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 Da (Anti)Reforma Urbana brasileira a um novo ciclo de lutas nas cidades - ESCRITO POR PEDRO FIORI ARANTES - SEXTA, 08 DE NOVEMBRO DE 2013 Nos países ava!a"os, e# $%e a &'(se e&o)#(&a *a+e% #a(s o'+e e +'(./es "e "a'es o'a# "'ea"os "o o'!a#e+o p*(&o pa'a o s(s+e#a (a&e('o, o "ese#p'eo e o "esae+o "os oves eva'a# 4s '%as e p'a!as "as 'a"es &("a"es ("(a"os e o&&%p(es5 Nos países 6'a*es, o( o 7*as+a9 :;(a<a= 4s "(+a"%'as e 4s "(ve'sas o'#as "e op'ess>o #((+a'-'e((osa5 Mas, $%a o #o+(vo "a s 'e vo +a s 'e&e +es o B'as( , pa ís 7e#e ' e +e9 e a+? po %&o +e #p o 7se sa !>o 9 "a e&o o#(a o *a @ P(& o "a ( a! >o, 'e" %! >o "os íve(s "e &'es&(#e+o, es&"aos "e &o''%p!>o s>o &a%sas (s%(&(e+es pa'a %s+((&a' #( ./es "e pessoas as '%as os a+os "(6'(os "e %.o e# +o"o o país, so*'e+%"o as 'a"es &("a"es, e $%e se%e# a( "a .o e, espa'sos, #as a+e+es5  A ( a , v( vía#os o B'as( "a +(#a "?&a"a &e '+o í ve "e &' es&(#e+o e&o )#(&o &o +( %a "o a%#e +o "o e#p' eo, "o &o s%#o e "o &' ?"(+ o #o*( ("a"e so&(a , p'o 'a #as &o #pe sa+ '(os "e +'a s e'&(a "e 'e "a (&e+(vo ao 7e#p'ee"e"o'(s#o9 "e +o"os os +(pos 'e&o'"es a p'o"%!>o, "e &a''os a &o##o"(+(es s+a+%s "e po+&(a a'í&oa e #(e'a "es&o*e'+a "as 'ese'vas "o p'?-sa &o# a #('ae # "a 'e"a pe+' o e('a ('' ( a "o o país "e(a#os "e se' "eve"o'es pa'a se'#os &'e"o'es "o FMI, "e a%os passa#os a e e#p o "o Ba &o M% "(a *a' 'a#os a ACA, a#p (a#os o Me'&os% , eva#os ossas e#p'esas pa'a a '(&a e a&a!a#os a p'es("&(a "a OMC pa'a a''e#a+a', a.a#os a &o''("a pa'a .ospe"a' espe+6&%os o*a(s, &o#o a Copa "o M%"o e as O(#pía"as5 E(#, o país "e(o% "e se' &oa"%va+e e +o'o%-se %# "os p'o+ao(s+as o &o&e'+o #%"(a "as a!/es5  Se ? ass(#, &o#o, "e %#a .o'a pa'a o%+'a, +%"o $%e (a *e# pa'e&e (' #a@ M%(+as &o(sas "es#e+e# o% 'ea+(v(Ga# esse &e6'(o &o'-"e-'osa "o B'as( e#e'e+e, #as +aveG a p'(&(pa "eas sea a (v(a*(("a"e &')(&a "e ossas #e+' poes5 O &'es& (#e+o e&o)#(&o e os íve(s 'e&o'"es "e (ves +(#e+ o >o #e.o'a'a# as &o"(!/es %'*aas, #as, peo &o+'6'(o, eva'a# ao (#(+e

Da (Anti)Reforma Urbana Brasileira a Um Novo Ciclo de Lutas Nas Cidades - ESCRITO POR PEDRO FIORI ARANTES

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Texto de PEDRO FIORI ARANTES

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Da (Anti)Reforma Urbana brasileira a um novo ciclo de lutas nas cidades - ESCRITO POR PEDRO FIORI ARANTES - SEXTA, 08 DE NOVEMBRO DE 2013Nos pases avanados, em que a crise econmica bateu mais forte e trilhes de dlares foram drenados do oramento pblico para o sistema financeiro, o desemprego e o desalento dos jovens levaram s ruas e praas das grandes cidades indignados e occupies. Nos pases rabes, foi o basta! (kifaya) s ditaduras e s diversas formas de opresso militar-religiosa. Mas, qual o motivo das revoltas recentes no Brasil, pas emergente e at pouco tempo sensao da economia global? Pico da inflao, reduo dos nveis de crescimento, escndalos de corrupo so causas insuficientes para justificar milhes de pessoas nas ruas nos atos dirios de junho em todo o pas, sobretudo nas grandes cidades, e que seguem ainda hoje, esparsos, mas latentes. Afinal, vivamos no Brasil da ltima dcada certo nvel de crescimento econmico continuado; aumento do emprego, do consumo e do crdito; mobilidade social, programas compensatrios de transferncia de renda; incentivo ao empreendedorismo de todos os tipos; recordes na produo, de carros a commodities; status de potncia agrcola e mineral; descoberta das reservas do pr-sal com a miragem da renda petroleira irrigando o pas; deixamos de ser devedores para sermos credores do FMI, de alunos passamos a exemplo do Banco Mundial; barramos a ALCA, ampliamos o Mercosul, levamos nossas empresas para a frica e alcanamos a presidncia da OMC; para arrematar, ganhamos a corrida para hospedar espetculos globais, como a Copa do Mundo e as Olimpadas. Enfim, o pas deixou de ser coadjuvante e tornou-se um dos protagonistas no concerto mundial das naes. Se assim, como, de uma hora para outra, tudo que ia bem parece ir mal? Muitas coisas desmentem ou relativizam esse cenrio cor-de-rosa do Brasil emergente, mas talvez a principal delas seja a inviabilidade crnica de nossas metrpoles. O crescimento econmico e os nveis recordes de investimento no melhoraram as condies urbanas, mas, pelo contrrio, levaram ao limite do impossvel a vida nas cidades. Esse um dos paradoxos de fundo, na origem do nosso basta!. Se a forma urbana das metrpoles pode dizer algo sobre a sociedade brasileira e os sentidos da nossa (de)formao nacional, ou de nossa precria e incompleta cidadania, no preciso ser especialista para perceber que o Brasil, como projeto de civilizao visto pelo ngulo das nossas cidades , est longe de resultar em algo integrado, coerente e igualitrio. H um avano da barbrie urbana concomitante ao avano da cidade-mercadoria. A maioria de nossas principais cidades vive situaes recorrentes de caos e calamidade, apesar da abundncia relativa recente. Nos ltimos anos, vivemos o boom imobilirio e o boom automobilstico ambos impulsionados pelo governo federal que colaboraram no para o crescimento da qualidade da vida urbana, mas para sua crescente deteriorao. Aquilo deu nisso Temos, supostamente, as leis e os instrumentos urbansticos considerados os mais avanados do mundo, um Ministrio das Cidades, o Estatuto das Cidades (nossa lei da Reforma Urbana), planos, conselhos, fundos, em vrios nveis administrativos. Tudo resultado de anos de luta popular, mas tambm da sua institucionalizao, graas prevalncia de certa tecnocracia espalhada em centenas de administraes pblicas, universidades, gabinetes e ONGs, que canalizou a ao direta de desobedincia civil (o ciclo das ocupaes) na direo da prtica responsvel de quem prope novos instrumentos legais, participa de conselhos de fundos pblicos e seus programas governamentais, tudo dentro da ordem (o ciclo institucional).Constatamos hoje que a quase totalidade desses instrumentos legais no aplicada, sobretudo no que diz respeito a garantir a funo social da propriedade, sobretaxar grandes propriedades privadas, imveis abandonados ou especulativos, forar a urbanizao de terrenos ociosos, cobrar a dvida ativa de devedores por meio da dao de imveis, combater os crimes ambientais realizados pelos ricos, barrar despejos forados fazendo valer o direito inalienvel moradia (pela Constituio Federal, o direito propriedade privada no Brasil relativo) e, por fim, orientar e planejar o crescimento das cidades em favor das maiorias, da qualidade de vida dos cidados e contra sua apropriao como mais um negcio do capital, agora em sua fase financeira e globalizada. O Programa Democrtico-Popular e seu captulo da Reforma Urbana no apenas no realizou o que prometeu, mas deu no seu contrrio, numa Anti-Reforma, ou numa privatizao/mercantilizao crescente das cidades, tratadas como mais um ramo dos negcios. A face social da Reforma Urbana democrtico-popular foi sendo recalcada a favor de solues de mercado, das parcerias pblico-privadas e da gesto focalizada da pobreza receiturio do Banco Mundial bem aplicado pelo Brasil (hoje na condio de formulador das mesmas receitas e seus ajustes). Faamos um breve recuo histrico. Nos anos 1980 e incio dos 1990, houve um primeiro ciclo da Reforma Urbana, ainda menos institucionalizada, que esteve combinada com as primeiras administraes municipais do PT, a ao dos ncleos de base e das comunidades eclesiais de base, com suas diversas associaes de moradores, a formao dos movimentos urbanos e suas articulaes, entre elas com um pensamento renovado na universidade, com seus laboratrios e aes de campo em favelas e periferias. Foi quando se reconheceu, pela primeira vez, nas polticas pblicas e na academia, a cidade oculta, fora dos planos e leis, autoconstruda pelos trabalhadores. Surgem naquele momento polticas dirigidas a essas reas, fora da cidade do mercado, e que em muitas capitais abrigavam (e ainda abrigam) mais da metade da populao. O novo urbanismo democrtico-popular promove inverses de prioridades, projetos e obras de urbanizao de favelas no lugar da remoo forada, que era a prtica comum anterior , a regularizao fundiria, a construo de praas, escolas, saneamento e drenagem urbana, a produo de moradias por mutiro e autogesto, com qualidade superior s construtoras, polticas de assistncia social de novo tipo, com experincias de economia solidria, alm dos oramentos participativos, que caracterizavam o modo petista de governar. Iniciativas que foram naquele momento importantes referncias da transformao social, de dilogo entre intelectuais, ativistas e trabalhadores, mas que passaram a ser esvaziadas de sentido poltico e transformadas numa espcie de tecnologia de gesto de massas urbanas empobrecidas. A nfase na participao, da construo das casas pea oramentria, perdeu o sentido de construo de poder popular e tornou-se uma forma de atrelar os movimentos agenda dos governos e ocupar mais tempo que o necessrio dos militantes em inmeras reunies e representaes pouco efetivas, enredados em decises secundrias dentro de um jogo em que as cartas, frequentemente marcadas, j estavam sendo dadas pelo setor privado. O movimento pela Reforma Urbana, mesmo na sua fase mais criativa, tambm no chegou a ultrapassar algumas barreiras fundamentais, sobretudo no avanou no questionamento da propriedade privada do solo urbano que por 350 anos da histria brasileira foi de livre acesso. A terra tornou-se cativa, isto , foi privatizada no momento em que a escravido rua e que os homens cativos eram alforriados. A Lei de Terras, de 1850, ano em que o trfico negreiro tornou-se ilegal, antecipava a despossesso dos trabalhadores assalariados em relao terra para morar. O sistema se modernizava e armava o jogo para a venda da fora de trabalho como nico meio para alcanar a moradia e qualquer outro bem de subsistncia: o trabalhador assalariado deveria pagar pela terra cativa, que at ento fora livre. No programa da Reforma Urbana democrtico-popular, a propriedade privada no foi questionada e combatida. Ao contrrio, deveria ser regulada e distribuda a todos. Contra o latifndio urbano a soluo era o minifndio privado, como na Reforma Agrria. Na prtica, isso significou, mesmo nas experincias mais avanadas, projetar e construir loteamentos convencionais, em geral com lotes abaixo do mnimo permitido pela legislao, nico meio de equacionar a compra da terra, at a construo de prdios em condomnios fechados. A propriedade privada seguiu ditando o modelo (da poltica arquitetura), pois o objetivo no foi super-la, mas reparti-la com todos.Pleiteava-se o lote, a casa e alguma infraestrutura urbana. Avanou-se pouco em relao aos espaos coletivos, em direo a novas formas de produo, educao e sade sob gesto dos movimentos populares, como ocorreu com mais frequncia nos assentamentos de Reforma Agrria. No mximo, ao lado das moradias, erguia-se um centro comunitrio, uma padaria, uma quadra esportiva e, se possvel, guaritas e muros. Formas de propriedade pblica e estatizao do solo eram recusadas (com exceo do caso especial de Diadema, e de poucos projetos de aluguel social em So Paulo, tidos hoje como equvocos), vistas como planificao antidemocrtica, tpica do socialismo real ou de regimes autoritrios, como nossa ditadura militar. Contudo, a base da Reforma Urbana europeia e de seus Estados de bem-estar social tambm foi o controle parcial da terra pela propriedade pblica, com moradias estatais de aluguel subsidiado, construdas e reguladas pelo governo, como forma de alocao planejada e relativamente igualitria das populaes nos territrios. Tal modelo, como se sabe, supostamente em crise desde meados dos anos 1970, foi parcialmente desmontado por polticas neoliberais (a Inglaterra de Thatcher, por exemplo, chegou a privatizar todo seu parque pblico de moradias). Mesmo formas de propriedade coletiva ou cooperativada tambm no foram amplamente defendidas e testadas pelos ativistas da Reforma Urbana. O influente modelo uruguaio de construo de moradias por ajuda mtua em suas cooperativas de habitao chegou ao Brasil pela metade: veio o trabalho em mutiro mas sem a propriedade coletiva, ou seja, o momento de produo das casas era associativo mas seu consumo fragmentado em propriedades privadas individuais (e os espaos comunitrios, culturais e educacionais ficaram aqui atrofiados). A insurgncia e autogesto dos trabalhadores no teve como prosperar, cerceada por um sistema de valores e prticas que lhe era contrrio, pois dependia, depois do mutiro, da expanso do ato cooperativo para a propriedade coletiva em todos os nveis. A aceitao da propriedade privada tambm encontrou apoio nas comunidades de base da Igreja, que pregavam um socialismo cristo de pequenos proprietrios. Os militantes da Economia Solidria, por sua vez, no deram importncia devida produo solidria da cidade, dirigindo seus esforos para apoiar cooperativas de produo de mercadorias, como a reciclagem de lixo, artesanato, alimentos e alguns poucos produtos industrializados.Assim, entre os movimentos sociais havia uma confuso/sobreposio entre direito moradia e direito propriedade, apresentados como sinnimos. No regime militar ganhara a alcunha de sonho da casa prpria. Ampliar o acesso moradia parecia ser o mesmo que ampliar o acesso propriedade privada agora com o slogan renovado de minha casa, minha vida. Confuso que interessa s elites, evidentemente, ao reforar a propriedade privada como regra e princpio positivo perseguido por todos.Pode-se comparar esse freio poltico-ideolgico da Reforma Urbana brasileira ao que Florestan Fernandes indicou a respeito da viso positiva do assalariamento pela classe trabalhadora brasileira. O mito do emprego como incluso social dirigiu a energia dos trabalhadores para a luta por ascenso social ao invs da crtica ao capitalismo da a prevalncia do sindicalismo de resultados, sem defesa da autogesto da produo, sem enfrentamento com o sistema.Em ambos os casos, na cidade e na fbrica, nos movimentos urbanos e nos sindicatos, no se levou adiante o combate propriedade privada e ao assalariamento. Da que nunca se defendeu no Brasil (e mesmo pouco se conheceu) o modelo cubano de Reforma Urbana, com expropriao de imveis ociosos, manses ou casas de veraneio (apesar da acusao de Collor de que, com Lula presidente, uma famlia de sem-teto iria morar em cada casa da classe mdia), ou ainda o fim do aluguel banido em Cuba antes mesmo de declarado o carter socialista da Revoluo. Nunca se reivindicou moradia gratuita aos que precisam (a gente no quer nada de graa o senso comum incutido), apesar da luta para que a moradia constasse na Constituio Federal como direito fundamental do cidado. Aceitou-se a regularizao fundiria nas favelas e loteamentos informais, mesmo sem infraestrutura e moradia adequadas. Pretendeu-se aplicar programas de titulao em massa, em nome da segurana na posse e tambm como regularizao do capitalzinho-moradia (a casa titulada) para que os moradores tomassem mais crdito (como no Peru de Fujimori, com 5 milhes de ttulos de propriedade, incluindo favelas nos Andes sem infraestrutura alguma, como forma de criar capital hipotecvel para pequenos empreendedores, como defendia De Soto). Ou, ainda, financiamentos aos muturios da casa prpria, representando dcadas de endividamento para famlias com baixssima seguridade social, riscos de despejo e inadimplncia. E o pior, o tamanho e a qualidade da moradia definidos de acordo com a renda e a capacidade de pagamento de cada morador (resultando em acintosas moradias de trinta e tantos metros quadrados e em faixas de atendimento focalizadas), no de acordo com as necessidades de sua famlia, do bairro ou da cidade. Modelo que gera iniquidade, mas atende minimizao de riscos e viabilidade econmica da operao de crdito envolvida, segundo o Banco Mundial, que assessorou e financiou programas similares no Chile, Mxico, frica do Sul etc. A aceitao da propriedade privada como regra inviolvel do jogo, a falta de ousadia e um certo pragmatismo na gesto da pobreza empurraram a agenda da Reforma Urbana a ponto desta confundir-se com os discursos e prticas do setor imobilirio, dos governos de direita e do Banco Mundial. Afinal, no sabemos mais como seria essa cidade da Reforma Urbana. Quais suas qualidades outras, contrrias ao que est a? Como seria viver nela e constru-la? Quais os nexos entre Reforma Urbana e transformao social, que se expressariam numa nova forma de cidade? Os inmeros instrumentos, programas, conselhos, fundos e o prprio Estatuto das Cidades no resultaram em uma nova viso da cidade e dos sentidos da vida urbana, das relaes entre sociedade, territrio e ambiente construdo. Mesmo os projetos para mutires e favelas, restritos a lotes e permetros bem definidos, no se desdobravam em perspectivas mais amplas de cidade, suas infraestruturas, seus espaos pblicos. De fato, no se imaginou (desenhou ou escreveu) como seria essa (re)Forma Urbana, suas qualidades materiais e simblicas, as novas condies de vida, as caractersticas dos bairros e dos centros urbanos, seus lugares de uso pblico, a relao com a natureza e a paisagem, as formas de mobilidade, os sistemas de saneamento, os espaos da poltica, da memria, do corpo etc. A Reforma Urbana democrtico-popular, focada nos meios, nos instrumentos, pouco avanou no pensamento substantivo sobre a cidade, nos fins. No h imagem, no h forma, no h narrativa para essa cidade almejada no h projeto e utopia. Se a Reforma Urbana recusou o urbanismo moderno, sua forma e sua ideologia, que tem em Braslia sua expresso/contradio mxima cidade para um novo pas, construda pelos que no puderam nela morar , por sua vez, abdicou da prpria disciplina do urbanismo, enquanto capacidade projetual articuladora e antecipadora da cidade pensada. Negao que impediu antecipaes mais claras do que se pretendia. O desafio seria reassumir o urbanismo, noutros termos, no como ideologia do Estado e do capital, mas como campo projetual igualmente renovado, como exerccio de criao coletiva, capaz de imaginar essa cidade (re)formada da cidade como experincia vivida sua dimenso poltica, simblica e mesmo utpica.O conservadorismo poltico-ideolgico e a falta de imaginao e vontade projetual da Reforma Urbana levaram a esquerda a entregar o desenho da cidade ora aos urbanizadores de favelas ora, o que muito pior, ao prprio mercado imobilirio e a aceitar a sua forma urbana. Levou-a tambm a rechaar outras propostas ousadas, entre elas a da tarifa zero nos transportes, ainda nos anos 1980, o que implicaria noutra forma de mobilidade e de cidade. A tarifa zero era defendida por um grupo pequeno na gesto de Luiza Erundina (1989-92) e foi derrotada no apenas pela mdia e a opinio pblica, mas tambm dentro do prprio PT. nibus gratuito e sem catraca era visto como um delrio, apesar de hoje novamente em pauta e com apoio de uma parcela significativa da populao. O movimento de Reforma Urbana, centrado no problema da moradia, no chegou a constituir uma agenda sobre mobilidade como direito urbano fundamental, meio de acesso a outros direitos, muito menos sua gratuidade. A catraca no foi posta em questo, tal como a propriedade privada. E ainda aceitou-se a gesto e prestao privada (e cartelizada) de servios de transportes urbanos. Trataremos disso adiante. possvel reconhecer um movimento de capitulao paralelo, na base e nas lideranas, em questes decisivas da Reforma Urbana. Na base, como mencionamos, era estimulado o sentimento pr casa prpria e o direito moradia como direito propriedade. Na cpula do movimento disseminava-se posio similar, a favor do sistema: convencer o capital imobilirio a atender os mais pobres e no apenas o topo da pirmide social brasileira. Assim, adubavam-se as sementes que promoveriam a inverso de sentido da nossa Reforma Urbana: a naturalizao da propriedade privada e a aliana com o capital para ampliar o mercado e incluir a classe trabalhadora na sua mquina de (des)fazer cidade. Os pobres deveriam parar de autoconstruir a moradia ou fazer mutiro, meios arcaicos de se produzir habitao no mundo da mercadoria, para tornarem-se compradores, a prazo e com certo subsdio, da mercadoria-moradia. As bases estavam lanadas: o projeto democrtico-popular propunha uma aliana de classes por uma Reforma Urbana sem conflitos e com mercado para todos. Basta rever o debate dos anos 1990, os textos desse perodo, os consultores internacionais que por aqui passaram e o Projeto Moradia elaborado pelo Instituto Cidadania, do PT. Na agenda da Reforma Urbana, no final dos anos 1990, as construtoras e o mercado imobilirio seriam os protagonistas, e no mais os movimentos sociais em luta. Mas o capital, agora aliado, teria que aceitar algum controle, da a necessidade de regul-lo, com leis, conselhos, instrumentos, que pouco puderam refrear sua natural voracidade. Ampliar o mercado era uma palavra de ordem, queremos capitalismo de verdade nas nossas cidades, outra. Consultores do modelo habitacional chileno, do Banco Mundial, BID e de institutos norte-americanos acorriam para nos dizer o que fazer. No PT, com a alegao de acabar com o dficit habitacional a qualquer custo, eram elaborados estudos e planilhas da engenharia financeira para reativar uma mquina de crescimento habitacional parecida com o BNH dos militares (visto at com saudosismo por alguns). O que levou o Partido e movimentos de luta por Reforma Urbana, por exemplo, a defenderem, nos anos 2000, a PEC da moradia, lado a lado com os empresrios do setor todos pela causa da habitao... Fazer o bolo urbano crescer para depois dividi-lo importante lembrar, quando avaliamos as metamorfoses da Reforma Urbana brasileira, que os formuladores de polticas urbanas ligados ao PT defenderam e mesmo introduziram, a partir dos anos 1990, vrios dos mecanismos ps-modernos de privatizao das cidades: operaes urbanas, operaes interligadas, concesses urbansticas, venda de certificados de potencial construtivo adicional, parcerias pblico-privadas, grandes projetos urbanos, megaeventos etc. Os urbanistas do Partido foram personagens importantes na circulao e importao de modelos internacionais de gesto urbana financeirizada e seu city marketing (apesar de alguns terem revisto essa posio nos ltimos anos). Foram divulgadores no Brasil dos sistema chileno de habitao e seu mercado financeiro-imobilirio, de Puerto Madero em Buenos Aires e do modelo Barcelona, levando consultores internacionais e operaes urbanas a todos os rinces do pas, a cidades que queriam atrair investidores e participar do competitivo mercado de cidades venda (com suas vocaes, isenes fiscais e golpes de marketing). O mantra era acelerar a acumulao capitalista nos circuitos imobilirios, fazer as cidades mquinas de crescimento para arrecadar mais-valias urbanas e aumentar o oramento pblico em tempos de restrio fiscal a novos endividamentos. Uma frmula mgica que logo se mostrou ilusria para os fins sociais, e que serviu a outros propsitos, incluindo o financiamento de campanhas. Na gesto Marta Suplicy (2000-2004), em So Paulo, uma parcela dos urbanistas petistas comeou a perceber que a aliana com o capital e a difuso de operaes urbanas tinham sado de controle quando onze operaes foram introduzidas no Plano Diretor e aprovadas sem o devido debate algumas delas beneficiando grupos especficos e levantando outras suspeitas. Acabada a era do modo petista de governar, que marcou a primeira fase da Reforma Urbana democrtica-popular, agora prevalecia o pragmatismo da aliana com os produtores capitalistas da cidade. As foras sociais, levadas a segundo plano, foram conduzidas a participar de conselhos e discutir Planos Diretores, delimitar ZEIS (zonas especiais de interesse social) e opinar na alocao de recursos ainda exguos para enfrentar os enormes problemas urbanos. A anestesia do movimento social era ampliada com a distribuio de cargos em mandatos parlamentares e nas administraes pblicas, o que reduzia a autonomia e colaborava para ampliar o consenso dos gabinetes. No fim dos anos 1990 e incio dos 2000, resultado dos estragos promovidos pelo neoliberalismo desemprego e desamparo social, despejos e polticas urbanas higienistas , e com o PT na oposio, ocorre um miniciclo de ascenso popular e novas ocupaes. Em So Paulo, no Rio, Porto Alegre, Recife, entre outras cidades, eram ocupados por movimentos organizados dezenas de imveis vazios nos centros, trazendo cena moradores de cortios e o tema da gentrificao (substituio de populaes) nas renovaes urbanas (cujo modelo era o Pelourinho higienizado de ACM), o direito cidade e aos seus centros com infraestrutura. Articulaes novas aparecem, entre encortiados, moradores de rua, ambulantes, estudantes, grupos de teatro e de direitos humanos, resultando em So Paulo, por exemplo, no Frum Centro Vivo. Ocorrem rachas no movimento de Reforma Urbana e surgem outros movimentos de luta por moradia fora da rbita direta do PT, autnomos ou ligados a partidos mais esquerda. Os movimentos rurais tambm ensaiam criar movimentos urbanos prprios e projetos de moradia de novo tipo. Na luta por transportes, com a articulao dos jovens por passe livre, comea a surgir um movimento nacional pela tarifa zero e pela qualidade na prestao dos servios de transportes coletivos. Na eleio de Lula, em 2002, um sopro de esperana (ou de iluso) veio com a criao do Ministrio das Cidades. Apesar das inovaes polticas e administrativas que o Ministrio permitiu com a articulao de programas setoriais de transportes, saneamento, habitao e desenvolvimento urbano, a ampliao da participao com novos conselhos e fundos , a poltica habitacional patinava (com o pfio programa de Crdito Solidrio e o rescaldo do PAR, de FHC), o Estatuto das Cidades no era aplicado nos Planos Diretores municipais, no havia uma poltica pblica de terras, enquanto ampliava-se o crdito para as empresas imobilirias brasileiras crescerem, produzindo um boom imobilirio estrondoso e uma onda de valorizao sem precedentes das propriedades urbanas. Com o objetivo de injetar recursos nas cidades via mercado financeiro e construtoras, os petistas faziam o bolo imobilirio crescer, supostamente para depois dividir. No toa, Delfim Netto, ex-ministro da fazenda do Regime Militar (quando inventou a metfora do bolo) e conselheiro econmico nmero um de Lula, e seu partido, o PP, ganham em 2005 o Ministrio das Cidades, indicando o novo ministro como forma tambm de acalmar a base em mais um escndalo de corrupo. Desde ento, o PP est frente das Cidades e, em So Paulo, controla a mquina de fazer casas estadual (a CDHU) e a Secretaria de Habitao da Prefeitura Haddad. Se para fazer a poltica do capital, nada melhor do que entregar diretamente aos seus representantes, abrigados num partido de extrema direita, herdeiro da ditadura. O ponto de chegada da (Anti)Reforma Urbana petista, ao mesmo tempo seu fim de linha e sua realizao, o Programa Minha Casa, Minha Vida (MCMV). Trs milhes de moradias esto sendo produzidas nos ltimos cinco anos, com a alegao de ataque em grande escala ao dficit habitacional, quase integralmente (cerca de 98%) sob a batuta do setor privado, usando recursos pblicos e promovendo uma onda de aumento do preo da terra em todo o pas. No MCMV, quem faz poltica de terras o setor privado, como tambm ele quem define o local e o padro de urbanizao, a arquitetura, a tecnologia a ser adotada, e assim por diante. O Estado abdicou de uma poltica pblica de terras e desenvolvimento urbano, abdicou de ter inteligncia projetual sobre as cidades e de qualific-las. Quem opera o MCMV, alm de 13 grandes construtoras, um banco a Caixa Econmica Federal, cujo presidente um dos urbanistas do PT , que segue a racionalidade financeira de clculo de riscos comerciais de crdito consignado e um check list de requisitos mnimos para aprovao dos empreendimentos (fiscalizao que muitas vezes at terceirizada). Apoia-se na lei de alienao fiduciria, que d segurana s empresas na retomada de imveis de inadimplentes e permite, afinal, avanar no mercado para populaes precarizadas. A promoo da casa popular apresentada, assim, como soluo compensatria da Reforma Urbana que no ocorreu, e melhor elo da conciliao de classes entre capital e trabalho uma vez que beneficiaria a ambos. Na aliana pela casa prpria no haveria interesses opostos: forja-se um consenso entre a necessria lucratividade dos capitais, os ganhos eleitorais dos polticos, a venda de terras valorizadas pelos proprietrios e o benefcio social dos atendidos pelo programa. A valorizao imobiliria produzida pelo MCMV e pela ampliao do crdito imobilirio levou a crescimentos vertiginosos do preo da terra (180% em So Paulo e 250% no Rio de Janeiro nos ltimos 5 anos). A prpria tabela do MCMV para a sua casa mais simples (com menos de 40 m2), em So Paulo, comeou com R$ 52 mil em 2009 e hoje est em R$ 96 mil (com o complemento estadual), e mesmo ultrapassando este valor, com doao de terras pblicas via desapropriao municipal, crescendo assim bem acima da inflao. Trata-se, primeira vista, de uma onda de valorizao imobiliria rentista que parece beneficiar a todos, dos grandes proprietrios aos pequenos, que veem seu capitalzinho imobilirio valorizar-se e tm a certeza de que sempre valeu a pena estar ao lado da propriedade privada. Contudo, essa valorizao da terra cria uma situao desfavorvel aos trabalhadores, ampliando a diferena entre renda imobiliria e renda do trabalho (salrios). Hoje cada vez mais caro comprar e alugar a moradia, os aumentos de IPTU sero inevitveis, acima da inflao e dos salrios. Da a chance de ampliao do endividamento e da inadimplncia, chegando atualmente a 70% em algumas faixas de financiamento, incluindo o MCMV, que, por isso, parece estar com os dias contados. Dessa valorizao no surgiram cidades melhores, mais justas e integradas. Quanto mais se investe, mais caras e piores ficam um aparente paradoxo, mas explicvel no sistema em que vivemos. Pases com grandes projetos habitacionais como o nosso, no qual se privilegiam quantidades ao invs de qualidades, e desconsidera-se o processo complexo de fazer cidades, produziram uma srie de desastres urbanos e sociais, muitos deles irreversveis. Por mais que se ataque o dficit de teto para morar, esse modelo de produo da casa-mercadoria no reverte nosso principal dficit, que o de falta de qualidade urbana, pois a urbanizao que promove desurbanizadora (e desoladora). Inspiradas na produo em massa de carros populares, e dispostas na cidade como se fossem ptios de estacionamento, essas casas no por acaso foram batizadas (pelo atual presidente do BNDES) de moradias 1.0. Crdito e renncia fiscal para nosso apocalipse motorizado A est a outra ponta de nosso desastre urbano: o carro para todos e a apologia do automvel, do petrleo e da cana como motores da economia. A aposta petista de crescimento econmico com conciliao de classes tambm ocorreu com o abrao entre metalrgicos e indstrias multinacionais de automveis (aliana que j vinha sendo sinalizada desde as cmaras setoriais, nos anos 1990, com a premissa de gerar empregos e entupir as cidades de carros). Essa aposta foi reforada pelos inmeros e escandalosos incentivos e renncias fiscais para as multinacionais, substituio das lavouras de alimentos por plantao de cana-combustvel (baseada no trabalho degradante do boia-fria) e direcionamento da construo pesada para a ampliao das infraestruturas destinadas aos automveis. O caso emblemtico, alm dos tneis bilionrios, a ponte estaiada na Marginal Pinheiros em So Paulo, projeto do PT, chamariz para o mercado imobilirio, cenrio de fundo do jornal da Globo e novo carto postal da cidade. Selando a aliana das mdias com o capital automotivo-imobilirio e os governantes de planto, a obra, cujo acesso reservado a carros (nibus, bicicletas e pedestres so proibidos), consumiu quase 400 milhes de reais (recursos que deveriam ter sido destinados, por lei, para habitao social dos atingidos na Operao Urbana) e ao fim foi batizada com o nome do falecido dono da Folha de S. Paulo, Otvio Frias, despejando o trnsito na Avenida Roberto Marinho, falecido dono da Globo. De outro lado, a expanso vertiginosa do crdito ao consumo de automveis, a juros zero e parcelas a perder de vista, permitiu o crescimento artificial do setor, com altos riscos, como demonstrou a crise do crdito subprime nos Estados Unidos. Por aqui as taxas de inadimplncia tambm cresceram, com veculos sendo retomados pelas financiadoras, gerando prejuzos a ponto de a principal financeira de automveis ter sido semiestatizada pelo governo: o Banco Votorantim, do ex-mais rico do Brasil, Antonio Ermrio de Moraes, teve 49,9% de suas aes compradas por quase R$ 5 bilhes pelo Banco do Brasil para tampar o rombo na inadimplncia da BV Financeira de automveis. O Ita foi outro a perder bilhes com inadimplncia no crdito de veculos. Os males do apocalipse motorizado so conhecidos e os nmeros, alarmantes. Acidentes no trnsito so a principal causa de morte no natural no Brasil, com 61 mil pessoas em 2012, alm das doenas e mortes de origem respiratria causadas pela poluio do ar. Alm disso, o automvel responsvel por grande parte da impermeabilizao do solo nas cidades ele consome 30% do solo urbano, entregues ao asfalto e ptios de estacionamento e pela descaracterizao de seus rios e fundos de vale, a degradao de vrzeas, morros e reas verdes, o que tem resultado em inmeras enchentes e outras catstrofes. O carro ainda uma mercadoria sui generis. Tomado individualmente, como objeto tcnico cada vez mais aperfeioado para locomoo individual ponto a ponto, ele uma das maravilhas do progresso tcnico e do desenvolvimento das foras produtivas capitalistas. Contudo, do ponto de vista do consumo coletivo do automvel, enfileiram-se (ou engavetam-se) os paradoxos. Trata-se de uma mercadoria que, quanto mais vendida e consumida, mais torna-se inoperante. Isso porque o automvel um bem privado consumido no espao pblico, que limitado, por mais que se ampliem as obras de ruas e avenidas. Como dois corpos no ocupam o mesmo espao, quanto mais carros nas ruas, menos andam. A trava do sistema de mobilidades produz um efeito domin de irracionalidades: desgaste dos equipamentos, consumo excessivo de combustveis, poluio do ar e sonora, stress, acidentes, gastos em sade pblica etc. Mesmo assim a indstria especializa-se em carros superpotentes e gigantes, que ficam parados em congestionamentos monstro. Mas o carro ainda a mercadoria vedete do capitalismo. O fetiche do automvel e sua promessa de liberdade e potncia individuais esto no cerne do sistema: vou para onde quiser mesmo se o resultado geral do uso do automvel seja a morte de milhares de pessoas e a inviabilizao das cidades. A propaganda de carro e suas fbulas, que mobilizam de forma aterradora valores individualistas e arrivistas dominantes (potncia, velocidades alm do limite, status social, conquista de mulheres, liberdade para ir onde outros no vo, desprezo ao riscos e aos sem carro etc.), um tema central para uma anlise sociolgica da sociedade de consumo. Deveria ser restringida, como a de cigarro e qualquer droga prejudicial sade. Mas elas povoam (e pagam) jornais e revistas, os mesmos que informam em seus outros cadernos os novos nmeros recordes de engarrafamentos e poluio. Os parcos oramentos pblicos para investimento em obras urbanas so tragados em proporo acintosa por mais pontes, avenidas e tneis (o ltimo, recm-cancelado graas aos protestos, custaria quase R$ 3 bilhes, entre a gua Espraiada e a Rodovia dos Imigrantes, novamente com acesso restrito a carros; e o prefeito Haddad acaba de anunciar que no far as avenidas prometidas do Arco do Futuro, ao menos no com recurso pblico). Sem falar na iseno de impostos, como o IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados): o transporte privado individual no Brasil recebe 11 vezes mais recursos pblicos do que o transporte coletivo, segundo pesquisa do IPEA (Instituto de Pesquisas Econmicas Aplicadas).O tempo cada vez mais longo de transporte na cidade, entre casa, trabalho, escola e outros servios, tem deixado as pessoas apertadas em nibus ou solitrias em sua mnada de lata, de duas a trs horas por dia em deslocamentos. Somados s nove horas no trabalho (oito mais uma de almoo, sem contar a hora extra), oito horas dormindo (ao menos o que recomenda a OMS), duas a trs horas ao menos entre higiene, trabalhos domsticos e demais refeies, sobram de uma a duas horas por dia quando muito, para viver, momento de tempo livre e atividade supostamente autodeliberada. Mas sabemos que nem isso assim, pois o tempo se esvai entre a televiso, o shopping e outros tempos livres programados pela sociedade de consumo e idiotizao de massas. Essa misria da vida cotidiana em nossas grandes cidades no se restringe aos mais pobres, mas afeta de um jeito ou de outro tambm a classe mdia. Para os primeiros, evidentemente, bem pior, pois, aos problemas j vividos pelas camadas mdias, somam-se os riscos de vida por razes ambientais (deslizamentos, alagamentos), riscos de despejos, maior dificuldade de mobilidade, emprego, servios pblicos precrios, falta de qualidades urbanas etc. Mas todos esto travados em cidades que deram errado, procurando formas de autodefesa, blindagens e segregaes entre grupos tpicas de anomia social. O colapso das cidades enquanto fim da experincia comum de vida social e civilizao democratiza-se, por certo, de forma desigual, e alcana a todos. Aprendizados para um novo ciclo de lutas urbanas H 40 anos, num estudo pioneiro sobre So Paulo, falava-se de uma lgica da desordem urbana, do laissez-faire na produo da cidade, criando um caos do qual alguns capitais obviamente se beneficiavam. Hoje a situao se agravou tanto que mesmo esses beneficirios, ainda que lucrem enquanto pessoas jurdicas, no tm mais como viver como pessoas fsicas, no prprio caos que criaram. A irracionalidade do capital entregue a si mesmo na produo da cidade e seus servios torna-se a cada dia mais evidente. Se nossas cidades ainda so negcio lucrativo para alguns, elas chegaram ao fim da linha: no modelo atual, como j assinalado, quanto mais se investe, mais caras e inviveis ficam, tal como os carros, que quanto mais se produzem, menos andam. A urbanizao no produz mais qualidades urbanas prprias ao que se entendia como cidade trata-se de uma urbanizao desurbanizadora , assim como o crescimento econmico no produz necessariamente desenvolvimento e equidade social. A inundao de crdito e mercadorias colapsou nossa frgil estrutura urbana. A aliana com o mercado imobilirio, com as construtoras, com as montadoras, com as mfias de servios urbanos o que antigamente era chamado de aliana com a burguesia nacional serviu mais aos interesses dos que tratam a cidade como negcio do que s necessidades dos cidados, que precisam da cidade como meio de vida. As grandes cidades brasileiras, longe de serem espaos animadores de se viver, so hoje produtoras de insegurana, doenas e traumas de todos os tipos. Ainda assim, a cidade isso tudo e sua negao determinada. Nela esto os sujeitos que tornam possvel sua transformao, estudam, pensam, mobilizam-se, tm propostas e desejos. Esses sujeitos so diferentes dos velhos/novos personagens que entraram em cena com a Reforma Urbana do ciclo anterior e que tiveram seus mritos reconhecidos naquele momento. Os atuais ativistas urbanos olham para a cidade de outro modo, sem as mesmas iluses e sem concesses ao capital no aceitam cidades venda para os cartis de sempre, de imobilirias, transportes, lixo e eventos. Suas demandas so precisas, ao mesmo tempo ousadas e de bom senso, parecem mnimas (vinte centavos a menos na tarifa) mas tambm mximas (transporte gratuito para todos). O MPL (Movimento do Passe Livre) e outros grupos de luta por transportes (como o Bloco de Luta por Transporte Pblico, de Porto Alegre) no apenas obtiveram na rua a vitria dos vinte centavos em dezenas de cidades como conseguiram disseminar no imaginrio coletivo a possibilidade da tarifa zero nos transportes, como direito urbano fundamental que conecta os cidados a outros direitos (educao, sade, lazer, cultura, esportes). Afinal, sabe-se que o transporte onera excessivamente a renda de muitos trabalhadores e que 1/3 das populaes das cidades no tem sequer como arcar com a tarifa, tendo que andar a p. Ter que pagar para ir escola, ao hospital, ao centro cultural, ao museu, ao parque e praa, quase todos servios gratuitos, pode ser um impedimento ao seu acesso para muitos cidados. Por isso, a tarifa zero pe em dvida a mercantilizao da cidade por que pagamos por esse direito? Afinal j pagamos tantos impostos, sendo que os trabalhadores contribuem percentualmente mais do que os ricos. Mesmo que a populao no saiba tecnicamente como implantar a tarifa zero, percebe politicamente sua justia e pergunta-se, afinal, por que pagar pelo transporte pblico, que um direito do cidado, por que passar por catracas humilhantes como gado e apinhar-se em nibus feitos sobre carroceria de caminhes. Por que aceitvamos tudo isso? A descatracalizao dos nibus, da cidade, do acesso aos direitos, enfim, a descatracalizao da vida, que est expressa nas falas e cartazes do MPL (as catracas so puladas e destrudas das mais diversas formas na vida e no material grfico do movimento), uma forma de retomar a imaginao no poder, lema de maio de 1968 (ou ainda: sejamos realistas, exijamos o impossvel). A ousadia da reivindicao faz com que sejam acusados, por isso, de irresponsveis, ao no indicar a origem dos recursos para pagar a conta do sistema, ou ainda de ingnuos, por no perceberem que o subsdio para todos iria tambm beneficiar empresrios que deixariam de gastar com vale transporte. Mas ento a questo torna-se ainda mais interessante. preciso voltar ao que foi, inclusive, uma das bandeiras fortes do PT em seu princpio: a justia fiscal. Que se taxem as grande propriedades, fortunas e heranas (na Inglaterra, por exemplo, 50% do valor das heranas vo para o Estado, no Brasil, 4%), e tambm que se recolha de outra forma o vale transporte (que voltaria para o sistema), que se penalizem as mercadorias que fazem mal cidade e aos cidados, que poluem, matam e tomam o espao pblico (ampliando rodzios, pedgios urbanos, impostos sobre combustveis). O transporte gratuito, como direito que conecta outros direitos, s se viabiliza com um movimento mais amplo de justia social, fiscal e urbana. preciso estranhar o que foi tido como natural: a insanidade das cidades que criamos e nas quais vivemos (ou tentamos viver). Que indivduos e coletivos em luta aproveitem o momento dessa ecloso nas ruas e de ideias novas para imaginar a transformao radical da cidade/sociedade, passado o ciclo da (Anti)Reforma Urbana petista e do seu correspondente projeto democrtico-popular. Qual o novo ciclo de lutas urbanas? Quais seus novos mtodos, programas e atores? De fato, o tema da mobilidade urbana um bom ponto de partida, mas no de chegada, que ainda deve ser a cidade como projeto de civilizao. Se ele atrai um n de questes que, ao ser desatado, ajuda a questionar a lgica de todo o sistema, preciso pensar quais os movimentos desse desenrolar, qual o caminho para se mudar a cidade a partir da tarifa zero e para todas as esferas da vida urbana. Quais outras pautas so conectoras com a da mobilidade? Quais so integradoras e inter-territoriais (incluindo a aliana campo-cidade, que alimenta a todos)? Um dos limites da Reforma Urbana do ciclo anterior foi fragmentar a luta popular em lutas setoriais, que iam bater em portas de secretarias para pedir programas igualmente fragmentados. Agora interessa bater s grandes portas. No deixemos que a fora das revoltas de junho seja dirigida apenas para polticas setoriais e seus conselhos, fundos e instrumentos. A cidade uma s. Aprendemos com o ciclo anterior os limites da luta institucional. Saberemos us-la quando necessrio, mas com as ltimas jornadas vimos que as conquistas podem se dar de outro modo inesperado e radical. De outro lado, fraes do capital j se orientam para esse renovado filo de negcios: a mobilidade urbana. A presidente Dilma anunciou recentemente um pacote de mais de R$ 50 bilhes para o setor, que pode ganhar no novo contexto simblico gerado pelas manifestaes condies polticas para alavancar um novo ciclo de investimentos, terminados os estdios da Copa. Obras se anunciam, diversas delas necessrias, outras no, algumas corretamente planejadas, outras mirabolantes ou feitas s pressas para captar recursos do governo federal. Veja-se a farra dos metrs pelo Brasil: poucos saem do papel, mas todos geram negcios e negociatas. Modalidades de transportes e sua gesto estaro em disputa e muitos lobistas seguiro tentando passar seus trens de dinheiro em cada novo tnel.Para contrabalanar os interesses privados de mais um ramo do business com os interesses pblicos e dos cidados, ser preciso deixar claro o que distingue nossa pauta da dos comerciantes de mobilidade. Qual o divisor de guas? O que separa o transporte-mercadoria do transporte como direito do cidado? Ou poderiam ser convergentes, como o modelo Lerner-Curitiba faz crer? O desafio fazer a ao direta acompanhada de uma teoria que a oriente e problematize, que indique os pontos frgeis do adversrio e nossas foras (nem todas ainda conhecidas). preciso que as universidades renovem o ensino e a pesquisa e formem profissionais com outra viso dos problemas urbanos, das suas infraestruturas, da mobilidade, do saneamento e meio ambiente, da qualidade dos espaos e edificaes e que novas prticas sejam orientadas por pressupostos at ento pouco considerados. Que os partidos, sindicatos e organizaes de esquerda tambm possam se dedicar mais profundamente ao tema das lutas urbanas quase sempre relegadas a segundo plano , ao entendimento das cidades, de seus agentes e meios de transformao, sem descuidar do desenho e das qualidades dessa cidade (trans)formada.Mesmo o cidado comum, a partir da sua experincia vivida e apoiado por canais de informao independentes, grupos de debate e novas pesquisas acadmicas srias, pode ser estimulado a pensar sua cidade, compreender sua histria e sentido de mudana, e tambm tornar-se um integrante de coletivos de imaginadores urbanos ou de uma imaginao coletiva da cidade em transformao. Pelo desenho, texto, teatro, msica, pintura, grafite, cinema, as cidades precisam continuar sendo imaginadas. E no pas o futebol, se as horas dedicadas a assistir, jogar e debater o mundo da bola pudessem ser em parte destinadas a pensar e transformar nossas cidades... Os comits e grupos de resistncia e denncia das obras e despejos da Copa do Mundo podem ser importantes deflagradores dessa inverso de atenes, entre futebol e cidade, como ocorreu durante a Copa das Confederaes, tambm em junho passado. E mesmo torcidas, comentaristas e jogadores mais politizados, que olhem para o pas que est fora das quatro linhas, e percebam os interesses em jogo (como ocorreu no final da ditadura e no movimento pela democracia e eleies diretas), poderiam levar o debate para outros campos. A cidades entraram novamente em movimento. Mesmo ainda sem unidade possvel, sujeitos e aes, combinados ou dispersos, articulados ou no, no mais diversos lugares do pas, precisam imaginar o que ser a Revoluo Urbana Brasileira que suplante as contradies e limites da Anti-Reforma vigente. As vises dessa nova cidade e o poder das imagens, dilogos e narrativas que elas possam estimular sero, sem dvida, fora motora para nos provocar a agir e a assumir as outras revolues que sero necessrias. Este texto o resultado de uma interveno na Conversa aberta sobre as manifestaes, com Luiza Erundina, Peter Pelbart, Olgria Matos e Marcelo do MPL, realizada na FAU USP no dia 18 de agosto de 2013, organizada por um grupo de jovens artistas e intelectuais.Pedro Fiori Arantes arquiteto e urbanista, integrante do coletivo Usina e professor da Unifesp.