela, todos vivendo em outros lares.
O Juiz, na mesma linha de análise, retomou que os genitores foram
encaminhados aos recursos da comunidade, onde receberam orientações técnicas.
Ressaltou que o quadro das crianças decorre das privações, havendo inclusive,
como conseqüência, grave comprometimento do desenvolvimento. A decisão pela
destituição do pátrio poder foi proferida em um ano e três meses após a abertura dos
autos.
Recurso junto à Segunda Instância
201
O Procurador de Justiça manifestou-se frente ao recurso de Segunda
Instância quatro meses após a decisão da Primeira Instância, ou seja, muito
rapidamente, considerado o tempo de trânsito dos autos (quando se efetivam todas
as certidões sobre tal movimentação). O referido procurador evidenciou em sua
manifestação a importância da visita domiciliar para elucidação e entendimento do
caso, e acompanhamento posterior, cujos dados apresentados nos laudos gerados
foram elementos fundamentais para sua decisão. Do laudo psicológico, citou o
entendimento de que o casal “está distante da realidade, não percebendo a situação
como ela é e não tendo nenhuma crítica de seus atos”. Acolheu o entendimento dos
pareceres psicológico e social quanto à conduta dissimulada, quando alegaram
cuidados inexistentes aos filhos, buscando “aparentar condições para a recobrada
dos infantes”. Considerou que se “nenhuma melhora houve, realmente, a ponto de
justificar alteração da situação, avaliando também que ficou caracterizado grave
descumprimento dos deveres inerentes ao pátrio-poder, com prejuízos inequívocos
para o desenvolvimento das crianças” que se mantenha a decisão de destituir os
genitores deste poder. Sinaliza que essa decisão deve “possibilitar a rápida
colocação em família substituta.”
Chegando à distribuição do Tribunal de Justiça somente seis meses
após a manifestação do Procurador de Justiça, os autos foram destinados ao
desembargador, que decidiu após dois meses, ou seja, também com agilidade. O
desembargador-relator ressaltou o primeiro laudo social, quando se evidenciou que
os genitores foram resistentes às orientações, havendo denúncia dos vizinhos
quanto ao alcoolismo e à violência doméstica. “O mesmo relatório informa que os
genitores não atentam para as reais necessidades dos filhos.” Indicou como
202
relevante a situação de miséria e falta de condições de higiene, inclusive porque
recusaram o auxílio oficial. Também foi salientada a postura dos genitores (“distante
da realidade”).
Ressaltou que
“Se é certo que a situação sócio-econômica, por si só, não pode justificar a
retirada das crianças de sua família natural, não menos certo é que, se esta situação
persiste e afeta o desenvolvimento dos infantes, ainda mais quando os genitores são
orientados e rejeitam qualquer auxílio, o afastamento das crianças é imperativo.
Seus interesses devem se sobrepor a qualquer outro.”
Observa-se neste caso a grande importância de terem sido apresentadas
conclusões assertivas, evidenciando que não se trata do nível de detalhamento das
informações, mas das elaborações técnicas diante do que foi levantado. Apresentar
um quadro extenso, descritivo das condições, nem sempre favorece uma boa
decisão. Os laudos sociais evidenciaram não apenas os fatos, mas na reelaboração
pela profissional, esta recorreu a conhecimentos, os quais foram articulados com um
posicionamento diante da situação. Explicitaram-se as trajetórias das partes, mas
garantindo compreender a dinâmica dos genitores diante da vida cotidiana, suas
condutas, discursos, posturas. Muitas vezes apenas se diz que uma pessoa fez isto
ou aquilo, sem haver uma análise do que tais atos significam na totalidade dos fatos
da realidade, quais são as possíveis causas, quais as contradições. É preciso
levantar elementos sobre a vida anterior, o presente e os planos futuros, sendo
também importante observar a consistência de tais planos. A profissional tampouco
203
deixou de buscar atendimento da família pela política pública, sendo este rejeitado
pelos genitores devido à dinâmica dos mesmos.
Saliente-se aqui que os elementos apontados pelo estudo social foram
acolhidos integralmente, sem se questionar os fatos e as conclusões elaboradas
pelas profissionais. A relevância deste caso é a agilidade de intervenção, sua
qualidade, a busca de conhecer o histórico da família, mas compreender também os
aspectos sócio-econômicos da mesma.
Vale ressaltar que o termo sócio-econômico tem sido majoritariamente
utilizado como aspectos materiais, financeiros. Contudo, é fundamental que não se
perca o sentido da expressão “sócio-econômica”, que trata das relações sociais
articuladas à dimensão econômica. Não se pode avaliar um aspecto em detrimento
do outro, mas evidenciar de que maneira tais dimensões se articulam, se compõem
e trazem características particulares a um sujeito, mas inserido no contexto maior,
permeado de variáveis e determinantes.
Outro aspecto de relevância é que a visita domiciliar foi explorada com
perspicácia, sendo um instrumento de aproximação e de averiguação, bem como
momento para sensibilizar e orientar os genitores.
Pensando sobre a efetividade da Justiça, observa-se um fato grave na
tramitação destes autos: entre a manifestação do Procurador de Justiça e a
decisão da Câmara Especial decorreram vinte e dois meses. Embora as crianças
não estivessem com os pais na situação grave identificada, por outro, o longo
período de abrigamento pode acarretar outros problemas. Além disso, em caso
204
de irmãos com o histórico relatado a colocação em família substituta torna-se mais
difícil.
Decidida a destituição, iniciou-se, com o retorno dos autos (dois meses após
o acórdão), a busca por família para as duas crianças. Solicitada a lista de casais ao
Cadastro Central, a assistente social verificou que os dados estavam
desatualizados, pois a maioria já havia adotado. Um detalhe interessante é uma
recomendação anotada no verso do ofício respondido por esse Cadastro: “OBS: Não
há casais no Cadastro Central que aceitem os dois irmãos. Tentar a colocação de (a
menina), em separado, para os casais apontados para (o menino)”.64 O juiz,
assertivamente, despachou que “Tratando-se de irmãos, que se encontram na
mesma instituição há vários anos, é inviável sua separação.” Determinou que a
consulta fosse para colocação dos irmãos no mesmo lar. Não havendo interessados,
que se iniciasse a busca por casais estrangeiros devidamente inscritos.
Diante da determinação do Juiz, novamente, verificou-se o Cadastro em
busca de pretendentes estrangeiros, identificando que não existiam. Contudo, em
consulta diretamente a representantes de uma agência italiana,65 houve interesse e
foi feita solicitação de autorização de visitas na entidade, com vistas a realizar coleta
64 É importante fazer aqui um parêntese e registrar o espanto diante da referida recomendação feita por um escrevente do Cadastro Central. Caberia a este uma “apreciação” sobre a colocação das crianças, principalmente propondo este tipo de conduta (separação dos irmãos). Esta é uma questão pendente, pois além de esse Cadastro ser desatualizado (até os dias atuais), dificultando muito o andamento das pesquisas, há que se pensar uma maneira de garantir a sua funcionalidade e, principalmente, eficácia. Não é pauta deste trabalho problematizar esse departamento, mas há muita angústia por parte dos profissionais toda vez que é necessário recorrer a tal listagem. 65 Outra nota se faz necessária: é fato que pelos problemas existentes no Cadastro Central, quando esgotadas as tentativas de localizar casais estrangeiros, recorre-se diretamente às agências de adoção internacional, as quais apresentam casais devidamente autorizados pelo órgão de referência. Portanto, evidenciam-se as severas dificuldades em acessar o referido Cadastro.
205
de sangue para exames de HIV e para fotografar os infantes. Após três meses do
retorno dos autos, as crianças foram adotadas por casal estrangeiro.
CASO C
Este caso iniciou com a petição de um termo de guarda e
responsabilidade de uma criança, então com 09 meses de vida. O caso foi concluído
quando a criança estava com três anos e onze meses.
Consta no termo de audiência que a genitora “entregou a criança para a
requerente para que a batizasse; como a genitora estava passando por dificuldades
financeiras e crise conjugal esta deu a criança aos requerentes para que a adotasse;
algum tempo depois a genitora arrependeu-se e quis retomar a criança, mas como
seu companheiro e genitor da criança foi assassinado ela não mais procurou pela
criança”
A genitora não foi localizada, tendo os requerentes afirmado que a
mesma havia se mudado para outra localidade. Foi determinado que se realizasse
avaliação psicossocial.
A Promotora de Justiça propôs ação de destituição do pátrio poder,
argumentando que
“a requerida abandonou (a criança), deixando-a aos cuidados de (f) e
de (g) , para que fosse adotada por eles, sob a alegação de não possuir condições
206
financeiras para manter a criança, ou mesmo psicológica, pois passava por crise
conjugal. Não comprovou, porém, essa versão, nem procurou recursos municipais
ou quaisquer outros, na tentativa de possibilitar a criação” da criança. Além disso,
considerou o fato de a genitora não ter deixado endereço e não ter retornado para
ver a criança. Entendeu, assim, que a genitora violou os deveres inerentes ao pátrio
poder. Solicitou que se buscasse localizar a genitora por meio do “TRE, SPC, DRF,
IRGP e INSS”.66 A criança estava com o casal desde a idade de, aproximadamente,
um a dois meses de vida.
Em seguida, foram anexados o laudo psicológico e o relatório social. A
psicóloga realizou a avaliação por meio de três entrevistas com os requerentes,
percebendo o grande interesse de efetivação da adoção. Na ocasião estavam há
dez meses com a criança. A requerente declarou que “recebe visita da genitora
esporadicamente e esta se nega a comparecer ao Fórum para manifestar-se sobre a
criança, apesar do casal já ter se oferecido para ir buscá-la em sua casa”.
O casal considerava a genitora teimosa e irresponsável, mas afirmou
que a mesma não interferia na relação com a criança. O casal tinha filhos
adolescentes que aceitaram a chegada da outra criança, com quem tinham boa
relação fraternal.
O laudo social trouxe dados sobre a composição e dinâmica familiar, as
condições sócio-econômicas e a descrição do ambiente habitacional. Nele, o técnico
confirmou os dados anteriores sobre a chegada da criança aos cuidados dos
66 Tribunal Regional Eleitoral, Serviço de Proteção ao Crédito, Delegacia da Receita Federal, Instituto de Identificação Ricardo Glumbleton Daunt, Instituto Nacional de Seguridade Social.
207
requerentes e sobre as visitas esporádicas da genitora, afirmando também que esta
não aceitava formalizar a adoção. Os requerentes afirmaram para as técnicas que a
genitora tem outros filhos que “passam por privações materiais”.
Assim, a assistente social ponderou que, embora a criança estivesse
bem cuidada e integrada à família requerente, havia a informação de que a genitora
“não concorda(va) com a adoção”. A sugestão da técnica foi de que o termo de
guarda fosse prorrogado e a genitora fosse “submetida a avaliação psico-social, com
vistas a um parecer conclusivo referente ao pedido de adoção”.
Decorreram meses de tentativas para localizar a genitora. Após nove
meses desde o pedido inicial, a genitora apresentou a contestação do pedido de
adoção. Na petição, informou que havia movido ação de busca e apreensão na Vara
Cível (que ocorreu no mês de fevereiro).
Nessa contestação, a advogada informou que a genitora teve três filhos
com o marido. Quando a criança em questão nasceu, o genitor estava
desempregado e mantinha um relacionamento com outra pessoa. Ou seja, a criança
foi gestada num período de conflitos e incertezas. A genitora recorreu ao casal para
receber apoio no cuidado da criança recém-nascida, vez que precisava trabalhar.
Conforme já vinha ameaçando, o genitor expulsou a requerente e os filhos para “fora
de casa”. Nesse período, a genitora pediu novamente apoio dos requerentes, de
forma mais contínua. O genitor vinha fazendo ameaças de tirar os filhos da ex-
mulher e isso a “obrigou a assinar o termo de guarda provisória” que teria dado início
aos autos. Logo depois, o genitor veio a falecer. Nessa ocasião, a criança
208
permanecia com o casal e a genitora a buscava no final de semana. Não se
menciona quanto tempo tal situação perdurou.
A genitora começou a receber a pensão do falecido após um ano da
entrega da criança. Diante deste fato, que garantiria condições melhores para cuidar
dos filhos, a genitora pediu a criança de volta, tendo recebido resposta negativa.
Além disso, acusou que os requerentes tinham conhecimento do seu
paradeiro, ao contrário do que disseram em audiência e em avaliação psicossocial.
Junto à petição da genitora foram apresentados dois boletins de
ocorrência que a mesma registrara contra o ex-marido. Dentre os fatos narrados
está a afirmativa de que “a vítima noticiou a autoridade policial que o indiciado supra
qualificado vem ameaçando-a de morte”, sendo que estava se separando e que o
conflito naquele momento era a resistência do marido em entregar os bens pessoais
dela e mobília do lar. Apresentou cópia de “Carteira familiar de controle de
distribuição de alimentos”, que comprovava o recebimento deste benefício para as
duas crianças pequenas, no posto de saúde. Anexou envelope de correspondência
recebido da Prefeitura Municipal e também o extrato do INSS, a fim de comprovar
renda e endereço, este último na comarca onde tramitaram os autos.
O juiz determinou oitivas de testemunhas, audiência com a genitora e
novo “estudo psico-social, com visita domiciliar no lar da genitora e dos guardiões,
onde será verificada a relação de afetividade entre eles”.
209
Na audiência com a requerente-guardiã, esta esclareceu que ao entrar
com o pedido de guarda “a genitora disse não concordar com a adoção, mas a
criança permaneceria com a depoente”. A genitora, por sua vez, reafirma que ”pediu
aos requerentes que cuidassem (da criança), temporariamente; em nenhum
momento concordou com a adoção”. Afirmou ainda que “não vê a criança há três
meses por orientação do Serviço Social; está em condição de reaver a criança”.
Em novos estudos psicológico e social, foram entrevistados os
requerentes, a genitora e os demais filhos desta. No contato com a psicóloga, a
genitora reiterou que nunca pretendeu doar a criança e esclareceu que não soube
das convocações anteriores, pois havia se mudado e retornou àquela comarca. O
laudo refere-se à entrevista com as outras crianças, mas não relata como é a
relação destas com a mãe. Finaliza dizendo que “Diante da manifestação da
genitora e considerando-se a delicada relação de afetividade estabelecida entre a
criança e seus guardiões, consideramos que o caso seja acompanhando
mensalmente pelo Setor Técnico, após a devolução da criança ao convívio materno,
a fim de avaliar a readaptação da criança em família de origem”.
O assistente social apresentou logo no início do seu “relatório social”
que a genitora declarou “que nunca teve intenções de doar (a criança)”, dando as
mesmas informações sobre o período temporário, a busca de melhores condições
para reassumi-la, pois “na ocasião passava por sérias dificuldades econômicas e
habitacionais”. Retoma o abalo emocional devido ao conflito com o genitor da
criança.
210
A genitora afirmou que “nunca deixou de manter contatos com (a
criança), visitava esporadicamente”. Desconhecia o interesse do casal pela adoção,
tendo entendido que apenas foram ao Fórum “para obter o termo de guarda”.
Consta ainda no laudo que “Os requerentes, por sua vez, confirmam
parte da versão (da genitora)”. Devido ao envolvimento afetivo com a criança,
“Mesmo com a indefinição da genitora, decidiram pedir a adoção”. O laudo informa
que há sete meses a genitora encontrava-se em emprego fixo, recebendo dois
salários mínimos por mês. Além disso, recebia cinco salários mínimos de pensão
deixada pelo falecido marido. Estava residindo em imóvel alugado, de alvenaria, com
amplos cômodos. Em contato com os três filhos, a técnica considerou “todos com
aparência saudável e sinais de bons cuidados”. Além destes, residia na casa outra
irmã da genitora, que trabalhava e auxiliava nas despesas. Por fim, afirma que a
genitora “apresenta propostas seguras e favoráveis” para o retorno da criança.
Concluiu que “não existem elementos suficientes que caracterize[em]
negligência e abandono da genitora. Além disso, ela no momento reúne condições
favoráveis para assumir o papel materno junto (à criança) como vem fazendo
adequadamente com os outros filhos”. Considerou que a convivência constante dos
requerentes com a criança propiciou “um vínculo consistente entre eles”. Pondera
que não havendo concordância da genitora, “isto no futuro mais distante poderá
prejudicar o desenvolvimento sócio-emocional (da criança), visto que haverá
interferência da genitora, como já vem acontecendo. Assim sendo, o parecer é
favorável, s.m.j., que a criança seja entregue à genitora”.
211
Diante dos laudos e das audiências com outras testemunhas, a
promotora de justiça apresentou seu parecer. Resgatando os fatos, afirmou que
“O feito deve ser julgado improcedente, diante da prova coligida, já que
não se comprovou o abandono voluntário da infante”. Dentre outros fatos, citou que
uma das testemunhas presenciou a entrega da criança aos requerentes
temporariamente. Reiterou que “não há provas, assim, que (a genitora) tenha
abandonado (a criança) de forma definitiva”. Considerou relevante a prova de que a
genitora foi movida pelas dificuldades financeiras quando da entrega da criança,
“mas nunca dela se afastou, visitando-a”. O boletim de ocorrência convenceu-a do
“relacionamento tumultuado” com o marido. Aos autos foram apensados os autos de
busca e apreensão, promovido nove meses após a abertura dos autos. Verifica-se
que a primeira atitude formal da genitora, quando recebeu a negativa de devolução
da criança, foi a de mover tal ação. Observe-se que, na ocasião, a população
daquela Comarca somente poderia ter acesso a advogados através do atendimento
da Procuradoria Geral do Estado. Por isso, havia demora na nomeação de um
advogado para poder dar início à manifestação do interessado.67 Sobre os
trabalhos do Setor Técnico, registrou que os estudos sociais comprovaram que a
criança recebeu assistência moral, educacional e material junto ao casal guardião.
Concluiu-se, porém, que a requerida estava em condições de assumir (a criança),
assim como já assumiu seus outros filhos”.Concluiu pela improcedência da ação,
“acompanhando-se o caso pelo Setor Técnico, que deverá aproximar mãe e criança,
para posterior convivência, já que há vínculos estabelecidos com o casal guardião”. 67 Saliente-se que muitas vezes tal demora não é considerada pelos operadores do Direito e, às vezes, é atribuída a uma possível falta de interesse do cidadão que, na verdade, teve dificuldades em obter um advogado. Ou seja, o problema também não era a demora de atendimento pela Procuradoria Geral do Estado, que acaba tendo um excesso de demanda, mas era a falta da Defensoria Pública, órgão previsto na Constituição Federal.
212
O Juiz despachou determinando estudo social junto aos guardiões, vez
que o estudo abordou somente a genitora. O laudo social complementar relatou a
dinâmica familiar e a estrutura sócio-econômica de todos os membros da família.
Relatou sobre as acomodações habitacionais, que se encontravam em reforma e
com boa organização. O relacionamento dos requerentes com a criança era de
grande vínculo, havendo muita ansiedade para a solução do caso. A criança estava
bem cuidada, reconhecendo nos requerentes as figuras parentais.
O Juiz então se manifestou em sete páginas. Dentre alguns elementos
vale considerar suas interpretações. Sobre a avaliação psicológica entendeu que
esta informou sobre a relação de afetividade entre a criança e os requerentes, que
proporcionaria boa formação. E compreendeu que, por isso, a psicóloga contrariou o
conteúdo do laudo ao concluir que poderia haver a devolução da criança com
acompanhamento temporário para verificação da adaptação. Sobre a avaliação
social registrou que foi verificado que a genitora tinha condições de reaver a criança
e que no laudo complementar, como determinado, avaliou os requerentes, onde
“encontrou ambiente propício à correta formação da criança, que tem no casal as
figuras parentais”.
Sob o prisma dos elementos analisados, é possível afirmar que o Juiz
já tinha uma convicção anterior aos laudos técnicos, pois o mesmo continuou
afirmando, apesar da manifestação das técnicas, que havia situação “confusa e
incerta”, que a genitora manteve-se “acomodada”, e que as conclusões das
avaliações não analisaram o processo de forma adequada, limitando-se a verificar
213
se era ou não possível a devolução, atentando mais para o interesse da genitora do
que para o da criança. Numa clara defesa dos requerentes, afirmou que não se
poderia mudar uma situação de fato, pois não havia segurança para tanto.
É visível nos laudos, nos termos de audiência e nas argumentações da
promotora de justiça que não restam dúvidas sobre a possibilidade de retorno da
criança para a família biológica, com segurança afetiva e material. Os argumentos
do magistrado reiteravam o ato de entrega da criança, denotando uma avaliação
moral de tal atitude, desconsiderando os elementos apresentados nos autos. O juiz
argumentou, ainda, que a genitora moveu ação de busca e apreensão tardiamente.
Recurso na Primeira Instância
A advogada utilizou em sua argumentação referências aos laudos
psicológicos e sociais, sustentando que não havia uma situação confusa, mas
favorável à devolução da criança.
A Promotora de Justiça apresentou as contra-razões, afirmando que
“não se comprovou o abandono involuntário da infante”. Mantém grande parte da
outra manifestação, contextualizando que a genitora passava por inúmeras
dificuldades no momento da entrega, mas que havia reestabelecido suas condições
para o pleno zelo dos filhos. Nos relatórios apreendeu que os requerentes prestam
todos os cuidados à criança, bem como que a genitora sempre esteve presente na
vida da criança.
214
Fundamentada nos dados dos laudos e de outros documentos
constantes nos autos, apresentou a seguinte reflexão:
“ao se destituir a genitora do pátrio poder, está a recorrente sofrendo
duas punições: a de ser pobre e a de perder a criança. Nestes autos, não há o caso
típico de abandono, em que um dos pais, simplesmente entrega a prole a terceiros e
desaparece”. Ressaltou a importância de, ao contrário de muitos pais, a genitora ter
conseguido reorganizar sua vida em curto espaço de tempo, demonstrado inclusive
pelos filhos sob os seus bons cuidados.
O Juiz retomou alguns fatos, avaliando negativamente a genitora por
ter entregado a criança com poucos meses, afirmando que a mesma posteriormente
se acomodou diante dos encargos do pátrio poder. Atribui ainda que a ação movida
na vara cível foi maliciosa. Entendeu, ainda, que a reversão da decisão somente era
de interesse da genitora, mantendo que há insegurança para a devolução. Valorizou
os laudos técnicos somente no tocante aos aspectos que considerou “incontestáveis
quanto a afirmação de que a criança tem no lar dos requerentes um ambiente
tranqüilo e propício a seu desenvolvimento físico e mental”, reiterando, três vezes
em duas páginas, que a genitora não garantia segurança nesse sentido. Esta
decisão ocorreu um ano e dez meses após o início dos autos, e um ano e um mês
após o pedido de busca e apreensão da genitora.
Recurso em Segunda Instância
215
O Procurador de Justiça se manifestou rapidamente, argumentando
que não havia provas que autorizassem a decretação da destituição do pátrio poder,
entendendo também que não houve abandono da criança, mas a entrega para que
pudesse se reorganizar, o que de fato ocorreu. Entendeu que o fato de a genitora ter
mantido contato e movido a busca e apreensão da criança “reforça a convicção de
que tudo fez para reaver (a criança)”.
Considerou o parecer social “amplamente favorável” à genitora e que
deveria ser acolhida a orientação do Setor Técnico quanto ao acompanhamento,
realizando mudança de guarda de forma gradual a fim de evitar ou minorar o trauma
decorrente da medida. Manifestou, ainda, total concordância com a manifestação da
promotora de justiça.
Neste percurso, após a manifestação acima, a advogada descobriu, ao
acaso, que os requerentes haviam entregue um dos filhos, que contava então três
anos, a um casal de conhecidos, que o criaram como filho. Assim, protocolou tal
informação, devidamente fundamentada com dados, questionando, então, como os
requerentes entregaram um filho biológico e depois pleiteavam a adoção de outra
criança. Tal fato foi considerado irrelevante para o julgamento.
Os autos foram distribuídos, cinco meses após a decisão da Primeira
Instância, para a Câmara. Nesse percurso, após dois meses, foram juntados dois
novos laudos, um psicológico e outro social, elaborados pelas mesmas técnicas,
procedentes da comarca de origem. Nos referidos laudos havia um parecer
216
totalmente contrário à devolução da criança. Tal elemento trouxe surpresa para o
entendimento do caso.
Diante dessa novidade, estudando os detalhes dos documentos, foi
possível identificar que foram abertos outros autos enquanto se aguardava a decisão
na Segunda Instância. Cabe esclarecer que em consulta realizada junto à Vara onde
tramitaram esses autos, afirmou-se que, naquela ocasião, as ações de
regulamentação de visitas eram realizadas pelas Varas Cíveis. Os estudos nessas
Varas podem ser realizados pela equipe da Vara da Infância e da Juventude, por
determinação do juiz responsável. Portanto, não foi possível entender por que houve
uma ação de tal natureza na Vara da Infância. Não constava nenhuma informação
que identificasse a natureza da ação. , nem no cabeçalho dos laudos e nem no
ofício do juiz. Mas, ao final do laudo social, existia a indicação de que se tratou de
um pedido de regulamentação de visitas.
O que trouxe maior espanto é que houve muita ênfase nos laudos
quanto ao tempo em que a criança ficou afastada da mãe. Ao contrário dos laudos
anteriores (três de cada profissional), afirmou-se que, devido aos conflitos instalados
na disputa, não estavam acontecendo visitas entre a genitora e a criança. O laudo
social sugeriu aguardar a decisão da Segunda Instância.
O laudo psicológico afirmou que a figura parental atribuída à genitora está
totalmente comprometida e um investimento para fortalecê-la seria prejudicial.
Assim, era desaconselhável o resgate do vínculo com a família de origem, tendo “um
prognóstico bastante duvidoso”.
217
A advogada apresentou uma petição extremamente agressiva,
sugerindo que a situação posta evidenciava “um orgulho pessoal” por parte do
magistrado. Afirmou que o pedido de visitas, autuado um ano e seis meses após a
petição inicial, foi negado; que negada a liminar, moveu um mandado de segurança
contra o ato do juiz. Um ano após tal pedido, ocorreu audiência em outros autos,
para regulamentação de visitas, com ausência da curadora (promotora de justiça).
Este fato fez com que se desse nova vista ao Ministério Público, tendo
o procurador de justiça manifestado que os outros autos não poderiam ser tratados
naquele em questão. Contudo, considerou que os documentos não alteravam o
entendimento de que não havia motivos para a destituição do pátrio poder. Porém,
diante dos novos laudos, opinou pelo provimento parcial, mantendo-se a criança sob
a guarda dos atuais guardiões.
O Desembargador-Relator recuperou fatos processuais e observou que
foi levantado pelo laudo social que a genitora atingiu melhoria nas condições
econômicas, perseguia a posse da criança e possuía condições favoráveis para
assisti-la, a exemplo do que vem fazendo com os outros filhos. Afirmou que “Seja
como for, não existe nos autos a hipótese clássica de abandono”, valorizando a ação
de busca e apreensão da criança quando esgotadas as “alternativas conciliatórias”.
Assim, deu parcial provimento ao recurso, desconstituindo a sentença de destituição
de pátrio poder e mantendo a guarda da criança sob responsabilidade dos
requerentes.
218
Retornando os autos à vara de origem, o Juiz determinou o seu
arquivamento, considerando que a genitora moveu novo processo de
regulamentação de visitas, o qual tramitaria, como agora o mesmo afirmou, em
“juízo competente”. Portanto, não houve nenhum acompanhamento após o retorno
dos autos. O tempo de tramitação até esta decisão foi de três anos e dois meses.
Os fatos acima elencados ilustram bem o caso e todas as suas
dificuldades. Destaca-se dentre eles que, ao final do julgamento, ocorre uma
mudança total do posicionamento técnico, com elementos até acusatórios contra a
genitora, que se mostrava “queixosa” (pondere-se aqui que parece humanamente
impossível não ter queixas diante da vivência ora descrita).
Vejamos: comparado aos casos anteriores (A e B), os estudos
apresentados neste (caso C), até o julgamento em Primeira Instância, foram
bastante claros, expondo os elementos necessários para um laudo judicial, contendo
dados que informam, esclarecem e apresentam um posicionamento técnico.
Outro fato que chama a atenção é que em dois documentos foi citado que as
visitas da genitora na casa dos requerentes cessaram por orientação do Serviço
Social. Em nenhum momento tal informação foi esclarecida, nem mesmo foi
localizado nos laudos registro a respeito disso. Se nos seis laudos apresentados
antes do recurso à Segunda Instância afirmava-se que ocorriam visitas da genitora,
nos laudos anexados no período do recurso final os técnicos afirmam o contrário.
219
O exercício profissional no judiciário é impregnado por dinâmicas e
pela cultura institucional e, assim, quando um técnico presta orientação ao usuário,
esta é tomada como determinação. Nesse sentido, o profissional deve, sempre,
explicar o seu papel em qualquer instituição.68
A ausência de endereço da genitora levou a se considerar que a mesma
estava em “local incerto e não sabido”.
Há aqui tanto a questao processual, quanto um pouco sobre a trajetória
desta genitora. Com esse entendimento, pode-se afirmar que caberia ao assistente
social ter tecido considerações sobre a condição atribuída à genitora (local incerto),
o que não se localiza nos autos. Às vezes, confunde-se que a localização da
genitora está vinculada à “investigação de paradeiro” exclusivamente. Com tal
entendimento, deixa-se de compreender a dinâmica relacional na sociedade, a
circulação das pessoas, seu pertencimento territorial, dentre outros aspectos. Não
que o assistente social deva realizar a busca de pessoas no sentido investigativo; o
que é importante é que coloque seu parecer a respeito, manifestando-se inclusive
sobre a necessidade de determinadas informações, cabendo-lhe ainda, para a
realização do seu trabalho, sugerir que se peticione junto aos órgãos a obtenção de
dados que auxiliem a encontrar as pessoas envolvidas. Assim, o estudo social não
visa “investigar paradeiros”, mas levantar informações que permitam uma melhor
apreensão das causas da trajetória dos diferentes sujeitos, sem as quais não é
possível interpretar de forma menos equivocada as conseqüências que têm gerado.
68 Às vezes, lamentavelmente, verifica-se que profissionais no desempenho de suas atribuições se revestem do poder de uma forma equivocada e inadequada diante do usuário. Tal realidade está presente em inúmeras situações, devendo ser combatida pela categoria.
220
São esses fatores que auxiliarão na compreensão de parte da totalidade estudada
para a instrução dos autos.
Por fim, o caso tem relevância também para problematizar se o juiz tinha uma
convicção, anteriormente aos estudos psicossociais e à própria tramitação dos
autos. A releitura dos autos evidenciou que apesar da posição inicial dos técnicos
pelo retorno da criança à genitora, vez que não se provou abandono ou negligência
por parte da genitora, houve desde o início outro entendimento por parte do juiz.
Existe uma relação delicada no trabalho que os profissionais realizam no
judiciário, vez que é facultativo ao juiz acolher o conteúdo de seus laudos técnicos.
Porém, no tocante à responsabilidade ética e profissional, cabe ao técnico, dentro da
sua autonomia relativa, fornecer seus elementos de análise e convicção, a partir da
natureza de suas profissões. Considerada a dinamicidade da realidade, havendo
alterações, é fundamental que se resgate o que aconteceu para uma mudança de
avaliação técnica. Assim, a posição ética é sempre contextualizar e explicar, do
ponto de vista técnico, tais alterações. No caso C não é possível realizar estas
mediações. Como se verificou, muitos dados são contraditórios ao conjunto de
ações realizadas anteriormente. Não é possível saber o que motivou a brusca
mudança, pois não se articularam outros elementos que a explicassem, além de
questões relacionadas ao tempo que se passou. A falta de vínculo, o acirramento do
conflito, a rejeição à genitora, enfim, todos foram apenas fundamentados na questão
do tempo. Assim, percebe-se que, mais uma vez, a criança não é vista,
prevalecendo o trato ao conflito e à disputa das partes. Mesmo que esta não seja a
221
intencionalidade, a priori, dos técnicos e operadores do direito, acaba-se por cair
nessa situação.
Se o caso for analisado apenas em relação ao decurso do tempo, nem
os técnicos poderiam reverter o que o próprio tempo consolidaria: o afastamento e o
estranhamento da criança à família biológica e a sua vinculação à família que
requereu sua guarda para fins de adoção. Mais uma vez evidencia-se o valor do
tempo para uma criança. O tempo tem dimensões particulares para as diferentes
fases geracionais e nas situação de conflito. Em que pese, muitas vezes, o tempo,
ao invés da Justiça resolver um conflito, acaba por se definir um resultado, nem
sempre solucionando as demandas.
Ficam, então, algumas perguntas: os técnicos buscaram atuar para a
preservação de vínculos com a família biológica, orientando a todos os interessados
sobre os direitos da criança em questão? Os atos dos requerentes visaram a
preservação do bem-estar da criança, ou foram de auto-preservação? E se a criança
tivesse sido devolvida quando a genitora se apresentou, após nove meses do início
dos autos, ao invés de se aguardar o julgamento dois anos após? Caberia um papel
mediador dos técnicos neste caso?
Por fim, olhando para este caso, pode-se concluir que o processo não
possibilitou à genitora resgatar seu vínculo junto à criança. Todo o contexto de
desesperança e a sua luta posterior parece terem sido tratados com indiferença.
Afirmar que prevaleceu o que melhor beneficia a criança, em tal altura, não parece
222
correto. Diante do decurso do tempo, uma separação conflituosa poderia trazer mais
danos a esta criança.
Contudo, espera-se que tenha sido bem-sucedida a regulamentação de
visitas “pela vara competente”. Lá poderiam ser estabelecidas regras para a
manutenção do contato entre a genitora e a criança. Mas, diante do que temos visto,
o argumento de que “cada caso é um caso” tem sido utilizado das mais diversas
formas.
223
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O processo desta pesquisa foi muito instigante e, por vezes, doloroso. Afinal,
observar histórias de sujeitos que se submeteram ao crivo da justiça é uma situação
que provoca muitas indagações e reflexões. É difícil ficar impassível diante das
vozes anônimas nos autos. Ao pesquisador parece que fica o dever de expressá-las
para que outras vozes não sejam caladas.
Neste percurso foi possível encontrar algumas confirmações e dúvidas se
redesenharam, mas evidenciou-se o que empiricamente se sabe: que há um poder
silencioso vindo das salas de atendimento e de audiências do Poder Judiciário, que
ressoa nos caminhos da justiça.
224
Este poder é exercido por diferentes atores que atendem a população que
demanda serviços dessa instituição. De certo modo, até soa estranhamente atribuir
o significado de “serviços” aos atos desempenhados neste poder.
Dentre estes atores, está o assistente social que, no Brasil, teve no Judiciário
um dos primeiros locais de trabalho na área pública. Desde então, seu trabalho tem
sido solicitado para cumprir as mais diversas atribuições.
E, atualmente, há demandas que são colocadas no cotidiano por ter-se
conquistado o lugar sócio-ocupacional. Se por um lado a sua análise técnica não é
um elemento que obrigatoriamente seja considerado para as decisões do judiciário,
por outro, verifica-se que, sempre que existente, recorre-se a ela.
O desafio que se perseguiu nesta pesquisa foi o de trilhar “o caminho de
volta”, perguntando-se pelos processos e os produtos do trabalho do assistente
social no judiciário e, assim, refletir sobre a sua contribuição nesta instituição e,
talvez, para a sociedade.
Costuma-se dizer que tomando ou não posição, já se tomou uma. Assim é o
trabalho do assistente social: impossível ser neutro. O desafio, portanto, é de ter
uma ação profissional o mais qualificada possível, fornecendo aquilo que outro
profissional não poderia trazer aos autos. É esta leitura apurada, que resgata as
trajetórias e perspectivas dos diferentes sujeitos submetidos a determinações macro,
que parece contribuir junto aos outros atores do Judiciário.
225
A especificidade que particulariza o conhecimento produzido pelo serviço
social é a inserção de seus profissionais em práticas concretas [...] Sua
preocupação é com a incidência do saber produzido sobre a sua prática: em
serviço social, o saber crítico aponta para o saber fazer crítico (Baptista, 1993,
p. 89).
Se a princípio a expectativa era a de localizar a relevância no sentido da
contribuição do exercício profissional para a realização de direitos, a amostra
intencional por si revelou a perspectiva crítica do Serviço Social:
O grande desafio que se faz ao profissional é o da superação dessas
imposições da cotidianidade. Sem deixar de responder aos desafios
emergentes do cotidiano, como se pode superar esta prática imediatista e dar
a ela uma dimensão revolucionária? (Baptista, 1993, p. 90).
Nesse sentido, as considerações finais aqui expostas se baseiam em diversos
elementos teóricos e nos dados levantados na pesquisa. Além disso, uma análise
mais atenta também se fez em relação a dois casos da amostra intencional, sobre
os quais vão tecidos, a seguir, os comentários e análises sobre aspectos
particulares, mas que podem ser relacionados ao conjunto de casos que foram
levantados. As falas e as trajetórias dos sujeitos, que nos autos são individuais,
podem ser encontradas em outras situações, evidenciando que são, na verdade,
expressões de uma totalidade social complexa e dinâmica, podendo ser reprodutora
de opressão, potencializadora de libertação e, muitas vezes, um conjunto
contraditório de ações humanas.
226
a. Comunicação, ideologia e poder
Toda história tem uma moral... A desta é muito simples: se você quiser saber quem
são os lobos, não pergunte a eles. É mais seguro confiar nos cordeiros69
(“O que as ovelhas dizem dos lobos”. Rubem Alves)
Para realizar as análises dos casos foi necessário buscar subsídios para
compreender a linguagem e o processo comunicativo. Neste, diferentes sujeitos
interagem, expressando-se com maior ou menor poder, desencadeando também
níveis de escuta. No judiciário, o falante pode ser os técnicos, os operadores do
Direito, os outros sujeitos profissionais e, principalmente, os cidadãos atendidos. As
falas, ao serem ouvidas, são registradas em diferentes momentos e por prismas de
cada ator. A audiência é registrada por um escrevente. O estudo social é registrado
em laudos e relatórios. Nele o técnico pode apresentar descrições, análises,
posicionamentos, pareceres, observações, enfim, um conjunto de elementos que
considera importantes para o cumprimento de suas atribuições. Também pode
conter as falas das partes, suas argumentações, seus projetos, suas histórias.
Ao serem elaborados os laudos ou outros documentos escritos, o técnico
pode informar o que levantou por meio do estudo social, podendo indicar os fatos
importantes, resgatar dados, apresentar suas interpretações, colocar
questionamentos em aberto, sugerir encaminhamentos, dentre outros. Assim, seus
registros podem resgatar a história das partes, ao mesmo tempo em que interage
com elas, realiza suas intepretações e intervenções. 69 Crônica em que o autor fala da busca de um cordeiro comprometido com a objetividade da verdade, que quis compreender, frente às falácias e preconceitos, “o que são os lobos”, perguntando, para tanto, a um lobo-filósofo. Feliz com a verdade que descobriu, vai ter debates face a face e descobre, tarde demais, que não eram falsas as alegações sobre os hábitos alimentares dos lobos. A crônica sugere, ainda, que algumas verdades não são encontradas, mas pré-estabelecidas: por preconceitos ou por desejo do cientista.
227
As reflexões sobre o poder e as relações institucionais continuam sendo
temas importantes para o exercício profissional. Chauí traz importantes reflexões
sobre essa questão:
O discurso competente é o discurso do instituído. É aquele no qual a
linguagem sofre uma restrição que poderia ser assim resumida: não é
qualquer um que pode dizer a qualquer outro qualquer coisa em qualquer
lugar e em qualquer circunstância. O discurso competente confunde-se, pois,
com a linguagem institucionalmente permitida ou autorizada, isto é, como um
discurso no qual os interlocutores já foram previamente reconhecidos como
tendo o direito de falar e ouvir, no qual os lugares e as circunstâncias já foram
predeterminados para que seja permitido falar e ouvir e, enfim, no qual o
conteúdo e a forma já foram autorizados segundo os cânones da esfera de
sua própria competência (2001, p.7).
Nos casos estudados pode-se verificar que os sujeitos assumem lugares
diversos, podendo ora ter maior, ora menor poder de fala, de escuta, de diálogo.
Algumas falas que pareceram importantes, nem sempre foram ouvidas pelos
operadores do Direito. Quando o assistente social e o psicólogo puderam ter
diferentes formas de interação, compartilharam suas reflexões e análises, resultando
daí um trabalho mais completo. No caso contrário, ou seja, quando não se efetivou
tal interação, ficando cada qual em seu lugar, houve um olhar parcial diante da
situação. O problema gerado, neste sentido, é a fragilidade de um parecer que deixa
de articular todos os elementos analisados.
228
Frente ao processo de pesquisa realizado, é possível afirmar que mesmo com
um parecer consistente dos técnicos, pode haver pouca consideração por parte da
autoridade judiciária. No judiciário há hierarquias que definem lugares
preestabelecidos que vão influenciar o entendimento e os posicionamentos diante
dos litígios. Deste modo, o conhecimento sobre ideologia e linguagem é fundamental
para compreender as dinâmicas nesta instituição e para o exercício profissional
comprometido com a justiça.
Os casos analisados levantam indicações de que algumas vezes os
operadores do Direito recorrerão aos elementos apresentados pelo assistente social
para justificar sua convicção já existente. Porém, majoritariamente o conteúdo do
estudo social é considerado para elucidar alguns aspectos da situação em litígio.
Foi possível verificar a tendência do Ministério Público em considerar o
conteúdo das análises técnicas, somando-as a outros elementos de prova (termo de
audiência, boletim de ocorrência policial, documentos de órgãos oficiais) como
fundamento para suas manifestações. Portanto, reafirma a relevância do trabalho do
assistente social com vistas a contribuir para que os litígios sejam solucionados de
forma justa. Evidencia-se, ainda, que os representantes do Ministério Público têm
dado maior ênfase à busca de medidas para a efetivação dos direitos sociais, por
meio dos serviços municipalizados, os quais poderiam, em tese, garantir melhores
condições para a convivência familiar. Inclusive, tal medida evita que se julguem as
pessoas, exclusivamente, por sua condição material e, principalmente, que
dificuldades dessa ordem, que podem influenciar a dinâmica sócio-familiar dos
envolvidos no litígio em questão, sejam superadas.
229
O caso 5 destaca-se por ilustrar muito bem “o lugar do falante” e a valoração
moral que influencia os julgamentos. Envolveu uma criança entregue aos seus dez
meses de vida, a um casal de conhecidos. No ato da entrega, a mãe deixa uma
carta “para lhe falar o que eu não falei pessoalmente”. A genitora explica que decidiu
após dez meses, escolhendo-os como pais.
Diz ainda “vou amá-lo vocês, se vocês amá-la, pois não estou dando um
objeto, mas um filho. Mas não amo como mãe porque tenho mágoas de que foi ela
que atrapalhou minha vida. Então dar o carinho que ainda não conheço”. (sic!)
Após esta explicação, finaliza com “algumas recomendações: para dormir, faz
cafune na cabeça ou bate nas costas. Ela gosta de Danone e comidinha e descubra
o resto”.
A carta era curta, mas eloqüente.
Os laudos, social e psicológico, foram favoráveis à adoção. Após três meses
da entrega, a mãe manifestou arrependimento em audiência. Seis meses após o
pedido, o Ministério Público manifestou-se pela destituição do pátrio poder. Dentre
várias questões, o advogado da genitora solicitou autorização de visitas, o que foi
negado devido à “natureza da ação”. Um ano após o pedido, a destituição de pátrio
poder foi decretada em primeira instância. Em segunda instância foi mantida a
destituição do pátrio poder. O tempo total do processo foi de três anos e três meses.
230
A relevância deste caso é que, embora se afirmasse a instabilidade da
genitora, esta estaria trabalhando na residência do seu advogado, que também
permitiu que a criança fosse morar com eles. A genitora era doméstica e cuidava dos
filhos do advogado.
E o segundo e principal aspecto foi o de constatar o peso da carta da
genitora, ou, como fundamentado no segundo capítulo deste trabalho, o peso do
falante, nas relações comunicativas, conforme o lugar social que o autor ocupa. No
caso do judiciário, quando o falante é o acusado, este lugar muitas vezes definirá
como será a sua escuta. E assim por diante.
Salta aos olhos o fato de que a carta foi vista por todos os atores (técnicos e
operadores do Direito) como algo estritamente negativo. Todos mencionam a fala
“não amo como mãe...”. Este caso parece evidenciar o peso que se deu a uma
interpretação parcial de sua fala. Todos se ativeram a sua declaração de que não
ama a criança como mãe e que a culpa pelos infortúnios vividos. Não houve
nenhuma menção sobre “dar o carinho que não conheço”. Seria este um pedido de
amparo? Também não se menciona a gratidão que a genitora diz vir a ter se o casal
puder amar a criança. Não houve nenhuma referência sobre possíveis significados
das recomendações humildemente descritas pela mãe. Considerando a gravidade
da situação que esta mãe vivia, tais contradições de sentimentos são
compreensíveis. O julgamento moral certamente condenará que uma mãe acuse
uma criança como motivo de seus infortúnios. Uma análise crítica poderia ter
buscado outros elementos para uma melhor avaliação do seu quadro sócio-
231
econômico, familiar e psicológico. Não se questiona o desfecho do caso
simplesmente, mas o caminho que se percorreu para tanto.
Por cautela exigida pela ética na pesquisa, a carta não foi totalmente
reproduzida, mas foi inevitável que a pesquisadora-leitora não tivesse uma reação
dúbia diante da fala desta mãe, então com vinte e um anos de idade, que se
arrependeu de entregar sua única filha. Os laudos não explicam qual foi a história
desta jovem, de onde veio, quais suas aspirações, seus projetos, como elaborou o
arrependimento e com quem mais podia ou não contar, além do seu advogado.
Acusou-se que esta jovem tinha uma situação instável, vez que era
empregada doméstica e morava na residência onde trabalhava. E, neste contexto,
grita a pergunta: afinal, quantas mães moram em seus empregos, por falta de
moradia? Quantas são migrantes que vieram meninas “para estudar”, vivendo nas
casas de familiares, passando por inúmeras opressões? É um traço cultural a
circulação de meninas, até os dias atuais, que são trazidas por familiares para o
Sudeste, havendo intenção de que tenha outro destino. Opções? Apenas se
pensadas romanticamente, pois a história mostra que a grande maioria das pessoas
não tem possibilidades de escolha.
Neste estudo pode-se observar que o judiciário é um lócus privilegiado para a
análise do lugar social e político dos sujeitos. Pensar o lugar do falante é importante,
seja na perspectiva do assistente social, trabalhador especializado, seja na dos
sujeitos que são submetidos ao julgamento da Justiça.
232
Tratar de sujeitos é também pensar em seus territórios, seu pertencimento.
Conforme explorado no Capítulo I deste trabalho, um dos instrumentos utilizados
pelo assistente social para conhecer a realidade e o modo de ser e viver dos sujeitos
é a visita domiciliar. No contexto do judiciário existe por parte dos operadores do
Direito uma valorização da visita domiciliar, muitas vezes confundida como sendo
ela, exclusivamente, o próprio estudo social. Tal tendência se apresentou também
nos autos estudados e, deste modo, indica a necessidade dos profissionais
explicitarem quais instrumentos utilizaram na realização do estudo social, que é uma
atribuição privativa do assistente social.
Os casos analisados praticamente não registraram a realização de contatos
institucionais. Por exemplo, pode-se recorrer a profissionais de outras instituições e
órgãos para melhor compreensão da situação e, principalmente, para levantar as
possibilidades para que as famílias acessem seus direitos sociais. Quando
esgotadas estas possibilidades, ao serem registradas nos autos, também favorecem
um julgamento com mais elementos, podendo ser mais justo.
A realidade vem mostrando que, nas mais diferentes condições, o assistente
social realiza intervenções, devendo ser orientado pelos valores e princípios do
projeto profissional, inscrito numa perspectiva societária. O projeto ético-político-
profissional hegemônico do Serviço Social fundamenta essa natureza interventiva
da profissão e, portanto, mesmo quando realiza o estudo social no âmbito sócio-
jurídico (judiciário, previdência social, sistema prisional, etc.), é sem perder essa
natureza que o faz.
233
Marcada pela área da assistência social, o próprio profissional parece
reafirmar que a intervenção ocorre somente quando mobiliza recursos materiais e
serviços relacionados a saúde, habitação, renda etc. Assim, o que se entende por
intervenção social também deve ser aprofundado.70 Numa relação aproximativa,
nesta pesquisa adotou-se que a intervenção do assistente social se efetiva em toda
ação profissional, portanto, com dimensões ética, técnica e política. Busca a
garantia, efetivação e/ou ampliação dos direitos sociais, os quais podem propiciar a
emancipação e a plena realização dos sujeitos sociais.
Uma atenção especial deve ser dada à maneira com a qual se utiliza a
linguagem para informar sobre a história dos sujeitos. Mesmo uma apreciação
desfavorável não pode, jamais, ter sentido pejorativo contra as pessoas. Este é um
pressuposto ético para o exercício profissional. O que não significa se confundir com
a neutralidade positivista. Conforme fundamentado teoricamente, toda posição é
tomada com base em valores e permeada por ideologias.
Um exemplo também sobre a linguagem foi o uso do conteúdo do laudo pelo
advogado no Caso A. O laudo psicossocial resgatou que num outro procedimento
havia uma avaliação que fazia ressalva à dinâmica conjugal do casal que pretendia
adotar uma criança, embora este fato estivesse superado. A própria informação diz
que ela não era importante para o andamento do pedido.
Quando se emite um parecer, este deve ter clareza, ser fundamentado em
dados e conhecimentos, informar quais alternativas foram acessadas, quais não
70 Saliente-se a importante atividade programática do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da PUC-SP que se denomina “O significado da intervenção social”
234
puderam se alcançadas, por quais motivos, enfim, apresentar as várias questões
que compõem o caso. Há uma tênue distância entre a fala que resgata a
particularidade do caso e a que leva a uma culpabilização do indivíduo. O que
orienta a decisão de qual conteúdo comunicar é a sua intencionalidade. Assim, falar
de sujeitos é tratar de sua individualidade e também de sua construção como ser
social, no seu sentido ontológico.
Quando o assistente social é o falante, ele interage com falas e com a escuta.
E, ao fazê-lo, revela parte de sua ideologia, de seus preconceitos, de seus valores.
O lugar de falante, ao ser ocupado, pode provocar justiça, opressão, possibilidades,
cerceamentos. Ao assistente social cabe sempre se questionar por que, para quem
e com que sentido realiza sua interlocução. O seu fazer deve estar impregnado de
sentidos ético-políticos.
O assistente social é também, portanto, ouvinte e leitor. E essas posições se
realizam enquanto processo, construindo relações, possibilitando empatia ou
conflitos. Ao ser falante e ouvinte, seu posicionamento profissional pode revelar uma
escuta democrática e respeitosa, mas também emitir valores pessoais e
preconceitos.
Por isso, se a formação profissional é fundamental, há também uma
qualificação que se adquire neste fazer profissional. Portanto, para uma prática
competente, conhecimento teórico e prático devem se articular numa relação crítico-
dialética.
235
Por todo o exposto, os significados, os conteúdos e as formas da linguagem
devem ser pauta de preocupação profissional, pois, no confronto de forças no
cotidiano, será determinante para o encaminhamento das situações. Compondo o
processo comunicativo que existe em toda relação, conteúdo e forma podem dar
múltiplas direções aos significados que serão interpretados por diferentes atores.
Manifestadas, elas transitarão sem o amparo de seu autor. Sendo “as palavras
portadoras de idéias”,71 são instrumentos de luta, conciliação e rupturas.
b. A interdisciplinariedade
Eu antes tinha querido ser os outros para conhecer o que não era eu. Entendi
então que eu já tinha sido os outros e isso era fácil. Minha experiência maior
seria ser o outro dos outros: e o outro dos outros seria eu
(Para não esquecer, Clarice Lispector)
Outro caso que foi importante para a análise tratava de dois irmãos, que
foram entregues pela genitora a outros familiares. Tais crianças viviam com os
requerentes há seis anos, mas já no primeiro laudo psicológico constatou-se que o
casal resistia a informar-lhes a sua origem biológica. É sabido que omitir de crianças
adotivas a sua origem biológica é extremamente prejudicial para o seu
desenvolvimento. Assim, a psicóloga opinou contrariamente à adoção. O estudo
social, por sua vez, ateve-se às condições favoráveis dos requerentes, nada
manifestando sobre a questão problematizada pela psicóloga.
71 Martinelli, anotação de aula, 2004.
236
Novo estudo foi realizado, tendo a psicóloga confirmado que uma das
crianças trazia, tanto no cotidiano familiar (fazendo perguntas sobre as diferenças
físicas) quanto nos testes projetivos, a demanda por conhecer sua origem. Essa
criança apresentava, ainda, convulsões desde os oito meses, após ter tido uma forte
febre, e utilizava medicação de controle (Gardenal). Tal fato era um argumento que
reforçava a resistência do casal quanto às conseqüências da revelação, mostrando-
se impassível diante das orientações técnicas a respeito do direito e da importância
do conhecimento sobre a origem biológica.
A genitora não aceitou o pedido de adoção e intensificou o contato com as
crianças. Fora destituída na Primeira Instância e tudo direcionava para que a
decisão fosse mantida em Segunda Instância. Contudo, já na fase de julgamento, os
requerentes manifestaram desistência, pois, devido aos conflitos, entregaram as
crianças à genitora.
Junto à manifestação dos requerentes, apresentada à Segunda Instância, a
mesma psicóloga afirmava em laudo que com o retorno ao convívio materno, a
criança que tinha convulsões deixou de manifestá-las e, portanto, também deixou de
utilizar o medicamento.
Este caso é emblemático ao se pensar a importância da
interdisciplinariedade. Ainda que já sejam de comum conhecimento e domínio os
temas relacionados à adoção e à revelação da origem, há que se considerar que o
psicólogo tem instrumentos específicos para fundamentar sua apreciação sobre o
assunto. O assistente social possui um domínio em outro campo e, assim, é
237
extremamente importante que tais domínios específicos se somem na busca do que
for mais benéfico para a criança.
Além disso, é sabido que há, infelizmente, inúmeros casos de “devolução de
crianças”, que estavam sob guarda de fato ou mesmo com a devida
regulamentação, mas em que não houve estudo psicossocial e orientações cabíveis.
O quadro de miséria que a maioria da população brasileira vive, parece favorecer
que não se realize, adequadamente, os estudos psicossociais para fins de
regularização de guarda. Verificadas situações preocupantes na relação entre os
guardiões e a criança ou o adolescente, cabe ainda encaminhar o grupo aos
serviços sociais, nos termos do Estatuto da Criança e do Adolescente. A ausência
de tais serviços é um problema grave, mas até a falta deles exige maior rigor na
efetivação dos princípios estabelecidos no Estatuto. A realidade deve obrigar o
Estado a dar cumprimento aos seus deveres, posto que a mudança de cultura exige
o reordenamento institucional estabelecido pelo ECA em suas disposições
transitórias.72
Com os recentes programas de transferência de renda (Bolsa Família, Bolsa
Escola, Renda Cidadã, entre outros), a cobertura massiva de um segmento
vulnerável socialmente acarretou uma grande busca por regularização de guarda.
Em muitos casos, verificou-se que avós, tios, familiares geralmente maternos,
padrinhos e outros, já viviam há anos com a criança ou adolescente em questão. Em
muitos casos de avós, estes cuidavam de grupos de irmãos. Esta situação
72 Art. 259. A União, no prazo de noventa dias contados da publicação deste Estatuto, elaborará projeto de lei dispondo sobre a criançao ou adaptação de seus órgãos às diretrizes da política de atendimento fixadas no art. 88 e ao que estabelece o Titulo V do Livro II. Parágrafo único. Cometpe aos estados e municípios promoverem a adaptação de seus órgãos e programas às diretrizes e princípios estabelecidos nesta Lei.
238
reacendeu a importância de se discutir o tema da guarda visando a preservação dos
direitos da criança e do adolescente, principalmente quanto ao direito de convivência
familiar saudável em todos os aspectos.
O tema convivência familiar, assim, precisa estar na pauta do judiciário, pois a
família contemporânea está organizada por diferentes laços, consangüíneos ou não,
por afinidade, por afeto, por necessidades. Assim, a análise sobre esses laços
ultrapassa a família tradicional burguesa, referindo-se a estratégias de sobrevivência
e de solidariedade. Estas, contudo, são permeadas também pelas antigas relações
de favor que historicamente foram utilizadas também de forma nefasta, criando laços
de opressão e domínio. O tema é controverso e precisa de aprofundamento,
sobretudo interdisciplinar e interinstitucional, pois a família tem sido o eixo das
políticas sociais. Além disso, muitas vezes a família é tratada mais em relação a sua
“disfunção” do que como espaço de possibilidades. Facilmente se recai na
moralização das suas diferentes estratégias de organização. O mesmo ocorre com a
discussão das “novas configurações familiares”, que às vezes é feita com
conotações pejorativas.
Por outro lado, uma dinâmica que a sociedade brasileira vem vivenciando nas
duas últimas décadas é a violência envolvendo adolescentes, havendo muitos
desfechos fatais. Agregando-se a isso, temos gerações de pais e mães
adolescentes, o que tem gerado tema de discussão na academia. Somando-se a
esse quadro, o mundo vem vivenciando o envelhecimento da população; e no caso
do Brasil não é diferente. Porém, o olhar parece centrar-se mais no “fenômeno” do
que nos impactos que tais relações e mudanças podem trazer, não apenas em
239
termos conjunturais, mas estruturais, posto que o estudo e enfrentamento de tais
cenários também devem considerar as relações de gênero e de classe.
Nesse sentido, o assistente social precisa inserir-se em debates e estudos
que se realizam em outros espaços para uma melhor compreensão das situações
que se apresentam no cotidiano do Judiciário. Recentemente, em discussão
informal, uma assistente social judiciária que também é bacharel em Direito tentava
convencer três colegas, feministas e militantes de direitos humanos, que era
favorável à união civil de homossexuais com vistas à garantia patrimonial, sendo
este um importante direito, mas ao mesmo tempo se afirmava totalmente contrária à
permissão de que adotem crianças. A profissional não elaborava nenhum argumento
consistente, atendo-se à percepção moral, que, veladamente, se relacionava à
questão da sexualidade e da diversidade.
As contradições são muitas, provocando e intensificando a defesa de que
sem conhecer a complexidade dessa realidade, as alternativas construídas são
inconsistentes e frágeis.
A antropologia, a sociologia, a psicologia, a filosofia etc., compõem o
conhecimento que fundamenta a ação do Serviço Social, devendo estar articuladas
de forma a dar consistência a nossas indagações. As respostas são construídas
coletivamente, mas, para isso, é preciso saber perguntar. Outra vez, verifica-se a
importância das reflexões sobre a comunicabilidade e a linguagem. As nossas
perguntas devem servir para dar voz àqueles a quem o devido espaço foi roubado
240
(ou mesmo nunca ocupado) e para construir coletivamente, como numa orquestra,
com diferentes posições, mas buscando criar uma outra história.
As análises demonstraram que o assistente social precisa se apropriar do
poder que lhe é colocado nesta instituição, a fim de contribuir para o que for mais
benéfico para a criança e para sua família. Vale resgatar que, na perspectiva do
Direitos Humanos, estes são compostos por um conjunto indivisível, ou seja, não é
possível falar de direito da criança sem pensar sua família e sua comunidade. Por
vezes, dizer o que é mais benéfico para a criança permite também à condução de
resoluções que ferem os direitos à convivência familiar. Observe-se que os casos A
e C indicam que houve tendência em se priorizar a permanência da criança na
família guardiã. No caso A, a criança foi entregue pela genitora e vinte dias após a
audiência, a criança foi colocada para uma família. Em nenhum momento se
menciona nos autos sobre o termo de guarda para fins de adoção que o Setor
Técnico encaminhou a genitora para atendimento social e não se menciona o estado
emocional da mesma. Na verdade, não há nada no laudo psicossocial sobre a
genitora. Não se questiona aqui se foram ou não realizadas determinadas
intervenções, mas sim, o fato de não haver registros sobre elas. Tal ausência
dificulta o andamento dos autos, por não se esclarecer o que vinha ocorrendo com a
genitora e as análises dos técnicos a respeito da sua situação.
No caso C evidenciou-se que a genitora recorreu ao apoio dos padrinhos da
criança e não concordava com a adoção. Conforme descrito, o caso apresentou
várias dificuldades. Porém, há evidências da tendência de priorizar que a criança
ficasse com o casal requerente.
241
Ambos os casos, portanto, sinalizam a necessidade de aprofundar como se
realiza o que for mais benéfico para a criança, sem violar também o seu direito à
convivência familiar. Ressalte-se que tem sido adotado o conceito de que a família
contemporânea não é exclusivamente aquela formada por laços sangüíneos e nem
é esse o critério ora adotado. Trata-se de validar as trajetórias e estratégias das
famílias em manter seus laços frente ao desafio de sobrevivência. Não é possível
pensar o que é mais benéfico à criança sem pensar a sua família. O direito ao
conhecimento da sua origem remete às velhas questões filosóficas da humanidade:
quem sou e de onde venho. Nesse sentido, cabe valorizar o importante trabalho que
tem sido realizado pela antropologia urbana para pensar como a sociedade se
organiza diante das requisições do mundo globalizado, com sofisticadas tecnologias,
mas que vem gerando outras formas de violência social. Esse desenho
contemporâneo vem dando outras feições à realidade social. E, por outro lado, na
consolidação do Estado Mínimo, que é negligente com seus deveres, este mesmo
Estado exerce a punição dos sujeitos que vivem as conseqüências desse processo.
Todo esse quadro é extremamente complexo e não há receitas prontas para
seu enfrentamento, mas há caminhos já percorridos que podem iluminar a atuação
comprometida e competente.
É preciso que o técnico também tenha melhor entendimento de que instituição
é essa, quais os atores e as diferenças nas relações de poder que se exercem
diante dos conflitos com os quais lida. Reconhecer a incompletude profissional e
242
institucional, por exemplo, favorece a busca de consolidação do trabalho de equipe e
da rede.
Foi extremamente relevante poder ter constatado, ao contrário do que parece
prevalecer no imaginário popular, que os desembargadores, nos casos similares aos
analisados, têm realizado manifestações que consideram a complexidade da
desigualdade social e suas conseqüências. Mesmo o assistente social tem pouco
contato com a posição dos desembargadores, vez que quando emite o laudo social,
encerra sua participação nos autos. Isso sinalizou a necessidade de maior
aproximação e conhecimento do que ocorre na Segunda Instância da Justiça. É
neste sentido que esta pesquisa defendeu a importância de o assistente social ter
conhecimento e visão crítica sobre todos os caminhos, os processos e os produtos
do trabalho de que participa.
Também foi possível constatar que há uma posição muito positiva dos
desembargadores em relação aos elementos apresentados pelo assistente social.
Os desembargadores mantiveram coerência entre a análise sobre a situação da
população brasileira e os argumentos utilizados sobre os casos que julgaram. Em
muitos casos, observa-se que houve uma grande ênfase no conteúdo do laudo
social. Houve também, como identificado, casos em que se ressentiu de maior
aprofundamento do estudo social.
Nos autos estudados, destacam-se como elementos apresentados nos laudos
sociais que fundamentaram a análise e julgamento dos operadores do Direito:
243
Informações relacionadas ao empenho do sujeito para reverter a situação de
dificuldade
evidências sobre a coerência entre o discurso, os projetos e a ação
empenhada para a reversão da situação
indicações científicas do que pode acarretar a tomada de certas decisões, ou
seja, a construção pelo profissional de cenários possíveis para a solução dos
conflitos
Em relação aos direitos sociais e à conjuntura política, problematizaram:
o direito da família em recorrer aos serviços municipais
o direito à convivência familiar
a defesa de que, conforme o ECA, a carência material, por si só, não pode
motivar a destituição do pátrio poder
Conforme a própria história da inserção do Serviço Social no Judiciário
demonstra, os profissionais podem contribuir muito além da apresentação destes
elementos. Os casos indicam que em alguns momentos os dados apresentados pelo
assistente social esclareceram os fatos e as dificuldades vivenciadas pelas partes.
Porém, também foram utilizados para reforçar os argumentos dos operadores do
Direito. Assim, o conteúdo dos laudos são muito mais relevantes quando trazem um
enfoque novo, que não poderia ser apreendido pela ótica do processo legal.
Saliente-se que quando se evidenciou que não foram cumpridos os ritos
processuais, os recursos contra tais situações foram acolhidos.
244
Face a esta situação, o assistente social pode contribuir para a
compreensão dos seguintes aspectos:
o contexto sócio-econômico e cultural
o resgate da trajetória da situação vivenciada: quem são essas pessoas,
como se iniciou o conflito, quais as principais tensões e dificuldades;
histórico familiar: qual a composição, com quem as partes podem contar, que
lugar a criança ocupa no conflito, qual a dinâmica familiar, como aquele grupo
expressa afetos e cuidados, como a questão da cultura afeta esta história;
relações sociais: que vínculos existem, como se dão os relacionamentos, qual
o nível de inserção das partes no mercado de trabalho e de formação
profissional
em que condições o conflito foi apresentado ao Judiciário, quais intervenções
com apoio do poder público, por meio das políticas sociais, foram realizadas e
as mudanças que delas decorreram
que elementos indicam que a ausência de condições objetivas implicaram no
tipo de dificuldade vivenciada pelos sujeitos envolvidos
Neste sentido, é fundamental que se tenha maior clareza de que o estudo
social deve conter uma boa descrição, mas não apenas isso. Deve trazer elementos
que fundamentem a análise, compreendam os fatos e consigam explicá-los a luz dos
conhecimentos. Além disso, deve ter suporte teórico-metodológico e, como afirmado
em vários momentos, posicionamento ético-político.
Na pesquisa ficou evidenciada, também, a importância do primeiro laudo
social. Ele é um parâmetro muito importante para o encaminhamento das análises e
245
do andamento dos autos. Não que se pretenda que seja um prognóstico totalmente
correto, o que seria impossível até pela dinamicidade do cotidiano. É um parâmetro
no sentido de garantir os nexos e o entedimento da processualidade do caso.
Portanto, resgatar o trabalho de profissionais expressos em casos judiciais
permitiram a reflexão da importância da inserção do assistente social no judiciário e
da sua responsabilidade em contribuir para a resolução de conflitos e efetivação de
direitos. Os técnicos (assistentes sociais e psicólogos) são atores privilegiados, que
têm contato com a realidade “nua e crua”, mas a qual tem de ser analisada para
além das aparências. A estes técnicos cabe resgatar as dores e os sonhos de uma
população que vivencia inúmeras privações e explorações de toda espécie. Esse
desvelamento do cotidiano favorece o reconhecimento das injustiças que existem.
Os técnicos podem ser ouvintes e, com destreza, registrar a história que pode ser de
João, de Maria, mas sempre de um sujeito.
Evidencia-se na prática profissional que muitas vezes o assistente social,
embora considere as injustiças e desigualdades como algo a ser enfrentado, acaba
apenas agindo sobre os fatos emergentes, num manejo de variáveis que estão
colocadas, sem buscar os nexos causais. As ações cotidianas tendem a buscar os
resultados mais por critérios de necessidade. Vale retomar a reflexão de Meszáros
quanto à importância de termos metodologias que radicalizem, ao enfrentar as
contradições sociais, a diferenciação dos projetos societários em disputa.
Frente às contradições da realidade, os assistentes sociais também se
realizam como sujeitos coletivos, afirmando uma categoria e seu projeto ético-
246
politico-profissional. Na hierarquia do poder, ocupam lugares diferentes. Já o
conhecimento pode ser um instrumento que rompa uma rígida hierarquia, rompendo
culturas e estabelecendo novas práticas. A valorização profissional pode se efetivar
em diferentes níveis, mas cabe aos seus sujeitos realizarem práticas coerentes com
os princípios defendidos, articulando as idéias com estratégias igualmente coerentes
(isto é, dizer-se democrático não basta, devem-se se adotar estratégias
democráticas). A contribuição para o conjunto de saberes gera um outro poder, não
atribuído, mas conquistado cotidianamente. Se é certo que o assistente social tem
uma autonomia relativa, tão certo também é o fato de que somente a ampliará numa
relação coletiva e, principalmente, se sua intervenção estiver impregnada de
sentidos, orientada para cenários de justiça social.
O sujeito coletivo, quando é a categoria profissional, é potencialmente sujeito
político. Mas, para tanto, precisa ter organização, pautas reivindicativas e bandeiras
de luta, que se somem a outros coletivos, nas lutas mais amplas. Por exemplo, a luta
pela Defensoria Pública em São Paulo se ressentiu da ausência de assistentes
sociais do campo sócio-jurídico.73 E sabe-se que aquele é um órgão fundamental
para o acesso à Justiça pela maioria da população. O sujeito coletivo, assistentes
sociais do judiciário, existia, mas não atuou suficientemente nessa situação como
sujeito político.
73 Na ocasião, o Cress-SP teve uma importante participação, junto com o Sindicato dos Psicólogos, na elaboração do item que tratava da equipe interdisciplinar deste órgão. O Cress-SP contou com duas diretoras, contando ainda com a colaboração de um assistente social do CIC –Centro de Integração de Cidadania, serviço do Governo Estadual,que também prestava atendimento sócio-jurídico. Também participava duas assistentes sociais que assessoravam gabinetes de vereadores, vinculado à questão dos Direitos Humanos de um partido de esquerda. Mas, de modo geral, não houve adesão nesta luta enquanto categoria profissional. Embora o Cress seja um órgão de representação, suas ações somente fazem sentido se construído coletivamente, com a base representada.
247
Guerra confirma a necessidade de um fazer profissional crítico, competente e
eficaz.
Mas este fazer não se reduz ao aspecto técnico, porque as demandas que se
colocam são de natureza abrangente, ética e política (1997, p. 61).
Decorrente dessa perspectiva, este pesquisar foi uma busca de
conhecimentos, procurando um desvelar da realidade profissional e da sua
contribuição para a sociedade. Esta trajetória está marcada, como se evidenciou,
pela defesa de outro projeto societário, alinhado aos princípios socialistas.
Atuando no âmbito dos direitos da criança e do adolescente é preciso
apreender como as práticas efetivam ou não o que se define como “o mais benéfico
para a criança”. Para um projeto societário que rejeite toda forma de violência e
opressão não dá para pensar a criança isoladamente, mas como valor para a
construção de outra sociedade.
No judiciário, infelizmente, muitas vezes a criança não é o centro da questão.
A disputa judicial é feita pelas partes e muita vezes as decisões não são tomadas a
partir da criança, colocando-a não como sujeito de direitos, mas, ainda como objeto.
É necessário que as instituições do Estado provoquem uma nova cultura em relação
à população infanto-juvenil.
Percebe-se que, tanto no litígio judicial quanto nos programas sociais se
reproduz esta prática que coloca os interesses dos adultos, das autoridades, dos
planejadores etc. como eixo para a elaboração das propostas e das ações. A criança
248
continua sendo secundarizada, embora privilegiada no discurso. Quem tem coragem
de negar que a criança tem de ser prioridade absoluta? Porém, a realidade nos
mostra que tal determinação legal está longe de ser efetivada.
Destaca-se a relevância de considerar a questão do tempo quando se trata do
destino de uma criança ou de um adolescente. A dimensão do tempo, como já
afirmado, é muito diferente para estes sujeitos. Essa é uma questão pendente que
merece urgente apreciação. Em que situações podem ser agilizados os
procedimentos? Os prazos processuais são necessários para a garantia da ampla
defesa, etc. Porém, há que se pensar medidas para realmente efetivar o que é mais
benéfico para a criança, afirmada como prioridade absoluta pelas legislações e
protocolos de que o Brasil é também signatário.
Enquanto esta discussão não se efetiva no universo jurídico, aos
trabalhadores da equipe do Setor Técnico caberia, talvez, avaliar o que é urgente e
o que é importante. Nesse sentido, vale salientar a percepção empírica de que falta
um planejamento das ações, acabando por tornar o cotidiano de trabalho um
conjunto de atividades que parecem ganhar uma dinâmica quase que autônoma. É
fato que os técnicos têm de garantir os prazos processuais, mas, eticamente, cabe
afirmar que há muitas possibilidades para dar cumprimento às normas impostas
institucional e legalmente, sem perder os princípios que são defendidos pelos
projetos profissionais do assistente social e do psicólogo.
No âmbito das lutas gerais, é preciso que as duas categorias mostrem aos
operadores do Direito todos os danos que se causam às crianças e adolescentes
249
que, como exemplificado, crescem (e sofrem) enquanto os autos tramitam. Vale
salientar que os dados apontam que há uma significativa demora na circulação dos
autos, de sua saída do cartório da Primeira Instância, até a sua distribuição ao
Procurador de Justiça, na Segunda Instância. Em geral, pode-se averiguar que os
operadores do Direito atuam com certa agilidade quando o caso é muito mais grave.
Nesse ponto, a pesquisa traz indicações de que há muito o que fazer, o que inclui os
setores de autuação e distribuição dos autos.74
Alguns críticos compreendem a causa da defesa dos direitos infanto-
adolescentes como algo fragmentado e dissociado da totalidade. É preciso alertar
que o movimento de defesa considera que o trato dado à infância é uma expressão
das conquistas e das barbáries da humanidade. A historiografia, conforme exposto,
demonstra que a criança e o adolescente foram tratados a partir do enfoque do
risco. Edson Sêda alerta que isso, além de tudo, é um eufemismo gritante, pois a
criança também representa a violação que os mais vulneráveis sofrem, de diferentes
maneiras, ao longo da história. Ainda temos diferentes “categorias” de criança e de
adolescente. Esta superação será possível ao caminharmos para a ruptura com a
desigualdade gritante entre classes sociais e nas relações de gênero, étnicas e
intergeracionais. A luta pelos direitos da criança e do adolescente, contudo, sofre da
mesma ecleticidade de interesses. Nos dizeres de Chauí “carências e privilégios são
para alguns segmentos determinados. Interesses são gerais para grupos ou classes.
Só o direito é universal” (1995, apud Silva, p. 57). Assim, o mal-entendido de
importantes intelectuais e formadores de opinião sobre o movimento da infância 74 Saliente-se que nos últimos cinco anos ocorreram as duas greves históricas dos funcionários do judiciário paulista, justificada pela precarização das condições de trabalho e diminuição do quadro de servidores, em relação ao aumento de demandas. E inegável que a ampliação das ações judiciais está diretamente relacionada aos problemas estruturais do país, como se fundamentou no Capítulo II.
250
decorre dessa ecleticidade, portanto, dessa confusão. Talvez isto aconteça devido
ao fato de esta luta ainda ser forjada por grupos. Sequer superamos interesses de
classe, para então, poder realmente efetivar direitos universais, que, assim, abarque
a população infanto-adolescente.
Este pesquisar foi, antes, uma reflexão crítica, considerando não a
singularidade de cada caso, mas as feições particulares de expressões da questão
social quando manejadas no interior do Poder Judiciário. Nesse contexto, são
fragmentos da totalidade, tratadas numa linguagem jurídico-formal necessária para o
pretenso trato imparcial, dando até certa arficialidade ao real.
Contudo, compondo este cenário, há então os momentos de resistências nas
falas, nos argumentos, nas petições das partes, no olhar do Ministério Público. E
esse conjunto de elementos, se demonstram os limites, indicam também trilhas a
percorrer. Os caminhos, são sabidos. São necessárias outras trilhas, se pretendida
outra realidade.
Não seria necessário afirmar que a própria leitura do pesquisador traz os
componentes ideológicos mencionados nas argumentações anteriormente expostas.
Neste trabalho isso se evidencia não como descuido, mas como afirmativa de
momentos de resistência, impregnados nas práticas dos inúmeros trabalhadores
anônimos, contra as configurações da barbárie.
Pensar o sentido e a direção do trabalho do assistente social se reafirma,
nestas considerações finais, como parte do posicionamento ético e político e da
251
responsabilidade por construir coletivamente outra realidade para as novas
gerações. E esta é uma missão histórica, com a qual estas reflexões visaram
contribuir, tomando-a como construção coletiva e permanente.
252
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