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Cultura Com Aspas_trecho

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  • 2 introduo

  • 4 introduo

  • Manuela Carneiro da CunhaCultura com aspase outros ensaios

  • a Mauro, Mateus, Tiago, Luana, Dani e Loureno, pela alegria

    a Elena Cassin e a Jean-Pierre Vernant, com enorme saudade

  • 9 introduo: meu charuto olhares indgenas 15 1. Lgica do mito e da ao 51 2. de amigos formais e companheiros 59 3. Escatologia entre os Krah 77 4. Vingana e temporalidade: os tupinamb (com Eduardo Viveiros de Castro) 101 5. Xamanismo e traduo 115 6. um difusionismo estruturalista existe?

    olhares indigenistas e escravistas 125 7. Por uma histria indgena e do indigenismo 133 8. Sobre os silncios da lei (com posfcio sobre Henry Koster) 157 9. Pensar os ndios: apontamentos sobre Jos Bonifcio 165 10. Sobre a servido voluntria, outro discurso 179 11. imagens de ndios do Brasil no sculo xvi 201 12. da guerra das relquias ao Quinto imprio

  • etnicidade, indianidade e poltica 223 13. religio, comrcio e etnicidade 235 14. Etnicidade: da cultura residual mas irredutvel 245 15. trs peas de circunstncia sobre direitos dos ndios 259 16. o futuro da questo indgena

    conhecimentos, cultura e cultura 277 17. Populaes tradicionais e conservao ambiental (com Mauro W. B de Almeida) 301 18. relaes e dissenses entre saberes tradicionais e saber cientfico 311 19. Cultura e cultura: conhecimentos tradicionais e direitos intelectuais

    375 20. conversa com manuela carneiro da cunha

    389 Bibliografia geral 419 Sobre a autora 427 ndice onomstico 435 ndice de etnnimos

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    Introduo: meu Charuto

    Sobre o primeiro artigo que publiquei e que abre este livro, uma grande e sbia amiga, Elena Cassin, escreveu: no tente provar demais. Aps trs dcadas e vrias tentativas, penso ter cumprido tal diretriz. O panfleto tentacular que fecha o volume prova disso.

    A matemtica que estudei cincia humana como a definia Vico, j que criada pelo homem e o estruturalismo que me seduziu tinham em comum a construo ou a evidenciao da ordem. Mas Lvi-Strauss sem-pre advertiu que no mundo real a ordem s constitui algumas tantas ilhotas em um mar de caos. E meu segundo ensaio sobre a escatologia krah j comeava a explorar os limites dessas ilhas de estrutura. Isso posto, Lvi-

    -Strauss tambm evidenciou o esforo humano permanente de construir ordem no mundo: tarefa de Ssifo, mas que tem sua grandeza. A essa tare-fa, como os Canela do movimento messinico que estudei e cuja estrutura mtica forjou a histria, nunca deixei de me dedicar.

    Uma breve queda na razo prtica britnica foi logo temperada por um estruturalismo ampliado a novos domnios, os da constituio de socie-dades intertnicas. Nesse campo tambm, como no totemismo, as diferen-as seletivas se organizam em sistema. Novamente porm, sobra um res-duo na explicao: a cultura.

    Mais recentemente, em Chicago, contaminei-me de um pouco do pragmaticismo de Charles Peirce, por sinal, autor da frase lapidar sobre a razo prtica que se me aplica muito bem: [...] an axiom which, to the present writer at the age of sixty, does not recommend itself as forcibly as it did at thirty.

    Quanto aos temas que vim estudando, percebo uma constncia. Cada um sua maneira trata de interfaces, fronteiras, olhares e de polticas sobre os outros, sobre o outro. Situaes de contraste quando no de contato entre sociedades diferentes so o ponto de partida em vrios de meus tra-balhos, entre elas o movimento messinico canela, a catequese, o direito

  • 12 introduo

    indigenista, a etnicidade, o florescer do xamanismo, o conhecimento tradi-cional e a indigenizao da cultura. O tema da traduo, por sua vez, est ligado a meu interesse pelas interfaces: no s o que se deva entender por traduo mas tambm suas condies de possibilidade e seus impasses.

    As coisas brasileiras, entendidas de modo lato no tempo e no espa-o, so meu campo de estudo e de interveno poltica. Sobre este pon-to, cabe uma advertncia: a relao entre minha atividade de militante e meus ensaios de ambio mais terica no simples e no deve portanto ser pen sada de forma simplista. H uma autonomia entre as duas atividades, por mais que vrios assuntos tenham surgido de pesquisas suscitadas por urgncias polticas.

    A primeira parte do livro concentra-se sobretudo na lgica indgena e no seu modo de entender e se entender com a histria. A segunda sime-tricamente dedicada a apreender o pensamento de missionrios, colonos, legisladores e oficiais do governo sobre os ndios e os escravos.

    Muito foi escrito por antroplogos sobre como as cosmologias ind-genas informam o modo dos ndios perceberem aqueles que os invadiram. Mas o estudo da cosmologia dos que aqui aportaram parece ter sido dele-gado a historiadores o grande exemplo Srgio Buarque de Holanda e sua Viso do Paraso. At umas trs dcadas atrs, a diviso de trabalho parecia atribuir aos antroplogos o estudo das iluses dos ndios como se s eles tivessem pensamento simblico e aos historiadores o das men-talidades dos conquistadores e a teologia prtica dos missionrios. O meu trabalho faz parte de um movimento de recuperao das cosmologias oci-dentais como objeto legtimo de estudo antropolgico, o que implica negar ao ocidente o privilgio ilusrio que reivindicou para si, com o Iluminismo, do desencantamento e da transparncia da razo.

    O pensamento indigenista, ou seja, como os ndios so pensados pelos que os regiam polticos, administradores ou missionrios , e sempre foi histrico. Sua historicidade significa que no intervm na poltica indi-genista apenas convenincias e expedientes embora estes certamente tenham predominado na prtica mas todo um debate de ideias renovado a cada poca por novas razes ao mesmo tempo religiosas ou filosficas, polticas, sociais, jurdicas, em suma, todo um universo de representaes... por isso que o lobo da fbula se sente obrigado a enunciar motivos leg-timos de comer o cordeiro.

    Nesse sentido, os textos sobre os jesutas Antonio Vieira e Francis-co Pinto, sobre imagens dos ndios no sculo xvi, sobre Jos Bonifcio e

  • Meu charuto 13

    seus Apontamentos sobre os ndios bravos, de 1823, embora tratem de perodos e figuras diferentes, esto unidos pelo mesmo interesse de escla-recer o universo que esses personagens habitavam. E o tema permanece quando discuto formas contemporneas de se definirem os ndios.

    A cosmologia do desenvolvimento foi determinante aps a Segunda Guerra Mundial. Hoje, civilizado pelo qualificativo sustentvel, o desenvolvimento dos anos 1970 j no consegue apoio incondicional e perdeu boa parte de sua fora ideolgica. Mesmo os que na prtica o res-suscitam, sentem-se obrigados a dar explicaes. E quanto ideia da inte-grao entendida como assimilao cultural, ou seja, a aspirao de abolir todas as diferenas, foi substituda pelo direito diferena. A Constituio de 1988 leva a marca do aggiornamento dessa cosmologia.

    As questes ligadas a conhecimentos tradicionais, tratadas na quarta seo, tm uma afinidade perturbadora com as questes missionrias de sculos passados. Nada se assemelha mais s certezas religiosas e ao af missionrio do que o alto modernismo das cincias da natureza. Passando sob silncio seus prprios debates internos e sua historicidade, essas cin-cias, em seu triunfalismo, detm um poder poltico comparvel ao que j foi o da Igreja catlica.

    Passei mais de dez anos tratando de assuntos que parecem disparata-dos: debates, reunies, legislaes e fices referentes a direitos intelectuais sobre conhecimentos tradicionais. Tambm meti minha colher de pau, e participei de alguns processos polticos no Brasil e nas Naes Unidas rela-tivos a direitos culturais e a conhecimentos tradicionais.

    Participei ainda na fracassada tentativa de transformar o conhecimen-to sobre a secreo de uma perereca em um grande exemplo de reconhe-cimento de direitos intelectuais indgenas. Outro fracasso instrutivo foi o de criar uma verdadeira Universidade da Floresta e implantar um novo relacionamento entre conhecimento tradicional e conhecimento cientfico numa universidade em Cruzeiro do Sul.

    Participar de processos essencialmente polticos como esses e pensar ao mesmo tempo nas categorias da antropologia, nos paradoxos da cultura, na falcia da categoria da autenticidade e sobretudo no impacto da pr-pria antropologia sobre esses processos um problema que acomete quem defende a legitimidade do discurso de agentes polticos e ao mesmo tempo reflete sobre as condies, internas e externas, de sua produo.

    Mas no foram s essas experincias que gestaram este livro. s vezes, ao reler artigos de outros autores, surpreendo-me a reavaliar o quanto

  • 14 introduo

    os meus assimilaram algumas das ideias que l esto. Para quem, como eu, combate uma viso patrimonialista da criao intelectual e sustenta que a autoria nutre tanto quanto se nutre do pensamento alheio ideia alis tomada de Jefferson, que afirmou que acender o charuto alheio no impede de acender o prprio com a mesma chama , emprstimos no so em si reprovveis. Creio que, graas a eles e ao que tem sido minha vida, acendi meu prprio charuto.

    agradecimentos

    Minhas dvidas intelectuais so muitas e esto quase todas evidentes. As pessoais so pessoais, no se fala nelas. Resta-me agradecer a Florencia Ferrari, minha editora, que alm de conseguir que eu relesse meus artigos coisa que sempre me repugnou fez um trabalho incansvel e primoroso de crtica e correo de texto.

  • olhares indgenas

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    1. lgiCa do Mito e da ao: o MoviMento MessiniCo Canela de 19631

    Em 1956, em artigo em homenagem a Roman Jakobson, Lvi-Strauss retomava o debate sobre as relaes entre mitos e ritos. Afirmava, en-to, que a correspondncia entre eles no devia ser entendida como cau-salidade direta, mas como uma relao dialtica que apareceria desde que ambos tivessem sido reduzidos a seus elementos estruturais (Lvi-

    -Strauss 1956).O movimento messinico que, em 1963, sublevou os ndios Ram-

    kokamekra-Canela do estado do Maranho2 certamente pode, j que foi vivido em funo de um modelo preexistente, ser tratado como um rito no sentido lato. Na verdade, podemos, pelo menos a ttulo heu-rstico, perceber nele uma histria subjacente que, por razes que se tornaro claras, um rito, e um culto que consiste em esboos de ins-tituies. Meu intuito mostrar que, enquanto esse culto a contra-partida da estrutura social canela, o desenrolar das aes, tal como foi entendido pelos atores, refere-se dialeticamente a um mito, o da ori-

    1. Este artigo foi publicado originalmente na revista LHomme, v. xiii, n. 4, 1973. Foi o primeiro artigo que escrevi e v-se imediatamente. Os indcios seguros so sua ambio, seu tom de certeza e o excesso de notas escorando as asseres. So cacoetes de juventude que passam com a idade.

    Agradeo a Jean-Pierre Vernant, Peter H. Fry e Lux B. Vidal, que fizeram a gentileza de ler a primeira verso deste texto e contribuir com suas crticas; Jean Carter Lave e Vilma Chiara generosamente permitiram utilizar textos na poca inditos; e, finalmente, o artigo foi concludo com o auxlio de uma bolsa da Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo (Fapesp). A traduo de Beatriz Perrone-Moiss.2. Os Ramkokamekra fazem parte da famlia dos Timbira orientais, que, por sua vez, cons-tituem uma frao do grupo lingustico j. Tornaram-se conhecidos principalmente aps a publicao (por Lowie, nos Estados Unidos) dos trabalhos de Nimuendaju, que chamaram a ateno para esse grupo indgena do cerrado, cuja organizao social e sistema ritual apre-sentam uma notvel complexidade.

  • 18 oLHArES indgEnAS

    gem do homem branco, mito que literalmente reencenado s avessas para o triunfo indgena e a derrocada final dos brancos.3 Para tanto, me situarei no nvel das representaes: ser possvel, desse modo, com-preender a eficcia de um movimento messinico que est fundado em categorias do pensamento canela e que satisfaz, em ltima anlise, a exigncias cognitivas.

    A aplicao de um tratamento mitolgico a algo que diz respeito histria poderia ser-me censurada: lembraria, em primeiro lugar, que o que assim foi tratado uma histria tal qual foi contada por aque-les que a viveram, uma etno-histria; em segundo lugar, possvel reconhecer, pela leitura do que segue, que se trata de uma histria ideolgica,4 que, consequentemente, pertence a um gnero mitolgico. Dizer de uma histria que ela mitolgica, como Lvi-Strauss assinala, no significa que ela contenha erros ou omisses5 pode ou no cont-

    -los mas implica, isso sim, que ela transborde de sentido, um sentido que lhe anterior, j que remete a uma classificao, a uma ordem que preexiste e o determina.

    Sabemos do que aconteceu graas comunicao de William H. Crocker, apresentada no Simpsio sobre a Biota Amaznica e publicada em 1967, nas Atas desse encontro.

    Em poucas palavras, trata-se de um movimento surgido das pro-fecias de uma mulher casada, Kee-kwei, que teria recebido revelaes provenientes da filha que carregava no ventre, e que anunciava a subver-so das relaes de poder: a 15 de maio de 1963, o dia em que a criana

    3. O mito de origem do homem branco, por sua vez, a conceitualizao de uma situao de desigualdade, de modo que temos a os dois primeiros momentos que Balandier (1962) distingue na situao colonial, a saber, o reconhecimento, a interpretao do fato colonial e a consequente reao, que aqui assume uma forma messinica.4. Na medida em que permite que o ator interprete o seu vivido. Cf. a esse respeito Mary Douglas (1968: 98), e Evans-Pritchard (1962: 21): In the first sense history is part of the cons-cious traditions of a people and is operative in their social life. It is the collective representation of events as distinct from events themselves. This is what the social anthropologist calls myth [No primeiro sentido, histria parte das tradies conscientes de um povo e operante em sua vida social. a representao coletiva de acontecimentos, sendo distinta dos prprios acontecimentos. aquilo a que o antroplogo social chama mito].5. A story may be true yet mythical in character and a story may be false yet historical in character [Um relato pode ser verdadeiro ainda que de carter mtico e um relato pode ser falso ainda que de carter histrico] (Evans-Pritchard 1962: 53).

  • Lgica do mito e da ao 19

    nasceria, os ndios se apossariam das cidades, pilotariam avies e nibus, enquanto os civilizados seriam enxotados para a floresta. Essa filha, a quem a me deu o nome de Kr-kwei, menina-seca, seria a irm do heri Auk, isto , do homem branco, cujo mito veremos mais adiante.

    Os signos da criana foram inicialmente reconhecidos por seus pais e, em seguida, por intermdio de seu keti6 (irmo da me ou pai de um dos pais, o texto no especifica), aceitos pelo conselho da aldeia, que se encarregou de transmitir as notcias s outras aldeias ramkoka-mekra. Dez dias mais tarde, encabeando as trs faces tribais reuni-das, a profetisa fazia sua entrada triunfal na aldeia tradicional do Ponto. Por intermdio de Kee-kwei, Auk permitiu que os ndios tomassem cabeas de gado dos criadores da regio: pois no eram seus, originaria-mente, os animais?

    O culto se organizou em pouco tempo, mas o nascimento, dois dias antes da data anunciada, de um natimorto e, alm do mais, de sexo masculino, alterou o movimento. Foi preciso dar conta desse fato novo: o nascimento prematuro foi atribudo aos malefcios de um estrangeiro, um Apanyekra, a quem Kee-kwei teria recusado seus favores. E o mo-vimento continuou, com fora renovada, com acrscimos que W. H. Crocker infelizmente nem sempre pde distinguir da verso primitiva. O fato, entretanto, que foi elaborada uma nova variante, que convm separar, para a anlise, da precedente. Veremos que, mediante certas equivalncias, redutvel primeira.

    O resultado, previsvel, dos acontecimentos no tardou: no incio de julho, irritados com os furtos, os criadores da regio queimaram a aldeia; quatro ndios foram mortos apesar das garantias de invulnerabi-lidade dadas por Kee-kwei. A dvida se instaurou num grupo de mulhe-res que foram acusadas de ter provocado, com suas maldies, a partida de Auk e de sua irm, Kr-kwei; inaugurava-se assim uma terceira verso cujos desenvolvimentos permanecem desconhecidos. Os fun-cionrios do Servio de Proteo ao ndio (spi) tiveram, ento, para proteg-los, de transferir os Canela, ndios do cerrado, para a reserva dos Guajajara, situada na floresta.7

    6. Keti uma categoria de parentesco que inclui entre outros o irmo da me e os avs. Entre os Timbira orientais, um keti do menino quem lhe transmite um nome. Ver adiante nota 16. 7. W. H. Crocker, numa comunicao de outubro de 1971, descreve-os num estado de abati-mento, de alheamento, que atribui a uma inadaptao ecolgica. Entretanto, poderamos nos