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CRÔNICAS DO ENSINO BÁSICO

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Sumário

5 Agradecimentos

6 Editorial

9 Escreva também!

11 Foi só um beijo Marlene Santos

14 Acerto de contas Rafael Marcon

17 Enquanto isso, numa escola municipal... Adriana Ortega

19 Quando o (vice) diretor faz toda a diferença Renato Pugliese

22 Aula de futebol Fernando de Oliveira Souza

25 Mérito e remédios Alexandre Olimpio

27 Um professor e uma boa aula entre aspas Sergio Vale da Paixão

30 Dia da consciência negra: dia da consciência humana Caio da Silveira

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Agradecimentos

Aos professores e às professoras que têm enviado seus textos à revista CdEB, àqueles e àquelas que aceitaram o pedido de publicação e adaptação, aos amigos e às amigas que leram e/ou compraram os primeiros números e, especialmente, aos e às que discutiram as crônicas, propuseram mudanças, sugeriram melhoramentos, divulgaram...

Viva a literatura!

Projeto Gráfico: Rafael Marcon

Foto: Max LaRochelle1

Editor: Renato Pugliese

Impressão da capa: 3Torres Gráfica Rápida

Contato e outras informações: www.cdeb.pro.br

/revistacdeb

1 Disponível sob licença Creative Commons no endereço https://unsplash.com/photos/c-vWdiICscA/ 5

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Agradecimentos

Aos professores e às professoras que têm enviado seus textos à revista CdEB, àqueles e àquelas que aceitaram o pedido de publicação e adaptação, aos amigos e às amigas que leram e/ou compraram os primeiros números e, especialmente, aos e às que discutiram as crônicas, propuseram mudanças, sugeriram melhoramentos, divulgaram...

Viva a literatura!

Projeto Gráfico: Rafael Marcon

Foto: Max LaRochelle1

Editor: Renato Pugliese

Impressão da capa: 3Torres Gráfica Rápida

Contato e outras informações: www.cdeb.pro.br

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1 Disponível sob licença Creative Commons no endereço https://unsplash.com/photos/c-vWdiICscA/ 5

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Editorial.8.CdEB

O sempre conturbado final de ano chegou e mais uma edição da Revista Crônicas do Ensino Básico é publicada. Menos trágica do que em outros números, pelo menos na primeira impressão, esta coletânea está preenchida por textos que permitem uma leitura fácil e aparentemente simples, mas que encasquetam na cabeça nas horas e dias seguintes.

Os professores Sergio Vale da Paixão (Um professor e uma boa aula entre aspas) e Fernando de Oliveira Souza (Aula de futebol) narram causos onde a linha que separa a formalidade da não-formalidade nas práticas educativas se torna quase ideal, ou seja, com diâmetro zero, e clamam em seus textos pela humanização da relação professor-aluno.

E por falar em humanização, a professora Marlene Santos (Foi só um beijo) e eu (Quando o (vice) diretor faz toda a diferença) apresentamos crônicas em que a figura dos gestores escolares são protagonistas, ora pro avanço, ora pro retrocesso nas vivências dentro dos muros da escola.

Dentro ainda das unidades acadêmicas, o professor Caio da Silveira (Dia da consciência negra: dia da consciência humana) faz uma reflexão sobre a consciência humana, assim como a professora Adriana Ortega (Enquanto isso, numa escola municipal…) narra a conturbada relação entre as crianças e os equívocos sociais, tema retomado pelo Rafael Marcon (Acerto de contas) quando escreve sobre o peso na consciência de quem comete bullying reproduzindo esses equívocos.

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Por fim, o professor Alexandre Olimpio (Mérito e remédios) discorre sobre as necessárias válvulas de escape do cansaço docente cotidiano, por vezes forçadas na mecanicidade diária.

Sobre o projeto gráfico da edição, basta afirmar que o Rafael Marcon (que pela primeira vez aparece com um texto, mas trabalhou em todas as edições de arte) foi preciso: no conceito e na técnica.

Espero que tenham uma ótima leitura e que cami-nhemos humanizando nossas relações acadêmicas.

Não somos robôs!

Renato PuglieseDezembro de 2017

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Escreva também!

A previsão de publicação do próximo número da revista CdEB é para o mês de Junho de 2018.

Caso você seja ou já tenha sido professor e queira narrar, de forma livre e poética, alguma situação vivida ou conhecida, visite nossa página na web (www.cdeb.pro.br), veja as condições para escrita dos textos e os envie para [email protected] que entraremos em contato.

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Manhã de festa. Muita gente no pátio tomado pela escuridão conseguida à custa de muito TNT preto pregado às janelas e frestas. A ambientação parecida com uma boate – ou um inferninho como diziam os antigos – traz caveirinhas, abóboras e esqueletos de papel e até um globo espelhado pendendo do teto enfeitado para o Halloween. A música alta e os jovens requebrando ao som do funk, infalível nas festas por essas bandas, completam a cena. Cena típica de adolescentes procurando se divertir, exibindo sua malemolência, sua sensualidade, sua incansável vontade de “dançar até quebrar os ossos” como um deles havia comentado ao projetar o evento. Alguns vestem-se com fantasias comuns a esse tipo de festa e outros, no entanto, improvisaram trajes impensáveis para nós adultos de criatividades tímidas.

E dançam, dançam como se fosse sua última festa, mostram seu vigor adolescente em cada movimento, em cada gesto que busca imitar os trejeitos do cantor ou da cantora que ouvem no momento. Passos certeiros, abraços, beijinhos trocados com parceiras e parceiros que se revezam ao ritmo da música. Braços para o alto, rebolados inacreditáveis naqueles meninos e meninas que ontem mesmo estavam quietinhos na sala de aula. “Gente, que tudo!”... “Libera!, Libera!”... “Faz a louca! Dança! Dança!”… “Vamo lá… hora do quadradinho!”, “Uhuuu!”, “Massa!”.

Som, suor, dança. Adultos tentando vigiar: alguns achando graça da molecada se jogando, outros de cara amarrada: “Mas gente, assim não dá! Tá demais!”, “Sei lá, não tenho nada contra, mas tá sensual demais, né?”, “E se começarem a se pegar?”, “Gente tem que parar com esse som, eles vão se empolgando… daqui a pouco vão pensar que estão no fluxo”, “Ah! gente, deixa eles, não estão fazendo nada, só dançando”, “Sei lá, isso não vai prestar”. 11

Foi só um beijo Marlene Santos

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E a moçada arrebenta, dança, rebola, sacoleja, grita, canta e, em dado momento, vira um tal de quadradinho daqui, quadradinho dali e só se vê bunda mexendo, a molecada rindo e achando o máximo esse momento de libertação, os adultos com aquele ar blasé de pessoa-mais-culta-que-a-massa e o alunado botando pra quebrar (sem quebrar quase nada se consideramos o que acontece num baile funk “de verdade”). A moçada bota pra quebrar de leve, do jeito que dá pra quebrar no espaço sacrossanto da escola e mesmo assim parecem estar promovendo uma revolução – um incômodo cresce em muitos observadores a cada nova música, a cada nova coreografia considerada imoral ou escandalosa ou de mal gosto. E dá-lhe funk e dá-lhe quadradinho e requebrada e dá-lhe biquinhos e carões… E a velharada pirando sem saber como intervir, cortar, silenciar, formatar aquela galera indomável.

Os alunos e alunas se esbaldam tanto que vão cansando e aí resolvem improvisar um concurso de dança. Escolhem a música: Vou desafiar você, do MC Sapão, e começa a batalha.

Nesse momento, sinto saudades do tempo em que eu mesma ensaiva meus passinhos escondida no quarto rezando pra ter coragem de dançar rock’n’roll nos bailes de final de semana. Me dá saudade desse tempo e me volta uma sensação que só parece ser possível quando se é jovem: da música penetrando em nosso ser e nos tomando completamente. Saudade daquele dançar sem barreiras, sem finesses, sem vergonhas que vão aparecendo, se somando e se cristalizando como armaduras em nossos corpos.

O povo adere ao concurso, os jovens se esforçam, se superam e, enfim, temos um vencedor. Ele é chamado ao palco para receber seu prêmio: uma flor e um beijo. E o beijo é daqueles que só adolescente dá, deixa todo mundo passado – uns de saudade, uns de vontade de dar um beijão daqueles em seus respectivos e respectivas, outros indignados talvez por não se lembrarem mais de como é aquela sensação… esses se retiram e ruminam reclamações entre dentes. Os expectadores exultantes, aplaudem, assoviam: “Beijaço! Beijaço!”. O som diminui e algumas luzes são acesas, iluminam o suficiente para percebermos que os dois alunos que se beijaram já estão

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se retirando juntamente com uma representante da gestão escolar. Os jovens ficam sem graça, a festa vai murchando… alguns dançam mais lentamente como quem perdeu o rebolado.

Cerca de dez minutos de demora e dois ou três professores saem do pátio para procurar os meninos, os encontram sentados diante da diretoria, um deles com os olhos cheios de lágrimas diz apenas: “Prô, foi só um beijo!”... Os adultos emudecidos não têm como dizer a eles que apenas um beijo é muito para quem vê com olhos fracassados o tesão, o amor, a vida, a ousadia e a liberdade.

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Acerto de contas1Rafael Marcon

1 Publicado originalmente em sua página no facebook e adaptado para a Revista CdEB

Tinha uma encruzilhada no meio do caminho, e foi esta a primeira vez que Fernando teve dúvida de como proceder, desde que levantara da cama com a certeza que não teria mais do que duas semanas de vida, há seis dias.

Foi de repente, sem sonho premonitório ou anjo de anunciação. Ele despertou, antes mesmo do despertador, e simplesmente sabia. Na verdade, foi como se lembrasse, como se já soubesse há tanto tempo que já tivesse esquecido, uma informação banal como o ciclo das estações do ano ou o a data de aniversário de um parente mais ou menos distante. Com uma resignação bem resolvida, foi preparar o café da manhã que sempre preparava, com café coado, torradas com manteiga, biscoitos industrializados e um Marlboro light. Ignorou as notícias da manhã como sempre ignorava, especialmente hoje, tão ciente do que mais deveria saber, comeu, bebeu e fumou seu café, depois vestiu uma calça confortavelmente esgarçada, calçou os tênis de caminhada e passou no banheiro para finalmente enxaguar o resto de sono ainda grudado no rosto, antes de partir a caminho do primeiro compromisso que julgava necessário resolver em vida.

Caim era um colega de classe do colegial, não muito próximo na época e muitíssimo menos agora. De fato, não trocavam palavra há pelo menos uns dez anos, mas graças ao facebook Fernando sabia que ele morava num prédio de fachada antiga, que foi restaurada recentemente e até passou na tv, em um bairro vizinho ao seu, distância saudável de se fazer caminhando. Chegando lá, bastaria torcer para ter alguém em qualquer apartamento cujo interfone ele apertasse ao acaso, e que o mesmo acaso

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não permitisse morar no mesmo prédio nenhum outro filho de uma família tão entusiasmada para batizar seu rebento com nome bíblico a ponto de escolher um dos primeiros que aparecem, sem considerar o turbulento destino que teve o Caim das escrituras. O xará suburbano, entretanto, carregava no momento apenas o azar do desemprego, o que para Fernando era um sinal de sorte, tendo este o procurado em horário comercial.

- Caim? Bom dia, aqui é Fernando Ragaço, teu colega no Santo Antônio, lembra?

- Fernando? Puta merda, taí alguém que eu não estava esperando.

- Espero não estar incomodando, posso trocar uma ideia contigo?

- Tudo bem, já desço aí pra abrir. Caim parecia leve. Fernando estalava os dedos para

esconder o tremor, e o suor escorria oculto na calça folgada. A mistura desencontrada de aperto de mão com abraço e tapinha nas costas que trocaram poderia parecer uma briga para um espectador mais ressabiado, que logo se acalmaria ao notar o gestual cerimonioso do anfitrião indicando a porta em frente à visita surpresa.

- Você toma com açúcar?- Tomo puro, mas acabei de tomar antes de sair de

casa, se você não se importar, só uma aguinha pra mim tá ótimo.

- Tá certo, eu prefiro com açúcar.- Então, desculpa de novo ter batido aqui de repente,

te procurado sem avisar. Pra ser sincero tive receio de você não querer me receber.

- E eu lá tenho motivo pra te tratar mal, Fernando? A gente perdeu o contato, mas você era boa gente comigo.

- Sério?- Sério o que?- Você nem lembra?- Tô achando que não.Aí a cara de Caim fechou. O sujeito que cresce

brincando na rua vai criando uma espécie de casca, sabendo por o pé atrás quando a cena fica suspeita.

- O lance da tabuada.- Com certeza eu não lembro.- Foi uma aula da Marisa, de matemática.- Merisa, né? Lembro que era um nome esquisito,

o dela.

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- Verdade... Ela dividiu a gente em grupos. Tava eu, você, a Juliana e a Cátia, se não me engano. Tinha que resolver não sei o quê de exercícios e no meio da resolução você considerou que sete vezes oito era sessenta e quatro.

- E aí?- Aí que deu tudo errado, é cinquenta e seis.- Tá bom mano, você veio aqui depois de quinze anos

reclamar de uma continha?- Não pô - Fernando mirava o chão, olhando através

da mesinha da cozinha de Caim - Vim te pedir desculpa.- Cê tá falando que fui eu que errei!- Mas foi! A conta, foi. O problema é que eu - Agora

Fernando olhava o batente da porta que dava para qualquer cômodo que estivesse além da cozinha, que ele não chegou a ver e nem veria depois. Tal como a gente do prédio, o interior do apartmento era antigo, mas honrosamente bem cuidado - eu fiquei te zoando depois pelo resto da aula. Cantando musiquinha de decorar tabuada, do primário. Te constrangendo na frente das meninas lá.

Deu pra ouvir os ponteiros do relógio de parede por um tempo.

- Velho, relaxa. Eu realmente nem lembrava disso aí. Você me zoou, também te zoei outras vezes, moleque é assim mesmo.

- Eu não me preparei pra te contar o que era, achei que só pediria desculpas e pronto - O olhar de Fernando continuava repelindo o de Caim como se tivessem o mesmo pólo magnético. Seu rosto já estava vermelho - você nem precisa dizer que perdoa, eu só queria pedir.

- Ah, é tipo do alcoólicos anônimos isso aí, né?- Não... Nem é.- Não precisa ter vergonha, já fiz coisa pior que

encher a cara. - Caim tocava o ombro de Fernando com uma camaradagem que retornava aos poucos. - Não acredito que uma bobagem dessa te atormenta, cara. Fica de boa, não me fez mal nenhum não.

- Pra mim fez. Foi a primeira vez que me vi sendo cruel com alguém de propósito com consciência disso.

Na volta pra casa, parou no beiral de um viaduto, olhou pra baixo com a certeza de que não morreria hoje, e tentou imaginar quanto de remorso irremediável cada um dos carros que passava estaria levando.

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I

7h30 - Começa a aula. J. faz brincadeiras chatas, daquelas que os colegas riem uma ou duas vezes, mas depois se irritam. A professora pede que ele se sente uma, duas, três vezes. J. se senta a cada vez, mas logo se levanta para perturbar outro. Começa a bater de brincadeira em M. que, no início, leva na boa, mas depois se estoura e parte pra cima de J. Soca daqui e dali, antes que a turma do deixa disso consiga se aproximar. Para piorar a situação, M. dá uma gravata em J. e não quer soltar. Até a professora que jurou pela mãe mortinha nunca separar uma briga de alunos, tenta separar, mas o menino parece lutador de MMA e não solta. Alguém chama o inspetor. A turma do deixa disso conseguiu separá-los. J. agora solto, promete vingança! Vão os dois para a direção. Os comentaristas da luta gastam ainda alguns minutos da aula narrando o evento. A professora, que quer sobreviver a esse e a outros dias iguais, luta para não dar risada, porque os comentários são engraçadíssimos. São dois tempos de aula no início e mais um no final. Só nesse do final é que os dois estão de volta à sala. Parece estar tudo bem. Os alunos que não terminam de copiar a matéria permanecem no final copiando. J. está entre eles. M. já foi. J. pede que alguém olhe pela janela, porque M., um covarde, segundo ele, já deve ter ido embora, com medo! Alguém olha e lhe diz que não, porque M. está lá, esperando no portão. A cara de J. muda. Para não perder a estribeira diz que antes vai almoçar, depois é que vai sair. A professora não quer rir. J. diz que M. é tão covarde que só bate em mosquito. A professora não resiste: “J. você é um mosquito?”. J. é tão bem-humorado que cai na risada!

Enquanto isso, numa escola municipal...

Adriana Ortega

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II

V. quer ficar na janela. “Sai daí, V.”, pede a professora. Ele responde: “Professora, tenho de ver meu pai chegando, porque ele não sabe qual é a minha turma.” A professora pergunta o que ele pretende fazer. V. diz que vai gritar para o pai qual é a sua turma pela janela quando o avistar. A professora, embora ache um disparate que o pai não saiba a turma do filho, resolve não falar sobre isso e lhe responde que isso não é necessário, porque basta que o pai diga o nome de V. na secretaria e lá saberão lhe informar a turma. “Mas, professora, ele sempre erra meu nome”. A professora, meio perplexa, mas disfarçando, consegue retirá-lo da janela. “V., vamos ver que solução seu pai vai dar para esse problema. Quer saber? O problema é dele!”

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Era preciso escolher uma escola para trabalhar. Após aprovação em concurso público da rede estadual e recém formado, o cargo de professor efetivo caía como uma luva em minhas mãos.

Tinha um enorme leque de escolas para escolher, por dois motivos. Primeiro pois estava com boa colocação na lista de aprovados e… ops, boa colocação mesmo estava meu amigo, professor de Geografia, em primeiro lugar na área. Mas eu estava bem também. Além disso, minha área de formação é a Física, tão carente de professores e que fez com que houvesse vagas em centenas de escolas naquele processo.

Não vem ao caso explorar isso agora, mas vale notar que à época, em 2007, Física e Geografia eram as áreas com maior défict de licenciados na rede estadual.

Essa conjunção de fatores nos levou, meu amigo e eu, a selecionar escolas para visitar. Tínhamos duas semanas e então fomos em algumas unidades conversar com os colegas da rede e conhecer um pouco mais os bairros e estruturas.

A escola precisaria estar num bairro de fácil acesso entre minha casa, na zona leste, e a universidade onde iniciaria os cursos de pós-graduação, na zona oeste. Seria então algo mais próximo do centro e com possibilidade de aulas em períodos diversos, para poder encaixar horários com os estudos e deslocamentos no caos de São Paulo.

Fomos em cerca de dez escolas, em algumas não pudemos ser recebidos pois não havia quem nos receber no momento ou precisaríamos agendar uma visita, condição bastante razoável num contexto gerencial ou industrial. Em outras só havia oferecimento do Ensino Médio, minha etapa de atuação, em um dos períodos, o que inviabilizava a escolha.

Quando o (vice) diretor faz toda a

diferençaRenato Pugliese

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Restaram duas: ambas com exclusividade na oferta de Ensino Médio, manhã, tarde e noite, em bairros centrais, com fácil acesso por transporte público, tradicionais e bem reconhecidas, bonitas (apesar das grades nas janelas) e aparentemente queridas: não havia sinal de depredações, os muros estavam bem grafitados, havia cortinas nas salas e os/as estudantes pareciam felizes, tudo visto por fora.

Fomos na primeira pela manhã. Ao chegarmos na secretaria, pararmos defronte à grade que separa os servidores públicos da população e aguardarmos alguns minutos sem sermos notados, intervi:

- Bom dia.- Bom dia. Pois não?- Precisamos escolher uma escola para trabalhar no

próximo ano, já que estamos aprovados no concurso, e esta escola parece ser muito legal de atuar. Gostaríamos de conhecê-la melhor.

- Pois não, professor, vou falar com o vice-diretor para que ele converse com vocês.

Após mais alguns minutos de cara na grade, surge o vice-diretor, que apoia seus cotovelos no parapeito da janela gradeada da secretaria e diz:

- Bom dia. Então vocês estão pensando em escolher essa escola?

- Bom dia. Sim, estamos. Esta é uma das que parecem mais organizadas da região.

- É. É uma escola bem organizada. Tudo ok.O papo desenrolou por uns 5 minutos, ali mesmo,

sem sorrisos, apenas informações sobre horário das aulas, atribuição, uniforme obrigatório, limpeza… Era início de dezembro, os professores e estudantes envolvidos com as tarefas finais, e dois professores recém formados querendo atrapalhar os trabalhos dos colegas, essa foi a sensação.

Almoçamos e fomos para a outra unidade, a última de nossa lista: E. E. Prof. Oswaldo Catalano. Chegamos na secretaria, que não possuía grades na janela. O procedimento foi semelhante, mas não precisamos esperar para sermos atendidos. Após alguns minutos, a porta principal se abre e o vice diretor nos convida a entrar.

- Então quer dizer que vocês querem conhecer a escola? Muito prazer, meu nome é Malton, sou o vice daqui, e sejam bem vindos.20

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Olhei para meu amigo, com ligeiro sorriso, e entramos.

- Bom dia. Obrigado pela recepção. Queremos sim conhecer um pouco mais desta unidade, pois precisamos definir em breve.

- Então venham comigo.A princípio pareceu um passeio. Por cerca de 20

minutos discutimos os problemas da educação pública, a carência dos estudantes, a força de vontade e persistência dos professores, o cuidado com a merenda, entre vários temas da educação, tudo isso enquanto circulávamos pelo prédio conhecendo alguns professores que nos encontravam, estudantes que eram parados pelo vice para falar para nós o que achavam da escola, além de funcionários da limpeza e da secretaria que trocavam duas ou três palavras conosco. O que a princípio pareceu um passeio, mostrou ser uma aula de atuação da direção.

Meu amigo acabou indo para a rede municipal, pois também participava de um processo no mesmo período, e eu passei três anos excelentes naquela unidade, escolhida sem sombra de dúvidas.

Dez anos passaram e o carinho por quem trata as relações humanas e a escola pública como local de construção do diálogo só tem a crescer. Esse texto é uma homenagem.

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Havia dois anos que o time dos professores participava do interclasses de futebol de salão dos alunos do ensino médio e técnico daquela escola. Era 2010. Agora, o time já tinha nome: Os Ronaldos.

Na verdade, a equipe não era só composta por professores, existia o reforço de policiais, filho de professor e funcionários mas, no entanto, a base do time titular era de docentes. No gol, Ulisses, professor de português e inglês: adorava defesas plásticas, mas amadureceu e se tornara um goleiro objetivo e preciso, resultado de anos jogando como goleiro titular do time de sua rua natal. Na linha, tínhamos peças raras: Albertão, o professor de física, sempre perigoso com seus chutes de fora da área, que os levou a ganharem por 4x0 o último jogo da primeira fase; Edson, professor de história, o craque da segunda idade, que não aceitava seus 45 anos, mesmo quando pensava como Pelé e o corpo respondia feito Tonhão, pitoresco zagueiro do Palmeiras na década de 90; Leonardo, o professor de matemática, equilíbrio do time e armador da maioria das jogadas; Norberto, o policial, beque de respeito; e as jogadas espetaculares vinham com Edinho, o filho do Edson. Assim, era a primeira vez que Os Ronaldos chegava à final.

A semifinal tinha sido muito violenta. Pela frente eles encararam o Real Madruga, time de repetentes que vinham mal em todas as disciplinas dos professores em quadra. Os alunos vieram famintos pro jogo. Apostando que tudo a ser dito ou feito na quadra ficaria ali, não faltaram xingamentos e faltas violentas. Foram dois expulsos do Real Madruga e, ao fim da partida, um deles começou a provocar tanto Os Ronaldos a ponto de o diretor da escola intervir e posteriormente suspender mais uma vez o pseudogoleador Rafael, que não fazia gol há 3 jogos. Placar: 5x4.

Aula de FutebolFernando de Oliveira Souza

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Chegou, então, a final. Seria um reencontro com o Bar Sem Lona, time que nunca conheceu derrota na escola. Era um grande prazer vê-los jogar, sempre uma aula de futebol, pois ensinavam como atuar coletivamente, dosando com finas jogadas individuais. Na primeira fase, o placar foi de 3x2. Desta vez, Os Ronaldos não iriam tentar jogar de igual pra igual, pois foi o grande erro do jogo anterior. A média de idade de 16 anos permitia a alta velocidade em quadra o tempo todo. Já a média de 35 anos exigia inteligência e muita objetividade do outro lado.

Começou parelho, mas com leve domínio do Bar Sem Lona, até sair o primeiro gol deles. Chute de fora da área, desvio em Norberto, sem chance para Ulisses. A torcida estava dividida, mas havia muitos alunos torcendo para Os Ronaldos, até porque o time adversário eliminou muitos espectadores ali presentes. Para a surpresa de todos, em uma jogada rápida de Leonardo, Edson dispara pela direita, dá um belo drible seco e empata a partida com menos de 1 minuto. Após o pique, Edson fica no banco por 5 minutos se recuperando das câimbras.

Quando ele volta, começam os problemas. Todos conheciam seu temperamento. Ele não admitia ser chamado de ex-jogador ou receber dribles vexatórios. Em um lance pela esquerda, Edson recebe uma chaleira e imediatamente devolve com rasteira violenta no aluno. Cartão amarelo. Um minuto depois, mesmo lance e falta um pouco pior. Edson expulso. Os Ronaldos ficariam 2 minutos com um a menos. As câimbras afetaram a todos e o segundo gol foi fatal. Logo em seguida, 3 bolas na trave e defesas brilhantes de Ulisses evitaram a goleada precoce. Japinha, do Bar Sem Lona, não se conformava desde o jogo da primeira fase com as provocações de Ulisses, pois era claro que terminaria como artilheiro do campeonato, mas sem ter feito gol n’Os Ronaldos.

Com o mesmo número em quadra, voltou a acontecer certo equilíbrio e, em um lance improvável, quase do meio da quadra, Albertão manda uma bicuda que acerta o ângulo do time adversário. Era o empate que fizera a torcida levantar, segundos antes do término do primeiro tempo.

Começa o segundo tempo e, pra variar, o condicionamento físico d’Os Ronaldos não colabora. Domínio total do Bar Sem Lona. Até o goleiro Ulisses começou a sentir o físico e em um lindo lance de Gabriel,

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um dos mais habilidosos alunos em quadra, o garoto dribla quase todo o time adversário e, quando corta Ulisses, esse segura com força o pé do menino. Pênalti! A torcida acreditava na defesa de Ulisses, gritando de pé o seu nome. Porém, prevaleceu a categoria de Gabriel. 3X2. Na sequência, o quarto gol. E fim de jogo. Margarete, a professora de química, gentilmente entregou as medalhas de prata a’Os Ronaldos.

Foi mais um espetáculo do Bar Sem Lona, que aprenderam naquela escola a trabalharem em equipe em vários contextos, percebendo que a raiz de competência e competição é a mesma. E os professores mostraram ser a sala de aula só um dos possíveis espaços físicos para ensinar ou aprender, provando que o processo de educação acontece entre todos os envolvidos.

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Tinha de provar diariamente que era bom. Tinha de provar que entre os bons era o melhor. Todos os dias, ao acordar, lembrava-se disso porque já vinha disso se ocupando desde ao deitar-se. Na verdade, ocupava-se disso desde sempre. Ao acordar, e lembrando-se disso, ou melhor, ao dar-se conta de que disso não esquecera um só instante, retomou de onde houvera parado ao deitar-se: o que lhe aguardava aquela quarta-feira.

Sem louros, mal remunerado, sem o tempo necessário para o preparo de um cotidiano de batalhas, assim como sem o descanso e o lazer necessários para repor o que nesses enfrentamentos era-lhe extraído, encheu-se de forças e partiu.

Começava cedo e terminava tarde o seu dia. Ou melhor, nunca terminava, uma vez que tinha que provar diuturnamente que era bom e dentre os quais, o melhor. Aliás, parte das energias dispensadas devia-se a esse esforço: provar! Provar! E mitigar as preocupações com os concorrentes, a vulnerabilidade de sua função e emprego sempre na iminência de perdê-lo à custa de sua sobrevivência.

Na aurora do século XXI, trazia uma existência laboral precária maior que no tempo da escravidão. Achava natural que assim fosse. Achava que a dinâmica desse mundo pós-chão de fábrica, de novas tecnologias era assim mesmo. E assim, deveria ele se adaptar, entrar nessa roda, nesse círculo incessante de reflexos a mil por hora e, mais que isso, deveria nele manter-se a todo custo, mesmo que à base de complôs, pequenas traições e cinismos, mesmo que à base de barbitúricos, mesmo que à base de um Deus que olhava a todos, mas mais para ele porque acreditava mais Nele e em si, porque era mais persistente, dedicado e calculista e porque diariamente dava tudo de si para ser o melhor dos bons.

Mérito e remédiosAlexandre Olimpio

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Naquele dia, algo aquém o incomodava. Havia brechas, flancos sem respostas sobre um determinado pensamento. Problema sobre o qual não tivera tempo de aprofundar e apresentar esclarecimentos. Brechas essas que poderiam vir à tona naquela quarta-feira durante as aulas. Como não pudesse revelar qualquer fraqueza, qualquer vulnerabilidade preferiu...

Ao sair de casa com destino ao trabalho, deixou que o metrô o levasse à estação Jabaquara donde, tomando um ônibus, chegou ao litoral santista. No decorrer da curta viagem não descansou um só momento, pensando no que estaria fazendo naquele momento e com quem estaria caso estivesse trabalhando e qual a desculpa que daria pela sua ausência naquele dia.

A praia, uma calmaria, afinal era dia útil da semana. O mar seguia o seu fluxo, a cidade o seu dia. Sentou-se à beira mar e descalçou-se. O sol já estava quase em zênite. As ondas iam e vinham incessantemente. Os diários de classe dispostos sobre a areia da praia e sob o efeito do ar marinho, tal qual gaivotas, batiam asas: Características dos seres vivos, Evolução e diversificação da vida, A química e a vida, Glicídios, Lipídios, Citoplasma, Genes, Fotossíntese, Reprodução, Fisiologia, Sistema endócrino, Sistema nervoso, A origem da vida, Vidas marinhas... Ele finalmente perdeu-se da hora e dos compromissos do dia e pensou diante a imensidão que ia e vinha acariciar-lhe os pés: como deve ser bom ter o mar próximo para meditar... E se pôs.

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Sem nunca ter tido a experiência em sala de aula – senão como aluno – resolveu aceitar o desafio de substituir a professora em algumas escolas públicas e particulares da pequena região onde morava no interior do estado do Paraná.

Cheio de motivação, curiosidade e interesse, inseriu-se em um contexto que acabara de sair como aluno. Agora, ali, naquele mesmo local, transitava os corredores como “professor de Português e Inglês”. Era o mais novo da equipe, o que tinha menos experiência, menos idade, menos formação, menos respeito por parte de seus ex professores e, agora, colegas.

Dava aulas de inglês em um colégio particular, novo, grande e com filas de espera para matrículas. Lecionava para o ensino fundamental e médio. Um dia, sem esperar, recebeu um convite da coordenadora de Educação Infantil para iniciar um trabalho com o ensino de inglês para aquele nível. Era uma primeira experiência que a escola estava propondo aos pais com o ensino de língua estrangeira, o que trazia expectativas de todos os lados. Embora nunca tivesse tido experiência com crianças tão jovens – tampouco com os mais velhos, pois estava realmente começando a lecionar – aceitou o desafio. E lá foi ele “dar aulas” para uma turma de Jardim I e Maternal, todos juntos, na mesma sala.

Quando adentrou à sala, para dar sua primeira aula “muito bem preparada”, a professora regente logo o surpreendeu juntando seu material para se ausentar de lá para “cumprir sua hora atividade na sala dos professores”. O professor ficou um pouco preocupado, pois achou que teria ao menos a companhia da professora enquanto passaria os trinta minutos – tempo dado para o

Um professor e uma boa aula entre aspas

Sergio Vale da Paixão

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trabalho com as crianças – “dando aulas”, pois passava pela sua cabeça a possibilidade de não conseguir “controlar” os pequeninos.

Ele fechou a porta, apresentou-se às crianças e começou sua aula de inglês, em pé, giz na mão, olhar sobre as crianças.... Ali, naquela sala cheia de cores, brinquedos e painéis coloridos, tudo acontecia durante “a aula do professor”. Crianças choravam, um garoto dormia no chão sobre uma caixa de brinquedos, outros saiam da sala correndo com armas e monstros construídos com peças de montar na mão enquanto ele, o professor, “dava sua aula de inglês” e repetia inúmeras vezes para aquele tão seleto grupo “a importância de se aprender uma segunda língua”. Expressão repetida inúmeras vezes por ele naqueles tão demorados trinta minutos da “aula de inglês”.

Durante todo aquele tempo, enquanto tentava dar sua aula e acalmar a turma, comprometido com o que havia “de ser cumprido”, conforme seu planejamento orientava, uma cena, uma imagem, chamava-lhe a atenção. Um garotinho fitava-lhe os olhos com sorriso de menino curioso... um garoto que lhe prendia a atenção pelo olhar atento e interessado naquela conversa, naquela “aula”. Durante todo o tempo, era o único que se comportava como ele queria. Calado, atento, silencioso, o menino olhava atentamente para o professor “disciplinadamente, interagindo, prestando atenção”.

Depois de “tanto trabalho”, a aula, enfim, acabou. Com uma garota dormindo em seu colo, o professor se despediu da turma sinalizando que na outra semana estaria ali, novamente, para “dar-lhes aula de inglês”. Ao encontro da professora, caminhou até a sala dos professores, num momento em que todas as crianças escapavam pela porta indo ao encontro dela e “devolveu a sala”, bem como a garota que dormia em seus braços, com o pensamento vitorioso de que havia “cumprido seu papel de professor de inglês” e, principalmente, superara com sucesso aquele desafio de dar aulas para crianças tão pequenas tendo tão pouca intimidade com a sala de aula.

Era hora de ir pra casa, ainda haveria de dar aula no período noturno para alguns adolescentes em uma escola pública estadual, em outra cidade. Já sem voz, dirigia-se até o ponto de ônibus para voltar para casa com a certeza de “dever cumprido e desafio superado”.

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Pensava em como seria a próxima aula, a próxima semana com aqueles alunos tão pequenos. Seu pensamento estava voltado para “os conteúdos que deveriam ser apresentados na próxima aula.” Colors, numbers, days of the week, toys, members of the Family... Enfim, muito ainda “deveria ser trabalhado com as crianças” e, com o mesmo sentimento de expectativa para a segunda aula de inglês, havia a expectativa de que a turma estivesse mais atenta, participativa e disposta a aprender, talvez com a atenção e olhar do garotinho de cabelos pretos e olhos azuis que não saia de sua cabeça, afinal, João Vítor se mostrou “bom aluno durante a aula”.

Na manhã do outro dia, o professor retornou para a escola para “dar aulas” para outro nível de alunos. Era hora de trabalhar produção de textos com a galera do ensino médio. No primeiro intervalo, o professor foi surpreendido e convidado pela coordenadora pedagógica para “ter um conversa”. Ela esboçava um sorriso sarcástico ao fazer-lhe o convite. Seu sorriso, aos poucos, transformou-se em gargalhadas quando, ao fechar a porta, perguntou-lhe sobre como tinha sido aquela experiência com a introdução da Língua Inglesa para crianças no dia anterior. Tímido e bastante apreensivo, principalmente por conta das risadas da coordenadora, passou a relatar sua “experiência de sucesso”. Detalhe por detalhe, sua experiência foi sendo narrada em um tom de otimismo e superação, inclusive detalhando as habilidades que tivera com as crianças que corriam, choravam, dormiam....

Interrompido por mais um início de risada – agora em um tom um pouco mais intenso – a coordenadora comenta sobre a ligação que recebera da mãe do João Vitor na tarde anterior. A mãe questionou a coordenadora sobre a “aula de inglês” que seu filho tivera. Queria saber se havia professor novo, quem era e o que aconteceu de verdade naquela aula. O motivo da ligação: seu filho chegara em casa, naquela tarde, depois da aula, questionando a mãe sobre a possibilidade de ele ter “duas línguas”, já que o professor dissera isso na “aula de inglês”.

Depois de muito rir da situação, agora junto com a coordenadora da escola, e com uma boa dose de preocupação (com medo de perder o emprego!), o professor passou a refletir sobre a situação que vivera.

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Dia da consciência negra: dia da consciência humana 1

Caio da Silveira

1 Texto lido pelo autor durante o encerramento do evento em homenagem ao Dia da Consciência Negra ocorrido em 23 de novembro de 2017, no teatro da Fábrica de Cultura no bairro da Fazenda da Juta em São Paulo. Participaram alunos de 1º ao 3º ano da Etec de Sapopemba.

Objeto em questão: a consciência negra. 20 de novembro é a data proposta. É, pois, uma lembrança à morte do mítico Zumbi dos Palmares ocorrida nesse dia no ano de 1695. E cá estamos, no teatro com a escola, aproveitando a homenagem ao Dia da Consciência Negra.

Mas como definir o conceito, essa categoria de pensamento, a consciência? No que tange ao negro, aos afrodescendentes, essa seria a consciência do negro? Já ouvi alguns desbocarem o infame chiste: “e preto lá tem consciência?”. Pois bem, como categoria de pensamento, é própria de todos os membros da espécie Homo sapiens sapiens do qual fazem parte os caucasianos, os asiáticos, os ameríndios, os polinésios e os africanos.

Alguns outros talvez pensem: se a questão é de ordem antropológico-sociológica, então seria para que todos os negros tivessem consciência do que se tornaram na sociedade atual? Seria a consciência que o negro deve ter de sua realidade num mundo que, como dizem, ainda é dominado por uma elite sócio-política, econômica e intelectual branca?!

Outros talvez cogitem, como numa espécie de mea culpa que o termo seria adequado, pois, quem tem a consciência limpa nada deve temer!

Creio que muita coisa assim e além deve passar pela cabeça de muita gente branca e negra sobre essa data e o que ela poderia/deveria significar...

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Não me seria possível, agora, adentrar no filosófico complexo que o termo suscita. Mas de uma coisa creio firmemente: consciência não tem cor. Consciência tem peso... umas pesam mais, outras menos. E que pese sobremaneira a da sociedade escravagista que nas épocas correntes submeteu como cativos uma miríade de nações de diversas origens vindas do continente africano. Que pese também a sociedade que tendo consagrado a libertação legal em fins do século XIX, legou os descendentes da África à uma condição sócio política que pouco diferia da condição do cativeiro nas Américas. E que continue pesando a da sociedade contemporânea que ainda pouco tem feito para minimizar toda a sorte de preconceito, discriminação, intolerância que como membros ativos dela, fazemos cair como uma avalanche desenfreada sobre as cabeças uns dos outros.

Nesse rol de calamidades, sofre o que tem a cor diferente, a religião diferente e aquele que “escolheu” gostar de pênis quando deveria gostar de vagina ou vice-versa segundo os ditames milenares e vetustos da moralidade pregada por muitas religiões mundo afora.

Somos negros, somos brancos. Temos cabelo claro e liso, temos escuro e crespo. Temos a cor branca, temos a cor preta. Temos a consciência limpa, temos a consciência suja.

Tem gente de toda cor e raça roubando, matando, vilipendiando e degradando a cultura humana. Tem gente de toda origem fazendo todo tipo de caridade e obrando em prol das minorias e das maiorias dos que tem mais e dos que tem menos no mundo. O mundo só pode funcionar se os que nele habitam cooperarem mutuamente. Esse é o grande segredo do gênero homo que o tornou diferente de todos os demais gêneros animais que por aqui já passaram. Nossa capacidade de cooperar nos fez gigantes no mundo. E gigantes têm que prestar mais atenção do que todos os demais ao seu redor, pois, como diz o refrão popular: “quanto mais alto fores, maior o tombo”.

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