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CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA
Prof. Marcos Aurélio Fernandes
UnB – Fil: 2019.1
TEXTO 1
1. PROPEDÊUTICA: ESCOPO, CARÁTER E MÉTODO DO
CURSO.
O escopo de nosso curso é introduzir na paisagem da filosofia antiga através de
incursões hermenêuticas no pensamento originário e clássico dos gregos. Tentemos
refletir esta afirmação.
Escopo é objetivo, intuito, intenção, propósito, mas num sentido bem
determinado, a saber, no sentido de aquilo que temos em mira1. É aquilo que, tendo em
mira, nós almejamos, buscamos, sem perder de vista, observando atentamente,
perscrutando. O escopo é aquilo para o que tendemos. Mas o que nosso curso tem em
mira, a que ele tende?
Introduzir na paisagem da filosofia antiga. Introduzir é levar para dentro, deixar
e fazer entrar na familiaridade com a coisa em questão, ajudar a entender-se com ela.
Só entendemos de uma coisa quando conseguimos nos entender com ela. A introdução
1 “Escopo” vem do grego (skopós). Esta palavra era usada tanto para alguém, aquele que observava, vigiava, supervisionava; quanto para coisas, significando aquilo que era observado, por exemplo, o alvo, a mira, o objetivo. Daí, na filosofia passou a significar “propósito” [Platão: Górgias, 507d; Aristóteles, Ética a Nicômaco, 1119b 16, etc.]. Em grego há o verbo (skopéo): olhar, observar, contemplar, prestar atenção a, cuidar de; examinar, ponderar, refletir; buscar, pesquisar, aspirar a. Também há o verbo (sképtomai): olhar atentamente, perscrutar, examinar, considerar; refletir sobre.
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visa este entender-se com a coisa em questão. Mas, o que é a coisa em questão, em
nosso curso?
A coisa em questão em nosso curso, aquilo que buscaremos estudar e colocar
em discussão, é a “paisagem” da filosofia antiga. Mas, o que é uma paisagem?
Chamamos de paisagem, antes de tudo, um espaço entre o céu e a terra, que se abre e
se conserva aberto num lance de vista. Suponhamos que estamos caminhando perdidos
numa floresta que se assenta sobre uma serra. Vamos tentando abrir picadas na mata
cerrada. E, de repente, damos numa clareira. A clareira nos dá passagem. Não só. Ela dá
passagem também à luz. Nela reina a luz e sua claridade. Não só. Também o som e sua
claridade. Caminhamos por esta clareira e, de repente, nos damos com um mirante. Do
alto deste mirante nós vemos um vale. O vale se nos abre num lance de vista. E, aberto,
se nos mantém descoberto, dando-se a nós em vários e vários aspectos. Suponhamos
que resolvamos descer e percorrer aquela paisagem. Queremos descobri-la mais de
perto. Para isso, vamos fazendo incursões em meio a ela, abrindo caminhos nela, até
chegamos a nos deter nela, a acampar nela, sim, chegamos mesmo a nos deter nela, a
morar, a conviver com ela, na passsagem dos dias, das estações, etc. Com o tempo, nós
já não vemos a paisagem. Morando nela, nós a sentimos em nós. Nós e ela vamos nos
tornando um. Nós nos tornamos gente daquela paisagem e aquela paisagem vai se nos
tornando nosso país. País é região que se abre assim, no habitar humano. Mas o habitar
humano se dá como cuidado. É cuidando daquela paisagem, daquele pais, cultivando-o,
construindo nele nossas moradas e nossas edificações, e, ao mesmo tempo, deixando-
o se impor no seu vigor nativo, selvagem, que a gente vai aprendendo a habitá-lo.
Pois bem. Pensemos numa “paisagem” do pensamento de “filosofia antiga”. É
todo um país, isto é, toda uma terra e todo um mundo. O nosso curso convida a fazermos
incursões nesta paisagem. Você pode querer fazer um voo panorâmico sobre ela. Mas
isso não vai lhe permitir conhecer de fato a ela. É habitando nela que ela vai se lhe tornar
conhecida. Você pode decidir frequentar os habitantes dela e conversar com eles. Você
pode fazer visitas rápidas e sair com algumas impressões deles. Mas você também pode
optar por por frequentá-los assiduamente e conversar muitas vezes e por bastante
tempo com eles. Pois bem, nosso curso será tanto mais bem sucedido quanto mais você
se dispuser a frequentar assiduamente e até mesmo a habitar com os habitantes desta
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paisagem. As nossas incursões podem ter algo de “turismo” ou de “visita guiada”. Mas
pode também ser apresentações de possibilidades de convívio, de conversa, no
exercício assíduo do pensamento.
A “paisagem, o país, em questão”, no nosso curso, é a “filosofia antiga”.
Entretanto, imediatamente nos vem a pergunta: o que é isto – a filosofia? Ao colocar
esta pergunta, nós somos postos diante de um grande desafio. O tema da pergunta – o
perguntado nela: o que é a filosofia, seu ser, isto é, sua essência – é muito amplo,
extenso. Por ser amplo, é indeterminado. Por ser indeterminado, nós podemos, na
resposta, dizer muitas coisas que são corretas sobre a filosofia, mas que não conseguem
desvendar a sua essência. Nossa resposta ficaria dispersa e sem penetração no
essencial. Para que isso não aconteça, convém concentrar-nos na pergunta,
determinando-a melhor. Assim a nossa discussão toma um rumo. Ganha um caminho.
Aqui e agora nós propomos um caminho investigativo. Não temos a pretensão
de ser o caminho. É apenas um caminho. Nós homens somos seres a caminho. Somos
travessia, como recorda o Grande Sertão: Veredas. É em sendo travessia que o homem
se abre ao real, às realizações, à realidade. Parece-nos oportuno nos recordar também
do que disse Guimarães Rosa certa feita em algum lugar: “o real não está na saída nem
na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”. Assim também é nosso
relacionamento com a filosofia: o que ela é, sua realidade e sua natureza, só se dispõe
para nós é no meio da travessia, à medida que vamos caminhando nela. E, na filosofia,
como de resto em toda a realidade da vida, encontrar um caminho, nem que seja
pequeno, estreito, pobre, é já uma grande alegria. Que nos seja permite lembrar de
novo uma passagem do Grande Sertão: Veredas: “Mas liberdade – aposto – ainda é só
alegria de um pobre caminhosinho, no dentro do ferro das grandes prisões. Tem uma
verdade que se carece de aprender, do encoberto, e que ninguém não ensina: o beco
para a liberdade se fazer”2.
Segundo a nossa finitude, nos é possível caminhar cada vez apenas um caminho.
Oxalá cada um encontre o seu caminho. Aqui e agora buscamos um caminho para pôr a
pergunta: o que é isto – a filosofia? Buscamos, na verdade, um caminho que nos conduza
2 Rosa, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas (18ª ed.). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 286.
4
para o essencial da filosofia. Um caminho que não nos permita falar sobre a filosofia,
isto é, por cima dela, por fora dela, mas um caminho que nos permita falar a partir da
filosofia mesma, nos movendo dentro dela.
Usualmente, nós falamos da filosofia como de uma ciência entre as outras
ciências. Na universidade, por exemplo, a filosofia está presente como uma ciência entre
outras ciências. Está presente como uma disciplina que se ensina. Está presente como
um curso ou um faculdade. Quando a universidade surgiu, na Idade Média, a faculdade
de filosofia era uma faculdade básica (coincidia com a faculdade de artes – leia: artes
livres ou liberais). Era o coração da universidade dos estudos (universitas studiorum). É
que não bastava reunir a diversidade dos mestres e aprendizes na unidade de uma
instituição escolar superior (universitas magistrorum et discipulorum)3. Para que a
universidade fosse de fato universidade dos estudos, isto é, a diversidade dos estudos
reunida, a filosofia era fundamental. Era ela que dava a universidade ser universidade,
isto é, uma instituição em que o saber se reunia em sua universalidade. Não bastava à
universidade ter as faculdades de medicina, direito, teologia... era preciso que a filosofia
estivesse presente, e que o médico, o juiz, o teólogo, em formação, a estudasse. A
filosofia não é um saber específico, uma especialidade. A filosofia não é um
conhecimento, uma ciência particular. Na universidade nascente havia a ideia (o ideal?),
de que todo o saber específico, toda a ciência ou arte particular, deveria ser in-formado
(a) pela filosofia. Só assim o estudo, o trabalho intelectual, universitário, seria de fato
universal (sem ser geral!). Um indicío disso está no fato de que em muitas universidades
de língua alemã ou inglesa os título de “Dr. Phil.” (doctor philosophus) ou “PhD”
(philosophiae Doctor) indica o mais alto nível de formação acadêmica. É que sem
filosofia não há estudo acadêmico em sentido essencial, pleno e próprio, e a
universidade não é senão uma organização burocrática de produção de conhecimentos
parciais. Sem a filosofia, a universidade é apenas agenciamento da produção de
conhecimento, não é lugar do saber, pois saber é, em sentido rigoroso, outra coisa do
que conhecimento. Saber é a salvaguarda da relação do homem com a abertura e a
manifestação do todo do real, das realizações, da realidade.
3 Universidade dos mestres e aprendizes.
5
Nós vivemos na época da ciência. Isto quer dizer: a nossa época é científica em
sua essencialização. É a ciência que determina o ser e a verdade do ente (do real). É o
meio em que se faz a experiência e se entende o sentido de tudo o que é. Ciência é o
elemento (medium) em que se decide o destino da história humana. É a forma que
informa toda a nossa compreensão e avaliação da realidade. Ela determina o sentido de
ser do que somos e do ser que não somos. Decide a concepção de verdade em que nos
movemos e existimos. Decide também da concepção de linguagem: esta se torna, na
época da ciência, informação. Decide ainda da concepção de pensamento: este se torna,
na época da ciência, cálculo.
Nós vivemos na época do conhecimento científico (metódico, sistemático, exato
e de validade universal). Não do saber. Vivemos na época da informação. Não da
formação. Do cálculo, não da meditação. Conhecimento e informação andam de mãos
dadas. Saber e formação também. Mas de há muito nosso ensino já não tem lugar para
o saber, para a meditação e para a formação. Um conhecimento isolado de algo
particular nunca é saber (tomamos a palavra “saber”, aqui, em sentido forte). O saber
é, de algum modo, uma relação com a manifestação do todo, uma penetração do todo
manifesto, em seus nexos de fundamentação, etc. Na modernidade, a ciência foi
perdendo o seu caráter de saber, para ir tomando a feição de produção de
conhecimento (objetivo-funcional). Trata-se de um conhecimento cada vez delimitado
de um setor ou de um campo de objetos.
Ciência é, assim, em nosso tempo, conhecimento positivo (do que está posto,
dado na realidade), objetivo (posto como o que é representável ou representado),
particular (sempre se refere a uma parte do real – a um setor ou campo de objetos). O
conhecimento científico sempre opera, neste sentido, com um recorte do real,
circunscreve e fixa o que, partindo do todo do real (da realidade), pode ser posto como
objeto temático de investigação. A penetração neste campo, nos nexos de
fundamentação do objeto, é um processo metódico. O mundo do conhecimento não
celebra a vitória da ciência (no sentido de saber), mas a vitória do método sobre a ciência
(no sentido de conhecer). Método não é, aqui, mero procedimento e instrumento de
pesquisa, que se volta para objetos já dados. Método é a constituição dos próprios
objetos em sua objetualidade (se é que se possa falar, ainda de objetos, neste momento
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da nossa história). Como filosofia não é conhecimento positivo-objetivo de um campo
delimitado do real, ela permanece estranha à ciência.
Ciência, em tempos modernos, não é a busca da essência (do “o que” – da
estrutura fundamental do ente em questão), mas é apenas a investigação da aparência
(do contexto fenomênico do setor em questão), e, nisso, do “como” e do “por que”. O
que aparece é tomado não como substância (ser em si e por si), mas como relação (ser
para outro). É, cada vez, um contexto de relações. Este contexto tem assim o caráter de
sistema. Sistemático é também o conhecimento deste contexto. Ciência já não é teoria
no sentido de contemplação, especulação. A teoria tem um caráter de modelo
explicativo, funcional. É instrumento de exploração do real. Ciência não é saber no
sentido de contemplação. Ciência só é saber no sentido de operacionalização do
domínio técnico do homem sobre o real (um “saber-como” – Know How). A ciência tem
um escopo técnico. Ela é o conhecimento a serviço da técnica. No mundo da técnica, o
homem busca em tudo, em toda a parte, a todo o tempo, poder, controle, segurança.
Nesse tempo, em que a filosofia se dissolveu em várias ciências independentes e
autônomas, ou seja, em que as ciências se emanciparam e se autonomizaram em
referência à filosofia; em que elas se multiplicaram e se diversificaram ao extremo; a
única forma de articulação delas é dada pela sua tendência básica, técnica. Por isso,
neste contexto, não a filosofia, mas a cibernética, pode se pôr como base das ciências.
Cibernética é a teoria que serve ao controle do controle de todo o real. No tempo da
cibernética, a linguagem se torna mera informação. As antigas artes, as ciências, se
tornam instrumentos controlados e controladores de informação. Na educação
universitária já não vigora a formação. Formação é mais do que adestramento técnico.
Formação é a orientação fundamental do ser inteiro do homem no todo do ente, ou
melhor, na totalidade do ser (se quiser: na realidade do real e de suas realizações). Esta
orientação de há muito se encontra confusa e perdida. E a “educação”, que não
consegue ser formação, mas apenas informação e adestramento técnico, para atuação
em determinados setores da atividade humana, funcionalizada e instrumentalizada,
perde seu potencial libertador. Os homens vão se tornando mais animais espertos e
expertos em funcionalidades, em especialidades, em particularidades, mas
desorientados no todo. O todo, aliás, vai se tornando um deserto: lugar do inóspito, do
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intransitável. Um vazio vazio. O homem de hoje vai sendo obrigado a caminhar nesse
deserto, desprovido de rumos e referências. Ou, se quisermos outra imagem, o todo vai
se tornando um mar (“modernidade líquida”?), onde tudo é fluído, mutável,
impermanente, onde a impermanência é cada vez mais rápida, etc. E toda a busca, sim,
a obsessão do homem atual pelo controle, pelo poder e pela segurança, dá em nada. No
nada da violência – que já não é apenas atos, mas estado, disposição permanente,
constante, habitual, modo de ser e de viver –; portanto, no nada negativo, destrutivo,
aniquilador.
A filosofia não é ciência. Esta tese quer dizer: a ciência não é um gênero e a
filosofia uma espécie deste gênero, assim como cor é um gênero e o vermelho é uma
espécie dentro deste gênero. Tentar entender a filosofia a partir da ciência é inviável.
Mas não vice-versa: o único modo de se entender a essência da ciência é a partir da
filosofia. A ciência não pode pensar a si mesma nem à realidade do real que ela, objetiva
e funcionalmente, estuda. Quando nos pomos a pensar a essência de uma ciência (ou
da ciência em geral) e daquele que ela estuda, já não realizamos ciência, filosofamos.
A filosofia não é ciência. Ela não é produção de conhecimento ôntico, positivo,
objetivo, funcional, técnico4. Dessa diversidade entre filosofia e ciência resulta um
estranhamento:
Na Froehliche Wissenchaft, Gaia Ciência, diz Nietzsche que a filosofia vive nas geleiras das altas montanhas, tendo por única companhia o monte vizinho, onde mora o poeta. No país da ciência, a filosofia aparece como uma montanha solitária, envolta numa luz marginal. Por isso, toda vez que ela desce da montanha, tem que exibir o passaporte de suas credenciais. Tem que justificar o direito de seu aparecimento. E há mais de dois mil e seiscentos anos, sempre que a filosofia apresenta as suas credenciais, se repete uma cena tragicômica. À luz de seu espectro ela se descobre a si mesma no fundo de cada ciência, enquanto o olho indagador da ciência,
4 Neste sentido os esforços de Descartes, Kant, Hegel e Husserl, que almejam a filosofia como “mathesis universalis” (saber universal), como crítica da razão, como vontade de saber, como busca da “ciência rigorosa” precisariam ser entendidos diversamente do que no sentido de constituir a filosofia como ciência em sentido usual. Ciência, aí, tem muito mais a ver como o saber, no sentido do relacionamento clarividente do homem com a abertura e a manifestação do todo, do que com o conhecer, no sentido do conhecimento objetivo-funcional, ôntico, particular.
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que, vendo tudo, não vê a si mesmo, é cego para seus próprios fundamentos. Por isso mesmo, só pode rir das credenciais da filosofia.
Já no primeiro aparecimento da filosofia entre os gregos no século VII antes de Cristo esse impasse de incompreensão é testemunhado por uma história, que Platão recolheu e nos conservou no diálogo Teeteto (174 a): “Tales de Mileto refletia certa vez sobre o significado dos astros para a existência e, olhando para o céu estrelado, caiu num buraco. Uma doméstica da Trácia, bela e galhofeira, dele riu e o gozou, dizendo: aquele ali se preocupa tanto com o que se passa no céu, enquanto não tem olhos para ver o que tem diante do nariz e debaixo dos pés”. – Platão acrescenta ao relato dessa história as palavras significativas: “à mesma gozação está sujeito todo aquele que se dedica à filosofia”! Assim, desde suas origens, a filosofia se vem apresentando como o esforço de pensamento que traz consigo o risco de cair num buraco e do qual as domésticas sempre riem!5
A filosofia é um saber inútil. Os que riem da inutilidade da filosofia têm razão.
Confessa-o Roger Bacon, no seu Opus Maius: “Si bene inspicis, philosophia nullius est
utilitatis” – Se examinas bem, a filosofia não é de nenhuma utilidade. Com a filosofia
não se pode fazer nada. Por outro lado, não têm razão. Dizer que algo não é útil não
significa dizer que ele é inútil (que não presta), nem que não tem importância, não é
bom. O não útil não é sempre o mero inútil (aquilo de que se espera uma utilidade e que
não cumpre esta expectativa, como, por exemplo, um computador que não está
funcionando). O não útil pode ser também o desútil, para usar uma feliz expressão do
poeta Manuel de Barros, usada em seu “Livro sobre Nada”. O poeta de chama de “nada”
“tudo que use o abandono por dentro e por fora” (p. 7). Ele tem em mente a
“desutilidade poética”, o “dessaber” (p. 11). Diz: “Meu avô sabia o valor das coisas
imprestáveis”. E pergunta: “Seria um autodidata?” Responde: “Era o próprio indizível
pessoal” (p. 27). De si mesmo atesta: “Trabalho arduamente para fazer o que é
5 Leão, Emmanuel Carneiro. Aprendendo a Pensar I: o pensamento na modernidade e na religião. Teresópolis-RJ: Daimon Editora, 2008, p. 12-13.
9
desnecessário” (p. 41). “Nasci para administrar o à-toa / o em vão / o inútil” (p. 51). E
toma isso como uma experiência de religiosidade: “Todas as coisas apropriadas ao
abandono me religam / a Deus. / Senhor, eu tenho orgulho do imprestável!” (p. 57). E
de seu ofício de poeta diz: “Eu fiz o nada aparecer” (p. 63). E adverte ao mundo de hoje,
que só dá importância à abundância de coisas, de algos: “perder o nada é um
empobrecimento” (p. 63). Lendo estes dizeres poéticos de Manuel de Barros,
entendemos porque o Nietzsche da Gaia Ciência diz que o poeta mora numa montanha
ao lado de outra montanha solitária: a geleira da filosofia. O poeta tem um sentido para
o nada.
Um sentido para o nada, para o desútil, tinha também o sábio chinês Chuang Tzu.
Hui-tzu disse a Chuang-tzu: “Você fala do desnecessário”. Chuang-tzu falou: “primeiramente carece de alguém reconhecer o desnecessário, antes de poder falar com ele do necessário. A terra é larga e grande, e, no entanto, o homem carece, para ficar de pé, só daquele tanto de lugar necessário onde ele põe o pé. Porém, se, ao lado dos pés, se lhe arrancasse toda a terra, abrindo-se para ele um abismo, aquele tanto de lugar ainda lhe seria útil? ”. Hui-tzu falou: “não lhe seria mais útil”. Falou, então, Chuang-tzu: “daí resulta com clareza a necessidade do desnecessário, do não-útil”.
Para o homem atual, que vive num mundo cheio de objetos, de máquinas, de
dispositivos, de informações, encontrar-se com a filosofia, e com a filosofia grega, é uma
tarefa difícil. Falta-nos o sentido do ser e do nada. Falta-nos a necessidade do
desnecessário. Carecemos do sentido da importância do não útil (do inútil, do desútil).
Daí, o primeiro requisito para visitarmos o país da filosofia grega é o de nos despir de
toda a abundância e autosuficiência, de toda a potência e prepotência (no sentido da
hybris) do homem atual – que todos nós, de alguma maneira, somos. É preciso ir ao país
da filosofia grega não para tomar informações, para conhecer e dominar, mas para
aprender a pensar. Quando estudamos para conhecer e dominar, buscamos
informações que nos tornam ricos e poderosos, para nos assegurarmos mais, para
termos mais. Quando estudamos para aprender a pensar, nos dispomos a nos esvaziar
e a desaprender, para mais nos arriscarmos a ser mais.
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Hoje, ao ouvirmos que filosofia não é ciência, somos impulsionados a achar que
filosofia seja, então, visão de mundo, e seus epifenômenos, a saber, convicção ou
concepção de vida, ideologia, persuasão, doutrinação ideológicas (enquanto técnicas de
processamento dos fenômenos sociais). Visão de mundo (Weltanschauung) é algo assim
como uma concepção global, em si unitária, sobre a estrutura, o fim, o sentido, o valor
do conjunto do mundo. Este conceito surgiu na Alemanha, no contexto do romantismo.
Dilthey foi o filósofo que dedicou especial atenção ao conceito e à coisa mesma que nele
está em questão. Ele viu que na visão de mundo há sempre uma conexão íntima de
experiência de vida e imagem de mundo e, que, igualmente, nela há sempre uma
tendência para um ideal de vida. Os componentes da visão de mundo são: imagem do
mundo, experiência de vida, estimativa e ideal de vida e de realidade, concepção de
valor e de fim, determinação da vontade. Estes componentes têm diversas
proveniências e são de caráter diverso. Dilthey os estudou na perspectiva psicológica:
em referência ao conhecer, ao sentir e ao querer. Ela é um modo como o homem se
relaciona com o todo do real. Ela é uma compreensão e uma interpretação do mundo.
A historicidade perpassa toda este modo. Dilthey falou de uma visão de mundo religiosa,
de uma visão de mundo poética, de uma visão de mundo filosófica. Segundo ele, a visão
de mundo filosófica teria alguns traços peculiares: tendência a uma validade universal,
caráter imperativo-reformador em referência à vida real, a partir de conceitos e não a
partir da imaginação, etc. A visão de mundo filosófica, para ele, é, fundamentalmente,
metafísica.
Não só as diversas visões de mundo são históricas. A própria visão de mundo é
um fenômeno histórico bem determinado. É um fenômeno moderno. Nem os gregos
nem os medievais tiveram “visão de mundo”. Os gregos cultivaram um saber do todo –
que eles chamaram de (kósmos). Os medievais também cultivaram um saber
do todo – que eles compreenderam como ordo (ordem), mas propriamente, como
ordenação das coisas criadas. Mas aquilo que veio a se chamar de “Weltanschauung”
(visão-de-mundo ou mundividência) é um fenômeno tipicamente moderno. É um traço
fatídico da condição do homem moderno.
Visão de mundo é algo típico do homem moderno. É um fenômeno histórico de
nossa época. Visão de mundo acontece, quando o mundo se torna, ele mesmo, imagem.
11
Na modernidade, o mundo como tal vira imagem. Isto significa: que o todo do ente, o
real, passou a ser configurado a partir da representação de um ego cogito; que o real
como tal e como um todo se apresenta, projetando-se na perspectiva da objetualidade;
que o mundo que se nos presenta e apresenta acaba se deixando representar como
conjuntura objetivo-funcional, como sistema. É na época do mundo-sistema que a visão
de mundo se impõe. O sistema é o mundo para o homem-sujeito, o homem cuja
humanidade é determinada pela subjetividade, seja como a subjetividade do ego
(egoidade), seja como a subjetividade do nós, da comunidade, da sociedade
(intersubjetividade). Mundo como imagem é mundo como sistema, como instalação que
se instaura na relação sujeito-objeto, ou, para além disso, na perspectiva da
funcionalidade técnica, exploradora do real. O (kósmos) grego não era mundo-
sistema; também não o era o ordo (ordem) do ens creatum (ente criado) dos medievais.
Neste sentido, nem os gregos nem os medievais viveram as suas vidas no horizonte de
algo assim como “visão de mundo”.
A visão de mundo tem caráter ôntico e positivo. É um modo de relacionamento
com o ente (o real), mas não enquanto ente, isto é, um modo de relacionamento que
não põe em questão, pelo exercício do pensamento, o ser do ente (a realidade do real).
Na visão de mundo, o todo do ente é tomado como algo dado, posto (positivo),
inquestionado e inquestionável. Nela, o ser não vem ao questionamento. Permanece no
esquecimento. Neste sentido, em seu caráter ôntico e positivo, a visão de mundo está
mais próxima da ciência do que da filosofia. Por outro lado, enquanto o que está em
causa, na visão de mundo, é o todo do ente e o modo como o homem se põe e se ergue
e se orienta no todo do ente, a visão de mundo tem certa proximidade com a filosofia.
Assim como é equivocado falar de “filosofia científica” (partindo do conceito de
ciência como conhecimento objetivo-funcional ôntico-positivo), também é equivocado
encarar a filosofia como visão de mundo. Com isso capta-se uma semelhança, deixando-
se escapar a dessemelhança. Tanto a filosofia quanto a visão de mundo concernem ao
mundo, melhor, ao ser-no-mundo do homem, à sua transcendência. A transcendência
do ser-no-mundo é ôntica, isto é, ela é a abertura do relacionamento do humano do
homem com o ente no todo. A visão de mundo se funda nesta transcendência ôntica.
Mas a visão de mundo permanece um olhar ôntico para com o todo do ente (o real). Ela
12
não o visa na perspectiva do ser do ente (o ente enquanto ente), isto é, no interesse da
questão do ser, da compreensão ontológica. Na visão de mundo se dá uma
compreensão pré-ontológica, isto é, uma compreensão prévia do ser. Entretanto, esta
compreensão é operativa, não temática. E se é temática, não é teorética.
Além disso, há diferença entre a atitude da visão de mundo e a da filosofia com
o todo do ente. A visão de mundo busca amparo, segurança (assim como a ciência e a
técnica), no ente. Já a filosofia se arrisca no questionamento e no pensamento do ser.
Visão de mundo busca a solidez da convicção. Para a filosofia a convicção consolidada
da visão de mundo é, antes, um obstáculo na busca da verdade. Visão de mundo busca
tomar posição no todo do ente (do real). A filosofia questiona toda a suposição e
pressuposição, regressando ao abismo do ser (da realidade). Para o Pensamento, que
funda a filosofia, amparo, abrigo, não está segurança que o homem encontra junto ao
ente, quer junto ao ente que ele não é, no domínio das “coisas”, quer no ente que ele é
(autoasseguramento). Por conseguinte, a filosofia não se relaciona de modo positivo
para com o ente enquanto este ou aquele, pondo-o (como objeto de domínio),
instalando-se nele. A filosofia se expõe ao ente, ao ser. É na ousadia e no risco desta
exposição que ela se torna o que ela é e se consolida. A filosofia considera o ente
enquanto ente, isto é, na perspectiva do ser, abrindo-se à sua imensidão, sondando o
seu fundo-abismo, co-nascendo com sua originariedade. Como o ser não é nada de ente,
considerado a partir do ente (do que é, do que está sendo), o ser é tomado como nada.
Neste sentido, a filosofia é negativa. Ela é a recondução do pensar ao nada (ser como
não-ente).
A visão de mundo direciona a experiência da vida a um caminho e a um âmbito
que se fecha ao questionamento ontológico da filosofia. A visão de mundo impede uma
experiência originária do ente enquanto ente. A filosofia, ao contrário, abre uma
experiência originária. A visão de mundo é fim. A filosofia é princípio. A visão de mundo
não quer ser ultrapassada e superada enquanto tal. Já a filosofia tem no seu bojo a
tendência para ser superada e ultrapassada, na direção de outro princípio, de outro
pensar. A visão de mundo é uma “atitude total” que se endurece em forma de
“convicção” e, assim, se fecha ao questionamento e à meditação do pensamento, à
coragem da busca do sentido de ser de tudo que é.
13
A filosofia é uma atitude que se diferencia fundamentalmente da atitude da
cotidianidade. Ela se diferencia do senso comum. O senso comum é aquela orientação
que o homem toma, de modo ordinário, cotidiano, a partir de uma situação já
interpretada, de um um mundo já constituído. Para a filosofia, tudo está por interpretar,
e toda a interpretação já dada há que ser sempre de novo posta à prova, sondada em
seus pressupostos. O senso comum é tomada de posição. A filosofia é pensar as
suposições em que se plantam as posições e suposições, tanto as alheias quanto as
próprias. O senso comum é o modo como enfrentamos os fatos imediatos, como
resolvemos os problemas propostos pelos mais diversos interesses. É a orientação no
mundo já constituído, no sentido de um enfrentamento imediato (sem prévia discussão)
dos fatos e dos problemas imediatos. É um modo de ser constituído, idêntico consigo
mesmo, uma atitude total não cambiante no trato com a realidade. É um modo habitual
e irrefletido de julgar, compartilhado, comumente sentido, por toda uma classe, por
todo um povo, por toda uma nação, ou por todo o gênero humano (neste sentido é que
este senso é comum). O senso comum é uma orientação prática, não teorética. Não
cuida de argumentar, fundamentar, criticamente a si mesmo. Por isso, o senso comum
não pode ser erigido em critério para a discussão das questões filosóficas.
A partir da visão de mundo em que se move a compreensão do homem de início
e na maioria das vezes, no cotidiano, na discussão do que está na “ordem do dia”, a
filosofia se mostra como algo difícil, inacessível, abstrato, não natural, violento. Aparece
como uma “eversio generalis” (uma eversão geral – alusão a Descartes), como o “mundo
de cabeça para baixo” (alusão a Hegel). A filosofia não só inverte, mas também everte,
o modo de consideração usual do homem, a racionalidade do são entendimento, do
senso comum. Parece dizer que tudo, no fundo, é diverso do que costumamos achar
que é. Vista do ponto de vista da visão de mundo, a filosofia é chocante. Ela aparece
como desmascaradora, irônica, etc.
A visão de mundo tem a ver com a busca de abrigo do homem, de amparo, no
ente (no real). Neste sentido, a visão de mundo é para o homem moderno, o que o mito
para o homem arcaico. No entanto, de início e na maioria das vezes, a visão de mundo
se degenera e se defasa em mero empreendimento, agenciamento, funcionamento, que
visa processar os fenômenos humanos. À tecnologia de processamento dos fenômenos
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humanos, sociais, que se dá no horizonte de um ideal (dever-ser) e que se apoia num
ideário (conjunto articulado de ideias, isto é, de ideiais e valores) chamamos de
ideologia. Neste sentido, ideologia é a mecânica do processamento e da construção do
mundo social6.
A filosofia, à medida que exige uma “eversio generalis” (Descartes) do modo de
considerar e representar o real operante no ordinário, no cotidiano, ou seja, na medida
em que exige uma guinada, uma reviravolta, da mente (Hegel), tem um caráter
revolucionário. A figura do pensamento filosófico moderno é caracterizada em boa
medida por este traço revolucionário. Nesta época, a filosofia quer se tornar
revolucionária. Ela quer chegar a uma presentação e apresentação do mundo, que
aconteça desde o fundo de novo fundamento, e em uma nova luz. Ela quer pôr as coisas
humanas, o mundo histórico, em uma novo estilo unitário, não ainda pensado. A
filosofia, assim, impele os homens, de um movo agressivo e ativo, para a necessidade
de uma transformação concreta do mundo, no sentido de uma nova interpretação do
6 A palavra “ideologia” foi um neologismo criado, a partir do grego, na França, por Destutt de Tracy para designar a filosofia sensualista de Condillac (1801). Ao ser criada, a palavra “ideologia” significava a ciência que tem por objeto o estudo das ideias – sendo estas entendidas em sentido sensualista, isto é, como fatos de consciência. Stendal e Taine usaram a palavra não tanto no sentido psicológico, como Destutt de Tracy, mas no sentido lógico: tratado das ideias – no sentido do pensado do pensar. Destutt de Tracy, junto com Cabanis, Volney, Garat, Danou, formavam um grupo filosófico e político. Destutt de Tracy usava a palavra “ideologista” para dizer aqueles que se ocupavam com a “ideologia”. Já a palavra “ideólogo” foi cunhada com uma conotação pejorativa (Napoleão, Chateaubriand). A palavra foi usada em seguida no sentido de “convicção de uma verdade referida a grupos, concebida institucionalmente, que não deve sua força a razões de verdade, mas a interesses práticos” (Lübbe). Por extensão, passou a ser usada no sentido de doutrina que inspira ou parece inspirar um governo ou um partido. Marx usou o termo para designar toda classe de visão de mundo, como também o conjunto de religião, direito, arte, em parte também, ciência, de uma determinada sociedade e época, que, enquanto fenômenos sem conteúdo substancial de verdade, só são epifenômenos das respectivas condições econômicas e dos interesses da classe dominante. Ideologia seria o modo de consideração que crê desenvolver-se sobre seus próprios dados, mas que é, na realidade, a expressão de fatos sociais, particularmente, de fatos econômicos, de que aquele que a contrói não tem consciência, ou, pelo menos, não percebe que determinam o seu modo de considerar e de representar o real. A ideologia seria, então, um modo de considerar o real, através de um conjunto de ideias, conduzido por uma consciência falseada. As forças motrizes que motivam este modo de consideração e representação do real ficam ignoradas. O marxismo encarou a ideologia como “superestrutura”, a “infraestrutura” seria as condições econômico-sociais de produção, força motriz da história. A filosofia teria o papel de ser crítica da ideologia. Norberto Bobbio falava de um significado “fraco” e de um significado “forte” da palavra ideologia. No seu significado fraco, “ideologia” designa o genus (gênero) ou a species (espécie) do sistema de crenças políticas: um conjunto de ideias e de valores respeitantes à ordem pública e tendo como função orientar os comportamentos políticos coletivos. O significado forte tem origem no conceito de Ideologia de Marx, entendido como falsa consciência das relações de domínio entre as classes. Neste segundo sentido, há uma ênfase no caráter de falsidade: ideologia como crença falsa. Nele, se ressalta o caráter mistificante de falsa consciência de uma crença política.
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ente no todo (o todo do real). Por e para ser revolucionária, a filosofia se torna, assim
crítica. A filosofia tem que ser, por si mesma, “crítica”. Ela quer ser crítica de si mesma
e de tudo o mais.
A filosofia contemporânea, pós-hegeliana, acentua a ênfase deste traço. Na
perspectiva deste caráter revolucionário, a filosofia quer se pôr como fundamento de
uma intenção de transformação do mundo. Esta pretensão se compreende como
universal (não se entende como restrita a determinados problemas sociais ou políticos).
Não raro, na época moderna, das filosofias são retiradas visões de mundo e ideologias,
que atuam no âmbito político, técnico, econômico, etc.
Os “Hegelinge” (jovens hegelianos)7 viram em Hegel o fim da filosofia. Arnold
Ruge encarou a filosofia de Hegel como die letzte aller Philosophien überhaupt (a última
de todas as filosofias em geral). Depois de Hegel, já não se poderia filosofar como antes.
Em vez de fazer filosofia, era preciso fazer história. É a partir da história e da sua
facticidade que soam palavras fundamentais da filosofia pós-hegeliana e que, não raro,
vibram como palavras de ordem: “realidade” (Wirklichkeit), “práxis”, transformação
(verändern), “político” (politisch), “existência” (Existenz), etc. Nesta perspectiva, a
realidade é, fundamentalmente, o mundo histórico, político-social. A realidade é o
mundo histórico dos homens em produção. Estes – os homens em produção –
constituem o novo sujeito da história. Já não o Espírito, o sujeito da história. É a
sociedade, isto é, o homem sócio, que produz em sociedade. A subjetividade deste
sujeito não para ser representada pela reflexão do Espírito, é para ser produzida pelas
relações de produção dos sócios, isto é, dos homens em sociedade.
A realidade do real é, para os homens de hoje, o desenvolvimento econômico, e
a armação que ele requer. Em torno desta realidade, lutam individualismo e socialismo.
Ambos são decorrências de posições filosóficas. Um, o individualismo, parte da
concepção de que o indivíduo é a última instância da realidade e da natureza humana;
o outro, o socialismo, entende que esta última instância é a sociedade e que o indivíduo
está obrigado a esta e suas demandas e exigências. A luta política torna visível esta
7 Heinrich Heine, Arnold Ruge, Ludwig Feuerbach, Max Stirner, Bruno Bauer, Moses Hess, Sören Kierkegaard, Karl Marx.
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confrontação. Esta oposição pode ser vista também, de outro modo, como a luta entre
liberalismo, defasado em mero liberalismo econômico8 e a defesa do trabalhador e do
trabalho, por exemplo, no sentido do laborismo9.
Nesta situação, a filosofia é entendida como práxis de transformação da
realidade (leia-se, do mundo histórico dos homens que produzem em sociedade).
Ressoa assim a palavra de Marx (na última das Teses sobre Feuerbach): “os filósofos até
agora só interpretaram o mundo de maneira diferente. O que importa, é transformá-
lo”. Pode-se ouvir esta palavra como uma sentença sem dialética ou como uma sentença
dialética. Entendendo-a como uma sentença sem dialética, ela quereria dizer que não
se deve interpretar o mundo. O que se tem de fazer é transformar o mundo. No entanto,
não é toda transfomação do mundo que satisfaz o ímpeto revolucionário. Transformar
por transformar também o capitalismo transforma – transforma o mundo num sistema
bem determinado de produção. O humanismo marxista vai denunciar no capitalismo um
sistema de alienações. Não é, pois, toda a transformação que importa. Mas, na
perspectiva do humanismo marxista, aquela que supera as desumanidades do
8 Liberalismo é um título amplo e plurívoco, quase equívoco. Abarca todos os empenhos surgidos desde o fim do século XIX no campo intelectual, político e econômico, que, originariamente, tendiam à libertação da pessoa individual das ataduras transmitidas historicamente, representadas nas instituições políticas e eclesiásticas. É uma fase do individualismo. Originariamente, o individualismo era a afirmação e o desdobramento da peculiaridade e do direito próprio do indivíduo humano, enraizados na singularidade do homem. Tal individualismo defendia, frente ao socialismo e ao coletivismo moderno, o caráter insubstituível, a responsabilidade e a historicidade, baseadas na liberdade humana, que supõem precisamente vinculações objetivas e formas de comunidade que transcendem o indivíduo. No liberalismo, a liberdade do indivíduo é a mais alta exigência e mais elementar pressuposição da vida humana. Mesmo o trabalho e a propriedade são posteriores à liberdade. A propriedade e o trabalho só valem ali onde o indivíduo livre vive em uma sociedade livre. O individualismo se opõe ao coletivismo: concepção em que o homem individual fica reduzido a membro de um todo (coletividade) social, perdendo sua consistência pessoal própria. No coletivismo se absolutiza a referência essencial própria do homem à coletividade e se nega o seu ser como pessoa. O individualismo se degenera e se defasa na afirmação da primazia absoluta da individualidade de cada um, negando a essencial vinculação à sociedade. O liberalismo, partindo de filosofias do racionalismo francês e inglês (Descartes, Locke) e de Kant, desenvolve uma teoria social (Locke, Rousseau, A. Smith, J. S. Mill). Esperava-se fundar no sentido de responsabilidade moral, baseada na racionalidade, uma ordem social e política em que a liberdade plena dos indivíduos fosse respeitada. Incluía o reconhecimento dos direitos dos semelhantes, como freio à ânsia egoísta de utilidade própria e de interesse pessoal. O liberalismo, assim como o individualismo, degenera e se defasa na mera promoção da liberdade entendida como independência econômica. O liberalismo econômico proporciona oportunidades mínimas aos que carecem de propriedade e de posses frente aos proprietários e possuidores. A liberdade dos que carecem de propriedade é meramente abstrata. Neste sentido, promove a exploração dos muitos, a massa dos trabalhadores, pelos poucos, a elite (oligarquia, plutocracia). Por isso, é a ideologia da classe dominante. 9 Para esta perspectiva o homem desprovido de propriedade e de trabalho não pode ser livre. O homem verdadeiramente livre é o que é senhor de seu próprio trabalho. Os relacionamentos de trabalho são o que definem ou não liberdade.
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capitalismo. Mas, como chegar a uma tal transformação do mundo, sem interpretar o
mundo – o que ele é (o real) e o que ele deve ser (o ideal)? Entendendo dialeticamente
a sentença de Marx percebemos que interpretação do mundo e transformação do
mundo não somente se opõem, mas se compõem, num plano superior. Que
transformação importa? Na perspectiva de Marx, a transformação dos relacionamentos
produtivos. Onde tem lugar, porém, estes relacionamentos? Na práxis. E pelo que a
práxis é determinada? Por uma certa teoria. Pressuposta é a teoria de que o ente em
seu todo (o todo do real), a realidade (que aqui ganha o sentido de mundo histórico),
está fundada no processo histórico dialético de produção. O homem é produção. Ele se
fabrica a si próprio. Esta concepção de Marx, da realidade e do homem, pressupõe a de
Hegel. Para Marx, o ser é processo de produção. Também o é para Hegel – abstraindo-
se da inversão do idealismo em materialismo histórico. Também Hegel interpretou a
vida como processo, o ser como devir dialético, só que do Espírito. Conclusão: a
transformação do mundo depende da interpretação do mundo.
Os pós-hegelianos entendiam que a filosofia tinha chegado ao seu fim. Marx
entendeu o fim da filosofia no sentido da transformação do saber filosófico em práxis.
Também Heidegger entendeu que vivemos na época do “fim da filosofia”.
Hegel diz: “Na filosofia enquanto tal, na presente, na derradeira, está contido tudo o que o labor de milênios produziu; ela é o resultado de tudo o que antecedeu” (ed. Hoffmeister, 1940, p. 118). No sistema do idealismo especulativo, a filosofia consumou-se, atingiu, em outras palavras, seu ponto mais alto e está, a partir dele, encerrada. A proposição hegeliana acerca da consumação da filosofia escandaliza. Julgam-na pretenciosa e caracterizam-na como equívoco que já foi há muito refutado pela história. Pois, após a época de Hegel, continuou e continua existindo filosofia. Mas a proposição sobre a consumação não quer dizer que a filosofia chegou ao fim, no sentido de um deixar de existir e de uma interrupção. Muito ao contrário, a consumação exerce justamente a possibilidade de múltiplas formas novas, até as mais simples: a brutal inversão e a maciça contraposição. Marx e Kierkegaard são os maiores entre os hegelianos. São-no contra sua vontade. A consumação da filosofia não é nem seu fim, nem consiste apenas no sistema
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isolado do idealismo especulativo. A consumação somente é como marcha total da história da filosofia, marcha na qual o começo permanece tão essencial quanto a consumação: Hegel e os gregos10.
Que sentido tem falar, aqui, de fim da filosofia? Filosofia significa, aqui,
metafísica11. Metafísica quer dizer não uma disciplina da filosofia, mas a essência da
filosofia mesma, de Platão aos nossos dias. Metafísica quer dizer o pensamento que
pensa o ente em sua totalidade – o mundo, o homem, Deus – sob o ponto de vista do
ser, sob o ponto de vista da recíproca imbricação do ente e ser. Desde o seu começo a
filosofia pensou o ser do ente e com ele o fundamento: (arché),(aítion) –
princípio, origem, causa. O fundamento é aquilo a partir de que o ente enquanto tal, em
seu devir, passar e permanecer, enquanto cognoscível, tratável, trabalhado, é o que ele
é. O ser foi tomado nesta história como o fundamento que traz o ente a cada vez para a
sua vigência/presença. O fundamentar tem vários modos, dependendo do tipo de
presença/vigência, que define o ente (o real, o que está sendo). Pode ser o fundar como
causação ôntica (por exemplo, o criar divino na Idade Média), o fundar como
possibilitação transcendental da objetualidade dos objetos (filosofia moderna: Kant), o
fundar como mediação dialética do movimento do Espírito Absoluto (Hegel), o fundar
do real enquanto e no sentido do processo histórico de produção (Marx), o fundar como
vontade para o poder que põe valores (Nietzsche).
Entretanto, em que sentido a filosofia, no sentido da metafísica, que acabamos
de caracterizar, chega ao fim hoje? Aqui é preciso irmos devagar. Logo que ouvimos falar
de fim entendemos o chegar ao fim como algo negativo, como o mero cessar, como o
carecer de progresso, quando não como decadência e incapacidade. Mas não é neste
sentido que falamos, aqui, de fim da filosofia. Fim significa, em primeiro lugar,
consumação. Consumação não significa perfeição (não teríamos parâmetros para dizer
se a filosofia chegou ou não à sua perfeição). Fim quer dizer, aqui, onde termina, o termo
de uma realização. É onde o todo de uma história se recolhe na sua mais extrema
10Heidegger, Martin. Hegel e os gregos. In: Marcas do Caminho. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 441. 11 Heidegger, Martin. O fim da filosofia e a tarefa do pensamento. Em: Conferências e escritos filosóficos (Os pensadores). São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 95.
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possibilidade. Fim, enquanto consumação, quer dizer este recolhimento ou
concentração. Vimos que Hegel considerou – e os hegelianos também – que em sua
filosofia, todo o labor de milênios de história teria chegado a seu termo, a seu êxito.
Podemos considerar isso mais do que mera pretensão, arrogância, vaidade, de um
filósofo. Tentemos levar a sério esta tese. Então ela significa: o Espírito se
dessubstancializou e se tornou sujeito da História, superando dialeticamente todas as
oposições. Assim, o Espírito se tornou absoluto. Já não há nada contra o que se
contrapor. Cada filosofia é uma verdade parcial, com sua própria necessidade histórica,
para que o Espírito chegue à verdade total de si mesmo. O princípio chegou finalmente
ao fim. Alcançou sua transparência, no fim. O fim é o momento em que o Espírito se
torna o Absoluto que ele é. Se princípio é o fim, então temos um círculo. Não se trata de
uma espiral infinita. Trata-se de finitude. Os jovens hegelianos descobriram a finitude e
a facticidade do devir. Tomaram o caminho da existência. Kierkegaard, por exemplo.
Mas também Marx. Em Marx a filosofia enquanto idealismo se inverte: torna-se
materialismo histórico. Em Nietzsche também há uma inversão da metafísica
(platonismo invertido). A consumação da filosofia em Hegel, a abertura da via da
facticidade da existência em Kierkegaard, e as inversões de Marx e de Nietzsche
assinalam, segundo esta leitura que trazemos como proposta, o fim da filosofia, no
sentido de consumação, termo de uma realização milenar, concentração, recolhimento
na sua mais extrema possibilidade.
Outro sinal deste fim é a formação das ciências autônomas, para o que já
acenamos atrás. Não se trata de uma mera dissolução da filosofia, mas de sua
consumação. Daí emerge toma uma gama de ciências independentes da filosofia:
soziologia, antropologia enquanto antropologia cultural, logística (a partir da lógica). As
ciências ganham um caráter técnico. O seu escopo não é o saber, mas o conhecer, no
sentido do dominar. A verdade científica passa a equivaler à eficiência de seus efeitos.
Teoria quer dizer agora suposição de categorias. Estas têm apenas uma função
cibernética (controle e processamento de informações; já não têm sentido ontológico
(como tiveram na sua origem, em Aristóteles). O pensamento, aqui, não é meditação, é
representação e cálculo do real, e tem caráter operacional e de modelo. O fim da
filosofia é o triunfo da instalação controlável de um mundo científico-técnico. A própria
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sociedade passa a ser controlada pelo controle da informação. Todos os aspectos da
vida social são controlados pelos algoritmos. As deliberações dos algoritmos passam a
substituir as decisões humanas12. O fim da filosofia é o começo da civilização mundial,
baseada no pensamento ocidental-europeu, que se impõe, agora, por meio da ciência e
da técnica, cujo domínio apresenta uma envergadura planetária. Num discurso que
pronunciou em 1969, ao completar 80 anos, Heidegger, depois de um discurso do
pensador japonês Tsujimura, se referia à civilização planetária, e à apatridade que ela
trazia consigo em todas partes da terra:
Há um século ela invadiu o Japão. Civilização planetária significa hoje: predominância das ciências hipotético-dedutivas, significa predomínio e primado da economia, da política, da técnica. Tudo o mais já não é nem mesmo supra-estrutura. É apenas mera para-estrutura toda quebradiça. É nesta civilização planetária que estamos. Para ela é que se dirigem as discussões do pensamento. Entrementes a civilização planetária atingiu toda a terra (...). A apatridade é um destino mundial na forma da civilização planetária. É como se a civilização planetária, que o homem moderno não criou mas em que foi “destinado”, trouxesse consigo o obscurecimento da existência humana. De fato é o que parece. Mas seria um erro pensar somente até aí e não ver nada mais, a saber a possibilidade de uma virada. Mas nós não sabemos nada do futuro. Talvez tudo finde numa grande desolação. Taalvez aconteça que algum dia o homem se enfastie dos produtos de suas pretensas produções e de repente comece a questionar. Talvez também possa ocorrer que a desolação atinja tal nível que as necessidades se nivelem a ponto de o homem já nem sentir a decadência interior e o vazio de sua existência. Talvez também possa acontecer outra coisa. Em qualquer caso, como quer que seja ou aconteça: nós não nos devemos queixar, temos é de nos questionar!13
12 Conferir exemplos e análise em: https://theconversation.com/algorithms-have-already-taken-over-human-decision-making-111436. 13 Heidegger, Martin. Discurso dos 80 anos (1969). A morada do homem. In: Revista Vozes, ano 71, n. 04, maio de 1977, 332-333.
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Por toda a parte, na Ásia, na África, nas Américas, na Oceania, a civilização
planetária, baseada no pensamento ocidental-europeu, se impõe. Esta planetarização é
se impõe na forma de um nivelamento, uma igualação, uma homogeneização técnica,
econômica, social, política, cultural. Se impõe através de recursos tecnológicos, de
modelos econômicos, de formas padronizadas de poderes estatais. Um mesmo
paradigma de conhecimento e de ação se estende a toda a terra. E esta extensão leva o
nome de progresso, de desenvolvimento. Mãos, cérebros e corações se regem por estes
padrões de conhecimento e ação. Não se pode negar a força desta deste
desenvolvimento e de suas pretensões planetárias. Mas questionar aquilo que, nisso, se
nos chega como evidências e obviedades. O ideal, o paradigma da civilização planetária,
que opera a europeização do mundo, se impõe, porém, à custa da perda de identidade
e do esvaziamento das diferenças. Ordens milenares de vida de muitos povos, nos
diversos continentes da terra, sucubem à força desta imposição. As independências
políticas dos países conquistados pelos europeus não fizeram os povos retroceder à
situação pré-colonial. A missão política dos novos dirigentes foi conduzir estes povos ao
desenvolvimento – interpretado segundo o paradigma ocidental-europeu. O não
questionamento do ideal de desenvolvimento cabou padronizando e estandartizando
todas as diferenças.
A partir desta situação atual, somos desafiados a olhar para o futuro. O
pensamento, em sua historicidade, acontece a partir do futuro:
O Pensamento fala do futuro, age com o futuro, vive pelo futuro, trabalha para o futuro. É que o pensamento pensa sempre a partir do futuro. Envio de futuro, o Pensamento produz o novo. O novo não é a novidade. O novo é a plenitude do velho. À plenitude pertence tanto realização como interrupção. O novo não é apenas a continuidade. É também ruptura, ou melhor, é continuidade enquanto ruptura na linha do velho. No Pensamento chega a si mesma a diferença de novo e velho, de passado e futuro. Por isso o Pensamento só conhece o mundo passado de novo, isto é, à luz do futuro. Por isso o Pensamento está sempre enviando a ruptura
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do mundo velho na via de um envio futuro. Por isso nenhum mundo gosta de pensar14.
O fim da filosofia é, assim, o convite para a passagem para um outro princípio do
Pensamento. É a partir da situação atual e da escuta do apelo do futuro que nos
voltamos ao passado do pensamento ocidental: ao começo da filosofia, à filosofia
antiga, aos gregos.
Perguntávamos: o que é isto – a filosofia? Conseguimos uma resposta? Nem
mesmo colocamos a pergunta. Apenas demos algumas indicações negativas: que a
filosofia não é nem ciência nem visão de mundo, embora tanto o destino das ciências
quanto o das visões de mundo, no ocidente (e hoje em todo o planeta) têm muito a ver
com a filosofia. Não há um caminho que nos leve da ciência e da visão de mundo à
filosofia. No entanto, há um caminho que leva da filosofia à ciência e à visão de mundo.
E nós, de início e na maior parte das vezes, temos nossa situação hermenêutica, isto é,
a posição prévia, a visão prévia e a conceituação prévia de nossa interpretação da
filosofia, determinada ou a partir da ciência ou a partir da visão de mundo. Isso nos torna
difícil o acesso à filosofia como tal e, em especial, à filosofia do começo e ao começo da
filosofia: os gregos.
Como, porém, abrir um acesso positivo à filosofia como tal? Mais: à filosofia do
começo. Mais ainda: ao começo da filosofia? É o que pretendemos pensar na próxima
reflexão.
14 Leão, Emmanuel Carneiro. A morte do pensador. In: Aprendendo a Pensar. Petrópolis: Vozes, 1989, p. 145-146.