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Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
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Crise Estrutural do Capital, Trabalho Imaterial e
Modelo da Competência - Notas dialéticas
Giovanni Alves
O objetivo deste ensaio é apresentar algumas notas teórico-analiticas sobre as
mutações estruturais do sistema do capital nos últimos trinta anos e tratar, de modo
breve, dos impactos destas mutações sobre a educação profissional (isto é, educação
para o trabalho), tratando mais especificamente, do denominado modelo de
competência.
Iremos apresentar a título de hipóteses de trabalho as seguintes teses que buscam
apreender a nova fenomenologia do capitalismo global e do que denominamos de
terceira modernidade do capital1. É a partir delas que iremos elaborar, mais adiante,
1 Por terceira modernidade do capital entendemos o período histórico de sua crise estrutural, que se desenvolve a partir de meados da década de 1970 e que se caracteriza pela terceira revolução industrial, pelo desenvolvimento do toyotismo e da produção flexível, pela crise do imperialismo e globalização; pelo neoliberalismo e financeirização da riqueza capitalista; e pelo sócio-metabolismo da barbárie e pós-modernismo como lógica cultural do capitalismo tardio. A primeira modernidade transcorreu na época histórica de constituição do mundo burguês ocidental, que vai do século XVI ao século XVIII e caracteriza-se pela expansão do mercantilismo, pelo capitalismo comercial e produção manufatureira; pelas revoluções burguesas e constituição do Estado-nação; e a segunda modernidade do capital ou modernidade propriamente dita, que vai dos primórdios do século XIX a última metade do século XX, é marcada pela emergência da grande indústria, da primeira e segunda revolução industrial, do taylorismo e fordismo; pela constituição do mercado mundial e do imperialismo, aparecimento das utopias sociais clássicas e das revoluções sociais e pelo surgimento e desenvolvimento do modernismo como fenômeno cultural.
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algumas breves reflexões criticas, de caráter meramente introdutório, sobre o sentido da
nova pedagogia do capital expressa através do modelo de competência:
Tese 1
A crise estrutural do capital que ocorre a partir de meados da década de 1970,
não significa incapacidade de crescimento (e expansão) da economia capitalista e do
sistema sócio-metabólico do capital. Pelo contrário, apesar da crise estrutural, o capital
tem-se expandido nos últimos trinta anos, apresentado, na passagem para o século XXI,
índices significativos de crescimento da economia nas fronteiras da modernização do
capital, como Índia, China e Sudeste Asiático. Na verdade, o que denominamos crise
estrutural do capital significa a incapacidade da forma social do capital em conter (e
realizar) as novas possibilidades de desenvolvimento do ser genérico do homem, dada
pela nova materialidade sócio-técnica. Sob a etapa do capitalismo global e da terceira
modernidade, isto é, sob a fase da crise estrutural do capital, tendem a se acirrar, num
grau qualitativamente novo, as contradições entre relações sociais de produção e forças
produtivas sociais, com manifestações agudas de estranhamento e fetichismos sociais,
colocando, deste modo, obstáculos estruturais ao desenvolvimento social sustentável.
Tese 2
As mutações estruturais do capital nesta etapa do capitalismo global tendem a
explicitar, por um lado, como seu desdobramento essencial, a desmedida do valor,
provocada, entre outras determinações complexas, pela nova base de produção de
mercadorias, que, nos centros mais dinâmicos de acumulação de capital, articulam, cada
vez mais, elementos do trabalho imaterial a partir de uma nova base sócio-técnica. Por
outro lado, as mutações estruturais do capitalismo global tendem a expor, de modo
pleno, a aguda contradição entre forças produtivas sociais, isto é, forma material em
expansão, e forma social do capital, com impactos significativos, nesse caso, na
instância sócio-reprodutiva da educação, principalmente da educação profissional.
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Tese 3
A disseminação da ideologia das competências, a partir da década de 1970, é
explicada, por um lado, pela crise da organização taylorista de trabalho e por outro lado,
pelo novo regime de acumulação flexível, cuja nova base técnica, nas condições
históricas da desmedida do valor e da luta de classes, tende a exigir uma nova
implicação subjetiva do trabalho assalariado, ou seja, a captura da subjetividade do
trabalho vivo pela lógica do capital. Deste modo, ela expõe uma necessidade sistêmica
intrinsecamente contraditória do sistema sócio-metabólico do capital que se expressa
através do discurso (e prática) da nova pedagogia das empresas.
Antes de tratarmos, de modo breve, das teses acima, iremos fazer uma
apresentação geral de aspectos contingentes das mutações estruturais do capital, que
ocorreram sob a etapa do capitalismo global e da terceira modernidade do capital, e se
manifestaram, por exemplo, através do surgimento da economia global, da produção
toyotista, do neoliberalismo, do pós-modernismo e do sócio-metabolismo da barbárie.
1. Expansão capitalista e mutações estruturais do capital (1973-2003)
A grande crise da economia capitalista mundial, em meados da década de 1970,
considerada, por Ernest Mandel, a primeira recessão generalizada da economia mundial,
tendeu a impulsionar o complexo de reestruturação capitalista, seja na produção e
tecnologia, seja na política e na cultura. Ele surge no centro dinâmico e núcleo orgânico
do sistema mundial – Japão, EUA e Europa Ocidental – assumindo depois, nas décadas
seguintes, dimensões planetárias, acompanhando as linhas-mestras do mercado mundial
(MANDEL, 1995).
Para David Harvey, por exemplo, o ano de 1973 é o marco histórico do
surgimento do novo regime de acumulação flexível. A partir daí entramos numa nova
dimensão sócio-histórica de desenvolvimento do sistema mundial do capital (é o que
temos considerado como terceira modernidade do capital). François Chesnais apontaria
o surgimento de um regime de acumulação predominantemente financeiro. István
Meszáros indicaria as determinações ontológicas de crise estrutural do capital. Robert
Brenner caracterizaria uma crise persistente de superprodução. Enfim, vários autores
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concordam que meados da década de 1970 é um marco histórico significativo de
inflexão estrutural da dinâmica do sistema mundial do capital (HARVEY, 1993;
CHESNAIS, 1995; MÉSZÁROS, 2002; BRENNER, 2003).
Nos últimos trinta anos (1973-2003), que poderíamos considerar os “trinta anos
perversos”, a economia (e a política) mundial demonstraram instabilidade persistente,
oscilando, no caso dos paises da OCDE, países industriais mais desenvolvidos, ciclos
recessivos com taxas medíocres de crescimento não-sustentável. O que se constata é
que, o eixo de expansão capitalista tendeu a deslocar-se, no decorrer dos últimos trinta
anos, para a Ásia, com taxas exuberantes de crescimento na Coréia do Sul e Japão (pelo
menos na década de 1980) e, nas décadas de 1990 e 2000, Índia e China, onde, é
importante salientar, tendem a ser maiores as taxas de exploração da força de trabalho e
extração de mais-valia (ARRIGHI, 1995).
É a partir desta inflexão estrutural da conjuntura de desenvolvimento capitalista
na última metade do século XX, que se adotaram, na gestão macroeconômica
capitalista, políticas neoliberais, seja no centro orgânico (principalmente nos governos
Margaret Thatcher, na Grã-Bretanha, e Ronald Reagan, nos EUA), seja na borda
periférica industrializada do sistema mundial (no decorrer da década de 1980 e
principalmente década de 1990, com destaque para América Latina e Leste Europeu). A
hegemonia neoliberal surge no centro capitalista, primeiro, no bojo da inconsistência
das políticas keynesianas, ao tratar da conjuntura de recessão persistente; segundo, da
necessidade sistêmica do capital quebrar as amarras do Welfare State e das conquistas
trabalhistas das décadas anteriores e terceiro, da derrota eleitoral (e política) dos
governos trabalhistas e do movimento sindical insurgente no decorrer da década de
1970 (SADER E GENTILI, 1995; PETRAS, 1995).
Por outro lado, ocorreram no decorrer da década de 1980, alterações
significativas na instância sócio-produtiva do capital, visando a retomada dos níveis de
lucratividade e de acumulação do capital. É sob o período da mundialização do capital
que ocorrem agudas reorganizações da produção capitalistas, através de inovações
organizacionais, sob o espírito do toyotismo, e inovações tecnológicas, por conta da III
Revolução Tecnológica, com a incorporação de tecnologias microeletrônicas flexíveis e
de rede na produção e circulação de mercadorias. Sob a liderança das corporações
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transnacionais, inovações na produção e no produto contribuíram para um salto
qualitativamente novo nas relações de trabalho e nas relações de consumo (SANTOS,
2003; DREIFUSS, 2003). Na verdade, o impacto das mutações da produção do capital
no mercado do trabalho foram significativas, precarizando estatutos salariais e
constituindo novas formas de relações de trabalho precárias – além, é claro, de criar a
miragem ideológica de um fim do trabalho (ANTUNES, 2005; VASOPOLLO, 2004,
2005; ALVES, 2000).
É neste contexto sócio-histórico que surge, nos pólos não-desenvolvidos (e
desenvolvidos) da civilização do capital, o que podemos denominar de sócio-
metabolismo da barbárie, ou seja, formas de “regressão” social, a partir dos elementos
de desemprego de massa, crise do Welfare State e da capacidade de regulação estatal,
precarização e constituição de uma nova precariedade da força de trabalho (que
possuem agudos conteúdos de dessocialização), novas formas de estranhamento social,
incremento do fetichismo da mercadoria e crise sócio-ecológica que minam as próprias
bases da reprodução social.
É no bojo das transformações estruturais da economia e da política capitalista no
centro dinâmico do sistema mundial do capital que se constituiu uma nova lógica
cultural sob o capitalismo tardio (o pós-modernismo) (JAMESON, 1996; ANDERSON,
1999). O cenário de instabilidade sistêmica, por conta da financeirização da dinâmica
capitalista, e inclusive, da nova lógica da organização da produção capitalista, sob o
signo do toyotismo, contribuiu sobremaneira para o incremento intensivo e extensivo
dos dispositivos de manipulação da subjetividade do trabalho vivo. É neste período que
se intensifica o poder da ideologia e agudiza-se processos de estranhamento social e
fetichismo da mercadoria e suas derivações sistêmicas (ALVES, 2001; MESZÁROS,
2001).
As mutações do capital que ocorreram nos últimos trinta anos, e que prosseguem
hoje, atingem uma dimensão planetária. O desenvolvimento dos meios de comunicação
e transporte, a constituição da “sociedade em rede”, a integração dos fluxos financeiros
sob o mercado mundial, o surgimento da produção global de mercadorias, constituíram
nos últimos trinta anos, o sentido impressionista da noção de globalização
(CASTELLS, 1999). Na verdade, o sentido da globalização como mundialização do
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capital é ser a ofensiva persistente da lógica de mercado e da valorização do valor sobre
as instâncias do ser social.
Por outro lado, na medida em que avança, o processo histórico da globalização
tende a instigar a luta de classes, fazendo avançar forças políticas anti-capitalistas,
principalmente nas áreas de experiências do neoliberalismo e de agudo desmonte dos
projetos de desenvolvimento do capitalismo periférico – os “elos mais fracos” do
sistema imperial do capital (nos últimos dez anos surgiram, por exemplo, o Fórum
Social Mundial, que agrega os movimentos anti-globalização e na América Latina, de
forma inédita, uma série de governos de inspiração anti-imperialista, de centro-esquerda
e de esquerda). Na virada para o século XXI, observa-se o momento de crise da
globalização (que se desenvolve a partir de 1997). Entretanto, a globalização como
mundialização do capital coloca obstáculos, ainda a serem discernidos, às
transformações sociais mais incisivas que atingem interesses dos conglomerados
financeiros internacionais (os verdadeiros players da mundialização financeira e
produtiva do capital).
Ora, a globalização é um dos elementos da crise estrutural do capital, que
segundo Mészáros caracteriza a fase de decadência histórica do capital. Ela deve ser
apreendida não apenas como momento de incapacidade de crescimento da economia
capitalista e do sistema do capital como sistema produtor de mercadorias. É importante
salientar que, nas últimas décadas, a crise de acumulação de capital se verificou com
mais intensidade no velho “centro” desenvolvido do sistema mundial, onde o Welfare
State tendeu a constituir uma série de obstáculos político-sociais à exploração vigorosa
do capital, mas não na borda periférica capitalista oriental, a nova fronteira de
modernização capitalista, com as economias da Índia e China atingindo, nas últimas
décadas, elevadas taxas de crescimento e de acumulação de valor.
Na verdade, a crise estrutural do capital é o momento histórico de metamorfose
sistêmica do capital, buscando constituir uma nova forma social adequada à sua
reprodução sócio-metabólica (entretanto, o que se vislumbra são os limites estruturais
da reprodução social em si, demonstrado pelos sinais de barbárie social e cataclismo
sócio-ecológico).
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. Se por um lado, são perceptíveis sinais de crise da hegemonia dos EUA como
centro dinâmico e núcleo orgânico do sistema capitalista, crise de hegemonia que não
significa ainda o surgimento de novo pólo hegemônico, tendo em vista a inconsistência
político-militar da União Européia e mesmo do Japão, por outro lado, surgem, como
salientamos acima, novos pólos de exploração e acumulação de valor no cenário
mundial, como a China e a Índia no contexto asiático.
Os movimentos de contestação política à ordem capitalista global, no contexto
da crise da globalização e do pós-neoliberalismo, surgem e se desenvolvem sob novas
condições históricas herdadas de um sistema mundial cuja base sócio-produtiva,
principalmente nos centros dinâmicos da economia capitalista, seja no âmbito do
sistema mundial, seja no âmbito subnacional, teve, nos últimos trinta anos, alterações
significativas que merecem ser destacadas, pois é sob tais condições herdadas que
ocorre (e ocorrerão) as lutas sociais de classe.
Por isso, torna-se importante, apreendermos metamorfoses estruturais que estão
ocorrendo na base sócio-produtiva do sistema, buscando identificar, na miséria do
presente, as riquezas de possibilidades para o desenvolvimento para além do capital.
Deste modo, nossa análise se desloca do mundo da contingência política para o mundo
das determinações sócio-estruturais que colocam, não apenas limites candentes à
teleologia política, mas abrem novas possibilidades para seu desenvolvimento crítico.
2. O significado da categoria crise estrutural do capital
Nossa primeira tese salienta que a crise estrutural do capital, que ocorre a partir
de meados da década de 1970, não significa incapacidade de crescimento (e expansão)
da economia capitalista e do sistema sócio-metabólico do capital. O que evita, deste
modo, em nossa análise, um viés catastrofista de colapso da economia capitalista. Pelo
contrário, apesar da crise estrutural, o capital tem-se expandido com vigor nas últimas
décadas do século XX (com destaque para o notável crescimento da acumulação de
valor nas fronteiras da modernização do capital na Ásia).
Deste modo, o crescimento exuberante do PIB da China e da Índia, por exemplo,
expõe que a crise estrutural não significa necessariamente impossibilidade de
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acumulação de valor. Na verdade, o que se denomina crise de valorização pode ser
considerado uma valorização problemática, por conta da necessidade de reprodução
ampliada do capital a partir de um patamar superior - o patamar do mercado global. É a
valorização problemática que explica a ofensiva do capital contra os direitos dos
trabalhadores nos paises capitalistas industrializados, buscando incrementar a taxa de
exploração global da força de trabalho. Por outro lado, o crescimento exuberante dos
pólos avançados de acumulação do capital (Índia e China) tendem a ocultar a
valorização problemática no bojo do sistema global como um todo, que se expressa, de
certo modo, através de uma persistente instabilidade financeira (o que consideramos
valorização problemática contém elementos de desmedida do valor, que salientaremos
adiante).
Mas a crise estrutural do capital não se expressa tão-somente no plano da
produção de valor, mas principalmente nas instâncias de reprodução social, o que
significa que ela se manifesta através da crescente agudização do estranhamento e das
formas de fetichismo social (não podemos esquecer que o capital é um sistema sócio-
metabólico). O crescimento da economia produtora de mercadorias não significa, no
plano da reprodução social, desenvolvimento social. Pelo contrário, desemprego e
precarização da força de trabalho tenderam a aumentar nas últimas décadas no mundo
capitalista, expondo o aprofundamento da desigualdade social e de classe sob a
mundialização neoliberal. Surge o que alguns autores apresentam como uma “nova
questão social”, marcada pela desfiliação salarial (CASTELL, 1988). Nos pólos de
expansão da acumulação de valor, contingentes massivos de trabalhadores indianos e
chineses vislumbram a condição de precariedade de classe em sua forma aguda, alguns
em regime de trabalho semi-escravo, submetidos à exploração intensiva e extensiva da
força de trabalho nos moldes da I Revolução Industrial no Ocidente capitalista no século
XIX. Por outro lado, o impacto sócio-ecológico do “novo industrialismo” na Índia e
China é perverso, pois implica no crescimento intenso da emissão de gases, poluição de
rios, destruição de ecossistema, com impactos globais (entre 1990 e 2001, as emissões
tóxicas cresceram 61%e as da China, 111%). Ao adotarem o padrão de industrialização
do Ocidente capitalista, Índia e China ameaçam a Terra com um cataclismo sócio-
ecológico de largas proporções.
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Observa o Worldwatch Institute, uma das principais organizações não-
governamentais ligada ao movimento ecológico, que “os modelos chinês e indiano, por
ora, não contemplam a hipótese de crescimento com baixo consumo de recursos e
poluição ambiental reduzida.” E concluem: “Quando atingirem o estágio econômico dos
Estados Unidos, o que não está longe, serão necessários dois planetas Terra para manter
as duas economias” (Apud CartaCapital, 25 de janeiro de 2006, No. 377, p.15). É
provável que a perspectiva de uma hecatombe ecológica comparável à hecatombe
nuclear, não esteja no horizonte de percepção dos agentes sistêmicos do capital, tendo
em vista que sua estrutura de temporalidade reativa e retrospectiva os impede de
vislumbrar impactos de longo prazo. Como diria Mészáros, para o capital “o único
‘futuro’ admissível já chegou, na forma dos parâmetros existentes da ordem
estabelecida bem antes de ser levantada a questão sobre ‘o que deve ser feito’”
(MESZAROS, 2001). De certo modo, eis um elemento compositivo daquilo que
denominamos de barbárie social, que coloca, com certeza, limites estruturais à sócio-
reprodutibilidade do sistema produtor de mercadorias.
É nesta perspectiva que se pode dizer que o sistema mundial do capital em sua
etapa de crise estrutural é capaz tão-somente de evoluir (ou crescer), mas não de se
desenvolver, no sentido próprio de “modernização” (a própria idéia de desenvolvimento
no sentido clássico do economics burguês, ou mesmo a idéia de “desenvolvimento
sustentável”, a rigor, tornou-se problemática na ótica do capital). Assim, admitir um
“colapso da modernização”, como diria Robert Kurz, implica em considerar a
modernização, se quisermos ir além do viés catastrofista, como significando a posição
de promessas civilizatórias (ou pelo menos, promessas) (KURZ, 1990). O que significa
que o conteúdo da terceira modernidade (e da modernização) sob a crise estrutural do
capital é qualitativamente outro. Diríamos que, sob o etapa de decadência histórica do
capital, vislumbra-se, com ironia, a tragédia (e farsa) do futurismo orwelliano (de
George Orwell, no seu romance 1984): paz é guerra, liberdade é escravidão e
desenvolvimento é não-desenvolvimento. Deste modo, a burguesia tornou-se até mesmo
incapaz de promessas que não sejam meras farsas.
Portanto, nossa tese é que a crise estrutural do capital se caracteriza, menos pela
impossibilidade de expansão da produção do capital, e mais pela incapacidade da forma
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social do sistema sócio-metabólico do capital conter (e realizar) as novas
possibilidades de desenvolvimento do ser genérico do homem, abertas pela nova
materialidade sócio-técnica e pela paulatina “redução dos limites naturais”. Mais do
que nunca, a produtividade do trabalho social significa a possibilidade concreta do
homem como espécie em sua maioria resolver, de vez, o problema da escassez social.
Entretanto, o que se observa, após os “trinta anos perversos” é o contrário – 2/3 da
humanidade está imersa na pobreza e na luta pela existência.
4. O capital e suas contradições
Nossa segunda tese expõe o seguinte: as mutações estruturais do capital tendem
a contribuir, por um lado, para o desenvolvimento da desmedida do valor, a partir da
nova base sócio-técnica de produção de mercadorias, que utiliza em si, cada vez mais,
elementos do trabalho imaterial (é tal desmedida de valor que contribui, de certo modo,
com a instabilidade sistêmica da economia mundial, apesar da exuberância expansão do
capital), e, por outro lado, para a crescente (e contraditória) incongruência entre matéria
e forma social (nesse caso, com impactos na instância sócio-reprodutiva da educação,
principalmente da educação profissional, o que trataremos adiante).
4.1 Desmedida do valor e trabalho imaterial
No tocante ao aspecto da desmedida do valor, verificamos que, nos últimos
trinta anos, o sistema produtor de mercadorias é atingido por candentes contradições
intrínsecas à própria forma-mercadoria. Na verdade, na célula-mater da sociedade
burguesa, a mercadoria, está contido a virtualidade das suas crises incisivas, sejam elas
crises cíclicas, crise orgânica ou crise estrutural. Na medida em que atinge seu pleno
desenvolvimento sócio-histórico, sob a terceira modernidade do capital, a forma-
mercadoria explicita, ampla e intensamente, suas determinidades negativas. Na verdade,
o sistema sócio-metabólico do capital tende a ser “afetado de negações” no interior do
próprio capitalismo (FAUSTO, 1987).
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Deste modo, o que consideramos como sendo a crise estrutural do capital expõe
num sentido radical, os dilaceramentos intrínsecos à forma-mercadoria, ou seja, a aguda
contradição entre valor de troca (valor econômico) e valor de uso (valor humano), que
se expressam, por exemplo, na crescente incongruência entre forma e matéria social (o
que trataremos mais adiante).
A intensificação (e nova amplitude) da crise da forma-mercadoria, sob as
condições históricas da crise estrutural do capital, ocorre em virtude da crise estrutural
do trabalho abstrato, o trabalho produtor de valor, fundamento do valor de troca
(ANTUNES, 1995). É tal crise estrutural do trabalho abstrato, no sentido de sua
desmedida, e não necessariamente de sua produção expansiva, que tende a provocar
instabilidades sistêmicas na etapa de expansão do capitalismo global.
Alucinada pelo “desmanche” de seu fundamento (o valor, em virtude da crise do
trabalho abstrato), a forma-mercadoria se transfigura, perdendo tendencialmente o seu
estatuto mediativo na formula geral do capital (D-M-D’). Em seu lugar, se põe a
fórmula espúria D-D’, explicitação da reprodução hermafrodita da riqueza abstrata,
estigma da financeirziação, que representa, nesta nossa perspectiva critica, sintoma da
crise da forma-mercadoria e crise do trabalho abstrato.
Uma de nossas hipóteses, que iremos procurar apresentar neste pequeno ensaio,
é que, o trabalho imaterial tende a ser mera explicitação, ou seja, mais um elemento de
manifestação contingente da crise do trabalho abstrato. Não apreender o significado
sócio-ontológico do trabalho imaterial, como fazem, por exemplo, Maurizio Lazzaratto
e Antonio Negri (ou ainda André Gorz) é mistificar o que ele, de fato, representa: um
traço de “negação do capitalismo no interior do próprio capitalismo”, como diria Ruy
Fausto, e que atinge o sistema sócio-metabólico do capital em sua etapa de crise
estrutural (LAZZARATO E NEGRI, 2001; GORZ, 2005; FAUSTO, 1987).
Segundo alguns autores, trabalho imaterial diz respeito ao trabalho que produz
valores de uso imateriais e que requer por isso, comunicação e inteligência (GORZ,
2005; LAZZARATO E NEGRI, 2001). Deste modo, tende-se a contrapor trabalho
imaterial e trabalho material (que é reduzido a trabalho industrial propriamente dito).
Entretanto, o trabalho imaterial pode ser considerado não apenas trabalho em serviços
propriamente ditos, mas também trabalho reflexivo inserido no processo de produção de
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mercadorias ou no trabalho industrial que se utiliza de tais atributos da comunicação e
da inteligência. Por exemplo, o “trabalho em equipe” (ou em rede) na indústria tende a
exigir elementos de trabalho imaterial e o modo de organização toyotista do trabalho se
baseia na apropriação dos atributos de comunicação e inteligência para sustentação de
seus dispositivos organizacionais (just-in-time/kanban, kaizen, etc). (ALVES, 1999).
Deste modo, o trabalho imaterial se dissemina tanto nos serviços quanto na
indústria que incorpora a nova base sócio-tecnica e que incorpora os novos modos de
gestão toyotista. Além disso, trabalho imaterial tende a se articular irremediavelmente,
através da categoria de trabalhador coletivo, com o trabalho material (o que impede
uma falsa disjunção). Ou ainda, por conta das mutações sócio-técnica da grande
indústria, o trabalho material tende a ser afetado pelas determinações intrínsecas do
trabalho reflexivo nos serviços.
O conceito de trabalho imaterial pertence ao estatuto categorial do trabalho
concreto. É claro que, em se tratando de modo de produção capitalista, o que está posto
é trabalho abstrato, a forma dominante de trabalho produtor de valor. Entretanto, apesar
do trabalho concreto subsumir-se ao trabalho abstrato, ele não deixa de determinar, de
certo modo, a dinâmica da valorização. Na perspectiva dialética, o trabalho abstrato não
suprime o trabalho concreto (assim como o valor de troca não abole o valor de uso) –
pelo contrário, o incorpora (ou melhor, o subsume) de forma contraditória. O que
significa que, sob determinadas condições, o trabalho concreto tende a criar obstáculos
(e impor limites) à própria lógica do trabalho abstrato.
Por exemplo, a atividade de trabalho em serviços possui um estatuto concreto
que a torna não-adequada à valorização de capital, embora possamos ter produção de
valor no setor de serviços (é um dos casos do que consideramos valorização
problemática). Em seu ensaio intitulado “Trabalho como categoria sociológica
fundamental?”, de 1984, Claus Offe reconheceu a inadequação dos serviços à
exploração plena do capital. Diz ele: “Enquanto que a maior parte do trabalho realizado
no setor ‘secundário’, na produção industrial de bens, pode realmente ser levado ao
denominador comum abstrato, por ser regido pelo mesmo regime da produtividade
técnica e organizacional, assim como pela decisiva rentabilidade de cada unidade
econômica, tais critérios do processo de trabalho e da valorização perdem sua (relativa)
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nitidez quando o próprio trabalho torna-se reflexivo, isto é, na maior parte do setor
‘terciário’ do trabalho em serviços.” (OFFE, 1989).
Ora, o que Offe expõe é o exemplo de que, sob determinadas condições, o
trabalho concreto tende a criar obstáculos (e impor limites) à própria lógica do trabalho
abstrato. – ou seja, na sintaxe dialética, a forma material tende a obstruir (ou não-
adequar-se) à forma social. Segundo ele, o trabalho em serviços possui outra
racionalidade técnica (ou seja, material), isto é, “a crescente incapacidade de sua
normatização tem que ser compensada por virtudes como a capacidade de interação, o
senso de responsabilidade, a empatia e a experiência adquirida casuisticamente; e no
lugar dos critérios de racionalidade econômica e estratégica surgem estimativas de
demanda e das utilidades adquiridas por convenção, por consenso profissional ou de
forma política discricionária.” (OFFE, 1989)
Mais adiante, ele irá reconhecer a não-adequação plena da forma material dos
serviços à forma social do capital. Diz ele: “Por isso, o trabalho – público ou privado –
em serviços se entende como um ‘corpo estranho’ que, mesmo não sendo
‘emancipado’do regime de racionalidade econômica formal do trabalho, é delimitado
apenas externamente, sem ser estruturado internamente, permanecendo entretanto
funcionalmente imprescindível.” (OFFE, 1989)
Portanto, Offe reconhece, primeiro, que o trabalho reflexivo em serviços (ou o
que alguns autores irão denominar trabalho imaterial) aparece como um ‘corpo
estranho’ à lógica da valorização do capital, embora – e isto é importante – “não tenha
se ‘emancipado’ do regime de racionalidade econômica formal do trabalho” (o que, por
exemplo, Lazzarato e Negri e inclusive Gorz tendem a esquecer). O que significa que o
trabalho reflexivo em serviços não deixa de estar subsumido ao capital, embora
formalmente. Entretanto, por conta de sua forma material (ou racionalidade técnica),
existem limites à sua subsunção real ao capital (ou o que Offe, num linguajar weberiano
irá denominar “racionalidade econômica do trabalho”).
Na verdade, estamos diante de uma candente contradição no seio da produção
material (e imaterial) do capital, pois o que Gorz denomina de “novo saber”, ou o
trabalho reflexivo em serviços, ou trabalho imaterial, embora seja “funcionalmente
imprescindível” à reprodução sócio-metabólica da ordem industrial-capitalista, é
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delimitado pela lógica do valor apenas externamente, sem ser estruturado internamente.
Esta nova racionalidade técnica (ou material) do trabalho imaterial expressa tão-
somente a recalcitrância do “novo saber” à lógica do valor de troca ou do próprio valor
em movimento.
Embora Offe não o diga, o trabalho imaterial tende a prenunciar um dos
elementos de crise da valorização do capital na terceira modernidade – crise de
valorização no sentido de valorziação problemática e de desmedida de valor. É claro
que o sociólogo alemão não utiliza, em 1984, o conceito de trabalho imaterial.
Entretanto, está claro que a idéia de trabalho reflexivo em serviços possui o mesmo
significado de trabalho imaterial. Diz ele: “Uma característica essencial daquele
trabalho reflexivo em serviços me parece consistir em que ele mesmo elabora e mantém
o próprio trabalho, e produz a produção mental e organizatoriamente. Atividades como
o ensino, a cura, o planejamento, o organizar, a negociação, o controle, a administração,
a consultoria, etc – ou mesmo, em termos mais genéricos: a atividade de prevenção,
absorção e assimilação de riscos e desvios da normalidade – mesmo sendo por um lado,
como a produção de bens, atividades de ‘trabalho assalariado’ no bojo de organizações
privadas ou estatais, se diferenciam nitidamente destas...” (OFFE, 1989)
No sentido lógico-ontológico da dialética materialista, pode-se dizer que, a
forma social do capital tende a criar a forma material à sua própria imagem e
semelhança (como, por exemplo, o capital criou, ou melhor, se apropriou historicamente
da maquinaria como matéria adequada ao desenvolvimento da sua forma social).
Entretanto, existem limites materiais à imposição da forma social do capital (a distinção
entre obstáculo e limite é importante, pois enquanto o obstáculo é passível de superação,
o limite é tão-somente passível de reconhecimento (e incorporação) enquanto
necessidade ineliminável).
Por exemplo, Marx nos Grundrisse tende a identificar processo civilizatório
como o “recuo dos limites naturais” (Mészáros dirá que, por conta da grande melhoria
da produtividade, tende a ocorrer um “processo de liberação das restrições da auto-
suficiência”). Ora, trata-se, primeiro, de recuo tendencial e não mera abolição/supressão
dos limites naturais, e segundo, de limites naturais irremediáveis (e inelimináveis),
tendo em vista que, se fossem obstáculos, seriam passiveis de superação/supressão, o
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15
que não é o caso da dialética homem e natureza. Ou seja, o processo civilizatório não é
negação/supressão da natureza pelo homem, mas sim superação dialética (aufhebung,
superar/conservando), no sentido de sua incorporação social, através do reconhecimento
das legalidades ontológicas do ser orgânico e ser inorgânico. Como nos diz Lukács,
embora o ser social seja algo qualitativamente novo, cuja gênese não pode jamais ser
simplesmente “deduzida” da forma mais simples, não seremos capazes de captar sua
especificidade se não compreendermos que um ser social “só pode surgir e se
desenvolver sobre a base de um ser orgânico e que esse último pode fazer o mesmo
apenas sobre a base do ser inorgânico.” (LUKÁCS, 1978).
O que queremos salientar é que, existe uma homologia lógico-estrutural entre a
dialética homem e natureza e a dialética trabalho abstrato e trabalho concreto, tanto
quanto trabalho material e trabalho imaterial (o que significa que é ocioso contrapor,
numa perspectiva lógico-formal, tais determinações reflexivas). Sob o socio-
metabolismo do capital o que se constitui é uma mediação contraditória entre ser social
e natureza, que se expressa na determinação reflexiva estranhada trabalho abstrato e
trabalho concreto, ou mesmo, trabalho material e trabalho imaterial (ou trabalho
reflexivo em serviços, que na etapa desenvolvida da sócio-reprodutibilidade do capital
tende a se imiscuir no processo de produção de mercadorias – como observa Offe,
torna-se “funcionalmente imprescindível”).
Assim, o trabalho imaterial tende a ser um “novo saber” nas instâncias
dinâmicas de produção do capital, vinculado aos novos requisitos da base técnico-
produtiva, que tende a ser resistentes às determinações do trabalho abstrato. Enfim,
incorporando a lógica do trabalho reflexivo em serviços, como diria Offe, a produção
industrial tende a constituir em si, uma forma de trabalho concreto recalcitrante à lógica
do valor de troca (entretanto, como observou Offe, embora seja um “corpo estranho”, o
trabalho imaterial não se “emancipou” da racionalidade econômica formal do trabalho).
Por outro lado, o trabalho imaterial é um componente intrínseco da produção
material que tende a se ampliar por conta do desenvolvimento necessário das forças
produtivas do trabalho social e das mutações sócio-técnicas no conteúdo do trabalho.
Inclusive, é por conta da emergência do “novo saber”, ou do trabalho imaterial, trabalho
reflexivo em serviços (que tende a torna-se também trabalho reflexivo na indústria, na
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16
produção de bens, por conta das metamorfoses da base sócio-tecnica da produção de
mercadorias), que surge e desenvolve-se o “modelo da competência” (o que trataremos
mais adiante) (ZARIFIAN, 2001).
É importante salientar que o trabalho imaterial não é o único elemento de
negatividade que tende a “desmanchar” tendencialmente, através de sua própria
expansão alucinada, a forma-mercadoria. Na perspectiva marxista clássica, podemos
salientar, nos últimos trinta anos, o incremento da composição orgânica do capital, da
substituição progressiva de trabalho vivo por trabalho morto, que reduz o quantum de
força de trabalho na esfera da produção do capital, atingindo a produção de valor
(lembremos que só a força de trabalho produz mais-valia). É claro que atuam, no bojo
dessa lei geral da queda tendencial da taxa média de lucro, um complexo de tendências
e contra-tendências historicamente determinadas. Deste modo, o que se constata é que a
produção de valor sob a terceira modernidade é tão expansiva quanto problemática. Eis
o verdadeiro sentido da crise estrutural do capital.
Além disso, ao lado do trabalho imaterial e das pressões persistentes do aumento
da composição orgânica do capital, temos a expansão da exploração capitalista nas
atividades de trabalho em serviços, receptáculo primordial do “novo saber”, que tende a
ser, como salientamos acima, forma material de trabalho não-adequada à lógica da
valorização, isto é, recalcitrante à forma-mercadoria em virtude de determinados
atributos concretos (por exemplo, saúde e educação embora tenham se tornado áreas de
investimento de capital, a exploração da força de trabalho não pode ser organizada nos
moldes da indústria propriamente dita).
É claro que, na última metade do século XX, sob a III Revolução Científico-
Tecnológica, buscando recompor as bases de valorização, o capital avança no setor de
serviços (o que tende a se disseminar a ideologia da “sociedade de serviços” ou
“sociedade pós-industrial”). Apesar de formalizar (e mecanizar/automatizar) algumas
atividades de serviços, não consegue faze-lo com outras, detendo-se diante dos nichos
dos “novos saberes”. O fato de se deter não significa que não os incorpore como agência
de exploração de valor. Mas, na ótica do valor, o trabalho imaterial como trabalho
concreto tende a “sabotar” a produção de trabalho abstrato. Enfim, o setor de serviços é
um campo problemático para a expansão da valorização.
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17
É claro que há, sob o capitalismo global, expansão sistêmica da produção
capitalista, seja ampliando as atividades capitalistas nos serviços, seja incorporando os
novos saberes à atividade industrial. Entretanto, o que sugerimos é que, devido a
natureza das novas determinações da produção do capital, a produção de valor tende a
ser “negada” (superar/conservando) no interior de seu próprio movimento efetivo,
ocasionando crescente instabilidade sistêmica, apesar do avanço expansionista do modo
de produção capitalista.
Deste modo, em síntese, destacaríamos como determinações cruciais da crise do
trabalho abstrato e do desenvolvimento da valorização problemática e da desmedida do
valor, os seguintes elementos:
(1) a dinâmica estrutural intrínseca à produção do capital, que percorre a
passagem da manufatura para a grande indústria e a própria temporalidade da grande
indústria, isto é, a substituição progressiva de trabalho vivo por trabalho morto, a
passagem da subsunção formal para a subsunção real do trabalho ao capital, com
tendências e contra-tendências historicamente determinadas;
(2) o desenvolvimento e ampliação do setor de serviços com seu espectro de
valorização problemática (é curioso que o surgimento da “sociedade de serviços” ocorre
num momento de explicitação aguda de crise do trabalho abstrato. Na verdade, o que os
serviços ocultam é a própria desmedida do valor).
(3) A constituição de “novos saberes” nas instâncias dinâmicas de produção do
capital resistentes às determinações do trabalho abstrato. Os “novos saberes”, matriz do
trabalho imaterial ou do trabalho reflexivo na indústria, decorre do próprio
desenvolvimento da nova base técnica do sistema produtor de mercadorias, das novas
máquinas complexas que constituem o arcabouço da produção social. Entretanto,
embora tão necessário às novas condições de produção social, o “novo saber” tende a
não agregar, na produção do capital, valor de troca (valor econômico).
- Saberes e Conhecimentos
O surgimento (e desenvolvimento) dos “novos saberes” no processo de produção
social, por conta da nova base sócio-técnica da produção de mercadorias, sob o modo de
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organização toyotista do trabalho, é um elemento contraditório da relação-capital. Em
seu livro “O Imaterial”, André Gorz distingue saber (ou saberes) e conhecimento. Diz
ele: “O saber é, antes de tudo, uma capacidade prática, uma competência que não
implica necessariamente conhecimentos formalizáveis, codificáveis.” O saber, matriz do
trabalho imaterial, é aquilo que não se ensina, mas se aprende pela prática, pelo
costume, ou seja, quando alguém se exercita fazendo aquilo que se trata de aprender a
fazer. Sua transmissão, como observa Gorz, consiste em apelar à capacidade do sujeito
de produzir a si próprio. Enquanto o conhecimento é passível de formalização, sendo
transformados em conhecimentos homologados e profissionalizados, para se tornarem
serviços tarifados, o saber é recalcitrante à formalização. Enfim, o caminho do saber
não se aprende na escola.
Observa Gorz: “Os saberes comuns ativados pelo trabalho imaterial não existem
senão em sua prática viva e por ela. Eles não foram adquiridos e produzidos em vista de
trabalho que podem realizar ou do valor que podem assumir. Eles não podem ser
destacados dos indivíduos sociais que os praticam, nem avaliados em equivalente
monetário, nem comprados ou vendidos. Os saberes resulta da experiência comum da
vida em sociedade e não podem ser legitimamente assimilados ao capital fixo.” (GORZ,
2005)
Embora, o trabalho imaterial ou o receptáculo dos “novos saberes” estejam
subsumidos ao capital, como relação social de produção, ele, por suas qualidades
concretas intrínsecas, não consegue produzir trabalho abstrato, fonte de valor. Eis uma
das determinações da crise estrutural do capital. Os “novos saberes” como parte
integrante do patrimônio cultural, competências comuns da vida cotidiana, são
recalcitrantes à lógica do trabalho abstrato e da lei do valor, pois são, em si, irredutíveis
à quantificação pelo tempo de trabalho, o que significa que não é passível de ser
precificado (aliás, podem até ter preço, que aparecem como mero simulacro do valor):
“Thomas Jefferson já dizia que eles ‘não se prestam à apropriação privada’, nem à troca
comercial, pois é impossível reduzi-los a uma substância social comum mensurável que
permita determinar as relações de equivalência entre elas. Não podendo se exprimir em
unidades de valor, sua avaliação como capital resta problemática.” (GORZ, 2005)
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
19
Deste modo, Por serem incapazes de ser formalizado, os novos saberes não
podem sere incorporados na máquina (o que ocorre, por exemplo, com o conhecimento
que, formalizado, tende a se interverter em máquina ou capital fixo). Entretanto, o
capital não poderia deixar de tratar e de fazer funcionar os novos saberes como se ele
fosse um capital, buscando capitaliza-lo, interverte-lo em conhecimento apropriavel,
inteligência artificial, submetido ao seu controle e a utilização que dele é feita. Enfim,
deve-se tornar propriedade exclusiva da firma que o valoriza incorporando-o nas
mercadorias com que eles se produzem. O capital exercita, deste modo, uma de suas
características ontológicas, isto é, ser usurpador perpetuo da potentia natural desperta
pelo trabalho vivo, seja das forças da natureza propriamente ditas, despertas pela ciência
e pela técnica como tecnologia; seja da cooperação social, força produtiva primordial,
produto natural do ser genérico do homem.
Na verdade, o trabalho imaterial tende a ser um nexo “estranho”, sempre
tensionado, na ordem produtiva do capital. Isto não significa que os novos saberes não
estejam “integrados” e não sejam parte compositiva imprescindível da produção do
capital. Pelo contrário, é parte do capital industrial e parte compositiva do processo de
trabalho material. Mais uma vez salientamos: o trabalho imaterial ativado pelos “novos
saberes” é determinação reflexiva ineliminável do trabalho material sob as novas
condições da produção do capital sob o trabalho complexo.
Além disso, é importante esclarecer, mais uma vez, que, o trabalhador coletivo,
produtor de valor, articula, em si, trabalho material e trabalho imaterial, articulando,
portanto, novos saberes e conhecimentos. O que se coloca é que, o trabalhador coletivo
tende a constituir-se, cada vez mais, em seus pólos dinâmicos, de locis de trabalho
imaterial, irredutíveis a uma substância comum mensurável (tempo de trabalho) que
permita determinar as relações de equivalência entre eles. Eis, portanto, a crise
tendencial da produção de valor no capitalismo global (é nesse sentido que Gorz
observa que “o capitalismo cognitivo é a crise do capitalismo em seu sentido mais
estrito”).
Ora, na medida em que predominam nos pólos dinâmicos da produção
capitalista, os novos saberes, o capital está diante de seu próprio limite intrínseco: a
natureza do trabalho vivo, sua dimensão intelectual-espiritual, intrinsecamente anímica,
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20
que compõe a vida cotidiana e as práticas concretas de homens e mulheres socializados.
Na medida em que os “novos saberes” assumem um papel estratégico na produção do
capital, abre-se um novo campo de luta, de tensão contraditória pela formalização do
trabalho vivo – isto é, pela “captura” da subjetividade da força de trabalho como
trabalho vivo.
Alguns autores, como Maurizio Lazzarato e Antonio Negri, destacam o processo
do trabalho imaterial como sendo produção de subjetividade (LAZARRATO E NEGRI,
2001). Primeiro, é um equivoco o conceito de “processo (ou ciclo) da produção
imaterial”. Na verdade, o que existe é processo de trabalho capitalista, um complexo
vivo de trabalho que articula, em si, trabalho material e trabalho imaterial. É mera
fantasia conceitual admitir um tipo puro de trabalho imaterial, ou mesmo a disjunção
trabalho imaterial/trabalho material. Nenhum empreendimento produtor de valor possui,
em si, tão-somente trabalho imaterial. Mesmo o trabalho reflexivo em serviços, embora
seja intensamente “afetado” pelo trabalho imaterial, tende a possuir elementos de
trabalho material, na medida em que ocorre como empreendimento capitalista que
articula uma complexa divisão social (e técnica) de trabalho.
Enfim, trabalho material não diz respeito ao conteúdo da atividade laboral (por
exemplo, confundir trabalho material com trabalho manual). Por exemplo, alguns
elementos do trabalho intelectual podem ser considerados trabalho material desde que
sejam passíveis de formalização e de procedimentos homologados e, portanto, de
redução, em alguns de seus elementos compositivos, à atividade abstrata (e mecânica).
Caso eles sejam passíveis de redução a conhecimentos formalizados, convertendo-se,
portanto, em capital fixo, separável de seu produtor (um software, por exemplo), podem
ser considerados trabalho material.
É claro que, por outro lado, alguns elementos compositivos do trabalho
intelectual tendem a articular “novos saberes”, saber vivo e vivido, que conserva a
marca da pessoa que a exerce e não é passível de formalização e alienação (ser
separável do produtor, cristalizando-se num software, por exemplo). Deste modo, é o
que podemos denominar de trabalho imaterial.
Além disso, a categoria de trabalho material diz respeito ao trabalho estranhado,
subsumido à divisão hierárquica de trabalho. Por isso, Marx vai dizer que o
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21
estranhamento surge a partir da divisão entre trabalho material (materiellen Arbeit) e
trabalho espiritual (geistigen Arbeit), isto é, com o surgimento da divisão hierárquica do
trabalho. Nesse caso, ao dizer trabalho espiritual, Marx diz trabalho imaterial
propriamente dito, isto é, trabalho vivo recalcitrante à alienação e, portanto
incompatível (ou incongruente) com a lógica do capital (MARX E ENGELS, 1973).
Depois, o que ocorre, sob a nova materialidade crítica do capital, não é mera
produção de subjetividade, como sugere Lazzarato e Negri, mas, sim, um processo
contraditório, de luta intensa, pela “captura” da subjetividade do trabalho vivo, agente
dos novos saberes, pela lógica do trabalho abstrato (que é o nexo essencial da produção
toyotista, seja na indústria, seja nos serviços capitalizados). Essa tentativa perpétua de
formalização do trabalho vivo ou do trabalho imaterial, adequando-o à materialidade do
trabalho abstrato, é a busca recorrente de novas formas de gestão de pessoas nos locais
de trabalho (ou a base material da “ideologia da competência”).
- Trabalho Imaterial e Sistema de Máquinas
O processo de produção do capital, que é processo de produção do trabalho
abstrato, fundamento da forma-mercadoria, impõe um processo de transição da
manufatura para a grande indústria. É um processo de substituição irremediável de
trabalho vivo por trabalho morto (o que é componente intrínseco do próprio “recuo dos
limites naturais” – o que, sob a lógica do capital tende a significar irremediavelmente
estranhamento). Deste modo, sob o modo de produção capitalista, o processo de
industrialização universal contém em seu bojo, a apropriação pelo capital, do saber
tácito – saber-fazer e saber-ser - do mundo do trabalho vivo, e sua transformação (ou
formalização) em conhecimento, que através da ciência, tendem a serem transformados
em tecnologias, formas sociais da técnica.
Sob a civilização do capital, a forma-máquina tende a ser expressão da
cristalização tendencial dos saberes em conhecimentos fetichizados (nem todos os
saberes que os profissionais praticam podem ser cristalizados em máquina ou mesmo
homologados e formalizados). O trabalho vivo se defronta com a máquina como uma
coisa estranha a si própria, quando o objeto técnico é, na verdade, cristalização de um
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
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conhecimento apropriado pelo capital, de um saber tácito formalizado, que se
transfigura em capital fixo. Na verdade, o movimento de abstração do trabalho vivo em
trabalho morto é o próprio desenvolvimento do sistema de máquinas. Eis o cerne
essencial da categoria de estranhamento e de fetichismo da mercadoria.
Deste modo, a forma-máquina é expressão suprema do trabalho abstrato (aliás,
a forma-máquina é, em si, um ente abstrato). Mas, ela expõe, do mesmo modo, uma
suprema contradição do capital, tendo em vista que, ao “negar” trabalho vivo, a forma-
máquina tende a negar a si própria na medida em que nega/suprime a fonte de valor, a
força de trabalho. Ora, o trabalho abstrato ao ser posto, tende à auto-negação através de
seu próprio movimento (é impossível apreender o movimento do real capitalista sem a
sintaxe dialética). Assim, a lei do valor tende a ser abolida virtualmente ao tornar-se
efetiva.
O que significa que o surgimento e desenvolvimento da forma-máquina através
da grande indústria – o que se constatou no decorrer do século XX - expressa o ápice de
desenvolvimento contraditório da produção de mercadorias. Mas é importante
acompanhar o desenvolvimento do sistema de máquinas em sua dimensão concreta. As
máquinas adquirem formas tecnológicas historicamente determinadas. As novas
máquinas complexas do capitalismo global tendem a repor, nas condições da crise
estrutural (sendo elas o “fator tecnológico” da própria crise estrutural), o trabalho vivo
negado tendencialmente pelo movimento de subsunção real do trabalho ao capital (é o
que Ruy Fausto irá salientar como um novo desdobramento dialético da subsunção real,
que ele denomina de subordinação formal-material (em sentido próprio), em subsunção
formal-intelectual (espiritual) do trabalho ao capital) (FAUSTO, 1989).
Entretanto, o trabalho vivo que se põe através do trabalhador coletivo “afetado”
pelo trabalho imaterial, tende a repor “novos saberes”, não mais o saber artesanal,
tendo em vista que o saber artesanal pertencia a um estágio menos desenvolvido das
forças produtivas do trabalho social, mas sim, os saberes imateriais, produto de
subjetividade complexa, tensionalmente “integrada” à lógica do capital (inclusive parte
dele, como simulacro do capital variável), impassível à formalização, e irredutível à
uma substância social comum mensurável (o tempo e trabalho).
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
23
Sob a grande indústria, a formalização do saberes em conhecimento compunha
o mote da educação técnica e profissional que adestrava homens e mulheres à linha de
produção, ao seu posto de trabalho, quase como máquinas vivas, logo substituídas por
capital fixo. No segundo momento, de crise da grande indústria, que prenuncia a pós-
grande indústria, os “novos saberes”, ativadas pelas subjetividades complexas,
obrigadas a lidar com novas máquinas complexas lastreadas nas tecnologias molecular-
digital (isto é, máquinas que exigem “afetos” e “envolvimento”), tendem a serem
resistentes à mera formalização abstrata, que tanto alimentou a lógica do trabalho
abstrato em sua odisséia mecânico-industrial. Deste modo, pode-se dizer que hoje, sob o
capitalismo global, temos a crise da educação técnica e profissional, cujo sintoma
estrutural é o surgimento do modelo de competência.
Enfim, sob a crise da grande indústria, que atravessa o século XX até hoje, o
que observamos não é um mero retorno do “saber artesanal”, como poderiam sugerir
Piore e Sabel, tendo em vista que os “novos saberes”, o trabalho imaterial, é bom
lembrar, é parte compositiva imprescindível da “máquina” capitalista (PIORE e
SABEL, 1986). Como trabalho imaterial, determinação reflexiva do trabalho material,
não é exterior à implicação do trabalho abstrato, sendo ele próprio expressão da
subsunção real do trabalho ao capital. Entretanto, o que os ideólogos entusiastas do
trabalho imaterial não salientam é sua interioridade tensa, convulsionada pela sua
própria natureza, que abre, hoje, nos locais de trabalho que são eixos dinâmicos de
acumulação de valor, um novo campo de luta de classes.
Portanto, o trabalho imaterial expressa, enquanto elemento compositivo
imprescindível do trabalhador coletivo complexo, subsumido à lógica do valor, o pleno
desenvolvimento da materialidade contraditória do trabalho abstrato. Ao invés de negar
o trabalho material, é expressão de sua própria expansividade contraditória.
4. 2 A incongruência contraditória entre matéria e forma social do capital
Além da desmedida do valor, que tratamos na seção acima, outra determinação
essencial da crise estrutural do capital é a aguda incongruência entre forma material e
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forma social do capital nas condições da grande indústria tardia. As mutações
estruturais do capital sob a terceira modernidade, caracterizada pelo desenvolvimento
das bases sócio-tecnicas da produção de mercadorias e da reprodução social, tendem a
agudizar a incongruência entre forma material e forma social (com impactos
significativos na instância sócio-reprodutiva da educação, principalmente da educação
técnica e profissional, o que trataremos adiante). Ela é uma manifestação fenomênica da
contradição entre valor de troca e valor de uso e está implícita na própria forma-
mercadoria. Além disso, está contida, por derivação, nas inadequações entre trabalho
imaterial e atividade de serviços e valor de troca, destacados acima.
A incongruência contraditória entre forma material e forma social do capital
tende a se agudizar na medida em que se desenvolve o modo de produção de
mercadorias e a socialização da produção com sua nova base técnico-material. Ela
expressa a contradição essencial, destacada por Marx, entre o desenvolvimento da base
sócio-técnica que tende a propiciar a diminuição do tempo socialmente necessário à
reprodução dos homens, e o sócio-metabolismo do capital, baseado no trabalho
estranhado e na barbárie social (a aguda racionalização da produção de capital, como
atestam os novos métodos de gestão e organização da produção de mercadorias, e a
crescente irracionalidade social, como atestam os indicadores de desemprego,
marginalidade urbana e incapacidade de uma vida plena de sentido na civilização das
mercadorias).
No “Prefácio” da “Contribuição à Crítica da Economia Política”, em 1858, Karl
Marx destacou como princípio explicativo da “era de revolução social” (que
caracterizou o século XX) a incongruência contraditória entre forma material e forma
social do capital. Diz ele: “Em certa fase de seu desenvolvimento, as forças produtivas
da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que
não é mais que sua expressão jurídica, com as relações de propriedade, no seio das quais
elas se haviam desenvolvido até então. De formas evolutivas das forças produtivas, que
eram, essas relações convertem-se em seus entraves. Abre-se, então, uma era de
revolução social.” (MARX, 1983).
Pouco mais de um século e meio, conseguimos apreender o complexo de
contradições da vida material que decorrem da aguda incongruência contraditória entre
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25
forma material, isto é, as forças produtivas latu sensu (incluso, como elemento
compositivo ineliminavel essencial, o trabalho vivo e a subjetividade complexa) e a
forma social do capital, isto é, não apenas as relações sociais de produção capitalista
strictu sensu, mas a totalidade concreta do sócio-metabolismo do capital (a posição do
trabalho imaterial, que expusemos acima, é expressão desta nova base material, limitada
em seu desenvolvimento, pela forma social do capital).
O caráter ensaístico destas digressões impede uma exposição ampla e precisa das
múltiplas contradições da vida social, expostas por conta da aguda incongruência
contraditória entre matéria e forma social do capital. Por exemplo, o que nos interessa
tratar aqui é que, a incongruência contraditória em destaque tende a expor os limites
irremediáveis das promessas emancipatórias das novas formas de gestão pós-fordista e
pós-tayloristas. Inclusive a suposta nova lógica do “modelo de competência”, que
iremos tratar, de modo breve, a seguir, traduz em si, esta não-adequação radical entre
forma material, que exige uma nova lógica de gestão dos recursos humanos, e a forma
social do capital, baseada na divisão hierárquica do trabalho e na propriedade privada
dos meios de produção da vida material.
5. Breves digressões sobre o modelo da competência
Quais os impactos destas mutações estruturais do capital salientadas acima, isto
é, a desmedida do valor e a agudização da incongruência contraditória entre matéria e
forma social, na instância sócio-reprodutiva da educação profissional?
O que iremos indicar, a seguir, são meros apontamentos críticos, sugestões de
investigação teórico-critica no campo da sociologia da educação ou dos estudos de
trabalho e educação numa perspectiva dialética. Primeiro, a educação é a base da
reprodução social. É claro que utilizamos o termo “educação” não apenas no sentido de
educação escolar ou educação técnica ou educação profissional. Educação é todo o
sistema de internalização, com todas as suas dimensões visíveis e ocultas. Deste modo,
educação é o próprio sentido da reprodução social. Como observa István Meszáros,
parafraseando Jose Martí, “a aprendizagem é a nossa própria vida, desde a juventude até
a velhice” (MÉSZÁROS, 2005) Deste modo, ao se deter na crise da educação, tanto em
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seu livro clássico “Marx: Teoria da Alienação”, e mais tarde no pequeno livro
“Educação para Além do Capital”, István Meszáros se debruçou, de certo modo, sobre a
crise da sócio-reprodutibilidade do capital.
Mas a crise da educação possui um desdobramento no plano da educação
profissional e da relação trabalho e educação propriamente dita. É a crise do fordismo e
dos métodos de gestão taylorista da produção. Foi no contexto da crise estrutural do
capital, em meio ao debate sobre as mudanças no processo de trabalho e sobre as
necessidades de novos perfis de trabalhadores, que emerge o termo “competência”, que
aparece fazendo contraponto com a noção de qualificação profissional, sob o argumento
de que esta teria se tornado incapaz de dar conta da nova realidade, caracterizada pelo
trabalho flexível (não entraremos no referido debate, tratado com desenvoltura por
ARAUJO, 1999).
A noção de “competência” surge inspirada no modelo japonês de organização da
produção e passa a orientar uma nova forma de gestão, controle e organização do
trabalho. De certo modo, ela é a resposta capitalista à crise da educação profissional
como expressão particular da crise geral da educação ou da sócio-reprodutibilidade do
capital. Como observa Ronaldo Araújo, a idéia de competência ainda carece de uma
definição mais precisa. Diz ele: “De uma forma geral, designa a capacidade mobilizada
pelos indivíduos ao buscar a realização de uma atividade ou a resolução de problemas.”
E destaca: “É o recurso que faz da subjetividade dos trabalhadores um elemento central
e distintivo.” (ARAUJO, 2000)
Ora, o que podemos constatar é que a noção de “competência” é expressão
ideológica das mutações estruturais do capital, seja através da explicitação do trabalho
imaterial, que, enquanto trabalho reflexivo, busca “capturar” a subjetividade do
trabalho; seja da aguda incongruência contraditória entre matéria e forma social do
capital, tendo em vista que, as promessas de superação da desumanização fordista-
taylorista do posto e da linha de produção tendem a se frustrarem diante dos limites
sistêmicos da ordem capitalista.
Em poucas linhas, Zarifian em seu livro “Objetivo Competência” não deixou de
reconhecer en passant, as candentes contraditoriedades da lógica da competência no
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sistema do capital. Conclui ele, após fazer considerações sobre a emergência do modelo
de competência:
“No entanto, em meados dos anos 90, percebe-se certa falta de fôlego, e não é
pequeno o risco de ver os esforços desenvolvidos até aqui cessarem. A lógica
competência pode morrer devido ao fato de estar comprimida entre, de um lado, a
aparelhagem burocrática destinada mais a controlar que a animar uma nova lógica e, de
outro lado, uma interpretação estritamente individualizante. Em conseqüência disso, a
lógica competência não conquistou a dimensão de uma verdadeira construção social e,
sobretudo, não se percebe claramente o que fundamenta sua necessidade.”
(ZARAFIAN, 2001)
Ora, “aparelhagem burocrática de controle” e “interpretação individualizante” é
o próprio espírito sistêmico do capital que Zarifian parece não reconhecer (ele continua
no horizonte da economia política, não tendo, portanto, uma teoria crítica do capital).
Por isso, sua proposta da “lógica competência”, que busca conquistar a dimensão de
uma verdadeira construção social, tende a parecer mais com os ideais de um suposto
socialismo utópico do que com uma proposta exeqüível nas condições sistêmicas (e
constrangedoras) do capital.
É claro que a idéia de “competência” possui uma legalidade sócio-ontológica nas
condições da crise estrutural do capital e do capitalismo global. Isto é, ela possui uma
necessidade intrínseca vinculada à própria constituição do novo trabalhador coletivo
afetado de trabalho imaterial. Enfim, ela contém uma promessa emancipatório humano-
genérica que aparece como pressuposto negado pelo próprio sistema do capital.
Portanto, eis a suprema contradição: as relações sociais do capital, constituídas
pelo controle burocrático ineliminavel e pela apropriação privada da riqueza social,
tendem, como constatou acima o próprio Zarifian, a obstaculizar/inverter/perverter a
“lógica competência”. É claro que a “lógica competência” é acima de tudo uma
construção social. Entretanto, o que nos interrogamos é como uma sociedade da
irracionalidade social e do poder social estranhado pode propiciar o que se almeja
efetivamente com a ideologia da lógica competência.
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