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Coraci Ruiz e Julio Matos - Cartas Para Angola (Encarte)

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Apresentação

Quando elaboramos o projeto do !lme Cartas para Angola, em 2006, vislumbramos um grande potencial de seu uso no ensino de História e Cultura Afro-brasileira, que havia se tornado obrigatório nos currículos escolares brasileiros três anos antes, com a implantação da Lei 10.639 de 2003.

Porém, como Cartas para Angola não é um documentário didático, imaginamos que este uso seria facilitado se o DVD viesse acompanhado de textos que auxiliassem o trabalho do professor, contextualizando a importância e a necessidade da lei e apontando caminhos para desenvolver estes conteúdos com os alunos.

Assim, este encarte é um guia facilitador e pretende ser um ponto de apoio para que os professores possam aproveitar - a sua maneira, considerando as peculiaridades de sua escola - algumas das ideias e sentimentos lançados pelo !lme, para construir, junto com seus alunos, diferentes perspectivas sobre a formação da cultura afro-brasileira e sobre as maneiras como ela se transforma e se materializa no cotidiano de cada um de nós.

Esperamos que o nosso !lme contribua com o importante trabalho que vocês, professores, realizam todos os dias.

Saudações, Equipe do Laboratório Cisco

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Memória e construções identitárias, afetividade e desencantos em “Cartas para Angola”

Letícia Gregório CanelasMestre em História Social, realiza pesquisa de Doutoramento em História, ligada ao

Centro de Pesquisa em História Social da Cultura (Cecult) - UNICAMP

Relatos de vida, de encontros e desencontros, de histórias puxadas pela memória e recontadas de um lado e de outro do Atlântico. A história do Brasil e de Angola, da colonização da América e da África pelos europeus – aqui e acolá, colonizadas especialmente pelos portugueses. A imagem do igual e do diferente, do colonizado e recolonizado abaixo da linha do Equador, em direção ao sul; a língua portuguesa falada em diferentes gingados. A curiosidade e o desejo de retomar as línguas nativas; a estética dos ancestrais; o desencanto com a história e a busca de projetos de países. A África imaginada no Brasil e a África plural e múltipla que se vive no presente em cada nação africana. A ancestralidade africana reconstruída e romantizada; as tradições reinventadas; a nação multirracial e pluriétnica, de notável diversidade cultural, que é o Brasil. As cores da pele, a negritude, a mestiçagem; o racismo velado e o revelado nas bordas do Atlântico Negro.

Luanda recebe cartas de cidades grandes do sudeste brasileiro. As cidades modernas, metropolitanas, sempre aparentam ter pontos de paisagens em comum; no entanto, Luanda ainda vive as sequelas e as memórias de guerras muito recentes. No Brasil, a comparação com a guerra cotidiana aparece nas palavras do poeta brasileiro que fala sobre o som dos helicópteros sobrevoando a periferia, em São Paulo. Já o poeta angolano, nascido em Luanda, agora em seu exílio voluntário no Rio de Janeiro, pensa sobre seu lugar e o lugar da memória, e questiona: “uma cidade é um lugar externo onde moramos, caminhamos e sonhamos com os olhos acordados mediante a vizinhança de amigos que nos cerca? Ou uma cidade é um lugar interno que nos persegue do lado de dentro dos olhos e mora em nosso coração, como âncora pesada que nos mantém presos a memórias e a lugares de outro lugar?” (Ondjaki, em Cartas para Angola)

Memórias e identidades, afetividades e desencantos – experimentadas em diferentes dimensões, mas nunca sem um grau de tensão e con"ito. Estas linhas perpassam Cartas para Angola em um mundo pós-colonial ainda procurando se descolonizar, em movimentos conscientes e inconscientes, da busca de uma identidade, da construção de uma memória, dos laços sensíveis que se criaram e que

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vão se criando. Interessante perceber como a proposta das vídeo-cartas possibilita uma narrativa multifacetada através de recortes microbiográ!cos, que abordam questões histórico-antropológicas e políticas – incluindo, nestes campos, temas como questões de gênero, história do presente e das guerras, racismo, memória, invenção das tradições, história sociocultural, língua e linguagem, estética – e, ao mesmo tempo, lida com a afetividade e os elos que a proposta acaba proporcionando às personagens que participam do !lme, e assim também ao espectador!

A partir das cartas e dos diálogos estabelecidos em Cartas para Angola, é possível articular temas e personagens, lugares, histórias e memórias, identidades e seus deslocamentos. O mar, a imensidão do Atlântico, é mais um personagem que pode passar despercebido neste !lme, mas que a todo o momento se revela nas imagens, nas memórias, nas margens que se abrem para os elos estabelecidos entre um lado e outro do oceano, ligando geográ!ca e historicamente Brasil e Angola, América e África, Luanda e o Sudeste Brasileiro. Antes, Portugal era o porto de saída para este Oceano, no processo de conquista e colonização de povos na África e na América, portos de paragens e de passagens, de personagens históricas sem lugar na história europeia. Em Cartas para Angola, deslocam-se olhares, os protagonistas são outros e os diálogos se estabelecem num mundo atlântico pós-colonial. Portugal aparece apenas como o porto de passagem de uma imbricada história que acontece nas ex-colônias através das experiências de sujeitos, agora protagonistas de suas histórias e memórias, em busca de seus elos e de suas identidades. Provincializa-se a Europa, destaca-se o que há de intenso, complexo e contraditório na história ao sul do Equador.

Aprendendo sobre Angola e Brasil, África e o Mundo Atlântico – o ensino de história, línguas e literatura e a sensibilização para os temas através de “Cartas para Angola”

Em 2003, a Lei 10.639 alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996), incluindo no currículo o!cial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-brasileira”. O conteúdo programático deveria, então, abordar o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo afro-descendente nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil. A lei é uma conquista, mas ainda encontra problemas e limitações, pois até agora pouco se produziu, no Brasil, sobre a História da África.

A história do encontro da África com o Brasil tem sua gênese ao !nal do

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século XV, quando dos primeiros contatos documentados pelos europeus – mais precisamente os portugueses – com os africanos e os ameríndios, à época das “Descobertas”. Alguns historiadores brasileiros, como João José Reis, Ronaldo Vainfas, Marina de Mello e Souza, Robert Slenes, Luís Felipe de Alencastro vêm introduzindo o tema sobre a História da África em suas pesquisas há alguns anos, antes mesmo da Lei 10.639. Vainfas e Souza apontam um dos maiores problemas, segundo eles, da historiogra!a brasileira que aborda o tema da escravidão africana e da cultura afro-brasileira: um desconhecimento injusti!cável acerca da história e cultura africanas; esta postura implica, no limite, considerar o africano apenas em função da escravidão.

O desprezo pela “História da África” no Brasil, até então vigente, re"ete de certa forma a relação que este país tem com grande parte de sua população afro-descendente. No ensino fundamental e médio, crianças e adolescentes estudam incessantemente a “história europeia” e a “história americana”, ou melhor, “norte-americana”, recortes que se confundem muitas vezes com uma “história mundial” ou “universal”. A “história europeia” seria a história dos “ancestrais” que colonizaram e construíram o país. Os africanos, por colonizarem compulsoriamente o país, trazidos com o trá!co transatlântico e levados à escravidão, não teriam uma história, assim como seus descendentes. Ainda que se fale da diversidade cultural do Brasil, observamos os brasileiros se referirem a seus antepassados como portugueses, italianos, espanhóis, alemães, mas nunca se fala, aqui, em ancestrais banto ou iorubá, pois a ligação histórica com estes teria sido silenciada por muito tempo.

No entanto, há que se estudar e compreender a África e sua história sem preconceitos, ilusões e romantismo. O historiador João José Reis explicita esta ideia ao comentar o desconhecimento quase absoluto dos leitores brasileiros sobre os debates acerca da escravidão na África Pré-Colonial: “Aqui [no Brasil] talvez predomine a ideia de uma África romântica, onde a opressão e a exploração de mulheres, homens e crianças foram introduzidas pelos europeus. Estes, decerto, intensi!caram-nas e levaram-nas ao último requinte, mas a menos que entendamos que os africanos, como a maioria dos povos deste planeta, também produziram internamente a opressão, vamos continuar achando-os um “acidente” ou talvez um “enigma” histórico indecifrável” (REIS, “Notas sobre a escravidão na África Pré-colonial”).

A ideia desta crítica de Reis ecoa de certa forma na fala de uma das personagens de Cartas para Angola. O músico angolano que canta em kikongo – ou quicongo, língua falada no norte de Angola – e que diz ironicamente falar português por um acidente de percurso, comenta que ainda existe uma ilusão sobre o que é a África, nossa “terra mãe” – como se refere o músico Edu de Maria ao continente africano, assim como o fazem muitos brasileiros. O músico do norte angolano conta que alguns de seus amigos estrangeiros chegam a Angola e dizem: “Queria que isso fosse muito mais África”. Talvez !quem decepcionados por não

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encontrarem a África exótica e selvagem construída tanto em relatos de viajantes europeus como em textos literários desde o século XVI até o XX, pois é sempre um desa!o compreender o “outro” – outras culturas, outros povos, que não o seu.

Cartas para Angola não retrata aquela história dos antepassados, da África pré-colonial e a África transportada ao Brasil, mas nos sensibiliza para seus elos no presente: a busca da africanidade na cultura afro-brasileira, o encontro de angolanos e brasileiros, a construção da angolanidade e da brasilianidade. Os brasileiros aparecem como importantes interlocutores, mas os angolanos se revelam os protagonistas do !lme, expressando em suas cartas e memórias uma história, passada e recente, pouco conhecida pelos brasileiros.

Uma das referências à história do processo colonial, em Angola, aparece em Cartas num sarau de poesia em Luanda. Um dos interlocutores comenta o causo recente de um melão vendido a 105 dólares (mais ou menos 9.000 kwanzas, moeda angolana) em um mercado da capital. E um poeta de ocasião recita aos espectadores do sarau um poema que brinca com as palavras “melão” e “melar”, fazendo referência à história da colonização, do trá!co e da escravidão: “Eu penso que eles vêm a nos melar há muito tempo / Eles nos melam desde o princípio / Eles nos melam desde que Diogo Cão aportou a foz do rio Zaire / Desde que nos transformaram em produto / Desde nos transformaram em pessoas que no fundo eram mercadorias / E que disseram que um maduro era equivalente a três moleques / Que um jovem alto, negro, com porte físico era chamado peça da índia / Eles nos melam desde este tempo”.

A história recente de Angola pode ser abordada através da literatura angolana, a começar por uma das personagens do !lme, Ondjaki – nome literário de Ndalu de Almeida –, jovem escritor angolano que revisita, em sua literatura, a história do período pós-independência em Angola, em um trabalho quase autobiográ!co, revelando os con"itos, as contradições, o cotidiano e a sobrevivência de uma Angola entre guerras, através do olhar de um miúdo.

As histórias das literaturas africanas caminham ao lado das histórias dessas jovens nações, marcadas por tempos de luta e resistência. Após séculos do domínio europeu, os povos africanos apropriaram-se da língua e da palavra escrita introduzidas pelo próprio colonizador e consolidam, na forma literária, um discurso combativo ao da máquina colonial. Neste sentido, o escritor nigeriano Chinua Achebe, que escreve em língua inglesa, foi essencial ao publicar uma obra literária que retrata a história da África colonial: lançou seu célebre livro O Mundo se despedaça em 1958, num período singular da história da Nigéria. Em 1960, esse país consegue sua independência, libertando-se do domínio político da colonização britânica, implantado desde a segunda metade do século XIX.

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O escritor nigeriano, de etnia ibo, conseguiu traduzir, em sua obra !ccional, a ânsia de muitos historiadores africanos contemporâneos. Por muito tempo, a história da África foi marginalizada, considerada como inexistente pelo mundo eurocêntrico que a colonizava. Neste sentido, Chinua Achebe, sem muitas idealizações, tentou reconstruir as tradições, o imaginário e as histórias de seu mundo ibo, nigeriano e africano, a partir da história oral desse conjunto. Assim, o romancista nos revela, em cada detalhe do romance, que seu povo tem uma história que não foi registrada da mesma forma que a história da Europa, mas que os homens ibos (como os iorubas, bantos, ovimbundus, hausas, bakongos, tutsi…) tiveram sua ação marcada no tempo, construíram uma cultura, que tem seus con"itos e sua beleza.

No que se refere a Angola, a con!guração dos discursos contrários ao do colonizador teve início, já no século XIX, na imprensa. No entanto, em 1961, os combates saem dos jornais, dos lares, dos espaços de trabalho e de sociabilidade, dos espaços segregados entre brancos e negros e tem-se início a luta armada, momento em que se concretiza a luta por liberdade frente ao domínio português. Em Cartas para Angola, Jacinto Fortunato, angolano que participou do processo revolucionário, comenta uma das facetas do mundo colonial: diferentes etnias, em Angola, viviam, naquele período, uma espécie de apartheid (regime de segregação racial que vigorou na África do Sul entre 1948 e 1994, no qual os direitos da grande maioria dos habitantes foram cerceados pelo governo formado pela minoria branca) e este teria sido um dos motivos que os levaram a luta.

A memória que se construiu sobre este período aparece nas lembranças do narrador em “As respectivas cartas”, texto literário de Ondjaki: “Na escola, explicaram-nos que, em 1975, nós conseguimos a nossa independência; claro que já estávamos a fazer a luta de libertação há muito tempo. Muitos portugueses tiveram medo de !car aqui porque iam ser angolanos a !car no governo. Eu até ouvi muitas estórias de pessoas que foram-se embora e deixaram tudo, e não acho isso nada bem, os portugueses já não mandavam no país e podiam morar aqui. Mas vendo as coisas doutra maneira, eu compreendo, sabes, aconteceram coisas muito más durante esses quinhentos anos que te falei, então as pessoas parece que !caram com uma ideia esquisita dos portugueses, e quando chegou a independência houve esses problemas” (publicado na colectânea Angola – a festa e o luto, Angola e Portugal: Edições Vega, 2000, p. 167).

Foi um processo histórico bastante complexo, como muitas das histórias de independência de nações africanas no século XX. Pode-se ter uma ideia disso ao saber, ainda que minimamente, a composição dos grupos angolanos que lutaram neste processo: o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), cuja principal base social era constituída pelos Ambundu e pela população

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mestiça, bem como por partes da inteligência branca, e que mantinha laços com partidos comunistas em Portugal e países pertencentes ao então Pacto de Varsóvia; a Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA), com fortes raízes sociais entre os Bakongo e vínculos com o governo dos Estados Unidos e com o regime de Mobutu Sese Seko, no Zaire, entre outros; a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA), socialmente enraizada entre os Ovimbundu e bene!ciária de algum apoio por parte da China.

Após um longo processo de guerras pela independência, a nação angolana se desvincula o!cialmente da antiga metrópole portuguesa em novembro de 1975. Entretanto, a experiência de liberdade e a esperança na construção de um projeto de país são saudadas com novos tiros. Havia muitas divergências internas entre os grupos que participaram das guerras por liberdade, o que dá lugar a uma Guerra Civil que perdurou por quase trinta anos (1975-2002). A despeito dos con"itos internos, o país, liderado pelo MPLA (Movimento Popular pela Libertação de Angola), tenta se reestruturar, apesar do legado da empresa colonial. Além da guerra civil entre o partido do governo e as outras frentes políticas nacionais (UNITA e FNLA), a nação vive, nos seus primeiros anos de liberdade, uma experiência de economia planejada, sob o socialismo. Encontra-se, então, uma Angola independente e socialista, com um sistema monopartidário, com a presença de cubanos e soviéticos, com um sistema de cartões de abastecimento e as palavras de ordem do discurso revolucionário.

É nesse momento peculiar da história angolana que Ondjaki vive a sua infância e parte da adolescência. Em seu livro Bom dia camarada, retrata este contexto em Luanda, no período entre 1980-1990, e revela as memórias de uma criança e suas experiências em uma Angola em meio à Guerra Civil e sob o sistema socialista: uma memória que resgata outras peculiaridades da história do lugar para além das guerras, dos sistemas políticos.

Nesse sentido, apesar das memórias de guerras, colonialismos, con"itos e opressões de um lado e outro do Atlântico, lembramos a importância de mergulharmos também em outras histórias angolanas e brasileiras e nas marcas de suas culturas. Cartas para Angola nos leva a esta viagem através da imagem do feijão de óleo de palma (óleo de dendê), que é servido nas refeições aos sábados em Luanda – assim como a feijoada no sudeste brasileiro, que tradicionalmente também é um prato dos sábados. A culinária angolana mostra seu colorido cultural também na panela com muamba de ginguba (frango com manteiga de amendoim) e na quizaca (feita com folhas de mandioca), na lembrança da experiência de exílio vivida através do aroma do muzunguê (sopa de peixe tipicamente angola, que lembra uma moqueca de peixe).

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Levemos, então, para os espaços de aprendizagem, salas de aulas, estas referências e re"exões, assim como ainda as referências às línguas nativas angolanas, como o kikongo e o kimbundu; a referência à língua portuguesa imposta pelo colonizador, reapropriada pelo colonizado e que agora nos possibilita a comunicação entre Brasil, Angola, Portugal, Moçambique, Guiné-Bissau, ainda que em sotaques, gingados e guisados diferentes – como nos revela o professor Serrano, quando envia um kandandu ao seu kamba Jacinto Fortunato, ou ainda, um abraço ao seu companheiro. O jongo, a dança e o ritual que relembram e reinventam a história dos ancestrais africanos no sudeste brasileiro; a dança como uma forma de reinventar e retomar uma expressão cultural em Luanda, em uma Angola que se reconstrói após décadas de guerras; a busca de raízes culturais de um lado e de outro do Atlântico, elos importantes que existem no imaginário popular, no combate ao racismo velado e ao vivenciado. Por isso tudo, Cartas para Angola nos leva, especialmente os brasileiros, a uma viagem dos sentidos, que uma das interlocutoras brasileiras parece resumir em sua fala: “A África que a gente sonha, não sei se está lá, mas veio de lá” (Alessandra Ribeiro, Cartas para Angola).

Sugestões e referências de leiturasTextos acadêmicos:

FREUDENTHAL, Aida. Os quilombos de Angola no século XIX: a recusa da escravidão. In Estudos Afro-asiáticos n. 32, dezembro 1997.BOAVIDA, Américo. Angola: Cinco séculos de exploração. Luanda: União de Escritores Angolanos, 1981.DAVIDSON, Basil. A descoberta do passado da África. Lisboa: Sá da Costa Editores, 1981.BENDER, Gerald. Angola sob o domínio português: Mito e realidade. Lisboa: Sá da Costa, 1980.REIS, João José. Notas sobre a escravidão na África pré-colonial. In Estudos Afro-asiáticos n. 14, 1987.VIEIRA, Karina Mayara Leite. Pelos caminhos da memória: a Angola do pós-independência revisitada por Ondjaki. In Revista África e Africanidades, ano 3, n. 10, agosto/2010.SLENES, Robert. Malungu, ngoma vem!: África coberta e descoberta no Brasil. In Revista USP, n.12, dez 1991/fev. 1992.OLIVER, Roland & FAGE, J. D. Breve história de África. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1980.PANTOJA, Selma & SARAIVA, José Flávio S. Angola e Brasil nas rotas do Atlântico Sul. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.Coleção História Geral da África (vários autores). Para baixar toda a coleção, acesse o Portal do Ministério da Educação (http://portal.mec.gov.br)

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Literatura africana:

ONDJAKI. Respectivas Cartas. In Angola – a festa e o luto. Angola e Portugal: Edições Vega, 2000. ONDJAKI. Bom dia Camaradas. Rio de janeiro: Agir, 2006. ACHEBE, Chinua. O Mundo se despedaça. São Paulo: Cia. das Letras, 2009 (original em inglês de 1958).Visite o website da União dos Escritores Angolanos e conheça suas obras:http://www.ueangola.com/

Sugestões de websitesSobre Angola e o Continente Africano:

Angola na Wikipedia http://pt.wikipedia.org/wiki/AngolaPortal do Governo Angolano http://www.angola.gov.ao/Portal Ministério da Cultura de Angola http://www.mincultura.gv.ao/História de Angola, sugestões de outros links sobre o país e outras informações http://www.angola-saiago.net/Viagem Pela história de Angola http://h#ponte.blogspot.com/ (blog)Portal Memória de África (sob responsabilidade da Fundação Portugal-África) http://memoria-africa.ua.pt/introduction/tabid/83/language/pt-PT/Default.aspx

Portais de notícias:

Agência AngolaPresshttp://www.portalangop.co.ao/motix/pt_pt/portal/capa/index.htmlJornal de Angolahttp://jornaldeangola.sapo.ao/Angola Digitalhttp://www.angoladigital.net/Zwela Angolahttp://www.zwelangola.com/O Malanjinohttp://www.omalanjino.com/

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Caros educadores e educadoras,

O vídeo-documentário Cartas para Angola chegou-me como um presente, uma carta em tela repleta de perfumes vários, acompanhada de um convite: escrever um texto às escolas e outros espaços de educação e cultura, aos quais ele será endereçado. Um presente-convite que, nestes tempos de curtas palavras web-tecladas, inspirou-me também a escrever uma carta a pro!ssionais que um dia receberão, em seus espaços, as luzes e sons desta bela criação. Escrever esta carta sobre o !lme a espaços de educação é um instigante desa!o. A!nal, o que nos ensina este !lme? Tornar a poética expressão de intensos encontros de vida e criação artística deste audiovisual em algo estritamente pedagógico me estremece. Enfrento este medo endereçando-lhes esta carta repleta de perguntas curiosas e, claro, de desejos de que o que está dentro desta caixa se expanda em muitas outras histórias, encontros, palavras, pensamentos, imagens, sons...

O !lme se faz a partir de cartas lançadas e retornadas entre Brasil, Portugal e Angola. No entanto, na montagem !nal, as páginas misturam-se, as narrativas conversam entre si, por vezes a!rmando perspectivas, por outras nos levando a visões outras, criando uma mensagem múltipla repleta de intensas paisagens existenciais e de boas perguntas. Que respostas damos a esta mensagem em forma de imagens - olhares, ruas, casas, feições, objetos, brilhos, gestos, areia, cores, asfalto, lágrimas, ondas - e sons – poéticas e ternas palavras, gargalhadas, duras narrativas, gritos, músicas, ruídos, gingas das diversas línguas portuguesas e africanas, silêncios? Como as histórias de vida e amizade, generosamente oferecidas e construídas no !lme, entrecruzam-se com nossas próprias histórias? Como os lugares – Luanda, Rio de Janeiro, São Paulo, Taboão da Serra, Campinas, Lisboa, África, Angola, Brasil, Portugal, Aruanda - apresentados e imaginados neste !lme, se sobrepõem aos lugares que vivemos e imaginamos viver?

Para responder ao !lme, talvez seja preciso entrar nele mais de uma vez, escolher trechos para ver e rever, da mesma forma que, quando recebemos uma carta de quem gostamos, demoramo-nos em partes que nos tocam, lemos algumas frases repetidamente até as palavras soarem outras. O !lme nos traz as cartas enviadas a Angola, suas respostas e, amalgamadas a elas, várias outras mensagens que se desenham em sua própria criação artística. Assim, talvez seja preciso percorrê-lo em repetição, atentando-se aos detalhes de cada frase, de cada imagem, de cada música; às escolhas dos personagens e dos trechos de suas entrevistas; à maneira de organizar as diversas narrativas; de !lmar cada espaço e pessoa; de intercalar trechos de imagem e som,; de adensar sensações pela trilha sonora... Este conjunto de escolhas, produto de diversas sensibilidades – concepção do projeto, pesquisa inicial, direção de fotogra!a e

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sonoplastia, direção geral, edição, criação do roteiro e da trilha sonora - oferece-nos muitas possibilidades de entradas no !lme e, consequentemente, in!nitas respostas a ele. A cada revisita, fui perdendo-me por alguns caminhos e trago aqui alguns traços do que encontrei como possíveis conversas com a educação.

Entro pela porta que, de primeira, mais me toca, pelo convite mais belo que o !lme, a meu ver, nos faz: partilhar afetos entre as mais desvairadas partes do mundo. Inicio pelas amizades que o !lme cria, pelos encontros entre pessoas que não se conheciam antes das !lmagens. Encontros estes motivados pela intenção de reconectar a África e o Brasil, quase como um desejo de sanar uma saudade histórica das forças que chegaram pra cá pelas ondas vermelhas, sangradas - os povos africanos escravizados – e daqueles que hoje pesquisam e criam com as marcas destas forças em suas vidas: nas rodas de samba, nas rodas do jongo, nas rodas de poesia e literatura. Mensagens que ressoam a saudade e a gratidão: Valeu Luanda, valeu por estar aqui a Aruanda, na sobrancelha, no tornozelo, no cabelo, na saliva. Valeu por ter feito o que não escolheu! Gratidão e saudade, sentimentos de amigos distantes. Uma saudade gerada pela separação de famílias e povos, pelo silenciamento secular dos africanos que aqui viveram deixando poucas marcas nos documentos, monumentos e livros, e muitas nos nossos modos de vestir, agir, falar, sentir, pensar, rir, cantar, rezar... Saudade imensa que gera uma potente força de criação e imaginação entorno deste continente imaterial e vivo que ressoa aqui. A saudade é também uma ilusão, na qual fazemos caber o queremos imaginar como bom e distante, como desejável porque fora de alcance. A África geográ!ca que durante anos !cou fora do nosso alcance, sem notícias, se fez aqui outra, esta África que a gente sonha, não sabemos se ela está lá, mas veio de lá...

E o !lme une sonhos em potentes encontros, povoados por afetos pessoais e coletivos de tempos vários. Neste encontro audiovisual criado entre os artistas brasileiros e angolanos - os dois coordenadores dos grupos de música e dança, os dois poetas e os dois músicos - há diversas nuances que nos ajudam a pensar questões importantes neste momento em que a temática “História e Cultura Afro-brasileira” entra com força nas escolas: identidade, passado, cultura, memória, preconceito, desigualdade social e cultural e africanidades. Um bom exercício seria penetrar com mais atenção nas narrativas dos personagens destes três encontros e perceber como há similaridades e diferenças nas formas de conceber e se relacionar com as questões acima: através da dança, da música, da família, do canto, do tambor, da a!rmação das tonalidades da pele, da reconstrução da história a partir de outras narrativas, da força da palavra jorrada em poesia, da expressão ativa contra a desigualdade social, a segregação e a lógica do mercado, da língua, da festividade, criação coletiva, simplicidade, alegria, melancolia, raiva, esperança...

Perceber estas várias nuances é uma boa maneira de movimentar a temática das africanidades sem cair nos estereótipos e de!nições modelares de passado,

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de memória e, em especial, de identidade: ser negro, ser branco, africano, afro-brasileiro, brasileiro, angolano, português, mulher. Modelos estes que se criam nas mídias, na publicidade, na história o!cial, nos livros didáticos e, por vezes, também nos movimentos culturais e sociais. A identidade, onde estaria? No lugar onde vivo, na minha cor de pele, na língua que falo, na família que nasci, na música que ouço, na roupa que visto, em meus adereços, na minha opção sexual, na forma de ser mulher ou homem, na minha capacidade de consumo, na minha forma de ver mundo, nos amigos que tenho, na sensação desconfortante de não caber em nenhum dos modelos !xos que me são oferecidos? Por que, quais meandros se movimentam nas nossas várias identidades? Nas narrativas, percebe-se a identidade como um problema complexo, em especial aquelas marcadas pelas fronteiras nacionais, e como um processo contínuo e móvel que se faz pelo pertencimento, pela diferença, pela ampliação dos horizontes culturais e de conhecimento, pela imaginação e pela criação artística.

O !lme escolhe, propositalmente, artistas que criam a partir destas questões e mostra-nos como as expressões artísticas brasileiras entrelaçadas à cultura africana repercutem com força em Angola, em especial nas ações que também buscam ressoar sons, ritmos, danças e línguas esquecidas durante os tempos em que a sobrevivência era a questão mais urgente. O !lme, com esta escolha, aposta nas potências da arte em recriar a vida e a história, de estabelecer in!nitas conexões entre Brasil e África pela via do afeto, da esperança e do respeito e pela expressão dos saberes inauditos e silenciados. E, neste sentido, o !lme convida-nos a olhar à volta - em nossa cidade, bairro, escola, na vida de nossos alunos - e encontrar, nos diversos movimentos de dança, teatro, música, poesia, artesanato, gra!tagem, capoeira, hip-hop, samba, repentes, congados, afoxés, maracatus - outras conexões possíveis. Como a identidade afro-brasileira se faz na vida de cada aluno, afrodescendente ou não? Que elementos de seu universo familiar, comunitário, midiático, religioso, musical os alunos trazem para responder às africanidades que lhe perpassam?

Continuo pela porta da amizade, agora entre aqueles que se reconectam via !lme, nas quatro histórias que envolvem pessoas não ligadas por parentesco, mas por afetos e bons encontros. As mensagens relembram os tempos de feliz convivência, na maior parte das vezes, entremeados pelas circunstâncias da guerra e do exílio. Falar da amizade não parece um tema escolar, mas talvez seja aquilo que a escola mais ensine, através das convivências que ela possibilita. Assim, o !lme nos lança também a pergunta sobre o sentido das amizades presentes e ausentes em nossas vidas, e sobre as possibilidades da palavra estreitar laços.

As mensagens enviadas pelos personagens que vivem ou viveram um dia em Angola são oferecidas também aos olhares curiosos dos brasileiros, os criadores deste !lme, e, consequentemente, a nós, que o recebemos. Nestas mensagens, a

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história de Angola nos chega por aqueles que foram testemunha dos tempos das lutas pela independência, da euforia por um projeto de nação e da decepção pelos desajustes políticos que geraram as inúmeras guerras civis. E ela nos chega sob várias perspectivas: pelas memórias das mulheres, dos homens, dos jovens, dos poetas, dos artistas, dos militantes, dos moradores de Luanda, daqueles que viviam em cidades longínquas, dos exilados, dos descendentes de portugueses e de povos locais, pelas trajetórias de cada pessoa, pelas separações e pelos encontros. Sugiro revisitar o !lme e perceber como as marcas da história do país, em especial, da guerra, estão na densidade de cada palavra, nos olhares úmidos, nos silêncios tensos que a!rmam o indizível da cisão, da violência bruta, da dor e da morte.

O !lme traz a história de Angola através de fragmentos de trajetórias pessoais e nos convida a ir atrás de outras pistas sobre a história deste país, dos países africanos que sofreram colonização portuguesa, como Moçambique, Cabo Verde e Guiné-Bissau, e os outros países do imenso continente africano que viveram situações semelhantes ligadas à escravidão, ao apartheid, aos con"itos culturais, às lutas pela independência, a guerras civis e governos ditatoriais - cada qual com sua peculiaridade e forma de responder à história. Conhecer os percursos políticos, históricos, sociais e culturais destes países nos ajuda a compreender as imagens de campos de refugiados, de pobreza extrema e da grande quantidade de imigrantes ilegais africanos que buscam adentrar e permanecer nos países europeus (com fronteiras cada vez mais fechadas) como forma de fuga das guerras, genocídios e situações de abandono de muitas regiões da África, na atualidade.

Estas imagens, muito pouco veiculadas pelos meios de comunicação, sinalizam a situação de invisibilidade que um continente inteiro vive nesta sociedade global, que se intitula Sociedade da Informação. Uma proposta interessante seria ir atrás de pistas, em toda parte, sobre este tema: nas bibliotecas das escolas, nas bibliotecas virtuais, nos sites, blogs, nos diversos materiais que são produzidos sobre a África na perspectiva pós-colonial, nos projetos de pesquisa das universidades, nos jornais, no cinema, na literatura, nos livros infantis para constituir não a história verdadeira, mas uma forma de compreensão mais ampla e múltipla destas várias histórias. Neste vasculhar, há também a possibilidade de entrecruzar mundos e perceber como a situação de apartheid narrada no !lme não é algo tão distante de nós. As pistas estão também entre nós, nas pessoas mais velhas que viveram em nossas cidades em momentos em que havia lugares e demarcações urbanas para lazer, trabalho e estudo para negros e para brancos. Ir à busca das narrativas destes afrodescendentes e das marcas do preconceito em suas vidas, bem como de suas capacidades de resistir e se constituir como cidadãos nesta sociedade, pode auxiliar a dar visibilidade às situações de preconceito e segregação que continuamos a viver nos bairros, nas ruas, nas escolas, universidades, espaços de lazer e trabalho. Ir atrás dos mais velhos de nossas cidades - avós, avôs, lideranças culturais e religiosas, cantadores, mestres de capoeira, benzedeiras... - e ouvir suas

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histórias também pode nos indicar as pistas da imensa diversidade cultural, étnica, musical e linguística africana que adentrou o Brasil e aqui recompuseram cenários cotidianos nas cozinhas, nas festas, nos adereços, nos espaços urbanos (igrejas, fazendas, praças), nas curas, nas lutas, nas rezas nas gingas do corpo e da língua.

As entradas e respostas ao !lme, até aqui sugeridas, centram-se nas narrativas dos personagens e na forma de organizá-las na grande narrativa que é o !lme. Apresento agora um caminho outro, que escolhe a materialidade da língua, da literatura, da poesia, da imagem e do som como formas de adentrar o !lme. Inicio pela poesia e penso que seria um bom exercício rever apenas os trechos em que ela se torna personagem principal, quando os poetas recitam seus versos. Em alguns destes momentos, o !lme entra num transe imagético e sonoro, a poesia explode as narrativas lineares, gera sensações. Que sensações? Que imagens, sons e ritmos são criados para acompanhar os poemas? Que outras imagens em fotogra!a, desenho e vídeo poderiam ser criadas para estas palavras? Que poemas-respostas poderiam ser feitos para estas expressões da saudade, dos amores, das desigualdades, das dores, das visões e sonhos? A poesia, no !lme, também nos lança ao fértil universo literário dos países africanos lusófonos, em especial, à nova geração de escritores e poetas que conseguem ser os olhos da testemunha das guerras, das culturas, das línguas híbridas, entre o português e as línguas nativas. Esta poesia nos convida a perceber o intenso diálogo entre escritoras e escritores brasileiros e africanos, isto é, como mordem da fruta das várias árvores nas terras da língua portuguesa. Para além das poesias, cada palavra pronunciada e cantada tem em si uma materialidade poética nos sotaques, nas tonalidades da voz, na maneira alongada ou curta de pronunciar as letras, nas formas de mover os lábios e ritmar as frases. São danças de palavras e pronúncias que nos mostram que a língua portuguesa é um terreno heterogêneo e mutável e, por isso mesmo, fértil matéria de poesia e criação.

E se agora esquecermos as palavras e adentrarmos no !lme apenas por suas imagens e sons? Prestarmos atenção no modo pelo qual cada cidade é caracterizada e nos cenários escolhidos para compor o fundo das entrevistas. Como estas escolhas expressam as visões daqueles que !zeram o !lme? Como as sequências imagéticas e sonoras das ruas expressam as formas de conviver nas cidades? Como as sequências feitas, das casas, expressam os modos de vida de cada pessoa? Como os sons - músicas, ruídos, palavras - adensam sensações às sequências imagéticas? O mar como imagens da melancolia, da imensidão da distância, do choro salgado, do movimento contínuo de "uxos e re"uxos da vida, das pessoas-gotas dissolvidas na história e no tempo. As imagens externas da cidade !lmadas através de janelas de carros em movimento. As imagens da cidade íntima !lmadas em tomadas lentas e estáticas pela câmera que invade a casa e absorve objetos. As cidades fora-dentro nas projeções das vídeo-cartas pelas paredes das casas, momentos de poéticas sobreposições de pessoas, cidades, tempos. Imagens que tencionam o fora-dentro de cada cidade vivida, lembrada, desejada, imaginada.

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E mais uma vez o !lme me arrebate com perguntas: onde mora a cidade em mim? Como percebo e me relaciono com o lugar que vivo, o que me faz sentir parte dele, o que me faz sentir estrangeira? Quais as memórias sonoras e visuais que tenho das cidades que nasci, vivi e pelas quais já passei? Se pudéssemos enviar a algum personagem do !lme, aos seus diretores, a jovens angolanos, portugueses - as memórias, imaginações, visões das cidades em que vivemos, qual seria a forma? Uma poesia, uma história, uma carta escrita a mão, um email, um cartão-postal, a edição de palavras, imagens e sons em um vídeo-carta de 1 minuto? Quantas cidades apareceriam nestas diferentes criações?

Cada pergunta que o !lme nos lança pode gerar um novo "uxo de correspondência, de encontros improváveis, de amizades inusitadas entre Brasil, Portugal e Angola. O !lme deixa, assim, uma porta entreaberta, um convite a escrever, fotografar, !lmar, editar, desenhar, como quem oferece paisagens a um leitor desconhecido. Cada resposta pode ser lançada na web - blogs, e-mails, sites, redes sociais - via correios, garrafas jogadas ao mar, avião ao vento... como forma de espalhar desvairadamente a amizade no mundo, a!rmando uma outra política, no interior das políticas de exclusão, segregação, silenciamento e competição em que vivemos. Políticas e poéticas outras, nas quais a linguagem é a matéria viva da expressão do que cada um vê, sente, pensa, vive e propõe para recriar os cursos das histórias.

Com respeito ao trabalho de cada educador e educadora, despeço-me com os sinceros votos de que este !lme também lhes chegue como um presente, um convite à criação e à amizade.

Alik Wunder Doutora em Educação, professora da PUC-Campinas e Unicampe pesquisadora associada

ao grupo OLHO (Laboratório de Estudos Audiovisuais da Faculdade de Educação - Unicamp)

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Textos

Letícia Gregório CanelasAlik Wunder

Revisão de textos

Ireô Lima

Fotos

Coraci RuizJulio Matos

Ilustração da capa

Ionit Zilberman

Diagramação

Arthur Amaral

Coordenação e Produção

Laboratório Cisco

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