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7/26/2019 Curso Integral - Introducao a Experienci http://slidepdf.com/reader/full/curso-integral-introducao-a-experienci 1/136 Curso Integral Introdução à experiência intelectual de Michel Foucault Primeiro semestre de 2013 1 aulas !ni"ersidade de #ão Paulo $epartamento de Filoso%ia Pro%essor& 'ladimir #a%atle

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Curso IntegralIntrodução à experiência intelectual de Michel Foucault

Primeiro semestre de 20131 aulas

!ni"ersidade de #ão Paulo$epartamento de Filoso%ia

Pro%essor& 'ladimir #a%atle

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Introdução ao pensamento de Michel Foucault

(ula 1

)er com a garganta %echada

“Um pesadelo me persegue desde minha infância: tenho sob os olhos um texto quenão posso ler ou que apenas uma ínfima parte é para mim decifrável. imulo l!"lo#sei que o invento. $epois# o texto de repente se embaralha inteiramente# não possomais ler ou inventar nada# minha garganta se fecha e então eu acordo% &.

'quele que sempre sonhou com textos fugidios que resistem ( apreensão# aquele quedesconfiou de uma leitura que passa ao largo de tal resist!ncia# leitura que s) poderásimular sua compreensão# será protagonista de uma experi*ncia intelectual singular na

hist)ria da filosofia contemporânea. ingular não apenas por ser uma experi!ncia queconcordou em demorar"se diante de ob+etos que# ( primeira vista# não pareciam pr)prios (reflexão filos)fica# como o estatudo da loucura# das pris,es# da sexualidade# da literatura devanguarda# entre outros. ingular porque esta constitui-ão de novos ob+etos de reflexãoesteve indissociável de uma questão de método mais profunda. uestão que se enuncia daseguinte forma: o que significa# para a prática filos)fica# ler um texto/ 0odo texto pode ser ob+eto de uma leitura filosoficamente orientada ou tal leitura deve apenas confrontar"secom textos estabelecidos pelo organon da tradi-ão da filosofia ocidental/ 1# principalmente# o que vem a ser uma “leitura filosoficamente orientada%/ 0ais quest,esestão na base deste que será o ob+eto de análise de nosso curso: a experi!ncia intelectual de2ichel 3oucault.

abemos todos# e 3oucault em primeiro lugar# que o estabelecimento de regras de prática de leitura é a base de todo e qualquer aprendi4ado em filosofia. 2as em um dadomomento de sua hist)ria# a filosofia 5ou# ao menos# uma parte dela6 come-ou a desconfiar sistematicamente de suas práticas. 7ão há d8vidas que aquele quem potenciali4ou estemomento de maneira mais clara foi 2ichel 3oucault. 9omo quem procura escapar de um pesadelo que lhe amedronta desde a infância# 3oucault passou os trinta anos de suaexperi*ncia intelectual sistemati4ando um método de interpreta-ão de sistemas de pensamento que caminhava na contracorrente do que ele pr)prio aprendera como estudantede filosofia. 2étodo que o obrigou a aceitar que a instaura-ão de novos pro+etos filos)ficos passa necessariamente por estratégias peculiares de “negocia-ão% com textos da tradi-ão# oque implica na constante reconsidera-ão sobre a plasticidade dos estilos de leitura. 'dmitir 

tal plasticidade talve4 nos obrigue a rever certas posi-,es. 0alve4 ela nos leve a ver naquiloque normalmente tomamos por “erro de leitura%# por “distor-ão de perspectiva% ou“redu-ão do texto a um mero pretexto% um momento fundamental de todo fa4er filos)fico.ois talve4 não exista fa4er filos)fico sem certos deslocamentos# sem tor-,es ereconfigura-,es.

$e fato# esta será a posi-ão de 3oucault. 9ontrariamente a uma perspectivahegem;nica no meio franc!s de então# que via a filosofia como prática de análise interna da

& 3<U9'U=0# Dits e écrits I, p. >?@

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sistematicidade de textos que comp,em a tradi-ão do pensamento filos)fico. para 3oucault#ler um texto filos)fico é principalmente for-ar a sistematicidade do discurso filos)fico adeparar"se continuamente com seus limites e misturar"se com aquilo que lhe eraaparentemente estranho. 3or-agem que impediria a filosofia de se transformar em :“erpétua reduplica-ão de si mesma# em um comentário infinito de seus pr)prios textos e

sem rela-ão a exterioridade alguma%

?

. 9omentário infinito que nos levaria necessariamente( simples textuali4a-ão de práticas discursivas# ou se+a# a esta prática de análise que ignoraa relevância filos)fica dos espa-os em branco# dos não"ditos# das resist!ncias e das elis,esnecessárias ( instaura-ão de todo discurso fundador.

0odos voc!s sabem do que trata aqui. 9reio que esta é uma questão de sumaimportância porque voc!s estão no interior de um processo de aprendi4agem de leitura.Aoc!s aprenderão técnicas fundamentais para todo e qualquer processo filos)fico de leiturade textos da tradi-ão : saber identificar o tempo l)gico que nos ensina a reconstituir aordem das ra4,es internas a um sistema filos)fico# pensar duas ve4es antes de separar asteses de uma obra dos movimentos internos que as produ4iram# compreender como ométodo se encontra em ato no pr)prio movimento estrutural do pensamento filos)fico#entre outros. 0rata"se de um ensinamento fundamental para a constitui-ão daquilo quechamamos de “rigor interpretativo% que respeita a autonomia do texto filos)fico enquantosistema de proposi-,es e não se apressa em impor o tempo do leitor ao autor. Bigor que noslembra como o ato de “compreender% está sempre subordinado ao exercício de “explicar%.2as ele não define o campo geral dos modos filos)ficos de leitura. 1le define# isto sim# procedimentos constitutivos da forma-ão de todo e qualquer pesquisador em filosofia. 1le éo início irredutível de todo fa4er filos)fico mas# por mais que isto possa parecer )bvio# ofa4er filos)fico vai além do seu início.

=embremos# por exemplo# do que di4 Cant a respeito de seu modo de leitura dostextos filos)ficos : “7ão raro acontece# tanto na conversa corrente como em escritos#compreender"se um autor# pelo confronto dos pensamentos que expressou sobre seu ob+eto#melhor do que ele mesmo se entendeu# isto porque não determinou suficientemente o seuconceito e# assim# por ve4es# falou ou até pensou contra sua pr)pria inten-ão%@.  1stecomentário aparentemente inocente é a exposi-ão de todo um programa de leitura que#aparentemente# não está totalmente de acordo com as regras do rigor interpretativo. 'final#Cant reconhece que sua leitura é# digamos# sintomal. 1le irá procurar aqueles pontos dasuperfície do texto nos quais a letra não condi4 com o espírito# nos quais o autor estranhamente  pensou contra sua própria intenção. 2as o que significa admitir um pensamento que se descola de sua pr)pria inten-ão e que deixa tra-os deste descolamentonos textos que produ4/ odemos di4er que significa# principalmente# estar atento (s regi,estextuais nas quais o pro+eto do sistema filos)fico é traído pelo encadeamento implacável doconceito que insiste em abrir novas dire-,es. 1star atento as estas estruturas que atravessama consci!ncia do texto e que deixam marcas nos caminhos trilhados pela escrita. 'o menosneste ponto# é difícil estar de acordo com Doldsmith# para quem : “as asser-,es de umsistema não podem ter por causas# tanto pr)ximas quanto imaginárias# senão conhecidas dofil)sofo e alegadas por ele%E.

? 3<U9'U=0# Dits et écrits# p. &&F?@ C'70# Crítica da razão pura, ' @&EE D<=$2G0H# Tempo lógico e tempo histórico na interpretação dos sistemas filosóficos, p. &E&

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' hist)ria da filosofia# ao contrário# mostra que é sim possível pensar a partir daquilo que o autor produ4 sem o saber# ou sem o reconhecer. Gsto implica# em 8ltimainstância# aceitar que:

“a filosofia não é nem historicamente nem logicamente fundadora de conhecimento#

mas existem condi-,es e regras de forma-ão do saber aos quais o discurso filos)ficoencontra"se submetido a cada época# como toda forma de discurso com pretens,esracionais%. ois haveria uma espécie de “inconsciente do saber que tem suas pr)prias formas e regras específicas%F. 

Um inconsciente como sistema de regras e leis que age# que configura o campo deexperi*ncias ( revelia do autor. Gnconsciente cu+a melhor figura é a no-ão de uma estruturaque submete a produ-ão textual filos)fica a um “sistema de pensamento% historicamenteconfigurado e determinado. 7este sentido# trata"se de inserir a filosofia e seus textos nointerior da reconstru-ão de práticas discursivas cu+as formas e regras comp,em oinconsciente do saber de uma época. ' estas práticas discursivas com suas regras econdi-,es circunscritas em uma época n)s daremos o nome de “epiteme%. Uma análise dasrupturas e discontinuidades na episteme da cultura ocidental foi o ob+eto exaustivo de  As palaras e as coisas. 1scavar tais epistemes que vinculam a configura-ão da filosofia aoscampos empíricos do saber e das práticas culturais será# ao menos para 3oucault# acondi-ão maior para a reali4a-ão de algo como o ato de “ler um texto filos)fico%. $aí porque# ler um texto filos)fico estará# ao menos durante um primeiro momento# vinculado aum exercício “arqueol)gico%. ois a análise das epistemes não é fun-ão de umametodologia hist)rica no seu sentido tradicional# ele é fun-ão primeiramente de umaar!ueologia do sa"er que:

“endere-ando"se ao espa-o geral do saber# a suas configura-,es e ao modo de ser das coisas que aí aparecem# define sistemas de simultaneidades# assim que a série demuta-,es necessárias e suficientes para circunscrever o solo de uma positividadenova%>.

< que isto significa/ 3oucault admite que a filosofia não é outra coisa que uma“forma cultural 5...6 talve4 a forma cultura mais geral na qual n)s podemos refletir sobre oque é o <cidente%I. 2as isto não quer di4er ignorar sistematicamente a autonomi4a-ão dalegitimidade das esferas do saber na época atual e de propor alguma espécie deimperialismo filos)fico no qual a filosofia teria sempre a 8ltima palavra a di4er a respeitodos desenvolvimentos dos campos empíricos de pesquisa. 7em se trata por outro lado# dedissolver o estatuto aut;nomo do discurso filos)fico# embora isto exi+a uma reconfigura-ãoclara da no-ão mesma de “autonomia%. 2as é certo que esta reconfigura-ão não se deixa ler como dissolu-ão que poderia ser operada através da assun-ão do pro+eto de uma grande“conversa-ão% na qual o discurso filos)fico dep,e suas aspira-,es em fornecer fundamentos aos processos de +ustifica-ão e validade a fim de comparecer como uma dasvo4es que ressoam no campo da cultura 5como o quer Bichard BortJ6. <u ainda através do

F 3<U9'U=0# Dits e écrits, p. &&F?> 3<U9'U=0# #es mots et les choses, p. &EI idem# p. E>I

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embaralhamento sistemático da diferen-a genérica entre filosofia e literatura 5como o quer Kacques $errida6.

Gsto exige# na verdade# a constata-ão de que alguns pro+etos de leitura de textosfilos)ficos 5e de constitui-ão mesma do que é uma tarefa filos)fica6 são solidários deopera-,es de  forçagem e de descentramento discursivo. 0al constata-ão# por sua ve4# é

capa4 de nos indicar que talve4 existam ob+etos que s) podem ser apreendidos na interse-ãoentre práticas e elabora-,es conceituais absolutamente aut;nomas e com causalidades pr)prias. uando 2arx pensa o problema da produ-ão da apar!ncia# ele s) pode pensá"loao construir um ponto de cru4amento entre a análise do processo de determina-ão social dovalor das mercadorias no capitalismo e a reflexão l)gica sobre a dialética entre ess!ncia eapar!ncia a partir de Hegel. 1stas duas séries de saberes são aut;nomas e irredutíveis# umanão depende nem é a “aplica-ão% da outra 5o problema da determina-ão social do valor é daordem da economia política e sua causalidade é economicamente determinada6. 2as taisséries devem se cru4ar para que um certo ob+eto possa ser apreendido. 1 elas devem secru4ar no interior do te$to filosófico. ) a elabora-ão conceitual sobre a dialéticaess!nciaLapar!ncia ou s) a análise econ;mica do problema do valor da forma"mercadorianão seriam capa4es de apreender o “acontecimento% que está em +ogo no pensamento de2arx.

$e fato# é isto que 3oucault tem em mente. 9omo veremos# quando# em  %istória daloucura, define aquilo que ele chama de “grande interna-ão% e que marca um momento demodifica-ão radical no estatuto da loucura que ocorre no século MAGG# ele insiste emmostrar como o significado de tal modifica-ão s) pode ser pensável e apreendido aoarticularmos acontecimentos absolutamente independentes e que seguem l)gicas pr)prias.' medida administrativa que consistiu em internar libertinos# desempregados e loucos emantigos leprosários desativados não participa da mesma l)gica que levou $escartes aconceber# de uma maneira excludente# a rela-ão entre racionalidade e loucura nas &editaç'es.  7o entanto# a reflexão sobre estes dois acontecimentos deve convergir paraque possamos apreender a maneira com que a ra4ão moderna define o que lhe é exterior.

Filoso%ia e ci*ncias humanas

1sta maneira foucauldiana de conceber o que é o trabalho de leitura e interpreta-ãode textos filos)ficos está profundamente ancorada em uma reflexão sobre a nature4a datarefa que a filosofia deve assumir na contemporaneidade. 1sta tarefa é indissociável deuma reflexão demorada sobre o estatuto do que convencionamos chamar de “ci!nciashumanas%. Gsto está claro na pr)pria produ-ão bibliográfica de 2ichel 3oucault.

$e maneira esquemática# podemos di4er que a produ-ão de 3oucault está divida emdois grandes momentos. rimeiramente# ele procurou colocar em marcha uma reflexão delarga escala sobre as condi-,es de possibilidade para a constitui-ão de saberes positivossobre o homem# saberes que tomam o homem por ob+eto. 1stratégia compreensível seestivermos de acordo com o que di4 3oucault:

“0alve4 fa-a parte do destino da filosofia ocidental que# desde o século MGM# algocomo uma antropologia tenha sido possívelN quando digo antropologia# não merefiro a esta ci!ncia particular que chamamos antropologia e que é o estudo dasculturas exteriores ( nossaN por antropologia# entendo esta estrutura propriamentefilos)fica que fa4 com que atualmente os problemas filos)ficos este+am todos

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alo+ados no interior deste domínio que podemos chamar de domínio da finitudehumana Oou se+a# domínio no interior do qual o su+eito aparece como ob+eto positivode um saber determinadoP%Q. 

<u se+a# a filosofia moderna e seu pro+eto é indissociável de uma reconstru-ão das rela-,es

necessárias entre ela e os campos empíricos que permitem uma reflexão sobre uma figurado su+eito entificada na concep-ão do homem como ob+eto das ci!ncias humanas. 7estesentido# a tarefa filos)fica da contemporaneidade é# ao menos para 3oucault# solidária deuma epistemologia. ' reflexão filos)fica é fundamentalmente reflexão epistemologia# quer di4er# reflexão historicamente orientada sobre a constitui-ão de ob+etos do discursocientífico. Um conceito de epistemologia hist)rica que 3ocault herda desta tradi-ãoepistemol)gica francesa presente em nomes como Daston Rachelard# 'lexandre CoJrS eDeorges 9anguilhem.

 7este sentido# os quatro primeiros livros de 3oucault estão organicamentearticulados entre si.  Doença mental e personalidade 5&TFE# posteriormente reeditado em&T>? como Doença mental e psicologia6#  #oucura e desrazão( a história da loucura naidade cl)ssica 5&T>&6# * nascimento da clínica 5&T>@6 e  +amond +oussel 5&T>@6estruturam uma articula-ão cru4ada. * nascimento da clínica e Doença mental e psicologia procuram dar conta de uma certa arqueologia deste olhar capa4 de constituir o homemcomo ob+eto de um saber clínico. Ká  %istória da loucura e  +amond +oussel  procuram#cada um a sua maneira# expor o processo de transforma-ão da loucura de “experi!nciatrágica do mundo%# que atualmente s) encontraria lugar em experi!ncias estéticas como asde Boussel# 'rtaud# 7erval# em doen-a mental# ob+eto privilegiado de um olhar clínico.

' fim de refletir sobre esta antropologia que permite o advento do homem# 3oucaulttoma inicialmente como ponto privilegiado uma reflexão sobre o campo da psicologia# oque não deve nos estranhar +á que sua forma-ão é híbrida. =icenciado em psicologia ediplomado em psicologia patol)gica# 2ichel 3oucault nunca deixou de alinhar suaforma-ão filos)fica a uma reflexão ampla sobre a clínica.

' ra4ão de tal hibridismo não é difícil de adivinhar. $esde o início de suaexperi!ncia intelectual# 3oucault parece animado pelo dese+o de mostrar como adetermina-ão da racionalidade das práticas clínicas de interven-ão é um setor privilegiadoda ra4ão e de seus modos de racionali4a-ão. 7este sentido# a técnica e quest,esaparentemente técnicas são pontos maiores de compreensão dos modos com que umaracionalidade historicamente determinada racionali4a os campos da praxis. ois nenhum problema clínico é simplesmente um problema clínico ligado apenas a condi-,es neutras deeficácia de interven-ão. roblemas clínicos são o resultado da constitui-ão de um olhar instaurados de condi-,es de normalidade# olhar capa4 de organi4ar distin-,es operacionaisentre o normal e o patol)gico. $esta forma# quest,es que parecem obedecer a umdesenvolvimento ditado apenas pelo estado da técnica ou pela configura-ão natural do dadomostram"se# ao contrário# como espa-os privilegiados nos quais a ra4ão configura#silenciosamente# os campos da experi!ncia possível. ' distin-ão entre o normal e o patol)gico é apenas um setor# talve4 o mais sensível# da partilha moderna entre ra4ão edesra4ão. 1la permite a configura-ão inicial de um procedimento peculiar de crítica dara4ão que parte da análise exaustiva dos modos de seus processos de racionali4a-ão decertos campos da práxis científica. $aí esta exig!ncia foucauldiana de transformar a

Q 3<U9'U=0# Dits et écrits, p. E>I

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filosofia em verdadeiro programa interdisciplinar V onde pesquisas de ordem hist)rica#sociol)gica e clínicas se articulam. 3oucault tem consci!ncia clara de que inova na maneirade pensar o que é o trabalho filos)fico: “' %istória da loucura e os textos que a seguiramsão exteriores ( filosofia# ( maneira com que# na 3ran-a# ela é praticada e ensinada% T.

' partir de &T>># com o aparecimento de  As palaras e as coisas,  podemos di4er 

que 3oucault mostra claramente suas cartas. eu subtitulo não poderia ser mais claro : Uma arqueologia das ci!ncias humanas V. <u se+a# trata"se de uma arqueologia dasci!ncias humanas no sentido de um esfor-o de reflexão que visa dar conta das condi-,es de possibilidade do advento de um discurso no qual o homem pode ser# ao mesmo tempo#aquele que toma a si mesmo e (s suas condutas como ob+eto de conhecimento e aquele queorgani4a o campo no qual tal ob+eto pode constituir"se. ara tanto# 3oucault organi4ará odesenvolvimento das estruturas do saber em tr!s grandes epistemes: esta que vai até aBenascen-a# a clássica e a moderna. 9ompreendamos# inicialmente# estas epistemes comoestruturas de racionalidades implementadas pela multiplicidade de práticas discursivas emum determinado momento hist)rico. 1struturas de valor transcendental# mas temporalmentedeterminadas. $aí porque Habermas# por exemplo# poderá ver em 3oucault uma espécie deWhistoricismo transcendentalW. 3oucault preferia o termo de “a priori hist)rico%.

2as# para além desta questão# lembremos como esta arqueologia tem um interessemais geral. ois todo o esfor-o de 3oucault consistirá# de uma certa forma# a mostrar comoo advento das ci!ncias humanas e a configura-ão da ra4ão moderna estão profundamentevinculados. 0anto que# em As palaras e as coisas, é o advento das ci!ncias humanas quemarca a consolida-ão dos dispositivos categoriais de apreensão de ob+eto pr)prios ( ra4ãomoderna. ' sua maneira# 3oucault con+uga uma temática presente na hist)ria da filosofia aomenos desde Hegel: a critica da ra4ão é indissociável da crítica da figura da consci!ncia pressuposta por opera-,es que aspiram racionalidade. $aí porque as baterias de 3oucaultsão claramente direcionadas contra a categoria do su+eito e as m8ltiplas vers,es de umafilosofia do su+eito. 'final# uma reflexão arqueol)gica tende a mostrar que: “o homem éapenas uma inven-ão recente# uma figura que não tem dois séculos# uma simples dobra emnosso saber e que desaparecerá desde que este saber encontre uma nova forma%&X. Homemque nasceu com a configura-ão da episteme moderna e irá desaparecer com ela. < livrotermina assim com a defesa de um dos grandes motivos do pensamento franc!s dos 8ltimosquarenta anos: a morte do su+eito# esta aposta de que: “o homem desaparecerá# como umrosto de areia no limite do mar%&&. 1sta temática da morte do su+eito com seu anti"humanismo que tra4 conseqY!ncias maiores para a compreensão das aspira-,es modernasde emancipa-ão# nos parece fornecer um ponto privilegiado de introdu-ão ao pensamentofranc!s contemporâneo.

Por uma auto+cr,tica da ra-ão

9omo veremos# a experi!ncia intelectual de 2ichel 3oucault não irá terminar nesteenquadramento da reflexão filos)fica no interior dos procedimentos pr)prios a umaarqueologia do saber que visa# ao mesmo tempo# fornecer uma perspectiva historicistarenovada sobre a g!nese dos saberes positivos com suas aspira-,es de racionalidade efornecer uma crítica a toda e qualquer filosofia do su+eito 5o que permitia a 3oucault

T 3<U9'U=0# Dits et écrits, p. &&FX&X 3<U9'U=0# #es mots et les choses, p. &F&& idem# p. @TQ

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colocar"se na contramão do hegelianismo e da fenomenologia então em voga na 3ran-a dosanos cinqYenta6. ' partir dos anos setenta# o pro+eto foucauldiano caminhará em dire-ão(quilo que chamamos de “genealogia do poder%. eus textos serão dedicados ( maneiracom que a ra4ão moderna sempre foi indissociável de modos de racionali4a-ão dadimensão prática vinculados (s premissas de um bio"poder. 'o estudar a constitui-ão do

sistema punitivo moderno# com seu ordenamento +urídico e suas pris,es# ao estudar (s práticas governamentais de gestão social# ao estudar a hist)ria da sexualidade# 3oucault procurava apenas uma coisa: compreender como a ra4ão é indissociável de um mecanismode normati4a-ão da vida.

$e fato# 3oucault cunhara o termo bio"poder a fim de dar conta da centralidade# naconsolida-ão do poder na modernidade# daquilo que o fil)sofo chama de Wadministra-ãodos corposW e de Wgestão calculista da vidaW. Uma perspectiva de análise do poder queencontrava raí4es nas suas pesquisas a respeito do saber médico e dos dispositivos clínicosenquanto espa-o privilegiado de opera-ão de uma racionali4a-ão da vida que se invertia emdispositivo de domina-ão.

2as# aos poucos# 3oucault irá ampliar suas considera-,es. 0ratava"se de sair doregime de economia restrita pr)pria ( reflexão sobre o saber clínico# isto a fim de alcan-ar a generali4a-ão de uma verdadeira genealogia do poder capa4 de expor a l)gica de inversãoda ra4ão em domina-ão# da norma racional em seu outro# isto nas várias esferas de valoresda modernidade. Gsto foi feito# principalmente# a partir dos anos setenta.

2uito haverá a se di4er a respeito do que está em +ogo na constitui-ão de tal programa. 2uito haverá a se di4er porque muito +á foi dito a respeito desta tentativafoucauldiana de submeter todos processos de constitui-ão dos saberes# todos os processosde fundamenta-ão da crítica a uma genética das formas de poder. 9omo se# no final dascontas# tivéssemos# com 3oucault# uma espécie de submissão geral das expectativas deracionalidade a reflex,es sobre estruturas de poder inspirada na genealogia niet4scheana#como se toda tentativa de fundar um discurso racional acabasse por inverter"se em modosastutos de domina-ão. Gnterversão da racionalidade em domina-ão que nos levariadiretamente ao relativismo p)s"moderno ou# na melhor das hip)teses# a um certo cetiscismoepistemol)gico selvagem.

1sta foi uma maneira de desqualificar a crítica foucauldiana ( ra4ão moderna# assimcomo a crítica de toda uma gera-ão de fil)sofos franceses 5$errida# =Jotard# $eleu4e e3oucault6 +ogando"os na vala comum do “p)s"modernismo%. Aala na qual estariamenterrados aqueles que# em nome da hip)stase da $iferen-a# do $ese+o# da 'lteridadeteriam assumido o pro+eto impossível de uma crítica totali4ante da ra4ão. 9rítica que s) poderia resvalar no mais completo relativismo ou no puro e simples irracionalismoesteti4ante. $esta forma a problemati4a-ão destes autores em rela-ão a alguns operadoresfilos)ficos maiores# como o universalismo# a identidade# a verdade unívoca# o su+eito e ainterversão da ra4ão em processo de domina-ão acaba sendo rapidamente desqualificada.

=embremos# por exemplo# daquilo que Habermas di4 a respeito de 3oucault e de suatentativa de crítica da ra4ão através da articula-ão de uma genealogia do poder : “' hist)riadramática da influ!ncia de 3oucault e a sua reputa-ão de iconoclasta seriam difíceis deexplicar se a fachada glacial do historicismo radical não cobrisse meramente as paix,es domodernismo estético%&?. <u se+a# por trás do pro+eto foucauldiano haveria a verdade de umcerto irracionalismo estético fascinado pela viol!ncia modernista da dissolu-ão do su+eito

&? H'R1B2'# * discurso filosófico da modernidade, p. ?FT

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5lembremos da paixão com que 3oucault lera Rataille# Boussel# ade6 acabando# com isto# por abandonar os potenciais emancipat)rios da ra4ão.

 7o entanto# veremos como críticas desta nature4a erram completamente o alvo. 1laserram o alvo por não identificarem o que procura exatamente 3oucault. Gmpressionadas pela temática da presen-a inflacionada da temática do poder# tais críticas temem o

“irracionalismo% advindo da impossibilidade de garantir a posi-ão de um solo estável para acompara-ão e clarifica-ão de +ulgamentos que se pretendam racionais# para além de todadinâmica pr)pria (s rela-,es de for-a. 7o entanto# podemos di4er# com Rento rado K8nior:

“Grracionalismo é um pseudoconceito. ertence mais ( linguagem da in+8ria do queda análise. ue conte8do poderia ter# sem uma prévia defini-ão da Ba4ão/ 9omo hátantos conceitos de Ba4ão quantas filosofias há# dir"se"ia que irracionalismo é afilosofia do <utro. <u pastichando uma frase de 1mile Rréhier que# na ocasião# ponderava as acusa-,es de “libertinagem%# poderíamos di4er: “<n est tou+ours lZirrationaliste de quelqueZun%&@.

Aeremos# na verdade# como 3oucault é animado pela reflexão sobre as condi-,es de possibilidade de uma nova filosofia transcendental. Uma filosofia transcendental liberadada filosofia da consci!ncia# filosofia capa4 de mostrar como uma certa antropologia aindase insinuaria na fundamenta-ão de questionamentos transcendentais tradicionais. Um poucocomo se a reflexão transcendental tivesse sido contaminada por uma “confusão entre oempírico e o transcendental% no interior da qual “a análise pré"crítica do que o homem é emsua ess!ncia se transforma na analítica de tudo o que pode se dar em geral ( experi!ncia dohomem%&E. 7a verdade# gostaria de mostrar como o que convencionou"se chamar de “p)s"estruturalismo% era o esfor-o filos)fico de reconstitui-ão das condi-,es para oquestionamento transcendental# mas a partir de uma nova den8ncia da confusão entreantropol)gico e transcendental# ou entre psicol)gico e transcendental. Gsto é válido tanto para 3oucault como para $eleu4e e $errida.

.strutura do curso

' fim de alcan-ar tais ob+etivos# nosso curso será dividido em tr!s m)dulos. 9adam)dulo terá de quatro a cinco aulas e será organi4ado a partir do comentário de um livrofundamental na compreensão da experi!ncia intelectual de 3oucault. <utros textos menoresserão utili4ados como direcionadores de discussão. <s comentadores serão indicados nodecorrer do curso.

< primeiro m)dulo será dedicado ( leitura de  %istória da loucura. 0rabalharemos# principalmente# a primeira de suas tr!s parte e o 8ltimo capítulo da terceira parte# esteintitulado “< círculo antropol)gico%. 2as antes de iniciarmos a leitura de  %istória daloucura, teremos uma aula dedicada ( apresenta-ão de uma vertente fundamental dafilosofia francesa cu+a influ!ncia em 3oucault é visível: a epistemologia hist)rica deRachelard# CoJrS e 9anguilhem 5diretor de tese de  %istória da loucura6. 7esta aula# seráquestão principalmente do comentário de algumas teses fundamentais de “< novo espíritocientífico% e “< normal e o patol)gico%. uando estivermos analisando o capítulo de %istória da loucura intitulado “' grande interna-ão%# daremos espa-o para a análise da

&@ B'$< KB# -rro, ilusão, loucura, p. ?F>&E 3<U9'U=0# 2ichel N #e mot et les choses, p. @F?

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 pol!mica que envolveu 3oucault e $errida a respeito da tese foucauldiana sobre o cogitocartesiano como momento de expulsão da loucura. 7este sentido# comentadoremos o textode $errida “9ogito e hist)ria da loucura%# assim como as réplicas de 3oucault.

'o final deste m)dulo# dedicaremos ainda uma aula ao comentário de um pequenotexto de 3oucault intitulado “' loucura# aus!ncia de obra%. 0rata"se de um texto

 privilegiado para medirmos o impacto de uma segunda tradi-ão que irá influenciar atra+et)ria de 3oucault e a composi-ão de seu primeiro grande livro: o “pensamento datransgressão% de Rataille e Rlanchot marcado pelas experi!ncias disruptivas domodernismo estético. Um outro texto de 3oucault cu+a leitura é recomendável nestem)dulo intitula"se Doença mental e psicologia, reescrito ( mesma época que %istória da #oucura.

 7osso segundo m)dulo será dedicado ( leitura de As palaras e as coisas. 'ntes deabordar o texto# teremos uma aula dedicada ao estruturalismo# +á que o livro de 3oucault é#sem d8vida# a reali4a-ão filos)fica mais claramente vinculada a este momento da reflexãosobre as ci!ncias humanas em solo franc!s. < texto"guia desta aula será “9omoreconhecemos o estruturalismo/%# de Dilles $eleu4e. 'o final do m)dulo# teremos aindauma aula dedicada ao comentário de outro pequeno texto de 3oucault: “< que é um autor/%.0rata"se de um texto importante por apresentar claramente a posi-ão de 3oucault a respeitoda temática da morte do su+eito e de confrontá"la com Kacques =acan# influ!ncia importantede 3oucault.

or fim# nosso terceiro e 8ltimo m)dulo será dedicado ( leitura de  %istória da se$ualidade, em especial seu primeiro livro “' vontade de saber%. ' fim de introdu4ir oconceito de “genealogia do poder%# leremos o texto “7iet4sche# a genealogia e a hist)ria%.0ambém gostaria de comentar dois cursos ministrados no 9ollSge de 3rance que sãodecisivos na constitui-ão do conceito de bio"poder# a saber# “< nascimento da biopolítica% e“eguran-a# territ)rio# popula-ão%. Aeremos ainda dois desdobramentos importantes doconceito foucauldiano de bio"poder através de dois fil)sofos que tomaram a reflexão de3oucault como ponto de partida: Diorgio 'gamben com sua no-ão de homo sacer 5o primeiro capítulo de um livro que se chama exatamente  %omo sacer 6 e Kudith Rutler comsuas reflex,es sobre teoria de g!neros em  ro"lemas de g/nero, em especial o capítulointitulado: “3oucault# Herculine e a política da descontinuidade sexual%.

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(ula 2

Introdução à experiência intelectual de Michel Foucault

 

 7a aula de ho+e# iniciaremos nosso primeiro m)dulo sobre a forma-ão da experi!ncia

intelectual de 2ichel 3oucault. 0rata"se aqui de analisar este período que vai da forma-ãointelectual de 3oucault até a reda-ão de %istória da #oucura, em &T>&.0alve4 a melhor de analisarmos tal período se+a levando em conta a maneira com

que o pr)prio 3oucault compreende o ambiente intelectual no interior do qual ele aparecerá.<u se+a# trata"se de levar a sério esta opera-ão de interpreta-ão das linhas de for-a quegeraram um programa filos)fico determinado. <pera-ão que exige uma certareconfigura-ão a posteriori da hist)ria da filosofia# uma certa filtragem constituída paralegitimar escolhas e estratégias intelectual. endo assim# devemos nos perguntar como3oucault organi4a e compreende as linhas de for-a que atuaram na configura-ão de seu programa filos)fica. ' resposta a esta pergunta nos é fornecida pelo pr)prio 3oucault:

em desconhecer as clivagens que puderam# durante estes 8ltimos anos e desde ofinal da guerra# opor marxistas e não"marxistas# freudianos e não"freudianos#especialistas de uma disciplina e fil)sofos# universitários e não"universitários#te)ricos e políticos# parece"me que poderíamos encontrar uma outra linha de partilhaque atravessa todas estas oposi-,es. 0al linha é aquela que separa uma filosofia daexperi!ncia# do sentido# do su+eito e uma filosofia do saber# da racionalidade e doconceito. $e um lado# uma filia-ão que é esta de 2erleau"ontJ e artreN de outro#esta de 9availlSs# Rachelard# CoJré e 9anguilhem. em d8vida# esta clivagem vemde longe e poderíamos seguir seus tra-os através do século MGM: Rergson eoincaré# =achelier e 9outurat# 2aine de Riran e 9omte&F.

1sta afirma-ão é extremamente importante devido a sua clare4a. 3oucaultcompreende as linhas principais de for-a do pensamento franc!s desde o iluminismo comoo desdobramento de uma clivagem entre “filosofias do su+eito% e “filosofias do conceito%.9livagem esta que teria alcan-ado o século MM através da confronta-ão entrefenomenologia e epistemologia.

 7otemos inicialmente quão contra"intuitiva é esta maneira de pensar# a come-ar  pelo fato da fenomenologia e da epistemologia francesa nunca terem se auto"compreendidos como opostos fundamentais. 'penas para ficar em um caso# basta lembrar aqui das proximidades evidentes entre as perspectivas holísticas de * normal e o patológico, de 9anguilhem# e de A estrutura do comportamento, de 2erleau"ontJ. < quenão poderia ser diferente +á que os dois são leitores atentos e influenciados por CurtDoldstein. Gsto sem falar no fato do +ovem 3oucault de  Doença mental e psicologia ter sidoinfluenciado# de maneira decisiva# por um autor que certamente ficaria do lado da filosofiado su+eito: Deorges olit4er de Crítica dos fundamentos da psicologia.

2as não contente com o fato# 3oucault insere a fenomenologia em uma linhainusitada composta por Rergson# =achelier e 2aine de Riran# isto enquanto a epistemologiaencontra suas raí4es no positivismo de 'ugusto 9omte. 3eita esta partilha# 3oucault poderáafirmar que seu programa filos)fico# programa este que vai configurar"se claramente pela

&F 3<U9'U=0# #a ie( l0e$périence et la science in $its et écrits GG# p. &FQ@

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 primeira ve4 através da constitui-ão do campo de uma arqueologia do saber# insere"seclaramente na segunda linhagem# o que o coloca em frontal oposi-ão com a fenomenologiafrancesa e suas temáticas. Uma oposi-ão que nos explica# entre outras coisas# a alian-a que3oucault fará# nos anos >X# com uma outra corrente que# esta sim# afirmava suas diferen-asfundamentais com artre e 2erleau"ontJ: o estruturalismo.

2as mais interessante do que discutir a dicotomia de 3oucault é tentar compreender sua fun-ão. ois ela aponta para um problema maior a guiar toda a experi!ncia intelectualfoucauldiana. 0rata"se de criticar toda tentativa de pensar o problema da produ-ão dosentido fa4endo apelo a alguma forma de sub+etividade constitutiva que poderia# sempre dedireito# apreender tais processos de produ-ão no interior da consci!ncia. 9ontra isto#3oucault apelaria a uma filosofia ligada a uma corrente muito peculiar da epistemologiaque poderíamos chamar de “epistemologia hist)rica%.

.pistemologia hist/rica e hist/ria da ra-ão

oderíamos come-ar aqui lembrando da peculiaridade maior da tradi-ãoepistemol)gica francesa a qual 3oucault se vincula. Uma tradi-ão que não compreende atarefa da epistemologia como funda-ão de uma teoria do conhecimento baseada na análisedas faculdades cognitivas e da estrutura possível da experi!ncia. 'ntes# nomes como9anguilhem# Rachelard# 9availlSs e CoJré são lembrados por vincularem radicalmentereflexão epistemol)gica e reconstru-ão de uma hist)ria das ci!ncias. 0ratava"se deesclarecer a g!nese dos padr,es de racionalidade presentes nas ci!ncias através de uma profunda articula-ão entre hist)ria das ci!ncias e algo que poderíamos chamar# na falta deum nome mais preciso# de hist)ria das idéias ou# se quisermos utili4ar um termo mais pr)ximo de 3oucault# de hist)ria dos sistemas de pensamento. CoJré# por exemplo#afirmará que:

“' evolu-ão do pensamento científico# ao menos durante o período por mimestudado# não formava uma série independente# mas estava # ao contrário#fundamentalmente ligado ( evolu-ão de idéias transcientíficas, filos)ficas#metafísicas# religiosas%. Gsto a fim de fornecer# como exemplo# o fato de que: “o pensamento científico e a visão de mundo que ele determina não está apenas presente nos sistemas [ tais como os de $escartes e =eibni4 [ que se ap)iamabertamente na ci!ncia# mas também em doutrinas [ tais como as doutrinas místicas [ aparentemente estranhas a toda preocupa-ão desta nature4a. < pensamento#quando ele se formula em sistema# implica uma imagem# ou melhor# uma concep-ãode mundo e se situa em rela-ão a ela: a mística de Roehme é rigorosamenteincompreensível sem refer!ncia ( nova cosmologia criada por 9opérnico%&>.

<u se+a# um sistema de pensamento é algo pr)ximo a uma estrutura de compreensãoque tece profunda articula-ão com elabora-,es conceituais vindas de campos aut;nomos desaberes# práticas e cren-as. 0al certe4a fornece o sentido de uma afirma-ão metodol)gicacentral de 9anguilhem:

&> C<\B]# -tudes d0histoire de la pensée scientifi!ue, pp &?"&@

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' hist)ria das idéias não pode ser necessariamente superposta ( hist)ria dasci!ncias. orém# +á que os cientistas# como homens# vivem sua vida num ambiente enum meio que não são exclusivamente científicos# a hist)ria das ci!ncias não podenegligenciar a hist)ria das idéias&I.

odemos mesmo di4er que a hist)ria das ci!ncias não pode negligenciar a hist)riadas idéias porque a história das ci/ncias não seria outra coisa !ue um setor priilegiadoda história dos processos de racionalização de is'es partilhadas de mundo.

3oucault procura defender tal perspectiva lembrando que a g!nese destaepistemologia hist)rica na 3ran-a deveria ser procurada no positivismo de 'ugusto 9omte.9olocar 9omte na origem não era uma decisão gratuita. 7a 3ran-a# foi sobretudo o positivismo de 9omte que apareceu como maneira de retomar a indaga-ão sobre a nature4ados processos de racionali4a-ão pr)prios a modernidade. Gndaga-ão que não deixava dearticular# no seu interior# uma hist)ria geral das sociedades e uma discussão a respeito da positividade das ci!ncias. $aí porque 3oucault pode di4er que:

 7a 3ran-a# foi sobretudo a hist)ria das ci!ncias que serviu de suporte ( questãofilos)fica sobre o que é a  Auf1lãrung2 de uma certa forma# as críticas de aint"imon# o positivismo de 9omte e de seus sucessores foi uma maneira de colocar aindaga-ão de 2endelssohn e de Cant Osobre * !ue é o esclarecimento/P na escalade uma hist)ria geral das sociedades&Q.

 7o caso de 9omte# o problema sobre o que é o esclarecimento é con+ugado nointerior de uma reflexão sobre processos de evolu-ão e desenvolvimento que visamfundamentar uma teoria do progresso social. Uma teoria feita de “cortes epistemol)gicos% ede inser-ão do desenvolvimento da positividade das ci!ncias no interior do pro+etoocidental de desenvolvimento universal da ra4ão.

1sta articula-ão entre epistemologia e reflexão sobre a estrutura dos padr,es deracionali4a-ão permitirá a 3oucault afirmar que o terreno estava aberto para atransforma-ão da epistemologia em linha de frente da crítica da ra4ão. Rastava ummovimento locali4ado# porém prenhe de conseqY!ncias. Um movimento que consistia emretirar o solo realista sobre o qual a epistemologia se movia 5e que assegurava ainda umadire-ão cumulativa do progresso científico6# isto em prol da compreensão do progressocientífico como uma sucessão descontínua de discursos# historicamente limitados# sobre omundo. e para o positivismo# a hist)ria não era mais do que uma “in+e-ão de dura-ão naexposi-ão dos resultados científicos%&T# +á que os critérios de valida-ão de tais resultadosestão para além da hist)ria# para 3oucault# ela era a chave para compreender a constitui-ãomesma dos critérios de validade de enunciados científicos.

$e fato# Rachelard com sua no-ão central de corte epistemol)gico# assim comoCoJré e 9anguilhem insistiram no caráter descontínuo da hist)ria das ci!ncias. 9anguilhemlembra# por exemplo# que =avoisier assumira a responsabilidade de duas decis,es maiores:ter mudado a língua que nossos mestres falavam e não ter dado hist)rico algum da opiniãodos que lhe precederam. <u se+a# trata"se da funda-ão de um saber que opera na

&I 9'7DUG=H12# * normal e o patológico,# p. ?F&Q 3<U9'U=0# #a ie2 #0e$périence et la science, p.# &FQF&T 9'7DUG=H12# -tudes d0histoire de la pensée scientifi!ue, p. &?

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descontinuidade de um acontecimento que exige a reconfigura-ão da linguagem e asuspensão do passado. $escontinuidades desta nature4a permitem a 3oucault afirmar que:

' hist)ria das ci!ncias não é a hist)ria do verdadeiro# da sua lenta epifania# ela nãosaberia pretender contar a descoberta progressiva de uma verdade sempre inscrita

nas coisas ou no intelecto# salvo a imaginar que o saber atual possui enfim talverdade de maneira tão completa e definitiva que ele pode medir o passado a partir dela?X.

 7o entanto# uma coloca-ão desta nature4a deixa em aberto uma questão maior: pois ahist)ria das ci!ncias não pode negligenciar o problema da rela-ão (s expectativas dedescri-,es verdadeiras de estados de coisa. 3oucault sabe disto# ele sabe que a refer!ncia aoverdadeiro e ao falso é pe-a fundamental da especificidade do discurso científico. 2as eleinsistirá se trata# fundamentalmente de compreender a hist)ria das ci!ncias como:

a hist)ria dos Zdiscursos verídicosZ# ou se+a# dos discursos que se retificam# secorrigem e que operam sobre eles mesmos todo um trabalho de elabora-ãofinali4ada pela tarefa do “di4er verdadeiro%?&.

1ste desli4amento# da confronta-ão com um estado de coisas dotado# ao mesmotempo# de acessibilidade epist!mica e autonomia metafísica# a uma análise dos discursosque aspiram validade# análise dos modos de um di4er que se p,e como di4er da verdade fa4toda a diferen-a e é especificamente foucauldiana. 7em Rachelard# nem CoJré# nem9anguilhem foram tão longe. 9anguilhem# por exemplo# também aceitava que o ob+eto dahist)ria das ci!ncias era a “historicidade do discurso científico enquanto que talhistoricidade representa a efetiva-ão de um pro+eto interiormente submetido a normas% ??#ou se+a# a hist)ria das ci!ncias fala do discurso científico e suas aspira-,es normativasinternas. 7o entanto# ele não deixava de insistir na distin-ão entre ob+eto da hist)ria dasci!ncias e ob+etos da ci!ncia# mesmo que não se trate de um ob+eto naturali4ado. Gstosignifica que# em certas situa-,es# 9anguilhem poderá comparar o ob+eto da ci!ncia com oob+eto da hist)ria da ci!ncia.# encontrado uma norma que determina a hist)ria# ao invés deser simplesmente determinada por ela.

] tal desli4amento que permite comentadores como eter $e^s afirmar: “na obra de3oucault# a rela-ão entre teoria e experi!ncia é apresentada como uma rela-ão determinadade maneira unidirecional. 3oucault# ao menos o 3oucault dos anos >X# adota o primado dodiscursivo sobre o “vivido% que é claramente influenciado de mais pesada peloestruturalismo%?@. 9omo veremos em outras aulas# tal primado é fundamental para que atransforma-ão foucauldiana da epistemologia em um setor privilegiado da auto"crítica dara4ão ou 5para usar um vocabulário fran_furtiano a respeito do qual o pr)prio 3oucault sesente pr)ximo6 em um setor de crítica da racionalidade instrumental possa ser efetivado.

$e qualquer forma# fica claro aqui uma das ra4,es pelas quais 3oucault precisaoperar uma clivagem na filosofia francesa entre a vertente epistemol)gica da “filosofia doconceito% e a vertente fenomenol)gica da “filosofia do su+eito%. ' dita filosofia do conceito#

?X 3<U9'U=0# idem# p. &FQQ?& idem# p. &FQQ?? 9'7DUG=H12# -tudes de histoires et de philosophie des sciences, p. &I?@ $1`# 3oucault and the french tradition of historical epistemolog, p. E?

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com sua no-ão hist)rica e alargada de hist)ria das ci!ncias# permite a temati4a-ão do processo de constitui-ão de estruturas discursivas que determinam a configura-ão da positividade das ci!ncias e de expectativas gerais de racionalidade. 9om isto# ela nosliberaria da ilusão do su+eito como p)lo produtor de sentido da experi!ncia.

$e onde %ala auele ue percee um exterior

Aoltemos# por exemplo# os olhos para a reflex,es iniciais de 3oucault sobre oadvento do saber psiquiátrico e do saber psicol)gico. 7os dois casos# tratava"se de colocar em opera-ão aqui uma “epistemologia hist)rica ( contrapelo% capa4 de mostrar a origem dacientificidade pr)pria a um domínio empírico do saber ?E. $esta forma# a epistemologiahist)rica de 3oucault se transformava em uma espécie de “contra"hist)ria das ci!ncias% quevisava expor o processo complexo de constitui-ão# ao mesmo tempo# do discurso científicoque aspira validade e do ob+eto da ci!ncia 5que se confundia aqui com o pr)prio ob+eto dodiscurso científico6?F. 1xpor uma análise dos processos de implementa-ão de critériosdiscursivos de verdade# de constru-ão de limites e de táticas de exclusão que deveriam ser criticados tendo em vistas o desvelamento da maneira com que padr,es hist)ricos deracionalidade fundamentam e constroem a legitimidade de suas opera-,es.

=ivros como Doença mental e psicologia e %istória da loucura  procuravam colocar em opera-ão este método que consiste em mostrar quais as condi-,es de possibilidade parao nascimento da “doen-a mental% como ob+eto de um discurso científico positivo einstrumental. 1les lembravam que a discussão sobre decis,es clínicas a respeito dadistin-ão entre normal e patol)gico são# na verdade# um setor de decis,es maisfundamentais da ra4ão a respeito do modo de defini-ão daquilo que aparece como  seu<utro 5a patologia# a loucura etc.6. 1las se inserem em configura-,es mais amplas deracionali4a-ão que ultrapassam o domínio restrito da clínica. ' distin-ão entre normal e patol)gico# entre sa8de e doen-a é o ponto mais claro no qual a ra4ão se coloca comofundamento de processos de administra-ão da vida# como prática de determina-ão doequilíbrio adequado dos corpos em suas rela-,es a si mesmos e ao meio ambiente que osenvolve. 7o caso da distin-ão entre sa8de e doen-a mental# vemos ainda como a ra4ãodecide# amparando práticas médicas e disciplinares# os limites da partilha entre liberdade ealiena-ão# entre vontade aut;noma e vontade heter;noma.

 7o entanto# percebamos como# na  %istória da loucura, o processo hist)rico deconstitui-ão de categorias e de ob+etos de ci!ncias que aspiram positividade# como a psiquiatria e a psicologia# não será mais a narra-ão das descobertas e experi!ncias bem"sucedidas. 1le será a narra-ão de uma e$peri/ncia de e$clusão como condi-ão para oadvento de critérios de normalidade e de normal. Uma narra-ão bem descrita por 3oucaultnos seguintes termos# no prefácio ( primeira edi-ão de  %istória da loucura:

?E $aí porque comentadores podem afirmar que: “0he ^aJ in ^hich psJchologJ or psJchiatrJ remember theirhistories is based# in 3oucaultZs vie^# on the inversion of the ends ^hich one intuitivelJ associates ^ithhistoriographJ. sJchologJLschiatrJ ̂ rites the historJ of the condition of its emergence not ̂ ith the intetionof remembering its origin but in order to forgot the shame of the origin% 5AGC1B# &ichel 3oucault( genealog as criti!ue, p. &Q6?F =embremos ainda como 3oucault falará da exist!ncia de “contra"ci!ncias% 5no caso# a psicanálise e aetnologia estruturalista6# ou se+a# regimes de saber que exp,e a g!nese daquilo que as ci!ncias humanas

 procuram transformar em fundamento.

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oderíamos fa4er uma hist)ria dos limites [ destes gestos obscuros# necessariamenteesquecidos desde que reali4ados# através dos quais uma cultura re+eita algo que será para ela o 1xteriorN e# ao longo de sua hist)ria# este va4io profundo# este espa-o branco gra-as ao qual ela se isola a designa tanto quanto seus valores. ois taisvalores# ela os recebe e os mantém na continuidade de sua hist)riaN mas nesta região

a respeito da qual gostaríamos de falar# ela exerce suas escolhas essenciais# ela operaa partilha que lhe fornecerá o rosto de sua positividadeN lá se encontra a espessuraoriginária a partir da qual ela se forma?>. 

ublinhemos o que di4 3oucault neste trecho fundamental onde se trata de discutir oadvento de um regime determinado de saber que conhecemos ho+e por psicologia e por  psiquiatria# regime que tem como seu ob+eto o desenvolvimento de práticas de interven-ãoe de temati4a-ão disto que conhecemos atualmente por “doen-a mental%. 7ão podemosentender a hist)ria da psicologia e da psiquiatria moderna sem compreend!"las comohist)ria de uma série de limites que constituem um 1xterior# ou se+a# uma experi!ncia quenão poderá ser nomeada# a respeito da qual nada haverá a se di4er desde que o conceito de“doen-a mental% enfim aparecer no início do século MGM pelas mãos de inel e de amuel0u_e. 9om a transforma-ão desta exterioridade ( ra4ão que é a loucura em “doen-a mental%5ou se+a# afec-ão cu+a causalidade exigiria a constitui-ão de uma dimensão como o psíquico# dimensão não imediatamente redutível ao orgânico e que exigiria métodos deinterven-ão específicos que inicialmente aparecerão sob a rubrica do “tratamento moral%#da clínica da “aliena-ão%# ou se+a# +untamente com a no-ão de “doen-a mental% é a pr)priano-ão do homo pschologicus que nasceria6# uma certa experi!ncia deixará de ser nomeada#será remetida ao espa-o va4io. 2as que experi!ncia é esta/

'ntes de tentar uma resposta# vale a pena lembrar como +á temos aqui um problemamaior que estará também presente no pro+eto arqueol)gico de As palaras e as coisas, asaber# de onde fala este que é capa4 de contar a hist)ria da ra4ão como limita-ão# comoconstitui-ão de um 1xterior/ 1sta “contra"hist)ria da ci!ncia% que é# ao mesmo tempo#crítica da ra4ão moderna precisava assegurar seus critérios de fundamenta-ão# isto a fim denão solapar o territ)rio no qual a crítica assenta sua pr)pria racionalidade. $errida insistiaem uma certa inconsist!ncia do pro+eto foucauldiano# +á que estaríamos diante de umacrítica da ra4ão que precisaria fundamentar seus protocolos de avalia-ão sem recorrer (mesma ra4ão que é ob+eto de desqualifica-ão. 1mpreendimento impossível aos olhos de$errida# +á queN “Toda nossa linguagem européia# a linguagem de tudo aquilo que participou# de um +eito ou de outro# ( aventura da ra4ão ocidental# é a delega-ão de pro+etoque 3oucault define sob a forma de captura ou de ob+etiva-ão da loucura% ?I. Gsto noslembraria que# diante da Ba4ão : “n)s s) poderíamos chamar contra ela apenas ela mesma#n)s s) poderíamos protestar contra ela no seu interior%?Q. 'nos mais tarde# Habermas iráinsistir no mesmo ponto ao lembrar do: “problema metodol)gico de como se pode escrever uma hist)ria das constela-,es da ra4ão e da loucura quando o trabalho do historiador temde mover"se dentro do hori4onte da ra4ão%?T.

 7otemos como este problema aparece +á no início da enuncia-ão do pro+etoarqueol)gico de  As palaras e as coisas. =ogo nas primeiras páginas do livro# 3oucault

?> 3<U9'U=0# Dits et écrits# p. &QT?I $1BBG$'# Cogito et histoire de la folie, p. FQ?Q $1BBG$'# idem, p. FT?T H'R1B2'# * discurso filosófico da modernidade, p. ?@@

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lembra desta peculiar enciclopédia chinesa# descrita por Korge =uis Rorges# onde se l!: Wosanimais dividem"se em : a6 pertencentes ao Gmperador# b6 embalsamados# c6 en+aulados# d6leit,es# e6 sereias# f6 fabulosos# g6 cães em liberdade# +6 incluídos na presente classifica-ão#i6 que se agitam como loucos# +6 inumeráveis# _6 desenhados com um pincel muito fino de p!lo de camelo# l6 etc.# m6 que acabam de quebrar o bebedouro# n6 que# de longe# parecem

moscasW.' descri-ão de Rorges permite a 3oucault iniciar uma longa digressão a respeito dequal é o dispositivo realmente constitutivo das opera-,es de conhecimento. <perando emchave estruturalista# ele lembrará que não há saber possível sem a constitui-ão de modos deordenamento# de estrutura-ão# de rela-,es de identidade# diferen-a# unidade e síntese a partir de sistemas. ensar é organi4ar sistemas de rela-,es# eis uma proposi-ão queencontramos em todo pensamento estruturalista# pensamento a respeito do qual 3oucault sesente bastante pr)ximo então.

Um ponto da descri-ão de Rorges logo chama a aten-ão de 3oucault. < caráter fantástico da ordena-ão não está no acréscimo de seres monstruosos. 2esmo seencontramos lá sereias# por exemplo# é for-oso reconhecer que: WRorges não acrescentanenhuma figura ao atlas do impossívelW. $ado importante por lembrar que a verdadeiraopera-ão feita por Rorges é uma certa subtra-ão do lugar no qual estes seres poderiamencontrar"se# ou se+a# o quadro que permite ao pensamento ordenar os seres. < quetransgride a imagina-ão é simplesmente a série alfabética que liga categorias incompatíveis.Gsto permite 3oucault afirmar:

“' ordem# é ao mesmo tempo o que se oferece nas coisas como sua lei interior# arede secreta segundo a qual elas# de uma certa forma# se olham entre si e que s)existe através da grelha de um olhar# de uma aten-ão# de uma linguagemN e é apenasnas casas brancas deste esquadrinhamento que ela manifesta"se como algo que +áestá lá# esperando em sil!ncio o momento de ser enunciadaW@X

1sta ordem capa4 de habitar nas coisas como sua lei interior não se confunde comos sistemas de c)digos de empiricidades específicas. 1la será uma episteme que determinao padrão de racionalidade hegem;nico de uma determinada época hist)rica ao enunciar ascondi-,es de possibilidade para todo e qualquer discurso verídico. 7este sentido# ela seráum a priori# mas um a priori hist)rico# ou se quisermos utili4ar uma defini-ão de 3oucault:o sistema de simultaneidades e a série de muta-,es necessárias e suficientes paracircunscrever o solo de uma nova positividade em uma época determinada@&. 7este ponto#3oucault insistia que deveríamos distinguir a arqueologia# que procura entender ascondi-,es de possibilidade para a constitui-ão geral de ob+etos de ci!ncias determinadas ecritérios de veracidade# de uma epistemologia que se preocupa em dar conta dosfundamentos de uma ci!ncia determinada e seus modos de regula-ão de fen;menosobserváveis.@X  3<U9'U=0# #es mots et les choses, p. &&@& obre a distin-ão entre este a priori hist)rico e seu cong!nere _antiano# podemos di4er# primeiro# “lá ondeCant procurava antecipar a possibilidade de todo conhecimento prescrevendo previamente suas leis# 3oucaultquer partir de conhecimentos +á constituídos para definir retrospectivamente o que os possibilitou. < segundolimite da analogia Oentre Cant e 3oucaultP di4 respeito ( invalida-ão# por 3oucault# de toda perspectivanormativa [ se o a priori hist)rico opera claramente uma determina-ão no campo do saber# esta não saberia#diferentemente de sua contrapartida transcendental# legitimar a priori a possibilidade de um conhecimentoseguro% 5H'7# Réatrice# #0ontologie man!uée de &ichel 3oucault, p. IF6

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 7o entanto# em nossa época moderna 5que# segundo 3oucault# teria come-ado emmeados do século MAGGG6# há um regime de discurso que não se adequa completamente (nossa episteme. 9omo se uma época fosse necessariamente marcada por uma espécie delinguagem do impossível# linguagem na qual experi!ncias que aparecem para uma epistemecomo impossível se alo+am. =embremos# por exemplo# de uma frase central como:

<ra# ao longo do éculo MGM e até ho+e " de Hlderlin a 2allarmé# a 'ntonin'rtaud [ a literatura s) existiu em sua autonomia# s) se destacou de toda outralinguagem através de um corte profundo gra-as a forma-ão de uma forma de“contra"discurso% e retornando assim da fun-ão representativa ou significante dalinguagem até este ser bruto esquecido desde o século MAG@?. 

oderíamos aproximar este “ser bruto esquecido desde o século MAG% destaexperi!ncia que A história da loucura descreve como “experi!ncia trágica da loucura%. Káno prefácio ( primeira edi-ão de %istória da loucura, valendo"se de 7iet4sche# 3oucaultconfronta a “dialética da hist)ria% fundada na dinâmica conflitual entre a ra4ão e seu <utro(s “estruturas im)veis do trágico%# ou se+a# espa-o de uma “implica-ão confusa% de p)losque ainda não são exatamente opostos sem serem totalmente indiferenciados:

$omínio no qual o homem de loucura e o homem de ra4ão# separando"se# não sãoainda separados e# em uma linguagem muito originária# muito frustra# bem maismatinal que a linguagem da ci!ncia# sustentam o diálogo sua ruptura quetestemunha# de uma maneira fugidia# que eles ainda se falam@@.

2as que linguagem é esta na qual os separados não são opostos nem indiferentes uns aosoutros/ Uma “rai4 calcinada do sentido%# para usar um termo do pr)prio 3oucault# pr)pria auma linguagem onde a contradi-ão não é submetida a uma dialética. 3oucault fala# (sve4es# de uma linguagem capa4 de interrogar: “uma origem sem positividade e umaabertura que ignora as paci!ncias do conceito%@E. 

Drosso modo# podemos di4er que esta linguagem é o que não encontra mais lugar naconfigura-ão da positividade dos saberes empíricos de nossa época. eu lugar agora éapenas na literatura. 7esta literatura que transgride os limites da representa-ão por fa4er apelo a um poder soberano de um “ser bruto% da linguagem# de um “ser vivo% da linguagemque se confunde com a capacidade da obra literária impor sua autonomia e sua auto"referencialidade.

 7otemos como isto pode nos abrir as portas para compreender a resposta de3oucault ( crítica de que sua postura arqueol)gica seria uma forma elaborada derelativismo. =embremos# por exemplo# desta afirma-ão tardia e central de 3ocault arespeito da arqueologia:

 7ão admito em absoluto a identifica-ão da ra4ão com o con+unto de formas deracionalidade que puderam# em certo momento# em nossa época e ainda maisrecentemente# ser dominantes em tipos de saberes# formas de técnicas e modalidadesde governo ou de domina-ão# domínios nos quais se produ4em a principais

@? idem# p. FT@@ 3<U9'U=0# $its et écrits# p. &QQ@E idem# p. ?>I

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aplica-,es da racionalidadeN deixo de lado o problema da arte# que é maiscomplicado. ara mim# nenhuma forma dada de racionalidade é a ra4ão @F.

or que# logo antes de afirmar a exist!ncia de um conceito de ra4ão que permitiria a críticade todas as formas de racionalidade que se encarna em técnicas# saberes e modalidades de

governo# 3oucault deva reconhecer que “o problema da arte% é mais complicado/ $e ondevem esta complica-ão e o que ela significa/odemos colocar aqui uma hip)tese: e se 3oucault trabalhasse como quem afirma

que as obras de artes comp,em# no fundo# um setor indissociável# mas esquecido# dahist)ria da ra4ão/ 9omo se a literatura de vanguarda fosse a marca# ainda presente em n)s#de uma ra4ão capa4 de fundamentar expectativas críticas da ra4ão em rela-ão a processosde racionali4a-ão social/ 1staríamos necessariamente diante de uma simples de “guinadaesteti4ante% ou de uma teoria que insiste que# em uma época determinada# a ra4ão pode secindir em regimes discursivos distintos# em séries divergentes e que podemos nos apoiar emuma série contra outras/

$e ue a genealogia admite um certo originrio

Um dos piores erros que um pesquisador de filosofia pode fa4er é dividir o que seencontra unido# mesmo que esta união se d! sob a forma do conflito. 0entemos entender melhor uma afirma-ão maior de 3oucault sobre sua pr)pria experi!ncia intelectual:

$urante um longo período# tive em mim uma espécie de conflito mal resolvido entrea paixão por Rlanchot# Rataille e# por outro lado# o interesse que alimentava por certos estudos positivos como os de $umé4il e de =évi"trauss# por exemplo. 2as#no fundo# estas duas orienta-,es# cu+o 8nico denominador comum era talve4constituído pelo problema religioso contribuíram de maneira igual a me condu4ir ao problema do desaparecimento do su+eito@>.

 7a verdade# 3oucault acaba por afirmar que sua experi!ncia intelectual foi atentativa de construir uma articula-ão inusitada entre influ!ncias da reflexão epistemol)gicafrancesa 5influ!ncias estas que se desdobrarão para articula-,es com o estruturalismo6 emarcas de uma certa tradi-ão filos)fico"literária advinda do modernismo estético5Rlanchot# Rataille# Clossovis_i e escritores como Boussel# 'rtaud e 2allarmé6. ] ela lhe permitirá procurar no campo da experi!ncia estética os resquícios de uma experi!ncia socialcapa4 de se colocar para além de processos de racionali4a-ão que visam# entre outrascoisas# principalmente produzir um certo regime de unidade# de presen-a e de ordenamentofundamentado naquilo que compreendemos por “su+eito%. ] em nome dela que aarqueologia do saber sempre foi uma forma de crítica da ra4ão.

=embremos# a este respeito# de um texto curto porém importante de 3oucault5 #oucura( aus/ncia de o"ra6# onde ele inicia afirmando que talve4 chegará um dia no qualtudo o que experimentamos ho+e sob o modo do limite# do estranhamento ou doinsuportável em rela-ão ( loucura alcan-ará a “serenidade do positivo%. ara tanto#3oucault advogará a proximidade entre a literatura de vanguarda e a experi!ncia trágica da

@F idem# p. &?>>@> 3<U9'U=0# $its et écrits# p. >E?

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loucura. < que as une é aquilo que 3oucault chama de “aus!ncia de obra%. =embremos deuma afirma-ão maior de seu texto:

$esde 3reud# a loucura ocidental transformou"se em uma não"linguagem pois eletransformou"se em uma linguagem dupla 5língua que s) existe nesta fala# fala que s)

di4 sua língua6 "# ou se+a# uma matri4 de linguagem que# no sentido estrito# não di4nada. $obra do falado que é uma aus!ncia de obra @I.

1sta no-ão de aus!ncia de obra indica a impossibilidade de constitui-ão de umatotalidade funcional através de uma linguagem cu+as opera-,es de significa-ão sempre parecem se disseminar. 1sta aus!ncia de obra é fundamentalmente índice daimpossibilidade de certas opera-,es de síntese e de totali4a-ão pr)prias a toda formali4a-ãocapa4 de construir uma obra. oderíamos mesmo di4er que tal impossibilidade vem do fatode estarmos muito pr)ximos de uma  -ntstehung 5emerg!ncia6 como +ogos de for-a emcontinua reconfigura-ão que não permite a abertura “( pot!ncia antecipadora de umsentido%@Q.

< salto arriscado feito por 3oucault consiste em afirmar que esta opera-ão dedesaparecimento da obra é exatamente o resultado do modo de funcionamento dalinguagem presente nesta tradi-ão da literatura de vanguarda que tem em 2allarmé seunome maior# como se a literatura de vanguarda fosse tributária de uma experi!ncia socialque a coloca em linha de aproxima-ão com uma certa experi!ncia trágica da loucura. $aí ointeresse de 3oucault por escritores loucos como: 7erval# 'rtaud e Boussel. $aí estaafirma-ão de uma literatura que procura se situar no espa-o da forma va4ia que marca aaus!ncia de obra# que s) nos permite di4er “7ada terá lugar a não ser o lugar%.

'ntes de 2allarmé# escrever consistia em estabelecer sua palavra no interior de umalíngua dada# de maneira que a obra de linguagem seria da mesma nature4a quequalquer outra linguagem# aos signos aproximados da Bet)rica# do u+eito ou dasGmagens. 7o final do século MGM 5na época do descobrimento da psicanálise ouquase6 a literatura se transformou em uma palavra que inscrevia nela seu pr)prio princípio de decifra-ão ou# em todo caso# ela supunha# sob cada uma de suas frases#sob cada uma de suas palavras# o poder de modificar soberanamente os valores e assignifica-,es da língua ( qual# apesar de tudo# ela pertenciaN ela suspendia o reino dalíngua em um gesto atual de escritura@T.

1sta proximidade ( literatura permitirá# um dia# que a loucura se livre de suaredu-ão ( figura da doen-a mental. or outro lado# ela transforma a reconfigura-ão formaldas potencialidades e regras da linguagem operadas pela literatura em solo defundamenta-ão de uma ra4ão que não quer mais ser confundida com sua versãoinstrumental e identificadora em opera-ão nos campos das ci!ncias empíricas que tomam ohomem por ob+eto.

 7otemos que# se aceitarmos esta leitura que proponho# teremos que di4er# primeiro#que não há passagem da antropologia do saber ( genealogia do poder. 7a verdade# estesdois momentos da experi!ncia intelectual de 3oucault descrevem duas perspectivas

@I idem# p. EE>@Q Gdem# $its et écrits GG# p. &X&&@T idem# p. EEI

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complementares do mesmo processo: mostrar como as figuras de racionalidade de nossaépoca nunca poderiam se constituir sem produ4ir um modo de rela-ão com uma experi!nciafundamental que se coloca como exterioridade 5a loucura# a literatura6. $esta forma# asfiguras do saber são realmente compreendidas quando consigo revelar a maneira que elas procuram nada saber do que ficou na dimensão da emerg!ncia e da proveni!ncia. 1 se a

arqueologia do saber de  As palaras e as coisas não deixa de terminar através da defesa da“morte do homem%# talve4 se+a porque 3oucault precisa se perguntar : o que o homem não pode saber# de que tipo de experi!ncia ele está separado e que s) se manifesta quando seumodo de determina-ão de ob+etos se dissolve/ odemos colocar tal questão porque# de umaforma que 3oucault sempre tentou temati4ar# não somos completamente homens.

 

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Introdução à experiência intelectual de Michel Foucault

(ula 3

 7a aula de ho+e# analisaremos a primeira parte de  Doença mental e psicologia, isto a fim demostrar qual o campo inicial de reflex,es de 2ichel 3oucault e quais as articula-,es entre

tal campo e os procedimentos gerais pr)prios ( epistemologia hist)rica francesa.1ste pequeno livro#  Doença mental e psicologia, é# na verdade# uma porta deentrada privilegiada para a compreensão da experi!ncia intelectual de 2ichel 3oucault por retomar temas articulados no interior da reflexão filos)fica francesa desde os anos vinte e por +á indicar os caminhos que 3oucault trilhará em dire-ão ao estabelecimento de suaestratégia maior: submeter a reflexão epistemol)gica sobre as ci!ncias humanas a umagenealogia do poder e das práticas disciplinares. ubmissão que aparece no hori4onte desdeque 3oucault admite que: “o homem s) se transformou em uma Zespécie psicol)gi4ávelZ a partir do momento em que sua rela-ão ( loucura permitiu uma psicologia%EX. 9omo se a pr)pria normati4a-ão da vida produ4isse seu outro.

 7o entanto# este livro tem uma hist)ria peculiar. =an-ado pela primeira ve4 em&TFE# seu título era outro: Doença mental e personalidade. $e fato# toda a segunda parte#intitulada “'s condi-,es reais da doen-a% era diferente do que encontramos na versão atual pois dedicada# principalmente# a avlov e á tentativa de edifica-ão das condi-,es para umaci!ncia psicol)gica materialista. 1ntão vinculado ao marxismo e ao partido comunista#3oucault não deixa de seguir vias muito semelhantes a outro marxista# Deorges olit4er esua psicologia concreta que privilegia o caráter de internali4a-ão de contradi-,es sociaisenquanto cerne da constitui-ão de patologias. 9olaborava para isto# ainda# uma leitura precoce de Hegel. 3oucault havia defendido# em &TET# uma disserta-ão para a obten-ão dodiploma de estudos superiores sob a orienta-ão de Kean HJppolite cu+o título era: “'constitui-ão de um transcendental hist)rico na 3enomenologia do -spírito de Hegel%.

 7o entanto# ao preparar uma nova versão em &T>?# 3oucault# agora distante domarxismo# reescreve todo o capítulo final de seu livro# substituindo a análise inicial por umgrande resumo de sua tese de doutorado que acabara de sair:  A história da loucura. $evidoa este grande remane+amento# 3oucault renegará completamente este trabalho. 1m suasentrevistas# sempre irá se referir a %istória da loucura como sendo seu primeiro livro. <que nos deixa com uma questão maior#: por que introdu4ir o pensamento de 2ichel3oucault através de um livro que o pr)prio autor repudiou/

Uma resposta possível di4 respeito ao dese+o de compreender de maneira mais clarao processo de forma-ão das quest,es e métodos que marcaram a experi!ncia intelectual de3oucault. 2uitas ve4es# um pro+eto abandonado ou totalmente reescrito di4 muito a respeitodo movimento pr)prio a um pensamento# +á que ele evidencia o encaminhamento que levaum autor a procurar sinteti4ar quest,es que continuarão a guiar sua produ-ão intelectual. 7este sentido# devemos responder o que leva 3oucault a abandonar uma perspectivaclassicamente marxista na análise do estatuto da psicologia# isto em prol da constitui-ão deum campo de análise da clínica que caminhará para a elabora-ão de um método de reflexãoepistemol)gica inicialmente pensado como uma “arqueologia% e posteriormente como uma“genealogia%. ois não é por acaso que o primeiro trabalho verdadeiramente acabado dearqueologia da ci!ncia tenha sido efetuado a partir da análise do pr)prio aparecimento dano-ão moderna de clínica 5* nascimento da clínica, de &T>@6. 3oucault v! na constitui-ão

EX 3<U9'U=0# &aladie mentale et pschologie, p. QQ

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da psicologia e da clínica dos fatos psicol)gicos# o campo privilegiado de orienta-ão dara4ão em seus processos de racionali4a-ão da vida.

( autonomia do mental

“$uas quest,es se colocam: sob quais condi-,es podemos falar de doen-a no domínio psicol)gico/ uais rela-,es podemos estabelecer entre os fatos da patologia mental e estesda patologia orgânica/%. $esta forma# come-a Doença mental e psicologia. 9omo vemos#trata"se de se perguntar sobre a especificidade da causalidade psíquica a partir de uma dupla problemati4a-ão. rimeiro# o problema da causalidade psíquica é abordado sob o fundo dadistin-ão entre o normal e o patol)gico. < que é um estado patol)gico para a psicologia/uais seus critérios e modos de classifica-ão/ egundo# o problema da causalidade psíquica é lido no interior da discussão entre psicog!nese e organog!nese. Há algumadistin-ão estrutural entre patologia mental e patologia orgânica/ odemos utili4ar osmesmos procedimentos de determina-ão do segundo caso na análise do primeiro/

$e fato# colocar o problema nestes termos +á é operar com a pressuposi-ão de umadistin-ão pretensamente fundadora da racionalidade do campo da psicologia# a saber# a pressuposi-ão de que a perspectiva de análise de fen;menos físicos# orgânicos pode ser completamente inadequada para a determina-ão mesma do que é um fato psicol)gico. Umadas raí4es de tal distin-ão em um livro como a Critica dos fundamentos da psicologia, deDeorges olit4er com suas críticas contra o realismo e o formalismo do discurso pr)prio á psicologia experimental dependente da entifica-ão do modo de ob+etividade pr)prio (sci!ncias físicas. 3oucault parece admitir tal perspectiva crítica polit4eriana ao afirmar# por exemplo: “e parece tão difícil definir a doen-a e a sa8de psicol)gica# não seria por que nosesfor-amos de maneira vã em lhes aplicar massivamente conceitos igualmente destinados ámedicina somática/%E&. =embremos# a este respeito# da descri-ão foucauldiana sobre oestado da psicologia: “< destino desta psicologia que se via como conhecimento positivorepousou sempre sobre dois postulados filos)ficos: a verdade do homem esgota"se em seuser natural e o caminho em dire-ão a todo conhecimento científico deve passar peladetermina-ão de rela-,es quantitativas# pela constru-ão de hip)teses e pela verifica-ãoexperimental. 0oda hist)ria da psicologia até a metade do século MM é a hist)ria paradoxaldas contradi-,es entre este pro+eto e seus postulados. 'o perseguir o ideal de rigor eexatidão das ci!ncias da nature4a# ela foi levada a renunciar a tais postulados. 1la foilevada# por cuidado de fidelidade ob+etiva# a reconhecer na realidade humana outra coisaque um setor da ob+etividade natural O3oucault pensa sobretudo na psicanálise e na análiseexistencial de Ris^angerP# e a utili4ar para o conhecer# outros métodos que estes fornecidoscomo modelo pelas ci!ncias da nature4a%E?. <u se+a# trata"se de colocar em opera-ão aquiuma “epistemologia hist)rica ( contrapelo% capa4 de mostrar a origem da ilusão decientificidade pr)pria a um domínio empírico do saber E@.

3oucault parte então para uma descri-ão dos impasses advindos da tentativa deconstituir o campo da análise das doen-as psicol)gicas a partir do quadro metodol)gico

E& 3<U9'U=0# &aladie mentale ... p. ?E? idem# #a pschologie de 4567 8 4967, $its et écrits# p. &EQE@ “0he ^aJ in ^hich psJchologJ or psJchiatrJ remember their histories is based# in 3oucaultZs vie^# on theinversion of the ends ̂ hich one intuitivelJ associates ̂ ith historiographJ. sJchologJLschiatrJ ̂ rites thehistorJ of the condition of its emergence not ^ith the intetion of remembering its origin but in order to forgotthe shame of the origin% 5AGC1B#  &ichel 3oucault( genealog as criti!ue, p. &Q6

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utili4ado para analisar doen-as orgânicas. 0al como na análise da doen-a orgânica# lembra3oucault# a psicologia tentou inicialmente constituir uma sintomatologia 5determinando oquadro dos signos e sintomas que indicam a exist!ncia de estruturas m)rbidas6 e umanosografia 5determinando as formas e os padr,es de desenvolvimento da doen-a6. 3oucault passa então a descri-ão de estruturas m)rbidas tradicionalmente aceitas ( época 5histeria#

 psicastenia# obsessão# mania# paran)ia# psicose alucinat)ria cr;nica# hebefrenia# catatonia6#isto a fim de mostrar como tais estruturas são marcadas pelo mesmo método de reparti-ãode sintomas em grupos patol)gicos e de determina-ão de estruturas m)rbidas queencontramos na análise das doen-as orgânicas. 7os dois casos# a doen-a aparece comoess!ncia cu+os sintomas são atributos. <u se+a# consideramos a doen-a como uma:“ess!ncia natural manifestada por sintomas específicos%EE.  0al perspectiva essencialistaconverge com a descri-ão que vimos de Deorges 9anguilhem sobre a compreensão dadoen-a como o resultado de varia-,es quantitativas de fun-,es e )rgão.

3oucault lembra que# contra tal perspectiva# desenvolveu"se a no-ão de doen-acomo o que resulta de rea-,es globais de indivíduos tomados como totalidades orgânicas e psicol)gicas. Aisão bastante difundida na 3ran-a principalmente devido a 9anguilhem#2erleau"ontJ e Curt Doldstein# vimos como ela encontrava suas raí4es +á presentes namedicina grega. 9ontrariamente a uma no-ão de doen-a determinada a partir da possibilidade de locali4a-ão# a medicina grega estaria marcada por um certo dinamismorelacional: “' nature4a 5phJsis6 tanto no homem como fora dele# é harmonia e equilíbrio. ' perturba-ão desse equilíbrio# dessa harmonia# é a doen-a. 7esse caso# a doen-a não está emalguma parte no homem. 1stá em todo o homem e é toda dele% EF. ' doen-a aparece assimcomo um acontecimento que di4 respeito ao organismo vivo encarado na sua totalidade.9omo dirá claramente 3oucault: “' doen-a não é então nem um déficit nem uma regressão#mas um problema na regula-ão com o meio%E>.

 7o entanto# 3oucault dá um passo pr)prio cheio de conseqY!ncias. 1le citaDoldstein e sua tentativa de# através da reflexão do patol)gico como situa-ão global doindivíduo# colocar"se para"além de toda distin-ão entre orgânico e psíquico 5uma posi-ãoque vimos também com 9anguilhem6. Doldstein podia ainda afirmar: “0omando o homemcomo ponto de partida# procuramos compreender a partir do seu comportamento ocomportamento de outros seres vivos%EI. 3oucault quer criticar tal posi-ão ao insistir naimpossibilidade de ignorarmos a diferencia-ão radical entre o que é da ordem dacausalidade orgânica e o que é da ordem da causalidade psíquica. 7a verdade# posi-,esdesta nature4a nos explicam uma das facetas da adesão de 3oucault a perspectivas como oestruturalismo franc!s. ois o fil)sofo +á admite# desde seus primeiros escritos# umadistin-ão radical entre as ordens da nature4a e da cultura# tal como é o caso em pensadorescomo 9laude =évi"trauss. 0al distin-ão tra4 conseqY!ncias profundas para a determina-ãodo campo da psicologia e das doen-as mentais.

 7o primeiro capítulo de seu livro# 3oucault# descreve tr!s aspectos onde a distin-ãoestrita entre nature4a e cultura produ4 impossibilidade de estabelecer similitudes entredoen-a mental e doen-a orgânica.

< primeiro destes aspectos di4 respeito ( abstra-ão. 3oucault insiste que as patologias orgânicas não excluem a possibilidade de abstra-ão de elementos isolados a fim

EE 3<U9'U=0# &aladie mentale..., p. TEF 9'7DUG=H12# idem# p. ?XE> 3<U9'U=0# #a pschologie ... p. &FEEI D<=$01G7# #a structure de l0organisme, p.I

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de reconstituir uma análise causal inteligível. “<ra%# dirá 3oucault# “a psicologia nuncaforneceu ( psiquiatria o que a fisiologia deu ( medicina: o instrumento de análise que# aodelimitar o problema# permitia identificar a rela-ão funcional entre este e o con+unto da personalidade%EQ. $aí porque ele poderá afirmar que a abstra-ão não pode ser feita damesma maneira em psicologia e em fisiologia. 1ste é um ponto interessante porque

3oucault age como quem acredita que a abstra-ão quantitativa e individuali4adora sãoadequadas aos fen;menos orgânicos# enquanto que não são adequadas aos fen;menos psicol)gicos. 9omo se o corpo fosse mais facilmente moldável ( abstra-ãoinstrumentali4adora do que o mental. 7o entanto# vimos como esta perspectiva não ésustentada por alguém como Deorges 9anguilhem. 1la será abandonada pelo pr)prio3oucault# principalmente ap)s o impacto da escrita de * nascimento da clínica com suadescri-ão do modo com que o advento da fisiologia moderna implicou na transforma-ão docorpo em um espa-o submetido a procedimentos gerais de abstra-ão.

1m um capítulo do :ascimento da Clínica, intitulado “'bram alguns cadáveres%#2ichel 3oucault reconstitui a tra+et)ria que permitiu ( fisiologia e ( anatomia patol)gicaaparecerem como fundamento da clínica. 0al posi-ão da fisiologia s) foi possível a partir do momento em que o corpo foi reconfigurado# aparecendo como um “espa-o ao mesmotempo mais complexo e mais abstrato# onde era questão de ordem# de sucessão# decoincid!ncia e de isomorfismo%ET. 0ransforma-ão do corpo em um espa-o abstrato que eraresultado da aplica-ão de um “princípio geral de decifra-ão% do espa-o corporal semelhanteao princípio geral de constitui-ão do espa-o homog!neo e geométrico da física moderna.0al princípio geral de inteligibilidade era fornecido# no caso da constitui-ão do espa-ocorporal# pela redu-ão do corpo a um campo de tecidos orgânicos: “' partir dos tecidos# anature4a trabalha com uma extrema simplicidade de materiais. 1les são os elementos dos)rgãos# mas o atravessam# os aproximam e# para além deles# constituem os vastos sistemasnos quais o corpo humano encontra a forma concreta de sua unidade. Haverá tantossistemas quanto tecidos: neles# a individualidade complexa e inesgotável dos )rgãos sedissolve e# de uma ve4# se simplifica%FX. 0al redu-ão do volume orgânico a um elementar que é# ao mesmo tempo# um universal aparece como condi-ão para o aparecimento de umafisiologia que pode se submeter a um padrão de ob+etividade fundado em dispositivos demensura-ão# de redu-ão quantitativa e de abstra-ão a um padrão geral de cálculo.

< segundo aspecto de distin-ão entre doen-a mental e doen-a orgânica é a partilhaentre normal e patol)gico. 3oucault afirma neste momento haver distin-,es claras entrenormal e patol)gico no domínio dos fen;menos orgânicos. eguindo =eriche# 3oucaultafirma existir algo como uma planifica-ão coerente das possibilidades fisiol)gicas doorganismo fundado na análise dos mecanismos em estado normal. <u se+a# 3oucault agecomo quem admite que a no-ão de norma e de normal na análise dos fen;menos físicos érelativamente não"problemática. Gsto é feito para afirmar que: “em psiquiatria# ao contrário#a no-ão de personalidade torna particularmente difícil a distin-ão entre o normal e o patol)gico%F&. ois sintomas que podem identificar quadros patol)gicos podem também ser descri-ão de análises de caráter. Beich +á havia percebido claramente como tra-os de caráter organi4am"se de forma semelhante a sintomas. 3oucault utili4a o exemplo de Rleuler quedeterminava as psicoses maniaco"depressivas por exagera-ão de rea-,es afetivas enquanto

EQ 3<U9'U=0# idem, p. &@ET 3<U9'U=0# #a naissance de la clíni!ue, p. &?QFX idem# p. &?TF& 3<U9'U=0# &aladie mentale, p. &E

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Cretschmer constituía um quadro caracterial bipolar# comportando esqui4otimia eciclotimia. 7o entanto# podemos# como +á vimos# não aceitar a tese de que fen;menosorgânicos fornecem determina-,es não"problemáticas de norma e de normal.

or fim# 3oucault afirma que a rela-ão entre o doente e seu meio é distinto nos casosde doen-a mental e nos casos de doen-a orgânica. ois a no-ão de totalidade orgânica

 permitiria isolar a individualidade em sua originalidade m)rbida 5+á que a cura seriareali4ada a partir de uma atua-ão particular6 enquanto que a realidade da doen-a mental não permitiria tal abstra-ão em rela-ão ao meio 5+á que a cura seria reali4ada a partir do pontode rela-ão entre indivíduo e meio6. 0ais pontos são levantados por 3oucault a fim de afastar o postulado de uma metapatologia. 9omo vemos# a distin-ão estrita entre nature4a e culturaimplica em uma distin-ão estrita entre doen-a mental e doen-a orgânica.

9om isto# fica a questão de saber qual a perspectiva adequada de análise das patologias mentais# assim como o quadro mais amplo dos fatos psicol)gicos em geral. 1steé o sentido do primeiro capítulo do nosso livro. 0rata"se de expor qual seria a perspectivacapa4 de permitir a apreensão adequada do que se manifesta em uma patologia mentaldeterminada. 7este sentido# a simples compreensão do encadeamento pr)prio aos títulosdos tr!s capítulos que comp,em a primeira parte +á evidencia a estratégia foucauldiana. 1lecome-ará discutindo a no-ão# então clássica# da doen-a como regressão 5daí a discussãoentre doen-a e evolu-ão6# isto a fim de introdu4ir# no quadro da compreensão da doen-a# adimensão da hist)ria individual. Uma hist)ria individual que# por sua ve4# deverá sesubmeter a uma análise existencial inspirada por suas leituras de =ud^ig Rins^anger e que procura apreender: “liberdade fundamental de uma exist!ncia que escapa# de pleno direito#á causalidade psicol)gica%F?.  *u se;a, o pequeno livro de é uma maneira de articular umaabordagem epistemol)gica de um setor preciso das ci!ncias humanas através da pressuposi-ão de diferen-as estritas entre aquilo que é da ordem da nature4a e aquilo que éda ordem da hist)ria.

."olução e hist/ria

3oucault parte da no-ão# hegem;nica ainda no início do século MM# da doen-a mental comoregressão a um estágio anterior de desenvolvimento. ' doen-a seria# principalmente#dissolu-ão de fun-,es complexas de coordena-ão e substitui-ão de tais fun-,es por atividades simples e restritas. 0udo se passa como se aceitássemos que: “a doen-a suprimeas fun-,es complexas# instáveis e voluntárias# exaltando as fun-,es simples# estáveis eautomáticas%F@. Gsto permita 3oucault afirmar que a doen-a aparece aqui não exatamentecomo uma ess!ncia anti"natural# mas como a pr)pria nature4a e um processo inverso deinvolu-ão.

1ste esquema de compreensão da doen-a tornou"se hegem;nico principalmentedevido a defesa de paralelismo entre filog!nese e ontog!nese# entre a evolu-ão do que é daordem da espécie e a repeti-ão de tal esquema evolutivo# de maneira mais rápida# nodesenvolvimento do indivíduo. 0al no-ão de doen-a depende de uma certa teleologiaevolutiva na qual etapas anteriores são superadas e integradas em etapas subseqYentesNno-ão esta cu+a teleologia se organi4a a partir da l)gica do aperfei-oamento progressivo.1rnst Haec_el# 4o)logo alemão# divulgador do dar^inismo insistia# por exemplo que: “<desenvolvimento filogenético# dos seres mais simples aos mais complexos# é repetida noF? 3<U9'U=0# Dits et écrits, p. &>EF@ 3<U9'U=0# &aladie mentale, p. ?&

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desenvolvimento progressivo e aperfei-oador do indivíduo: o adulto é mais perfeito que acrian-a porque o homem é mais perfeito que a monera% FE. 7este sentido# a doen-a serianecessariamente um retorno e dissolu-ão de fun-,es complexas que teriam sidossinteti4adas em fases mais avan-adas do desenvolvimento. 9omo vemos# aqui# o que é daordem do comportamento humano sob pode ser inteligível a condi-ão de submetermos o

humano ( dimensão de uma hist)ria natural.3oucault v! tal perspectiva naturalista atuando em autores como 3reud e ierreKanet. 3oucault pensa principalmente em uma certa perspectiva freudiana que v! a neurosecomo uma regressão a estágios anteriores do desenvolvimento libidinal 5não seria por outrara4ão# ao menos segundo o +ovem 3oucault# que 3reud insiste em vários momentos nassimilitudes possíveis entre o pensamento selvagem# o pensamento pré"l)gico da crian-a e o pensamento neur)tico6. 3oucault acredita que uma perspectiva como a freudiana édependente de# ao menos# dois mitos: o mito de uma substância psicol)gica que progrediriano curso do desenvolvimento individual e social 5substância que seria# no caso# a “libido%enquanto energia psíquica6 e o mito da identidade entre o doente# o primitivo e a crian-aNum mito patrocinado pela cren-a em uma similitude estrita entre filog!nese e ontog!nese.

9ontra tais perspectivas# 3oucault insiste que a regressão é apenas um aspectodescritivo da doen-a. 'té porque# por mais profunda que se+a a dissolu-ão de fun-,escomplexas# a personalidade nunca desaparece completamente# o pr)prio processo dedissolu-ão com seus motivos e modos de desenvolvimento é sempre vinculado aos quadrosde uma personalidade. $aí porque 3oucault pode afirmar que: “o que a regressão da personalidade encontra não são elementos dispersos nem uma personalidade maisarcaica%FF.   Gsto nos exige pois passarmos de uma compreensão evolutiva geral (especificidade da hist)ria pessoal do doente# isto se quisermos compreender o sentido dadoen-a. <u se+a# passarmos de uma psicologia evolutiva a uma psicologia capa4 de levar em conta a dimensão hist)rica da constitui-ão da sub+etividade. $e qualquer forma#3oucault admite que: “a importância do evolucionismo na psicologia advém# sem d8vida#de que ele foi o primeiro a mostrar que o fato psicol)gico s) tem sentido em rela-ão a umfuturo e a um passado# que seu conte8do atual repousa sobre um fundo silencioso deestruturas anteriores que o preenchem com toda uma hist)ria# mas ele implica# ao mesmotempo# um hori4onte aberto para o eventual%F>.

 3oucault come-a o capítulo GGG lembrando que evolu-ão e hist)ria obedecem adimens,es temporais distintas. ' hist)ria é doa-ão de sentido ao passado através deexig!ncias do presente. ] o presente que organi4a e determina o sentido do que érecuperado no passado. Ká a evolu-ão é marca do passado sobre a determina-ão do presente. 1la é o peso determinista de um processo de desenvolvimento +á previamentedefinido. <u se+a# a articula-ão entre passado e presente obedecem# na hist)ria e naevolu-ão# sentidos distintos. $aí porque 3oucault afirmará: “' psicologia da evolu-ão# quedescreve os sintomas como condutas arcaicas# deve ser completada por uma psicologia dag!nese que descreve# em uma hist)ria# o sentido atual de tais regress,es% FI.

 7o interior da psicanálise# encontramos as duas tend!ncias# a evolutiva e a hist)rica.Drosso modo# a dimensão evolutiva aparece na metapsicologia através da teoria das fasesda libido# enquanto que a dimensão hist)rica aparece na clínica através da compreensão da

FE 9'7DUG=H12# Du déeloppement 8 l0éolution au <I< si=cle, p. QEFF 3<U9'U=0# idem# p. @&F> 3<U9'U=0# Dits et écrits, p. &F@FI 3<U9'U=0# &aladie mentale ..., p. F&

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regressão não como queda natural no passado# mas como fuga intencional para fora de um presente conflitual. 0anto que o passado ao qual se retorna é# fundamentalmente# o passadoimaginário das substitui-,es fantasmáticas: “a doen-a tem por conte8do o con+unto dasrea-,es de fuga e de defesa através da qual o doente responde ( situa-ão na qual seencontraN é a partir deste presente# desta situa-ão atual que se deve compreender e dar 

sentido (s regress,es evolutivas que aparecem nas condutas patol)gicasN a regressão não éapenas uma virtualidade da evolu-ão# ela é uma conseqY!ncia da hist)ria% FQ. <u se+a# aregressão é um processo vinculado a conflito que se desenrolam no campo de intera-,es dosu+eito com a configura-ão do meio no qual ele se insere e age. 1sta idéia vem# mais umave4 de olit4er# pois é ele que lembrava que# para a psicanálise# interpretar não era aplicar esquemas prévios de simbologias# mas permitir uma reconstru-ão de contextos no interior da qual o su+eito aparecia em um papel ativo. 1ste é o sentido de uma afirma-ão central deolit4er: “a idéia Ocentral para a psicanáliseP segundo a qual poderia haver uma dialética puramente individual ( qual os atos individuais forneceriam uma significa-ão puramenteindividual é totalmente estranha ( psicologia clássica%FT. or outro lado# esta insist!nciafoucauldiana na hist)ria individual aparece em olit4er através da exig!ncia dereconstru-ão daquilo que ele chama de “drama% como seqY!ncia de atos na qual cada atovai configurando o campo de significa-ão dos atos posteriores.

3oucault chegará mesmo a utili4ar o vocabulário do sentido a fim de insistir que a psicanálise teria tra4ido ( psicologia o problema da produ-ão do sentido ao deixar de ladohip)teses muito amplas e gerais através das quais explicamos o homem como um setor  privilegiado do mundo natural# isto ao insistir no vínculo entre forma-ão de sintomas eresultado de processos de sociali4a-ão. or outro lado# ele compreende a tend!ncia# fortenos anos @X e EX gra-as principalmente a 'nna 3reud# de transformar a psicanálise em umaanálise dos mecanismos de defesa através dos quais o 1u produ4 sintomas contra asexig!ncias pulsionais do isso# em um movimento que indica a insist!ncia no uso psicanalítico da hist)ria. ois analisar os mecanismos de defesa significaria analisar o modocom que o su+eito reprodu4 e reconstitui sua hist)ria a partir de conflitos pr)prios ( suasitua-ão presente. ignifica compreender como ele mobili4a a regressão# o isolamento# aintro+e-ão# a pro+e-ão# a anula-ão retroativa# entre outros# isto a fim de dar conta decontradi-,es nas quais ele se enredou no presente.

2as 3oucault não deixa de fa4er uma pergunta fundamental: qual a nature4a doconflito que produ4 esta fuga em dire-ão ao passado/ 9onflito que não é apenas umaexperi!ncia da contradi-ão e da ambigYidade# mas uma experi!ncia contradit)ria eambivalente Ocomo# por exemplo# aquela responsável pela produ-ão do sintoma f)bico no pequeno HansP. 3reud se servia basicamente da no-ão de dualidade pulsional a fim deexpor uma g!nese 5a"hist)rica e praticamente naturali4ada6 do conflito. 1ste recurso afor-as impessoais que agem na antecãmara da sub+etividade não é a perspectiva de3oucault. 7a verdade# ele prefere lembrar que a dimensão afetiva desta contradi-ão internaque gera o conflito psíquico é a ang8stia. 0rata"se então de compreender a quais ob+etos esitua-,es a ang8stia está normalmente vinculada. 0rata"se# por outro lado# de elevar aang8stia a condi-ão para a compreensão do sentido da hist)ria individual# +á que a ang8stiamarca a nature4a do conflito psíquico responsável pela doen-a. 3oucault chega mesmo aafirmar que a ang8stia é o cora-ão da doen-a.

FQ idem# p. E@FT idem# p. &X?

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=embremos que nem todas as experi!ncias de contradi-ão e conflito sãonecessariamente experi!ncias nas quais a ang8stia aparece como dimensão afetivafundamental. ' pergunta fica sendo pois: o que fa4 com que certos conflitos se+amvivenciados de maneira angustiante e outros não por um su+eitoN o que fa4 com que algunssu+eitos vivam certos conflitos de maneira angustiante enquanto outros su+eitos não caem

em tal situa-ão. 'o colocar quest,es desta nature4a# 3oucault procura uma dimensão paraalém da análise da hist)ria individual# da antropologia do su+eito# +á que se trata dedeterminar um elemento organi4ador da hist)ria# enquanto campo de conflito# para além da pr)pria hist)ria: “para que uma contradi-ão se+a vivenciada sob o modo angustiante daambival!ncia# para que# a respeito de um conflito# o su+eito se feche na circularidade dosmecanismos patol)gicos de defesa# foi necessário que a ang8stia +á estivesse presente# queela tenha transformado a ambiguidade de uma situa-ão em ambival!ncia de rea-,es% >X. $aía necessidade de passar a uma an)lise e$istencial da doen-a# ou se+a# desta maneira comque# a partir da ang8stia# a doen-a se transforma em modo de estar no mundo# em “maneiracom que a exist!ncia humana se oferece no mundo%>&# temporali4ando"se# espaciali4ando"see pro+etando um mundo. 3oucault chega a falar de um “estilo de ang8stia% cu+ainterpreta-ão fornece a unidade significativa dos fen;menos de uma personalidade. 1sta passagem ( exist!ncia é pensada sob o patrocínio da experi!ncia ontol)gica do Dasein. $aí porque ele afirmará: “3a4"se necessário reencontrar a dimensão vertical para apreender aexist!ncia se fa4endo nesta forma de presen-a absolutamente originária na qual se define o Dasein. 'través daí# abandona"se o nível antropol)gico da reflexão que analisa o homemenquanto homem# no interior de seu mundo humano# e acede"se a uma reflexão ontol)gicaque concerne o modo de ser da exist!ncia enquanto presen-a ao mundo% >?.

$e qualquer forma# ao operar a partir desta via# 3oucault não inovava. Raseando"sefundamentalmente em Rins^anger# mas sem deixar de sentir os ecos de alguns trabalhos deKean"aul artre 5em especial * ser e o nada, de &TE@6# 3oucault via# na g!nese da ang8stiaum problema que não podia ser resolvido por uma análise do tipo naturalista# nem por umaanálise do tipo hist)rico. 'o contrário# a hist)ria e a nature4a do homem s) poderia ser compreendidas a partir da ang8stia# +á que ela forneceria a unidade significativa datotalidade de um su+eito.

' este respeito# lembremos# por exemplo# de artre e sua compreensão de que aang8stia é manifesta-ão primeira da liberdade em sua distância em rela-ão ( norma.uando me deparo com uma tal fragili4a-ão daquilo que causa meu ato que apreendominha conduta como um  possíel que# por ser meu possível# não se imp,e de maneiraobrigat)ria# então a consci!ncia da minha liberdade se manifesta como ang8stia. ] nestesentido que devemos compreender a afirma-ão de artre: “' ang8stia como manifesta-ãoda liberdade diante de si significa que o homem está sempre separado de sua ess!ncia por um nada 5...6 7a ang8stia# a liberdade se angustia diante de si mesma enquanto ela nunca ésolicitada ou entravada por nada%>@. desta forma que artre absorve um tema clássico quevincula a ang8stia a uma certa: “nega-ão dos apelos do mundo% e de “desenga+amento nomundo em que estava enga+ado%>E. 'ng8stia como momento de confronta-ão com aquiloque não se articula a partir de princípios de liga-ão derivados do 1u como unidade sintética.

>X 3<U9'U=0# &aladie mentale..., p. F&"F?>& 3<U9'U=0# Dits et écrits, p. &>E>? 3<U9'U=0# idem, p. &@I>@ 'B0B1# #0/tre et le néant, p. IX>E idem, p. IE

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oderíamos seguir esta perspectiva e afirmar que# para o +ovem 3oucault# através daang8stia a doen-a exp,e uma certa experi!ncia trágica constitutiva da liberdade humana.2as quando a ang8stia advém ob+eto de uma psicologia# ela se esva4ia enquantomanifesta-ão da exist!ncia em seu sentido mais amplo.

$ito isto# a reconstitui-ão da hist)ria individual deve se submeter a uma análise da

exist!ncia# a uma reconstitui-ão do universo patol)gico da consci!ncia doente cu+oslineamentos 3oucault procura definir no capítulo GA# intitulado “$oen-a e exist!ncia% 7este sentido# 3oucault se ap)ia em 2in_o^s_i e em Rins^anger a fim de insistir namaneira com que a doen-a mental# em especial em casos de psicose# é solidária demodifica-,es profundas naquilo que determina a configura-ão da posi-ão existencial dossu+eitos# ou se+a# as no-,es de tempo e de espa-o. or exemplo# a lineraridade do tempo ésuspensa em delírios psic)ticos nos quais eventos anteriores repetem"se de maneirainsistente ou se acoplam# de maneira simultânea# com outros eventos ocorridos emmomentos distintos. 0odos conhecemos a modifica-,es na no-ão de espa-o 5ondedicotomias como interno e externo# dentro e fora# longe e perto não conseguem maisorgani4ar a viv!ncia6 assim como na estrutura de rela-,es intersub+etivas resultantes dadoen-a. 0ais modifica-,es permitem a 3oucault falar de uma espécie de “mundo privado%resultante da entifica-ão da doen-a. Uma proposi-ão que n)s +á vimos ao estudarmos9anguilhem com sua no-ão de que a doen-a é um acontecimento que di4 respeito aoorganismo vivo encarado na sua totalidade ois: “não há um 8nico fen;meno que se reali4eno organismo doente da mesma forma como no organismo são%>F. Gsto a ponto dele afirmar que# para um organismo# estar doente é habitar outro mundo.

 7o entanto# 3oucault lembra que# qualquer que se+a o grau da doen-a# o doentereconhece sua anomalia e dá a ela o sentido de uma diferen-a irredutível que o separa daconsci!ncia dos outros. ' doen-a mental sempre implica uma consci!ncia da doen-a# até porque# o universo m)rbido nunca é um absoluto no qual se aboliria toda refer!ncia aonormal. Há sempre a refer!ncia a uma norma partilhada. 7o entanto# esta refer!ncia é feitano interior da pr)pria doen-a e a partir de seus m)biles. 3oucault fala# nestes casos# de um“reconhecimento alusivo%# de uma “consci!ncia ambígua% na qual o normal é reconhecidomas seu valor é suspenso. $e qualquer forma# tal reconhecimento é fundamental por mostrar como a doen-a mental é posi-ão existencial organi4ada a partir de uma refer!nciade normatividade fornecida pelo meio social. <u se+a# a doen-a ainda é um modo de participa-ão social.

Aemos# como isto# que# na aurora da experi!ncia intelectual foucauldiana# +á há ummovimento maior de tentativa de ultrapassagem da categoria de su+eito através de umareflexão sobre as condi-,es de possibilidade do fato hist)rico. < que se insinua primeiramente como uma analítica do  Dasein dará lugar a uma arqueologia das ci!nciasque visa explicar como uma figura como o su+eito foi possível. 2as# para entender este ponto# deveremos passar a %istória da loucura.

>F 9'7DUG=H12# * normal e o patológico, p. F?

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Introdução à experiência intelectual de Michel Foucault

(ula

 7a aula de ho+e# come-aremos a leitura de  %istória da loucura através do comentário deseu primeiro capítulo# “tultifera navis%# e de algumas quest,es presentes no segundo

capítulo# “< grande internamento%.1ste comentário do segundo capítulo será seguido maisde perto na pr)xima aula através# principalmente# da reconstitui-ão do debate entre $erridae 3oucault a respeito das rela-,es entre cogito e loucura. 7este sentido# as leituras para a pr)xima aula serão# além do capítulo em questão de  %istória da loucura, “9ogito e hist)riada loucura%# de Kacques $errida e os textos “2eu corpo# este papel# este fogo% e “Bespostaa $errida%# escritos por 3oucault em &TI?.

'té agora# n)s vimos algumas coordenadas gerais a respeito da maneira com que3oucault se insere naquilo que poderíamos chamar de tradi-ão da “epistemologia hist)rica%francesa# esta cu+os nomes principais são Rachelard# 9anguilhem# CoJré e# de uma maneiramuito particular# olit4er. 1sta inser-ão visou evidenciar como# para 3oucault# a tarefafilos)fica da contemporaneidade era solidária de uma epistemologia. ois a reflexãofilos)fica seria fundamentalmente reflexão epistemologia# quer di4er# reflexãohistoricamente orientada sobre a constitui-ão de ob+etos do discurso científico. 7o entanto#esta epistemologia hist)rica não era resultante apenas da submissão da epistemologia (história das ci/ncias. Havia ainda uma clara articula-ão que visava inserir tais reflex,essobre a hist)ria das ci!ncias em um quadro mais amplo de hist)ria das idéias# dos sistemasfilos)ficos# religiosos# em suma# de uma hist)ria geral das sociedades.

2as se o pensamento científico não forma uma série independente# mas está ligadoa um quadro mais amplo de idéias historicamente determinadas é porque# dirá 3oucault# areflexão epistemol)gica não deve se perguntar apenas sobre os poderes e direitos detécnicas e proposi-,es científicas que aspiram validade# mas deve esclarecer a g!nese dos padr,es de racionalidade e as condi-,es de exercício que se encarnam em técnicas e proposi-,es# assim como se encarnam nas outras forma-,es discursivas que comp,em otecido social. 1sta articula-ão entre epistemologia e reflexão sobre a estrutura dos padr,esde racionali4a-ão permitirá a 3oucault afirmar que o terreno estava aberto para atransforma-ão da epistemologia em linha de frente da crítica da ra4ão. Rastava ummovimento locali4ado# porém prenhe de conseqY!ncias. Um movimento que consistia emretirar o solo realista sobre o qual a epistemologia se movia 5e que assegurava ainda umadire-ão cumulativa do progresso científico6# isto em prol da compreensão do progressocientífico como uma sucessão descontínua de discursos# historicamente limitados# sobre omundo. 0al cren-a permitia a 3oucault afirmar:

' hist)ria das ci!ncias não é a hist)ria do verdadeiro# da sua lenta epifania# ela nãosaberia pretender contar a descoberta progressiva de uma verdade sempre inscritanas coisas ou no intelecto# salvo a imaginar que o saber atual possui enfim talverdade de maneira tão completa e definitiva que ele pode medir o passado a partir dela>>.

 7o entanto# uma coloca-ão desta nature4a deixa em aberto uma questão maior: pois ahist)ria das ci!ncias não pode negligenciar o problema da rela-ão (s expectativas de

>> 3<U9'U=0# idem# p. &FQQ

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descri-,es verdadeiras de estados de coisa. 3oucault sabe disto# ele sabe que a refer!ncia aoverdadeiro e ao falso é pe-a fundamental da especificidade do discurso científico. 2as eleinsistirá se trata# fundamentalmente de compreender a hist)ria das ci!ncias como:

a hist)ria dos Zdiscursos verídicosZ# ou se+a# dos discursos que se retificam# se

corrigem e que operam sobre eles mesmos todo um trabalho de elabora-ãofinali4ada pela tarefa do “di4er verdadeiro%>I.

 7)s vimos como isto levava 3oucault a transformar a epistemologia em algo comouma “contra"hist)ria da ci!ncia%# uma análise dos processos de implementa-ão de critériosdiscursivos de verdade# de constru-ão de limites e de táticas de exclusão que deveriam ser criticados tendo em vistas o desvelamento da maneira com que padr,es hist)ricos deracionalidade fundamentam e constroem a legitimidade de suas opera-,es.

 7o interior do campo de reflex,es epistemol)gicos# vimos ainda como 3oucault privilegiara# desde o início# a análise das práticas médicas e clínicas. $e fato# a constitui-ãoda clínica é o espa-o privilegiado para 3oucault pensar esta epistemologia crítica que logoganhará a forma de uma arqueologia. Aários são os livros dedicados ao assunto 5 Doençamental e psicologia, %istória da loucura, * nascimento da clínica 6# assim como váriosserão os cursos do 9ollSge de 3rance 5* poder psi!ui)trico, *s anormais6. $evemos entãonos perguntar: qual a ra4ão de tal predomínio/

Aimos na aula passada como 3oucault procurava mostrar como a discussão sobredecis,es clínicas a respeito da distin-ão entre normal e patol)gico são# na verdade# um setor de decis,es mais fundamentais da ra4ão a respeito do modo de defini-ão daquilo queaparece como  seu <utro 5a patologia# a loucura etc.6. 1las se inserem em configura-,esmais amplas de racionali4a-ão que ultrapassam o domínio restrito da clínica. ' distin-ãoentre normal e patol)gico# entre sa8de e doen-a é o ponto mais claro no qual a ra4ão secoloca como fundamento de processos de administra-ão da vida# como prática dedetermina-ão do equilíbrio adequado dos corpos em suas rela-,es a si mesmos e ao meioambiente que os envolve. 7o caso da distin-ão entre sa8de e doen-a mental# vemos aindacomo a ra4ão decide# amparando práticas médicas e disciplinares# os limites da partilhaentre liberdade e aliena-ão# entre vontade aut;noma e vontade heter;noma. 0udo isto nosexplica porque 3oucault compreender a reflexão sobre a anatomia da clínica como setor  privilegiado para a compreensão do impacto e das estratégias dos processos deracionali4a-ão.

$entro deste contexto# a constitui-ão de uma “hist)ria da loucura% é procedimentofundamental. $e fato# %istória da loucura é um livro de epistemologia. 0rata"se de expor olento processo de transforma-ão da loucura em “doen-a mental%# em ob+eto de um saber  psiquiátrico e psicol)gico produ4indo# com isto# as condi-,es de possibilidade para oadvento das positividades das ci!ncias clínicas do mental. rocesso este que# não por acaso#tem seu momento decisivo com o advento mesmo da modernidadeN isto ao menos seaceitarmos esta maneira foucauldiana de definir a modernidade como o que advém no finaldo século MAGGG# ou se+a# a partir da constitui-ão de uma episteme que tem na guinadatranscendental _antiana# no advento das ci!ncias humanas e na constitui-ão do “homem%como duplo empírico"transcendental# seus dispositivos maiores. Aeremos o sentido de cadaum deles com clama quando for questão do comentário de  As palaras e as coisas. $e

>I idem# p. &FQQ

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qualquer forma# guardemos o fato de que# para 3oucault# tudo se passa como se o adventoda modernidade fosse solidário da transforma-ão da loucura em doen-a mental. < que taltransforma-ão pode significar# eis um dos ob+etivos maiores do livro.

Uma coisa# no entanto# é certa. < que veremos# em  %istória da loucura, é umacontra"hist)ria da ci!ncia. ois se trata de expor todo o processo hist)rico de constitui-ão

de categorias e de ob+etos de ci!ncias que aspiram positividade# mas tal processo não serámais a narra-ão das descobertas e experi!ncias bem"sucedidas. 1le será a narra-ão daexclusão como condi-ão para o advento de critérios de normalidade e de normal# ela será anarra-ão da maneira com que +ulgamentos morais vão se infiltrando# muitas ve4es a toquede trombeta# em tratados técnicos e práticas que aspiram validade científica. Uma narra-ão bem descrita por 3oucault nos seguintes termos# no prefácio ( primeira edi-ão de  %istóriada loucura:

oderíamos fa4er uma hist)ria dos limites [ destes gestos obscuros# necessariamenteesquecidos desde que reali4ados# através dos quais uma cultura re+eita algo que será para ela o 1xteriorN e# ao longo de sua hist)ria# este va4io profundo# este espa-o branco gra-as ao qual ela se isola as designa tanto quanto seus valores. ois taisvalores# ela os recebe e os mantém na continuidade de sua hist)riaN mas nesta regiãoa respeito da qual gostaríamos de falar# ela exerce suas escolhas essenciais# ela operaa partilha que lhe fornecerá o rosto de sua positividadeN lá se encontra a espessuraoriginária a partir da qual ela se forma>Q. $e fato# a afirma-ão não poderia ser mais clara. ' verdadeira hist)ria da ra4ão

moderna é a hist)ria dos seus limites# da constitui-ão do que deve funcionar como seu1xterior absoluto# no qual ela não mais se reconhece# mas que ao mesmo tempo ela criousob o véu do esquecimento. 'ssim# a hist)ria da loucura será a hist)ria de uma“con+ura-ão%# de um %gesto de ra4ão soberana% através do qual os homem “aprisionam seuvi4inho# comunicam"se e se reconhecem através da linguagem sem perdão da não"ra4ão%>T.$aí porque a rela-ão ra4ão"desra4ão seria uma das dimens,es de originalidade da culturaocidental.

$esta forma# 3oucault pode afirmar que as condi-,es da doen-a mental não serãoencontradas nem na análise da evolu-ão orgânica# nem na compreensão da hist)riaindividual# nem na situa-ão existencial do ser humano. 'té porque# a doen-a mental s) teriarealidade# valor e sentido no interior de uma cultura que a reconhece como tal. 's leis psicol)gicas# base para a partilha entre o normal e o patol)gico em sa8de mental# são# aomenos segundo 3oucault# sempre relativas a situa-,es hist)ricas determinadas.

'parentemente# estaríamos com 3oucault diante de um certo relativismo historicistaque definiria a doen-a mental a partir da norma positivamente enunciada pela médiafornecida pelo social. <u se+a# a doen-a mental seria definida de maneira negativa comodesvio em rela-ão ( normal e de maneira virtual como possibilidade do comportamento nãosancionada socialmente. 2as 3oucault quer complexificar esta rela-ão entre norma eloucura. 1le lembra# por exemplo# que encontramos situa-,es nas quais as doen-as sãoreconhecidas como tais# mas t!"las é# ao mesmo tempo# condi-ão necessária para que certossu+eitos possam assumir certos papéis sociais. or exemplo# ele cita# em  Doença mental e psicologia, certas patologias necessárias para que# em certas sociedades# alguém se+a

>Q 3<U9'U=0# $its et écrits# p. &QT>T idem# p. &QI

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reconhecido como xamã. 1sta é uma maneira de mostrar como uma sociedade pode seexprimir positivamente nas doen-as mentais manifestadas por seus membros. < que nosdeixa como duas quest,es maiores: “9omo nosso cultura conseguiu dar ( doen-a o sentidode desvio e ao doente um estatuto de exclusão/ 1 como# apenas disto# nossa sociedade seexprime nestas formas m)rbidas que nas quais ela recusa a reconhecer"se/%IX. 

Besponder esta pergunta exigirá um método híbrido derivado de uma epistemologiahist)rica que compreende a hist)ria das ci!ncias como indissociável de uma hist)ria dasidéias 5na qual a filosofia tem um papel decisivo6. $aí porque 3oucault poderá afirmar:

3a4er a hist)ria da loucura significará di4er: fa4er um estudo estrutural do con+untohist)rico [ no-,es# institui-,es# medidas +urídicas e policiais# conceitos científicos [ que capturam uma loucura cu+o estado selvagem nunca pode ser restituído em simesmoN mas a despeito desta inacessível pure4a primitiva# o estudo estrutural deveremontar em dire-ão ( decisão que# ao mesmo tempo# liga e separa ra4ão e loucuraNela deve tender a descobrir a troca perpétua# a obscura rai4 comum# o afrontamentooriginário que dá sentido tanto ( unidade quanto ( oposi-ão do sentido e doinsensatoI&.

4 grau -ero da hist/ria da loucura

2as esta hist)ria da loucura tem duas peculiaridades maiores. rimeiro# trata"se defa4er a hist)ria da loucura na idade cl)ssica. ' no-ão de classicismo em 3oucault é central para a constitui-ão de sua compreensão da modernidade. Drosso modo# o classicismo é este período que# no interior da hist)ria da filosofia# iria de $escartes a Cant. ' ele e (especificidade de suas estruturas de racionalidade que fornecerá as condi-,es de possibilidade para o advento da modernidade# 3oucault dedicará longos capítulos de  As palaras e as coisas.  7o caso do nosso livro# 3oucault fornece duas datas que marcariam ahist)ria da loucura na idade clássica: a cria-ão do Hospital Deral# na aris de &>FI# comsuas exig!ncias de internamento de loucos# libertinos e desempregados# e a libera-ão por inel dos loucos acorrentados em Ric!tre# isto na aris revolucionária de &ITE. <u se+a# háfundamentalmente uma experi!ncia de interna-ão e de encarceramento que servirá demarco# +á que# como dirá o pr)prio 3oucault: “rocurei sobretudo ver se havia uma rela-ãoentre esta nova forma de exclusão e a experi!ncia da loucura em um mundo dominado pelaci!ncia e por uma filosofia racionalista%I?.

Uma experi!ncia de internamento que mudará completamente de sentido com inele com o advento da psiquiatria moderna. ] deste internamento que parte 3oucault. ] dele setrata logo nas primeiras frases de %istória da loucura:

'o final da Gdade 2édia# a lepra desaparece do mundo ocidental. 7as margens dacomunidade# abrem"se grandes plagas que o mal não assombra mais# mas ele asdeixou estéreis e# por muito tempo# inabitadasI@.

IX 3<U9'U=0# &aladie mentale, p. IFI& 3<U9'U=0# $its et écrits# p. &TEI? idem# p. &T>I@ 3<U9'U=0# %istoire de la folie, p. &F

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3oucault se refere aos mais de &T.XXX grandes leprosários agora va4ios espalhados por toda a 1uropa. $urante séculos# eles cristali4aram uma experi!ncia de exclusão social ereintegra-ão espiritual que marcará aqueles que posteriormente habitarem tais estruturasva4ias. 1les serão inicialmente os afetados de doen-as venéreas# aos quais rapidamente seacrescentarão os loucos# dois ob+etos presentes em um espa-o moral de exclusão. 3ato

inédito até então pois:'ntes que a loucura fosse dominada# por volta da metade de século MAGG# antes quefosse ressuscitado# a seu favor# velhos ritos# ela fora vinculada# de maneiraobstinada# ( todas as experi!ncias maiores da Benascen-aIE.

2as o que significa este vínculo entre a loucura e as experi!ncias maiores daBenascen-a/ 3oucault inicia lembrando do que significava aquilo que a literatura chamaráde “nau dos insensatos%: estes barcos que navegavam a esmo tra4endo uma tripula-ão deloucos deixados ( sua pr)pria sorte. ' nau é a figura-ão desta situa-ão limiar do louco:“prisioneiro no meio da mais livre# da mais aberta das rotas%. $e fato# o mar# símbolo daaus!ncia de territ)rio# da abertura ( conting!ncia# e o louco# “o passageiro por excel!ncia# o prisioneiro da passagem%# estavam ligados durante muito tempo no imaginário do homemeuropeu. 7o entanto# esta figura-ão ganha uma for-a suplementar na Benascen-a.

3oucault vai então construir um argumento segundo o qual a loucura aparecera naBenascen-a como espa-o e modo de manifesta-ão da verdade. < louco é# muitas ve4es#aquele que ocupa a cena do teatro para denunciar a insensate4 do mundo. 1m outrassitua-,es# ele é aquele que está completamente cego pelas suas certe4asN como seexperi!ncia da loucura fosse intimamente ligada a uma sátira moral. 'os olhos de 3ocault#isto indicaria uma configura-ão do saber no qual a loucura não apareceria como aquilo quese coloca na exterioridade da racionalidade# mas como um fato interno ( pr)pria ra4ão.'nalisando textos literários# filos)ficos e morais da Gdade 2édia e da Benascen-a nos quaisé questão da loucura# 3oucault conclui que# em todos os casos: “' loucura é um momentoduro# mas essencial no trabalho da ra4ão%IF. ois “a verdade da loucura está no fato dela ser interior ( ra4ão# dela ser uma figura da ra4ão# algo como uma for-a e uma necessidademomentânea que a ra4ão utili4a para melhor se assegurar de si mesma% I>.

1ste momento da loucura no interior de uma ra4ão que procura melhor se assegurar de si mesma está indissociável de uma experi!ncia da finitude da exist!ncia diante damorte. 3oucault ap)ia"se nas conseqY!ncias da grande experi!ncia social da proximidade damorte devido ( prolifera-ão da peste e de outras epidemias# isto a fim de lembrar que: “$adescoberta desta necessidade que fatalmente redu4ia o homem a nada Oa morteP# passa"se acontempla-ão que despre4a este nada que é a exist!ncia humana Ouma exist!ncia cu+asexig!ncias ordinárias são necessariamente loucuraP%II. <u se+a# tanto na loucura quanto namorte# é sempre do nada da exist!ncia que é questão. 7este sentido# a sabedoria consiste emdenunciar a universalidade da loucura# ou se+a# a presen-a incessante da loucura emopera-ão todas as ve4es que o homem desvia"se da certe4a de que eles não são nada maisdo que mortos a espera de sepultura. $entre outros# é de 2ontaigne e de 1rasmo de Boterdãque fala 3oucault.

IE 3<U9'U=0# idem# p. ?&IF 3<U9'U=0# %istória de la folie, p. FFI> 3<U9'U=0# idem, p. F>II idem# p. @&

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0al proximidade da loucura ( ra4ão leva 3oucault a falar da experi!ncia daBenascen-a como uma consci!ncia trágica da loucura. 0ragédia significa aqui aimpossibilidade da ra4ão operar sem reconhecer que as fronteiras com seu outro sãointernas a ela mesma. 9onsci!ncia que seria responsável# entre outras coisas# pela não"exclusão do louco através da interna-ão: “'ntes do século MAGGG# a loucura não era

sistematicamente internada# e era essencialmente considerada como uma forma de erro ouilusão 5....6 's prescri-,es dadas pelos médicos eram de prefer!ncia a viagem# o repouso# o passeio# o retiro# o corte com o mundo vão e artificial da cidade%IQ. Betenhamos firmementeesta articula-ão entre erro# ilusão e loucura# pois ela será importante mais a frente.

( dissolução de um mundo e a consciência trgica da loucura

2as esta temática da loucura como momento interno ( pr)pria ra4ão s) pode aparecer como sintoma de um mundo em decomposi-ão. 3oucault lembra que a pr)pria no-ão deracionalidade até a renascen-a estava fundamentalmente vinculada a uma certa no-ão demimesis,  de semelhan-a# de analogia e de simpatia: “'té o fim do século MAG# asemelhan-a desempenhou um papel decisivo no saber da cultura ocidental%IT. rocurar osentido era# fundamentalmente# expor as rela-,es de semelhan-a. ' pr)pria rela-ão dalinguagem ao mundo era pensada sob a forma da analogia# e não sob a forma darepresenta-ão. 2as esta episteme fundada na cren-a da pot!ncia cognitiva da mimesis,cren-a capa4 de ordenar um simbolismo fechado sobre o mundo e suas figuras sedissolverá. 9om o esgotamento de uma episteme# são as opera-,es elementares de sentidoque perdem seu fundamento. $aí este mundo no qual: “0antas significa-,es diversasinserem"se sob a superfície da imagem que ela não apresenta mais do que uma faceenigmática%QX. 7este sentido# a loucura é figura da experi!ncia hist)rica do esgotamento deuma figura do saber. 1ste mundo em decomposi-ão# como 3oucault lembrará em páginasmaiores de As palaras e as coisas, é o mundo de $om uixote# um mundo no qual oindivíduo vaga sem rumo pois os fen;menos +á não respondem mais a suas expectativas deracionalidade# todas fundadas na for-a da semelhan-a:

$om uixote é a primeira das obras modernas porque vemos aí a ra4ão cruel dasidentidades e das diferen-as 4ombar incessantemente dos signos e das similitudes# porque a linguagem rompe seu velho parentesco com as coisas para entrar nestasoberania solitária de onde ela s) reaparecerá# em seu ser abrupto# como literaturaN porque a semelhan-a entra em uma idade que é para ela a idade da desra4ão e daimagina-ãoQ&.

1ste é o mundo# ainda segundo 3oucault# de Keronimus Rosch com suas figuras híbridasque não se submetem mais a princípio algum de semelhan-a# seu desregramento queexprime o fim de um mundo. Aeremos no pr)ximo m)dulo como compreender quais aslinhas de for-a em opera-ão nesta ruptura de episteme e a desqualifica-ão da mimesis. or enquanto# lembremos apenas que# não será por acaso que a doen-a mental# em especial a psicose# será vista séculos mais tarde como um pensamento alienado nas malhas da

IQ 3<U9'U=0# 2ichelN 2icrofísica do poder# &?XIT 3<U9'U=0# #es mots et les choses, p.N @?QX 3<U9'U=0# %istoire de la folie, p. @FQ& 3<U9'U=0# #es mots et les choses, p. >@

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analogia e das identifica-,es imaginárias. 1 a pr)pria hist)ria da modernidade será# entreoutras coisas# a hist)ria da desqualifica-ão da for-a anal)gica da imagem. ensar por imagens será# +á desde $escartes# uma forma degradada de pensar.

2as no interior da experi!ncia renascentista da loucura# 3oucault identifica duaslinhas maiores de for-a: uma por ele designada de “experi!ncia c)smica 5ou trágica6 da

loucura%# outra recebendo o nome de “experi!ncia crítica da loucura%. ' exist!ncia destaduplicidade será fundamental para a explica-ão posterior do modo com que a loucuraaparecerá# na Gdade 9lássica# como ob+eto privilegiado de exclusão:

$e um lado# haverá uma nau dos insensatos# plena de rostos perdidos# que pouco a pouco imergem na noite do mundo# dentre paisagens que falam da estranha alquimiados saberes# das surdas amea-as da bestialidade e do final dos tempos. $o outrolado# haverá uma nau dos insensatos que forma para os sábios a <disséia exemplar edidática dos defeitos humanos. $e um lado: Rosch# Rrueghel# 0hierrJ Routs# $Yrer e todo o sil!ncio das imagens 5...6 $o outro# com Rrant# com 1rasmo# com toda atradi-ão humanista# a loucura é absorvida no universo do discursoQ?.

<u se+a# a dita experi!ncia crítica da loucura será marcada pela denuncia-ão ir;nicada universalidade da loucura no mundo. 1la é a ast8cia de uma ra4ão que denuncia aestreite4a do saber# a cegueira do vício# mas que s) pode pensar a loucura ou como umaforma relativa ( ra4ão ou como uma das formas mesmas da ra4ão. 7o primeiro caso# aloucura é apenas a desmesura da sabedoria em rela-ão ( ra4ão dos homens. 7este sentido#lembra 3oucault:

1m rela-ão á abedoria OdivinaP a ra4ão do homem era apenas loucura# em rela-ão ara4ão estreita dos homens# a Ba4ão divina é tomada no movimento essencial da=oucura. 2edida a partir de uma grande escala# tudo é apenas loucura# medido a partir de uma pequena escala# o pr)prio 0odo é loucuraQ@.

Ká enquanto forma relativa ( ra4ão# a loucura apenas aparece como momento internoao trabalho da ra4ão# como ponto opaco no qual a ra4ão se arrisca todas as ve4es que procura construir sua obra. 1la é uma for-a interna# uma figura que a ra4ão deve atravessar  para melhor se assegurar de si mesma: “7ão há um grande espírito sem uma mistura deloucura%# dirá 9harron. 2as nos dois casos a loucura nunca representa uma dissolu-ão da perspectiva da ra4ão# ela é apenas o momento necessário para que tal perspectiva se+aassentada em solo seguro. 7este sentido# 3oucault lembrará que é através dosdesdobramentos da consci!ncia crítica da loucura que poderá se constituir algo como estaexperi!ncia clássica marcada pelo internamento e pela exclusão Uma experi!ncia que pressup,e uma loucura dominada pelo discurso racional e locali4ada como fato regional.Uma domina-ão pelo discurso racional que não cessará de aumentar e de cavar um fosso#isto até que entre loucura e ra4ão não passe nada mais do que uma exterioridade indiferenteentre opostos.

2as 3oucault insistirá também que a Benascen-a conheceu uma “consci!nciatrágica da loucura% que será esquecida e s) se revelará bem mais tarde através das obras deum 7erval# H,lderlin# 7iet4sche# 'rtaud# Boussel. Gsto a ponto de 3oucault afirmar: “ob aQ? 3<U9'U=0# %istoire de la folie, p. E>Q@ idem# p. F?

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consci!ncia crítica da loucura e de suas formas filos)ficas ou científicas# morais oumédicas# uma surda consci!ncia trágica nunca cessou de velar%QE. 2as o que pode significar exatamente tal consci!ncia trágica/ 1# problema maior# qual palavra pode descrev!"la/

'ntes de tentar responder tais quest,es# este+amos atentos ao lugar que talconsci!ncia trágica ocupa no método foucauldiano. Ká sabemos que a  %istória da loucura é

uma contra"hist)ria do discurso científico que ob+etiva a loucura através da no-ão de“doen-a mental%. abemos como 3ocault irá tentar expor o lento movimento deconstitui-ão de uma racionalidade clínica a partir da sua rela-ão solidária com o advento deestruturas de racionalidade no período clássico e moderno. 2as 3oucault precisa operar esta crítica aos saberes positivos sem economi4ar a discussão a respeito do fundamentocapa4 de orientar a crítica. 'qui# esta fun-ão será ocupada por uma experi!ncia de proximidade imanente e essencial entre ra4ão e loucura que 3oucault procura temati4ar através da no-ão de “tragédia%. Aeremos# mais a frente# como serão principalmente Rataille#Rlanchot e Clossovs_i aqueles a fornecer ( 3oucault a forma capa4 de apreender taltragédia através da temática da transgressão ao discurso da ra4ão e de uma experi!ncia do“ser do limite% 5embora ainda não saibamos o que pode significar isto# transgressão/6. <use+a# um recurso a experi!ncias disruptivas do “p)s"surrealismo%.

$e qualquer forma# +á no prefácio ( primeira edi-ão de  %istória da loucura,3oucault# valendo"se de 7iet4sche# confronta a “dialética da hist)ria% fundada na dinâmicaconflitual entre a ra4ão e seu <utro (s “estruturas im)veis do trágico%# ou se+a# espa-o deuma “implica-ão confusa% de p)los que ainda não são exatamente opostos sem seremtotalmente indiferenciados:

$omínio no qual o homem de loucura e o homem de ra4ão# separando"se# não sãoainda separados e# em uma linguagem muito originária# muito frustra# bem maismatinal que a linguagem da ci!ncia# sustentam o diálogo sua ruptura quetestemunha# de uma maneira fugidia# que eles ainda se falamQF.

2as que linguagem é esta na qual os separados não são opostos nem indiferentes uns aosoutros/ Uma “rai4 calcinada do sentido%# para usar um termo do pr)prio 3oucault# pr)pria auma linguagem onde a contradi-ão não é submetida a uma dialética. 3oucault fala# (sve4es# de uma linguagem capa4 de interrogar: “uma origem sem positividade e umaabertura que ignora as paci!ncias do conceito%Q>. 2as isto implica uma linguagem que se+auma “linguagem da aus!ncia de obra%# ou se+a# linguagem da destrui-ão da no-ão de obra:“uma palavra que se dobra sobre si mesma# di4endo outra coisa para além do que ela di4#outra coisa a respeito da qual ela é# ao mesmo tempo# o 8nico c)digo possível%QI. Aeremosmais a frente como esta linguagem dupla# que é# ao mesmo tempo# anula-ão do c)digo partilhado e duplica-ão do c)digo vem da reflexão sobre a pot!ncia da estética modernista.ue ela nos leve a este solo no qual ra4ão e loucura não se confrontam mais sob o signo daexclusão# um solo que exige uma reconfigura-ão nas pr)prias opera-,es da ra4ão# eis umcaminho o que 3oucault ainda precisará nos indicar. 2as# por enquanto# vale a pena tentar compreender como esta ruptura entre ra4ão e loucura se deu.

QE 3<U9'U=0# idem# p. EIQF 3<U9'U=0# $its et écrits# p. &QQQ> idem# p. ?>IQI 3<U9'U=0# $its et écrits# p. EEF

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Curso Foucault

(ula 5

 7a aula de ho+e# continuaremos o comentário de %istória da loucura através da leitura doscapítulos intitulados “< grande internamento% e “< mundo correcional%. 7a aula que vem#

terminaremos o comentário do texto através de um salto que nos permitirá comentar tr!scapítulos finais# a saber: “' nova partilha%# “$o bom uso da liberdade% e# principalmente#“< nascimento do asilo%.

Aimos# na aula passada# como 3oucault organi4a seu livro a partir do comentário doque estaria em +ogo em duas datas que marcariam a hist)ria da loucura na idade clássica: acria-ão do Hospital Deral# na aris de &>FI# com suas exig!ncias reais de internamento deloucos# libertinos e desempregados# e a libera-ão por inel dos loucos acorrentados emRic!tre# isto na aris revolucionária de &ITE. <u se+a# há fundamentalmente umaexperi!ncia de interna-ão e de encarceramento que servirá de marco# +á que# como dirá o pr)prio 3oucault: “rocurei sobretudo ver se havia uma rela-ão entre esta nova forma deexclusão e a experi!ncia da loucura em um mundo dominado pela ci!ncia e por umafilosofia racionalista%QQ. Uma experi!ncia de internamento que mudará completamente desentido com inel e com o advento da psiquiatria moderna.

2as o que haveria antes da exclusão/ ual o estatuto da loucura neste períodoanterior (quilo que 3oucault chama de “idade clássica%/ ] a fim de responder tais perguntasque 3oucault afirma:

'ntes que a loucura fosse dominada# por volta da metade de século MAGG# antes quefosse ressuscitado# a seu favor# velhos ritos# ela fora vinculada# de maneiraobstinada# ( todas as experi!ncias maiores da Benascen-aQT.

' aula passada foi dedicada ( discussão sobre o significado deste vínculo entre aloucura e as experi!ncias maiores da Benascen-a. 3oucault vai então construir umargumento segundo o qual a loucura aparecera na Benascen-a como espa-o e modo demanifesta-ão da verdade. < louco é# muitas ve4es# aquele que ocupa a cena do teatro paradenunciar a insensate4 do mundo. 1m outras situa-,es# ele é aquele que estácompletamente cego pelas suas certe4asN como se experi!ncia da loucura fosse intimamenteligada a uma sátira moral. 'os olhos de 3ocault# isto indicaria uma configura-ão do saber no qual a loucura não apareceria como aquilo que se coloca na exterioridade daracionalidade# mas como um fato interno ( pr)pria ra4ão. 'nalisando textos literários#filos)ficos e morais da Gdade 2édia e da Benascen-a nos quais é questão da loucura#3oucault conclui que# em todos os casos: “' loucura é um momento duro# mas essencial notrabalho da ra4ão%TX. ois “a verdade da loucura está no fato dela ser interior ( ra4ão# delaser uma figura da ra4ão# algo como uma for-a e uma necessidade momentânea que a ra4ãoutili4a para melhor se assegurar de si mesma%T&.

1ste momento da loucura no interior de uma ra4ão que procura melhor se assegurar de si mesma está indissociável de uma experi!ncia da finitude da exist!ncia diante damorte. 3oucault ap)ia"se nas conseqY!ncias da grande experi!ncia social da proximidade da

QQ idem# p. &T>QT 3<U9'U=0# idem# p. ?&TX 3<U9'U=0# %istória de la folie, p. FFT& 3<U9'U=0# idem, p. F>

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morte devido ( prolifera-ão da peste e de outras epidemias# isto a fim de lembrar que: “$adescoberta desta necessidade que fatalmente redu4ia o homem a nada Oa morteP# passa"se acontempla-ão que despre4a este nada que é a exist!ncia humana Ouma exist!ncia cu+asexig!ncias ordinárias são necessariamente loucuraP%T?. <u se+a# tanto na loucura quanto namorte# é sempre do nada da exist!ncia que é questão. 7este sentido# a sabedoria consiste em

denunciar a universalidade da loucura# ou se+a# a presen-a incessante da loucura emopera-ão todas as ve4es que o homem desvia"se da certe4a de que eles não são nada maisdo que mortos a espera de sepultura. 0al proximidade da loucura ( ra4ão leva 3oucault afalar da experi!ncia da Benascen-a como uma consci!ncia trágica da loucura.

 7a verdade# no interior da experi!ncia renascentista da loucura# 3oucault identificaduas linhas maiores de for-a: uma por ele designada de “experi!ncia c)smica 5ou trágica6da loucura%# outra recebendo o nome de “experi!ncia crítica da loucura%. ' exist!ncia destaduplicidade será fundamental para a explica-ão posterior do modo com que a loucuraaparecerá# na Gdade 9lássica# como ob+eto privilegiado de exclusão:

$e um lado# haverá uma nau dos insensatos# plena de rostos perdidos# que pouco a pouco imergem na noite do mundo# dentre paisagens que falam da estranha alquimiados saberes# das surdas amea-as da bestialidade e do final dos tempos. $o outrolado# haverá uma nau dos insensatos que forma para os sábios a <disséia exemplar edidática dos defeitos humanos. $e um lado: Rosch# Rrueghel# 0hierrJ Routs# $Yrer e todo o sil!ncio das imagens 5...6 $o outro# com Rrant# com 1rasmo# com toda atradi-ão humanista# a loucura é absorvida no universo do discursoT@.

<u se+a# a dita experi!ncia crítica da loucura será marcada pela denuncia-ão ir;nicada universalidade da loucura no mundo. 1la é a ast8cia de uma ra4ão que denuncia aestreite4a do saber# a cegueira do vício# mas que s) pode pensar a loucura ou como umaforma relativa ( ra4ão ou como uma das formas mesmas da ra4ão. 7o primeiro caso# aloucura é apenas a desmesura da sabedoria em rela-ão ( ra4ão dos homens. Ká enquantoforma relativa ( ra4ão# a loucura apenas aparece como momento interno ao trabalho dara4ão# como ponto opaco no qual a ra4ão se arrisca todas as ve4es que procura construir suaobra. 1la é uma for-a interna# uma figura que a ra4ão deve atravessar para melhor seassegurar de si mesma. 2as nos dois casos a loucura nunca representa uma dissolu-ão da perspectiva da ra4ão# ela é apenas o momento necessário para que tal perspectiva se+aassentada em solo seguro.

2as 3oucault insistirá também que a Benascen-a conheceu uma “consci!nciatrágica da loucura% que será esquecida e s) se revelará bem mais tarde através das obras deum 7erval# H,lderlin# 7iet4sche# 'rtaud# Boussel. Ká no prefácio ( primeira edi-ão de %istória da loucura, ele confronta a “dialética da hist)ria% fundada na dinâmica conflitualentre a ra4ão e seu <utro (s “estruturas im)veis do trágico%# ou se+a# espa-o de uma“implica-ão confusa% de p)los que ainda não são exatamente opostos sem serem totalmenteindiferenciados:

$omínio no qual o homem de loucura e o homem de ra4ão# separando"se# não sãoainda separados e# em uma linguagem muito originária# muito frustra# bem mais

T? idem# p. @&T@ 3<U9'U=0# %istoire de la folie, p. E>

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matinal que a linguagem da ci!ncia# sustentam o diálogo sua ruptura quetestemunha# de uma maneira fugidia# que eles ainda se falamTE.

2as que linguagem é esta na qual os separados não são opostos nem indiferentesuns aos outros/ Uma “rai4 calcinada do sentido%# para usar um termo do pr)prio 3oucault#

 pr)pria a uma linguagem onde a contradi-ão não é submetida a uma dialética. 3oucaultfala# (s ve4es# de uma linguagem capa4 de interrogar: “uma origem sem positividade e umaabertura que ignora as paci!ncias do conceito%TF. 9ertamente# esta não é a linguagem clara edistinta destas opera-,es conceituais dirigidas pela “lu4 natural da ra4ão%. 7ão é por outrara4ão que para compreender o que está em +ogo no aparecimento destas linhas duras deexclusão entre ra4ão e loucura# devemos passar por $escartes.

Cogito e hist/ria da loucura

1m &>F># =uis MGGG edita um decreto criando# em aris# o Hospital Deral. ' princípio# isto não parece mais do que uma reforma administrativa visando abrigar# sob uma8nica administra-ão# vários estabelecimentos de caridade e médicos +á existentes. uafun-ão será de acolher aqueles que ali se apresentam# se+a por vontade pr)pria# se+a sobordem +urídica de interna-ão. 7esta popula-ão de internos# encontramos pobres#desempregados# mas também aqueles que são enviados pelo poder p8blico: loucos#libertinos# acometidos de doen-as venéreas. Bapidamente# a figura institucional do Hospitalgeral se espalha por toda a 1uropa# normalmente utili4ando as estruturas de antigosleprosários desativados depois do desaparecimento da doen-a. or trás desta simplesmedida administrativa# 3oucault percebe a figura +urídica maior de modifica-,es profundasna partilha entre ra4ão e loucura pr)pria ao advento da idade clássica. 2as# para que talsentido se+a visível# para que a no-ão de “grande internamento% se+a uma categoriadescritiva de instaura-ão de uma nova figura da ra4ão# 3oucault precisa operar ummovimento arriscado.

1ste movimento consiste em recorrer a um texto filos)fico fundador damodernidade# mas para confrontá"lo (quilo que se coloca em sua exterioridade# (quilo quenão pode ser visto como fa4endo diretamente parte da cadeia causal que constitui as linhasde for-a claramente postas pelo texto. 1ste texto# por sua ve4# será questionado em umaarticula-ão regional# em um ponto que aparece como um certo sintoma que o pr)prio textodeixa expor"se de maneira quase que involuntária. 2as um sintoma que é a marca doslimites pr)prios do texto# marcas da impossibilidade do texto pensar certas quest,es.2arcas que denunciam linhas de for-a que atuam na exterioridade. $aí porque# quando3oucault# em %istória da loucura, define aquilo que ele chama de “grande internamento% eque marca um momento de modifica-ão radical no estatuto da loucura que ocorre no séculoMAGG# ele insiste em mostrar como o significado de tal modifica-ão s) pode ser pensável eapreendido ao articularmos acontecimentos absolutamente independentes e que segueml)gicas pr)prias. ' medida administrativa que consistiu em internar libertinos#desempregados e loucos em antigos leprosários desativados não participa da mesma l)gicaque levou $escartes a conceber# de uma maneira excludente# a rela-ão entre racionalidade eloucura nas  &editaç'es.  7o entanto# a reflexão sobre estes dois acontecimentos deve

TE 3<U9'U=0# $its et écrits# p. &QQTF idem# p. ?>I

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convergir para que possamos apreender a maneira com que a ra4ão moderna define o quelhe é exterior.

< trecho que interessa 3oucault está logo na rimeira medita-ão. “2as# ainda queos sentidos nos enganem (s ve4es# no que se refere (s coisas pouco sensíveis e muitodistantes# encontramos talve4 muitas outras# das quais não se pode ra4oavelmente duvidar#

embora as conhec!ssemos por intermédio deles: por exemplo# que eu este+a aqui# sentado +unto ao fogo# vestido com um chambre# tendo este papel entre as mãos e outras coisasdesta nature4a. 1 como poderia eu negar que estas mãos e este corpo se+am meus/ ' n(oser# talve4 que eu me compare a esses insensatos 5insanis6# cu+o cérebro está de tal modo perturbado e ofuscado pelos negros vapores da bile que constantemente asseguram que sãoreis quando estão inteiramente nusN ou imaginam ser cântaros ou ter um corpo de vidro.2as qu!/ ão loucos 5amentes6 e eu não seria menos extravagante 5demens6 se me guiasse por seus exemplos%T>.

< que chama a aten-ão de 3oucault é a distin-ão# feita por $escartes# entre erro#ilusão e loucura. 's experi!ncias do erro dos sentidos e da ilusão dos sonhos serãoabsorvidas no encaminhamento da ra4ão em dire-ão a sua auto"fundamenta-ão. 1las farão parte da ordem das ra4,es. 2as a experi!ncia da loucura será simplesmente desqualificada.'parentemente# a recusa do argumento da loucura na crítica a um saber fundamentado na percep-ão sensível é total. 3oucault é sensível ao fato de $escartes utili4ar ao mesmotempo um termo médico 5insanis6 e +urídico 5amens> demens6 que indica aqueles que estãofora de todo e qualquer diálogo racional# uma categoria de pessoas incapa4es de certos atoscivis# religiosos e +udiciários.  Insanis é um termo caracteri4ante# amens e demens sãotermos desqualificantes.

Gsto demonstraria a distância entre# de um lado# a experi!ncia do erro dos sentidos eda ilusão dos sonhos e# de outro# da loucura. < erro e a ilusão di4em respeito ao ob+eto do pensamento e invalidam os conte8dos mentias do pensamento# a loucura di4 respeito aosu+eito que pensa# e eu que penso não posso ser louco +á que a loucura seria condi-ão deimpossibilidade do pensamento. 7este ponto# 3oucault convoca 2ontaigne para medir adistância que separa esta exclusão da loucura da compreensão anterior da sua proximidadecom a ra4ão: “assim o perigo da loucura desapareceu do exercício mesmo da ra4ão. 1stavoltou"se para um plena possessão de si na qual ela s) pode encontrar armadilhas com oerro e perigos como a ilusão%TI. ' partir de agora# a loucura estaria exilada da região dosaber# o pensamento racional não pode ser insensato ou# em certos momentos# irracional. ]neste ponto que a crítica de $errida irá incidir.

$e fato# $errida mobili4a seu aparato conceitual para defender a idéia de que ocogito cartesiano é a enuncia-ão de: “uma experi!ncia que# no seu ponto mais extremo#talve4 não se+a menos aventureira# perigosa# enigmática# noturna e patética que aexperi!ncia da loucura# e que# creio eu# lhe é bem menos adversa e acusadora# acusativa#ob+etivante do que 3oucault acredita%TQ. <u se+a# trata"se de procurar defender a hip)tese deum cogito cu+a enuncia-ão não exclui o reconhecimento da proximidade estrutural entrera4ão e loucura. Hip)tese que anularia o quadro hist)rico de compreensão dos processos deruptura e reconfigura-ão das estruturas da ra4ão tal como pressuposto pro 3oucault.Hip)tese que anularia também a pressuposi-ão de uma exterioridade ao logos que $errida

T> $19'B01# 2edita-,es# p. TETI 3<U9'U=0# %istoire de la folie, p. >TTQ $1BBG$'# KacquesN Cogito et historie de la folie, p. FF

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não pode aceitar por estar envolvido em uma crítica da “metafísica da presen-a% a respeitoda qual# a seus olhos# 3oucault seria ainda estranhamente tributário.

Contra a arueologia

0oda a primeira parte do texto de $errida é uma espécie de grande questão demétodo. 0rata"se# de uma certa forma# de insistir neste impasse aparente pr)prio (quelesque procuram desenvolver uma crítica totali4ante da ra4ão# crítica que insiste na imbrica-ãoentre racionalidade e domina-ão# utili4ando as armas da pr)pria ra4ão.

$errida procura inicialmente : “questionar algumas pressuposi-,es hist)ricas emetodol)gicas desta hist)ria da loucura%TT. 3oucault teria procurado transformar a loucurano su;eito do seu livro. < termo aqui deve ser pego no seu duplo sentido : trata"se tanto doassunto do livro quanto aquele que fala. ois não seria questão de mais um discurso  so"rea loucura# discurso que toma o fen;meno da loucura como ob+eto de um saber que não seconfunde com aquilo sobre o qual ele fala. 3oucault procuraria# de uma certa forma# dar a palavra ( loucura# ou se+a# descrever a transforma-ão da loucura em “doen-a mental%através a assun-ão de uma perspectiva que avalia a partir do solo do que foi excluído. Gstosignifica não mais falar da loucura nos moldes da consci!ncia clínica ou da consci!nciacrítica que moldou a racionalidade a partir da idade clássica. 1m outras palavras#estaríamos diante de uma crítica da ra4ão que precisaria fundamentar seus protocolos deavalia-ão sem recorrer ( mesma ra4ão que é ob+eto de desqualifica-ão. 1mpreendimentoimpossível aos olhos de $errida# +á queN “Toda nossa linguagem européia# a linguagem detudo aquilo que participou# de um +eito ou de outro# ( aventura da ra4ão ocidental# é adelega-ão de pro+eto que 3oucault define sob a forma de captura ou de ob+etiva-ão daloucura%&XX. Gsto nos lembraria que# diante da Ba4ão : “n)s s) poderíamos chamar contra elaapenas ela mesma# n)s s) poderíamos protestar contra ela no seu interior% &X&.

$aí porque $errida insiste na distin-ão entre duas linhas de crítica esbo-adas por 3oucault. rimeiro# trata"se de recuperar a palavra da loucura através de uma espécie dear!ueologia do sil/ncio. ' loucura é exatamente aquilo que se marca pela aus!ncia de palavra reconhecida. 1la é a palavra que não tem dignidade suficiente para ser reconhecidacomo portadora de um su+eito# de um sentido que circula. 2ais do que isto. ' loucura seriadestrui-ão do poder comunicacional da palavra. odemos di4er que o ponto no qual incide$errida aparece se colocarmos então a questão: “qual o estatuto do saber filos)fico que procura dar a palavra ( pr)pria loucura/%. ' sua maneira# ele não seria muito diferente deum: “forte gesto de prote-ão e fechamento. Um gesto cartesiano para o século MM. Umarecupera-ão da negatividade%&X?. ois a arqueologia foucauldiana seria ainda tributária das práticas discursivas que fundam a racionalidade ocidental que ela toma como alvo. Gsto nosexplica porque $errida afirma que: “a expressão fa4er a loucura falar por si mesma écontradit)ria. 3a4er a loucura falar sem expulsá"la na ob+etividade é fa4!"la falar por simesma. <ra# a loucura é# por ess!ncia# aquilo que não se di4: é a aus!ncia de obra# comonos di4 profundamente 3oucault%&X@.

TT $1BBG$'# idem, p. FE&XX $1BBG$'# idem, p. FQ&X& $1BBG$'# idem, p. FT&X? $1BBG$' idem, p. QF&X@ $1BBG$'# idem, p. >Q

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2as# ao lado desta ar!ueologia do sil/ncio, $errida identifica um outro procedimento. ois este sil!ncio ao qual a loucura foi redu4ida não é originário. egundo3oucault# houve um momento de ruptura entre racionalidade e loucura no interior de umlogos que permitia a livre circula-ão entre estes dois opostos# da mesma maneira comodeixávamos circular os loucos nas vilas e burgos da Gdade média. eria então o caso de

 pensarmos este “logos originário%# di4 $errida. 1le insiste no esclarecimento de duas possibilidades que não foram expostas de maneira adequada por 3oucault. <u esta rupturafoi fundadora da experi!ncia do logos# isto desde a Drécia# ou ela é secundário aomovimento original da ra4ão# o que 3oucault parece indicar no prefácio a  %istória daloucura ao falar que# no logos grego pr)prio ( dialética pacificadora de )crates# “nãohavia contrários%&XE. $errida irá lembrar que# ao menos desde 7iet4sche e Heidegger# ocaráter pacificador da dialética de )crates não é menos tributário de opera-,es de exclusãosimilares (quelas que 3oucault visa descrever. $aí porque: “3oucault não pode salvar aomesmo tempo a afirma-ão a respeito da dialética pacificadora de )crates e sua tese quesup,e uma especificidade da idade clássica# cu+a ra4ão se asseguraria excluindo seuoutro%&XF. 1sta discussão toca um ponto fundamental que di4 respeito (s rela-,es decontinuidade e descontinuidade entre o lento advento da ra4ão moderna a partir doclassicismo e o período pré"clássico.

.m de%esa do cogito

'o questionar o método geneal)gico de 3oucault# $errida pode então passar acrítica pontual de sua leitura de $escartes. odemos di4er que toda a defesa de $errida  giraem torno a partilha# feita por 3oucault# entre erro# ilusão e loucura. 9omo ele lembrará :ue eu saiba# 3oucault é o primeiro a ter isolado nesta  &editação o delírio e a loucura dasensibilidade e dos sonhos. ' t!"los isolados no seu sentido filos)fico e em sua fun-ãometodol)gica. 1sta é a originalidade de sua leitura. 2as# se os intérpretes clássicos não +ulgaram tal dissocia-ão oportuna# teria sido por falta de aten-ão/%&X>. or mais que isto possa parecer surpreendente# a resposta de $errida é negativa. $e fato# a economia do textocartesiano mostraria como $escartes teria ra4ão em não dar um lugar privilegiado (loucura. 7o interior da ordem das ra4,es# o problema da loucura aparece no interior de ummovimento de invalida-ão das certe4as fundamentadas na sensibilidade. <s erros dossentidos encontram uma primeira contra"prova através da defesa da exist!ncia de umdomínio da experi!ncia imediata 5vinculada ao meu corpo# a minha experi!ncia imediata doespa-o e do tempo6. ] tal domínio que a loucura deveria invalidar. 2as# se ela é descartadaé porque: “a loucura é apenas um caso particular# e não o mais grave# de ilusão sensível queinteressa aqui $escartes%&XI. 7este sentido# a fun-ão da loucura seria absorvida peloargumento do sonho [ este sim com o poder de universali4ar a desqualifica-ão dofundamentado sensível do conhecimento. ois o sonho é um fen;meno universalmente partilhado# enquanto a loucura é absolutamente circunstanciada. ' loucura# por sua ve4#afetaria apenas certas regi,es da percep-ão sensível# enquanto que o sonho afetaria auniversalidade dos processos. 'través dos sonhos# as idéias de origem sensível podem ser descartadas na sua totalidade. 7este sentido: “o sonhador é mais louco que o louco. <u# ao

&XE 3<U9'U=0# $its et écrits# p. &QQ&XF $1BBG$'# idem, p. >F&X> $1BBG$'# idem, p. IE&XI $1BBG$'# idem, p. II

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menos# o sonhador# em rela-ão ao problema do conhecimento que interessa aqui $escartes#está mais longe da percep-ão verdadeira que o louco%&XQ.

3oucault se defenderá desta crítica a respeito da for-a regional da loucura. egundoele# o sonho garante a integridade do su+eito cognoscente : “<ra# se é importante para$escartes que o sonho é algo costumeiro# não é para mostrar que ele é mais universal que a

loucura# mas é para poder retomá"lo# ou se+a# para poder mimeti4ar# fingir a experi!ncia dosonho nas medita-,es# é para fa4er como se sonhássemosN é para que a experi!ncia dosonho ocupe o lugar no movimento efetivo efetuado pelo su+eito da medita-ão%.

2as $errida tem ainda outro argumento. egundo ele: “a hip)tese do D!nio2aligno vai presentificar# vai convocar a possibilidade de uma loucura total %&XT.   oisatravés da hip)tese do D!nio 2aligno# é a pr)pria estrutura do pensamento racional queseria colocada em questão. 7ão se trata apenas de invalidar a adequa-ão entre conte8dosmentais e a verdade material das coisas. Gsto +á havia sido feito nas etapas precedentes dad8vida met)dica. ' argumento do D!nio 2aligno procura invalidar a estrutura formal do pensamento racional em sua aspira-ão de legitimidade e veracidade. 7o que 3oucaultreplica lembrando da distin-ão entre a loucura e a hip)tese do D!nio maligno no queconcerne a posi-ão da cren-a sub+etiva: “na loucura eu acredito que uma p8rpura ilus)riacobre minha nude4 e minha miséria# enquanto que a hip)tese do D!nio maligno me permitenão acreditar que este corpo e esta mão existem%&&X. <u se+a# na loucura# o su+eito não pode tomar distância de suas cren-a. 7a hip)tese do D!nio maligno# ao contrário# o su+eitose v! obrigado a distanciar"se de toda a qualquer cren-a. Gsto indicaria como a hisp)tese doD!nio maligno é: “um exercício voluntário# controlado e comandado por um su+eito pensante que nunca se deixa supreender%.

< que vale a pena salientar aqui é como que# para $errida# esta absor-ão dos efeitosda loucura no interior do desdobramento da d8vida met)dica nos demonstraria que : “ocogito vale mesmo se sou louco, mesmo se meu pensamento é totalmente louco. Há umvalor e um sentido do cogito que escapam ( alternativa de uma loucura e de uma ra4ãodeterminadas 5...6 ue eu se+a louco ou não# cogito, sum%&&&. $errida pensa aqui no pontoextremo da primeira enuncia-ão# neste ergo sum, ergo e$isto no qual o eu aparece como ponto va4io de toda determina-ão# ponto no qual eu apare-o como aquilo que se afirma arespeito da incerte4a a respeito de toda determinidade. Uma afirma-ão mínima que s) podeser compreendida como ponto destacado do sistema dedutivo que irá estruturar a positividade do saber. $aí porque $errida poderá afirmar que: “não há nada menosassegurador que o cogito em seu momento inaugural e pr)prio%&&?. ois o cogito seria ummomento de não"saber que s) poderia ser cortado a partir do momento que as provas daexist!ncia de $eus forem postas. $aí porque $errida pode afirmar que: “para $escartes# éapenas $eus que me protege da loucura a respeito da qual o cogito s) poderia se abrir damaneira mais hospitaleira%&&@.

'ssim# tomar partido do cogito equivaleria a tomar partido deste momento no qualra4ão e loucura podem se determinar e se di4er. < legado de $escartes seria a certe4a deque: “eu s) filosofo no terror # mas no terror assumido de ser louco%. 7ada é menos seguro

&XQ $1BBG$' idem, p. IT&XT $1BBG$'# idem, p. Q&&&X 3<U9'U=0# Dits et écrits, p. &&@E&&& $1BBG$'# idem, p. Q>&&? $1BBG$'# idem, p. QI&&@ $1BBG$'# idem, p. T&

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do que o cogito em seu momento inaugural e pr)prio. 2aneira de insistir que toda filosofiado sentido é tributária de um momento de excesso que marca o ponto no qual ela seconfronta# em algumas regi,es de seu discurso# com o não"sentido.

Medicina e moral

2as voltemos ao texto de 3oucault a fim de compreender quais desdobramentos ele procura derivar deste gesto radical de exclusão que funda a partilha clássica entre ra4ão eloucura. 7a verdade# 3oucault procura compreender o que estava em +ogo na união peculiar# no interior da realidade do internamento# entre classes aparentemente tãoaut;nomas de su+eitos como: loucos# desempregados e libertinos. ois se levarmos emconta os primeiros asilos para loucos no mundo árabe e na 1spanha medieval# veremos umacerta involu-ão# +á que uma unidade desta nature4a não existia e os loucos eram separadosdos demais.

$e fato# 3oucault aponta para a determina-ão de uma experi!ncia que unifica# nointerior da mentalidade clássica# as realidades da libertinagem# do )cio e da loucura. 0alexperi!ncia unificadora está fundamentalmente vinculada ao advento de uma nova ética dotrabalho derivada do impacto da reforma protestante. isto que 3oucault terá em mente aoafirmar# a respeito do grande internamento:

<rgani4a"se em uma unidade complexa uma nova sensibilidade ( miséria e aosdeveres da assist!ncia# das novas formas de rea-ão diante dos problemasecon;micos do desemprego e do )cio# uma nova ética do trabalho# assim como osonho de uma cidade na qual a obriga-ão moral se uniria ( lei civil sob as formasautoritárias do constrangimento 5contrainte6. $e maneira obscura# tais temas estão presentes na constru-ão das cidades de internamento e de sua organi4a-ão&&E.

3oucault come-a lembrando como# devido ( reforma# a Benascen-a# desproveu amiséria de sua positividade mística que ainda estava presente no medievo. ara 9alvino# por exemplo# o miserável é# ao mesmo tempo# um efeito da desordem e um obstáculo áordem do mundo burgu!s do trabalho. ' pobre4a é# em 8ltima instância# resultado doenfraquecimento da disciplina e dos costumes.

endo o trabalho a a-ão resultante de um chamado moral no qual o su+eitoreconhece a labuta como resultado da queda# trabalho fundamentalmente ascético# ligado (“sensa-ão irracional de haver cumprido devidamente a sua tarefa%&&F# a miséria# enquantoinaptidão para o trabalho# s) pode ser uma falta moral. < )cio é revolta. 3oucault chega aafirmar que o trabalho aparece vinculado a uma “transcend!ncia ética% que lhe lembra suacondi-ão de expulso do paraíso. ' pobre4a insubmissa# vinculada ao )cio deve ser punidaatravés da aceita-ão for-ada das exig!ncia do mundo do trabalho. $esta forma# a interna-ãodos miseráveis e desempregado era uma medida que tratava o interno como “su+eito moral%e é esta perspectiva de avalia-ão como su+eito moral que marcará a realidade dointernamento em toda sua extensão. Gsto permite 3oucault afirmar:

&&E 3<U9'U=0# %istoire de la folie, p. QX&&F `1R1B# A ética protestante e o espírito do capitalismo, p. F>

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'ntes de ter o sentido médico que n)s lhe damos ou que ao menos gostaríamos desupor# o internamento foi exigido por algo totalmente diferente do que o cuidadocom a cura. < que lhe fe4 necessário foi um imperativo de trabalho &&>.

 <u se+a# como o trabalho não é apenas uma questão econ;mica# mas uma questão de

internali4a-ão de normas morais# uma aptidão que exige práticas disciplinares e de controle#todos os inaptos a esta internali4a-ão moral serão ob+etos de cuidados médicos. 2aneiraastuta de lembrar como# na idade clássica# a medicina era claramente uma questão demoral: o que nos explicaria# entre outras coisas# o parentesco entre desra4ão e culpabilidadeque ainda se apresentaria em nossos dias. ois o vínculo entre medicina e moral é tal velhoquanto a antiguidade grega# mas o que é novo aqui é a forma de utili4ar tal vínculo paracompreender a cura a partir de dispositivos de repressão e de obriga-ão. ] tendo em vistatal vínculo entre morali4a-ão e internamento que 3oucault poderá afirmar:

' partir da idade clássica e pela primeira ve4# a loucura é percebida através de umacondena-ão ética do )cio Ode uma incapacidade ao trabalho# de uma impossibilidadese integrar ao grupoP e em uma iman!ncia social garantida pela comunidade dotrabalho&&I.

$esta forma# o louco ultrapassa as fronteiras da ordem ética# uma ordem quetransforma o estado em institui-ão que visa velar pela virtude# e aliena"se fora dos limitessagrados da ética. <u se+a# as práticas de internamento s) podem ser compreendidas ( lu4do grande sonho burgu!s de uma cidade na qual reinaria a síntese autoritária da anture4a eda virtude. 1ste sonho seria o criador da realidade da aliena-ão.

$aí porque 3oucault pode afirmar que a hist)ria da loucura é# necessariamente# umaarqueologia da aliena-ão. < termo arqueologia tem aqui o valor de indica-ão de umadepend!ncia generali4ada entre os dispositivos colocados em circula-ão para aconfigura-ão da experi!ncia clássica da loucura e um processo mais amplo no interior doqual: “certos perfis habituais come-avam a perder Opara o homemP sua familiaridade% &&Q. <use+a# movimento no qual a pr)pria configura-ão do homem ganhava nova imagem. 0almuta-ão de configura-,es indica que esta experi!ncia de internamento não tinha apenasuma fun-ão negativa de exclusão# mas uma fun-ão positiva de organi4a-ão# deestabelecimento de novas normatividades que di4em respeito ( sexualidade nas suas rela-ão( ordem familiar# ( profana-ão nas suas rela-,es com as novas concep-,es do sagrado# aodese+o em sua rela-ão (s paix,es.

 7este momento# 3oucault +á fa4 considera-,es que ganharão importância decisivaem seus 8ltimos escritos. 1las di4em respeito ( compreensão de que a peculiaridade damodernidade ocidental foi de ter posto a sexualidade na linha de partilha entre ra4ão edesra4ão. 0ransformar a sexualidade em elemento central para a distin-ão entre o normal eo patol)gico# em que as práticas médicas tocam o ponto mais profundo da rela-ão entre osu+eito# seu pr)prio corpo e o corpo do outro. rocesso que exige a defini-ão de um espa-ode normalidade sexual que# neste caso# estará assentado na ordem familiar burguesa comsuas in+un-,es: “(s velhas formas do amor ocidental%# lembrará 3oucault# “substitui"seuma nova sensibilidade: esta que nasce da família e na famíliaN ela exclui# como sendo da

&&> 3<U9'U=0# idem# p. TX&&I idem# p. &X?&&Q idem# p. &&@

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ordem da desra4ão# tudo o que não se conforma ( sua ordem ou a seu interesse% &&T. $amesma forma# a blasf!mia e a profana-ão não serão mais momentos no interior de ritossociais nos quais a inversão da ordem era pe-a constitutiva do funcionamento da pr)priaordem 5lembremos# por exemplo# do carnaval medieval tal como ele foi estudado por Ra_thin em A o"ra de 3rançois +a"elais6. 1les serão excessos de uma palavra patol)gica e

excluída de um sagrado normati4ado e morali4ado. $aí porque todos estes velhos ritos de blasf!mia# profana-ão e magia serão ob+etos não apenas de excomunhão# mas sobreutdo deinternamento. 1m todos os casos# o internamento é# sobretudo# maneira de alcan-ar averdade através do constrangimento moral. 'ssim:

1sta desra4ão cu+o pensamento do MAG século tinha transformado no ponto dialéticode inversão da ra4ão recebe um conte8do concreto. 1la se encontra ligada a todo umrea+ustamento ético no qual é questão do sentido da sexualidade# da partilha doamor# da profana-ão e dos limites do sagrado# do pertencimento da verdade (moral&?X. $esta forma# 3oucault pode colocar uma questão central: em que o estabelecimento

de um campo empírico do saber com suas práticas e incid!ncias sociais é devedor de umareflexão de ordem moral/ 1m que o fundamento da ci!ncia é devedor de uma moral/

&&T 3<U9'U=0# idem# p. &?F&?X idem# p. &E@

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Curso Foucault

(ula 6

 7a aula de ho+e# iremos terminar o comentário de  %istória da #oucura.  7a aula quevem# passaremos a leitura de um pequeno texto de 3oucault intitulado:  #oucura, aus/ncia

de o"ra. 'través dele# poderemos analisar de maneira mais demorada o impacto de pensadores como Rlanchot e Rataille na constitui-ão da experi!ncia intelectual de 2ichel3oucault.

Aimos# no início de nosso comentário sobre  %istória da #oucura# como 3oucaultorgani4a seu livro a partir da análise do que estaria em +ogo em duas datas que marcariam ahist)ria da loucura na idade clássica: a cria-ão do Hospital Deral# na aris de &>FI# comsuas exig!ncias reais de internamento de loucos# libertinos e desempregados# e a libera-ão por inel dos loucos acorrentados em Ric!tre# isto na aris revolucionária de &ITE. 7a aulade ho+e# iremos analisar o que está em +ogo nesta segunda data.

' aula passada girou em torno do comentário dos primeiros capítulos do nossolivro. Aimos como# em &>FI# =uis MGGG edita um decreto criando# em aris# o HospitalDeral. ' princípio# isto não parece mais do que uma reforma administrativa visando abrigar#sob uma 8nica administra-ão# vários estabelecimentos de caridade e médicos +á existentes.ua fun-ão será de acolher aqueles que ali se apresentam# se+a por vontade pr)pria# se+a sobordem +urídica de interna-ão. 7esta popula-ão de internos# encontramos pobres#desempregados# mas também aqueles que são enviados pelo poder p8blico: loucos#libertinos# acometidos de doen-as venéreas. Bapidamente# a figura institucional do Hospitalgeral se espalha por toda a 1uropa# normalmente utili4ando as estruturas de antigosleprosários desativados depois do desaparecimento da doen-a. or trás desta simplesmedida administrativa# 3oucault percebe a figura +urídica maior de modifica-,es profundasna partilha entre ra4ão e loucura pr)pria ao advento da idade clássica. 2as# para que talsentido se+a visível# para que a no-ão de “grande internamento% se+a uma categoriadescritiva de instaura-ão de uma nova figura da ra4ão# 3oucault precisa operar ummovimento arriscado.

1ste movimento consiste em recorrer a um texto filos)fico fundador damodernidade# mas para confrontá"lo (quilo que se coloca em sua exterioridade# (quilo quenão pode ser visto como fa4endo diretamente parte da cadeia causal que constitui as linhasde for-a claramente postas pelo texto. 1ste texto# por sua ve4# será questionado em umaarticula-ão regional# em um ponto que aparece como um certo sintoma que o pr)prio textodeixa expor"se de maneira quase que involuntária. 2as um sintoma que é a marca doslimites pr)prios do texto# marcas da impossibilidade do texto pensar certas quest,es.2arcas que denunciam linhas de for-a que atuam na exterioridade. $aí porque# quando3oucault# em %istória da loucura, define aquilo que ele chama de “grande internamento% eque marca um momento de modifica-ão radical no estatuto da loucura que ocorre no séculoMAGG# ele insiste em mostrar como o significado de tal modifica-ão s) pode ser pensável eapreendido ao articularmos acontecimentos absolutamente independentes e que segueml)gicas pr)prias. ' medida administrativa que consistiu em internar libertinos#desempregados e loucos em antigos leprosários desativados não participa da mesma l)gicaque levou $escartes a conceber# de uma maneira excludente# a rela-ão entre racionalidade eloucura nas  &editaç'es.  7o entanto# a reflexão sobre estes dois acontecimentos deveconvergir para que possamos apreender a maneira com que a ra4ão moderna define o quelhe é exterior.

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< trecho que interessa 3oucault está logo na rimeira medita-ão. “2as# ainda queos sentidos nos enganem (s ve4es# no que se refere (s coisas pouco sensíveis e muitodistantes# encontramos talve4 muitas outras# das quais não se pode ra4oavelmente duvidar#embora as conhec!ssemos por intermédio deles: por exemplo# que eu este+a aqui# sentado +unto ao fogo# vestido com um chambre# tendo este papel entre as mãos e outras coisas

desta nature4a. 1 como poderia eu negar que estas mãos e este corpo se+am meus/ ' n(oser# talve4 que eu me compare a esses insensatos 5insanis6# cu+o cérebro está de tal modo perturbado e ofuscado pelos negros vapores da bile que constantemente asseguram que sãoreis quando estão inteiramente nusN ou imaginam ser cântaros ou ter um corpo de vidro.2as qu!/ ão loucos 5amentes6 e eu não seria menos extravagante 5demens6 se me guiasse por seus exemplos%&?&.

< que chama a aten-ão de 3oucault é a distin-ão# feita por $escartes# entre erro#ilusão e loucura. 's experi!ncias do erro dos sentidos e da ilusão dos sonhos serãoabsorvidas no encaminhamento da ra4ão em dire-ão a sua auto"fundamenta-ão. 1las farão parte da ordem das ra4,es. 2as a experi!ncia da loucura será simplesmente desqualificada.'parentemente# a recusa do argumento da loucura na crítica a um saber fundamentado na percep-ão sensível é total. 3oucault é sensível ao fato de $escartes utili4ar ao mesmotempo um termo médico 5insanis6 e +urídico 5amens> demens6 que indica aqueles que estãofora de todo e qualquer diálogo racional# uma categoria de pessoas incapa4es de certos atoscivis# religiosos e +udiciários.  Insanis é um termo caracteri4ante# amens e demens sãotermos desqualificantes.

Gsto demonstraria a distância entre# de um lado# a experi!ncia do erro dos sentidos eda ilusão dos sonhos e# de outro# da loucura. < erro e a ilusão di4em respeito ao ob+eto do pensamento e invalidam os conte8dos mentias do pensamento# a loucura di4 respeito aosu+eito que pensa# e eu que penso não posso ser louco +á que a loucura seria condi-ão deimpossibilidade do pensamento. 7este ponto# 3oucault convoca 2ontaigne para medir adistância que separa esta exclusão da loucura da compreensão anterior da sua proximidadecom a ra4ão: “assim o perigo da loucura desapareceu do exercício mesmo da ra4ão. 1stavoltou"se para um plena possessão de si na qual ela s) pode encontrar armadilhas com oerro e perigos como a ilusão%&??.  ' partir de agora# a loucura estaria exilada da região dosaber# o pensamento racional não pode ser insensato ou# em certos momentos# irracional.

3oucault pode então partir para a análise o que estava em +ogo na união peculiar# nointerior da realidade do internamento# entre classes aparentemente tão aut;nomas desu+eitos como: loucos# desempregados e libertinos. $e fato# 3oucault aponta para adetermina-ão de uma experi!ncia que unifica# no interior da mentalidade clássica# asrealidades da libertinagem# do )cio e da loucura. 0al experi!ncia unificadora estáfundamentalmente vinculada ao advento de uma nova ética do trabalho derivada doimpacto da reforma protestante. isto que 3oucault terá em mente ao afirmar# a respeito dogrande internamento:

<rgani4a"se em uma unidade complexa uma nova sensibilidade ( miséria e aosdeveres da assist!ncia# das novas formas de rea-ão diante dos problemasecon;micos do desemprego e do )cio# uma nova ética do trabalho# assim como osonho de uma cidade na qual a obriga-ão moral se uniria ( lei civil sob as formas

&?& $19'B01# 2edita-,es# p. TE&?? 3<U9'U=0# %istoire de la folie, p. >T

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autoritárias do constrangimento 5contrainte6. $e maneira obscura# tais temas estão presentes na constru-ão das cidades de internamento e de sua organi4a-ão&?@.

3oucault come-a lembrando como# devido ( reforma# a Benascen-a# desproveu a miséria desua positividade mística que ainda estava presente no medievo. ara 9alvino# por exemplo#

o miserável é# ao mesmo tempo# um efeito da desordem e um obstáculo á ordem do mundo burgu!s do trabalho. ' pobre4a é# em 8ltima instância# resultado do enfraquecimento dadisciplina e dos costumes.

endo o trabalho a a-ão resultante de um chamado moral no qual o su+eitoreconhece a labuta como resultado da queda# trabalho fundamentalmente ascético# ligado (“sensa-ão irracional de haver cumprido devidamente a sua tarefa% &?E# a miséria# enquantoinaptidão para o trabalho# s) pode ser uma falta moral. < )cio é revolta. 3oucault chega aafirmar que o trabalho aparece vinculado a uma “transcend!ncia ética% que lhe lembra suacondi-ão de expulso do paraíso. ' pobre4a insubmissa# vinculada ao )cio deve ser punidaatravés da aceita-ão for-ada das exig!ncia do mundo do trabalho. $esta forma# a interna-ãodos miseráveis e desempregado era uma medida que tratava o interno como “su+eito moral%2aneira astuta de lembrar como# na idade clássica# a medicina era claramente uma questãode moral: o que nos explicaria# entre outras coisas# o parentesco entre desra4ão eculpabilidade que ainda se apresentaria em nossos dias. ois o vínculo entre medicina emoral é tão velho quanto a antiguidade grega# mas o que é novo aqui é a forma de utili4ar tal vínculo para compreender a cura a partir de dispositivos de repressão e de obriga-ão. ]tendo em vista tal vínculo entre morali4a-ão e internamento que 3oucault poderá afirmar:

' partir da idade clássica e pela primeira ve4# a loucura é percebida através de umacondena-ão ética do )cio Ode uma incapacidade ao trabalho# de uma impossibilidadese integrar ao grupoP e em uma iman!ncia social garantida pela comunidade dotrabalho&?F.

$esta forma# 3oucault pode colocar uma questão central: em que o estabelecimentode um campo empírico do saber com suas práticas e incid!ncias sociais é devedor de umareflexão de ordem moral/ 1m que o fundamento da ci!ncia é devedor de uma moral/

4 ue 7 a internação na Idade Clssica

$ito isto# 3oucault tem em mãos os elementos para expor qual o sentido das práticasde interna-ão na Gdade 9lássica. ua idéia fundamental consiste em defender que ainterna-ão não podia ser compreendida como uma prática médica# até porque: “no séculoMAGG# a loucura transformou"se em questão de sensibilidade social# aproximando"se destaforma do crime# da desordem# do escândalo%&?>. 7ão é por outra ra4ão que a experi!nciaclássica da loucura funda"se na constitui-ão de uma unidade indecisa entre uma análisefilos)fica das faculdades e uma análise +urídica da imputabilidade. ] a experi!ncia +urídicada aliena-ão que irá aos poucos configurar a sensibilidade médica# isto até que a aliena-ão +urídica do su+eito do direito possa coincidir com a loucura do homem social. 7ão é por 

&?@ 3<U9'U=0# %istoire de la folie, p. QX&?E `1R1B# A ética protestante e o espírito do capitalismo, p. F>&?F idem# p. &X?&?> 3<U9'U=0# idem# p. &IX

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outra ra4ão que a decisão da interna-ão era# normalmente# resultado de uma decisão +urídica# e não médica. 3oucault é claro a respeito desta prem!ncia da experi!ncia +urídica:

ob a pressão dos conceitos do direito# e na necessidade de apreender de maneira precisa a personalidade +urídica# a análise da aliena-ão não cessa de afinar"se e

 parecer antecipar as teorias médicas que a seguem de longe.  7este contexto# a interna-ão é uma prática que se +ustifica sobretudo pela percep-ão

social# pela impossibilidade de convívio social sem risco de escândalo para as unidadessociais fundamentais# como a família e o mundo do trabalho. 'ssim# a interna-ão tem uma primeira dimensão ligada ao castigo. 2as# +untamente com esta dimensão vinculada ( percep-ão social# a loucura também é doen-a que deve ser curada. $evemos então colocar aquestão: que forma de doen-a é a loucura/

Há duas coisas que podemos di4er a este respeito. rimeiro# para o classicismo# aloucura é o homem em rela-ão imediata com sua animalidade# sem outra refer!ncia ou ponto de apoio. 1 quando se está diante de um animal# os 8nicos recursos possíveis são oadestramento e uma certa redu-ão do su+eito ( condi-ão de besta. $aí# por exemplo# ainfantili4a-ão do louco e a conseqYente determina-ão da loucura como regressão. 7estesentido# lembremos que a crian-a será# +untamente com o animal# outra figura clássica daaus!ncia de ra4ão ' loucura é infância é tudo será organi4ado para que# desta forma# olouco se+a ob+eto de uma experi!ncia de minoridade.

' questão fundamental nesta infantili4a-ão é: para que a conduta infantil se+a umref8gio para o doente# para que a regressão ( infância se manifeste como figura da neurose#fa4"se necessário que a sociedade instaure uma barreira intransponível entre o passado e o presente# entificando uma linearidade do tempo que é figura de uma certa no-ão de progresso. $a mesma forma# para que o delírio religioso se+a estrutura privilegiada da paran)ia com seus delírios de grande4a e fim do mundo# fa4"se necessário que a laici4a-ãoda cultura aproxime a religião de um delírio sistemati4ado. 3oucault descreve claramentecomo ele compreende as rela-,es entre loucura e retorno a uma certa animalidade:

 7a Gdade 2édia# antes do início do movimento franciscano e# sem d8vida# muitotempo ap)s e apesar dele# a rela-ão do ser humano ( animalidade consistiu nestarela-ão imaginário do homem (s pot!ncias do mal. 7a nossa época# o homem refletesobre tal rela-ão sob a forma de uma positividade naturalN ao mesmo tempohierarquia# ordenamento e evolu-ão. 2as a passagem do primeiro tipo de rela-ão aosegundo tipo ocorreu +ustamente na Gdade 9lássica# quando a animalidade foi percebida ainda como negatividade# mas natural: quer di4er# no momento em que ohomem experimentou sua rela-ão á animalidade apenas no perigo absoluto de umaloucura de abole a nature4a do homem em uma indiferencia-ão natural &?I.

< outro ponto a lembrar é que# para o classicismo# não há psicologia# ou antes# nãoalgo como uma autonomia do fato psicol)gica em sua estrutura de determina-ão causual.3oucault chegará mesmo a afirmar que a distin-ão cartesiana entre res e$tensa e rescogitans não guiava o hori4onte das práticas médicas. 7este sentido# não há possibilidadealguma de compreender# durante todo período clássica# a loucura como um fato

&?I 3<U9'U=0# %istoire de la folie, pp. ?X&"?X?

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 psicol)gico. 1ste é um dado fundamental pois permite a 3oucault afirmar que# sendo oclacissismo# um momento marcado pela aus!ncia da psicologia e da psiquiatria# +á que nãohá simplesmente um ob+eto que possa ser descrito como “fato psicol)gico%# então um dos problemas centrais será de ordem epistemol)gica. 0rata"se de se perguntar em quecondi-,es um ob+eto de uma determinada ci!ncia empírica pode constituir"se# o que deve

ocorrer ao ser humano e o que deve ocorrer ( loucura para que eles se+am ob+etos de umaempiricidade como a psicologia e a psiquiatria.' fim de sustentar sua tese segundo a qual não há# para a consci!ncia do

classicismo# algo como uma psicologia# 3oucault procura descrever o “monismo% pressuposto pelo sentido de várias práticas as práticas médicas de interven-ão ( época. Ummonismo que demonstra como uma certa fisiologia aparece como base explicativa de todosos processos de interven-ão. 3oucault parte afirmando ser possível sistemati4ar as práticasde interven-ão em quatro grandes grupos: a consolida-ão# a purifica-ão# a imersão e aregula-ão do movimento.

or exemplo# no caso da consolida-ão# parte"se da cren-a de que# se encontramosnas doen-as dos nervos tantos espasmos e convuls,es é porque as fibras são muito m)veis#ou muito irritáveis# ou muito sensíveis ( vibra-,es. uer di4er# falta"lhes robuste4# isto nosentido mais material que podemos dar a tal diagn)stico. 7este sentido# nada melhor do queo uso deste elemento que é# ao mesmo tempo# o mais s)lido# o mais resistente e o maisd)cil e flexível ( habilidade humana: o ferro. ' absor-ão direta de linha-a de ferro érecomendada tendo em vista uma certa forma de comunica-ão possível# no interior docorpo# entre as qualidades dos elementos.

Ká a purifica-ão aparece como remédio para uma no-ão de doen-a dos nervosvinculada ( maus humores que corrompem as vísceras# o cérebro e o sangue. 0ransfus,essanguíneas# produ-ão de sangramentos# ingestão de sabão# aplica-ão de vinagre são apenasalgumas das técnicas usadas nestes casos.

' imersão e as doses seqYenciais de ducha fria são resultantes de um duplo tema: deum lado# os ritos de purifica-ão e de renascimento# de outro# a impregna-ão que modifica asqualidades essenciais dos líquidos e s)lidos do corpo. or outo lado# a água fria podecombater o aquecimento e a secura das fibras nervosas que resultam na mania e o frenesi.

or fim# a necessidade de regula-ão do movimento# necessidade que sustenta práticas de interven-ão médica como a viagem# os exercícios físicos regulares# a roda# o usomedo enquanto afeto que produ4 a fixa-ão da aten-ão# será descrita por 3oucault nosseguintes termos:

e é verdade que a loucura é agita-ão irregular dos espíritos# movimentodesordenado das fibras e idéias [ ela também é entupimento do corpo e da alma#estagna-ão dos humores# imobili4a-ão das fibras e sua rigide4# fixa-ão das idéias eda aten-ão em um tema que# pouco a pouco# prevalece sobre os demais. 0rata"seentão de dar ao espírito e aos espíritos# ao corpo e ( alma# a mobilidade que lhes fa4vivos&?Q.

 7estes exemplos# vemos claramente como nenhum sintoma da loucura écompreendido como causado por fen;menos vinculados principalmente a uma dimensão para além do corpo. 'o contrário# a interven-ão médica orienta"se completamente por uma

&?Q idem# p. EX?

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fisiologia da doen-a. uando a experi!ncia da loucura receber enfim seu estatuto de doen-amental# ou se+a# seu estatuto claramente psicol)gico# estas técnicas continuarão sendousadas# mas com um sentido totalmente diferente# muito mais vinculado ao castigo moralque recomposi-ão das disposi-,es corporais.

4 nascimento do %ato psicol/gico

 7ão é possível# com todo o rigor# utili4ar# enquanto distin-ão válida na idadeclássica ou ao menos como distin-ão provida de significa-ão# a diferen-a# para n)simediatamente decifrável# entre medica-ão física e medica-ão psicol)gica ou moral.' diferen-a s) come-ará a existir em toda sua profundidade no dia em que o medonão será mais usado como método de fixa-ão do movimento# mas como puni-ãoNquando a felicidade não significará mais a dilata-ão orgânica# mas a recompensa# ouse+a# quando o século MGM# ao inventar os famosos “métodos morais% tiver introdu4ido a loucura e sua cura no +ogo da culpabilidade. ' distin-ão entre o físicoe o moral s) transformou"se em um conceito prático na medicina d)i espíritoquando a problemática da loucura deslocou"se para uma interroga-ão em rela-ão aosu+eito responsável 5...6 Uma medicina puramente psicol)gica s) foi possível no diaem que a loucura se encontrou alienada na culpabilidade&?T.

1sta longa cita-ão mostra claramente qual o hori4onte que guia 3oucault em suaepistemologia das “ci!ncias clínicas da sub+etividade%. Há um momento# bastante preciso#em que nasce um su+eito dotado de fun-,es e disposi-,es puramente psicol)gicas# quedevem ser tratadas através de técnicas e métodos psicol)gicos. 1 tal processo éindissociável da cren-a disciplinar de constitui-ão do su+eito através da internali4a-ão deimperativos vinculados a uma certa moral cu+as raí4es +á havíamos visto na aula passada.Aeremos em aulas posteriores como tal processo está vinculado# por sua ve4# ( constitui-ãode uma figura da sub+etividade que 3oucault procura descrever através da no-ão de “duploempírico"transcendental%# su+eito capa4 de ob+etivar"se ( si mesmo# transformar seu pr)priocomportamento e conduta em ob+eto de um saber positivo gra-as ( cren-as de autonomiatranscendental da vontade e da consci!ncia.

$e qualquer forma# vale lembrar que este processo de constitui-ão de um domínio pr)prio ( psicologia# permite a resignifica-ão completa das práticas de interna-ão. ois é a partir do século MGM que a interna-ão ganha o sentido não apenas de enclausuramento# masde medicali4a-ão e# principalmente# de reconstitui-ão moral. 7ão será por outra ra4ão que#ao final do século MAGGG e início do século MGM# a interna-ão não será maissistematicamente aplicada a loucos# libertinos e desempregados# dissolvendo o con+unto deexclusão que imperou durante# ao menos# dois séculos. 'gora# apenas os loucos serão ossu+eitos de uma nova institui-ão médica: o asilo.

3oucault descreve com detalhes dois casos paradigmáticos na constitui-ão destanova mentalidade hospitalar. 0ais casos fornecem as datas de término da Gdade clássica eestão fundamentalmente associados aos nomes de inel# na 3ran-a revolucionário# e doqua_er amuel 0u_e# na Gnglaterra. 7ão é por outra ra4ão que# tanto 0u_e quanto inelserão visto a partir daí como nomes fundadores desta nova empiricidade que será a psiquiatria.

&?T 3<U9'U=0# idem# p. E&?

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< nome de amuel 0u_e está fundamentalmente associado ( cria-ão de um asilodestinado aos qua_ers. ituado no meio de uma grande pradaria e +ardim# com +anelas semgrades# o asilo era um casa privada pensada como resposta a preocupa-,es potenciali4adas pelo caso de uma membro da seita que# em &IT&# fora internada em um hospital sem poder ter contato com outros membros e com a assist!ncia moral da seita. 'lgumas semanas

depois# ela morre. 0u_e coloca"se então a frente de um pro+eto de constru-ão de um asilo noqual o doente estaria pr)ximo da família e de uma nature4a que era vista como “meionatural% do homem e fator de recupera-ão da sa8de. 7o asilo de 0u_e:

< grupo humano é recondu4ido a suas formas mais originárias e purasN trata"se derecolocar o homem em rela-,es sociais elementares e absolutamente conforme (origemN o que quer di4er que tais rela-,es devem ser# ao mesmo tempo#rigorosamente fundadas e rigorosamente morais. 'ssim# o doente encontra"seenviado a este ponto no qual a sociedade acaba de surgir do seio da nature4a e noqual ela se reali4a em uma verdade imediata que toda hist)ria dos homenscontribuiu posteriormente as embaralhar &@X.

 7ota"se aqui que a cura é indissociável de uma certa reconstitui-ão dos vínculossociais# ou de um encaminhamento de tais vínculos a sua verdade essencial. Uma verdadeque# como não poderia deixar de ser para um qua_er# está ligada a expectativas mais amplasde reforma moral. $aí porque 3oucault poderá afirmar que 0u_e criou um asilo no qual oterror livre da loucura foi substituído pela ang8stia fechada da responsabilidade.

or sua ve4# o nome de inel está associado ( libera-ão dos loucos acorrentados emRic!tre. 3oucault fa4 questão de lembra da cena que passou ( posteridade. ' 'ssembléiarevolucionária envia 9outhon para avaliar o pedido de libera-ão do acorrentamento deloucos# feito por inel. $epois de tentar em vão conversar com os loucos# 9outhon afirma ainel: “'h# cidadão# voc! é louco de querer desacorrentar animais como estes/%. inel teriarespondido: “9idadão# tenho a convic-ão de que estes alienados s) são intratáveis porquenos os privamos de liberdade e de ar%. Besposta: “bem# fa-a o que quiser# mas temo quevoc! será vítima de sua pr)pria presun-ão%.

' libera-ão se dá acompanhada por exorta-,es feitas por inel aos loucos. 'mea-asde retorno ( condi-ão de acorrentado e puni-ão física são enunciadas +untamente com profiss,es de fé de confian-a. 'o serem libertos# todos se “curam%. 2as o que é aqui acura/

1ntão as correntes caemN o louco encontra sua liberdade. 1# neste instante# elereencontra a ra4ão. <u melhor# nãoN não é a ra4ão que ele reaparece em si mesma e para ela mesmaN são espécies sociais totalmente constituídas# espécies adormecidashá muito sob a loucura e que se levantam de uma ve4# em uma conformidade perfeita (quilo que elas representam# sem altera-ão ou careta. 9omo se o louco#liberado da animalidade na qual as correntes o deixa# s) alcan-asse a humanidade notipo social 4?4.

&@X idem# p. FTX&@& idem# p. FTE

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1sta é uma afirma-ão central no nosso contexto. 0rata"se de afirmar primeiro que a curaestará agora vinculada ( uma certa recupera-ão da liberdade racional. 'qui# fica muito maisclaro o sentido desta vincula-ão entre loucura e aliena-ão. $igamos que 3oucault procura#fundamentalmente# demonstrar como a cura psiquiátrica estava vinculada ( implementa-ãode práticas disciplinares visando a reconstru-ão de uma vontade aut;noma. 9omo se a

 prática psiquiátrica fosse# na verdade# um dispositivo de internali4a-ão da disciplinaenquanto condi-ão para a autonomia# esta mesma autonomia que permitiria ao indivíduoser reconhecido como su+eito. $aí esta figura de uma liberdade que se reali4a na assun-ãode tipos sociais. 9omo se a verdadeira questão fosse expulsar# através da transforma-ão daloucura em doen-a mental# tudo o que impedisse a constitui-ão desta mais profunda ilusãoda ra4ão moderna: uma vontade que determina a si mesma. Uma vontade que se reali4a nacapacidade de assumir tipos sociais. ] isto o que 3oucault tem em vista ao afirma: “acondi-ão da rela-ão com o ob+eto e da ob+etividade do conhecimento médico# e a condi-ãoda opera-ão terap!utica são as mesmas: a ordem disciplinar%&@?.

 7o entanto# percebam que colocar a cura da loucura sob o signo da recupera-ão deuma liberdade# de uma autonomia que é condi-ão “natural% do su+eito# significa assentar o procedimento de cura na possibilidade opera-,es reflexivas através das quais o doentemental pode tomar gradativamente distância de si mesmo. 9omo se a condi-ão para a curafosse a capacidade de tomar a si mesmo como ob+eto# redu4ir si mesmo como um ob+eto para um olhar no qual se alo+am a liberdade e a autonomia. 9omo se a condi-ão para a curafosse# primeiramente# a ob+etiva-ão do homem.

1ste olhar que o su+eito deve internali4ar para poder# a partir de processosreflexivos# ob+etivar a si mesmo vem# de uma certa forma# do pr)prio médico. $aí porque#com o advento da psiquiatria e da psicologia# a pr)pria figura do médico aparece comodispositivo de cura. ' fun-ão do médico será também fun-ão de controle moral através daaplica-ão de um padrão de normalidade do comportamento. < médico fornece# sobretudo#sua presen-a# ou se+a# a figura de um retidão moral e sa8de corporal que servirá de “tipoideal% a ser internali4ado. 'té porque: “curar significar inculcar no doente as sentimentosde depend!ncia# de humildade# de culpabilidade# de reconhecimento que são a armaduramoral da vida em família%&@@. 7a verdade# 3oucault percebe aqui as molas do que o séculoMM chamará mais tarde de “transfer!ncia% enquanto dispositivo fundamental da cura. 1stasmolas estão presentes em um tratado médico do século MGM que afirmará a terap!utica daloucura como: “a arte de sub+ugar e de domar# por assim di4er# o alienado# pondo"o naestreita depend!ncia de um homem que# por suas qualidades físicas e morais se+a capa4 deexercer sobre ele um império irresistível e de mudar a corrente4a viciosa de suas idéias% &@E.

 7otemos ainda um dado fundamental para a teoria foucauldiana do poder. 'scorrentes não são mais necessárias no asilo porque a interven-ão no corpo deixou de ser direta. 1la é indireta# resultante da internali4a-ão de práticas disciplinares que atuam nocorpo a partir “do interior%. ] a partir deste momento que a loucura deixa de ser considerada um fen;meno global que di4 respeito ao corpo e ( mente. 1la será um fato queconcerne especialmente a mente e receberá# pela primeira ve4# estatuto e significa-ão psicol)gica. 1sta psicologici4a-ão é setor de uma opera-ão mais ampla de inser-ão daloucura em sistemas de valores e de repressão morais.

&@? 3<U9'U=0# * poder psi!ui)trico, p. F&@@ 3<U9'U=0# &aladie mentale, p. QE&@E G71= apud 3<U9'U=0# * poder psi!ui)trico, p. &?

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$esta forma# 3oucault pode afirmar que a psicologia s) pode aparecer a partir domomento em que a rela-ão ( loucura foi definida pela dimensão exterior da exclusão e docastigo# assim como pela dimensão interior da morali4a-ão e da culpabilidade. 9om a psicologia# perde"se uma “rela-ão essencial% entre a ra4ão e a desra4ão. ' doen-a mentalserá assim apenas a loucura alienada na psicologia. ois o advento da psicologia deve ser 

inserido no interior dos modos gerais de rela-ão alienada que o homem ocidentalestabeleceu consigo mesmo.

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Curso Foucault

(ula 8

 7a aula de ho+e# iremos terminar nosso primeiro m)dulo# este que teve como texto"base  Ahistória da loucura na idade cl)ssica. Aimos# até agora# como 3oucault vinculava"se

inicialmente a uma tradi-ão epistemol)gica francesa marcada por nomes como9anguilhem# Rachelard# 9availlSs e CoJrS. Uma tradi-ão que não compreende a tarefa daepistemologia como funda-ão de uma teoria do conhecimento baseada na análise dasfaculdades cognitivas e da estrutura possível da experi!ncia# mas que vinculou radicalmentereflexão epistemol)gica e reconstru-ão de uma hist)ria das ci!ncias. Aimos ainda comoesta verdadeira “epistemologia hist)rica% não era resultante apenas da submissão daepistemologia ( história das ci/ncias. Havia ainda uma clara articula-ão que visava inserir tais reflex,es sobre a hist)ria das ci!ncias em um quadro mais amplo de hist)ria das idéias#dos sistemas filos)ficos# religiosos# em suma# de uma hist)ria geral das sociedades. 'té porque# o pensamento científico não forma uma serie independente de saberes.

e o pensamento científico não forma uma série independente# mas está ligado a umquadro mais amplo de idéias historicamente determinadas é porque# dirá mais tarde3oucault# a reflexão epistemol)gica não deve se perguntar apenas sobre os poderes edireitos de técnicas e proposi-,es científicas que aspiram validade# mas deve esclarecer ag!nese dos padr,es de racionalidade e as condi-,es de exercício que se encarnam emtécnicas e proposi-,es# assim como se encarnam nas outras forma-,es discursivas quecomp,em o tecido social. odemos mesmo di4er que a hist)ria das ci!ncias não podenegligenciar a hist)ria das idéias porque a história das ci/ncias não seria outra coisa !ueum setor priilegiado da história dos processos de racionalização de is'es partilhadas demundo.

1sta articula-ão entre epistemologia e reflexão sobre a estrutura dos padr,es deracionali4a-ão permitirá a 3oucault afirmar que o terreno estava aberto para atransforma-ão da epistemologia em linha de frente da crítica da ra4ão. ois tratava"se demostrar como o advento de saberes empíricos determinados# de discursos científicos portadores de ob+etos pr)prios# era dependente de processos de racionali4a-ão queatravessavam os domínios estritos de tais discursos e saberes. rocessos descontínuos#marcados por eventos semelhantes (queles descritos por Rachelard sob o nome de “corteepistemol)gico%. $e qualquer forma# o dado mais importante consistirá# para 3oucault# emdemonstrar como o desenvolvimento de ci!ncias empíricas é solidário da implementa-ão decritérios de validade e veracidade cu+a g!nese é historicamente determinada e s) passível decompreensão através de uma crítica epistemol)gica alargada para o campo geral da hist)riadas idéias.

Aimos 3oucault operando seu método através de reflex,es sobre a advento do saber  psiquiátrico e do saber psicol)gico%&@F. 7os dois casos# tratava"se de colocar em opera-ãoaqui uma “epistemologia hist)rica ( contrapelo% capa4 de mostrar a origem da ilusão decientificidade pr)pria a um domínio empírico do saber &@>. $esta forma# a epistemologiahist)rica de 3oucault se transformava em uma espécie de “contra"hist)ria das ci!ncias% que

&@F 3<U9'U=0# #a pschologie de 4567 8 4967, $its et écrits# p. &EQ&@> “0he ^aJ in ^hich psJchologJ or psJchiatrJ remember their histories is based# in 3oucaultZs vie^# on theinversion of the ends ̂ hich one intuitivelJ associates ̂ ith historiographJ. sJchologJLschiatrJ ̂ rites thehistorJ of the condition of its emergence not ^ith the intetion of remembering its origin but in order to forgotthe shame of the origin% 5AGC1B#  &ichel 3oucault( genealog as criti!ue, p. &Q6

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visava expor o processo complexo de constitui-ão# ao mesmo tempo# do discurso científicoque aspira validade e do ob+eto da ci!ncia 5que se confundia aqui com o pr)prio ob+eto dodiscurso científico6. 1xpor uma análise dos processos de implementa-ão de critériosdiscursivos de verdade# de constru-ão de limites e de táticas de exclusão que deveriam ser criticados tendo em vistas o desvelamento da maneira com que padr,es hist)ricos de

racionalidade fundamentam e constroem a legitimidade de suas opera-,es.=ivros como Doença mental e psicologia e %istória da loucura  procuravam colocar em opera-ão este método que consiste em mostrar quais as condi-,es de possibilidade parao nascimento da “doen-a mental% como ob+eto de um discurso científico positivo einstrumental. 1les lembrava# que a discussão sobre decis,es clínicas a respeito da distin-ãoentre normal e patol)gico são# na verdade# um setor de decis,es mais fundamentais dara4ão a respeito do modo de defini-ão daquilo que aparece como  seu <utro 5a patologia# aloucura etc.6. 1las se inserem em configura-,es mais amplas de racionali4a-ão queultrapassam o domínio restrito da clínica. ' distin-ão entre normal e patol)gico# entre sa8dee doen-a é o ponto mais claro no qual a ra4ão se coloca como fundamento de processos deadministra-ão da vida# como prática de determina-ão do equilíbrio adequado dos corpos emsuas rela-,es a si mesmos e ao meio ambiente que os envolve. 7o caso da distin-ão entresa8de e doen-a mental# vemos ainda como a ra4ão decide# amparando práticas médicas edisciplinares# os limites da partilha entre liberdade e aliena-ão# entre vontade aut;noma evontade heter;noma.

 7o caso da  %istória da loucura, vimos que# para 3oucault# o processo hist)rico deconstitui-ão de categorias e de ob+etos de ci!ncias que aspiram positividade# como a psiquiatria e a psicologia# não será mais a narra-ão das descobertas e experi!ncias bem"sucedidas. 1le será a narra-ão da exclusão como condi-ão para o advento de critérios denormalidade e de normal# ela será a narra-ão da maneira com que +ulgamentos morais vãose infiltrando# muitas ve4es a toque de trombeta# em tratados técnicos e práticas queaspiram validade científica. Uma narra-ão bem descrita por 3oucault nos seguintes termos#no prefácio ( primeira edi-ão de %istória da loucura:

oderíamos fa4er uma hist)ria dos limites [ destes gestos obscuros# necessariamenteesquecidos desde que reali4ados# através dos quais uma cultura re+eita algo que será para ela o 1xteriorN e# ao longo de sua hist)ria# este va4io profundo# este espa-o branco gra-as ao qual ela se isola as designa tanto quanto seus valores. ois taisvalores# ela os recebe e os mantém na continuidade de sua hist)riaN mas nesta regiãoa respeito da qual gostaríamos de falar# ela exerce suas escolhas essenciais# ela operaa partilha que lhe fornecerá o rosto de sua positividadeN lá se encontra a espessuraoriginária a partir da qual ela se forma&@I. 

$esta forma# 3oucault pode afirmar que as condi-,es da doen-a mental não serãoencontradas nem na análise da evolu-ão orgânica# nem na compreensão da hist)riaindividual# nem na situa-ão existencial do ser humano. 'té porque# a doen-a mental s) teriarealidade# valor e sentido no interior de uma cultura que a reconhece como tal. 's leis psicol)gicas# base para a partilha entre o normal e o patol)gico em sa8de mental# são# aomenos segundo 3oucault# sempre relativas a situa-,es hist)ricas determinadas. < que havianos deixado com uma pergunta central: “9omo nosso cultura conseguiu dar ( doen-a o

&@I 3<U9'U=0# $its et écrits# p. &QT

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sentido de desvio e ao doente um estatuto de exclusão/ 1 como# apenas disto# nossasociedade se exprime nestas formas m)rbidas que nas quais ela recusa a reconhecer"se/%&@Q.

 7)s acompanhamos esta maneira tipicamente foucauldiana de insistir que a Gdade9lássica marca o advento de uma experi!ncia de internamento da loucura para a qualconvergem todo um novo sistema de partilha entre racionalidade e alteridade. 1sta

experi!ncia é patrocinada por uma amoralidade baseada na ética protestante do trabalhoN até porque# o trabalho não é apenas uma questão econ;mica# mas uma questão deinternali4a-ão de normas morais# uma aptidão que exige práticas disciplinares e de controle.2aneira astuta de lembrar como# na idade clássica# a medicina era claramente uma questãode moral: o que nos explicaria# entre outras coisas# o parentesco entre desra4ão eculpabilidade que ainda se apresentaria em nossos dias. ois o vínculo entre medicina emoral é tal velho quanto a antiguidade grega# mas o que é novo aqui é a forma de utili4ar tal vínculo para compreender a cura a partir de dispositivos de repressão e de obriga-ão.$esta forma# 3oucault podia colocar esta questão central# de claro cunho niet4scheano: emque o estabelecimento de um campo empírico do saber com suas práticas e incid!nciassociais é devedor de uma reflexão de ordem moral/ 1m que o fundamento da ci!ncia édevedor de uma moral/

'ntes de responder tais quest,es# vimos na aula passada como 3oucault# insistia nofato de que# para o classicismo# não há psicologia# ou antes# não há algo como umaautonomia do fato psicol)gica em sua estrutura de determina-ão causual. 3oucault chegarámesmo a afirmar que a distin-ão cartesiana entre res e$tensa e res cogitans não guiava ohori4onte das práticas médicas. 7este sentido# não há possibilidade alguma decompreender# durante todo período clássica# a loucura como um fato psicol)gico. 1ste é umdado fundamental pois permite a 3oucault afirmar que# sendo o clacissismo um momentomarcado pela aus!ncia da psicologia e da psiquiatria# +á que não há simplesmente um ob+etoque possa ser descrito como “fato psicol)gico%# então um dos problemas centrais será deordem epistemol)gica. 0rata"se de se perguntar em que condi-,es um ob+eto de umadeterminada ci!ncia empírica pode constituir"se# o que deve ocorrer ao ser humano e o quedeve ocorrer ( loucura para que eles se+am ob+etos de uma empiricidade como a psicologiae a psiquiatria.

Drosso modo# 3oucault procura mostrar como há um momento# bastante preciso# emque nasce um su+eito dotado de fun-,es e disposi-,es puramente psicol)gicas# que devemser tratadas através de técnicas e métodos psicol)gicos. 1 tal processo é indissociável dacren-a disciplinar de constitui-ão do su+eito através da internali4a-ão de imperativosvinculados a uma certa moral que# por permitir o estabelecimento das condi-,es para oreconhecimento de su+eitos em sua dignidade de su+eitos Onão é outra ra4ão que umaquestão clássica na abordagem clínica das psicoses é: há ou não um su+eito/P# ou se+a#su+eitos dotados de capacidade de auto"determina-ão e de imputabilidade# tem valor formador e constitutivo e não apenas alor descritio. $igamos que 3oucault procura#fundamentalmente# demonstrar como a cura psiquiátrica estava vinculada ( implementa-ãode práticas disciplinares visando a reconstru-ão de uma vontade aut;noma. 9omo se a prática psiquiátrica fosse# na verdade# um dispositivo de internali4a-ão da disciplinaenquanto condi-ão para a autonomia# esta mesma autonomia que permitiria ao indivíduoser reconhecido como su+eito. Uma autonomia que fornece o fundamento para a distin-ão

&@Q 3<U9'U=0# &aladie mentale, p. IF

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moderna entre su+eito transcendental# l)cus de uma vontade pura# e su+eito empíricovinculado (s exig!ncias de um corpo que agora pode ganhar a figura de ob+eto.

 7este sentido# vimos como colocar a cura da loucura sob o signo da recupera-ão deuma liberdade# de uma autonomia que é condi-ão “natural% do su+eito# significava assentar o procedimento de cura na possibilidade opera-,es reflexivas através das quais o doente

mental pode tomar gradativamente distância de si mesmo. 9omo se a condi-ão para a curafosse a capacidade de tomar a si mesmo como ob+eto# redu4ir si mesmo como um ob+eto para um olhar no qual se alo+am a liberdade e a autonomia. 9omo se a condi-ão para a curafosse# primeiramente# a ob+etiva-ão do homem. 7este sentido# a história da loucura é ummodo astuto de contar a história do su;eito moderno, historia do processo de forma-ão dano-ão moderna de sub+etividade a partir do desenvolvimento das técnicas médicas deinterven-ão em um domínio que# retroativamente# podemos chamar de “domínio psicol)gico%. $aí porque a crítica da ra4ão deverá ser# para 3oucault# uma opera-ãototalmente depende de uma critica do su+eito# de uma estratégia que mais tarde ganhará a palavra de ordem: “morte do su+eito%.

4 %undamento da cr,tica

 7)s vimos em outras aulas como esta “contra"hist)ria da ci!ncia% que é. 'o mesmotempo# crítica da ra4ão moderna precisava assegurar seus critérios de fundamenta-ão# isto afim de não solapar o territ)rio no qual a crítica assenta sua pr)pria racionalidade. 7)svimos# em aulas anteriores como $errida lembrava o caráter inconsistente do pro+etofoucauldiano# +á que estaríamos diante de uma crítica da ra4ão que precisaria fundamentar seus protocolos de avalia-ão sem recorrer ( mesma ra4ão que é ob+eto de desqualifica-ão.1mpreendimento impossível aos olhos de $errida# +á queN “Toda nossa linguagem européia#a linguagem de tudo aquilo que participou# de um +eito ou de outro# ( aventura da ra4ãoocidental# é a delega-ão de pro+eto que 3oucault define sob a forma de captura ou deob+etiva-ão da loucura%&@T. Gsto nos lembraria que# diante da Ba4ão : “n)s s) poderíamoschamar contra ela apenas ela mesma# n)s s) poderíamos protestar contra ela no seuinterior%&EX. 'nos mais tarde# Habermas irá insistir no mesmo ponto ao lembrar do:“problema metodol)gico de como se pode escrever uma hist)ria das constela-,es da ra4ãoe da loucura quando o trabalho do historiador tem de mover"se dentro do hori4onte dara4ão%&E&.

$e fato# 3oucault procura escapar deste problema metodol)gico do fundamentoatravés do recurso a uma dimensão recalcada pelo desenvolvimento dos processos deracionali4a-ão na modernidade# dimensão marcadamente a"sub+etiva# anterior (constitui-ão de mecanismos de individua-ão. Ká em  Doença mental e psicologia, 3oucaultfa4ia apelo ( análise existencial e a conceito de  Dasein a fim de fornecer uma dimensão para além da análise da hist)ria individual# da antropologia do su+eito. onto capa4 dedeterminar um elemento organi4ador da hist)ria# enquanto campo de conflito# para além da pr)pria hist)ria.

1sta analítica do Dasein não está mais presente em %istória da loucura. 1m seulugar vimos 3oucault procurando esbo-ar algo como uma “experi!ncia trágica da loucura%que ainda teria realidade social antes do advento da Gdade clássica. 1xperi!ncia pr)xima de

&@T $1BBG$'# Cogito et histoire de la folie, p. FQ&EX $1BBG$'# idem, p. FT&E& H'R1B2'# * discurso filosófico da modernidade, p. ?@@

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um logos origin)rio, de um ser bruto da linguagem que estaria presente nacontemporaneidade apenas de maneira regional em certas expectativas disruptivas damodernidade estética.

$e fato# ele não se furta a fornecer suas coordenadas no que di4 respeito a esta procura de um fundamento. 1m larga medida# ele deve ser procurado em suas leituras de

2aurice Rlanchot# Deorges Rataille e ierre Closso^s_i. 1sta articula-ão inusitada entreinflu!ncias da reflexão epistemol)gica francesa 5influ!ncias estas que se desdobrarão paraarticula-,es com o estruturalismo6 e marcas de uma certa tradi-ão filos)fico"literáriaadvinda do modernismo estético será fundamental para 3oucault. ] ela lhe permitirá procurar no campo da experi!ncia estética os resquícios de uma experi!ncia social capa4 dese colocar para além de processos de racionali4a-ão que visam# entre outras coisas# principalmente  produzir aquilo que compreendemos por “su+eito%. $aí uma afirma-ãocomo:

$urante um longo período# tive em mim uma espécie de conflito mal resolvido entrea paixão por Rlanchot# Rataille e# por outro lado# o interesse que alimentava por certos estudos positivos como os de $umé4il e de =évi"trauss# por exemplo. 2as#no fundo# estas duas orienta-,es# cu+o 8nico denominador comum era talve4constituído pelo problema religioso contribuíram de maneira igual a me condu4ir ao problema do desaparecimento do su+eito&E?.

 7este sentido# a interpreta-ão de um pequeno texto de 3oucault#  #oucura( aus/ncia deo"ra, pode nos auxiliar na configura-ão da nature4a deste recurso ( Rlanchot e Rataille.

 7este texto curto porém importante# 3oucault inicia afirmando que talve4 chegaráum dia no qual tudo o que experimentamos ho+e sob o modo do limite# do estranhamentoou do insuportável em rela-ão ( loucura alcan-ará a “serenidade do positivo%. < +ogo com oexterior poderá ganhar a forma destes rituais sociais como a aten-ão ambígua que a ra4ãogrega dirigia aos oráculos. Gsto significa di4er que o progresso médico pode até liquidar adoen-a mental através de um desenvolvimento exponencial dos métodos de interven-ãoclínica:

mas uma coisa permanecerá que é a rela-ão do homem aos seus fantasmas# ao seuimpossível# ( sua dor sem corpo# ( sua carca-a noturnaN que uma ve4 colocado o patol)gico fora de circuito# o sombrio pertencimento do homem ( loucura será amem)ria sem idade de um mal dissolvido em sua forma de doen-a# mas obstinando"se como infelicidade 5malheur 6&E@.

uer di4er# o que deve desaparecer 5mas um dee com o peso de um dever# de umaobriga-ão moral6 não é esta experi!ncia trágica da loucura +á temati4ada várias ve4es por 3oucault# mas um certo modo de rela-ão ( loucura# um certo modo de rela-ão ao limite queo fil)sofo compreende como uma artimanha dialética. Uma crítica ( dialética que iráacompanhar 3oucault durante toda sua tra+et)ria aparece aqui como base para a recupera-ãoda pot!ncia trágica da loucura e para a configura-ão deste regime de linguagem que deveaparecer como fundamento da crítica da ra4ão moderna:&E? 3<U9'U=0# $its et écrits# p. >E?&E@ idem# p. EE&

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< que não demorará a morrer# o que +á morre em n)s 5e cu+a morte +ustamente levanossa linguagem atual6 é o homo dialecticus  [ o ser da partida# do retorno e dotempo# o animal que perde sua verdade e a reencontra iluminada# e estranho a si queadvém familiar &EE.

<u se+a# o que deve morrer é o ser que determina sua identidade através deoposi-,es e contrariedades que podem ser internali4adas# mas ( condi-ão de se submeterema uma ra4ão que tudo positiva# até porque a contrariedade +á é maneira de regular adiferen-a# +á é maneira de redu4ir a diferen-a ( simples oposi-ão. Uma oposi-ão que apenas perpetua as divis,es da ra4ão moderna: su+eitoLob+eto# ess!nciaLapar!ncia#identidadeLdiferen-a# etc. 1sta maneira de ler a dialética hegeliana fará escola no interior do pensamento franc!s contemporâneo.

$e qualquer forma# vale a pena lembrar que +á no prefácio ( %istória da loucura,3oucault havia feito apelo a um “logos que não conhecia contrários% como alternativa paraesta ra4ão moderna que opera através de exclus,es e denega-,es. 'gora# ele afirma que aexperi!ncia que garante o acesso a tal logos não é outra que aquilo que Rataille um diadesignou como “experi!ncia da transgressão%. $aí porque 3oucault afirmará que odesaparecimento da loucura como doen-a mental não significa o desaparecimento desta“forma geral da transgressão% que ela encarnou durante séculos.

Drosso modo# Rataille procurava pensar uma certa solidariedade entre interdito etransgressão que encontramos em estruturas sociais marcadas por uma experi!ncia dosagrado e do erotismo estranha para o mundo desencantado da modernidade. 0ais estruturassociais# que talve4 tenham sua melhor figura-ão na festa# fundam"se em uma normatividadeque aceita e regula sua pr)pria suspensão temporária: “7ão há interdito que não possa ser transgredido. 2uitas ve4es a transgressão é admitida# muitas ve4es ela chega mesmo a ser  prescrita%&EF. <u se+a# a transgressão é modo de funcionamento do vínculo social# isto namedida em que a transgressão não é um retorno ( nature4a# ela é uma forma da normainternali4ar momentos de anomia# sem com isto destruir"se. 'ssim# a redu-ão da vida a umfluxo contínuo de formas em momentos de anomia não parece se opor ao ordenamento +urídico. $aí porque Rataille pode afirmar que: “a transgressão suspende o interdito semsurpimí"lo%# isto sem deixar de lembrar# contrariando aqui o encaminhamento intelectual de3oucault: “Gn8til insistir sobre o caráter hegeliano desta opera-ão que responde ao momentoda dialética expressa pelo verbo alemão intradu4ível aufhe"en%&E>. <u se+a# para Rataille# atransgressão não é outra coisa que uma figura social da Aufhe"ung hegeliana.

3oucault passa ao largo destas considera-,es para afirmar que há quatro formasmaiores de transgressão. 0odas elas estão ligadas aos interditos da linguagem enquantosistema de regras e leis que constituem o campo possível de experi!ncias socialmentereconhecidas. <s interditos da linguagem são:

• a impossi"ilidade de constitui-ão de certas formas de enunciado devido (s regras doc)digo. < c)digo determina o con+unto formal de estruturas enunciativas válidas.

• a "lasf/mia como uso de palavras proibidas. 'qui# o interdito não é sintático# massemântico.

&EE 3<U9'U=0# $its e écrits# p. EE?&EF R'0'G==1# #0érotisme, p. I&&E> idem# p. E?

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• a censura como restri-ão de enunciados que# no entanto# são autori4ados pelaaplica-ão do c)digo.

2as além destes tr!s# há um modo extremamente particular de interdito queinteressa particularmente 3oucault:

Há também uma quarta forma de linguagem excluída: ela consiste em submeter uma palavra# aparentemente conforme o c)digo reconhecido# a um outro c)digo cu+achave está dada nesta pr)pria palavraN de forma que esta palavra é duplicada nointerior de si. 1la di4 o que ela di4# mas ela acrescenta um suplemento mudo queenuncia silenciosamente o que ele di4 e o c)digo segundo o qual ele di4. 7ão setrata de uma linguagem cifrada# mas uma linguagem esotérica&EI.

<u se+a# esta forma de transgressão consiste em# ao mesmo tempo# submeter e nãosubmeter uma palavra ao c)digo# isto porque o mesmo termo fa4 parte de um c)digo partilhado publicamente e de uma espécie de c)digo privado que fa4 com que a palavra

traga em si mesma sua pr)pria medida. 1sta transgressão é a mais implacável porque elaconsegue anular a pot!ncia ordenadora do c)digo no momento mesmo em que talordena-ão parece ser aplicada.

3oucault utili4a este esquema a fim de di4er que a experi!ncia da loucura noocidente foi se deslocando no interior destes modos de transgressão e interdito. 'ntes dogrande internamento# ela era vivenciada como um desabamento da capacidade ordenadorade um c)digo partilhado. osteriormente# ao ser posta +untamente com aqueles marcados pela falta moral 5desempregados# libertinos6 ela aparece como a “linguagem excluída%# estaque pronuncia palavras sem significa-ão 5os insensatos# os imbecis# os dementes6# ou palavras sacrali4adas 5os violentos# os furiosos6 ou ainda que procura fa4er circular significa-,es interditas 5os libertinos6. egundo 3oucault# é com 3reud e sua no-ão da

linguagem patol)gica como linguagem submetida a uma significa-ão privada que deve ser constituída através de processos de interpreta-ão que a loucura aparece como a quartaforma de transgressão:

$esde 3reud# a loucura ocidental transformou"se em uma não"linguagem pois eletransformou"se em uma linguagem dupla 5língua que s) existe nesta fala# fala que s)di4 sua língua6 "# ou se+a# uma matri4 de linguagem que# no sentido estrito# não di4nada. $obra do falado que é uma aus!ncia de obra &EQ.

1sta no-ão de aus!ncia de obra indica a impossibilidade de constitui-ão de umatotalidade funcional através de uma linguagem cu+as opera-,es de significa-ão sempre parecem se disseminar. 1sta aus!ncia de obra é fundamentalmente índice daimpossibilidade de certas opera-,es de síntese e de totali4a-ão pr)prias a toda formali4a-ãocapa4 de construir uma obra.

< salto arriscado feito por 3oucault consiste em afirmar que esta opera-ão dedesaparecimento da obra é exatamente o resultado do modo de funcionamento dalinguagem presente nesta tradi-ão da literatura de vanguarda que tem em 2allarmé seu

&EI 3<U9'U=0# idem# p. EEE&EQ idem# p. EE>

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nome maior# como se a literatura de vanguarda fosse tributária de uma experi!ncia socialque a coloca em linha de aproxima-ão com uma certa experi!ncia trágica da loucura. $aí ointeresse de 3oucault por escritores loucos como: 7erval# 'rtaud e Boussel. $aí estaafirma-ão de uma literatura que procura se situar no espa-o da forma va4ia que marca aaus!ncia de obra# que s) nos permite di4er “7ada terá lugar a não ser o lugar%.

'ntes de 2allarmé# escrever consistia em estabelecer sua palavra no interior de umalíngua dada# de maneira que a obra de linguagem seria da mesma nature4a quequalquer outra linguagem# aos signos aproximados da Bet)rica# do u+eito ou dasGmagens. 7o final do século MGM 5na época do descobrimento da psicanálise ouquase6 a literatura se transformou em uma palavra que inscrevia nela seu pr)prio princípio de decifra-ão ou# em todo caso# ela supunha# sob cada uma de suas frases#sob cada uma de suas palavras# o poder de modificar soberanamente os valores e assignifica-,es da língua ( qual# apesar de tudo# ela pertenciaN ela suspendia o reino dalíngua em um gesto atual de escritura&ET.

1sta proximidade ( literatura permitirá# um dia# que a loucura se livre de suaredu-ão ( figura da doen-a mental. or outro lado# ela transforma a reconfigura-ão formaldas potencialidades e regras da linguagem operadas pela literatura em solo defundamenta-ão de uma ra4ão que não quer mais ser confundida com sua versãoinstrumental e identificadora em opera-ão nos campos das ci!ncias empíricas que tomam ohomem por ob+eto. ensar como esta reconfigura-ão formal da linguagem presente naliteratura de vanguarda pode ser capa4 de servir de princípio de orienta-ão para umareconfigura-ão ampla dos processos de racionali4a-ão social# eis algo que 3oucault deveráresponder.

$e qualquer maneira# e aqui inspirado novamente por Rataille# 3oucault lembra queas experi!ncias de transgressão não são apenas vinculadas ao domínio estrito da linguagem.1la tocam todos os processos sociais submetidos a regras e normas estruturadas como umalinguagem. Um caso exemplar aqui é a sexualidade que nos fornece um campo detransgressão do corpo como espa-o submetido a práticas disciplinares.

' sexualidade s) é decisiva para a nossa cultura na medida em que ela é falada# namedida em que a sexualidade nos coloca diante do problema da transgressão da linguagem#na medida em que ela leva a linguagem ( confronta-ão com estes limites figurados atravésdo obsceno ou do arrebatamento que esva4ia toda tentativa de nomea-ão e descri-ão.=embremos# a este respeito# de 3reud que reivindicava para si o direito de poder “discutir francamente as rela-,es sexuais% e chamar os )rgãos sexuais por seus nomes “eu reivindicosimplesmente os direitos do ginecologista%&FX. or trás desta inve+a em rela-ão aos direitosdo ginecologista# estava em marcha um processo de reconhecimento da sexualidade como overdadeiro ob+eto dos interditos da linguagem# no que um falar franco sobre o sexo# sobresua indetermina-ão natural# sobre seus desvios m8ltiplos# sobre seu caráter fragmentário# s) poderia ser vivenciado como uma questão maior. <u se+a# a transgressão não é feita devido( compreensão da sexualidade como uma nature4a recalcada pelas regras de nossalinguagem. ' verdadeira transgressão vem do fato da sexualidade apresentar"se como puroespa-o do desnaturado# de uma origem sem positividade# de um ser que se afirma como

&ET idem# p. EEI&FX 3B1U$# *"seraç'es so"re um caso de histeria

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 puro limite que não permite nenhuma forma de interiori4a-ão reflexiva +á que ela é este ponto que não se submete a um discurso da unidade.

$e qualquer forma# 3oucault insiste que tais transgress,es nos abre para umaexperi!ncia soberana# pois experi!ncia feita na exterioridade do ordenamento +urídico.Uma experi!ncia que não implica a destrui-ão de um mundo por outro mundo positivo e

limitado. ois a transgressão tra4 uma estranha “afirma-ão não positiva%# ou se+a# afirma-ãoque não se reali4a na disposi-ão posicional de um mundo# mas que apenas: “se desdobra naexperi!ncia do limite# se fa4 e se desfa4 no excesso que o transgride%&F&. 3oucault chegamesmo a lembrar da distin-ão _antiana entre nihil priatium 5ob+eto va4io de um conceito#falta6 e nihil negatium 5ob+eto va4io desprovido de conceito# ob+eto contradit)rio6 a fim defundamentar esta idéia de uma afirma-ão que não p,e ob+eto algum# afirma-ão capa4 deinterrogar o “ser do limite%# o va4io da “origem sem positividade%. Besta saber até onde3oucault poderá nos levar com este ser do limite.

&F& idem# p. ?>E

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Curso Foucault

(ula 9

 7a aula de ho+e# come-aremos o m)dulo dedicado ao comentário de  As palaras e as

coisas.  7o entanto# s) é possível compreender o que estava em +ogo neste que é#certamente# o livro fundamental da experi!ncia intelectual de 3oucault ( condi-ão de levar a sério esta afirma-ão enunciada em uma entrevista de &T>I: “< que tentei fa4er foiintrodu4ir análises de estilo estruturalista em domínios nos quais elas não tinham ainda penetrado# ou se+a# no domínio da hist)ria das idéias# da hist)ria dos conhecimentos# dahist)ria da teoria%&F?.

Uma afirma-ão desta nature4a nos leva diretamente ( necessidade de umasistemati4a-ão mínima a respeito do estruturalismo e de suas rela-,es com o programaarqueol)gico de 2ichel 3oucault. 0rata"se de uma articula-ão central# até porque rarosforam os momentos hist)ricos que viram configurar uma experi!ncia intelectual comoaquela que se colocou sob a égide do estruturalismo. 1xperi!ncia que reali4ou# ( suamaneira# um verdadeiro “programa crítico interdisciplinar% nascido da articula-ão cerradaentre antropologia# psicanálise# lingYística# crítica literária e reflexão filos)fica. rogramaque# de uma certa forma# aliava sob protocolos comuns nomes como 9laude =évi"trauss#Kacques =acan# =ouis 'lthusser# Boland Rarthes# 2ichel 3oucault# Boman Ka_obson# entreoutros.

$igamos# inicialmente# que analisar com calma o estruturalismo e seus pro+etos#significa deparar"se com uma tentativa singular de procurar redefinir por completo o parâmetro de racionalidade e os métodos das chamadas ci!ncias humanas. 0entativa comconseqY!ncias filos)ficas absolutamente evidentes. 0al redefini-ão partiu da defesa dalingYística como “ci!ncia ideal% que deveria guiar a reconfigura-ão do campo das ci!nciashumanas. 7otemos# por exemplo# o tom ditirâmbico que anima a seguinte afirma-ão de=évi"trauss : “7o con+unto das ci!ncias sociais ao qual pertence indiscutivelmente# alingYística ocupa# entretanto# um lugar excepcionalN ela não é uma ci!ncia social como asoutras# mas a que# de há muito# reali4ou os maiores progressos: a 8nica# sem d8vida# que pode reivindicar o nome de ci!ncia e que chegou# ao mesmo tempo# a formular um método positivo e a conhecer a nature4a dos fatos submetidos ( sua análise%&F@.

1ste primado da lingYística implicava em um duplo efeito. rimeiro# como vemosna afirma-ão de =évi"trauss# tratava"se de uma !uestão de método. ' lingYística estruturalinspirada por aussure# e implementada por nomes como Ka_obson 5sem esquecermos detodo o 9írculo lingYístico de raga: 0roubet4_oJ# Aache_ entre outros6# Dreimas eH+elmslev havia reali4ado um amplo processo de formali4a-ão de seu ob+eto# o fatolingYístico# através da compreensão da linguagem como sistema diferencial"opositivo deunidades elementares 5fonemas6. 7ão se tratava de uma matematização no sentido pr)prio(quela implementada no campo das ci!ncias físicas# ou se+a# redu-ão dos ob+etos a umaunidade comum de medida que permite a implementa-ão de processos de quantifica-ão e

&F? 3<U9'U=0# $its et écrits# p. >&&&F@ =]AG"0B'U# Antropologia estrutural, p. EF. <u ainda# como nos di4 Dranger : “' tentativa detransformar o acontecimento vivido em ob+eto abstrato# essencialmente definido por suas correla-,es a outrosob+etos em um sistema formal# parece ter sido levada ao extremo pela lingYística estrutural e apresenta"secomo uma verdadeira provoca-ão aos olhos dos hábitos do conhecimento científico% 5DB'7D1B# ensée formelle et sciences de l0homme, p. IE6

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compara-ão. 0ratava"se de uma  formalização estrutural, ou se+a# sistemati4a-ão de“elementos que se especificam reciprocamente em rela-,es%&FE  e que não tem nenhumarealidade intrínseca para além deste campo de rela-,es. =embremos# por exemplo# darela-ão estabelecida por aussure entre a linguagem e o +ogo de xadre4. 0ratava"se dedemonstrar como o valor de cada elemento era determinado através do estabelecimento de

um con+unto de regras e de sistemas de permuta-ão : “< valor respectivo das pe-as dependeda sua posi-ão no tabuleiro# do mesmo modo que na língua cada termo tem seu valor pelaoposi-ão aos outros termos%&FF. 3ato que levava aussure a afirmar# de maneira can;nica#que# na ci!ncia da linguagem: “os ob+etos que ela t!m diante dela são desprovidos derealidade em si# ou a parte dos outros ob+etos a considerar. 1les não tem absolutamentenenhum substratum de exist!ncia fora de suas diferen-as ou das diferen-as de toda formaque o espírito encontra um meio de atribuir ( diferen-a fundamental%&F>.

or outro lado# a estrutura não é dada de maneira imanente no campo fenomenal. 'ocontrário# ela determina de maneira transcendente este campo e seus atores# que agem demaneira inconsciente. 'o falar# os su+eito não t!m consci!ncia da estrutura fonemática quedetermina seus usos da língua# da mesma maneira que# ao operar escolhas matrimoniais# ossu+eitos não t!m consci!ncia dos sistemas de parentesco que determinam tais escolhas. 1stecaráter inconsciente da estrutura será um dado fundamental para a ob+etividade do pensamento estruturalista# assim como para o seu anti"humanismo. ara um pensamentoestruturalista estrito os su+eito não falam# eles são falados pela linguagem. $e onde se seguea afirma-ão clássica de =évi"trauss: “7ão pretendemos mostrar como os homens pensamnos mitos# mas como os mitos se pensam nos homens# e ( sua revelia. 1. como sugerimos#talve4 convenha ir ainda mais longe# abstraindo todo su+eito para considerar que# de umcerto modo# os mitos se pensam entre si%&FI.

2as se o primeiro efeito do primado da lingYística era esta reconfigura-ão daracionalidade das ci!ncias humanas através do programa de formali4a-ão estrutural# osegundo efeito estava na compreensão de que o verdadeiro ob+eto das ci!ncias humanas nãoera o homem# mas as estruturas que o determinam. 2ichel 3oucault compreendeu istoclaramente ao afirmar que: “Há ci!ncias humanas não em todo lugar onde é questão dohomem# mas em todo lugar onde analisamos# na dimensão pr)pria do inconsciente# asnormas# regras# con+untos significantes que desvelam ( consci!ncias as condi-,es de suasformas e de suas condutas%&FQ.

0al recompreensão do ob+eto das ci!ncias humanas implicava# necessariamente emuma teoria da sociedade que transformava a linguagem no fato social central,  +á que todosos fatos sociais : trocas matrimoniais# processos de determina-ão de valor de mercadorias#articula-ão do ordenamento +urídico# seriam todos estruturados como uma linguagem.'ssim como a filosofia anglo"saxã do início do século MM defrontou"se como uma certaguinada lingYística que reorientou os problemas ontol)gicos para o campo da análise dalinguagem# as ci!ncias humanas francesas da segunda metade do século MM reconstruíramseu ob+eto e seu campo ao usar a análise da linguagem como método e parâmetro. odemosver claramente tal estratégia em a-ão na seguinte afirma-ão de =évi"trauss : “7o estudodos problemas de parentesco 5e sem d8vida também no estudo de outros problemas6# o

&FE $1=1U1# -m !ue se pode reconhecer o estruturalismo@, p. ?QX&FF 'UUB1# Curso de lingística geral, p. &XE&F> idem# -ssais de linguisti!ue générale, p. >F&FI =]AG"0B'U# o cru e co cozido, p. @&&FQ 3<U9'U=0# #/s mots et l/s choses, p. @I>

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soci)logo se v! numa situa-ão formalmente semelhante ( do lingYista fon)logo: como osfonemas# os termos de parentesco são elementos de significa-ãoN como eles s) adquiremesta significa-ão sob a condi-ão de se integrarem em sistemasN os Zsistemas de parentescoZ#como os Zsistemas fonol)gicosZ# são elaborados pelo espírito no estágio do pensamentoinconscienteN enfim a recorr!ncia# em regi,es afastadas do mundo e em sociedades

 profundamente diferentes# de formas de parentesco# regras de casamento# atitudesidenticamente prescritas# entre certos tipos de parentes etc. fa4 crer que# em ambos os casos#os fen;menos observáveis resultam do +ogo de leis gerais# mas ocultas% &FT.

1sta recompreensão dos fatos sociais como fatos estruturados como uma linguagem permitirá# por exemplo# o re"enquadramento do campo da política e da crítica da ideologiano interior de um campo de análise do discurso 5lembremos de 3oucault com sua no-ão de“práticas discursivas%# de =acan com sua teoria do vínculo social a partir de uma tipologiade discursos e de $errida com seus procedimentos de desconstru-ão como substituo dos protocolos de crítica da ideologia6.

:oç;es elementares do estruturalismo

2as devemos aproveitar este momento para levar a cabo uma apresenta-ão# mesmo que panorâmica# de alguns pressupostos maiores do estruturalismo. Gsto nos permitirá umaabordagem mais prevenida de As palaras e as coisas.

0r!s aspectos são centrais no estruturalismo: a no-ão de ordem estrutural comoelemento transcendental de determina-ão do sentido# o caráter inconsciente de tal ordem e# por conseqY!ncia# a no-ão determinista do su+eito como suporte da estrutura.

0omemos# inicialmente# algumas elabora-,es de aussure. odemos di4er que umade suas características maiores é um certo encaminhamento transcendental de sua reflexãosobre a linguagem. =embremos# por exemplo# da maneira com que aussure determina atarefa geral da lingYística: “fa4er a hist)ria das famílias de línguas e reconstituir# na medidado possível# as línguas"mães de cada famíliaN procurar as for-as que estão em +ogo# demodo permanente e universal# em todas as línguas e dedu4ir as leis gerais (s quais se possam referir todos os fundamentos particulares da hist)ria e delimitar"se e definir"se a si pr)pria%&>X. <u se+a# não apenas uma gramática comparada# mas um estudo sistemático dasleis gerais da linguagem.

Aale a pena atentar"se principalmente para o segundo ponto: estabelecer leis gerais# permanentes# universais e incondicionadas que determinariam os fatos lingYísticos. ois setratava# na verdade# de determinar as condi-,es a priori para a exist!ncia de fatoslingYísticos. Um questionamento transcendental a respeito da linguagem como elemento deestrutura-ão do pensamento se insinuava aqui. 0al questionamento deveria dar conta# entreoutras coisas# da maneira com que a linguagem estrutura o pensável e como ela se relacionacom a refer!ncia do pensamento. 2as# como nos lembra Dranger: “eria inexatocaracteri4ar este encaminhamento preliminar como simples abstra-ão. ' estruturalingYística aqui visada não é apenas um abstrato em rela-ão ao fato da linguagemN ela éaquilo que# na aus!ncia de termo melhor# chamaremos com Husserl de ess!ncia# ou se+a#um esbo-o transcendental de ob+eto# para além de toda ontologia. 0ranscendental aqui nãoconserva nenhuma significa-ão propriamente idealista# na medida em que não se trata deexposi-ão de uma condi-ão imutável de conhecimento de ob+eto fundada na nature4a de um&FT =]AG"0B'U# Antropologia estrutural, p. EQ&>X idem# p. &@

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eu abstrato 5...6 ' palavra transcendental +ustifica"se precisamente porque o esbo-o não seredu4 a um empobrecimento do vivido por abstra-ão. 7ão importa qual se+a seu estatutogenérico# o esbo-o constitui o guia de um conhecimento conceitual  possi"ilitando ascontribui-,es de uma experi!ncia controlada e o desenvolvimento de uma combinat)ria%. &>&

or outro lado# aussure era um defensor claro da arbitrariedade do signo# ou se+a#

de uma certo convencionalismo que afirmava a autonomia do signo em rela-ão ( todadetermina-ão prévia da refer!ncia. 7a verdade# aussure procurava esva4iar a questão arespeito da refer!ncia e da designa-ão# ou se+a# a questão da exterioridade da linguagem.2as esva4iar o problema da refer!ncia nos leva necessariamente a explicar como assignifica-,es são produ4idas# para além de uma confronta-ão entre linguagem e refer!ncia.1 é aqui que entrava a no-ão central de “sistema%# +á que será a organi4a-ão da língua comoum sistema fechado 5aussure falará da língua como sistema arbitrário de signos6 queresponderá pelo processo de produ-ão de significa-,es. ' significa-ão não é resultado daconfronta-ão entre palavra e coisa# mas é o resultado de uma articula-ão posicional"opositiva dos signos entre si# como em um sistema fechado. ] da no-ão saussureana de“sistema% que nascerá o conceito de “estrutura%: “ ' língua é um sistema do qual todas as partes podem e devem ser consideradas em sua solidariedade sincr;nica%&>?.  endo quesincronia quer di4er aqui aquilo que nos dá a configura-ão de um estado mais ou menosestável da língua 5diacronia como a percep-ão hist)rica dos processos de modifica-ão doselementos que comp,em a língua6.

$i4er que a língua organi4a"se como um sistema significa insistir que devemoscompreende"la a partir do seu interior, ou se+a# a partir de suas leis estruturais defuncionamento. “9umpre pois partir da totalidade solidária para obter# por análise# oselementos que encerra%&>@. < modelo desta totalidade foi fornecido a aussure pelo modode organi4a-ão dos fonemas no interior da língua: unidades elementares que não temnenhuma realidade para além de suas rela-,es no interior de um sistema. 1ra tal analogiaque permitia a aussure afirmar: “7a língua# s) existem diferen-as. 1 mais ainda: umadiferen-a sup,e em geral termos positivos entre os quais ela se estabelece# mas na língua háapenas diferen-as sem termos positivos%&>E.

 1sta no-ão da linguagem como sistema fechado cu+os processos de determina-ãode valor não obedece nenhuma visada externalista pois organi4ados a partir de regrasinternas que t!m posi-ão transcendental podia ser melhor compreendida através dametáfora do +ogo. ' no-ão da linguagem como +ogo# no-ão central para a filosofia doséculo MM 5`ittgenstein principalmente6# deve aqui ser levada a sério. ois o +ogo éinstaura-ão de um espa-o no qual todos os acontecimentos são produ4idos e significadossem refer!ncia ( exterioridade do que não se submete (s regras de organi4a-ão do seuespa-o. $e uma certa maneira# os +ogos produ4em acontecimentos a partir das regras quecomp,em a estrutura. aussure tenta levar tal situa-ão ao extremo ao afirmar que alinguagem é como um +ogo de xadre4 que é +ogado por +ogadores inconscientesN como se#de uma certa forma# fossem as regras que +ogassem o +ogo# e não os su+eitos. $erridacompreendeu claramente as conseqY!ncias desta perspectiva ao afirmar: “Há pois duasinterpreta-,es da interpreta-ão# da estrutura# do signo e do +ogo. Uma procura decifrar#sonha decifrar uma origem que escapa ao +ogo e ( ordem do signo# e vive a necessidade de

&>& DB'7D1B# ensée formelle et sciences de l0homme, p. I>&>? 'UUB1# idem# p. &X?&>@ 'UUB1# idem# p. &@?&>E 'UUB1# idem# p. &@T

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interpreta-ão como um exílio Otrata"se de perguntar : o que há fora do +ogo/P. ' outra# quenão está mais voltada ( origem# afirma o +ogo e tenta passar para além do homem e dohumanismo# o nome do homem sendo o nome deste ser que# através da hist)ria dametafísica ou da onto"teologia# sonhou a presen-a plena# o fundamento assegurador# aorigem e o fim do +ogo%&>F. <u se+a# a primeira v! o “+ogo de linguagem% como aquilo que

oblitera uma exterioridade na qual se leria a verdadeira matri4 do sentido 5a confronta-ãorealista com a refer!ncia# as determina-,es s)cio"econ;micas da linguagem# a hist)ria etc.6.' outra insistiria na irredutibilidade arbitrária do +ogo# na impossibilidade de fa4er apelo auma refer!ncia exterior que poderia fundamentar o +ogo. ] neste segundo via queencontramos 9laude =évi"trauss.

 7ome fundamental para a transforma-ão da lingYística estrutural em padrão deracionalidade das ci!ncias humanas# =évi"trauss procurava implementar um programa dereorienta-ão do parâmetro de racionalidade das ci!ncias humanas através de um esfor-o deformali4a-ão do fato social em chave estrutural. eguindo uma trilha aberta por $ur_heim#=évi"trauss determinava a estrutura como o verdadeiro fato social.   =embremos do que$ur_heim di4 a respeito do fato social: “uando desempenho meus deveres de irmão# deesposo# de cidadão# quando me desincumbo de encargos que contraí# pratico deveres queestão definidos fora de mim e de meus atos# no direito e nos costumes. 2esmo estando deacordo com sentimentos que me são pr)prios# sentido"lhes interiormente a realidade# estanão deixa de ser ob+etivaN pois não fui eu quem os criou# mas recebi"os através da educa-ão5...6 estamos# pois# diante de uma ordem de fatos que apresenta caracteres muito especiais:consistem em maneiras de agir# de pensar e de sentir exteriores ao indivíduo# dotadas de um poder de coer-ão em virtude do qual se lhe imp,em%&>>. <u se+a# trata"se de compreender que não é o campo fenom!nico da a-ão dos indivíduos que realmente interessa# mas adetermina-ão desta estrutura prévia que coage os su+eitos# a partir do e$terior # a agir decerta forma e a assumir certos lugares na vida social. 1strutura que totali4a e unifica amultiplicidade de fatos dispersos na vida social. 7o caso de =évi"trauss# esta estruturasocial que não era composta exatamente por um con+unto positivo de regras# mas por rela-,es diferenciais e opositivas que determinam possibilidades de combinat)ria einterditos de transposi-ão# tal como as rela-,es que organi4ariam os fonemas.

or sua ve4# =évi"trauss insistia também no caráter inconsciente da estrutura. Gstoera o resultado da posi-ão# sinteti4ada por 2erleau"ontJ# a respeito de =évi"trauss: “'fun-ão simb)lica antecede o dado%&>I. <u se+a# ela não se conforma aos dados naturais# aocontrário# ela estabelece previamente o campo possível de experi!ncias no interior do qual a pr)pria no-ão se disponibili4ará. $aí porque =évi"trauss poderá afirmar: “os símbolos sãomais reais do que aquilo que simboli4am%&>Q. 7otamos assim que a anterioridade daestrutura em rela-ão ao dado é uma anterioridade que indica uma for-a formadora# for-aformadora que pode ser esclarecida se compreendermos a nature4a transcendental daestrutura na sua fun-ão de determinar previamente a configura-ão do campo deexperi!ncias possíveis. roposi-ão que parte da determina-ão da fun-ão simb)lica comofun-ão transcendental de constitui-ão dos ob+etos de toda experi!ncia possível para afirmar que o universo simb)lico engendra um estado naturali4ado de coisas. $esta forma# oconvencionalismo da teoria saussureana da linguagem acabava por validar# em =évi"trauss

&>F $1BBG$'# #0écriture et la différence, p. E?I&>> $UBCH1G2# * !ue é fato social@, p. EQ&>I 21B=1'U"<70\# signos, p. &@@&>Q =]AG"0B'U# Introdução 8 o"ra de &arcel &auss, p. ?T

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uma “teoria criacionista do símbolo%. ara =évi"trauss# isto significava que a fun-ãosimb)lica determinava até mesmo as coordenadas da experi!ncia que os su+eito t!m de simesmos e de seus pr)prios corpos. 9omo lembrará =acan: “' fun-ão simb)lica constituium universo no interior do qual tudo o que é humano tem de ordenar"se% &>T. $e uma certaforma# os su+eito “são agidos% pela estrutura. 1 era isto que $errida tinha em mente ao

afirmar que há uma maneira de pensar o +ogo como dispositivo fechado cu+as regrasdeterminam a configura-ão do campo de acontecimentos possíveis.que nos leva para alémde todo humanismo# ou se+a# para além do homem como refer!ncia positiva da presen-a dosentido.

Um exemplo do método estruturalista de =évi"trauss em opera-ão está presente emum texto célebre intitulado: “' estrutura dos mitos%. 1ste texto parte da seguinteconstata-ão: “se o conte8do do mito é inteiramente contingente# como compreender que# deum canto a outro da terra# os mitos se pare-am tanto/ ] somente com a condi-ão de tomar consci!ncia desta antinomia fundamental# que provém da nature4a do mito# que se podeesperar resolv!"la. 9om efeito# esta contradi-ão se parece com aquela que descobriram os primeiros fil)sofos que se interessaram pela linguagem# e# para que a lingYística pudesseconstituir"se como ci!ncia# foi necessário primeiro resolver esse problema% &IX. <u se+a# paraque os mitos ganhem legibilidade não devemos partir análise individual dos mitos em suasconting!ncias inumeráveis. $evemos estabelecer primeiramente um esfor-o de abstra-ãoque permita selecionar as regularidades que aparecem na extensão dos mitosgeograficamente e temporalmente dispersos. 1ste estabelecimento de regularidades comocondi-ão para a compreensão da significa-ão leva a antropologia a caminhar +untamentecom a lingYística e a abandonar toda idéia de arquétipo para a compreensão das forma-,esmíticas. ois se trata de insistir que a significa-ão não é imanente a cada representa-ão# masé dependente das rela-,es das representa-,es entre si. 's regularidades não são desímbolos# mas de significantes.

'ssim# da mesma forma que a lingYística procura compreender o processo dedetermina-ão do valor lingYístico através da reconstru-ão dos modos de rela-ão entreunidades diferenciais elementares 5fonemas6# o estudo dos mitos deverá partir destadetermina-ão de unidades elementares. ' elas# =évi"trauss fornece o nome de mitemas.1stes mitemas são “feixes de rela-,es%&I& que determinam os modos de atribui-ão de um predicado a um su+eito# o que nada mais é do que deriva-ão da no-ão de =évi"trauss domito como um “modelo l)gico para a resolu-ão de uma contradi-ão% 5resolu-ão decontradi-,es que significa aqui posi-ão de rela-,es6. ] por ser um con+unto de mitemasque: “o lugar do mito# na escala dos modos de expressão lingYística# é oposto ao da poesia#não importando o que se tenha dito para aproximá"los. ' poesia é uma forma de linguagemsumamente difícil de ser tradu4ida para uma linguagem estrangeira# e qualquer tradu-ãoacarreta m8ltiplas deforma-,es. 'o contrário# o valor do mito como mito persiste# adespeito da pior tradu-ão%&I?.   ' tradutibilidade integral dos mitos é resultado da possibilidade de sua decomposi-ão integral em unidades elementares.

Aemos então# no decorrer do texto# =évi"trauss operar uma decomposi-ão dosmitos em seus mitemas# partindo do mito de ]dipo. 9ada mitema indica um con+unto demodos de rela-ão 5“9admo procura sua irmã 1uropa# raptada por eus%# “]dipo mata seu

&>T ='9'7# KacquesN Bemin)rio II, p. EE&IX idem# ?@T&I& idem# ?EF&I? idem# p. ?E?

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 pai =aio%# “1téocles mata seu irmão olinice%6 que# por sua ve4# podem ser agrupados emcon+untos mais extensos 5“rela-,es de parentesco superestimadas%# “rela-,es de parentescosubestimadas%6. $esta forma# duas grandes rela-,es ganham visibilidade: aquelasvinculadas (s rela-,es de parentesco e aquelas vinculadas a autoctonia. =évi"trauss aplicao processo de decomposi-ão a outros mitos até alcan-ar uma formali4a-ão que permite

reconstituir a totalidade de rela-,es fornecidas pelo mito: “'plicando sistematicamente estemétodo de análise estrutural# chega"se a ordenar todas as variantes conhecidas de um mitoem uma série# formando uma espécie de grupo de permuta-,es# onde as variantes situadasem ambas as extremidades da série oferecem# uma em rela-ão a outra# uma estruturasimétrica# mas inversa%&I@. =évi"trauss chega assim a uma correla-ão geral que afirma: asuperestima-ão do parentesco consangYíneo está para a subestima-ão deste da mesmaforma que o esfor-o para escapar ( autoctonia está para a impossibilidade de conseguí"lo.Gsto nos permite seguir a idéia de que: “a explica-ão estruturalista parece remeter sempre (constitui-ão de totalidades# que revelam rela-,es complexas# e que redu4em a simplesapar!ncia ( dispersão dos elementos# ou ( simplicidade inicial de suas rela-,es% &IE.

.pistemes e o pro<eto arueol/gico

$e fato# algo desta redu-ão da multiplicidade a determina-,es estruturais gerais é achave de compreensão de um pro+eto como  As palaras e as coisas com suas análises deepistemes. 7ão é por outra ra4ão que nosso texto come-a com a descri-ão# fornecida por Korge =uis Rorges# a respeito de uma certa enciclopédia chinesa na qual está escrito que:Wos animais dividem"se em : a6 pertencentes ao Gmperador# b6 embalsamados# c6 en+aulados#d6 leit,es# e6 sereias# f6 fabulosos# g6 cães em liberdade# +6 incluídos na presenteclassifica-ão# i6 que se agitam como loucos# +6 inumeráveis# _6 desenhados com um pincelmuito fino de p!lo de camelo# l6 etc.# m6 que acabam de quebrar o bebedouro# n6 que# delonge# parecem moscasW.

' descri-ão de Rorges permite a 3oucault iniciar uma longa digressão a respeito dequal é o dispositivo realmente constitutivo das opera-,es de conhecimento. Um ponto dadescri-ão de Rorges logo chama a aten-ão de 3oucault. < caráter fantástico da ordena-ãonão está no acréscimo de seres monstruosos. 2esmo se encontramos lá sereias# por exemplo# é for-oso reconhecer que: WRorges não acrescenta nenhuma figura ao atlas doimpossívelW. $ado importante por lembrar que a verdadeira opera-ão feita por Rorges éuma certa subtra-ão do lugar no qual estes seres poderiam encontrar"se# ou se+a# o quadroque permite ao pensamento ordenar os seres. < que transgride a imagina-ão é simplesmentea série alfabética que liga categorias incompatíveis. $aí a afirma-ão:

< que é impossível não é a vi4inhan-a das coisas# é o pr)prio lugar no qual elas poderiam avi4inhar"se. <s animais: i6 que se agitam como loucos# +6 inumeráveis# _6desenhados com um pincel muito fino de p!lo de camelo " onde eles poderiamencontrar"se# salvo na vo4 imaterial que pronuncia sua enumera-ão# salvo na páginaque a transcreve/&IF.

&I@ idem# ?FQ&IE 3'U0<# Dialética mar$ista, dialética hegeliana, p. &E?&IF 3<U9'U=0# #es mots et les choses , p. Q

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1sta destrui-ão do lugar de ordenamento dos seres# da sintaxe de classifica-ão que permite o estabelecimento seguro de opera-,es de identidade e diferen-a# através da profusão de Werros de categoriasW permite a 3oucault introdu4ir a questão arqueol)gicamaior. Olembremos do que é um erro de categoria: modo de descri-ão de ob+etos como seeles pertencessem a categorias distintas daqueles que lhe são originárias L o exemplo de

BJle W'ndei pelo campus# vi a biblioteca# o departamento de filosofia# o refeit)rio mas#afinal de contas# onde está a U/WP. 1sta questão poderia ser enunciada da seguinte forma:Wcomo se constitui o espa-o de ordenamento dos seres/W. ois# se 3oucault estiver certo# ese o riso provocado por Rorges :Wé sem d8vida aparentado ao profundo mal"estar destescu+a linguagem está arruinada: ter perdido o comum do lugar e do nomeW# ruína que aparecede maneira privilegiada nesta categoria “incluídos na presente classifica-ão% que visadesarticular as distin-,es entre caso e estrutura# então o verdadeiro esfor-o de compreensãodeve nos levar ao ser bruto da ordem# esta região mediana que entrega a ordem em seu ser  pr)prio. 7este sentido# Babino^ e $reJfus t!m ra4ão ao lembrar que: W2ais do queexplicitar um horizonte de inteligibilidade# 3oucault procura descrever o espa-o l)gico naabertura do qual um discurso se produ4W&I>. <u se+a# trata"se de procurar esta ordemestrutural que determina# previamente# o nomear# o trocar# o classificar em todas as esferasdos saberes empíricos em uma determinada época.

Ká é possível aqui intuir o peso de um raciocínio estruturalista guiando tal questãoarqueol)gica. $a mesma forma como o estruturalismo procurava definir este con+unto deregras e sistemas que organi4avam# de maneira transcendental# o campo possível deexperi!ncias possíveis# 3oucault procura demonstrar como os saberes positivos de umaépoca configuram"se a partir de uma matri4 comum de racionalidade# ou se+a# de defini-ãodas ordens com suas rela-,es de diferen-a e de identidade. 7otemos# inclusive# como ano-ão foucaultiana de WordemW é eminentemente estruturalista:

' ordem# é ao mesmo tempo o que se oferece nas coisas como sua lei interior# a redesecreta segundo a qual elas# de uma certa forma# se olham entre si e que s) existeatravés da grelha de um olhar# de uma aten-ão# de uma linguagemN e é apenas nascasas brancas deste esquadrinhamento que ela manifesta"se como algo que +á está lá#esperando em sil!ncio o momento de ser enunciadaW&II.

1stas Wcasas brancasW que serão posteriormente preenchidas nos lembram como aordem# de uma certa forma# produ4 os ob+etos# os modos de ser das coisas a respeito dasquais ela fala# +á que ela legisla sobre seus lugares e suas rela-,es. 0al procura pela ordemestrutural que determina as possibilidades de configura-ão dos saberes em umadeterminada época será pois o ob+eto da arqueologia. Uma arqueologia que desvela esteespa-o no qual os diversos ob+etos de saberes empíricos desfilam e se transformam. 1spa-oque serve de “a priori hist)rico%# de fundamento para a racionalidade da multiplicidade doscampos empíricos do saber em uma determinada época. <u se+a# não uma hist)ria dasci!ncias na clarifica-ão progressiva de suas técnicas e ob+etos# mas uma determina-ão dascondi-,es hist)ricas para o aparecimento simultâneo de empiricidades dependentes de padr,es determinados de racionalidade.

or outro lado# a esta matri4 através da qual nos deparamos com o ser bruto daordem# 3oucault dá o nome de episteme. ' no-ão de episteme pretende assim resolver a&I> B'RG7<` e $B1\3U# &ichel 3oucautl, p. QX&II 3<U9'U=0# #es mots et les choses, p. &&

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dicotomia entre estrutura e hist)ria ao abandonar a no-ão de estruturas atemporais que podem# por exemplo# dar conta de produ-,es míticas em solos e tempos absolutamentedistantes# isto a fim de trabalhar com algo parecido a Wcondi-,es hist)ricas de possibilidades dos saberesW. 'ssim vale a afirma-ão:

=á onde o estruturalismo pretende colocar em evid!ncia as leis abstratas queultrapassam a hist)ria e a cultura definindo o espa-o total no qual se inscreve asdiferentes permuta-,es de elementos in"significantes# a arqueologia limita sua tarefa( descoberta de regras locais de transforma-ão que# em uma época dada e em umforma-ão discursiva precisa# definem a identidade e o sentido de um enunciado &IQ.

 7a verdade# tudo se passa como se 3oucault estivesse apropriando"se do conceito bachelardiano de Wcorte epistemol)gicoW# mas agora no interior de um pensamentoestruturalista. As palaras e as coisas serão assim a descri-ão de dois grandes cortes deepistemes no ocidente: aquele que inaugura a idade clássica em meados do século MAGG# eaquele que inaugura a idade moderna no início do século MGM. 0rata"se assim de tr!sepistemes: aquele que iria até a renascen-a# a episteme clássica 5que +á fora o ob+eto principal de  %istória da loucura6 e a moderna. 9ada uma destas epistemes inaugura umaordem das coisas: ordem da semelhan-a# da representa-ão e da duplica-ão empírico"transcedental. or sua ve4# cada uma destas epistemes será inquirida em tr!s dimens,es privilegiadas da ordem: a linguagem# a nature4a e as trocas econ;micas.# ordem das palavras# dos seres e dos valores. 'o final do livro# encontraremos 3oucault indicando#através da antropologia estrutural de $umS4il e =évi"trauss# assim como através da psicanálise de =acan# as figuras de um regime de saber capa4 de nos levar para além daepisteme moderna.

2as esta reflexão epistemol)gica tem duas fun-,es bastante precisas que articulam As palaras e as coisas ao outro livro que estudamos# %istória da loucura. ' primeira é odesdobramento da continuidade de uma pesquisa. 1m %istória da loucura foi questão dahist)ria deste processo através do qual uma cultura se constitui e constitui padr,es deracionalidade através da exclusão# da defini-ão de limites nos quais ela não mais sereconhece# embora tenha sido limites postos e construídos por ela mesma. $aí porque3oucault poderá di4er que a  %istória da #oucura era a hist)ria do <utro# disto que# parauma cultura# é ao mesmo tempo interior e estrangeiro. Ká  As palaras e as coisas é estamesma hist)ria# mas contada de seu interior# contada a partir da perspectiva da constitui-ãodeste campo de homogeneidades que permite a uma cultura reconhecer a validade de seussaberes através da partilha de um mesmo padrão da ordem. $aí porque  As palaras e ascoisas seria# agora# a hist)ria do mesmo.

2as a segunda fun-ão consistirá em mostrar como o homem enquanto ob+eto desaber é profundamente dependente do advento da episteme moderna# da mesma formacomo as práticas de interven-ão clínica no domínio do mental# práticas fundadoras destasempiricidades que são a psicologia e a psiquiatria# eram profundamente dependentes destamesma episteme. $aí porque o subtítulo do livro não podia ser outro que: “'rqueologia dasci!ncias humanas%. $escri-ão da g!nese do homem como ob+eto de saber e de interven-ão.Bela-ão de depend!ncia entre uma certa experi!ncia da sub+etividade e uma certaconfigura-ão do saber que 3oucault indica apenas para lembrar que: “o homem é apenas

&IQ B'RG7<` e $B1\3U# p. Q>

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uma inven-ão recente# uma figura que não tem dois séculos# uma simples dobra no nossosaber e ele desaparecerá desde que este saber encontrar uma nova forma%&IT  ou# ainda#desde que as ci!ncias humanas desaparecerem para dar lugar a outras empiricidades.

&IT 3<U9'U=0# idem# p. &F

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Curso Foucault

(ula =

 7a aula de ho+e# daremos continuidade ( leitura de “'s palavras e as coisas% através docomentarias dos capítulos G e GG. 7a aula que vem# trabalharemos os capítulos GGG# GA# A e

AG# mas especialmente o capítulo GGG. osteriormente# leremos os capítulos AGG# AGGG e GM para# em uma quarta e 8ltima aula# trabalharmos o capítulo M +untamente com o texto “<que é um autor/%. 9om isto# terminaremos o m)dulo dedicado ao livro “'s palavras e ascoisas%.

 7a aula passada# vimos como s) era possível compreender o que estava em +ogoneste que é# certamente# o livro fundamental da experi!ncia intelectual de 3oucault (condi-ão de levar a sério esta afirma-ão enunciada em uma entrevista de &T>I: “< quetentei fa4er foi introdu4ir análises de estilo estruturalista em domínios nos quais elas nãotinham ainda penetrado# ou se+a# no domínio da hist)ria das idéias# da hist)ria dosconhecimentos# da hist)ria da teoria%&QX. 'nalisamos algumas características fundamentaisdo estruturalismo# como a no-ão de que o ob+eto das ci!ncias humanas não é o homemcomo seu sistema de cren-as e condutas# mas as estruturas s)cio"culturais que odeterminam. 1struturas formadas por elementos diferenciais que se organi4am tal como umsistema lingYístico fechado e que tinham seu paradigma na idéia de sistema em lingYística.<u se+a# todos os fatos sociais : trocas matrimoniais# processos de determina-ão de valor demercadorias# articula-ão do ordenamento +urídico# seriam estruturados como umalinguagem. $esta reconsidera-ão do ob+eto das ci!ncias humanas# o estruturalismo derivavatr!s conseqY!ncias maiores:

&. a no-ão de ordem estrutural como elemento transcendental de determina-ão dosentido# transcendentalidade advinda do fato de que a ordem é condi-ão a priori para a constitui-ão de todo e qualquer ob+eto da experi!ncia# ou se+a# ela é condi-ãode possibilidade da experi!nciaN

?. o caráter inconsciente de tal ordem +á que ela está em posi-ão de ser aquilo quedetermina os limites e a capacidade cognitiva da consci!ncia. ' apropria-ãoreflexiva da ordem nunca é feita fora dos limites da pr)pria ordem. eu caráter inconsciente vem da sua inacessibilidade ( posi-ão da ordem como ob+eto daconsci!ncia. osso ob+etivá"la# mas este processo de ob+etiva-ão será dependente da pr)pria ordem a ser ob+etivadaN

@. e# por conseqY!ncia# a no-ão determinista do su+eito como suporte da estrutura. $euma certa forma# o su+eito como centro intencional da espontaneidade da a-ão é# para o estruturalismo# uma simples ilusão# +á que ao agirem# os su+eitos são# naverdade# “agidos% pela estrutura. 1 era isto que $errida tinha em mente ao afirmar que há uma maneira de pensar o sistema como dispositivo fechado cu+as regrasdeterminam a configura-ão do campo de acontecimentos possíveis.que nos leva para além de todo humanismo# ou se+a# para além do homem como refer!ncia positiva da presen-a do sentido.

$ito isto# vimos como 3oucault deixava"se orientar pelo estruturalismo em suasconsidera-,es iniciais a respeito do pro+eto de “'s palavras e as coisas% com suas análises

&QX 3<U9'U=0# $its et écrits# p. >&&

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de epistemes. 7ão era por outra ra4ão que nosso texto come-ava com a descri-ão# fornecida por Korge =uis Rorges# a respeito de uma certa enciclopédia chinesa na qual está escritoque: Wos animais dividem"se em : a6 pertencentes ao Gmperador# b6 embalsamados# c6en+aulados# d6 leit,es# e6 sereias# f6 fabulosos# g6 cães em liberdade# +6 incluídos na presenteclassifica-ão# i6 que se agitam como loucos# +6 inumeráveis# _6 desenhados com um pincel

muito fino de p!lo de camelo# l6 etc.# m6 que acabam de quebrar o bebedouro# n6 que# delonge# parecem moscasW.' descri-ão de Rorges permite a 3oucault iniciar uma longa digressão a respeito de

qual é o dispositivo realmente constitutivo das opera-,es de conhecimento. Um ponto dadescri-ão de Rorges logo chama a aten-ão de 3oucault. < caráter fantástico da ordena-ãonão está no acréscimo de seres monstruosos. $ado importante por lembrar que a verdadeiraopera-ão feita por Rorges é uma certa subtra-ão do lugar no qual estes seres poderiamencontrar"se# ou se+a# o quadro que permite ao pensamento ordenar os seres. < quetransgride a imagina-ão é simplesmente a série alfabética que liga categorias incompatíveis.$aí a afirma-ão:

< que é impossível não é a vi4inhan-a das coisas# é o pr)prio lugar no qual elas poderiam avi4inhar"se. <s animais: i6 que se agitam como loucos# +6 inumeráveis# _6desenhados com um pincel muito fino de p!lo de camelo " onde eles poderiamencontrar"se# salvo na vo4 imaterial que pronuncia sua enumera-ão# salvo na páginaque a transcreve/&Q&.

1sta destrui-ão do lugar de ordenamento dos seres# da sintaxe de classifica-ão que permite o estabelecimento seguro de opera-,es de identidade e diferen-a# através da profusão de Werros de categoriasW permite a 3oucault introdu4ir a questão arqueol)gicamaior. 1sta questão poderia ser enunciada da seguinte forma: Wcomo se constitui o espa-ode ordenamento dos seres/W. ois# se 3oucault estiver certo# então o verdadeiro esfor-o decompreensão deve nos levar ao ser bruto da ordem# esta região mediana que entrega aordem em seu ser pr)prio. 7este sentido# Babino^ e $reJfus t!m ra4ão ao lembrar que:W2ais do que explicitar um horizonte de inteligibilidade# 3oucault procura descrever oespa-o l)gico na abertura do qual um discurso se produ4W &Q?. <u se+a# trata"se de procurar esta ordem estrutural que determina# previamente# o nomear# o trocar# o classificar em todasas esferas dos saberes empíricos em uma determinada época.

3oi neste ponto que percebemos o peso de um raciocínio estruturalista guiando talquestão arqueol)gica. $a mesma forma como o estruturalismo procurava definir estecon+unto de regras e sistemas que organi4avam# de maneira transcendental# o campo possível de experi!ncias possíveis# 3oucault procura demonstrar como os saberes positivosde uma época configuram"se a partir de uma matri4 comum de racionalidade# ou se+a# dedefini-ão das ordens com suas rela-,es de diferen-a e de identidade. 7otemos# inclusive#como a no-ão foucaultiana de WordemW é eminentemente estruturalista:

' ordem# é ao mesmo tempo o que se oferece nas coisas como sua lei interior# a redesecreta segundo a qual elas# de uma certa forma# se olham entre si e que s) existeatravés da grelha de um olhar# de uma aten-ão# de uma linguagemN e é apenas nas

&Q& 3<U9'U=0# #es mots et les choses , p. Q&Q? B'RG7<` e $B1\3U# &ichel 3oucautl, p. QX

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casas brancas deste esquadrinhamento que ela manifesta"se como algo que +á está lá#esperando em sil!ncio o momento de ser enunciadaW&Q@.

1stas Wcasas brancasW que serão posteriormente preenchidas nos lembram como aordem# de uma certa forma# produ4 os ob+etos# os modos de ser das coisas a respeito das

quais ela fala# +á que ela legisla sobre seus lugares e suas rela-,es. 0al procura pela ordemestrutural que determina as possibilidades de configura-ão dos saberes em umadeterminada época será pois o ob+eto da arqueologia. Uma arqueologia que desvela esteespa-o no qual os diversos ob+etos de saberes empíricos desfilam e se transformam. 1spa-oque serve de “a priori hist)rico%# de fundamento para a racionalidade da multiplicidade doscampos empíricos do saber em uma determinada época.

or outro lado# a esta matri4 através da qual nos deparamos com o ser bruto daordem# 3oucault dá o nome de episteme. ' no-ão de episteme pretende assim resolver adicotomia entre estrutura e hist)ria ao abandonar a no-ão de estruturas atemporais que podem# por exemplo# dar conta de produ-,es míticas em solos e tempos absolutamentedistantes# isto a fim de trabalhar com algo parecido a Wcondi-,es hist)ricas de possibilidades dos saberesW. precisa# definem a identidade e o sentido de um enunciado&QE.

 7a verdade# tudo se passa como se 3oucault estivesse apropriando"se do conceito bachelardiano de Wcorte epistemol)gicoW# mas agora no interior de um pensamentoestruturalista. As palaras e as coisas serão assim a descri-ão de dois grandes cortes deepistemes no ocidente: aquele que inaugura a idade clássica em meados do século MAGG# eaquele que inaugura a idade moderna no início do século MGM. 0rata"se assim de tr!sepistemes: aquele que iria até a renascen-a# a episteme clássica 5que +á fora o ob+eto principal de  %istória da loucura6 e a moderna. 9ada uma destas epistemes inaugura umaordem das coisas: ordem da semelhan-a# da representa-ão e da duplica-ão empírico"transcedental. or sua ve4# cada uma destas epistemes será inquirida em tr!s dimens,es privilegiadas da ordem: a linguagem# a nature4a e as trocas econ;micas.# ordem das palavras# dos seres e dos valores. 'o final do livro# encontraremos 3oucault indicando#através da antropologia estrutural de $umS4il e =évi"trauss# assim como através da psicanálise de =acan# as figuras de um regime de saber capa4 de nos levar para além daepisteme moderna. 'gora é hora# pois# de passar ( análise da primeira ordem das epistemes#esta marcada pela l)gica da semelhan-a.

(s meninas

 7o entanto# antes de iniciar a análise desta episteme renascentista# 3oucault introdu4 umcapítulo estranho ao restante da economia de seu texto. ois “'s palavras e as coisas% étodo ele organi4ado de maneira linear. Uma episteme vai sendo apresentada até o momentoem que come-a a apresenta-ão daquela que irá substituí"la. 7o entanto# o primeiro capítulo +á nos coloca diante de uma das conseqY!ncias maiores do corte epistemol)gicoinaugurador da episteme clássica. 9onseqY!ncia ligada ( constitui-ão de um certo modo deordena-ão que terá sua figura-ão perfeita em um quadro de $iego Aelásque4:  #as meninas.

' escolha de 3oucault em come-ar com este quadro não deixa de ter uma certaironia. Rasta lembrarmos que ele foi pintado em &>F>. 'queles que leram A história daloucura sabem muito bem o que esta data representa. &>F> é também a data do edito de&Q@ 3<U9'U=0# #es mots et les choses, p. &&&QE B'RG7<` e $B1\3U# p. Q>

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cria-ão do Hospital Deral e# conseqYentemente# data do início desta experi!ncia deinternamento da loucura que irá marcar# de maneira# definitiva o modo de partilha entre ara4ão e seu <utro. 'ssim# através do comentário do quadro de Aelásque4# 3oucault irádescrever a figura-ão de um processo semelhante (quele que vimos ( ocasião da análise docapítulo de A história da loucura dedicado ao “grande internamento%. 0rata"se do início

deste processo de constitui-ão do su+eito através da exclusão do que não se submete mais aum regime de saber marcado pela disponibili4a-ão do ob+eto diante de si através darepresenta-ão.

 7o caso do quadro de Aelásque4# o que chama a aten-ão de 3oucault éfundamentalmente o fato dele ser a figura-ão estética de um corte epistemol)gico# dele ser a “representa-ão da representa-ão clássica%&QF# +á que seu motivo central é o pr)prio ato derepresenta-ão# o pr)prio processo de ordena-ão do campo de visibilidade. 7este sentido#ele marca o advento da episteme clássica# toda ela fundada na no-ão de representa-ão# e aobsolesc!ncia da episteme em voga da Benascen-a. 2as# tal como em  A história daloucura, tal corte implica na exclusão daquilo que# para o regime de saber pr)prio ( ra4ãomoderna# é desprovido de verdade. < ob+eto desta exclusão será a cren-a na capacidadecognitiva da semelhan-a. ] isto que 3oucault tem em mente ao di4er que o espa-o aberto pelo quadro de Aelásque4 é solidário de um va4io essencial:

< desaparecimento necessário daquilo que funda a representa-ão [ daquele a quemela assemelha"se e daquele aos olhos de quem ela é apenas semelhan-a. < pr)priosu+eito [ que é o mesmo [ foi elidido. 1 finalmente livre desta rela-ão que aaprisionava# a representa-ão pode se oferecer como pura representa-ão&Q>.

'nalisando os motivos internos ao quadro# 3oucault lembra que um dos eixos doquadro é a constitui-ão de um lugar# lugar fundado na intercambialidade absoluta dosob+etos que porventura irão ocupá"lo. < assunto central do quadro não está apenas ausente.1le será encarnado a todo momento que o quadro for visto. 2as encarnado sempre nointerior de uma rela-ão de representa-ão# +á que uma imagem está lá: a imagem dossoberanos 3elipe GA e sua mulher que aparece ao fundo# em um espelho. 1spelho que:“restitui a visibilidade (quilo que permanece fora de todo olhar% &QI. 2as esta restitui-ãoexp,e a verdade de toda imagem especular: a verdade de ser uma imagem formadora econformadora# ao invés de simples dispositivo de descri-ão de semelhan-as. 1ste espelhonão é o espelho que apenas reprodu4 o ob+eto que a pintura +á apresenta. 1le é espelho quecoloca"se como 8nica condi-ão de possibilidade do ob+eto a ser apresentado.

' identifica-ão entre o olhar de quem contempla o quadro e a imagem do espelho é# por um lado# aboli-ão de toda rela-ão de semelhan-aN por outro# constitui-ão de uma novarela-ão de representa-ão. Bela-ão na qual o su+eito não aparece apenas como fundamentosoberano de toda visualidade# mas como fundamento apenas ( condi-ão de submeter"se aum regime amplo de visibilidade# a uma ordem da representa-ão que lhe ultrapassa. 7ão ésem ironia que o lugar do soberano s) possa ser preenchido quando este se submete a umadisciplina do olhar que rebaixa o pr)prio lugar do soberano a um lugar ocupável por todo equalquer ob+eto. ' dicotomia entre poder soberano e poder disciplinar +á está presente naanálise do quadro de Aelásque4.

&QF 3<U9'U=0# #es mots et les choses, p. @&&Q> idem# p. @&&QI idem# p. ?@

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2as insistamos em outro ponto que 3oucault irá explorar. < primado darepresenta-ão exige a aboli-ão de rela-,es fundamentais de analogia e semelhan-a. 1ste éum tema que +á fora mobili4ado para dar conta da experi!ncia trágica da loucura naBenascen-a# ou se+a# desta experi!ncia de dissolu-ão da ordem dos signos e dos saberes quelevava Keronimus Rosch a apresentar um mundo angustiante de formas híbridas# formas que

não se submetem mais a protocolos seguros de individua-ão# mundo de ob+etos que nãoestão mais em seus lugares. 1sta ordem# ao menos segundo 3oucault# tinha na no-ão desemelhan-a seu fundamento

1m As palaras e as coisas, 3oucault lembra que a pr)pria no-ão de racionalidadeaté a renascen-a estava fundamentalmente vinculada a uma certa no-ão de mimesis,  desemelhan-a# de analogia e de simpatia: “'té o fim do século MAG# a semelhan-adesempenhou um papel decisivo no saber da cultura ocidental% &QQ. rocurar o sentido era#fundamentalmente# expor as rela-,es de semelhan-a. ' pr)pria rela-ão da linguagem aomundo era pensada sob a forma da analogia# e não sob a forma da representa-ão. 2as estaepisteme fundada na cren-a da pot!ncia cognitiva da mimesis, cren-a capa4 de ordenar umsimbolismo fechado sobre o mundo e suas figuras se dissolverá. 9om o esgotamento deuma episteme# são as opera-,es elementares de sentido que perdem seu fundamento. $aíeste mundo no qual: “0antas significa-,es diversas inserem"se sob a superfície da imagemque ela não apresenta mais do que uma face enigmática%&QT. ] neste sentido que aexperi!ncia trágica da loucura p;de ser apresentada como figura da experi!ncia hist)rica doesgotamento de uma figura do saber. 1ste mundo em decomposi-ão# como 3oucaultlembrará em páginas maiores de  As palaras e as coisas, é o mundo de $om uixote# ummundo no qual o indivíduo vaga sem rumo pois os fen;menos +á não respondem mais asuas expectativas de racionalidade# todas fundadas na for-a da semelhan-a:

$om uixote é a primeira das obras modernas porque vemos aí a ra4ão cruel dasidentidades e das diferen-as 4ombar incessantemente dos signos e das similitudes# porque a linguagem rompe seu velho parentesco com as coisas para entrar nestasoberania solitária de onde ela s) reaparecerá# em seu ser abrupto# como literaturaN porque a semelhan-a entra em uma idade que é para ela a idade da desra4ão e daimagina-ão&TX.

1ste é o mundo# ainda segundo 3oucault# de Keronimus Rosch com suas figuras híbridasque não se submetem mais a princípio algum de semelhan-a# seu desregramento queexprime o fim de um mundo. Ká vimos que não será por acaso que a doen-a mental# emespecial a psicose# será vista séculos mais tarde como um pensamento alienado nas malhasda analogia e das identifica-,es imaginárias. “Uma linguagem que trata as palavras comocoisas%&T&# dirá 3reud em um acento que# como veremos# di4 muito a respeito da maneiracom que 3oucault compreende a rela-ão entre palavras e coisas na episteme da Benascen-a.obre esta linguagem que trata as palavras como coisas# lembremos da donsidera-ãoilustrada pelo exemplo da analisanda de Aictor 0aus_# condu4ida ( clínica ap)s uma disputacom seu amante e portando a seguinte reivindica-ão: “2eus olhos 5 Augen6 não estão comodevem estar# eles estão revirados 5erdreht 6%. Besultado da coisifica-ão da metáfora: “meu

&QQ 3<U9'U=0# #es mots et les choses, p.N @?&QT 3<U9'U=0# %istoire de la folie, p. @F&TX 3<U9'U=0# #es mots et les choses, p. >@&T& 3B1U$# D` vol. M , p. ?TQ

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amado é um hip)crita# um Augenerdreher %. 7ão deixa de ser interessante lembrar que amodernidade acabou por compreender toda forma de pensamento vinculado ( exterioridadeda ra4ão através da no-ão de pensamento preso nas malhas da analogia e da pot!nciaanal)gica da imagem. 'ssim# não s) a loucura# mas também a infância como seu pensamento “pré"l)gico% e o “pensamento primitivo% estariam submetidos este mesmo ser 

 bruto da ordem vinculado ( cren-a na pot!ncia cognitiva da analogia e da semelhan-a.Onsistir nas semelhan-as entre a episteme da Benascen-a e o pensamento selvagem segundo=évi"trauss com seus limites de abstra-ão# com seu vínculo ainda presente entre signo eimagemP.

$evemos então analisar com calma a maneira foucauldiana de descrever o primadoda semelhan-a na Benascen-a# isto a fim de retirar suas conseqY!ncias

4 primado da semelhança e o retorno da analogia

3oucault come-a descrevendo os quatro regimes principais de determina-ão desemelhan-as no interior da episteme renascentista. < primeiro é a conenientia enquantovi4inhan-a de lugares que estabelece rela-,es de semelhan-a por contato. 9omo dirá3oucault# na vasta sintaxe do mundo# os seres diferentes se a+ustam em rela-ão decontigYidade de propriedades: a planta se comunica com o animal# a terra com o mar. “'conenientia é uma semelhan-a ligada ao espa-o na forma da proximidade%&T?.

< segundo regime de determina-ão de semelhan-as é a aemulatio, algo como umaconenientia que indicaria a semelhan-a de coisas postas ( distância# uma semelhan-a semcontato. 1la é um reflexo longínquo das coisas# reflexo resultante da aboli-ão da distância.'ssimN

$e longe# o rosto é a emula-ão do céu# e assim como o intelecto humano reflete#imperfeitamente# a sabedoria de $eus# os dois olhos# com sua claridade limitada#refletem a grande ilumina-ão que o sol e a lua fa4em resplandecer no céuN a boca éA!nus +á que por ela passam os bei+os e palavras de amor# o nari4 fornece amin8scula imagem do cetro de K8piter e do caduceu de 2erc8rio&T@.

 < terceiro é a analogia enquanto figura mais geral que permitiria tra-ar rela-,es

estruturais entre ob+etos e situa-,es 5como a analogia que existira entre os sete planetascelestes e as sete notas musicais6 ou a partir de repeti-,es imaginárias 5como a analogiaentre o cérebro e os poderes curativos das no4es6.

or fim# teríamos o quarto regime de determina-ão de semelhan-as: a  simpatia, ouse+a# uma semelhan-a que nasce do contato# assimilando coisas entre si# dissolvendo suasindividualidades em um contínuo do 2esmo. $aí porque a simpatia deve ser regulada por um outro princípio# a antipatia. impatia e antipatia são os pratos de uma balan-a que medee produ4 as identidades no interior desta episteme pr)pria ( Benascen-a.

1stes regimes de semelhan-a que privilegiam a contigYidade espacial# como aconvenientia e a simpatia# a repeti-ão imaginária ou ainda a reprodu-ão de estruturas precisam# no entanto# de se submeter a um procedimento geral de ordenamento e deidentifica-ão. =embremos que# a partir de uma certa perspectiva# qualquer coisa podeestabelecer rela-,es de semelhan-a com qualquer outra coisa. $aí porque 3oucault&T? 3<U9'U=0# idem# p. @@&T@ idem# @E

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lembrará da necessidade de uma marca visível de semelhan-as que possa ser identificada eassinalada na superfície das coisas. Uma marca que me permita definir o padrão geral dearticula-ão de semelhan-as. $aí porque não pode haver semelhan-a sem uma assinatura# ouse+a# sem uma marca que me garanta a +uste4a da interpreta-ão: “o mundo do similar s) pode ser um mundo marcado%&TE. 1stas marcas são os signos reconhecidos enquanto tais

 pelo saber. < que nos leva a uma questão sobre como a episteme renascentista compreendiao regime de funcionamento dos signos.3oucault dá sua explica-ão ao afirmar que# para o século MAG# semiologia e

hermen!utica são sobre postas# ou se+a# a ci!ncia dos signos é uma ci!ncia da interpreta-ão:“procurar o sentido# é tra4er ( lu4 o que se assemelha%. 1xplica-ão circular +á que consisteem afirmar que a semelhan-a é o critério de valida-ão da semelhan-a: “< mundo estácoberto de signos que devem ser decifrados e estes signos# que revelam as semelhan-as eafinidades# são apenas formas da similitude. 9onhecer é então interpretar%&TF. 7o entanto#esta circularidade é figura deste espírito barroco que remete a +ogos infinitos de espelhos o problema de linguagem que parece retirar de si mesma seu pr)prio fundamento# seu pr)prioregime de funcionamento. Uma linguagem que não reconhece exterioridade# +á que asemelhan-a é# ao mesmo tempo# o conte8do e a forma dos signos.

] neste ponto que 3oucault lembra como# para o século MAG# a linguagem não eravista como um sistema arbitrário de signos. ' metáfora renascentista do livro do mundo# domunod como um livro no qual lemos as marcas visíveis de semelhan-as é apenas umafigura-ão de uma rela-ão de profunda iman!ncia entre linguagem e mundo# assim como éfigura de uma nature4a que é# antes de mais nada# escritura. 's coisas do mundo articulam"se como a linguagem:

' grande metáfora do livro que se abre# que se soletra e que se l! para conhecer anature4a é apenas o anverso visível de uma outra transfer!ncia# muito mais profunda# que fa4 com que a linguagem deva residir do lado do mundo# entre as plantas# as ervas# as pedras e os animais&T>.

<u se+a# a l)gica de ordenamento interno ( linguagem é análoga ( l)gica deordenamento do mundo# daí porque entre linguagem e mundo não há rela-ão arbitrária. $aí porque o estudo da gramática# no século MAG# segue a mesma disposi-ão epistemol)gicaque aquela pr)pria ( ci!ncia da nature4a. Há uma profunda rela-ão de analogia entre as palavras e as coisas# mais do que uma rela-ão de significa-ão. eu valor de signo e suafun-ão de duplica-ão sobrep,em"se# signos e imagens não estão radicalmente separados por rela-,es de arbitrariedade 5como vemos nas rela-,es entre significante e significado6. 's palavras e as coisas estão submetidas (s mesmas leis.

 7o entanto# as línguas perderam esta rela-ão de similitude profunda. 'penas ohebreu# língua originária falada por $eus e por 'dão# conservou"a 'qui# 3oucault insisteque a língua passa a ser então língua cu+a forma fundamental é a escrita# e não a vo4 comsua presen-a imediata. ' escrita com sua exig!ncia de interpreta-ão# uma interpreta-ão quese reduplica em outro sistema de escrita# e assim indefinidamente# como se estivéssemosem uma dissemina-ão sem retorno. 1is a figura pr)pria ( linguagem renascentista# aomenos segundo 3oucault. $aí porque ele poderá di4er# ao final do nosso capítulo# que

&TE idem# p. E&&TF idem# p. EI&T> idem# p. FX

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apenas a literatura moderna poderia recuperar algo desta linguagem sem esgotamento# destalinguagem que é interpreta-ão da interpreta-ão. $aí esta afirma-ão central:

' arte da linguagem era uma maneira de “fa4er signo% " ao mesmo tempo designificar algo e de dispor signos# em volta desta coisaN uma arte de nomear e

depois# através de uma duplica-ão ao mesmo tempo demonstrativo e decorativo#captar este nome# fechá"lo e apreend!"lo# designá"lo# por sua ve4# através de outrosnomes que seriam sua presen-a diferida# o signo segundo# a figura# o aparatoret)rico. <ra# ao longo do éculo MGM e até ho+e " de Hlderlin a 2allarmé# a'ntonin 'rtaud [ a literatura s) existiu em sua autonomia# s) se destacou de todaoutra linguagem através de um corte profundo gra-as a forma-ão de uma forma de“contra"discurso% e retornando assim da fun-ão representativa ou significante dalinguagem até este ser bruto esquecido desde o século MAG&TI.

=eiamos este trecho +untamente com outro trecho# +á comentado na nossa sétimaaula:

'ntes de 2allarmé# escrever consistia em estabelecer sua palavra no interior de umalíngua dada# de maneira que a obra de linguagem seria da mesma nature4a quequalquer outra linguagem# aos signos aproximados da Bet)rica# do u+eito ou dasGmagens. 7o final do século MGM 5na época do descobrimento da psicanálise ouquase6 a literatura se transformou em uma palavra que inscrevia nela seu pr)prio princípio de decifra-ão ou# em todo caso# ela supunha# sob cada uma de suas frases#sob cada uma de suas palavras# o poder de modificar soberanamente os valores e assignifica-,es da língua ( qual# apesar de tudo# ela pertenciaN ela suspendia o reino dalíngua em um gesto atual de escritura&TQ.

1stas coloca-,es não poderiam ser mais claras. 0al como fi4era em  A história daloucur, 3oucault afirma novamente que um certo regime de funcionamento da linguagem#anterior ( Gdade 9lássica# não encontra mais lugar na configura-ão da positividade dossaberes empíricos de nossa épocaN seu lugar agora é apenas na literatura. 7esta literaturaque transgride os limites da representa-ão por fa4er apelo a um poder soberano de um “ser  bruto% da linguagem# de um “ser vivo% da linguagem que se confunde com a capacidade daobra literária impor sua autonomia e sua auto"referencialidade. <bra que# tal como notrecho de Rorges que inicia As palaras e as coisas, formali4a um “logos desprovido decontrários% baseado em um regime infinito de semelhan-a e analogias que s) pode aparecer através da dissolu-ão do ordenamento fixo pr)prio ao pensar representativo com suaanalítica da finitude. 7esta articula-ão inusitada entre literatura e episteme renascentistatrata"se apenas de insistir que o “paralelismo funcional% entre linguagem e mundo pr)prio aum mundo que ainda não v! a verdade sob a forma da adequa-ão entre ob+eto erepresenta-ão pode aparecer# na literatura moderna# como dissolu-ão da autonomia doob+eto# como entifica-ão de um sistema lingYístico auto"referencial# isto na mais claratradi-ão estruturalista de uma linguagem que fala apenas de si mesma# que tem por conte8do apenas sua pr)pria forma. ois: “< que fascina 3oucault a respeito da concep-ãode linguagem característica da Benascen-a 5a idade pré"clássica na terminologia de&TI idem# p. FT&TQ idem# p. EEI

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3oucault6 é a idéia de que a pr)pria nature4a é organi4ada como uma linguagem# um tecidocontínuo de palavras e caracteres%&TT.   9om isto# 3oucault pode reafirmar seuconvencionalismo precoce na rela-ão entre linguagem e nature4a# presente desde Doençamental e psicologia. or outro lado: “a rela-ão su+eito"ob+eto é eliminada em favor de umarede homog!nea de rela-,es anal)gicas substanciais%?XX.  $esta forma# 3oucault espera

 poder afirmar o caráter performativo da linguagem através da tecelagem infinita de rela-,esmiméticas.

&TT RBD1B# eter# The decline of modernism, p. F??XX idem

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Curso Foucault

(ula 10

 7a aula de ho+e# continuaremos com a leitura de  As palaras e as coisas focando#

 principalmente# a maneira com que 3oucault descreve a episteme pr)pria ( Gdade 9lássica. 7a aula passada# vimos como 3oucault lembrava que a no-ão de racionalidade até arenascen-a estava fundamentalmente vinculada a uma certo conceito de mimesis,  desemelhan-a# de analogia e de simpatia: “'té o fim do século MAG# a semelhan-adesempenhou um papel decisivo no saber da cultura ocidental% ?X&. rocurar o sentido era#fundamentalmente# expor as rela-,es de semelhan-a. ' pr)pria rela-ão da linguagem aomundo era pensada sob a forma da analogia# e não sob a forma da representa-ão.

0odo este capítulo central que estudamos na aula passada intitulado “' prosa domundo% era# pois# uma exposi-ão desta episteme baseada na cren-a na pot!ncia cognitivada semelhan-a e seus impasses. Aimos como# a partir de uma certa perspectiva# qualquer coisa pode estabelecer rela-,es de semelhan-a com qualquer outra coisa. $aí porque3oucault lembrará da necessidade de uma marca visível de semelhan-as que pudesse ser identificada e assinalada na superfície das coisas. Uma marca que me permitiria definir o padrão geral de articula-ão de semelhan-as. $aí porque não podia haver semelhan-a semuma assinatura# ou se+a# sem uma marca que me garanta a +uste4a da interpreta-ão: “omundo do similar s) pode ser um mundo marcado%?X?. 1stas marcas são os signosreconhecidos enquanto tais pelo saber. < que nos levou ( questão sobre como a epistemerenascentista compreendia o regime de funcionamento dos signos.

3oucault dá sua explica-ão ao afirmar que# para o século MAG# semiologia ehermen!utica são sobre postas# ou se+a# a ci!ncia dos signos é uma ci!ncia da interpreta-ão:“procurar o sentido# é tra4er ( lu4 o que se assemelha%. 1xplica-ão circular +á que consisteem afirmar que a semelhan-a é o critério de valida-ão da semelhan-a: “< mundo estácoberto de signos que devem ser decifrados e estes signos# que revelam as semelhan-as eafinidades# são apenas formas da similitude. 9onhecer é então interpretar%?X@. 7o entanto#esta circularidade é figura deste espírito barroco que remete a +ogos infinitos de espelhos o problema de linguagem que parece retirar de si mesma seu pr)prio fundamento# seu pr)prioregime de funcionamento. Uma linguagem que não reconhece exterioridade# +á que asemelhan-a é# ao mesmo tempo# o conte8do e a forma dos signos.

] neste ponto que 3oucault lembra como# para o século MAG# a linguagem não eravista como um sistema arbitrário de signos. ' metáfora renascentista do livro do mundo# domundo como um livro no qual lemos as marcas visíveis de semelhan-as era apenas umafigura-ão de uma rela-ão de profunda iman!ncia entre linguagem e mundo# assim como éfigura de uma nature4a que era# antes de mais nada# escritura. 's coisas do mundoarticulam"se como a linguagem:

' grande metáfora do livro que se abre# que se soletra e que se l! para conhecer anature4a é apenas o anverso visível de uma outra transfer!ncia# muito mais

?X& 3<U9'U=0# #es mots et les choses, p.N @??X? idem# p. E&?X@ idem# p. EI

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 profunda# que fa4 com que a linguagem deva residir do lado do mundo# entre as plantas# as ervas# as pedras e os animais?XE.

<u se+a# a l)gica de ordenamento interno ( linguagem é análoga ( l)gica deordenamento do mundo# daí porque entre linguagem e mundo não há rela-ão arbitrária. “<

que fascina 3oucault a respeito da concep-ão de linguagem característica da Benascen-a 5aidade pré"clássica na terminologia de 3oucault6 é a idéia de que a pr)pria nature4a éorgani4ada como uma linguagem# um tecido contínuo de palavras e caracteres% ?XF. $aí porque o estudo da gramática# no século MAG# segue a mesma disposi-ão epistemol)gicaque aquela pr)pria ( ci!ncia da nature4a. Há uma profunda rela-ão de analogia entre as palavras e as coisas# mais do que uma rela-ão de significa-ão. eu valor de signo e suafun-ão de duplica-ão sobrep,em"se# signos e imagens não estão radicalmente separados por rela-,es de arbitrariedade 5como vemos nas rela-,es entre significante e significado6. 's palavras e as coisas estão submetidas (s mesmas leis.

 7o entanto# as línguas perderam esta rela-ão de similitude profunda. 'penas o hebreu#língua originária falada por $eus e por 'dão# conservou"a 'qui# 3oucault insiste que alíngua passa a ser então língua cu+a forma fundamental é a escrita# e não a vo4 com sua presen-a imediata. ' escrita com sua exig!ncia de interpreta-ão# uma interpreta-ão que sereduplica em outro sistema de escrita# e assim indefinidamente# como se estivéssemos emuma dissemina-ão sem retorno. 1is a figura pr)pria ( linguagem renascentista# ao menossegundo 3oucault.

4 ocaso da semelhança

< esgotamento da episteme que vigorava até a renascen-a está organicamentevinculado ao ocaso da semelhan-a enquanto opera-ão fundamental do conhecimento e aoadvento do primado da representa-ão. 'ssim# 3oucault tentará dar conta da passagem deuma ra4ão fundada na defesa da fun-ão cognitiva da mimesis e da semelhan-a para umara4ão fundada no ordenamento do campo da representa-ão. 1# novamente# esta passagem éanunciada através de uma obra de arte# no caso# Dom ui$ote, de 9ervantes:

$om uixote é a primeira das obras modernas porque vemos aqui a ra4ão cruel dasidentidades e diferen-as se desdobrar no infinito dos signos e das similitudes# porque a linguagem rompe aqui sua velha proximidade com as coisas# isto a fim deentrar nesta soberania solitária de onde ela s) reaparecerá# em seu ser abrupto# comoliteraturaN porque a semelhan-a entra em uma época que é para ela esta da desra4ãoe da imagina-ãoW?X>.

 7a hist)ria do cavaleiro que procura# no mundo# as marcas e assinaturas desteregime de semelhan-as que se encontra inicialmente nos livros# 3oucault v! a formali4a-ãoestética da experi!ncia de um mundo que remete ( loucura um regime de saber que# até bem pouco tempo# era visto como paradigma de racionalidade. Uma loucura que não éoutra coisa que aliena-ão no regime das semelhan-as. $aí porque 3oucault pode afirmar 

?XE idem# p. FX?XF RBD1B# eter# The decline of modernism, p. F??X> idem# p. >?

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que: “$om uixote desenha o negativo do mundo do BenascimentoN a escritura cessou deser a prosa do mundo%?XI. ' escritura e o mundo não se assemelham mais.

e perguntarmos sobre qual evento teria provocado tal ruptura# não teremos umaresposta simples. ois se trata de um lento processo através do qual um regime de saber nãoconsegue mais organi4ar o campo de experi!ncias de uma época# impossibilidade que

apenas reali4a uma instabilidade presente no interior de toda episteme.1ste ocaso da semelhan-a está vinculado ao primado da representa-ão. ' epistemeclássica tem# na representa-ão# o dispositivo fundamental para a organi4a-ão de suasexpectativas cognitivas. $a representa-ão# ao menos segundo 3oucault# podemos di4er duascoisa. rimeiro# que ela é dotada de uma certa arbitrariedade +á que se organi4a como umsistema de identidades e diferen-as aut;nomo em rela-ão ao mundo que se oferece (ssensa-,es. 1sta autonomia implica em regimes de arbitrariedade entre significante esignificado no interior do signo. 7a Gdade 9lássica# o signo deixa de ser uma figura domundo# ele deixa de estar ligado (quilo que ele marca através de vínculos de semelhan-a ede afinidade mimética. 'ssim# como di4 3oucault a respeito da compara-ão enquantoopera-ão cognitiva que pressup,e a possibilidade de determina-ão sistemática deidentidades e diferen-as:

' compara-ão não tem mais por fun-ão revelar a ordem do mundoN ela se fa4segundo a ordem do pensamento e indo naturalmente do mais simples ao maiscomplexo. ' partir daí# toda episteme da cultura ocidental se encontra modificadaem suas disposi-,es fundamentais?XQ.

Gsto implica# por exemplo# na possibilidade de aparecimento daquilo queentendemos por %teoria do conhecimento%# +á que as representa-,es mentais podem ser analisadas em seu modo aut;nomo de funcionamento# em seu processo sub+etivo de produ-ão 5como vemos neste g!nero filos)fico típico da Gdade 9lássica# os “0ratados sobreo entendimento%6. $aí porque 3oucault pode di4er que# a partir da Gdade 9lássica# o signo é:“a representatividade da representa-ão na medida em que tal representa-ão érepresentável%?XT. <u se+a# os signos podem ser analisados como sistema com regras pr)prias# eles podem ser analisados a partir de sua condi-ão de representatividade. $aí porque a representa-ão pode representar"se a si mesmo# como no caso do quadro deAelásque4 que vimos na aula passada. $aí porque o problema do conhecimento éfundamentalmente o problema da identifica-ão do erro e da ilusão# outra forma de con+ugar o problema do modo com que o sistema refere"se ao mundo.

2as notemos que esta autonomia do sistema não é completa. $escartes ainda falavada linguagem como “imagem do mundo%# isto a fim de insistir na rela-ão fundamental deespecularidade entre as palavras e as coisas. < problema da autonomia do sistema derepresenta-,es deve dar conta desta que é# ao menos segundo Bichard BortJ# a “pergunta profissional do cético%: “9omo sabemos n)s que tudo o que é mental representa algo quenão é mental/ 9omo sabemos n)s se aquilo que o <lho da 2ente v! é um espelho 5aindaque distorcido [ um vidro encantado6 ou um véu/%?&X. <u se+a# a representa-ão# mesmoorgani4ando"se em sistemas aut;nomos de ordenamento# não pode economi4ar o problema

?XI idem# p. >&?XQ idem# p. >Q?XT idem# p. IT?&X B<B0\# A filosofia e o espelho da natureza, p. E>

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referente ( sua adequa-ão ao mundo. 'inda vale a f)rmula medieval “it veritas estadequatio rei et intellectus%. 'ssim# a representa-ão deve articular duas disposi-,escontrárias: o caráter aut;nomo de seu sistema e a adequa-ão de sua rela-ão a umarefer!ncia dotada de acessibilidade epist!mica e autonomia metafísica.

 7este contexto# filosofia cartesiana é um exemplo privilegiado e ob+eto demorado

das análises de 3oucault. abemos como $escartes critica a semelhan-a enquantoexperi!ncia fundamental e forma primeira do saber denunciando nela um misto confuso quedeve ser analisado e decomposto em termos de identidade e diferen-a. ' semelhan-a é ummodo de conhecimento vinculado ( imagina-ão# a pot!ncia anal)gica da imagem enquanto produ-ão intelectual da afec-ão corporal. 2as a atividade do espírito não consiste emapro$imar as coisas a partir da procura de rela-,es de simpatia# de emula-ão# deconveni!ncia e de analogia. ' atividade do espírito consiste em discernir através doentendimento. 9om este golpe# a semelhan-a# que na Benascen-a ainda estava ligada a umsistema de signos# é rebaixada aos confins do saber# ou se+a# ao domínio da imagina-ão comsuas repeti-,es incertas e suas analogias nebulosas.

or outro lado# o discernimento pr)prio ao entendimento reconhecerá comoevidente# claro e distinto apenas aquilo que se deixa ler como figura de uma mathesisuniersalis cu+o método universal é a álgebra# apenas aquilo que se deixa apreender comoob+eto de uma intui-ão intelectual que nasce da desqualifica-ão da pot!ncia cognitiva daimagina-ão: “or intui-ão entendo não a confian-a instável dada pelos sentidos ou o +uí4oenganador de uma imagina-ão com más constru-,es# mas o conceito que a intelig!ncia purae atenta forma com tanta facilidade e clare4a que não fica absolutamente nenhuma d8vidasobre o que compreendemos%?&&. 

1sta no-ão de mathesis uniersalis é fundamental para a constitui-ão da epistemeclássica# isto ao menos segundo 3oucault. 2as para compreend!"la# precisamos ter clare4ado que significa# neste contexto# transformar os ob+etos da experi!ncia em ob+etosmatemati4áveis. 1ste é um ponto fundamental pois# se a unidade das matemáticas podeaparecer como unidade das ci!ncias# é porque o saber foi capa4 de submeter a integralidadedos ob+etos a um sistema de rela-ão# de ordenamento e de medida. 7o interior destamathesis: Was rela-,es entre seres serão pensadas sob a forma da ordem e da medidaW ?&?. 7este contexto# é a idéia de ordem e série que ganha a prima4ia.

=embremos que# para que esta matemática cartesiana fundada na análise derela-,es# estruturas e quantidades pudesse aparecer# foi necessário uma verdadeira reformaque permitisse a generali4a-ão do método algébrico (s ci!ncias 5astronomia# )tica#mecânica6# (s artes 5m8sica6 e ( filosofia. 1 se estivermos atento (quilo que é ob+eto dareforma cartesiana das matemáticas# n)s veremos que se trata sempre de limitar o peso daimagina-ão no raciocínio matemático. =imitar estas artes que “antes se dirigem aos olhos e( imagina-ão que ao entedimento%. 'ssim# ele criticará a análise dos 'ntigos 5'rquimedes#'pol;nio e 1uclides6 por ser uma análise geométrica que raciocina a partir da figura# e nãoa partir de símbolos. or outro lado# a reforma empreendida na lgebra de 9lavius visoueliminar a prolifera-ão de n8meros c)ssicos tirados do alfabeto hebreu e grego# a fim deredu4ir todos os signos matemáticos apenas a signos do alfabeto latino 5x#J#46# a signos deopera-,es matemáticas e de rai4 quadrada. $esta forma# foi possível: “um g!nero dearitmética# que chama lgebra# que permite fa4er com os n8meros o que os antigos fa4iam

?&& $19'B01# +egras para a direção do espírito Begra GGG?&? 3<U9'U=0# #es mots et les choses, p. I&

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com as figuras%?&@. or fim# $escartes não terá palavras d)ceis para a =)gica medieval baseada na análise e cataloga-ão de silogismos# o que não deixa de ser compreensível paraum pensamento que# primeiramente# redu4 todos os ob+etos ( rela-ão.

 7este contexto podemos compreender melhor porque a mathesis uniersalisaparecerá como ci!ncia geral que explique tudo quanto se pode procurar referente ( ordem

e ( medida sem as aplicar a uma matéria especial. 0rata"se assim de: “reportar ( matemáticatudo aquilo em que somente se examinam a ordem e a medida# sem levar em conta se é emn8meros# em figuras# em astros# em sons ou em qualquer outro ob+eto# que tal medida devaser procurada%. 7o entanto# isto implica na determina-ão e apreensão de todo e qualquer ob+eto a partir da idéia de nature4as simples que podem ser ordenadas# nature4as que são: afigura# a quantidade# o tempo e o espa-o. ' mathesis é assim o ordenamento das nature4assimples a partir de um método fornecido pela álgebra. 1la permite o advento ' no-ão doconhecimento como constru-ão de ordens e de séries de elementos que podem ser pensadosa partir de determina-,es gerais representáveis. < WordenamentoW aparece assim como protocolo fundamental das opera-,es do saber. <rdenamento que s) possível porque adiversidade qualitativa dos seres é apenas ilusão imaginária que esconde a determina-ãoessencial e mensurável dos seres. Gsto permite a 3oucault afirmar:

1sta rela-ão ( *rdem é tão essencial para a idade clássica quanto foi para arenascen-a a rela-ão á Interpretação. 1 assim como a interpreta-ão do século MAG#sobrepondo semiologia e hermen!utica# era um conhecimento da similitude# acoloca-ão em ordem através dos signos constitui todos os saberes empíricosenquanto saberes da identidade e da diferen-a?&E. 

9om isto# explica"se como a representa-ão pode ser adequada ( refer!ncia. ois arefer!ncia é compreendida agora como aquilo cu+a ess!ncia é configura-ão de nature4assimples apreendidas pelo entendimento# e não pela imagina-ão. $e um mundo desimilitudes# passamos a um mundo de matemática reificada# mundo da física galiláica e damathesis cartesiana.

3oucault insiste que a no-ão de mathesis é o fundamento da episteme clássica. 1stano-ão traria duas conseqY!ncias maiores: a rela-ão entre os seres será pensada sob a formada ordem e da medida e a novas empiricidades aparecerão organi4adas a partir da no-ão de“sistema de signos%. 0r!s destas empiricidades serão privilegiadas por 3oucault: agramática geral# a hist)ria natural e a análise das rique4as 5linguagem# nature4a e valor6.Um sistema de signos que é:

1sta língua simples# absolutamente transparente que é capa4 de nomear o elementarNé também este con+unto de opera-,es que define todas as con+un-,es possíveis 5...6 éo pertencimento de um cálculo universal e de uma pesquisa do elementar em umsistema que é artificial e que# devido a isto# pode fa4er aparecer a nature4a a partir de seus elementos de origem até a simultaneidade de todas suas combina-,es possíveis?&F.

?&@ $19'B01# idem [ Begra GA?&E 3<U9'U=0# idem# p. I&?&F idem# p. I>

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3oucault insiste que este sistema de signos funciona# fundamentalmente# como umataxionomia# como uma base de princípios gerais de classifica-ão que visa explicar como seorgani4am# se relacionam e são compostas nature4as complexas. 'ssim# como lembrará3oucault:

' mathesis é a ci!ncia das igualdades# logo# das atribui-,es e dos +ulgamentosN ataxionomia# por sua ve4# trata das identidades e das diferen-asN é a ci!ncia dasarticula-,es e das classesN ela é o saber dos seres ?&>.

' mathesis e a ci!ncias das igualdades# a taxionomia é a ci!ncias das identidades ediferen-as. 'crescenta"se a isto a g!nese enquanto análise da origem. 'ssim# mathesis#taxionomia e g!nese são o tripé fundamental da episteme clássica com suas quest,es eestratégias. 7elas estão o germe do que a episteme moderna compreenderá por ontologia5mathesis6# por semiologia e interpreta-ão 5taxionomia6# por hist)ria 5g!nese6. $ispositivosque irão se autonomi4ar com as rupturas pr)prias ( modernidade.

$a inexistência do homem

 7esta teoria clássica dos signos há ainda um ponto que merc! aten-ão especial.3oucault não cansa de afirmar que a filosofia clássica seria fundamentalmente uma filosofiado signo. Gsto significa di4er que# mesmo que a linguagem se+a vista como Wimagem dascoisasW mesmo que Wo quadro dos signos será a imagem das coisasW# trata"sefundamentalmente de compreender em que condi-,es ela pode fundar tal rela-ão deespecularidade. < signo# como sabemos# é aquilo que está no lugar de uma coisa# elerepresenta a coisa sem se tomar por ela. 2as# no caso do clacissismo# esta adequa-ão entresigno e coisa é uma adequa-ão que não exige que o homem apare-a como aquilo quegarante de maneira transcendental as possibilidades do conhecimento. < su+eito não ainda ofundamento do saber# até porque# o clacissismo exige que o encontro entre o quadro dossignos e a imagem do mundo se+a reali4ado em um terceiro termo no qual se alo+a o infinitoreal# ou se+a# $eus. 3oucault insiste bastante neste ponto que marcaria a distância entre ocogito cartesiano e o cogito _antiano. 'ntes de Cant# o su+eito não aparece comofundamento transcendental do conhecimento# +á que a enuncia-ão do cogito não fundaconhecimento ob+etivo algum# a não ser o saber de que sou no momento mesmo em queenuncio esta proposi-ão. $aí afirma-,es como:

ara $escartes# trata"se de expor o pensamento como forma mais geral destes pensamentos que são o erro e a ilusão# isto de maneira a con+urar o perigo que elesrepresentam# de maneira a reencontrá"los Oerro e ilusãoP no final do caminho# aexplicá"los e a fornecer então o método para deles nos prevenir. 7o cogito moderno#trata"se# ao contrário# de mostrar em sua maior dimensão a distância que ao mesmotempo separa e une o pensamento presente a si e o que# do pensamento# enraí4a"seno não"pensado?&I.

< cogito cartesiano é modo de reconhecimento do erro# modo de determina-ão daexist!ncia de um <utro 5no caso# $eus6 capa4 de garantir a verdade ob+etiva de minhas?&> 3<U9'U=0# idem# p. QT?&I idem# p. @@F

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representa-,es. < cogito _antiano é determina-ão do princípio de sub+etividade comofundamento para a ob+etividade de todo e qualquer saber. $esta forma# tudo se passa comose# para 3oucault# s) existisse filosofia do su+eito# isto no sentido forte do termo# ou se+a#su+eito como fundamento para as opera-,es elementares da ra4ão# a partir de Cant pois# deuma certa forma# para 3oucault# é s) como o encaminhamento transcendental de Cant que

o homem passa a existir. ois é s) a partir deste momento que o homem aparece# aomesmo# tempo como fundamento va4io do saber 5va4io porque Wo cogito não condu4 a umaafirma-ão de ser# mas ele se abre +ustamente a toda uma série de interroga-,es nas quais équestão do serW6 e ob+eto do saber. 7a verdade# o cogito _antiano# longe de apenas fundar acerte4a do saber# seria a maneira de mostrar ao pensamento como ele poderia escapar de simesmo e inaugurar uma interroga-ão m8ltipla sobre os seres. Gsto implica em uma problemati4a-ão profunda a respeito das estruturas de adequa-ão entre palavras e coisasque marcará todo o desenvolvimento da modernidade.

Falar> classi%icar> trocar

2as antes de passarmos ao comentário da episteme moderna# fa4"se necessário aomenos comentar estas tr!s empiricidades com as quais 3oucault se defronta na configura-ãoda episteme clássica: a gramática geral# a hist)ria natural e a análise das rique4as.1mpiricidade que# posteriormente permitirão o advento das ci!ncias da linguagem# dasci!ncias da vida 5e das clínicas da sub+etividade6# assim como da economia política. 7otemos inicialmente esta posi-ão peculiar da hist)ria natural. ois gramática geral eanálise das rique4as são domínios que# retrospectivamente# colocam"se atualmente sob osigno claro do que convencionamos chamar de ci!ncias humanas. < mesmo não acontececom a hist)ria natural que nos levaria naturalmente ( biologia. 7o entanto# lembremos que# para 3oucault# o discurso sobre a nature4a é fundamente discurso sobre a nature4a. <u se+a#ele não é nada mais que uma forma-ão discursiva que deve ser analisada como constru-ão aser submetida a uma arqueologia capa4 de desvelar a maneira com que ob+etos científicossão constituídos. 7este sentido# o saber sobre a nature4a seria# necessariamente# saber sobreas estratégias de funcionamento de um discurso.

 7o que di4 respeito ao regime de saber que se conformou ( no-ão de “gramáticageral%# 3oucault insiste que ele é o resultado de um processo através do qual arepresenta-ão é sta como lugar integral da linguagem. 0al como vimos# isto significa quedois problemas devem ser articulados con+untamente: a autonomia do funcionamentoestrutural da linguagem e seu modo de adequa-ão ao representado. $e fato# a partir daGdade 9lássica a gramática pode aparecer# fundamentalmente# como análise das regras darepresenta-ão# análise da forma lingYística e de seus mecanismos a partir de princípios pr)prios a uma ordem geral. $esta forma# ela será uma espécie de “álgebra do pensamento%. Uma álgebra que pressup,e uma espécie de língua universal 5daí a no-ão degramática  geral 6# não enquanto língua originária falada pelo 9riador# mas enquantogramática na qual toda ordem possível deve encontrar seu lugar. $aí porque a grandegramática da Gdade 9lássica é uma l)gica: a #ógica de ort +oal, de 'rnaud e 7icole. 7ãose trata de uma gramática comparada# mas de uma exposi-ão da fun-ão representativa dodiscurso# do modo de articula-,es da representa-ão e de seus modos de adequa-ão. Umaexposi-ão que toma o discurso como ob+eto# ou se+a# discurso enquanto seqY!ncia de signosverbais# constru-ão de séries sob a forma do +ulgamento# uso da linguagem em suasexig!ncias mais imediatas de inteligibilidade da fala. < discurso é a mathesis uniersalis da

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gramática geral $aí desdobram"se quatro variáveis fundamentais para a constitui-ão deuma taxionomia: articula-ão# atribui-ão# designa-ão e deriva-ão. 3oucault explica taisvariáveis da seguinte maneira:

Ká que o discurso liga suas partes como a representa-ão liga seus elementos#a

gramática geral deverá estudar o funcionamento representativo das palavras umasem rela-ão (s outras# isto sup,e inicialmente a análise do lugar que vincula as palavras 5teoria da proposi-ão e# especialmente# teoria do verbo Oarticula-ãoP6#depois uma análise dos diversos tipos de palavras a da maneira através da qual elascortam a representa-ão distinguindo"se entre si 5teoria da articula-ão6. 2as como odiscurso não é simplesmente um con+unto de representa-,es mas uma representa-ãoduplicada que designa outra [ esta representa-ão mesmo que ela representa [ agramática geral deve estudar a maneira através da qual as palavras designam o queelas di4em# inicialmente em seu valor primitivo 5teoria da origem e da rai4Odesigna-ãoP6# depois em sua capacidade permanente de deslocamento# de extensão#de reorgani4a-ão 5teoria do espa-o ret)rico e da deriva-ão6?&Q.

1sta quadratura composta por tais variáveis será encontrada em opera-ão tanto na hist)rianatural quanto na análise das rique4as. 7o caso da hist)ria natural# 3oucault insiste quetemos uma hist)ria no sentido arcaico da palavra hist)ria: %istor é# na origem# a testemunhaocular# aquele que viu. <u se+a# a hist)ria natural é a organi4a-ão da visibilidade a partir daaceita-ão de uma distância entre palavras e coisas# visão apurada da nature4a e descri-ão deseus fatos que permite# com isto# o advento da classifica-ão. “' hist)ria natural%# dirá3oucault# “não é outra coisa que a nomea-ão do visível%?&T.

2as isto nos leva a uma questão maior: ual o regime de visibilidade que agora seimp,e ao saber sobre a nature4a/ 1sta visibilidade não é um aprofundamento do saber detalhado da Benascen-a. 1la é# na verdade# redu-ão do campo do visível a quatro variáveisfundamentais: forma# quantidade# distribui-ão espacial e grande4a. $aí porque 3oucault pode falar que a observa-ão# a partir do século MAGG# é um conhecimento sensível derivadode condi-,es sistematicamente negativa: limita-ão do tocar# exclusão de certas varia-,es#diminui-ão do campo de dados relevantes a estas quatro variáveis que formarão a no-ão de“estrutura%: o verdadeiro ob+eto da hist)ria natural. 1 é esta remissão do campo do visível aum sistema de variáveis cu+os valores podem ser fornecidos através de uma linguagemclara e finita 5mesmo que não se+a a linguagem da quantifica-ão6 que possibilita aarticula-ão entre hist)ria natural e mathesis.

or fim# a analise das rique4as permite a 3oucault demonstrar de maneira extensa a presen-a de uma mesma episteme em empiricidades aparentemente aut;nomas. Gsto porqueele leva (s 8ltimas conseqY!ncias a# na Gdade 9lássica# a moeda é um signo# +á que a rela-ãoentre moeda e valor estava su+eita ( rela-ão entre signo e coisa.

 7a Benascen-a# a realidade material da moeda é# ao mesmo tempo# realidadematerial do valor. 1sta rela-ão é fundamental porque a teoria da moeda é uma teoria dossistemas de trocas 5taxionomia6 enquanto a teoria do valor é necessariamente uma teoria darela-ão ( refer!ncia 5mathesis6# uma teoria da utilidade. 0roca e uso# ou antes# valor detroca e valor de uso estão absolutamente vinculados. Gsto a ponto das qualidades dos metaisnumismáticos serem qualidades da rique4a 5dure4a# flexibilidade etc.6.?&Q 3<U9'U=0# idem# p. &>I?&T idem# p. &EE

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 7o entanto# 3oucault irá insiste que este paralelismo entre rique4a e moeda vinha# a partir do mercantilismo# do fato de que a moeda era vista como tendo o poder derepresentar toda rique4a possível +á que ela seria o instrumento universal de análise e derepresenta-ão:

' moeda pode sempre tra4er (s mãos de seu proprietário o que vem de ser trocadocontra ela# da mesma forma que# na representa-ão# um signo deve poder tra4er ao pensamento o que ele representa??X. 

$a mesma forma# a mesma massa metálica pode representar várias coisas equivalentes5ob+eto# trabalho etc.6# da mesma forma que um nome comum tem o poder de representar várias coisas. ' circula-ão da moeda e seus sistemas de trocas é a base da taxionomia daanálise das rique4as. < valor na análise das rique4as é como a estrutura na hist)ria natural.

2as notemos que no classicismo# a rela-ão entre moeda e valor não é nemtotalmente arbitrário e convencional# nem totalmente natural. ' rela-ão é# ao mesmo tempo#arbitrária e adequada. 1la é arbitrária porque não é o valor intrínseco do metal que forneceo pre-o das coisas# todo ob+eto pode servir de moeda. 1la é adequada porque é necessárioque este ob+eto tenha qualidades pr)prias de representa-ão. 7este sentido# nem todo ob+eto pode servir de moeda. 'ssim# é possível di4er que# para o pensamento clássico# a moeda é oque representa a rique4a. $a mesma forma que é possível di4er: “< ser é dado sem rupturacom a representa-ão%??&.

??X 3<U9'U=0# idem# p. &Q>??& idem# p. ?&T

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Curso Foucault

(ula 11

Aimos# na aula passada# como 3oucault define a estrutura da episteme clássica. 7aaula que vem# discutiremos a crítica de 3oucault ( no-ão moderna de su+eito. ara tanto#

 pediria que voc!s lessem o capítulo de  As palaras e as coisas intitulado “< homem e seusduplos%# assim como a Gntrodu-ão ( sua tradu-ão da  Antropologia so" um ponto de ista pragm)tico, de Cant.

obre a origem da episteme clássica# vimos como tratava"se de dar conta da passagem de uma ra4ão fundada na defesa da fun-ão cognitiva da mimesis e da semelhan-a para uma ra4ão fundada no ordenamento do campo da representa-ão. ' episteme clássicatinha# na representa-ão# o dispositivo fundamental para a organi4a-ão de suas expectativascognitivas.

$a representa-ão# ao menos segundo 3oucault# podíamos di4er duas coisa. rimeiro#que ela é dotada de uma certa arbitrariedade +á que se organi4a como um sistema deidentidades e diferen-as aut;nomo em rela-ão ao mundo que se oferece (s sensa-,es. 1staautonomia implica em regimes de arbitrariedade entre significante e significado no interior do signo. 7a Gdade 9lássica# o signo deixa de ser uma figura do mundo# ele deixa de estar ligado (quilo que ele marca at. ravés de vínculos de semelhan-a e de afinidade mimética.

2as notemos que esta autonomia do sistema não é completa. $escartes# por exemplo# ainda falava da linguagem como “imagem do mundo%# isto a fim de insistir narela-ão fundamental de adequa-ão entre as palavras e as coisas. 0al adequa-ão garante umdiscernimento pr)prio ao entendimento. 7o entanto# tal discernimento reconhecerá comoevidente# claro e distinto apenas aquilo que se deixa ler como figura de uma mathesisuniersalis cu+o método universal é a álgebra. 1le v! apenas aquilo que se deixa apreender como ob+eto de uma intui-ão intelectual que nasce da desqualifica-ão da pot!ncia cognitivada imagina-ão. 7este sentido# a arbitrariedade da representa-ão era válida apenas se pensássemos em um mundo que se entregava a partir da visibilidade das analogias. 1la# noentanto# era adequada a um mundo cu+a forma se modificara radicalmente# pois se tratavaagora de um mundo cu+a ess!ncia consistia em ser uma mathesis uniersalis, mundo deob+etos matemati4áveis e aqualitavos.

0ais ob+etos eram elementos de um novo regime de saber# um saber da ordem. <WordenamentoW aparece assim como protocolo fundamental das opera-,es do saber.<rdenamento que s) possível porque a diversidade qualitativa dos seres é apenas ilusãoimaginária que esconde a determina-ão essencial e mensurável dos seres. 9om isto#explica"se como a representa-ão pode ser adequada ( refer!ncia. ois a refer!ncia écompreendida agora como aquilo cu+a ess!ncia é configura-ão de nature4as simplesapreendidas pelo entendimento# e não pela imagina-ão. $e um mundo de similitudes# passamos a um mundo de matemática reificada# mundo da física galiláica e da mathesiscartesiana.

 7o que di4 respeito ao regime de saber que se conformou ( no-ão de “gramáticageral%# 3oucault insiste que ele é o resultado de um processo através do qual arepresenta-ão está como lugar integral da linguagem. 0al como vimos# isto significa quedois problemas devem ser articulados con+untamente: a autonomia do funcionamentoestrutural da linguagem e seu modo de adequa-ão ao representado. $e fato# a partir daGdade 9lássica a gramática pode aparecer# fundamentalmente# como análise das regras darepresenta-ão# análise da forma lingYística e de seus mecanismos a partir de princípios

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 pr)prios a uma ordem geral. $esta forma# ela será uma espécie de “álgebra do pensamento%. Uma álgebra que pressup,e uma espécie de língua universal 5daí a no-ão degramática  geral 6# não enquanto língua originária falada pelo 9riador# mas enquantogramática na qual toda ordem possível deve encontrar seu lugar. $aí porque a grandegramática da Gdade 9lássica é uma l)gica: a #ógica de ort +oal, de 'rnaud e 7icole.

 7o caso da hist)ria natural# 3oucault insiste que temos uma hist)ria no sentidoarcaico da palavra hist)ria: %istor é# na origem# a testemunha ocular# aquele que viu. <use+a# a hist)ria natural é a organi4a-ão da visibilidade a partir da aceita-ão de uma distânciaentre palavras e coisas# visão apurada da nature4a e descri-ão de seus fatos que permite#com isto# o advento da classifica-ão. “' hist)ria natural%# dirá 3oucault# “não é outra coisaque a nomea-ão do visível%???.

2as isto nos leva a uma questão maior: ual o regime de visibilidade que agora seimp,e ao saber sobre a nature4a/ 1sta visibilidade não é um aprofundamento do saber detalhado da Benascen-a. 1la é# na verdade# redu-ão do campo do visível a quatro variáveisfundamentais: forma# quantidade# distribui-ão espacial e grande4a. $aí porque 3oucault pode falar que a observa-ão# a partir do século MAGG# é um conhecimento sensível derivadode condi-,es sistematicamente negativa: limita-ão do tocar# exclusão de certas varia-,es#diminui-ão do campo de dados relevantes a estas quatro variáveis que formarão a no-ão de“estrutura%: o verdadeiro ob+eto da hist)ria natural. 1 é esta remissão do campo do visível aum sistema de variáveis cu+os valores podem ser fornecidos através de uma linguagemclara e finita 5mesmo que não se+a a linguagem da quantifica-ão6 que possibilita aarticula-ão entre hist)ria natural e mathesis.

or fim# a analise das rique4as permite a 3oucault demonstrar de maneira extensa a presen-a de uma mesma episteme em empiricidades aparentemente aut;nomas. Gsto porqueele leva (s 8ltimas conseqY!ncias a# na Gdade 9lássica# a moeda é um signo# +á que a rela-ãoentre moeda e valor estava su+eita ( rela-ão entre signo e coisa.

 7a Benascen-a# a realidade material da moeda é# ao mesmo tempo# realidadematerial do valor. 1sta rela-ão é fundamental porque a teoria da moeda é uma teoria dossistemas de trocas 5taxionomia6 enquanto a teoria do valor é necessariamente uma teoria darela-ão ( refer!ncia 5mathesis6# uma teoria da utilidade. 0roca e uso# ou antes# valor detroca e valor de uso estão absolutamente vinculados. Gsto a ponto das qualidades dos metaisnumismáticos serem qualidades da rique4a 5dure4a# flexibilidade# raridade etc.6. < peso dometal numismático fornecia a base monetária do valor.

 7o entanto# 3oucault irá insiste que este paralelismo entre rique4a e moeda vinha# a partir do mercantilismo# do fato da moeda ser vista como tendo o poder de representar todarique4a possível +á que ela seria o instrumento universal de análise e de representa-ão. ' partir de então# a moeda recebe seu valor de sua pura fun-ão de signo.

2as notemos que no classicismo# a rela-ão entre moeda e valor não é nemtotalmente arbitrário e convencional# nem totalmente natural. ' rela-ão é# ao mesmo tempo#arbitrária e adequada. 1la é arbitrária porque não é o valor intrínseco do metal que forneceo pre-o das coisas# todo ob+eto pode servir de moeda. 1la é adequada porque é necessárioque este ob+eto tenha qualidades pr)prias de representa-ão 5ser duro# imperecível#inalterável6. 7este sentido# o ouro e a prata guardam sua preval!ncia.

( episteme moderna

??? idem# p. &EE

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< processo de esgotamento da episteme clássica e de advento da episteme moderna estádescrito na segunda parte do livro de 2ichel 3oucault. egundo 3oucault# haveria um ocorte epistemol)gico que teria ocorrido no espa-o de tempo que vai de &IIF até &Q?F.$urante este periodo# veremos um certo movimento bifásico. 1m um primeiro momento#

novos operados são introdu4idos no interior mesmo da episteme cl)ssica com suasexpectativas de constitui-ão de taxionomias. osteriormente# tais operadores serãoresponsáveis por um novo modo de ser fundamental das empiricidades.

Um primeiro ponto a ser salientado é como# na episteme moderna# a hist)ria apareceenquanto o lugar de nascimento do que é empírico. 1la se divide entre uma ci!nciaempírica entre outras e um modo de ser radical que prescreve seu destino a todos os seresempíricos. 1sta fun-ão constitutiva da hist)ria fa4 que ela tome o lugar da <rdem noclacissismo. 'ssim# o saber não será mais constituído a partir do modo da taxionomia# daordem completa das diferen-as no interior de um quadro# mas da série que se encadeiaorgani4ando um devir de positividades. ' cultura europeia inventará uma profundidade naqual será questão de grandes for-as escondidas desenvolvidas a partir de seu n8cleoinacessível# for-as que coordenam a origem e a hist)ria.

'ssim# o segundo ponto vinculado ( episteme moderna dirá respeito ( articula-ãoentre o advento de novas empiricidades 5a economia política# a biologia# a filologia6 e asexig!ncias epist!micas de uma filosofia transcendental. Gsto explica porque 3oucault diráque : “< estruturalismo não é um método novo# ela é a consci!ncia desperta e inquieta dosaber moderno%. Um discurso que é# ao mesmo tempo# uma ontologia e uma semântica.ois o fim da idade clássica s) ocorrerá com a libera-ão da representa-ão em rela-ão (linguagem# ao vivente e ( necessidade. egundo 3oucault# isto é o resultado daimpossibilidade de fundar as sínteses no espa-o da representa-ão# ou se+a# de fundar omodo de organi4a-ão e funcionamento das representa-,es sem fa4er apelo a um princípio para além do que pode ser representado. 0al libera-ão é condi-ão para que o discursoapare-a como for-a produtora de mundos.

Aimos em aulas passadas como o estruturalismo poderia ser caracteri4ado como um pensamento animando pelo questionamento transcendental. ensamento marcado pelareflexão sobre as estruturas formais capa4es de definir previamente as condi-,es de possibilidade para toda e qualquer experi!ncia e para toda e qualquer constitui-ão deob+etos do conhecimento. 7o entanto# contrariamente ao pensamento transcendentalmoderno# o estruturalismo não abria espa-o para a temati4a-ão de um su+eito constituinte a partir do qual se desdobrariam as condi-,es de produ-ão do ob+eto e o acesso reflexivo (recogni-ão de tais condi-,es. 7o fundo# este será o ponto explorado por 3oucault comolimite e contradi-ão interna ( episteme clássica. 2as antes de analisarmos tal ponto# vale a pena compreendermos como 3oucault descreverá o modelo de funcionamento dasempiricidades na episteme clássica.

3oucault nos forneceu tr!s exemplos vindo dos campos da análise das rique4as# dahist)ria natural e da gramática geral. 1les di4em respeito ( forma-ão dos campos daeconomia política# da biologia e da filologia. 7estes tr!s campos# veremos o mesmomovimento de constitui-ão dos ob+etos de saberes empíricos através da eleva-ão dotrabalho# da vida e da linguagem ( condi-ão de transcendentais. 7o entanto# estestranscendentais devem ser analisados como o estruturalismo pensava a dimensão dotranscendental. Ae+amos# por exemplo# esta afirma-ão decisiva de 3oucault:

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< trabalho# a vida e a linguagem aparecem como “transcendentais% que possibilitamo conhecimento ob+etivo dos seres vivos# das leis de produ-ão# as formas dalinguagem. 1m seu ser# eles estão fora do conhecimento# mas eles são por istomesmo condi-,es de conhecimento. 1les correspondem ( descoberta _antiana deum campo transcendental e# no entanto# eles dele diferem em dois pontos essenciais:

eles se locali4am do lado do ob+eto e de uma certa forma para além. 9omo a Gdéiana $ialética transcendental# eles totali4am os fen;menos e di4em a coer!ncia a priori das multiplicidades empíricas. 2as eles os fundam em um ser cu+a realidadeenigmática constitui# antes de todo conhecimento# a ordem e lugar do que ela tem aconhecer. 'lém do que# eles concernem o domínio das verdades a posteriori e os princípios de suas sínteses [ e não a síntese a priori de toda experi!ncia possível??@.

3oucault di4 que trabalho# vida e linguagem são como transcendentais queconstituem a coer!ncia a priori das multiplicidades empíricas nos campos da economia# da biologia e da filologia. 7o entanto# eles também representam um limite ( representa-ão deob+etos# um limite ( consci!ncia cognitiva. ois haverá aqui uma duplica-ão. or exemplo#a linguagem em seu funcionamento é o que se dá a conhecer no interior de umaempiricidade como a filologia. 2as ela será também o que determinará previamente omodo de conhecimento dos su+eitos que procuram conhecer a linguagem. < trabalho emseu processo de produ-ão do valor é o que se dá a conhecer na economia política. 2as é otrabalho que determinará previamente as formas da práxis dos su+eitos que procuramdesvelar a origem do valor. Há um movimento duplo no interior do qual os ob+etos aconhecer são determinados pelos su+eitos e os su+eitos são determinados pelos ob+etos aconhecer. 'ssim# reencontramos este vínculo entre transcendental e inconsciente do quallhes falei em nossa aula sobre o estruturalismo quando procuramos compreender ascondi-,es de um pensamento transcendental para além dos limites da filosofia daconsci!ncia??E.

 7o que di4 respeito# por exemplo# a análise das rique4as# 3oucault insiste no papelfundamental de 'dam mith no estabelecimento das condi-,es de possibilidade de uma posterior ruptura epistemol)gica geradora da economia política como campo privilegiadodas ci!ncias humanas. mith não inventou o trabalho como conceito econ;mico demensura-ão do valor de troca# mas é a partir dele que o trabalho aparece como medidairredutível e absoluta# é a partir dele que o trabalho não aparece mais como medidarelatia, como meio de satisfa-ão de necessidades e de aquisi-ão de valores de usoN ob+etosdo dese+o que seriam a verdadeira fonte do valor. ] gra-as a esta abstra-ão que# a partir de'dam mith# a analise das rique4as será a análise de: “uma organi4a-ão que cresce segundosua pr)pria necessidade e se desenvolve segundo leis aut)ctones [ o tempo do capital e doregime de produ-ão%??F.

' questão que 3oucault coloca# a partir de 'dam mith 5o fundador da economia política moderna6# é: como o trabalho pode ser medida fixa do pre-o natural das coisas

??@ 3<U9'U=0# #es mots et les choses, p. ?FI??E < que não poderia ser diferente# +á que para 3ocault se trata: “de refaire une philosophie transcendantale eninscrivant le transcendantal ailleurs que dans la sub+ectivité# cest"("dire de dissocier le problSme desconditions du savoir et de lexpérience du problSme des formes a priori de la sJnthSse sub+ective%.5 DU9H10# MavierN ensée technique et philosophie transcendantale# Archies de hilosophie ?XX@L&#Aolume >># pp. &&T"&EE6.??F 3<U9'U=0#  #es mots et les choses, p. ?@Q

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enquanto que ele mesmo tem um pre-o que é variável/ 1sta eleva-ão do trabalho (condi-ão de medida fixa permite uma ruptura com a episteme clássica# na qual o valor deuso 5ligado (s necessidades6 servia de refer!ncia ao valor de troca 5ligado ( quantidade detrabalho6. $esta forma:

as rique4as não estabelecerão mais a ordem interna de suas equival!ncias através de

uma compara-ão dos ob+etos a serem trocados# nem através do poder pr)prio a cadaum de representar um ob+eto da necessidade 5em# em 8ltima instância# o maisfundamental de todos# a saber# o alimento6. 1las se decomporão segundo asunidades de trabalho que lhes produ4iram. 's rique4as são sempre elementosrepresentativos que funcionam# mas o que elas finalmente representam não é oob+eto do dese+o# é o trabalho??>.

3oucault dirá então que a equival!ncia dos ob+etos de dese+o não será mais estabelecida a partir de outros dese+os e outros ob+etos# mas por algo que lhes é radicalmente heterog!neo:um trabalho no interior do qual o que conta é sua dura-ão# a fadiga que ele exige. 2aneirade lembrar que há uma antropologia da finitude em opera-ão. 3initude expressa nestarela-ão ao tempo e# em 8ltima instância# ( morte 5+á que o trabalho seria resultado daavare4a da terra# da necessidade de tirar dela a sobreviv!ncia em condi-,es sempreadversas6. 9omo se na g!nese de um princípio transcendental pudéssemos encontrar umacerta antropologia da finitude e dos limites do homem??I. Uma antropologia como “discursosobre a finitude natural do homem%.

< que vemos através desta reconfigura-ão do conceito de trabalho é o resultado daimpossibilidade da ordem das empiricidades fundar"se apenas na duplica-ão darepresenta-ão em rela-ão a ela mesma. < trabalho não é aquilo que é representado pelosvalores de trocaN antes# ele é a condi-ão de possibilidade para a constitui-ão de um campode representa-ão pr)prio ( determina-ão dos valores de troca. Gsto demonstra como afundamenta-ão do padrão de racionalidade de um determinado campo empírico é# agora#solidária da determina-ão de um elemento irredutível ( representa-ão. 7o que di4 respeito (análise das rique4as# 3oucault irá encontra a reali4a-ão de tal princípio em Bicardo com suano-ão de que a quantidade de trabalho permite fixar o valor de uma coisa porque o trabalhocomo unidade é fonte de todo valor. Um trabalho abstrato# padrão geral de mensura-ão quese organi4a a partir de uma causalidade que lhe é pr)pria# uma causalidade na qual otrabalho sempre remete a si mesmo. ' g!nese do valor"trabalho é# agora# vinculada aotempo de produ-,es sucessivas. 0odo valor se determina a partir das condi-,es de produ-ãoque# por sua ve4# são determinadas por quantidades de trabalho aplicadas a lhes produ4ir# eassim sucessivamente. $esta forma# aparece uma articula-ão entre economia e hist)ria.

3oucault procura demonstrar processos simétricos em opera-ão no campo do estudoda língua com a síntese de um sistema de flex,es e da hist)ria natural através daconstitui-ão do conceito de “organi4a-ão biol)gica% enquanto estrutura transcendente emrela-ão ao domínio da visibilidade do organismo mas# ao mesmo tempo# determinadora desua individualidade. 1strutura que submete os )rgãos a fun-,es e a planos de organi4a-ão.0rabalho# vida e linguagem serão assim os campos de análise da constitui-ão de um processo de descompasso entre o ser e a representa-ão.

??> 3<U9'U=0# #es mots et les choses, p. ?@F??I $aí uma afirma-ão central como: “< homo oeconomicus não é este que representa a si mesmo suas

 pr)prias necessidades e os ob+etos capa4es de satisfa4!"la. 1le é este que passa e usa e perde sua vida procurando escapar da imin!ncia da morte% 5idem# p. ?>T6

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 7o caso da organi4a-ão dos seres# 3oucault insiste em uma certa mudan-a devisibilidade. 0rata"se de mostrar como a rela-ão entre estrutura visível e critérios deidentidade são modificadas a partir de Kussieu# de =amarc_ e Aicq d'4Jr. $urante o séculoMAGGG# as classifica-,es dos seres foram estabelecidas através do estabelecimento decaracteres gra-as ( compara-ão de estruturas visíveis. 'gora# ela se fundará sobre um

 princípio estranho ao domínio do visível# princípio irredutível ao +ogo das representa-,es# asaber# a organização ital. 3oucault afirma que tal princípio que coloca a no-ão de “vida%no centro de um novo saber# a “biologia% 5que organi4a seu campo através de uma vida que perpassa tanto os animais quanto os vegetais6 equivale# na ordem da economia# (quelefundado pelo conceito de “trabalho%.

0al organi4a-ão aparece de quatro formas distintas: primeiro# sob a forma de umahierarquia de caracteresN segundo# sob a forma de liga-ão entre caracteres e fun-ãoNterceiro# através de uma remissão do visível ao invisívelN por fim# através do nega-ão dovínculo entre classifica-ão e nomenclatura. 3oucault dirá que é gra-as a 9uvier que aorgani4a-ão vital aparecerá enfim como princípio para além de todo visível. Um exemplodado por 3oucault é a rela-ão entre )rgão e fun-ão. egundo o fil)sofo# 9uvier teriaquebrado o postulado de a+ustamento entre fun-ão e )rgão ao insistir na soberania dafun-ão. 'ssim# a partir de 9uvier# a fun-ão# definida sob a forma não perceptível do efeito aalcan-ar# servirá de meio termo constante e permitirá a rela-ão de con+untos de elementosdesprovidos da menor identidade visível. Gsto lhe permitirá di4er# por exemplo:

's brânquias e os pulm,es# pouco importa se eles tem em comum algumas variáveisde forma# grande4a# n8mero: eles se assemelham porque são duas variedades deste)rgão inexistente# abstrato# irreal# inapreensível# ausente de toda espécie descritível#no entanto presente em toda extensão do reino animal e que serve para respirar em geral EE5. 

0ais fun-,es gerais de um )rgão inexistente permitirão a hierarqui4a-ão de fun-,essegundo um  plano ital de organização. ' vida será este princípio que se manifesta naorgani4a-ão geral dos seres. 1nquanto for-a produtiva# ela será aquilo que funda todas asdistin-,es possíveis entre os viventes. Uma no-ão sintética de vida.

or fim# a análise da linguagem conhecerá uma modifica-ão estruturalmentesemelhante. < final do século MAGGG conheceu um esfor-o cada ve4 maior de análisecomparativa das línguas. 2as tal compara-ão não era pensada sob o signo da identifica-ãode uma língua primeira universal. 1la é feita tendo em vista a configura-ão de rela-,esconstantes entre uma série determinada de altera-,es formais. $aí a importância do problema das flex,es verbais. ' partir do sistema de flex,es é um gramatical puro queaparece. ois:

< que estava em +ogo nesta con+uga-ão comparada não era mais a liga-ão entresílaba primitiva e sentido primeiro. 1ra uma rela-ão mais complexa entre asmodifica-,es do radical e as fun-,es da gramática. $escobríamos que em duaslínguas diferentes havia uma rela-ão constante entre uma série determinada dealtera-,es formais e uma série igualmente determinada de fun-,es gramaticais# devalores sintáticos ou de modifica-,es de sentido??T.

$esta forma# uma fonética que não era mais a procura dos primeiros valores expressivos#mas a análise dos sons# de suas rela-,es e de suas transforma-,es possíveis. 2aneira delembrar que a língua não era mais confrontada com que as palavras designam# com as??Q Gdem# p. ?II??T 3<U9'U=0# idem# p. ?EQ

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coisas# mas com o que as articulam umas com as outras. 7a estrutura formal dos fonemas#articula"se a dinâmica de muta-ão da língua# o motor de sua hist)ria. 1sta seria uma dascontribui-,es maiores de fil)logos como Ropp# a saber# permitir que a linguagemaparecesse como um sistema de organi4a-ão diferencial cu+os princípios são internos a simesmo.

Pensamento cr,tico

9om isto# 3oucault pode afirmar que está em marcha uma verdadeira ruptura no padrão geral de racionalidade que constitui campos da empiricidade do saber. 1le lembraránão ser por acaso que# neste momento# vemos aparecer a Gdeologia e a filosofia crítica. oistanto a Gdeologia quanto a filosofia crítica teriam em comum a procura em problemati4ar ascondi-,es de possibilidade da representa-ão em sua validade universal. 7ão se trata maisde estabelecer a reflexão epistemol)gica na determina-ão do que garante a adequa-ão dasrepresenta-,es mentais a um estado independente de coisas 5daí porque a prova daexist!ncia de $eus é uma opera-ão central para a fundamenta-ão do saber no classicismo6.< pensamento moderno não será exatamente um pensamento da adequa-ão. $aí porque suaquestão epistemol)gica maior é: quais as condi-,es estruturais para a constitui-ão de umcampo de representa-,es cu+o fundamento não está mais na certe4a da adequa-ão entre as palavras e as coisas/

 7este ponto# vimos como era possível encontrar similitudes profundas entre o pr)prio pro+eto arqueol)gico de 2ichel 3oucault e as estratégias de questionamentotranscendental de Cant. < que não deve nos estranhar +á que sabemos como oestruturalismo 5presen-a marcante na defini-ão do pro+eto arqueol)gico6 foi muitas ve4esdefinido como um “_antismo sem su+eito transcendental%. 7o entanto# isto implica di4er que tudo se passa como se a arqueologia fosse# á sua maneira# ainda tributária de umaepisteme definidora da modernidade 5e talve4 esta se+a uma das ra4,es que obrigarão3oucault a relativi4ar o pro+eto arqueol)gico em prol da genealogia6. ' este respeito#lembremos como pr)pria no-ão da arqueologia como modo de reflexão epistemol)gica que procura configurar os a priori hist)ricos que permitem a constitui-ão de campos empíricosde saberes não deixa de nos remeter a uma matri4# ao seu modo# _antiana. 7ão é por outrara4ão que o pr)prio termo “arqueologia% foi encontrado por 3oucault em um texto de Cant:* progresso da metafísica na Alemanha desde o tempo de #ei"niz e Folff.  2as há duasdiferen-as fundamentais entre 3oucault e Cant. rimeiro: “lá onde Cant procuravaantecipar a possibilidade de todo conhecimento prescrevendo previamente suas leis#3oucault quer partir de conhecimentos +á constituídos para definir retrospectivamente o queos possibilitou%. <u se+a# até aqui# a arqueologia orientou"se como um setor de crítica dodiscurso científico# desdobramento de uma certa contra"hist)ria da ci!ncia 5muitoclaramente exposta na  %istória da loucura6 que visa descrever a imbrica-ão entre ci!ncia#metafísica e moral na constitui-ão de padr,es de racionalidade e racionali4a-ão# como setodo padrão de descrição que aspira validade racional fosse necessariamente um padrão dealoração muitas ve4es não temati4ado?@X. eu hori4onte# nem sempre assumido# é umacrítica da modernidade que tem# como hori4onte regulador# a reconstitui-ão de modos derela-ão ( alteridade inspirados# sobretudo# pelas experi!ncias disruptivas da literaturamodernista 5'rtaud# Boussel# 2allarmé6. “< segundo limite da analogia Oentre Cant e?@X 1sta submissão dos modos científicos de descri-ão a mecanismos de valora-ão +á estava presente emDeorges 9anguilhem. Aer# por exemplo# * normal e o patológico.

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3oucaultP di4 respeito ( invalida-ão# por 3oucault# de toda perspectiva normativa [ se o a priori hist)rico opera claramente uma determina-ão no campo do saber# esta não saberia#diferentemente de sua contrapartida transcendental# legitimar a priori a possibilidade de umconhecimento seguro%?@&. 9ontrariamente a Cant# 3oucault não se interesse pela exig!nciade um fundamento absoluto capa4 de garantir a legalidade de saberes positivos. 1le se

interessa apenas pela tese idealista segundo a qual as condi-,es de possibilidade doconhecimento não são homog!neas aos ob+etos que elas determinam. egundo 3oucault# a partir de Cant nos deparamos com a impossibilidade da representa-ão fornecer# semresíduos# o ser ao pensamento. ' rela-ão entre as palavras e as coisas não será mais umarela-ão de adequa-ão# mas de inadequa-ão. < saber não será mais assim a supressão dadistância ilus)ria entre representa-ão e ser# como no classicismo.

 7o entanto# não se trata# por outro lado# de fundamentar o saber na considera-ãosobre a organi4a-ão imutável das faculdades do conhecimento. 0rata"se# na verdade# dedemonstrar como a pr)pria constitui-ão deste modo de organi4ar o conhecer# ou se+a# a pr)pria figura do su+eito do conhecimento que ele pressup,e# pode ser submetido a umexercício que visa expor sua g!nese hist)rica. 1# em 8ltima instância# é esta considera-ãogenética que distingue o a priori hist)rico daquilo que 3oucault chama de “a priori formal%.or um lado# a priori hist)rico% porque: “' oposi-ão estrutura"devir não é pertinente nem para a defini-ão do campo hist)rico nem# sem d8vida# para a defini-ão de um métodoestrutural%?@?. $aí porque# ao definir o que entende por “a priori hist)rico%# 3oucault diráque se trata daquilo que permite: “isolar as condi-,es de emerg!ncia dos enunciados# a leide sua coexist!ncia com outros# a forma específica de seu modo de ser# os princípiossegundo os quais subsistem# se transformam e desaparecem%?@@.

.

?@& H'7# Réatrice# #0ontologie man!uée de &ichel 3oucault, p. IF?@? 3<U9'U=0# Ar!ueologia do sa"er, p. &@?@@ idem# p. &EE

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Curso Foucault

(ula 12

 7a aula de ho+e# terminaremos o comentário de As palaras e as coisas através da leitura de

seu 8ltimo capítulo# este intitulado “'s ci!ncias humanas%. =eremos ainda a confer!ncia *!ue é um autor@. $esta forma# teremos subsídios suficientes para organi4ar as quest,es queestavam em +ogo na crítica foucauldiana ( categoria de su+eito. 9rítica esta que foi marcada pela temática da “morte do su+eito%.

 7)s havíamos visto# na aula passada este processo de esgotamento da epistemeclássica e de advento da episteme moderna descrito na segunda parte do livro de 2ichel3oucault. Aimos como o corte epistemol)gico em questão# corte que teria ocorrido noespa-o de tempo que vai de &IIF até &Q?F# conhecia um certo movimento bifásico. 1m um primeiro momento# novos operados são introdu4idos no interior mesmo da epistemecl)ssica com suas expectativas de constitui-ão de taxionomias. osteriormente# taisoperadores serão responsáveis por um novo modo de ser fundamental das positividades.

3oucault nos forneceu tr!s exemplos vindo dos campos da análise das rique4as# dahist)ria natural e da gramática geral. 7o que di4 respeito# por exemplo# a análise dasrique4as# 3oucault insiste no papel fundamental de 'dam mith no estabelecimento dascondi-,es de possibilidade de uma posterior ruptura epistemol)gica geradora da economia política como campo privilegiado das ci!ncias humanas. mith não inventou o trabalhocomo conceito econ;mico de mensura-ão do valor de troca# mas é a partir dele que otrabalho aparece como medida irredutível e absoluta# é a partir dele que o trabalho nãoaparece mais como medida relatia, como  meio de satisfa-ão de necessidades e deaquisi-ão de valores de usoN ob+etos do dese+o que seriam a verdadeira fonte do valor. ]gra-as a esta abstra-ão que# a partir de 'dam mith# a analise das rique4as será a análise de:“uma organi4a-ão que cresce segundo sua pr)pria necessidade e se desenvolve segundo leisaut)ctones [ o tempo do capital e do regime de produ-ão%?@E.

< que vemos através desta reconfigura-ão do conceito de trabalho é o resultado daimpossibilidade da ordem das empiricidades fundar"se apenas na duplica-ão darepresenta-ão em rela-ão a ela mesma. < trabalho não é aquilo que é representado pelosvalores de trocaN antes# ele é a condi-ão de possibilidade para a constitui-ão de um campode representa-ão pr)prio ( determina-ão dos valores de troca. Gsto demonstra como afundamenta-ão do padrão de racionalidade de um determinado campo empírico é# agora#solidária da determina-ão de um elemento irredutível ( representa-ão. 7o que di4 respeito (análise das rique4as# 3oucault irá encontra a reali4a-ão de tal princípio em Bicardo com suano-ão de que a quantidade de trabalho permite fixar o valor de uma coisa porque o trabalhocomo unidade é fonte de todo valor. Um trabalho abstrato# padrão geral de mensura-ão quese organi4a a partir de uma causalidade que lhe é pr)pria# uma causalidade na qual otrabalho sempre remete a si mesmo.

3oucault procura demonstrar processos simétricos em opera-ão no campo do estudoda língua com a síntese de um sistema de flex,es e da hist)ria natural através daconstitui-ão do conceito de “organi4a-ão biol)gica% enquanto estrutura transcendente emrela-ão ao domínio da visibilidade do organismo mas# ao mesmo tempo# determinadora desua individualidade. 1strutura que submete os )rgãos a fun-,es e a planos de organi4a-ão.

?@E 3<U9'U=0# #es mots et les choses, p. ?@Q

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0rabalho# vida e linguagem serão assim os campos de análise da constitui-ão de um processo de descompasso entre o ser e a representa-ão.

9om isto# 3oucault pode afirmar que está em marcha uma verdadeira ruptura no padrão geral de racionalidade que constitui campos da empiricidade do saber. 1le lembraránão ser por acaso que# neste momento# vemos aparecer a Gdeologia e a filosofia crítica. ois

tanto a Gdeologia quanto a filosofia crítica teriam em comum a procura em problemati4ar ascondi-,es de possibilidade da representa-ão em sua validade universal. 7ão se trata maisde estabelecer a reflexão epistemol)gica na determina-ão do que garante a adequa-ão dasrepresenta-,es mentais a um estado independente de coisas 5daí porque a prova daexist!ncia de $eus é uma opera-ão central para a fundamenta-ão do saber no classicismo6.< pensamento moderno não será exatamente um pensamento da adequa-ão. $aí porque suaquestão epistemol)gica maior é: quais as condi-,es estruturais para a constitui-ão de umcampo de representa-,es cu+o fundamento não está mais na certe4a da adequa-ão entre as palavras e as coisas/

 7este ponto# vimos como era possível encontrar similitudes profundas entre o pr)prio pro+eto arqueol)gico de 2ichel 3oucault e as estratégias de questionamentotranscendental de Cant. < que não deve nos estranhar +á que sabemos como oestruturalismo 5presen-a marcante na defini-ão do pro+eto arqueol)gico6 foi muitas ve4esdefinido como um “_antismo sem su+eito transcendental%. 7o entanto# isto implica di4er que tudo se passa como se a arqueologia fosse# á sua maneira# ainda tributária de umaepisteme definidora da modernidade 5e talve4 esta se+a uma das ra4,es que obrigarão3oucault a relativi4ar o pro+eto arqueol)gico em prol da genealogia6. ' este respeito#lembremos como pr)pria no-ão da arqueologia como modo de reflexão epistemol)gica que procura configurar os a priori hist)ricos que permitem a constitui-ão de campos empíricosde saberes não deixa de nos remeter a uma matri4# ao seu modo# _antiana. 7ão é por outrara4ão que o pr)prio termo “arqueologia% foi encontrado por 3oucault em um texto de Cant:* progresso da metafísica na Alemanha desde o tempo de #ei"niz e Folff.  2as há duasdiferen-as fundamentais entre 3oucault e Cant. rimeiro: “lá onde Cant procuravaantecipar a possibilidade de todo conhecimento prescrevendo previamente suas leis#3oucault quer partir de conhecimentos +á constituídos para definir retrospectivamente o queos possibilitou%. <u se+a# até aqui# a arqueologia orientou"se como um setor de crítica dodiscurso científico# desdobramento de uma certa contra"hist)ria da ci!ncia 5muitoclaramente exposta na  %istória da loucura6 que visa descrever a imbrica-ão entre ci!ncia#metafísica e moral na constitui-ão de padr,es de racionalidade e racionali4a-ão# como setodo padrão de descrição que aspira validade racional fosse necessariamente um padrão dealoração muitas ve4es não temati4ado?@F. eu hori4onte# nem sempre assumido# é umacrítica da modernidade que tem# como hori4onte regulador# a reconstitui-ão de modos derela-ão ( alteridade inspirados# sobretudo# pelas experi!ncias disruptivas da literaturamodernista 5'rtaud# Boussel# 2allarmé6. “< segundo limite da analogia Oentre Cant e3oucaultP di4 respeito ( invalida-ão# por 3oucault# de toda perspectiva normativa [ se o a priori hist)rico opera claramente uma determina-ão no campo do saber# esta não saberia#diferentemente de sua contrapartida transcendental# legitimar a priori a possibilidade de umconhecimento seguro%?@>.9ontrariamente a Cant# 3oucault não se interesse pela exig!nciade um fundamento absoluto capa4 de garantir a legalidade de saberes positivos. 1le se

?@F 1sta submissão dos modos científicos de descri-ão a mecanismos de valora-ão +á estava presente emDeorges 9anguilhem. Aer# por exemplo# * normal e o patológico.?@> H'7# Réatrice# #0ontologie man!uée de &ichel 3oucault, p. IF

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interessa apenas pela tese idealista segundo a qual as condi-,es de possibilidade doconhecimento não são homog!neas aos ob+etos que elas determinam. egundo 3oucault# a partir de Cant nos deparamos com a impossibilidade da representa-ão fornecer# semresíduos# o ser ao pensamento. ' rela-ão entre as palavras e as coisas não será mais umarela-ão de adequa-ão# mas de inadequa-ão. < saber não será mais assim a supressão da

distância ilus)ria entre representa-ão e ser# como no classicismo. 7o entanto# não se trata# por outro lado# de fundamentar o saber na considera-ãosobre a organi4a-ão imutável das faculdades do conhecimento. 0rata"se# na verdade# dedemonstrar como a pr)pria constitui-ão deste modo de organi4ar o conhecer# ou se+a# a pr)pria figura do su+eito do conhecimento que ele pressup,e# pode ser submetido a umexercício que visa expor sua g!nese hist)rica. 1# em 8ltima instância# é esta considera-ãogenética que distingue o a priori hist)rico daquilo que 3oucault chama de “a priori formal%.or um lado# a priori hist)rico% porque: “' oposi-ão estrutura"devir não é pertinente nem para a defini-ão do campo hist)rico nem# sem d8vida# para a defini-ão de um métodoestrutural%?@I. $aí porque# ao definir o que entende por “a priori hist)rico%# 3oucault diráque se trata daquilo que permite: “isolar as condi-,es de emerg!ncia dos enunciados# a leide sua coexist!ncia com outros# a forma específica de seu modo de ser# os princípiossegundo os quais subsistem# se transformam e desaparecem%?@Q.

( anal,tica da %initude

“< limiar da nossa modernidade situa"se no dia em que se constituiu um duplo empírico"transcendental chamado homem%?@T. 1sta afirma-ão central de As palaras e as coisas  +áhavia# de uma certa forma# sido posta em circula-ão por 3oucault desde  A história daloucura quando vimos como o advento da psicologia e da psiquiatria foi solidária de ummodo de ob+etiva-ão do su+eito# de constitui-ão de uma certa no-ão de ida interior . Drossomodo# 3oucault procura mostrar como há um momento# bastante preciso# em que nasce umsu+eito dotado de fun-,es e disposi-,es puramente psicol)gicas# que devem ser tratadasatravés de técnicas e métodos psicol)gicos. $isposi-,es e fun-,es que implicam naob+etiva-ão do su+eito em categorias psicol)gicas. 0al processo é indissociável da cren-adisciplinar de constitui-ão do su+eito através da internali4a-ão de imperativos vinculados auma certa moral que# por permitir o estabelecimento das condi-,es transcendentais para oreconhecimento de su+eitos em sua dignidade de su+eitos# ou se+a# su+eitos dotados decapacidade de auto"determina-ão# de imputabilidade e de vontade aut;noma# tem valor formador e constitutivo e não apenas alor descritio. $aí porque a dificuldade de 3oucaultem assumir que as ci!ncias humanas seriam exatamente “ci!ncias%. 2ais tarde ele dirá queestamos diante de forma-,es discursivas com estratégias pr)prias de constitui-ão deob+etos# regimes de saberes e de valora-ão que não são necessariamente “ci!ncia%.

1m  As palaras e as coisas, 3oucault volta a tal problema relativo ao advento deuma certa concep-ão moderna de su+eito. 1le não cansa de afirmar que# antes do final doséculo MAGGG# o homem não existe# pois não haveria consci!ncia epistemol)gica do homemenquanto tal# não há um domínio específico do homem. < pr)prio conceito clássico denature4a humana excluía a exist!ncia de uma ci!ncia clássica e exclusiva do homem. 'linguagem clássica era o discurso comum no interior do qual nature4a e nature4a humana se

?@I 3<U9'U=0# Ar!ueologia do sa"er, p. &@?@Q idem# p. &EE?@T 3<U9'U=0# #es mots et les choses, p. @@X

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entrecru4avam. $aí o caráter insensato de procurar# no classicismo# algo que pudessecorresponder ao nosso conceito de “ci!ncias humanas%.

2as em As palaras e as coisas, 3oucault estabelece uma articula-ão decisiva entreadvento de uma certa antropologia e primado do questionamento transcendental. 'ssim# aafirma-ão sobre a modernidade como a era do homem será acompanhada por proposi-,es

como:< limiar que separa o classicismo da modernidade foi definitivamente atravessadoquando as palavras cessaram de se entrecru4ar com as representa-,es e deesquadrinhar espontaneamente o conhecimento das coisas?EX.

2as qual é a rela-ão entre o advento do homem e o fim do discurso da adequa-ão entre palavras e coisas/

=embremos que# para a modernidade# o homem# desde que pensa# +á é um ser vivosubmetido (s regras de organi4a-ão biol)gica# +á é um instrumento de trabalho submetidoaos processos sociais de determina-ão de valor# +á é o suporte de uma linguagem que lhe preexiste. 9onhecer o homem é# assim# conhecer a estrutura neuronal# o mecanismo doscustos de produ-ão ou o sistema de con+uga-ão indo"europeu. 7este sentido# em cadaregime de saber pr)prio ( modernidade# o homem se oferece através de uma experi!ncia definitude: ele é este corpo submetido (s regras da fisiologia e da constru-ão de tecidos# ele éeste suporte da dinâmica dos modos de produ-ão# ele é este falante que se submete aosistema de leis da linguagem. 1m todas estas situa-,es# ele não é o agente das leis e regras#mas a ocasião a partir das quais tais leis e regras agem por si mesmas. 1le estaria assimsubmetido a: “uma opacidade originária que nenhum exercício da consci!ncia"de"si +amais poderá dissipar%?E&. $aí esta afirma-ão maior de 3oucault:

$iremos então que há Zci!ncia humanaZ não em todo lugar onde é questão dohomem# mas em todo lugar onde se analisa# na dimensão pr)pria ao inconsciente#normas# regras# con+untos significantes que desvelam# ( consci!ncia# as condi-,esde suas formas e conte8dos?E?.

<u se+a# há ci!ncias humanas lá onde é questão de analisar os modos de ob+etiva-ãoe constitui-ão do homem como um ob+eto do saber# um ob+eto que# como di4ia oevangelho# “não sabe o que fa4%# não sabe a que condi-,es de ob+etividade está submetido.$aí porque a reflexão sobre o homem s) pode ser uma “analítica da finitude%. ois o temada finitude está presente na maneira que# determinado pelo trabalho# pela linguagem e pelavida# o homem se confronta com seus limites# com sua não"liberdade# toma consci!ncia do peso daquilo que lhe aparece como uma for-a exterior. 0udo o que é finito encontra"se#necessariamente# fora de si.

3oucault fala em analítica da finitude porque se trata de sublinhar uma certarepeti-ão# uma certa tautologia analítica no interior da qual o homem é apenas o ponto de produ-ão de um trabalho que o aliena# de uma linguagem muito mais velha que suaconsci!ncia# de uma vida que o aprisiona nos limites do organismo.

?EX idem# p. @&F?E& =1RBU7# Transgredir a finitude, p. @E@?E? 3<U9'U=0# #es mots et les choses, p. @I>

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 7o entanto# s) há ci!ncias humanas não apenas lá onde há trabalho# vida elinguagem# mas onde# por exemplo# é questão da maneira com que os indivíduosrepresentam# para si mesmo# o sentido das palavras# as regras gramaticais# os modos defuncionamento dos atos de fala. Um modo de representa-ão em larga medida determinado pela pr)pria linguagem que é ob+eto da representa-ão. $aí porque 3oucault poderá di4er 

que as ci!ncias humanas são uma espécie de “ci!ncias da duplica-ão%# espa-o no qual ohomem temati4a aquilo que lhe constitui.or isto# devemos estar atentos ( maneira com que 3oucault leva (s 8ltimas

conseqY!ncias o fato do homem ser um duplo empírico"transcendental. uando 3oucaultalude a tal duplicidade# ele quer insistir no fato de que o modo de ser do homem tal comoele foi constituído pelo pensamento moderno leva"o a desempenhar dois papéis:fundamento de todas as positividades# condi-ão de possibilidade para todo e qualquer saber e ob+eto empírico privilegiado do saber. 'ssim# o ob+eto da antropologia será o homemafetado por si mesmo# afetado pelo seu pr)prio poder de síntese enquanto poder constitutivo de ob+etos da experi!ncia 5mesmo que se+a a experi!ncia de si6. 'ssim:

< homem advinha isto a partir do qual todo conhecimento podia ser constituído emsua evid!ncia imediata e não problemati4adaN ele advinha# a fortiori# o que autori4ao colocar em questão de todo conhecimento sobre o homem?E@.

3ato que nos teria levado a duas formas possíveis de análise: a análise não"psicol)gica dasfaculdades e da estrutura da percep-ão 5Cant# Husserl6 ou a análise das condi-,es hist)ricasdo conhecimento 5Hegel# 2arx6. 'través da confronta-ão entre estas duas análises# vemoscomo o homem não pode se entregar na transpar!ncia imediata e soberana de um cogito. 7o entanto# ele também não pode residir na inércia ob+etiva do que nunca acederá (consci!ncia"de"si. $aí uma afirma-ão decisiva# conseqY!ncia necessária do homem comoduplo empírico"transcendental:

< homem é um modo de ser tal qual nele se funda esta dimensão sempre aberta# +amais delimitada de uma ve4 por todas# mas percorrida indefinidamente que vai deuma parte dele mesmo que não se reflete em um cogito ao ato de pensar através doqual ele a reapreende?EE.

 7este sentido# podemos di4er que a peculiaridade de 3oucault consistiu em deslocar o problema do questionamento transcendental em dire-ão ( compreensão do caráter constitutivo 5para a experi!ncia que o su+eito tem de si mesmo6 dos sistemas de trabalho#linguagem e vida. 3ruto de uma perspectiva claramente estruturalista# tal deslocamento permite a 3oucault retirar o caráter constitutivo da sub+etividade transcendental# remeter talfor-a constitutiva a sistemas de regras e leis 5transcendental não será mais o su+eito# mas alinguagem# o trabalho e a vida6 e# por fim# afirmar que o su+eito não pode pensar taissistemas sem# com isto# dissolver"se enquanto tal# ou se+a# dissolver"se enquanto foco dailusão de categorias como auto"determina-ão# auto"identidade e imputabilidade. $aí porque3oucault irá aproximar a no-ão de transcendentalidade e a no-ão de inconsciente# deimpensado. Gsto o leva a sinteti4ar problemáticas como:

?E@ idem# p. @F>?EE Gdem# p. @@@

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osso di4er que sou esta linguagem que falo e na qual meu pensamento se desloca a ponto de encontrar nela o sistema de todas suas possibilidades pr)prias# mas que s)existe no peso de sedimenta-,es que meu pensamento nunca será capa4 de atuali4ar inteiramente/?EF 

$esta forma# abre"se uma questão sobre o ser do homem lá onde ele se abre aoimpensável da estrutura. Kacques =acan havia descrito este modo de abordar o problema dosu+eito de4 anos antes ao lembrar que a experi!ncia moderna +á não podia no assegurar quea certe4a do “1u penso% nos condu4 ( evid!ncia do “1u sou%: “7ão se trata%# dirá =acan#“de saber se falo de mim de maneira conforme ao que sou mas se# quando falo de mim# soueste mesmo sobre quem eu falo%?E>. uestão que s) fa4 sentido porque o su+eito não sereconhece mais no interior da linguagem que ele pr)prio utili4a para falar de si. 'o falar desi# ele vivencia como problema a resposta para a questão: “quem fala/%. ara 3oucault# s) atransgressão da finitude prometida pelas experi!ncias disruptiva da vanguarda estética poderia nos fornecer um hori4onte de supera-ão de tais impasses da modernidade. 7oentanto# di4er isto é# ainda# di4er muito pouco.

Oo sono antropol)gico: por que a antropologia seria a disposi-ão fundamental quecomandou a filosofia desde Cant/ “a análise pré"crítica do que o homem é advém aanalítica de tudo o que pode se dar em geral ( experi!ncia do homem% 5p. @F?6L o fim dohomem como o retorno do come-o da filosofiaP

!ma superação das ciências humanas

< 8ltimo capítulo de nosso livro será então um esfor-o de sistemati4ar aconfigura-ão das ci!ncias humanas e seus problemas fundamentais. 3oucault lembra queelas t!m tr!s regi,es epistemol)gicas derivadas da biologia# da economia e do estudo dalíngua# a saber: a região psicol)gica# a região sociol)gica e a região da análise das formasde linguagem. 9ada uma destas regi,es teria um domínio privilegiado de “categorias% deanálise. 3oucault insiste que as ci!ncias humanas conhecem dois tipos de modelos: umgrupo de modelos resultantes da aplica-ão indevida de metáforas derivadas de outrasci!ncias 5metáforas organicistas para a sociologia do século MGM# metáforas energéticas para a psicologia do come-o do século MM etc.6 e outro grupo de modelos resultantes daconstitui-ão de categorias estruturais de análise# categorias estas também derivadas. 'ssim#da biologia virão as categorias# tão operativas na psicologia# de fun-ão e da norma que adetermina 5norma pensada aqui 8 la Canguilhem como dispositivo de temati4a-ão dosmodos de rela-ão entre indivíduo e meio ambiente6. $a economia virão as categorias#fundamentais para a sociologia# de conflito e da regra que o regula. or fim# da análise dalinguagem virão as categorias de sentido e do sistema que o possibilita. ] o uso destes tr!s pares com suas m8ltiplas combina-,es que dará a especificidade da abordagem pr)pria aocon+unto das ci!ncias humanas.

1sta maneira de organi4ar as categorias pr)prias (s ci!ncias humanas em pares é# naverdade# a maneira foucauldiana de indicar a distância entre aquilo que é temati4ado comorepresenta-ão da consci!ncia e aquilo que ultrapassa a consci!ncia enquanto condi-ão de possibilidade de suas representa-,es. $esta forma# o sentido é bem um fato apreendido pela

?EF 3<U9'U=0# #es mots et les choses, p. @@F?E> ='9'7# -crits, p. F&I

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consci!ncia# mas o sistema pr)prio ( linguagem e que produ4 o sentido como seu efeito éalgo que descentra a consci!ncia de seu campo de representa-ão. $a mesma forma# oconflito é bem um fato apreendido pela consci!ncia# mas não as regras como regula-ão a priori das formas do conflito. < mesmo vale para a fun-ão e para a norma. 'ssim# 3oucault pode introdu4ir# no cerne mesmo das ci!ncias humanas# uma polaridade extremamente

importante ( época# entre consciente e inconsciente. =embrando que o inconsciente aquiserá# em uma chave absolutamente estruturalista# a dimensão dos sistemas# regras e normasque se colocam como condi-ão a priori para a constitui-ão do campo de representa-,es.1ncontraremos esta no-ão de inconsciente na etnologia de =évi"trauss# na psicanálise de=acan e no marxismo de 'lthusser. $aí esta coloca-ão absolutamente central:

 7o hori4onte de toda ci!ncia humana# há o pro+eto de levar a consci!ncia doshomens (s suas condi-,es reais# de restituí"la aos conte8dos e formas que as fi4eramnascer e que nela se esquivamN é por isto que o problema do inconsciente 5...6 não ésimplesmente um problema interno (s ci!ncias humanas 5...6N é um problemafinalmente coextensivo ( sua pr)pria exist!ncia. Uma sobreavalia-ão transcendentaldesdobrada em um desvelamento do não"consciente é constitutivo de todas asci!ncias humanas?EI.

<u se+a# o verdadeiro ob+eto das ci!ncias humanas é o inconsciente enquantodimensão dos sistemas# regras e normas. $esta forma# a aspira-ão crítico"reflexivaconstitutiva de toda ci!ncia humana será sempre pensada como desvelamento destascondi-,es transcendentais de possibilidade para a configura-ão do campo de ob+etosempíricos e saberes como a psicologia# a sociologia e a análise da linguagem.

$ito isto# 3oucault pode encaminhar para uma finali4a-ão diferida de seu livro. 0alfinali4a-ão consiste de uma recusa e de uma afirma-ão. ' recusa concerne ( hist)ria# ouainda# ao papel central que hist)ria desempenharia na re"funda-ão do campo das ci!nciashumanas. ' afirma-ão consiste em colocar# no lugar da hist)ria# a etnologia estruturalista ea psicanálise lacaniana.

< estatuto da hist)ria é um dos problemas maiores no interior da filosofia de 2ichel3oucault. 1m várias situa-,es# ele insiste no fato de que# ap)s o início do século MGM e doadvento da auto"consci!ncia da modernidade# o ser humano não teria mais hist)ria por nãoter mais# ( sua disposi-ão# acesso ao hori4onte seguro da origem que fundamenta o presente. $e fato# algo desta perspectiva pode ser encontrada em Hegel# quando esteafirma# a respeito do espírito da época: “< espírito não s) foi além [ passando ao outroextremo da reflexão# carente"de"substância# de si sobre si mesmo [ mas ultrapassoutambém isso. 7ão somente está perdida para ele sua vida essencialN está também conscientedessa perda e da finitude que é seu conte8do. O9omo o filho pr)digoP# re+eitando os restosda comida# confessando sua ab+e-ão e maldi4endo"a# o espírito agora exige da filosofia nãotanto o saber do que ele é# quanto resgatar por meio dela# aquela substancialidade edensidade do ser Oque tinha perdidoP%?EQ.

1sta problemati4a-ão da questão da origem leva a historicidade a habitar o pr)priocora-ão do ser do homem. 'ssim:

?EI 3<U9'U=0# idem, pp. @IF"?I>?EQ H1D1=# 3enomenologia I, p. ?E

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como o ser humano se transformou de maneira integral em ser hist)rico# nenhumdos conte8dos analisados pelas ci!ncias humanas pode continuar estável ou escapar ao movimento da Hist)ria Oarruinando assim toda pretensão de universalidadeP ?ET.

roposi-ão perigosa# ao menos segundo 3oucault. ois a afirma-ão da

irredutibilidade dos limites temporais que definiriam tudo o que di4 respeito ( vida# (linguagem e ao trabalho s) pode ser feita a partir de uma posi-ão cognitiva supra"hist)rica#que possa se colocar na dimensão de alguma espécie de motor im)vel da hist)ria. aradoxohistoricista clássico que 3oucault utili4a apenas para posteriormente denunciar uma certahip)stase da fun-ão do su+eito com sua impossibilidade de pensar o que se coloca comoexterioridade:

' hist)ria contínua é o correlato indispensável ( fun-ão fundadora do su+eito: agarantia de que tudo que lhe escapou poderá ser devolvidoN a certe4a de que o temponada dispensará sem reconstituí"lo em uma unidade recompostaN a promessa de queo su+eito poderá# um dia [ sob a forma da consci!ncia hist)rica [ se apropriar#novamente# de todas estas coisas mantidas ( distância pela diferen-a# restaurar seudomínio sobre elas e encontrar o que se pode chamar sua morada ?FX.

9ontra esta no-ão de hist)ria dependente de uma certa figura do su+eito# 3oucaultdeverá envolver"se em uma outra forma de reflexão hist)rica# esta baseada na genealogianiet4scheana com seu abandono de todo e qualquer movimento teleol)gico 5ao menossegundo os olhos de 3oucault6.

2as# no interior da economia da experi!ncia intelectual de 3oucault# não é chegadaainda a hora de recorrer ( genealogia. 9omo veremos# isto s) ocorrerá a partir de li-ãoinaugural proferida em &TIX por 3oucault no 9ollSge de 3rance: A ordem do discurso 5que#não por acaso# mimeti4a o título inicial que 3oucault havia imaginado para As palaras e ascoisas# a saber# A ordem das coisas6. 7as 8ltimas páginas de nosso livro# a estratégia éoutra. 0rata"se de apelar ( etnologia e ( psicanálise como discursos que reali4am adisposi-ão crítica de revelar a articula-ão cerrada entre inconsciente e representa-ão.'través da temati4a-ão do inconsciente# a psicanálise poderia nos levar ao reconhecimentodo fato nu do sistema# da regra e da norma# do “ser bruto da ordem% para usar um termoque apareceu no prefácio do nosso livro. Um sistema que aparece como =ei# uma regra que5na sua articula-ão com o conflito6 aparece como $ese+o desprovido de ob+eto empírico euma norma que 5na sua articula-ão com a fun-ão6 aparece como 2orte enquanto o quedomina toda fun-ão psicol)gica. 0r!s dimens,es daquilo que não se deixaria p;r enquantorepresenta-ão da consci!ncia e que s) poderia ser pensado no ponto de transgressão de todagramática da finitude. $aí porque# nada seria mais estranho ( psicanálise do que umaantropologia.

or sua ve4# a etnologia é solidária da desarticula-ão de uma certa Hist)ria que permitiria ao pensamento europeu aparecer como cena na qual se desvela o telos de umlongo processo temporal. 'té porque# 3oucault é sensível ao fato da antropologia estruturalde =évi"trauss ser capa4 de submeter a multiplicidade dos tempos e lugares ao +ogointercambiável das estruturas e# com isto# confrontar a ratio ocidental com suaexterioridade. 9onfrontar a ratio ocidental com um inconsciente das estruturas que a?ET 3<U9'U=0# #es mots et les choses, p. @Q??FX 3<U9'U=0# Ar!ueologia do sa"er, p. &E

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vincula (quilo no qual ela era incapa4 de se reconhecer 5e que s) podia lhe aparecer como pensamento selvagem# pré"l)gico ou primitivo6.

or outro lado# ao determinarem seu ob+eto como a dimensão dos sistemas# dasnormas e regras# desativando distin-,es estritas entre indivíduo e sociedade# tanto psicanálise quanto etnologia se colocariam como campos de saberes nos quais a pr)pria

no-ão de homem não desempenha mais fun-ão alguma:1m rela-ão (s “ci!ncias humanas%# a psicanálise e a etnologia são “contra"ci!ncias%No que não quer di4er que elas são menos “racionais% ou “ob+etivas% que as outras#mas que elas as pegam na contra"corrente# retirando"as de seu pedestalepistemol)gico# e que elas não cessam de “desfa4er% este homem que# nas ci!nciashumanas# fa4 e desfa4 sua positividade?F&.

 7a sua interpreta-ão da psicanálise e da etnologia# 3oucault não deixa sequer deelevar a lingYística estrutural ( condi-ão de teoria pura da ordem# ci!ncia"ideal do “ser dalinguagem% que garantiria a racionalidade de discursos que estariam para além do limiar daepisteme moderna. 9om isto# estaríamos diante de processos de formali4a-ão que nãoapelam mais ( gramática da finitude e da representa-ão pr)pria ao su+eito moderno.rocessos que permitiriam “uma formali4a-ão geral do pensamento e do conhecimento% ?F?.3oucault chega mesmo a falar em uma “nova crítica da ra4ão pura% que se encontraria comas aspira-,es de crítica da representa-ão e da finitude pr)prias ( uma literatura devanguarda que aprendeu a problemati4ar os limites da linguagem e de seus dispositivos.9onstitui"se assim uma espécie de grande quadro ut)pico que ganha for-a nas 8ltimas páginas de nosso livro. Um quadro ut)pico anti"humanista que fa4 profissão de fé do fimiminente de uma época. Um fim que# em tom inegavelmente niet4scheano# anunciaria amorte do homem# sua “inexist!ncia serena% proclamada em nome da: “ explosão do rostodo homem no riso e o retorno das máscaras%?F@. ois: “podemos apostar que o homem sedissolverá# como um rosto de areia no limite no mar%?FE.

 7o entanto# algumas reviravoltas ocorrerão no interior da experi!ncia intelectual de2ichel 3oucault. Bapidamente# ele reconhecerá que nem etnologia estruturalista# nem psicanálise poderão acompanhá"lo nesta praia que transforma em areia aquilo queacreditávamos ser composto de rocha firme. $e fato# o caráter invariável e universal dasleis estruturais em =évi"trauss não poderiam a+udar 3oucault a: “liberar a hist)ria do pensamento de sua su+ei-ão transcendental%?FF. or outro lado# a psicanálise de =acan nãosaberia o que fa4er com este discurso da morte do homem. 7este sentido# nada melhor doque uma confer!ncia de 3oucault# intitulada * !ue é um autor@, na qual =acan estava presente.

 7ela# 3oucault retoma um tema caro a Rlanchot ao afirmar que a escrituracontemporânea liberou"se do tema da expressão sub+etiva a fim de transformar"se noespa-o no qual o su+eito escritor não cessa de desaparecer. 1ste era# de fato# um temarecorrente ( época principalmente gra-as a hegemonia do noueau>roman# na literatura# eao serialismo integral# na m8sica. ' escritura aparece assim como um ato de sacrifício

?F& 3<U9'U=0# idem# p. @T&?F? 3<U9'U=0# idem# p. @TE?F@ idem# p. @T>?FE idem# p. @TQ?FF 3<U9'U=0# Ar!ueologia do sa"er, p. ??I

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através do qual o autor aparece como ausente: “o su+eito escritor desarticula todos os signosde sua individualidade particularN a marca do escritor está apenas na singularidade de suaaus!nciaN ele deve desempenhar o papel do morto no +ogo da escritura%?F>. < nome do autor é apenas uma fun-ão historicamente datada de classifica-ão# delimita-ão# exclusão e recortede práticas textuais# uma constru-ão ideol)gica que visa con+urar a prolifera-ão do sentido.

3oucault chega mesmo a falar em “fun-ão autor%. ' este respeito# ele lembra que os textos elivros come-aram realmente a ter autores quando o autor podia ser punido# quando osdiscursos podiam ser transgressivos# ou se+a# há uma rela-ão profunda entre imputabilidadee produ-ão de um certo regime de circula-ão do discurso.$aí porque 3oucault afirmará: “ afun-ão"autor está ligada ao sistema +urídico e institucional que fecha# determina e articula ouniverso do discurso%?FI. 1la é mais efeito do que fundamento de um certo modo defuncionamento do discurso. $aí novamente esta utopia da despersonali4a-ão que afirma ser  possível uma cultura na qual os discursos circulariam e seriam recebidos sem que a fun-ão"autor aparecesse.

' respeito de tudo isto# =acan lembrará que: “estruturalismo ou não# parece"me nãoser questão# no campo vagamente determinado por esta etiqueta# de nega-ão do su+eito.0rata"se de depend!ncia do su+eitoN o que é extremamente diferenteN e particularmente# nonível do retorno a 3reud# da depend!ncia do su+eito em rela-ão a algo que realmenteelementar e que tentamos isolar sob o termo de significante% ?FQ. <u se+a# a afirma-ão não poderia ser mais clara. =acan não está disposto a simplesmente abandonar a categoria desu+eito# como o quer 3oucault. 'o contrário# ele se filia a toda uma tradi-ão de reflexãosobre a aliena-ão constitutiva do su+eito que encontra raí4es profundas na tradi-ãohegeliana tão despre4ada por 3oucault.

1ste duplo engano deixa 3oucault com a tarefa de encontrar um outro hori4ontete)rico capa4 de dirigir seu hori4onte de constitui-ão de um discurso capa4 de ser# aomesmo tempo# epistemologia crítica das ci!ncias e constitui-ão de um campo de práticasorientado por este logos sem contrários que +á vimos desde A história da loucura. 1 é a partir deste problema armado que 3oucault irá operar uma complexa subsun-ão de sua perspectiva arqueol)gica a um modo de opera-ão vindo da genealogia de 7iet4sche masque# de uma certa forma# +á estava presente na pr)pria %istória da loucura.

?F> 3<U9'U=0# u0est>ce !u0um auteur, p. Q?&?FI idem# p. Q@&?FQ idem# p. QEQ

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Curso Foucault

(ula 13

?a aula anterior não tem texto@

 7a aula passada# vimos algumas quest,es gerais a respeito da no-ão foucaultiana de bio" política# bio"poder e de genealogia do poder. Aimos como tais no-,es fundamentais podiamser compreendidas como o resultado de um deslocamento. ara 3oucault# a crítica da ra4ãomoderna# ob+eto maior da arqueologia do saber# é indissociável de uma crítica profunda(quela categoria que lhe serve de fundamento# a saber# o conceito de su+eito. odemos di4er que# no interior desta crítica# encontramos em 3oucault duas temáticas que se articulam profundamente.

' primeira destas temáticas referia"se ao diagn)stico do esgotamento da filosofia daconsci/ncia, com seu modelo de fundamenta-ão das opera-,es cognitivas de categori4a-ãoe constitui-ão de ob+etos da experi!ncia a partir da estrutura formal de síntese# unidade eidentidade inicialmente acessível através da auto"afec-ão da consci!ncia"de"si. 9omo se acogni-ão fosse# necessariamente# indissociável da pro+e-ão da estrutura da consci!nciasobre o mundo dos ob+etos.

2as a este esgotamento da filosofia da consci!ncia# o pensamento franc!scontemporâneo em geral# e 3oucault em particular# procurou contrapor a necessidade deuma reflexão demorada sobre o inconsciente. ois este esgotamento da filosofia daconsci!ncia foi feito# normalmente# gra-as ( insist!ncia no caráter determinante# para aestrutura-ão das formas do pensar# de uma dimensão propriamente inconsciente. $aí estamaneira pr)pria a 3oucault de procurar expor: “na dimensão pr)pria do inconsciente# asnormas# regras# con+untos significantes que desvelam ( consci!ncias as condi-,es de suasformas e de suas condutas%?FT. 9omo se houvesse uma articula-ão profunda entreinconsciente e transcendental.

' segunda temática que não cansará de retornar no interior da crítica do su+eito no pensamento franc!s contemporâneo será a necessidade de impedir a perpetua-ão de daquiloque um dia 3oucault chamou de  sono antropológico. $este sono antropol)gico s)acordaríamos através daquilo foi sinteti4ado por 2ichel 3oucault através da temática da“morte do homem%. 2as um pouco como o ser em 'rist)teles# a morte do homem se di4 demuitas maneiras. Dostaria de me concentrar em apenas uma. 0rata"se de discutir a maneiracom que tudo se passava como se uma certa figura antropol)gica do homem servisse defundamento silencioso para a configura-ão de formas de pensar que aspiram validadeincondicional e universal. 9omo se não houvesse reflexão sobre a estrutura-ão da forma do pensamento que não devesse seu direcionamento a uma certa antropologia. 2as o que istoquer realmente di4er/

abemos o quanto 3oucault insistiu que: “o homem é uma inven-ão cu+aarqueologia de nosso pensamento mostra facilmente a data recente% ?>X. 2as devemoslembrar que# se o homem nasce +untamente com uma era hist)rica determinada por ummodo de pensar S porque ele é# fundamentalmente# uma forma de pensar. 1ntendamos istoda seguinte forma: podemos come-ar afirmando que o homem seria aquele que redu4 suarealidade sub+etiva ( figura ideal do 1u do su+eito maduro# que saiu das amarras da?FT 3<U9'U=0# #es mots et les choses, aris : euil# &T>># p. @I>?>X 3<U9'U=0# #es mots et les choses, p. @TQ

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inconsist!ncia da infância# que não se deixou encantar pela alteridade da loucura com suaaliena-ão da vontade. 1sta verdadeira redução egológica  presente na constitui-ão dacategoria de “homem% tra4# no seu bo+o# a entifica-ão dos atributos pr)prios ao 1u. Gsto ficaclaro se aceitarmos que o 1u enquanto princípio formal de unidade sintética pressup,e aeleva-ão do princípio de identidade e de não"contradi-ão ( condi-ão de postulados que

terão peso ontol)gico. 1nquanto sede da autonomia da ontade, o 1u pressup,e a cren-aem estratégias de constitui-ão transcendental de ob+etos da experi!ncia. 1nquanto cerne deuma experi!ncia ligada ( analítica da  finitude indicaria um modo específico de limita-ãodo campo da experi!ncia e de distância em rela-ão ao que é apeiron, sem medida#radicalmente <utro ou# como dirá 3oucault# “impensado%. 1stes procedimentos articuladoscon+untamente produ4em aquilo que um dia $eleu4e chamou de imagem do pensamento,maneira que o pensamento tem de constituir ob+etos e processos que apenas reiterarão asregras gramaticais que ele naturalmente aceita como pressuposto não questionável# queapenas naturali4arão um senso comum?>&.

9oloquemos então uma hip)tese. e# por um lado# encontramos no pro+etofoucauldiano de uma arqueologia do saber o reconhecimento da profunda articula-ão entrea no-ão de inconsciente e a categoria do transcendental# pe-a maior para a reflexão sobre oesgotamento da filosofia da consci!ncia# veremos também uma cren-a# várias ve4es presentes# de que# até então# a reflexão sobre o transcendental e suas formas teria sidocontaminada pela sua depend!ncia da antropologia# por “uma confusão entre o empírico e otranscendental% através da qual “a análise pré"crítica do que é o homem na sua ess!nciaadvém a analítica de tudo o que pode se dar em geral ( experi!ncia humana% ?>?. =ivrando oespa-o do que determina a alidade de nossas formas de agir e de pensar 5o transcendental6de sua coloni4a-ão por uma antropologia cu+a g/nese ainda não estava totalmente clara para3oucault# não poderíamos# com isto# encontrar o caminho para a reconstru-ão de umconceito positivo de ra4ão/

$igamos que esta é a questão central de 3oucault a partir dos anos setenta. uareflexão sobre o poder está diretamente associada ( maneira de acordar deste sonoantropol)gico. ois# para 3oucault# pensar sobre o poder é necessariamente pensar sobre processos de constituição e de produção do que n)s nos tornamos# do modelo de homemque somos. rodu-ão de tal ordem que 3oucault não temerá v!"la em opera-ão no su+eitodo conhecimento e no ob+eto a conhecer# isto a ponto de afirmar que: “não há rela-ão de poder sem constituição correlativa de um campo de saber# nem saber que não suponha enão constitua# ao mesmo tempo# rela-,es de poder%?>@. 1ste caráter produtivo do poder seráo grande tema do primeiro volume da %istória da se$ualidade.

( produção da sexualidade

ue o problema da produtividade do poder# o problema da maneira com que regimes desaber constituem práticas disciplinares capa4es de definir nosso modo de rela-ão a n)smesmos e aos outros# se+a temati4ado de maneira privilegiada quando voltamos os olhos (sexualidade: eis algo que não deve nos surpreender. ois se há algo que o século MM produ4iu foi a cren-a de que o falar franco sobre o que é da ordem do sexual implicaria# por 

?>& obre a no-ão de “imagem do pensamento% em $eleu4e ver# sobretudo# $1=1U1# DillesN roust et lessignes# aris: U3# ?XX># pp. &&F"&?I?>? 3<U9'U=0# #es mots et les choses, p. @F??>@ Gdem# Bureiller et punir, p. @>

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um lado# lan-ar lu4 sobre o que somos e como nos relacionamos mas# por outro#transformar o que somos e como nos relacionamos. 9omo se a possibilidade do indivíduomoderno fa4er a experi!ncia de si mesmo como su+eito de uma “sexualidade% fossedispositivo fundamental de sua auto"determina-ão. $igamos claramente que seureconhecimento como su+eito passa necessariamente pela maneira que ele é capa4 de

sub+etivar uma sexualidade. 7este sentido# é inegável que a for-a do pensamento de 3reud e da psicanálise se fa4sentir. 3oucault sabe disto# tanto que sua  %istória da se$ualidade  pode ser vista# de umacerta forma# como uma silenciosa arqueologia da psicanálise. 9omo dirá 'lain Radiou: “$eque 3reud se sente responsável quanto ( sexualidade/ 1le pensa ser o agente de ruptura noreal do sexo# para além mesmo da transgressão de alguns tabus morais ou religiosos/ 0em atremenda convic-ão de ter tocado no sexo# no mesmo sentido que# depois de Aitor Hugo# setocou no verso/%?>E. 's perguntas não poderiam ser mais claras. 0rata"se de afirmar que#depois de 3reud# um novo regime relativo ( palavra que fala do sexual ganha hegemonia.Um modo de falar que modifica profundamente nosso modo de ser# nosso modo de nosrelacionarmos ao dese+o.

 7o entanto# 3oucault participa# neste momento# de uma forte desconfian-a do pensamento franc!s contemporâneo a respeito da psicanálise e de sua maneira de fa4er osexual falar. 9ontrariamente (quilo que vimos em As palaras e as coisas, a posi-ão da psicanálise no interior da episteme moderna mudará. 7este livro# 3oucault ainda afirmava:

1m rela-ão (s “ci!ncias humanas%# a psicanálise e a etnologia são “contra"ci!ncias%No que não quer di4er que elas são menos “racionais% ou “ob+etivas% que as outras#mas que elas as pegam na contra"corrente# retirando"as de seu pedestalepistemol)gico# e que elas não cessam de “desfa4er% este homem que# nas ci!nciashumanas# fa4 e desfa4 sua positividade?>F.

'gora# em  %istória da se$ualidade, a psicanálise aparecerá# mesmo sem ser diretamente nomeada# como este saber que nos coloca diante de uma hip)tese equivocada ede uma ilusão de liberdade descrita por 3oucault da seguinte forma:

e o sexo é reprimido# ou se+a# votado ( proibi-ão# ( inexist!ncia e ao mutismoOcomo a psicanálise nos faria acreditar que ele era antes de seu aparecimentoP# osimples fato de falar dele e de falar de sua repressão tem um ar de transgressãodeliberada. uem sustenta esta linguagem se coloca# até um certo ponto# fora do poderN ele fa4 a ler tremerN ele antecipa# mesmo que apenas um pouco# a liberdadefutura. $aí esta solenidade com a qual ho+e se fala do sexo?>>.

Uma solenidade que s) se explicaria devido ( exist!ncia# em nossa época: “de umdiscurso no qual o sexo# a revela-ão da verdade# a inversão da lei do mundo# o an8ncio deum outro dia e a promessa de uma certa felicidade estão ligados%?>I. $iscurso este queaparece na linha direta da reflexão psicanalítica sobre os modos de repressão dasexualidade.

?>E R'$G<U# 'lainN * século, p. &&??>F 3<U9'U=0# #es mots et les choses# p. @T&?>> 3<U9'U=0# %istoire de la sé$ualité I, p. &@?>I Gdem# p. &F

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2as# antes de continuar# sublinhemos a importância desta articula-ão com a psicanálise. < recurso filos)fico ( psicanálise é uma constante no interior do pensamentofranc!s contemporâneo# isto ao menos desde a fenomenologia de artre e de 2erleau"ontJ. Rasta lembrar a maneira com que artre# ap)s uma crítica conhecida ( pretensainconsist!ncia da no-ão freudiana de um inconsciente pensado principalmente a partir das

opera-,es de recalcamento# termina * ser e o nada exatamente através da proposi-ão deuma psicanálise existencial. odemos citar ainda a maneira com que 2erleau"ontJ prop,e# em seu * isíel e o inisíel, fa4er não uma psicanálise existencial# mas uma psicanálise ontol)gica.

'p)s a fenomenologia# a psicanálise será pe-a maior dos debates em torno doestruturalismo gra-as a =acan. =évi"trauss havia desenvolvido uma no-ão de inconscienteestrutural fundamental para o psicanalista franc!s. $esta con+un-ão entre antropologia e psicanálise# sairá um programa influente de pesquisa que alcan-ará 3oucault e 'lthusser.or fim# um dado comum aos autores maiores do dito p)s"estruturalismo 53oucault#$eleu4e# $errida e =Jotard6 é exatamente o recurso constante a temáticas e problemasadvindos da experi!ncia psicanalítica.

2as se voltarmos ( 3oucault# devemos nos perguntar: quais são as causas destamodifica-ão brutal de perspectiva em rela-ão ( psicanálise/ Uma resposta possívelconcerne o impacto filos)fico de maio de >Q e a influ!ncia de * anti>Gdipo, de $eleu4e eDuattari. * anti>Gdipo acabou conhecido com o livro que mais claramente sustentou asaspira-,es libertárias globais que animaram a revolta de >Q. 0ais aspira-,es foram patrocinadas em larga medida pela recupera-ão de uma crítica (s institui-,es que se voltounecessiramente contra a maneira com que a psicanálise seria dependente da inscri-ão dodese+o no interior das regras do n8cleo familiar# da perpetua-ão de estruturas normativas burguesas de sociali4a-ão que seriam os verdadeiros n8cleos de reprodu-ão do capitalismocomo forma de vida. 7este sentido# o título do livro +á exp,e seu pro+eto “< anti"]dipo:capitalismo e esqui4ofrenia%. <u se+a# a crítica dos modos de sociali4a-ão do dese+o e deconstitui-ão de individualidades baseados no complexo de ]dipo forneceria a chaveinterpretativa para esta rela-ão decisiva de con+un-ão entre “capitalismo% e “esqui4ofrenia%.

3ocault# que chegará a escrever um prefácio para a versão em ingl!s de * anti> Gdipo, reconhece sua proximidade com tal empreitada# +á que se trata 5e aqui ele fala de sua proximidade com o livro de $eleu4e e Duattari6 de “fa4er aparecer aquilo que# na hist)riade nossa cultura# continuou até agora como o mais escondido# o mais oculto# o mais profundamente investido: as rela-,es de poder%?>Q.  ' psicanálise será# a partir de então#inquirida tendo em vista a produtividade de seu poder em conformidade com outrosdispositivos disciplinares das sociedades capitalistas ocidentais. 7ão s) o complexo de]dipo será ob+eto deste inquérito 5como vemos no texto  A erdade e as formas ;urídicas6.0ambém a transfer!ncia# dispositivo central da clínica analítica# será questionada a partir desua proximidade com a confissão 5ver * poder psi!ui)trico6.

1 é exatamente deste movimento que se tratará na %istória da se$ualidade, a saber#de mostrar como um modo de falar sobre o sexo# que procura se passar por um saber#esconde as engrenagens de um certo poder produtivo. 1xposi-ão que# como 3oucaultreconhece em * anti>Gdipo, deverá dar lugar a uma ética# a um modo de ser do dese+o.

 7o entanto# há aqui uma grande diferen-a de 3oucault em rela-ão ( perspectiva de$eleu4e e de Duattari. Um leitura de * anti>Gdipo demonstra# rapidamente# como a

?>Q 3<U9'U=0# Dits et écrist I, p. &E??

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temática da repressão da sexualidade está a todo momento presente. Há uma for-a deruptura vinda do dese+o que não encontra lugar nos modos de reprodu-ão social dassociedades capitalistas. 1sta será a hip)tese a ser criticada por 3oucault. ois# lembrará3oucault# talve4 não tenha existido sociedade que mais falou sobre sexo do que a nossa. or isto:

0rata"se de interrogar o caso de uma sociedade que# desde mais de um século#fustiga de maneira barulhenta sua hipocrisia# fala com prolixidade de seu pr)priosil!ncio# anima"se a detalhar aquilo que ela não di4# denuncia os poderes que elaexerce e promete de liberar"se de leis que a fa4em funcionar ?>T.

$e fato# estranha repressão esta que# ao invés de nos levar ao sil!ncio# nos leva a uma falacada ve4 mais extensa e detalhada sobre aquilo que somos proibidos de falar e detalhar.0rata"se de afirmar que a “análise crítica da repressão% é# no fundo# inseparável dos “efeitosde poder% indu4idos pela “coloca-ão do sexo no interior do discurso%. 0ais efeitos são produ4idos pelo nosso modo de falar# de intensificar# de ficar atento# de incitar. $aí porque3oucault poderá explicar seu pro+eto da seguinte forma:

< ponto importante não consistirá em determinar se tais produ-,es discursivas eseus efeitos de poder condu4em a formular a verdade sobre o sexo ou# ao contrário#a formular mentiras destinadas a ocultá"lo. 0rata"se de expor a vontade de saberque lhe serve# ao mesmo tempo# de suporte e de instrumento?IX.

<u se+a# trata"se de mostrar quais efeitos de poder são derivados de certas modalidades devontade de saber# como uma vontade de saber é um instrumento silencioso de “técnicas polim)rficas de poder%7ão se trata assim de negar a repressão# mas de negar que suatemática possa dar conta da maneira com que o poder sobre a vida age e produ4. 0rata"se delevar a sério a constata-ão de que:

$esde o fim do século MAG# a “coloca-ão em discurso% do sexo# longe de submeter"se a um processo de restri-ão foi submetido# ao contrário# a um processo deincita-ão crescente. 's técnicas de poder se exercem sobre o sexo não obedeceramum princípio de sele-ão rigorosa mas# ao contrário# a dissemina-ão e a implanta-ãode sexualidades polim)rficas. ' vontade de saber não parou diante de um tabu a ser respeitado# mas ela se animou a constituir uma ci!ncia da sexualidade?I&.

] da arqueologia desta estranha “ci!ncia da sexualidade%# deste regime de discurso que v! osexual como ob+eto de uma ci!ncia 5e não necessariamente de uma ética# de um con+unto detécnicas e de práticas etc.6 que será questão na %istória da se$ualidade.

'o menos# esta era a idéia inicial. 7o entanto# a partir do segundo livro# algoacontecerá e pro+eto será# em larga medida# abandonado. 7a verdade# a dimensão crítica do pro+eto dará lugar a uma reflexão de outra nature4a. 3oucault tinha a idéia de escrever# logoem seguida ao primeiro volume# um livro sobre A carne e o corpo, onde seria questão domodos de funcionamento da pastoral cristã e de sua culpabili4a-ão da carne.

?>T Gdem# p. &>?IX Gdem# p. ?X?I& Gdem# p. ?&

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 7o entanto# do primeiro volume aos dois seguintes passam"se oito anos 5&TI> a&TQE6. $urante estes oito anos# 3oucault não escreve livro algum# logo ele que# desde olan-amento de %istória da loucura, em &T>& publica um livro a cada dois ou tr!s anos. 1stelongo período sem publicar indica uma profunda reformula-ão no pro+eto de 3oucault.Ho+e# temos mais clare4a desta reformula-ão gra-as ( edi-ão de seus curso no 9ollSge de

3rance.. 7eles# há de fato uma ruptura que se dá por volta de &TQX com o curso intitulado“ub+etividade e verdade%. Buptura resultante da tentativa de 3oucault em: “estudar os +ogos de verdade na rela-ão de si a si e na constitui-ão de si mesmo como su+eito# tomando por domínio de refer!ncia e campo de investiga-ão o que poderíamos chamar de hist)riado homem de dese+o%?I?. Uma hist)ria que nos abrirá para modos distintos de experi!nciade dese+o e verdade.

( hip/tese repressi"a

 7o segundo capítulo de seu livro# 3oucault sistemati4a sua tese central. 1la consiste emdi4er que é falsa a compreensão de que# a partir do século MAGG# aquilo que é da ordem dosexual teria sido submetido a um regime estrito de censura e repressão. 7a verdade# o quevemos é uma “incita-ão institucional a falar sobre o sexo 5...6 sobre o modo da articula-ãoexplícita e do detalhe indefinidamente acumulado%?I@.

$esde a pastoral cat)lica com seus ritos de confissão# encontramos esta exig!ncia detudo di4er sobre o sexual. Um di4er que se organi4a sob o modo da revela-ão e do exameminucioso de si tendo em vistas a associa-ão da carne ao pecado. 'ssim# aparece esta“in+un-ão tão particular ao ocidente moderno%# a saber:

' tarefa# quase infinita de di4er# de se di4er a si mesmo e de di4er a um outro# tantasve4es quanto possível# tudo o que concerne o +ogo dos pra4eres# sensa-,es e pensamentos inumeráveis que# através a alma e o corpo# tem alguma afinidade como sexo. 1ste pro+eto de uma “coloca-ão em discurso% do sexo foi formado# há muitotempo# no interior de uma tradi-ão ascética e monástica. < século MAGG fe4 deleuma regra para todos?IE.

1ste imperativo de transformar seu dese+o em discurso# de recusar a idéia de que oque é da ordem do sexual possa ser acolhido por um sil!ncio indiferente é# para 3oucault# averdadeira mola do poder. ' pastoral cat)lica fe4 com que todo o dese+o devesse passar  pelo crivo da palavra. 2esmo libertinos# como ade# seriam tributários deste pro+eto defa4er coincidir# em uma coincid!ncia sem falhas# dese+o e palavra# a fala e o impulso:dese+o de tudo ver e saber.

 7o entanto# esta técnica permaneceria ligada ao destino da espiritualidade cristã ouda economia dos pra4eres individuais se ela não tivesse sido integrada# a partir do séculoMAGGG# a um verdadeiro mecanismo de: “incita-ão política# econ;mica# técnica% sobre osexo. 7ão um mecanismo ligado diretamente ( moralidade# mas um mecanismo técnico# portador de um discurso que não é simplesmente aquele da tolerância ou da condena-ão#mas da gestão# do fortalecimento da sa8de p8blica:

?I? 3<U9'U=0# %istoire de la sé$ualité II, p. &@?I@ Gdem# p. ?I?IE Gdem# p. ?T

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< sexo# isso não se +ulga apenas# mas se administra 5...6 7o século MAGGG# o sexoadvém questão de polícia# mas no sentido pleno e forte que se dava então a esta palavra [ não apenas repressão da desordem# mas ma+ora-ão ordenada das for-ascoletivas e individuais 5...6 olícia do sexo# ou se+a# não o rigor de uma proibi-ão#mas a necessidade de regular o sexo através de discursos p8blicos e 8teis ?IF.

1ste é o ponto central. ' modernidade conhece# entre outras coisas# um discursosobre o sexo enquanto setor de uma administra-ão p8blica. 7a verdade# apenas o ocidenteconhecerá esta idéia do sexo como ob+eto de uma ci!ncia. Uma ci!ncia que visa# por exemplo# gerir as popula-,es +á que# no cora-ão do problema político das popula-,esencontra"se o sexo. e um país rico e forte era um país populoso# então algumas quest,escentrais de administra-ão p8blica serão: a análise da taxa de natalidade# a idade docasamento# os nascimentos legítimos e ilegítimos# a precocidade e a frequ!ncia das rela-,essexuais# o efeito do celibato e das interdi-,es# a incid!ncia de práticas contraceptivas# entreoutros. ela primeira ve4# uma sociedade reconhece que seu futuro e fortuna está ligado (maneira com que cada um fa4 uso de seu sexo.

or isto# 3oucault se volta contra a idéia de que a sexualidade infantil teria esperado3reud para ser reconhecida enquanto tal. ois seria inexato di4er que a institui-ão pedag)gica teria imposto o sil!ncio a respeito da sexualidade das crian-as e adolescentes.'o contrário# desde o século MAGGG# ela multiplicou as formas de discurso a seu respeito#constituindo 5e este é o ponto central6 uma codifica-ão estrita de seus conte8dos e umaqualifica-ão exclusiva de seus interlocutores:

] bem provável que se tenha retirado dos adultos e crian-as uma certa forma defalar e que ela tenha sido desqualificada como grosseira# direta# cruel. 2as isto eraapenas a contrapartida e talve4 a condi-ão para o funcionamento de outrosdiscursos# m8ltiplos# entrecru4ados# sutilmente hierarqui4ados e todos fortementearticulados em torno de um feixe de rela-,es de poder ?I>.

1sta transforma-ão do sexo em ob+eto de uma pedagogia# muta-ão que acompanhasua transforma-ão em ob+eto de uma medicina# de uma economia e de uma reflexão +urídica: eis# muito mais do que a “hip)tese repressiva%# a verdadeira mola produtiva do poder. Gsto explica porque 3oucault se v! obrigado a di4er que: “sobre o sexo# a maisinsaciável# a mais impaciente das sociedades é provavelmente a nossa%?II. Uma impaci!nciaque produ4iu a multiplica-ão de discursos que não se submetem mais a um princípiocomum# como ainda era o caso da pastoral cat)lica.

$e toda forma# isto permite a 3oucault colocar em questão este tema tão freqYenteque define o sexo como o que está fora do discurso e que apenas a ruptura de seu segredo poderia abrir o caminho que nos leva ( sua verdade. 7a verdade# não seria o caso de di4er que a sexualidade nada mais é do que um “efeito do discurso%# uma produ-ão discursivaque nada teria a ver com a libera-ão de alguma forma bruta de “energia libidinal% ou “for-a pulsional%/ 7ossa experi!ncia sexual# a maneira que constituímos ob+etos de nossosdese+os# que nos deixamos incitar por interdi-,es e proibi-,es não seria apenas a produ-ãode um modo de funcionamento dos discursos médicos# pedag)gicos# +urídicos e

?IF Gdem# p. @F?I> Gdem# p. E??II Gdem# p. E>

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econ;micos/ 2aneira de di4er que não há nada de natural no campo da sexualidade# não hánenhuma normatividade vital operando no seu interior. 1la seria apenas a dimensão de umanormatividade social que não se di4 enquanto tal.

Gsto nos permite compreender# entre outras coisas# 3oucault se transformou narefer!ncia fundamental para a tradi-ão das chamadas “teorias de g!nero%: teorias que

 procuram expor como sexo é uma produ-ão social e discursiva que procura se naturali4ar através de identidades de g!nero.

( per"ersão do discurso

2as voltemos ao nosso livro. e é verdade que a sexualidade seria o resultado de umcon+unto de dispositivos disciplinares que# através da incita-ão ao discurso# visavamconstituir uma normatividade social na rela-ão do su+eito a seus corpos# seus pra4eres e aooutro# então como explicar este fen;meno# tão pr)prio ao século MGM# de aten-ão exaustiva(s pervers,es/

3oucault lembra como os séculos MAGGG e MGM serão marcados por um esfor-o declassifica-ão e taxionomia a respeito do que ainda ho+e entendemos por pervers,es 5ou parafrenias6. 1le insiste que as leis anteriores ao século MAGGG legislavam sobre o lícito e oilícito tendo em vista# basicamente# as infra-,es (s regras de alian-a matrimonial. or isto#não haveria partilha clara entre as infra-,es a tais regras e os desvios em rela-ão (genitalidade. 'dultério e sodomia# enganar sua mulher ou violar cadáveres# por exemplo#são fen;menos colocados no mesmo plano.

3oi necessário um lento movimento para que tais desvios em rela-ão ( sexualidadefossem constituídos como uma “contra"nature4a% responsável por quadros clínicos como“loucura moral%# “neurose genital%# “desquilíbrio psíquico%ou “degeneresc!ncia%. =entomovimento onde a influ!ncia da religião dará lugar ( gestão médica da sa8de sexual.

 7esta contra"nature4a# será alo+ada as formas do desvio# como se o poder fosse# aomesmo tempo# o processo de defini-ão da norma e de defini-ão das formas do desvio.9omo se as margens da norma fossem +á uma produ-ão interna ao funcionamento dadisciplina. ois o poder age realmente não quando ele nos obriga ( conforma-ão ( normaenunciada# mas quando ele nos oferece# em um movimento quase silencioso# as figuras possíveis da resist!ncia. 'o descrever as pervers,es# o poder# como di4 3oucault# acariciaos olhos# estimula os corpos# dramati4a os movimentos# intensifica as regi,es corporais. 1leimplanta novos modos de pra4eres. or isto# 3oucault fala de um: “mecanismo de duplaimpulsão% no interior do qual poder e pra4er se articulam no interior da mesma enuncia-ão.oder que se deixa invadir pelo pra4er que ele# pretensamente# afasta.

'ssim# as pervers,es não seriam a manifesta-ão de uma polimorfia originária quenunca se enquadraria totalmente nas exig!ncias de uma sexualidade genital orientada (reprodu-ão. 7a verdade# elas seriam o efeito de um +ogo do poder. 'ssim# quando 3oucaultafirma que nossa sociedade moderna é perversa de uma maneira extremamente visível#trata"se de lembrar o tipo de poder que ela fa4 funcionar sobre o corpo e o sexo. oder que procede através da multiplica-ão de sexualidades singulares# pela produ-ão e fixa-ão da“disparidade sexual%. or isto:

< crescimento das pervers,es não é um tema morali4ador que teria obcecado osespíritos escrupulosos dos vitorianos. 1la é o produto real da interfer!ncia de umtipo de poder sobre os corpos e seus pra4eres. ] possível que o <cidente não tenha

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sido capa4 de inventar pra4eres novos e# sem d8vida# ele não descobriu víciosinéditos. 2as ele definiu novas regras para o +ogo dos poderes e pra4eres: o rosto petrificado das pervers,es nele se desenhou?IQ.

?IQ Gdem# p. >>

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Curso Foucault

(ula 1

 7a aula passada# iniciamos a leitura do primeiro volume de  %istória da se$ualidade.

=embrei para voc!s este pro+eto central na filosofia de 3oucault deveria ser compreendido (lu4 da questão referente ( produtividade do poder# ou se+a# ao problema da maneira comque regimes de saber constituem práticas disciplinares capa4es de definir nosso modo derela-ão a n)s mesmos e aos outros. ue este problema se+a temati4ado de maneira privilegiada quando voltamos os olhos ( sexualidade: eis algo que não deve nossurpreender. ois se há algo que o século MM produ4iu foi a cren-a de que o falar francosobre o que é da ordem do sexual implicaria# por um lado# lan-ar lu4 sobre o que somos ecomo nos relacionamos mas# por outro# transformar o que somos e como nos relacionamos.9omo se a possibilidade do indivíduo moderno fa4er a experi!ncia de si mesmo comosu+eito de uma “sexualidade% fosse dispositivo fundamental de sua auto"determina-ão.$igamos claramente que seu reconhecimento como su+eito passa necessariamente pelamaneira que ele é capa4 de sub+etivar uma sexualidade.

=embrei ainda que a  %istória da se$ualidade  podia ser vista# de uma certa forma#como uma silenciosa arqueologia da psicanálise. 9omo dirá 'lain Radiou: “$e que 3reudse sente responsável quanto ( sexualidade/ 1le pensa ser o agente de ruptura no real dosexo# para além mesmo da transgressão de alguns tabus morais ou religiosos/ 0em atremenda convic-ão de ter tocado no sexo# no mesmo sentido que# depois de Aitor Hugo# setocou no verso/%?IT. 's perguntas não poderiam ser mais claras. 0rata"se de afirmar que#depois de 3reud# um novo regime relativo ( palavra que fala do sexual ganha hegemonia.Um modo de falar que modifica profundamente nosso modo de ser# nosso modo de nosrelacionarmos ao dese+o.

 7o entanto# vimos como 3oucault participa# neste momento# de uma fortedesconfian-a do pensamento franc!s contemporâneo a respeito da psicanálise e de suamaneira de fa4er o sexual falar. 1sta fala sobre o sexual estaria fundada na temática darepressão. 0emática que nos permitira di4er haver uma for-a de ruptura vinda do dese+o quenão encontraria lugar nos modos de reprodu-ão social das sociedades capitalistas. 1sta seráa hip)tese a ser criticada por 3oucault. ois# lembrará 3oucault# talve4 não tenha existidosociedade que mais falou sobre sexo do que a nossa. or isto:

0rata"se de interrogar o caso de uma sociedade que# desde mais de um século#fustiga de maneira barulhenta sua hipocrisia# fala com prolixidade de seu pr)priosil!ncio# anima"se a detalhar aquilo que ela não di4# denuncia os poderes que elaexerce e promete de liberar"se de leis que a fa4em funcionar ?QX.

$e fato# estranha repressão esta que# ao invés de nos levar ao sil!ncio# nos leva a uma falacada ve4 mais extensa e detalhada sobre aquilo que somos proibidos de falar e detalhar.0rata"se de afirmar que a “análise crítica da repressão% é# no fundo# inseparável dos “efeitosde poder% indu4idos pela “coloca-ão do sexo no interior do discurso%. 0ais efeitos são produ4idos pelo nosso modo de falar# de intensificar# de ficar atento# de incitar. $aí porque3oucault poderá explicar seu pro+eto da seguinte forma:?IT R'$G<U# 'lainN * século, p. &&??QX Gdem# p. &>

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< ponto importante não consistirá em determinar se tais produ-,es discursivas eseus efeitos de poder condu4em a formular a verdade sobre o sexo ou# ao contrário#a formular mentiras destinadas a ocultá"lo. 0rata"se de expor a vontade de saberque lhe serve# ao mesmo tempo# de suporte e de instrumento?Q&.

<u se+a# trata"se de mostrar quais efeitos de poder são derivados de certas modalidades devontade de saber# como uma vontade de saber é um instrumento silencioso de “técnicas polim)rficas de poder%. 7ão se trata assim de negar a repressão# mas de negar que suatemática possa dar conta da maneira com que o poder sobre a vida age e produ4. 0rata"se delevar a sério a constata-ão de que:

$esde o fim do século MAG# a “coloca-ão em discurso% do sexo# longe de submeter"se a um processo de restri-ão foi submetido# ao contrário# a um processo deincita-ão crescente. 's técnicas de poder se exercem sobre o sexo não obedeceramum princípio de sele-ão rigorosa mas# ao contrário# a dissemina-ão e a implanta-ãode sexualidades polim)rficas. ' vontade de saber não parou diante de um tabu a ser respeitado# mas ela se animou a constituir uma ci!ncia da sexualidade?Q?.

] da arqueologia desta estranha “ci!ncia da sexualidade%# deste regime de discurso que v! osexual como ob+eto de uma ci!ncia 5e não necessariamente de uma ética# de um con+unto detécnicas e de práticas etc.6 que será questão na  %istória da se$ualidade. 7a verdade# apenaso ocidente conhecerá esta idéia do sexo como ob+eto de uma ci!ncia. Uma ci!ncia que visa# por exemplo# gerir as popula-,es +á que# no cora-ão do problema político das popula-,esencontra"se o sexo. e um país rico e forte era um país populoso# então algumas quest,escentrais de administra-ão p8blica serão: a análise da taxa de natalidade# a idade docasamento# os nascimentos legítimos e ilegítimos# a precocidade e a frequ!ncia das rela-,essexuais# o efeito do celibato e das interdi-,es# a incid!ncia de práticas contraceptivas# entreoutros. ela primeira ve4# uma sociedade reconhece que seu futuro e fortuna está ligado (maneira com que cada um fa4 uso de seu sexo. 1sta transforma-ão do sexo em ob+eto deuma pedagogia# muta-ão que acompanha sua transforma-ão em ob+eto de uma medicina# deuma economia e de uma reflexão +urídica: eis# muito mais do que a “hip)tese repressiva%# averdadeira mola produtiva do poder.

$e toda forma# isto permite a 3oucault colocar em questão este tema tão freqYenteque define o sexo como o que está fora do discurso e que apenas a ruptura de seu segredo poderia abrir o caminho que nos leva ( sua verdade. 7a verdade# não seria o caso de di4er que a sexualidade nada mais é do que um “efeito do discurso%# uma produ-ão discursivaque nada teria a ver com a libera-ão de alguma forma bruta de “energia libidinal% ou “for-a pulsional%/ 7ossa experi!ncia sexual# a maneira que constituímos ob+etos de nossosdese+os# que nos deixamos incitar por interdi-,es e proibi-,es não seria apenas a produ-ãode um modo de funcionamento dos discursos médicos# pedag)gicos# +urídicos eecon;micos/ 2aneira de di4er que não há nada de natural no campo da sexualidade# não hánenhuma normatividade vital operando no seu interior. 1la seria apenas a dimensão de umanormatividade social que não se di4 enquanto tal.

?Q& Gdem# p. ?X?Q? Gdem# p. ?&

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!ma ciência da sexualidade

Há historicamente dois procedimentos para produ4ir a verdade do sexo. $e um lado#as sociedades 5e elas são numerosas: a 9hina# o Kapão# a índia# Boma# as sociedadesárabo"mu-ulmanas6 que se dotaram de uma ars erótica. 7a arte er)tica# a verdade é

extraída do pr)prio pra4er# tomado como prático e recolhido como experi!ncia. 7ãoé em rela-ão a uma lei absoluta do permitido e do proibido# não é em absoluto por um critério de utilidade que o pra4er é levado em conta 5...6 7ossa civili4a-ão# aomenos sob um primeiro ponto de vista# não tem uma ars erótica. 7o entanto# ele é a8nica a praticar uma scientia se$ualis. <u melhor# ao ter desenvolvido no decorrer dos séculos procedimentos que se ordenam essencialmente a uma forma de poder"saber rigorosamente oposta ( arte das inicia-,es e ao segredo magistral: trata"se daconfissão?Q@A 

1sta distin-ão entre arte er)tica e ci!ncia da sexualidade é central para 3oucault. e#como vimos na aula passada# a ci!ncia da sexualidade baseava"se em um modo de falar sobre o sexo que encontra suas raí4es no sacramento da confissão# nada disto seráencontrado fora do ocidente. 3oucault chega a di4er que estamos diante de duas formas derela-ão entre sexo e verdade: uma que privilegia a confissão 5que 3oucault define comomodelo +urídico"religioso# ou ainda# +urídico"discursivo de enuncia-ão da verdade6 e outraque seria uma pedagogia da inicia-ão. <u se+a# o ocidente seria# entre outras coisas# umamaneira peculiar de definir o sexual através da “expressão obrigat)ria e exaustiva de umsegredo individual%?QE. < que não poderia ser diferente +á que# para 3oucault# a ra4ãomoderna ocidental é# antes de mais nada# uma forma disciplinar de poder baseada em umaestilística disciplinar do fa4er falar. “$iga"me como voc! fala e te direi como voc! sesubmete%. or isto# 3oucault se pergunta: “ode"se articular a produ-ão da verdade segundoo velho modelo +urídico"religioso da confissão e a extorsão da confid!ncia segundo a regrado discurso científico/%?QF. 7a verdade# nossas sociedades não teriam feito outra coisa.3oucault chega a descrever algumas características maiores da nossa ci!ncia da sexualidadeque permitiram tal sobreposi-ão.

rimeiro# a codificação clínica do Hfazer falar através do desenvolvimento de umcon+unto de signos e sintomas decifráveis 5questionário# interrogat)rio# amanese# hipnoseetc.6. egundo# o postulado de uma causalidade geral e difusa, como se o sexo fossedotado de um poder causal inesgotável e polim)rfico. “7ão há praticamente doen-a ou problema física ao qual o século MGM não imaginou ao menos uma parte de etiologiasexual%?Q>. 0erceiro# o princípio de lat/ncia intrínseca 8 se$ualidade, como se a sexualidadefosse naturalmente dotada de uma clandestinidade# de uma obscuridade que faria de suaconfissão uma tarefa sempre difícil. uarto# o método de interpretação, como se aconfissão trouxesse uma regra de decifragem que refor-a o poder daquele que ouve aconfissão. or fim# a medicalização dos efeitos da confissão. 1ste é um ponto fundamental pois:

?Q@ 3<U9'U=0# %istoire de la sé$ualité I, pp. II"IQ?QE Gdem# p. Q??QF Gdem# p. Q>?Q> Gdem# p. QQ

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< domínio do sexo não será mais colocado sob os registros da falta e do pecado# doexcesso ou da transgressão# mas sob o regime do normal e do patol)gico. $efine"se pela primeira ve4 uma morbidade pr)pria ao sexual# o sexual aparece como umcampo de alta fragilidade patol)gica?QI.

< que temos# ao final deste processo# não é apenas um modelo de produ-ão darela-ão entre sexualidade e verdade. ara 3oucault# este é um setor fundamental de uma“ci!ncia do su+eito%# +á que a causalidade do su+eito# o inconsciente do su+eito# a verdade dosu+eito se encontrará desdobrada no interior do discurso do sexo. $e fato# depois da psicanálise# não há teoria do su+eito sem que levemos em conta a clivagem que aexperi!ncia da sexualidade nos imp,e.

2as voltemos ( distin-ão entre ci!ncia da sexualidade e arte er)tica. erá pelasvias da temati4a-ão desta arte er)tica que os dois outros volumes da  %istória da se$ualidade caminhará. odemos entender esta escolha da seguinte forma: há tempos tenhodito a voc!s que 3oucault insiste na idéia de que o questionamento transcendentaldependeria de uma antropologia. 'ssim# responder ( perguntar: “`as ist der 2ensch/%implicaria assumir regimes de saberes que imp,em modos disciplinares de rela-ão ( si.9aberia ( genealogia denunciar a antropologia que serviria de fundamento mudo para oquestionamento transcendental.

' partir disto# 3oucault organi4ará uma dicotomia entre o transcendental comomodelo +urídico de rela-ão ( si e o cuidado de si enquanto modo de rela-ão do su+eito (verdade# cuidado este que estará temati4ado no terceiro volume da %istória da se$ualidadesob a forma da arte er)tica greco"romana. < modelo +urídico  do transcendental está presente# por exemplo# nas temáticas da lei moral# do tribunal da ra4ão# no regime deuniversalidade categ)rica# na temática das condi-,es normativas de possibilidade etc. Ká ocuidado de si não teria parte com tal modelo por ser composto por prescri-,es que não podem ser compreendidas se admitirmos a dicotomia entre empírico e transcendental.

 7o cuidado de si# a for-a formadora do transcendental daria lugar a uma forma dea+uste entre práticas sociais e “disposi-,es naturais% singulares e que constituem# para umsu+eito# algo como uma dimensão de verdade. 7o entanto# os termos deste a+uste nunca sãocompletamente definidos por 3oucault. 1le fala# em vários momentos# de uma:“intensifica-ão da rela-ão ( si através da qual alguém se constitui como su+eito de seusatos%?QQ# de uma forma “ ao mesmo tempo particular e intensa de aten-ão ao corpo% ?QT ouainda de “ soberania% do indivíduo sobre si mesmo. “ Gntensifica-ão% porque o problemaestá ligado ( for-a# ( modera-ão e ( incontin!ncia. $aí porque: “o excesso e a passividadesão# para um homem# as duas formas maiores da imoralidade na prática dos aphrodisia% ?TX.

 7ota"se que esta constitui-ão soberana de si passa por um deslocamento do simesmo# da dimensão da autonomia individual ( reconcilia-ão com o corpo. $e toda forma#tal soberania precisaria ser melhor definida. 1la é compreendida como uma transforma-ãoque não pode ser vista como resultado de procedimentos disciplinares. $aí a defini-ão detal soberania como uma arte da exist!ncia composta por:

?QI Gdem# p. TX?QQ  %istoire de la sé$ualité III, p. FI?QT Gdem# p. IQ?TX  %istoire de la sé$ualité II, p. >F

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 práticas refletidas e voluntárias através das quais os homens não apenas fixam parasi mesmos regras de conduta# mas procuram se transformarem# modificarem"se emseu ser singular e a fa4er de suas vidas uma obra que porta certos valores estéticos eresponde a certos critérios de estilo?T&.

0al soberania# que levará 3oucault a di4er que o homem mais real é rei de si mesmo#implica capacidade de constitui-ão de si como su+eito moral# mas esta moralidade não podeser compreendida sob o modelo da autonomia. Uma moral cu+o assento deve ser pensadono a+ustamento ao c)digo. 7a verdade# tal soberania leva a uma moral orientada# não para oc)digo# mas para o ético. 'ssim# ao invés das interdi-,es e fronteiras# a teríamos defini-,esdas modalidades de uso dos pra4eres que seria capa4 de levar em conta as circunstâncias# posi-ão pessoal e a+uste. 7ote"se como a figura de uma certa “individualidade% é aquinecessária.

4 dispositi"o da sexualidade 

 7o capítulo central de seu livro# 3oucault se prop,e a falar do “dispositivo dasexualidade%. 1sta no-ão é central e explica claramente o que 3oucault entende por sexualidade. ' prop)sito da no-ão de “dispositivo%# ele dirá:

9e qui +essaie de réperer sous ce nom 5...6 cest premiSrment un ensemblerésolument hétérogSne# comportant des discours# des institutions# desaménagements# darchitectures# des décisions réglementaires# des lois# des mésuresadministratives# des énoncés scientifiques# des propos philosophiques# morales# philatrophiques# bref : du dit aussi bien que du non dit# voil( les éléments dudispositif. =e dispositif lui"m!me# cest le réseau quon peut établir entre ceséléments?T?.

 7)s vemos como 3oucault se serve da no-ão de dispositivo para definir o espa-o danormatividade social# para além das imposi-,es dos enunciados. Um dispositivo é uma redeheterog!nea de normais sociais. 7ada estranho para alguém# como 3oucault# para quem asexualidade é simplesmente uma normatividade social# para quem não há normatividadevital alguma que deva ser levada em conta na nossa compreensão da sexualidade. 7estesentido# o conceito de dispositivo tem uma fun-ão maior: ela nos permite de pensar etemati4ar aquilo que muda# de uma época hist)rica a outra# no interior de nossa experi!nciada sexualidade. 1le nos libera# por exemplo# de procurar alguma forma de “instinto sexual%imutável# impulso natural que apareceria como uma espécie de substância primeira a fundar uma normatividade vital no interior do corpo.

 7o entanto# talve4 a no-ão de dispositivo não nos permita pensar de maneiraadequada exatamente aquilo que teria a estranha for-a de permanecer invariável no sexual#aquilo que# como di4ia =acan# tende a voltar sempre ao mesmo lugar. ara 3oucault#assumir algo desta nature4a nos obrigaria a assumir alguma forma de normatividade vitalem opera-ão na sexualidade# algo que# como vimos# o fil)sofo franc!s deve recusar expressamente. 1le deve recusar a idéia de que# talve4# aquilo que nomeamos “sexualidade%é uma estranha articula-ão entre normatividade vital e normatividade social.?T& Gdem# p. &Q?T? 3<U9'U=0# 2ichelN =e +eu de 2ichel 3oucault

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2as se voltarmos ( reflexão sobre o dispositivo da sexualidade# veremos como3oucault insiste que sua análise continua fundada# de maneira equivocada# nas temáticas pr)prias ao poder soberano. or isto# ele precisa afirmar que nossa representa-ão do poder continua assombrada pela monarquia +urídica. $aí a importância dada aos problemas do poder e da viol!ncia# da lei e da ilegalidade# da vontade e da liberdade. 7o entanto# há

séculos entramos: “em um tipo de sociedade na qual o +urídico pode# cada ve4 menos#codificar o poder ou lhe servir de sistema de representa-ão%?T@. $aí a necessidade de umaanalítica do poder que não tome mais o direito por modelo# mas o dispositivo. ) assim3oucault encontrará o campo da para afirmar:

or poder# parece"me que devemos inicialmente compreender a multiplicidade derela-,es de for-a que são imanentes ao domínio no qual elas se exercem# e que sãoconstitutivas de sua organi4a-ãoN o +ogo que pela via das lutas e afrontamentos lhestransformam# refor-am# invertemN os apoios que tais rela-,es de for-a encontramumas nas outras de maneira a forma cadeia ou sistema ou# ao contrário# asdefasagens# as contradi-,es que isolam umas das outrasN a estratégias enfim nasquais elas encontram efeito e cu+o desenho geral ou cristali4a-ão institucional tomacorpo nos aparelhos estatais# na formula-ão da lei# na hegemonia social ?TE.

1sta idéia de poder é onipresente não porque ela tudo engloba em uma unidade# mas porque ela vem de todos os lugares. 1la não depende de uma intencionalidade consciente para funcionar# ela não resulta de decis,es e escolhas de um su+eito individual. e ele vemde todos os lugares# é fácil perceber também que a no-ão mesma de resist!ncia é ummovimento interno ao poder. < pr)prio poder s) pode existir em fun-ão de umamultiplicidade de pontos de resist!ncia. 9omo se a aus!ncia de unidade do poder nos permitisse pensar um movimento que está# a todo momento# prestes a inverter seus sinais# prestes a produ4ir outras dinâmicas. 9omo se a disciplina e seus dispositivos apenas nolimite pudessem garantir sua eficácia. 9omo se estivéssemos diante de : “um campom8ltiplo e m)vel de rela-,es de for-a no qual se produ4em efeitos globais de domina-ão#mas +amais totalmente estáveis%?TF.

'ssim# a sexualidade poderá aparecer como um ponto de passagem particularmentedenso para as rela-,es de poder entre homens e mulheres# entre +ovens e velhos# pais efilhos# educadores e alunos# administradores e popula-ão. 1la se desenvolve no momentoem que o dispositio de aliança, com seus sistema de casamento e de transmissão# perdeimportância por servir mais de suporte suficiente para os processos econ;micos e asestruturas políticas. < dispositivo de alian-a funcionaria a partir de regras estritas# +á odispositivo de sexualidade conheceria técnicas m)veis e con+unturais. 0al dispositivo dealian-a nunca será ultrapassado completamente# mas ele funcionará a partir de novasdinâmicas. $aí a transforma-ão da família em espa-o de constitui-ão da sexualidade e deseus +ogos. 0ransforma-ão tão presente na psicanálise e suas no-,es ligadas ao complexode ]dipo.

3oucault chega a descrever quatro grandes dispositivos que# a partir do século MAGGGse constituirão como eixos desta rela-ão de poder no interior da sexualidade: a6 ahisteri4a-ão do corpo feminino# b6 a pedagogi4a-ão do sexo infantil# c6 a sociali4a-ão das

?T@  %istoire de la sé$ualité I # p. &&Q?TE Gdem# p. &???TF Gdem# p. &@F

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condutas de procria-ão e d6 a psiquiatri4a-ão dos pra4eres perversos. 7estes quatro casos#tratam"se de formas de produ-ão da sexualidade se+a através da defini-ão do feminino# dacrian-a# da norma e do desvio.

Beer e Foucault

'qui# podemos sentir a peculiaridade da posi-ão de 3oucault. or exemplo# 2ax`eber# ao insistir que a racionalidade econ;mica dependia fundamentalmente da disposi-ãodos su+eitos em adotar certos tipos de conduta# lembrava que nunca haveria capitalismo sema internali4a-ão psíquica de uma ética protestante do trabalho e da convic-ão# estranha aocálculo utilitarista e cu+a g!nese deve ser procurada no calvinismo. ]tica esta que `eber encontrou no ethos protestante da acumula-ão de capital e do afastamento de todo go4oespontâneo da vida. < trabalho que marcava o capitalismo como sociedade de produ-ão eraum trabalho que não visava exatamente o go4o do servi-o dos bens# mas a acumula-ãoobsessiva daqueles que: “não retiram nada de sua rique4a para si mesmo# a não ser asensa-ão irracional de haver cumprido devidamente a sua tarefa% 5`eber# ?XX&# p. F>6.`eber chega a falar em uma “san-ão psicol)gica% 5p. &X?6 produ4ida pela pressão ética esatisfeita através da reali4a-ão de um trabalho como fim em si# ascético e marcado pelaren8ncia ao go4o. < que o leva a insistir que: “< summum "onum desta ética# a obten-ãode mais e mais dinheiro# combinada com o estrito afastamento do todo gozo espontJneo daida é# acima de tudo# completamente destituída de qualquer caráter eudemonista oumesmo hedonista% 5p. E?6. ' irracionalidade deste processo de racionali4a-ão do trabalho#ao menos a partir de uma l)gica eudemonista ou hedonista# pode nos indicar como todasociali4a-ão é normativa# ela é normatividade que se imp,e ( vida com suas exig!ncias desatisfa-ão pulsional. 2ax `eber não havia mostrado outra coisa ao insistir que a g!nese daética protestante do trabalho na constitui-ão da racionalidade do capitalismo era solidáriado ascetismo e da restri-ão ao go4o.

 7o entanto# conhecemos várias críticas ( plausibilidade desta “hip)tese repressiva%#sendo que uma das principais vem de 2ichel 3oucault. 1m  %istória da se$ualidade,3oucault não deixa de criticar este vínculo entre ascetismo e consolida-ão da sociedadecapitalista de produ-ão. 1le insiste que as tecnologias de si pr)prias ao mundo burgu!smoderno não podem ser compreendidas como simples dispositivos repressivos montadoscontra um corpo libidinal metafisicamente pressuposto# substrato natural que apareceriacomo base para as opera-,es do poder. 'o contrário# deveríamos: “abandonar o energitismodifuso que sustenta o tema de uma sexualidade reprimida por ra4,es econ;micas%53oucault# &TI># p. &F&6. ) assim poderíamos compreender que a modernidade foi umlongo processo de constitui-ão 5e não de repressão6 da sexualidade# implementa-ão de um poder disciplinar que constituiu tanto mecanismos de incita-ão a modos de investimentolibidinal reconhecidos socialmente quanto figuras de resist!nciaN +á que o verdadeiro poder não se funda apenas em opera-,es de gestão coercitiva de padr,es normativos deconforma-ão# mas# principalmente# na produ-ão dos pr)prios modos de resist!ncia (“domina-ão%. 3oucault quer liberar a reflexão do poder de temáticas vinculadas ( opressão#isto a fim de permitir a melhor compreensão do caráter criador de um poder que engendra#um bio"poder que incita modos de investimento libidinal# assim como modos de conflito.

0endo isto em vista# 3oucault pode di4er# por exemplo# que os processos deentifica-ão do ascetismo e da desqualifica-ão da carne analisados por 2ax `eber eraminicialmente# na verdade# técnicas de: “intensifica-ão do corpo# de problemati4a-ão da

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sa8de e das suas condi-,es de funcionamento% 5?XX&#  p. &>?6. 2aneira de assegurar alongevidade e a não"corrup-ão da descend!ncia. 9ontra estas práticas disciplinares queconstituem a sexualidade não se trataria de consolidar críticas aos processos de interversãodas expectativas de racionalidade em regimes de domina-ão de si. ' verdadeira críticaconsistiria em# de uma forma ou de outra# “desativar% os dispositivos de sexualidade#

cortando o vínculo tacitamente aceito entre sexo e lugar da verdade# suspendendo aeconomia libidinal alimentada por processos disciplinares. 7o entanto# há duas considera-,es a fa4er a respeito desta perspectiva de 3oucault.

rimeiro# uma análise psicanaliticamente orientada não teria maiores dificuldades emaceitar a temática de um bio"poder que engendra dispositivos de sexualidade. =embremosque o problema maior levantado por 3reud a respeito dos modos de internali4a-ão da =eiatravés do supereu consiste exatamente em mostrar como dinâmicas de repressão setransformam em modo neur)tico de satisfa-ão# mostrar como aquilo que nos adoece é fontede go4o. 7este sentido# a hip)tese repressiva é apenas a descri-ão de um modo deinternali4a-ão de práticas disciplinares.

2as é fato que a temática da “repressão% nos leva á pressuposi-ão de um corpolibidinal “naturali4ado%# isto no sentido de não ser totalmente redutível ( condi-ão de efeitoda ordem do discurso. 7ão há porque negar este ponto# assim como não há porque negar sua importância em temáticas# como a adorniana# de interversão da ra4ão em procedimentode dominação da “nature4a interna%. 2elhor seria mostrar como o pr)prio 3oucault émuitas ve4es obrigado a retomar um substrato corporal para além da esfera da ordem dodiscurso# isto a fim de sustentar procedimentos de crítica ao poder ?T>. <u se+a# melhor seriamostrar como não é fácil se livrar da “hip)tese repressiva%.

 

?T>  Kudith Rutler percebeu claramente esta ambigYidade de 3oucault# principalmente em um pequeno textodedicado ao caso de uma hermafrodita# Herculine Rarbin# que é descrita como vivendo no “limbo feli4 danão"identidade% 5Aer Rutler# &TTT6.

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Curso Foucault

(ula 15

 7a aula de ho+e# terminaremos a leitura do primeiro volume da %istória da se$ualidade. 7a

aula passada# vimos como 3oucault apresentava uma distin-ão fundamental entre ci!ncia dasexualidade e arte er)tica. 3oucault chega a di4er que estamos diante de duas formas derela-ão entre sexo e verdade: uma que privilegia a confissão 5que 3oucault define comomodelo +urídico"religioso# ou ainda# +urídico"discursivo de enuncia-ão da verdade6 e outraque seria uma pedagogia da inicia-ão. <u se+a# o ocidente seria# entre outras coisas# umamaneira peculiar de definir o sexual através da “expressão obrigat)ria e exaustiva de umsegredo individual%?TI. < que não poderia ser diferente +á que# para 3oucault# a ra4ãomoderna ocidental é# antes de mais nada# uma forma disciplinar de poder baseada em umaestilística disciplinar do fa4er falar. “$iga"me como voc! fala e te direi como voc! sesubmete%. or isto# 3oucault se pergunta: “ode"se articular a produ-ão da verdade segundoo velho modelo +urídico"religioso da confissão e a extorsão da confid!ncia segundo a regrado discurso científico/%?TQ. 7a verdade# nossas sociedades não teriam feito outra coisa.

erá pelas vias da temati4a-ão desta arte er)tica que os dois outros volumes da %istória da se$ualidade caminhará. odemos entender esta escolha da seguinte forma: hátempos tenho dito a voc!s que 3oucault insiste na idéia de que o questionamentotranscendental dependeria de uma antropologia. 'ssim# responder ( perguntar: “`as ist der 2ensch/% implicaria assumir regimes de saberes que imp,em modos disciplinares derela-ão ( si. 9aberia ( genealogia denunciar a antropologia que serviria de fundamentomudo para o questionamento transcendental.

' partir disto# 3oucault organi4ará uma dicotomia entre o transcendental comomodelo +urídico de rela-ão ( si e o cuidado de si enquanto modo de rela-ão do su+eito (verdade# cuidado este que estará temati4ado no terceiro volume da %istória da se$ualidadesob a forma da arte er)tica greco"romana. < modelo +urídico  do transcendental está presente# por exemplo# nas temáticas da lei moral# do tribunal da ra4ão# no regime deuniversalidade categ)rica# na temática das condi-,es normativas de possibilidade etc. Ká ocuidado de si não teria parte com tal modelo por ser composto por prescri-,es que não podem ser compreendidas se admitirmos a dicotomia entre empírico e transcendental.

 7o cuidado de si# a for-a formadora do transcendental daria lugar a uma forma dea+uste entre práticas sociais e “disposi-,es naturais% singulares e que constituem# para umsu+eito# algo como uma dimensão de verdade. 7o entanto# os termos deste a+uste nunca sãocompletamente definidos por 3oucault. 1le fala# em vários momentos# de uma:“intensifica-ão da rela-ão ( si através da qual alguém se constitui como su+eito de seusatos%?TT# de uma forma “ ao mesmo tempo particular e intensa de aten-ão ao corpo% @XX ouainda de “ soberania% do indivíduo sobre si mesmo. “ Gntensifica-ão% porque o problemaestá ligado ( for-a# ( modera-ão e ( incontin!ncia. $aí porque: “o excesso e a passividadesão# para um homem# as duas formas maiores da imoralidade na prática dos aphrodisia% @X&.

?TI Gdem# p. Q??TQ Gdem# p. Q>?TT  %istoire de la sé$ualité III, p. FI@XX Gdem# p. IQ@X&  %istoire de la sé$ualité II, p. >F

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 7ota"se que esta constitui-ão soberana de si passa por um deslocamento do simesmo# da dimensão da autonomia individual ( reconcilia-ão com o corpo. $e toda forma#tal soberania precisaria ser melhor definida. 1la é compreendida como uma transforma-ãoque não pode ser vista como resultado de procedimentos disciplinares. $aí a defini-ão detal soberania como uma arte da exist!ncia composta por:

 práticas refletidas e voluntárias através das quais os homens não apenas fixam parasi mesmos regras de conduta# mas procuram se transformarem# modificarem"se emseu ser singular e a fa4er de suas vidas uma obra que porta certos valores estéticos eresponde a certos critérios de estilo@X?.

0al soberania# que levará 3oucault a di4er que o homem mais real é rei de si mesmo#implica capacidade de constitui-ão de si como su+eito moral# mas esta moralidade não podeser compreendida sob o modelo da autonomia. Uma moral cu+o assento deve ser pensadono a+ustamento ao c)digo. 7a verdade# tal soberania leva a uma moral orientada# não para oc)digo# mas para o ético. 'ssim# ao invés das interdi-,es e fronteiras# a teríamos defini-,esdas modalidades de uso dos pra4eres que seria capa4 de levar em conta as circunstâncias# posi-ão pessoal e a+uste. 7ote"se como a figura de uma certa “individualidade% é aquinecessária.

 7o entanto# por outro lado vimos como 3oucault insistia que a análise dodispositivo da sexualidade continuava fundada# de maneira equivocada# nas temáticas pr)prias ao poder soberano. or isto# ele precisa afirmar que nossa representa-ão do poder continua assombrada pela monarquia +urídica. $aí a importância dada aos problemas do poder e da viol!ncia# da lei e da ilegalidade# da vontade e da liberdade. 7o entanto# háséculos entramos: “em um tipo de sociedade na qual o +urídico pode# cada ve4 menos#codificar o poder ou lhe servir de sistema de representa-ão%@X@. $aí a necessidade de umaanalítica do poder que não tome mais o direito por modelo# mas o dispositivo. ) assim3oucault encontrará o campo da para afirmar:

or poder# parece"me que devemos inicialmente compreender a multiplicidade derela-,es de for-a que são imanentes ao domínio no qual elas se exercem# e que sãoconstitutivas de sua organi4a-ãoN o +ogo que pela via das lutas e afrontamentos lhestransformam# refor-am# invertemN os apoios que tais rela-,es de for-a encontramumas nas outras de maneira a forma cadeia ou sistema ou# ao contrário# asdefasagens# as contradi-,es que isolam umas das outrasN a estratégias enfim nasquais elas encontram efeito e cu+o desenho geral ou cristali4a-ão institucional tomacorpo nos aparelhos estatais# na formula-ão da lei# na hegemonia social @XE.

1sta idéia de poder é onipresente não porque ela tudo engloba em uma unidade# mas porque ela vem de todos os lugares. 1la não depende de uma intencionalidade consciente para funcionar# ela não resulta de decis,es e escolhas de um su+eito individual. e ele vemde todos os lugares# é fácil perceber também que a no-ão mesma de resist!ncia é ummovimento interno ao poder. < pr)prio poder s) pode existir em fun-ão de umamultiplicidade de pontos de resist!ncia. 9omo se a aus!ncia de unidade do poder nos

@X? Gdem# p. &Q@X@  %istoire de la sé$ualité I # p. &&Q@XE Gdem# p. &??

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 permitisse pensar um movimento que está# a todo momento# prestes a inverter seus sinais# prestes a produ4ir outras dinâmicas. 9omo se a disciplina e seus dispositivos apenas nolimite pudessem garantir sua eficácia. 9omo se estivéssemos diante de : “um campom8ltiplo e m)vel de rela-,es de for-a no qual se produ4em efeitos globais de domina-ão#mas +amais totalmente estáveis%@XF.

'ssim# a sexualidade poderá aparecer como um ponto de passagem particularmentedenso para as rela-,es de poder entre homens e mulheres# entre +ovens e velhos# pais efilhos# educadores e alunos# administradores e popula-ão. 1la se desenvolve no momentoem que o dispositio de aliança, com seus sistema de casamento e de transmissão# perdeimportância por servir mais de suporte suficiente para os processos econ;micos e asestruturas políticas. < dispositivo de alian-a funcionaria a partir de regras estritas# +á odispositivo de sexualidade conheceria técnicas m)veis e con+unturais. 0al dispositivo dealian-a nunca será ultrapassado completamente# mas ele funcionará a partir de novasdinâmicas. $aí a transforma-ão da família em espa-o de constitui-ão da sexualidade e deseus +ogos. 0ransforma-ão tão presente na psicanálise e suas no-,es ligadas ao complexode ]dipo.

Morte e "ida

 7o 8ltimo capítulo# 3oucault descreverá mais claramente sua compreensão do poder soberano e sua inadequa-ão em rela-ão ao dispositivo da sexualidade. 1le come-alembrando que: “durante muito tempo# um dos privilégios característicos do poder soberanoera o direito de vida e de morte%@X>. 0al direito de levar ( morte e de deixar viver# na eraclássica# estava ligado a situa-,es nas quais o soberano encontrava"se amea-ado. <u se+a#ele estava condicionado ( defesa do soberano e sua sobreviv!ncia. =embremos mais umave4 o que 3oucault fala sobre o crime na era clássica:

< crime# além de sua vítima imediata# ataca o soberanoN ele lhe ataca pessoalmente porque a lei vale como a vontade do soberanoN ele lhe ataca fiscamente porque afor-a da lei é a for-a do príncipe 5...6 < direito de punir será pois como um aspectodo direito que o soberano detém de fa4er a guerra contra seus inimigos 5...6 osuplício Osempre ligado ( penaP tem pois uma fun-ão +urídico"política. 0rata"se deum cerimonial para reconstituir a soberania ferida momentaneamente 5...6 euob+etivo é menos o de restabelecer um equilíbrio do que expor# até seu pontoextremo# a dessimetria entre o su+eito que ousou violar a lei e o soberano onipotenteque fa4 valer sua for-a@XI.

 7o entanto# 3oucault percebe uma modifica-ão decisiva na era moderna:

< princípio: poder matar para poder viver# que sustentava a tática dos combatestransformou"se em princípio de estratégia entre estadosN mas a exist!ncia emquestão não é mais esta# +urídica# da soberania. 1la é a exist!ncia biol)gica de uma popula-ão@XQ. 

@XF Gdem# p. &@F@X> Gdem# p. &II@XI Gdem# pp. FQ"FT@XQ Gdem# p. &IQ

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e o poder até então se exercia como rea-ão a sua exist!ncia# ve+a"se o direito defa4er a guerra e a pena de morte# na era moderna o poder aparece como modo de lear (vida e de re;eitar na morte. Aimos como 3oucault compreendia que# a partir do séculoMAGG# este poder pr)prio ( era moderna teria se constituído a partir de dois p)los de

desenvolvimento profundamente interligados. < primeiro# disciplinar# nos forneceria umaanatomo>política do corpo humano. Ká o segundo# composto por “controles reguladores%#forneceria uma "io>política da população2 ou se+a#  disciplinas do corpo e regula-,es da popula-ão. 1sta +un-ão de anatomo"política e de bio"política# de disciplinas do corpo e deregula-,es da popula-ão# será o que devemos entender por bio"poder. 1la imporá ao poder a fun-ão de administra-ão dos corpos e gestão calculista da vida# isto através dodesenvolvimento rápido de disciplinas diversas 5escolas# colégios# casernas# ateliers# asilos# pris,es# hospitais6# assim como# no campo das práticas políticas e de observa-,esecon;micas# de problemas de natalidade# de longevidade# de sa8de p8blica# de habitat# demigra-ão# em breve# técnicas numerosas para obter o assu+eitamento dos corpos e ocontrole das popula-,es.

3oucault nos lembra que tal dupla polaridade do poder disciplinar explica aimportância dada por nossa sociedade ( sexualidade. ois ela está no ponto de contato entreuma anatomo"política do corpo humano e uma bio"política da popula-ão# ela é a via deacesso# ao mesmo tempo# ( vida do corpo e ( vida da espécie: “$e uma maneira geral# na +un-ão do corpo e da popula-ão o sexo advém um alvo central para um poder que seorgani4a em torno da gestão da vida# ao invés de se organi4ar em torno da amea-a damorte%@XT.

0al muta-ão no funcionamento do poder permitiu a 3oucault# por outrolado# afirmar que o ob+eto das lutas políticas será paulatinamente a vida# e não o direito. <u se+a# é adefini-ão de vida bem"sucedida que será o ob+eto maior das lutas políticas. Uma defini-ãoque nem sempre precisará se manifestar como modifica-ão do direito. 'o invés do 1stado +usto fundado no direito +usto# teríamos a singularidade da vida como ob+eto do trabalhosoberano de sub+etiva-ão.

or outro lado# 3oucault insiste em uma articula-ão importante entre sistemacapitalista e bio"poder:

1ste bio"poder foi um elemento indispensável para o desenvolvimento docapitalismoN este s) p;de ter sido assegurado através da inser-ão controlada doscorpos no aparelho de produ-ão e gra-as a um a+uste dos fen;menos de popula-ãoaos processos econ;micos@&X.

0al inser-ão exigiu um fortalecimento da vida e# principalmente# uma gestãodefinidora dos parâmetros de uma vida saudável e bem"sucedida. ' partilha entre normal e patol)gico é uma das molas fundamentais do poder. Aimos como 3oucault re+eita a tese^eberiana da solidariedade entre o desenvolvimento do capitalismo e o enrai4amento deuma moral ascética ligada ( ética protestante do trabalho. ara ele# o bio"poder não pode ser explicado a partir desta chave de leitura. ' hip)tese ^eberiana# outra vertente# +untamentecom 3reud# da hip)tese repressiva# não é capa4 de compreender como o desenvolvimentotécnico permitiu a gestão e a ma+ora-ão da vida. ois# através da sexualidade# é questão@XT Gdem# p. &T@@&X Gdem# p. &QF

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 principalmente da sa8de# da descend!ncia# da ra-a# do futuro da espécie e# sobretudo# davitalidade do corpo social.

Gsto permitiu uma modifica-ão importante aventada por 3oucault na passagem do poder soberano ao poder disciplinar. 'o invés do modelo +urídico da lei com suaenuncia-ão categoria# universal e incondicional# enuncia-ão vinculada a um poder central

reconhecido# teríamos a prolifera-ão de mecanismos de normas enunciadas por m8ltiplasinstitui-,es não submetidas a um poder central. 'o invés da lei com seu c)digo rígido#teríamos a normatividade de especialistas que falam da vida# da sexualidade a partir damultiplicidade de estruturas que comp,em a disciplina.

#exualidade sem sexo

or outro lado# o aparecimento de uma nova rela-ão entre hist)ria e vida: %osi-ãodupla da vida que a coloca ao mesmo tempo no exterior da hist)ria# como seu limite biol)gico# e no interior da historicidade humana# penetrada por suas técnicas de saber e de poder%@&&. 7otemos como# neste caso# não é a vida que aparece como portadora de hist)ria#como se os conflitos vitais pudessem aparecer como causadores de hist)ria. 7a verdade# avida ou aparece como normatividade exterior ( hist)ria ou como campo de interven-ão denormatividades hist)ricas. 7ão haveria algo como a produ-ão de normatividades hist)ricasa partir da vida.

 7a verdade# este problema nos remete a uma questão que o pr)prio 3oucault secoloca a respeito de sua perspectiva. ois alguém poderia di4er que sua análise dasexualidade como dispositivo equivale a pleitear efeitos sem suporte# ramifica-,es privadasde raí4es# uma sexualidade sem sexo. or isto 3oucault se pergunta se a análise dasexualidade como dispositivo político implica a elisão do corpo# da anatomia# do biol)gicoe do funcional:

=onge do corpo ter sido esquecido# trata"se de fa4!"lo aparecer em uma análise ondeo biol)gico e o hist)rico não se seguiriam um depois do outro# como noevolucionismo dos antigos soci)logos# mas se ligariam segundo uma complexidadecrescente na medida que se desenvolvem as tecnologias modernas de poder quetomam a vida por alvo@&?.

' este respeito# 3oucault chega a falar de uma “hist)ria dos corpos% e da maneiracom que investimos o que há de mais material neles. 1sta hist)ria visaria# entre outrascoisas# mostrar como a no-ão de “sexo% é também um dispositivo que reagruparia# em umaunidade artificial# elementos anat;micos# fun-,es biol)gicas# condutas# sensa-,es# pra4eres.0al unidade artificial produ4iria a ilusão de um princípio causal a ser descoberto por todosos lados. $aí uma afirma-ão central como:

< sexo# esta instância que parece nos dominar e este segredo que nos parecesub+acente a tudo que somos# este ponto que nos fascina devido ao poder que elemanifesta e ao sentido que esconde# poder ao qual pedimos que revele o que somos

@&& Gdem# p. &QT@&? Gdem# p. ?XX

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e nos libere o que nos define# o sexo não passa de um ponto ideal que aparece comonecessário devido ao dispositivo da sexualidade e ao seu funcionamento @&@.

<u se+a# longe de ser um substrato a partir do qual o poder atuaria# ele seria oelemento mais ideal e especulativo de um dispositivo que procura naturali4ar um processo

 pelo qual todos deveriam passar para ter acesso a sua pr)pria inteligibilidade# ( totalidadede seu corpo e de sua identidade. e durante séculos ele foi estigmati4ado como a loucura eo pecado# agora ele foi elevado ( condi-ão de verdade e elemento soberano. Uma eleva-ãoque apenas seria a perpetua-ão de um modo de domina-ão bio"político que nos gostaria defa4er acreditar que o sexo está do lado do real# enquanto a sexualidade estaria do lado dasconstru-,es simb)licas. < que nos explicaria porque: “quando o <cidente# há muito tempo#descobriu o amor# ele lhe deu um pre-o suficiente alto para fa4er com que a morte fosseaceitável# ho+e# é o sexo que pretende ter esta equival!ncia# a mais alta de todas%@&E.

 7este ponto# 3oucault nos deixa uma reflexão política extremamente importante.1le compreende claramente que a sexualidade e o corpo é uma questão central da política.'ntes dele# os fran_furtianos haviam cunhado o termo jdessublima-ão repressivaj paralembrar como o discurso do capitalismo tardio precisa do  gozo administrado  queimpulsiona a plasticidade infinita do universo do consumo# ou se+a# da regula-ão do go4ono interior de um universo mercantil estruturado e controlável. ' sociedade de consumotransforma a gestão da sexualidade em mola de funcionamento central do poder. 7a faseatual do capitalismo# o poder é# acima de tudo# se$.

1ste processo pode chegar ao paroxismo. ois o poder não precisa funcionar maisapenas por Wadministra-ão reguladora do go4oW# mas por uma certa Wadministra-ão dainsatisfa-ãoW que fa4 com que a pr)pria ruptura ao ordenamento social se+a movimentoestimulado e interno ( sua pr)pria perpetua-ão. ' transgressão# longe de uma figura maior da resist!ncia# é produ4ida de maneira muito mais efetiva pelo pr)prio poder# por um poder que nos aprisiona através da constitui-ão de uma região 5a sexualidade6 onde todatransgressão poderá ser absorvida. or isto# o pior equívoco político é imaginar que noscontrapomos a uma l)gica que# simplesmente# talve4 não exista mais.

 7este sentido# 3oucault nos lembra como apelar para o poder disruptivo do dese+ona tentativa de “quebrar o gelo do capitalismo%# como di4iam $eleu4e e Duattari# não noslevará muito longe. 0alve4 3oucault nos abra uma via para demonstrar que precisamos# nãode uma política do dese+o# mas de uma  política ascética# ou se+a# que não passe mais pela politi4a-ão do sexo e do corpo. ois em uma situa-ão hist)rica na qual as formashegem;nicas de vida no capitalismo fundamentam"se em uma economia libidinal capa4 deabsorver a indetermina-ão an;mica da pulsão# a desarticula-ão das estruturas identitárias#talez só reste 8 política retirar o corpo e o se$o do centro do poder . 7ão para mais umave4 reprimí"los# mas para liberá"los de dispositivos de controle capa4es de absorver atémesmo a diferen-a. Betirar o corpo e sexo do centro do poder significa afirmar que o poder nada pode di4er sobre eles# que a política nada pode di4er sobre eles. Uma aus!ncia de palavras que mostra como sexo e corpo são liberados quando eles são postos em um regimede indiferen-a em rela-ão ( diferen-a@&F. uando esta indiferen-a for alcan-ada# a economialibidinal que ho+e é a mola da política poderá ser desativada.

@&@ Gdem# p. ?XF@&E Gdem# p. ?X>@&F ' respeito de uma política da indiferen-a em rela-ão ( diferen-a# ver principalmente R'$G<U# 'lainNBaint aul ou la fondation de lKuniersalisme, aris: uf#

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