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    23Revista FAMECOS Porto Alegre n 22 dezembro 2003 quadrimestral

    TECNOLOGIAS DO IMAGINRIO

    Da cultura dasmdias

    cibercultura: oadvento do ps-humanoRESUMOEste artigo trata da questo do desenvolvimento dastecnologias da informao e da comunicao e sua implicaoem todas as esferas da sociedade.

    ABSTRACTThis text discusses the evolution of information and communicationtechnologies and its effect upon society.

    PALAVRAS-CHAVE (KEY WORDS)- Tecnologias (Technologies)- Complexidade (Complexity)- Cultura das mdias (Media cultures)

    Lcia Santaella

    J EST SE TORNANDO lugar-comum afirmarque as novas tecnologias da informaoe comunicao esto mudando noapenas as formas do entretenimentoe do lazer, mas potencialmente todasas esferas da sociedade: o trabalho(robtica e tecnologias para escritrios),

    gerenciamento poltico, atividades militarese policiais (a guerra eletrnica), consumo(transferncia de fundos eletrnicos),comunicao e educao (aprendizagema distncia), enm, esto mudando toda acultura em geral. Para Robins e Webster(1999, p. 111), se as foras do capitalcorporativista e os interesses polticosforem bem-sucedidos na introduosistemtica dessas novas tecnologias darobtica aos bancos de dados, da internetaos jogos de realidade virtual, ento a vidasocial ser transformada em quase todosos seus aspectos. O desenvolvimentoestratgico das tecnologias da informticae comunicao ter, ento, reverberaespor toda a estrutura social das sociedadescapitalistas avanadas. Tendo em vista a relevncia dasreverberaes que j se fazem presentese daquelas que esto por vir, tenho

    defendido a idia de que ns, intelectuais,pesquisadores e mestres, devemos nosdedicar tarefa de gerar conceitos quesejam capazes de nos levar a compreenderde modo mais efetivo as complexidadescom que a realidade em mutao nosdesaa. Este trabalho que aqui apresento parte do esforo que tenho desenvolvidopara ir ao encontro dessa tarefa. Provadesse esforo est no meu livro recm-

    lanado Culturas e Artes do Ps-Humano.Da cultura das mdias cibercultura (2003).

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    As idias que apresentarei a seguir fazemparte dos argumentos que desenvolvinesse livro. A bem da verdade, esse livro recentefunciona como uma espcie de segundovolume de um livro anterior, sob o ttulo de

    Cultura das Mdias, cuja primeira ediofoi lanada em 1992. Foi ousado paraaquela poca o ttulo escolhido. Ousadono apenas porque a palavra mdiasainda no havia se disseminado, masprincipalmente porque devo confessarque, naquele momento, no tinha perfeitaclareza do signicado exato que estavadando para a expresso cultura dasmdias. Sabia que se tratava de formas

    culturais com uma lgica distinta da culturadas massas, mas no podia ainda precisarsua natureza com exatido. Foi a leitura,em 1997, do livro Culturas hbridas, deNstor Garcia Canclini (publicado em1990, com traduo brasileira de 1997)que trouxe uma primeira luz para precisarminhas idias. Depois disso, a explosocada vez mais impressionante das redes ea emergncia indisfarvel da ciberculturaou cultura do virtual permitiram-me chegara uma noo mais clara do sentido que,no incio ainda obscuro, desejava imprimirpara a expresso cultura das m dias.

    Hoje, com as idias mais ajustadas,posso definir com mais preciso o quetenho entendido por cultura das mdias.Ela no se confunde nem com a culturade massas, de um lado, nem com a culturavirtual ou cibercultura de outro. , isto sim,uma cultura intermediria, situada entre

    ambas. Quer dizer, a cultura virtual nobrotou diretamente da cultura de massas,mas foi sendo semeada por processosde produo, distribuio e consumocomunicacionais a que chamo de culturadas mdias. Esses processos so distintosda lgica massiva e vieram fertilizandogradativamente o terreno socioculturalpara o surgimento da cultura virtual ora emcurso.

    1 As formaes socioculturais

    Para compreender essas passagens deuma cultura outra, que considero sutis,tenho utilizado uma diviso das erasculturais em seis tipos de formaes: a

    cultura oral, a cultura escrita, a culturaimpressa, a cultura de massas, a culturadas mdias e a cultura digital. Antes detudo, deve ser declarado que essasdivises esto pautadas na convicode que os meios de comunicao, desdeo aparelho fonador at as redes digitaisatuais, no passam de meros canaispara a transmisso de informao.Por isso mesmo, no devemos cair no

    equvoco de julgar que as transformaesculturais so devidas apenas ao adventode novas tecnologias e novos meios decomunicao e cultura. So, isto sim, ostipos de signos que circulam nesses meios,os tipos de mensagens e processos decomunicao que neles se engendramos verdadeiros responsveis no s pormoldar o pensamento e a sensibilidadedos seres humanos, mas tambm porpropiciar o surgimento de novos ambientessocioculturais.

    Certamente, h algo de McLuhannessa minha postulao. Entretanto,diferentemente de McLuhan, ou daquiloque se passou a se considerar como sendomcluhniano, creio que devemos tirar anfase que se costuma colocar nos meios enas mdias em si para trazer baila outrasdeterminaes que tendem a ser ocultadaspelo fetiche das mdias. Entre essas

    determinaes, aquela que central comunicao e cultura a determinaoda linguagem.

    Nem mesmo McLuhan, com suaclebre provocao O meio a mensagem(1964), to criticada h algumas dcadase hoje transformada em axioma paratodos os plugados, chegou ao nvel deobliterao da linguagem que o fetiche dasmdias tem alcanado. Ao contrrio, com

    sua armao, McLuhan estava justamentese desviando da tendncia comum nas

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    teorias da comunicao de sua poca, queseparavam, de um lado, o modo como amensagem transmitida, de outro lado,o contedo da mensagem. Ao colocarnfase nos meios, McLuhan insistia naimpossibilidade de se separar a mensagem

    do meio, pois a mensagem determinadamuito mais pelo meio que a veicula do quepelas intenes de seu autor. Portanto, emvez de serem duas funes separadas, omeio a mensagem (Lunenfeld, 1999a, p.130). Do mesmo modo que essa frase deMcLuhan foi denegrida pelos amantes doscontedos semnticos, sem que essescrticos tivessem se dado ao trabalho

    de bem compreend-la, hoje se falade mdia de maneira atabalhoada, sema preocupao e compromisso com oescrutnio das complexidades semiticasque as constituem. Ora, mdias so meios, e meios, comoo prprio nome diz, so simplesmentemeios, isto , suportes materiais, canaisfsicos, nos quais as linguagens secorporicam e atravs dos quais transitam.Por isso mesmo, o veculo, meio ou mdiade comunicao o componente maissupercial, no sentido de ser aquele queprimeiro aparece no processo comunicativo.No obstante sua relevncia para o estudodesse processo, veculos so meros canais,tecnologias que estariam esvaziadas desentido no fossem as mensagens quenelas se conguram. Conseqentemente,processos comunicativos e formas decultura que nelas se realizam devem

    pressupor tanto as diferentes linguagense sistemas sgnicos que se configuramdentro dos veculos em consonncia com opotencial e limites de cada veculo quantodevem pressupor tambm as misturas entrelinguagens que se realizam nos veculoshbridos de que a televiso e, muito mais, ahipermdia so exemplares.

    Embora sejam responsveis pelocrescimento e multiplicao dos cdigos

    e linguagens, meios continuam sendomeios. Deixar de ver isso e, ainda por

    cima, considerar que as mediaes sociaisvm das mdias em si incorrer em umaingenuidade e equvoco epistemolgicosbsicos, pois a mediao primeira no vemdas mdias, mas dos signos, linguagem epensamento, que elas veiculam (Santaella,

    1992 [2003a], p. 222-230).O segundo aspecto fundamental que

    o fetiche das mdias oblitera encontra-se no fato de que quaisquer mdias, emfuno dos processos de comunicao quepropiciam, so inseparveis das formasde socializao e cultura que so capazesde criar, de modo que o advento de cadanovo meio de comunicao traz consigoum ciclo cultural que lhe prprio e que

    ca impregnado de todas as contradiesque caracterizam o modo de produoeconmica e as conseqentes injunespolticas em que um tal ciclo cultural tomacorpo. Considerando-se que as mdias soconformadoras de novos ambientes sociais,pode-se estudar sociedades cuja cultura semolda pela oralidade, ento pela escrita,mais tarde pela exploso das imagens narevoluo industrial-ele trnica etc.

    Tendo isso em vista, cumpre aindaalertar para uma outra questo. Emboraa diviso que estabeleo de seis erasculturais rera-se, de fato, a eras, prerotambm cham-las de formaes culturaispara transmitir a idia de que no se trata ade perodos culturais lineares, como se umaera fosse desaparecendo com o surgimentoda prxima. Ao contrrio, h sempre umprocesso cumulativo de complexicao:uma nova formao comunicativa e cultural

    vai se integrando na anterior, provocandonela reajustamentos e refuncionalizaes. certo que alguns elementos sempredesaparecem, por exemplo, um tipo desuporte que substitudo por outro, comono caso do papiro, ou um aparelho que substitudo por outro mais eciente, ocaso do telgrafo. certo tambm que,em cada perodo histrico, a cultura casob o domnio da tcnica ou da tecnologia

    de comunicao mais recente. Contudo,esse domnio no suciente para asxiar

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    os princpios semiticos que denem asformaes culturais preexistentes. Anal,a cultura comporta-se sempre como umorganismo vivo e, sobretudo, inteligente,com poderes de adaptao imprevisveis esurpreendentes.

    A diviso em seis eras pode parecerexcessiva, mas, se no as levarmosem considerao, acabamos perdendoespecicidades importantes e reveladoras.Por exemplo: a cultura impressa nonasceu diretamente da cultura oral. Foiantecedida por uma rica cultura da escritano alfabtica. A memria dessas escritastrouxe grandes contribuies para avisualidade da arte moderna. Ela sobrevive

    na imaginao visual da profuso dos tiposgrcos hoje existentes. Sobrevive aindanos processos diagramticos do jornal, navisualidade da poesia, no design atual depginas da Web. Enm, de certa forma,ela continua viva porque ainda se preservana memria da espcie. Assim tambm,embora a grande maioria dos autoresesteja vendo a cibercultura na continuidadeda cultura de massas, considero queo reconhecimento da fase transitriaentre elas, a saber, o reconhecimento dacultura das mdias, substancial para secompreender a prpria cibercultura.

    Com bastante impreciso, muitos tmse referido a todo o complexo contextoatual sob o nome de cultura miditica.Essa generalizao cobre o territrio comuma cortina de fumaa. claro que tudo mdia, at mesmo o aparelho fonador.Quais so elas, como se inserem na

    dinmica social, em quais delas o capitalest investindo, como impem sua lgicaao conjunto da cultura? So todas questesirrespondveis se no zermos o esforode precisar nossos conceitos. A confusoconceitual proporcional confuso dosmodos como nos aparecem os fatos quepretendemos compreender. O cultivoda ambigidade e o espraiamento dasneblinas de sentido so tarefas da poesia

    que nos traz maneiras de sentir e verque, sem ela, seriam impossveis. Porm,

    quando se trata de interpretar fenmenoscuja complexidade nos desaa, a pacinciado conceito imprescindvel. Isso nosignica recusar o carter congenitamentepolissmico dos nossos discursos, fruto danatureza complexa e contraditria tanto

    das nossas mentes, de um lado, quantodaquilo que chamamos de realidade, dooutro. Justamente o contrrio, porquesabemos que h uma impreciso congnitaem tudo que dizemos, nossos esforos,tanto de observao emprica quanto declareza conceitual, devem se redobrar sepretendemos trazer alguma contribuiopara a compreenso menos supercial dacomplexidade que nos rodeia.

    2 Da cultura das mdias ciber-cultura

    Isso posto, passo a explicitar quefenmenos tenho designado coma expresso cultura das mdias.Fenmenos, alis, que s pude melhorcompreender aprs-coup, quando a culturadigital ou cibercultura decididamente seimps. Por volta do incio dos anos 80,comearam a se intensicar cada vez maisos casamentos e misturas entre linguagense meios, misturas essas que funcionamcomo um multiplicador de mdias.Estas produzem mensagens hbridascomo se pode encontrar, por exemplo,nos suplementos literrios ou culturaisespecializados de jornais e revistas, nasrevistas de cultura, no radiojornal, telejornaletc.

    Ao mesmo tempo, novas sementescomearam a brotar no campo das mdiascom o surgimento de equipamentose dispositivos que possibilitaram oaparecimento de uma cultura dodisponvel e do transitrio: fotocopiadoras,videocassetes e aparelhos para gravaode vdeos, equipamentos do tipo walkmane walktalk, acompanhados de umaremarcvel indstria de videoclips e

    videogames, juntamente com a expansivaindstria de lmes em vdeo para serem

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    alugados nas videolocadoras, tudo issoculminando no surgimento da TV a cabo.Essas tecnologias, equipamentos e aslinguagens criadas para circularem nelestm como principal caracterstica propiciara escolha e consumo individualizados, em

    oposio ao consumo massivo. So essesprocessos comunicativos que considerocomo constitutivos de uma cultura dasmdias. Foram eles que nos arrancaramda inrcia da recepo de mensagensimpostas de fora e nos treinaram para abusca da informao e do entretenimentoque desejamos encontrar. Por isso mesmo,foram esses meios e os processos derecepo que eles engendram que

    prepararam a sensibilidade dos usuriospara a chegada dos meios digitais cujamarca principal est na busca dispersa,alinear, fragmentada, mas certamente umabusca individualizada da mensagem e dainformao. A proliferao miditica, provocadapelo surgimento de meios cujasmensagens tendem para a segmentaoe diversi ficao, e a hibridizao dasmensagens, provocada pela misturaentre meios, foram sincrnicas aosacalorados debates dos anos 80 sobrea ps-modernidade. Por isso mesmo,em contraposio a alguns autores queconsideram a ps-modernidade como aface identicadora da cibercultura, tenhoconcebido as discusses sobre a ps-modernidade como sinais de alerta crticospara um perodo de mudanas profundasque se insinuavam no seio da cultura e

    que, naquele momento, anos 80, estavamsendo encubadas pela cultura das mdias epelo hibridismo tanto nas artes quanto nosfenmenos comunicativos em geral queessa cultura propicia.

    Embora sem estabelecer as distinesda cultura das mdias em relao culturade massas, de um lado, e a cultura digital,de outro, no captulo sobre A cultura davirtualidade real, no tpico sob o ttulo

    de A nova mdia e a diversicao daaudincia de massas, Castells (2000,

    p. 362-367) descreve em detalhes osprocessos que, a meu ver, constituema cultura das mdias. Uma passagem,citada pelo autor, extrada de um artigo deF. Sabbah, escrito em 1985, capaz desintetizar perfeio o perl iden ticador

    dessa formao cultural, como se segue:

    Em resumo, a nova mdia determinauma audincia segmentada,di ferenciada que, embora maciaem termos de nmeros, j no uma audincia de massa em termosde simultaneidade e uniformidadeda mensagem recebida. A novamdia no mais mdia de massa

    no sentido tradicional do envio deum nmero limitado de mensagensa uma audincia homognea demassa. Devido multiplicao demensagens e fontes, a prpriaaudincia torna-se mais seletiva. Aaudincia visada tende a escolhersuas mensagens, assim aprofundandosua seg-mentao, intensificandoo relacionamento individual entre oemissor e o receptor.

    3 A cultura digital e a moedacorrente da informao

    Enfim, cultura de massas, cultura dasmdias e cultura digital, embora convivamhoje em um imenso caldeiro de misturas,apresentam cada uma delas caracteresque lhes so prprios e que precisam serdistinguidos, sob pena de nos perdermos

    em um labirinto de confuses. Umadiferena gritante entre a cultura das mdiase a cultura digital, por exemplo, est no fatomuito evidente de que, nesta ltima, estocorrendo a convergncia das mdias, umfenmeno muito distinto da convivncia dasmdias tpica da cultura das mdias.

    Se, de um lado, preciso perceberdistines, de outro lado essas distinesno podem nos levar a negligenciar o

    fato de que hoje vivemos uma verdadeiraconfraternizao geral de todas as

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    formas de comunicao e de cultura,em um caldeamento denso e hbrido: acomunicao oral que ainda persiste comfora, a escrita, no design, por exemplo, acultura de massas que tambm tem seuspontos positivos, a cultura das mdias,

    que uma cultura do disponvel, e acibercultura, a cultura do acesso. Mas aconvergncia das mdias, na coexistnciacom a cultura de massas e a cultura dasmdias, estas ltimas em plena atividade,que tem sido responsvel pelo nvel deexacerbao que a produo e circulaoda informao atingiu nos nossos diase que uma das marcas registradas dacultura digital.

    De fato, como arma Hayles (1996b,p. 259, 270), a informao se tornou agrande palavra de ordem, circulando comomoeda corrente. Gentica, assuntos deguerra, entretenimento, comunicaes,produo de gros e cifras do mercadofinanceiro esto entre os setores dasociedade que passam por uma revoluoprovocada pela entrada no paradigmainformacional. Uma diferena signicanteentre informao e bens durveis estna replicabilidade. Informao no umaquantidade conservada. Se eu lhe douinformao, voc a tem e eu tambm.Passa-se a da posse para o acesso. Estedifere da posse porque o acesso vasculhapadres em lugar de presenas.

    por essa razo que a era digitalvem sendo tambm chamada de culturado acesso, uma formao cultural estnos colocando no s no seio de uma

    revoluo tcnica, mas tambm de umasublevao cultural cuja propenso sealastrar tendo em vista que a tecnologiados computadores tende a car cada vezmais barata. Dominada pelo microchip,essa tecnologia dobra aproximadamentede poder a cada 12 a 18 meses. medidaque cresce seu poder, seu preo declina eseu mercado aumenta. Esse crescimento um indicador fundamental porque a

    produo, o arquivamento e a circulaoda moeda corrente da informao

    dependem do computador e das redes detelecomunicao, estes, na verdade, osgrandes pivs de toda essa histria. Diante disso, Lunenfeld (1999b)deve estar com a razo quando diz queno importa o quanto as mdias digitais

    podem, primeira vista, assemelhar-se smdias analgicas - foto, cinema, vdeo etc.-, elas so fundamentalmente diferentesdelas. Por isso mesmo, os tericos dacomunicao, cultura e sociedade devemfazer um esforo para criar modelos deanlise adequados a essa emergnciaque transcendam os modelos que eramaplicveis a mdias anteriores e quetranscendam principalmente os refres

    sobre consumo e recepo, tpicos da eratelevisiva.Questes resultantes da maneira

    como o computador est recodificandoas linguagens, as mdias, as formas dearte e estticas anteriores, assim comocriando suas prprias, a relao entreimerso e velocidade, a dinmica frenticada WWW, com seus sites que pipocam edesaparecem como ores no deserto, avida ciborg, o potencial das tecnologias vs.a viabilidade do mercado, os mecanismosde distribuio, a dinmica social dosusurios, a contextualizao desses novosprocessos de comunicao nas sociedadesdo capitalismo globalizado so alguns dostemas que aparecem na ponta do iceberg,deixando entrever as complexidades que aresidem.

    Realmente, essas complexidadestm chamado a ateno de muitos

    estudiosos, tambm no Brasil, ondealguns tm lanado alarmes crticos emrelao s conseqncias filosficas,psquicas e poltico-sociais da era digital(para nos limitarmos aos livros, ver, porexemplo, Rdiger, 2002; Trivinho, 1999,2001), enquanto outros tm apresentadopanoramas detalhados das novaspaisagens ciber, colocando-nos a par dasrazes histricas e das linhas de fora

    comunicacionais e socioculturais que lhesso prprias (ver, por exemplo, Lemos,

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    2002a, 2002b; Costa 2002). No panoramainternacional, o nmero de estudos sobre oassunto cresce assombrosamente a cadadia, o que torna praticamente impossvelqualquer tentativa de levantamento doestado da arte dessa questo. O que se

    pode delinear, de modo muito simplicado,so algumas tendncias que tm marcadoesses estudos.

    4 Reaes ciberealidade

    Uma avaliao detalhada das reaes quea ciberealidade tem provocado em seuscomentadores foi feita por Heim (1999, p.

    31-45). Para ele, o impacto do computadorsobre a cultura e a economia tem divididoos crticos em trs tipos de reao. De umlado, os realistas ingnuos. Estes tomama realidade como aquilo que pode serexperienciado imediatamente e alinham oscomputadores com os poluidores que sojogados no terreno da experincia pura,no mediatizada. Quando d voz a suasinquietaes, o realista ingnuo faz soaralarmes que esto em agudo contrastecom os bons augrios dos idealistas dasredes. Estes consideram o mundo dasredes o melhor dos mundos e apontampara os ganhos evolutivos da espcie. Sootimistas e, nos maus dias, exibem umafelicidade preocupada. Para o autor (ibid.,p. 38), tanto os realistas ingnuos quantoos idealistas so os dois lados da mesmamoeda. Enquanto o idealista avana comotimismo sem reservas, o realista pisa para

    trs movido pelo desejo de nos assentarfora da tecnologia.

    Alm dos realistas e idealistas,Heim encontra um terceiro grupo, o doscticos. Convictos de que as tentativaspara compreender o processo, no importaquo inteligentes elas possam ser, soincuas, eles insistem que o ciberespaoest atravessando um processo denascimento muito confuso. Trata-se de um

    ceticismo que resulta em uma atitude dedeixar acontecer para ver como que ca.

    Nenhuma dessas trs posies nos ajudaa fazer sentido do que est acontecendo,Heim conclui.

    Para que possamos enfrentaros desafios do presente, ele prope aposio dialtica de um realismo virtual

    como posio mediadora entre o realismoingnuo e o idealismo das redes. Sassim se pode sustentar a oposio comoa polaridade que continuamente produzas fascas do dilogo, e o dilogo a vidado ciberespao. (ibid., p. 41) O realismovirtual vai ao encontro do destino semcar cego s perdas que o progresso traz.(ibid., p. 45) Esse texto de Heim est

    prioritariamente voltado para uma avaliaodas posies, digamos, epistemolgicasque tm sido assumidas frente ao mundodigital. O que falta nessa avaliao alguma indicao do contedo das crticasque so levantadas pelos comentadores,sempre realistas, mas nem sempre toingnuos quanto o retrato de Heim ospintou.

    A maioria das crticas est preocupadacom o fato - inolvidvel - de que o mundodigital nasceu e cresce no terreno dasformaes socioeconmicas e polticas docapitalismo globalizado. Do que reclamamos crticos? Da separao que muitasapreciaes sobre a era digital estabelecementre o mundo l fora, esquecido, e omundo virtual, como se a turbulnciasocial e poltica do nosso tempo - o conitotnico, o ressurgimento do nacionalismo, afragmentao urbana, a misria e a fome

    nas periferias do mundo - no tivesse nadaa ver com o espao virtual (Robins, 2000,p. 79).

    Querem, portanto, chamar atenopara a evidncia de que, mesmo que ociberespao possa ser signicantementediferente de outras mdias culturais,seus programas, realidades virtuais eexperincias dos usurios esto tofirmemente enraizados no capitalismo

    contemporneo quanto qualquer outraforma de cultura. Aqueles que promovem

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    seu carter revolucionrio muitas vezes seesquecem de considerar as diculdadesde se transcender formas e convenesculturais estabelecidas em tecnologias eprticas culturais que se originam nessamesma cultura. (Hayward, 1993, p. 187).

    No obstante a relevncia dessascrticas, no obstante tambm asconstataes inspiradas e iluminadorasde muitos daqueles que, no dizer deHeim, no passam de idealistas, o quedeve ser evitado, a meu ver, a adesoaos extremos. Na medida em que astelecomunicaes e os modos aceleradosde transporte esto fazendo o planetaencolher cada vez mais, na medida mesma

    em que se esfumam os parmetros detempo e espao tradicionais, assume-se,via de regra, que as tecnologias so amedida de nossa salvao ou a causa denossa perdio. De um lado, celebraesps-modernas das tecnologias asseveramque estas so to bencas que serocapazes de realizar proezas que osdiscursos humanistas nunca conseguiramatingir. De outro lado, elegias sobre a morteda natureza e os perigos da automao edesumanizao contrariam as expressessalvacionistas.

    5 Desaos do ps-humano

    No livro que publiquei recentemente,Culturas e artes do ps-humano. Da culturadas mdias cibercultura, busquei evitaros extremos. Nem esposar cegamente

    o consumerismo ou o apelo esnobedo high tech, de um lado, nem cair noslamentos nostlgicos, chorando a perdado paraso, de outro. De resto, o lamentono traz nenhuma conseqncia, almde soar histrico, especialmente nestemomento em que as novas relaes entrea tecnologia e os humanos se tornaramsumamente complexas. A tecnologiano apenas penetra nos eventos, mas

    se tornou um evento que no deixa nadaintocado. um ingrediente sem o qual a

    cultura contempornea - trabalho, arte,cincia e educao -, na verdade toda agama de interaes sociais, impensvel.(Aronowitz, 1995, p. 22) Buscar apagaressa realidade atravs da denegaoimplica, acima de tudo, uma recusa do

    pensamento.A cibercultura, tanto quanto quaisquer

    outros tipos de cultura, so criaturashumanas. No h uma separao entreuma forma de cultura e o ser humano.Ns somos essas culturas. Elas moldamnossa sensibilidade e nossa mente, muitoespecialmente as tecnologias digitais,computacionais, que so tecnologiasda inteligncia, conforme foi muito bem

    desenvolvido por Lvy e De Kerckhove.Por isso mesmo, so tecnologias auto-evolutivas, pois as mquinas estocando cada vez mais inteligentes. Mas,tanto quanto posso ver, no h por quedesenvolver medos apocalpticos a respeitodisso. As mquinas vo ficar cada vezmais parecidas com o ser humano, e noo contrrio. nessa direo que caminhamas pesquisas atuais em computao. Mas,ao mesmo tempo, tambm no se trata dedesenvolver ideologias salvacionistas arespeito das tecnologias. Se elas so criasnossas, inevitavelmente carregam dentrode si nossas contradies e paradoxos. Dentro desse esprito, as reexesque desenvolvi no livro buscam contribuircom sugestes de respostas s questesque esto no centro da ateno daquelesque tm sido movidos pelo desejo dapesquisa sobre os temas do ciberespao,

    cibercultura e ciberarte: O que estacontecendo interface ser humano-mquina e o que isso est signicandopara as comunicaes e a cultura doincio do sculo 21? As respostas queencontro para essas perguntas, respostasso sempre tentativas em tempos deincerteza, pretendem repensar o humanoneste alvorecer do vir-a-ser tecnolgicodo mundo. justamente da necessidade

    desse repensamento que advm aexpresso ps-humano. Os meios para

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    isso vou buscar na histria das novastecnologias, da losoa, da psicanlise, dacomunicao e semitica e, sobretudo, daarte.

    De fato, a arte, no a arte que seconforta no estabelecido, mas a arte

    que cria problemas, tem sido para mim oterritrio privilegiado para o exerccio daousadia do pensamento que no temeabraar snteses, fazendo face aos enigmase desaos do emergencial, um territrioprivilegiado, enfim, para dar margem imaginao que ausculta o presente, nelepressentindo o futuro. na ambinciaconjectural de uma reexo pouco servil severidade das exigncias superegicas

    que tenho desenvolvido minhas idias.A hiptese que tem me norteado que, em tempos de mutao, h que carperto dos artistas. Pelo simples fato deque, parafraseando Lacan, eles sabemsem saber que sabem. Semelhante aeste, h um dictum de Goethe que valea pena mencionar: h um empirismoda sensibilidade que se identica muitointimamente com o objeto e assim se torna,propriamente falando, teoria. , de fato,uma espcie de teoria no-verbal e poticaque os artistas criam na sua aproximaosensvel dos enigmas do real. Por isso,sou movida pela convico de que, nestaentrada do terceiro ciclo evolutivo daespcie (argumento de Donald, 1991),temos de prestar ateno no que osartistas esto fazendo. Pressinto que soeles que esto criando uma nova imagemdo ser humano no vrtice de suas atuais

    transformaes. So os artistas que tmnos colocado frente a frente com a facehumana das tecnologias. A rpida evoluo do computadorcomparada com aquela de tecnologiasanteriores, quando contrastada com aausncia de evoluo na forma humana,levou o terico e artista da realidade virtualMyron Krueger a prever que a interfaceltima entre o computador e as pessoas

    estar voltada para o corpo humano eos sentidos humanos (apud Hillis, 1999:

    6). Vem da a importncia que tenhodado s metamorfoses, no mais dasvezes invisveis, do corpo humano e stransformaes na sensibilidade que vmsendo exploradas pelos artistas. Atendendo sugesto de

    Featherstone e Burrows (1996, p. 2), noso apenas as reconstituies da vida sociale da cultura que procuro levar em conta,mas tambm o impacto dessas mudanasno corpo humano. nesse aspectoque os desenvolvimentos tecnolgicosapontam para as possibilidades deformas de existncia ps-humanas que,no seu visionarismo, Roy Ascott (2003a)vem chamando de ps-biolgicas na

    emergncia de uma era mida (moist)que nascer da juno do ser humanomolhado (wet) com o silcio seco (dry),especialmente a partir do desenvolvimentodas nanotecnologias que, bem abaixo dapele, passaro silenciosamente a interagircom as molculas do corpo humano. Estou ciente de que a expressops-humano perturbadora. De fato,essa expresso pode trazer muitos mal-entendidos. O primeiro significado quecostuma vir mente das pessoas o deque o humano j era, foi-se, perdeu-se nogolpe dos acontecimentos. No se tratadisso. O termo ps-humano vem sendoempregado especialmente por artistas outericos da arte e da cultura desde o inciodos anos 90. A expresso tem sido usadapara sinalizar as grandes transformaesque as novas tecnologias da comunicaoesto trazendo para tudo o que diz respeito

    vida humana, tanto no nvel psquicoquanto social e antropolgico. H algunsautores que at defendem a idia deque se trata de um passo evolutivo daespcie. Uso a expresso deliberada eestrategicamente para chamar atenopara o fato de que no podemos nos furtar reexo sobre as modicaes por que oser humano vem passando, modicaesno apenas mentais, mas tambm

    corporais, moleculares .

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    32 Revista FAMECOS Porto Alegre n 22 dezembro 2003 quadrimestral

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