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O POVO BRASILEIRO DARCY RIBEIRO

Darcy Ribeiro

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O POVO BRASILEIRO DARCY RIBEIROSurgimos da confluncia, do entrechoque e do caldeamento do invasor portugus com ndios silvcolas e campineiros e com negros africanos, uns e outros aliciados como escravos.Povo NovoNovo porque surge como uma etnia nacional, diferenciada culturalmente de suas matrizes formadoras, fortemente mestiada, dinamizada por uma cultura sincrtica e singularizada pela redefinio de traos culturais delas oriundas.Povo Novo um novo modelo de estruturao societria, que inaugura uma forma singular de organizao socioeconmica, fundada num tipo renovado de escravismo e numa servido continuada ao mercado mundial.Povo VelhoVelho, porm, porque se viabiliza como um proletariado externo. Quer dizer, como um implante ultramarino de expanso europeia que no existe para si mesmo, mas para gerar lucros exportveis pelo exerccio da funo de provedor colonial de bens para o mercado mundial, atravs do desgaste de populao que recruta no pas ou importa.O que tenham os brasileiros de singular em relao aos portugueses decorre das qualidades diferenciadoras oriundas de suas matrizes indgenas e africanas; da proporo particular em que elasse encontram no Brasil; das condies ambientais que enfrentaram aqui e, ainda, da natureza dos objetivos de produo que as engajou e reuniu.Foras diversificadoras: A ecolgica, fazendo surgir paisagens humanas distintas onde as condies do meio ambiente obrigaram a adaptaes regionais.A econmica, criando formas diferenciadas de produo, que conduziram a especializaes funcionais e ao seus correspondentes gneros de vida.A imigrao, que introduziu, nesse magma, novos contingentes humanos, principalmente europeus, rabes e japoneses. Mas j o encontrando formado e capaz de absorv-los e abrasileir-los, apenas estrangeirou alguns brasileiros ao gerar diferenciaes nas reas ou nos estratos sociais onde os imigrantes mais se concentramModos de ser dos brasileiros, que permitem distingui-los, hoje, como sertanejos do Nordeste, caboclos da Amaznia, crioulos do litoral, caipiras do Sudeste e Centro-Oeste do pas, gachos das campanhas sulinas, alm de talo-brasileiros, teuto-brasileiros, nipo-brasileiros etc. Todos eles muito mais marcados pelo que tm de comum como brasileiros, do que pelas diferenas devidas a adaptaes regionais ou funcionais, ou de miscigenao e aculturao.A urbanizao, apesar de criar muitos modos citadinhos de ser, contribuiu para ainda mais uniformizar os brasileiros no plano cultural, sem, contudo, borrar suas diferenas.Os brasileiros se sabem, se sentem e se comportam como uma s gente, pertencente a uma mesma etnia. Vale dizer, uma entidade nacional distinta de quantas haja, que fala uma mesma lngua, s diferenciada por sotaques regionais, menos remarcados que os dialetos de Portugal. Participando de um corpo de tradies comuns mais significativo para todos que cada uma das variantes. Mais que uma simples etnia, porm, o Brasil uma etnia nacional, um povo-nao, assentado num territrio prprio e enquadrado dentro de uma mesmo Estado para nele viver seu destino. Ao contrrio da Espanha, na Europa, ou da Guatemala, na Amrica, por exemplo, que so sociedades multiticas regidas por Estados unitrios e, por isso mesmo, dilaceradas por conflitos intertnicos, os brasileiros se integram em uma nica etnia nacional, construindo assim um s povo incorporado em uma nao unificado, num Estado unitnico. A unidade nacional, viabilizada pela integrao econmica sucessiva dos diversos implantes coloniais, foi consolidada, de fato, depois da independncia. Esse , sem dvida, o nico mrito indiscutvel das velhas classes dirigentes brasileiras. Comparando o bloco unitrio resultante da Amrica portuguesa com o mosaico de quadros nacionais diversos a que deu lugar a Amrica hispnica, pode se avaliar a extraordinria importncia desse feito.Essa unidade resultou de um processo continuado e violento de unificao poltica, logrado mediante um esforo deliberado de supresso de toda identidade tnica discrepante e de represso e opresso de toda tendncia virtualmente separatista. Inclusive de movimentos sociais que aspiravam fundamentalmente edificar uma sociedade mais aberta e solidria. A luta pela unificao potencializa e refora, nessas condies, a represso social e classista, castigando como separatistas movimentos que eram meramente republicanos ou antioligrquicos.Subjacente uniformidade cultural brasileira, esconde-se uma profunda distncia social, gerada pelo tipo de estratificao que o prprio processo de formao nacional produziu. O antagonismo classista que corresponde a toda estratificao social aqui se exacerba, para opor uma estreitssima camada privilegiada ao grosso da populao, fazendo as distncias sociais mais intransponveis que as diferenas raciais.Exacerba-se o distanciamento social entre as classes dominantes e as subordinadas, e entre estas e as oprimidas, agravando as oposies para acumular, debaixo da uniformidade tnico-cultural e da unidade nacional, tenses dissociativas de carter traumtico.A estratificao social separa e ope, assim, os brasileiros ricos remediados dos pobres, e todos eles dos miserveis, mais do que corresponde habitualmente a esses antagonismos. Nesse plano, as relaes de classes chegam a ser to infranqueveis que oblitera toda comunicao propriamente humana entre a massa do povo e a minoria privilegiada, que a v e ignora, a trata e a maltrata, a explora e a deplora, como se essa fosse uma conduta natural. A faanha que representou o processo de fuso racial e cultural negada, desse modo, no nvel aparentemente mais fluido das relaes sociais. O espantoso que os brasileiros, orgulhosos de sua to clamada, como falsa, democracia racial, raramente percebem os profundos abismo que aqui separam os estratos sociais.Os privilegiados simplesmente se isolam numa barreira de indiferena para com a sina dos pobres, cuja misria repugnante procuram ignorar ou ocultar numa espcie de miopia social. O povo-massa, sofrido e perplexo, v a ordem social como um sistema sagrado que privilegia uma minoria contemplada por Deus, qual tudo consentido e concedido. Inclusive o dom de serem, s vezes, dadivosos, mas sempre frios e perversos e, invariavelmente, imprevisvel.Efetivamente, poder assumir a forma de convulso social terrvel, porque, com uma exploso emocional, acabaria provavelmente vencida e esmagada por foras repressoras, que restaurariam, sobre os escombros, a velha ordem desigualitria. O grande desafio que o Brasil enfrenta alcanar a necessria lucidez para concatenar essas energias e orient-las politicamente. Com clara conscincia dos riscos de retrocessos e das possibilidades de liberao que elas ensejam.Ao contrrio do que alega a historiografia oficial, nunca faltou aqui, at excedeu, o apelo violncia pela classe dominante como arma, at excedeu, o apelo violncia pela classe dominante como arma fundamental da construo da histria.Faltou sempre, e falta ainda, clamorosamente, uma clara compreenso da histria vivida, como necessria nas circunstncias em que ocorreu, e um claro projeto alternativo de ordenao social, lucidamente formulado, que seja apoiado e adotado como seu pelas grandes maiorias. No impensvel que a reordenao social se faa sem convulso social, por via de um reformismo democrtico. Mas ela muitssimo improvvel neste pas em que uns poucos milhares de grandes proprietrios podem aambarcar a maior parte de seu territrio, compelindo milhes de trabalhadores a se urbanizarem para viver a vida famlica das favelas.Este livro um esforo para contribuir ao atendimento desse reclamo de lucidez. Isso o que tentei fazer a seguir. Primeiro, pela anlise do processo de gestao tnica que deu nascimento aos ncleos originais que, multiplicados, vieram a formar o povo brasileiro. Depois, pelo estudo das linhas de diversificao que plasmaram os nossos modos regionais de ser. E, finalmente, por via da crtica do sistema institucional, notadamente a propriedade fundiria e o regime de trabalho no mbito do qual o povo brasileiro surgiu e cresceu, constrangido e deformado. Matrizes tnicasA Ilha Brasil A costa atlntica, ao longo dos milnios, foi percorrida e ocupada por inumerveis povos indgenas. Disputando os melhores nichos ecolgicos, eles se alojavam, desalojavam, incessantemente.No era, obviamente, uma nao, porque eles no se sabiam tantos nem to dominadores. Eram, to s, uma mirade de povos tribais, cada um dos quais crescer, se bipartia, fazendo dois povos que comeavam a se diferenciar e logo se desconheciam e se hostilizavam.Expanso por Diferenciao. O que aconteceu, e mudou total e radicalmente seu destino, foi a introduo no seu mundo de um protagonista novo, europeu. Embora minsculo, o grupelho recm-chegado de alm-mar era superagressivo e capaz de atuar destrutivamente de mltiplas formas.Esse conflito se d em todos os nveis:Predominantemente no bitico, como uma guerra bacteriolgica travada pelas pestes que o invasor trazia no corpo e eram mortais para as populaes indenes.No ecolgico, pela disputa do territrio, de suas matas e riquezas para outro uso.No econmico e social, pela escravizao do ndio, pela mercantilizao das relaes de produo, que articulou os novos mundos ao velho mundo europeu como provedores de gneros exticos, cativos e ouros.Reconstruir esse processo parece impossvel, porque s temos o testemunho de um dos protagonistas, o invasor. O que a documentao copiosssima nos conta a verso do dominador. Lendo-a criticamente, que podemos alcanar a necessria compreenso dessa desventurada aventura.Matriz Tupi Na escala da evoluo cultural, os povos Tupi davam os primeiros passos da revoluo agrcola, superando assim a condio paleoltica, tal como ocorrera pela primeira vez, h 10 mil anos, por um caminho prprio, juntamente com outros povos da floresta tropical que haviam domesticado diversas plantas, retirando-as da condio selvagem para a de mantimento de seus roados.

A agricultura lhes assegurava fartura alimentar durante todo o ano e uma grande variedade de matrias-primas, condimentos, venenos e estimulantes. Desse modo, superavam a situao de carncia alimentar a que esto sujeitos os povos pr-agrcolas.Eram, todavia, conglomerados pr-urbanos (aldeias agrcolas indiferenciadas), porque todos os moradores estavam compelidos produo de alimentos, s liberando dela, excepcionalmente, alguns lderes religiosos (Pajs e carabas) e uns poucos chefes guerreiros (tuxauas). Os ndios do tronco tupi no puderam jamais unificar-se numa organizao poltica que lhes permitisse atuar conjugalmente.Mesmo e face do novo inimigo, vindo de alm-mar, os Tupis s conseguiram estruturar efmeras confederaes regionais que logo desapareceram. A mais importante delas, conhecida como Confederao dos Tamoios, foi ensejada pela aliana com os franceses instalados na baa de Guanabara. Reuniu, de 1563 a 1567, os Tupinamb no Rio de Janeiro e os Carijs do planalto paulista ajudados pelos Goitac e pelos Aimors da Serra do Mar, que eram de lngua j para fazerem a guerra aos portugueses e aos outros grupos indgenas que os apoiavam. Nessa guerra inverossmil da Reforma versus Contrarreforma, dos calvinistas contra jesutas, em que tanto os franceses como os portugueses combatiam com exrcitos indgenas de milhares de guerreiros 4557, segundo Lry; 12 mil nos dois lados na batalha final do Rio de Janeiro, em 1567. Os Tamoio venceram diversas batalhas, mas foram, afinal, vencidos pelas tropas indgenas aliciadas pelos jesutas. Os conflitos eram causados por disputas pelos stios mais apropriados lavoura, caa e pesca. No segundo, eram movidos por uma animosidade culturamente condicionada: uma forma de interao intertribal que se efetuava atravs de expedies guerreiras, visando a captura de prisioneiros para a antropofagia ritual.A antropofagia era tambm uma expresso do atraso relativo dos povos Tupi. Comiam seus prisioneiros de guerra porque, com a rudimentariedade de seu sistema produtivo, um cativeiro rendia pouco mais do que consumia, no existindo, portanto, incentivos para integr-lo comunidade como escravo.O contraste maior se registrou entre aquele povo mameluco, que se fazia brasileiro, e um contendor realmente capaz de amea-lo, que eram os Guaikuru, tambm chamados ndios cavaleiros. Adotando o cavalo, que para os outros ndios era apenas uma caa nova que se multiplicava nos campos, eles se reestruturaram como chefaturas pastoris que enfrentaram vigorosamente o invasor, infringindo-lhes derrotas e perdas que chegaram a ameaar a expanso europeia.Os Guaikuru aprenderam rapidamente a praticar escambo, preando escravos negros e tambm senhores e senhoras europeus e muitssimos mamelucos, tantos quanto pudessem, para vender em Assuno.Sem embargo, guardaram at o fim, e ainda guardam, sua soberba, na forma de uma identificao orgulhosa consigo mesmo que os contrasta, vigorosamente, com todos os demais ndios, como pude testemunhar nos anos em que convivi nas aldeias, por volta de 1947.O enxame de invasores era a presena local avanada de uma vasta e vetusta civilizao urbana e clssica. Seu centro de deciso estava nas longuras de Lisboa, dotada sua Corte de muitos servios, sobretudo do poderoso Conselho Ultramarino que tudo previa, planificava, ordenava, provia. Outro coordenador poderosssimo era a Igreja catlica, com seu brao repressivo, o Santo Ofcio.InimigosNo conjunto, destacava-se, primeiro, uma ausncia poderosssima, e da Espanha, objeto de especial ateno como ameaa sombria e permanente de absoro e liquidao da lusitanidade. Vinham, depois, como entidades ativamente contrapostas a Portugal na disputa por seus novos mundos, a Inglaterra e a Holanda. Sobre todas elas pairava Roma, do Vaticano, a da Santa S, como centro de legitimao e de sacralizao de qualquer empreendimento mundial e centro da f regida em seu nome por um vasto clero assentado em inumerveis igrejas e conventos. Se guia-se o poderosssimo aparato de estados mercantis armados, hostis entre si, mal e mal contidos pela regncia papal, to acatada por uns como atacada por outros.Energias transformadoras da revoluo mercantil, fundada especialmente na nova tecnologia, concentrada na nau ocenica, com suas novas velas de mar alto, seu leme fixo, sua bssola, seu astrolbio e , sobretudo, seu conjunto de canhes de guerra. Com ela surgiam solidrias a tipografia de Gutenberg, duplicando a disponibilidade de livros, alm do ferro fundido, generalizando utenslios e apetrechos de guerra.Suas cincias eram um esforo de concentrar com um saber a experincias que se ia acumulando. E, sobretudo, fazer praticar esse conhecimento para descobrir qualquer ser achvel, a fim de a todo o mundo estruturar num mundo s, regido pela Europa. Tudo isso com o fim de carregar para l toda a riqueza saquevel e, depois, todo o produto da capacidade de produo dos povos concritos.Era a humanidade mesma que entrava noutra instncia de sua existncia, na qual se extinguiram milhares de povos. O motor dessa expanso era o processo civilizatrio que deu nascimento a dois Estados nacionais: Portugal e Espanha. No era assim, naturalmente, que eles se viam, os gestores dessa expanso. Eles se davam ao luxo de propor-se motivaes mais nobres que as mercantis, definindo-se como os expansores da cristandade catlica sobre os povos existentes e por existir no alm-mar.O ENFRENTAMENTO DOS MUNDOSAS OPOSTAS VISES

Os ndios perceberam a chegada do europeu como um acontecimento espantoso. (p.38)Provavelmente seriam pessoas generosas, achavam os ndios.Mesmo porque, no seu mundo, mais belo era dar que receber.(p.38)Muitos deles embarcaram confiantes nas primeiras naus, crendo que seriam levados a Terras sem Males, morada de Mara (Newen Zeytung 1515). Tanto que o ndio passou a ser, depois do pau-brasil, a principal mercadoria de exportao para a metrpole. (p.38)Mais tarde, com a destruio das bases da vida social indgena, a negao de todos os seus valores, o despojo, o cativeiro, muitssimos ndios deitavam em suas redes e deixavam morrer, como s eles tm o poder de fazer. Morriam de tristeza, certos e que todo o futuro possvel seria a negao mais horrvel do passado, uma vida indigna de ser vivida por gente verdadeira. (p.39)Suas concepes, no s diferentes mas opostas, do mundo, da vida, da morte, do amor, se chocaram cruamente. (p.39)Para os que chegavam, o mundo em que entravam era a arena dos seus ganhos, em ouros e glrias, ainda que estas fossem principalmente espirituais, ou parecessem ser, como ocorriam com os missionrios. Para alcan-las, tudo lhes era concedido. (p.40)Eles eram, ou se viam, como novos cruzados destinados a assaltar e saquear tmulos e templos de hereges indianos. (p.40)Para os ndios que ali estavam, nus na praia, o mundo era um luxo de se viver, to rico de aves, de peixes, de razes, de frutos, de flores, de sementes, que podia dar as alegrias de caar, de pescar, de plantar e colher a quanta gente aqui viesse ter. Na sua concepo sbia e singela, a vida era a ddiva de deuses bons, que lhes doaram esplndidos corpos, bons de andar, de correr, de nadar, de danar, de lutar. (p.40)Aos olhos dos recm-chegados, aquela indiana lou(p.41)

Tinha um defeito capital: eram vadios, vivendo uma vida intil e sem prestana. Que que produziam? Nada. Que que amealhavam? Nada. Viviam suas fteis vidas fartas, como se neste mundo s lhes coubesse viver. (p.41)Trabalhais tanto para amontoar riquezas para vossos filhos ou para aqueles que vos sobrevivem! No ser a terra que vos nutriu suficiente para aliment-los tambm? Temos pais, mes e filhos a quem amamos; mas estamos certos de que depois da nossa morte a terra que nos nutriu tambm os nutrir, por isso descansamos sem maiores cuidados (Lry 1960:151-61). p.42Para os ndios, a vida era uma tranquila fruio da existncia, num mundo dadivoso e numa sociedade solidria. (p.42)Para os recm-chegados, muito ao contrrio, a vida era uma tarefa, uma sofrida obrigao, que a todos condenava ao trabalho e tudo subordinava ao lucro. (p.43)A vontade mais veemente daqueles heris dalm-mar era exercer-se sobre aquela gente vivente como seus duros senhores. (p.43)O contraste no podia ser maior, nem mais infranquevel, em incompreenso recproca. (p.43)O invasor, vinha com as mos cheias e as naus abarrotadas de machados, facas, faces, canivetes, tesouras, espelhos e, tambm, miangas cristalizadas em cores opalinas. Quanto ndio se desembestou, enlouquecido, contra outros ndios e at contra seu prprio povo, por amor dessas preciosidades! No podendo produzi-las, tiveram de encontrar e sofrer todos os modos de pagar seus preos, na medida em que elas se tornaram indispensveis. (p.44)RAZES DESENCONTRADAS

Frente invaso europeia, os ndios defenderam at o limite possvel seu modo de ser e de viver. Sobretudo depois de perderem as iluses dos primeiros contatos pacficos, quando perceberam que a submisso ao invasor representava sua desumanizao como bestas de carga. Nesse conflito de vida ou morte, os ndios de um lado e os colonizadores do outro punham todas as suas energias, armas e astcias. (p.44)As vitrias europeias se deveram principalmente condio evolutiva mais alta das incipientes comunidades neobrasileiras, que lhes permitia aglutinar-se em uma nica entidade poltica servida por uma cultura letrada. Paradoxalmente, porm, o prprio atraso dos ndios que os fazia mais resistentes subjugao, condicionando uma guerra secular d extermnio. (p.45)As crnicas coloniais registram copiosamente essa guerra sem quartel de europeus armados e canhes e arcabuzes contra indgenas que contavam unicamente com tacapes, zarabatanas, arcos e flechas. Ainda assim, os cronistas destacam com gosto e orgulho o herosmo lusitano. (p.45)O elogio tanto mais compreensvel quando se recorda que Mem de S, com suas guerras de subjugao e extermnio, estava executando rigorosamente o plano de colonizao proposto pelo padre Nbrega em 1558. Em sua eloquncia espantosa, um dos argumentos de que lana mo a alegao da necessidade de pr termo antropofagia. Outro argumento no menos expressivo a convenincia de escravizar logo aos ndios todos para que no sejam escravizados ilegalmente. (p.45-46)Aplicado a ferro e fogo por Mem de S, esse programa levou o desespero e a destruio a cerca de trezentas aldeias indgenas na costa brasileira do sculo XVI.(p.47)As grandes armas da conquista, responsveis principais pela depopulao do Brasil, foram as enfermidades desconhecidas dos ndios com que os invasores os contaminaram. Cerca de 40 mil ndios reunidos insensatamente pelos jesutas nas aldeias do Recncavo, em meados do sculo XVI, atacados de varola, morreram quase todos, deixando os 3 mil sobreviventes to enfraquecidos que foi impossvel reconstituir a misso. (p.47)Mais brbaro ainda era o projeto oposto, igualmente defendido no plano ideolgico e muito mais eficaz no plano prtico. A melhor expresso dele se deveu a Domingos Jorge Velho em carta a el-rei. Datada de 1694, em que o grande capito dos mamelucos paulistas declara, soberbo, de seus combatentes , que no gente matriculada nos livros de Vossa Majestade, no recebem soldo, nem ajuda de pano, ou munio. So umas agregaes que fazemos, algum de ns, entrando cada um com seus servos de armas que tm. Acrescenta que no vo ao mato cativar ndios, como alguns pretendem fazer crer a Vossa Majestade, para civilizar selvagens. Vo, com suas prprias palavras, adquirir o tapuia gentio-brabo e comedor de carne humana, para o reduzir para o conhecimento da urbana humanidade e humana sociedade. Alga, ainda ,que em vo trabalha que os quer fazer anjos, antes de os fazer homens. (p.48)Em poucas dcadas desapareceram as povoaes indgenas que as caravelas do descobrimento encontraram por toda a costa brasileira e em seu lugar haviam se instalado trs tipos novos de povoaes. O primeiro e principal, formado pelas concentraes de escravos africanos dos engenhos e portos. O outro, disperso pelos vilarejos e stios da costa ou pelos campos d criao de gado, formado principalmente por mamelucos e brancos pobres. O terceiro esteve constitudo pelos ndios incorporados empresa colonial como escravos de outros ncleos ou concentrados nas aldeias, algumas das quais conservavam sua autonomia, enquanto outras eram regidas por missionrios. (p.48)Tal foi a ferocidade da colonizao leiga que estalou, algumas dcadas depois, um srio conflito entre os padres da Companhia e os povoadores dos ncleos agrrio-mercantis. Para os primeiros, os ndios, ento em declnio e ameaados de extino, passaram a ser criaturas de Deus e donos originais da terra, com direito a sobreviver se abandonassem suas heresias para se incorporarem ao rebanho da Igreja, na qualidade de operrios da empresa colonial recolhidos s misses. Para os colonos, os ndios eram um gado humano, cuja natureza, mais prxima de bicho que de gente, s os recomendava escravido. (p.49)Quase sempre fez vista grossa escravido indgena, que desse modo se tornou inevitvel, dando o carter da prpria empresa colonial, especialmente nas reas pobres. Impedidos de comprar escravos negros, porque eram caros demais, os colonos de So Paulo e outras regies se viram na contingncia de se servir dos silvcolas, ou de ter como seu principal negcio a preia e venda de ndios. (p.49)Em diversas regies mas sobretudo em So Paulo, no Maranho e no Amazonas foram grandes os conflitos entre jesutas e colonos, defendendo, cada qual, sua soluo relativa aos aborgenes: a reduo missionria ou a escravido. A curto ou longo prazo, triunfaram os colonos, que usaram os ndios como guias, remadores, lenhadores, caadores e pescadores, criados domsticos, artesos; e sobretudo as ndias, como os ventres nos quais engendraram uma vasta prole mestia, que viria a ser, depois, o grosso da gente da terra: os brasileiros. (p.49)Os jesutas, quiseram pr em prtica, tambm no Brasil, um projeto utpico de reconstruo intencional da vida social dos ndios destribalizados. Tais foram suas misses, nas quais os ndios eram concentrados depois de atrados pelos padres ou subjugados pelo brao secular em comunidades ferreamente organizadas como economias autossuficientes, ainda que tambm tivessem alguma produo mercantil. Isso se daria na segunda onda de evangelizao, realizada na Amaznia. (p. 49-50)O propsito explcito dos jesutas no era destruir os ndios, mas o resultado de sua poltica no podia ser mais letal se tivesse sido programada para isso. (p.51)No segundo sculo, j enriquecidos de seu triste papel e tambm representados por figuras mais capazes de indignao moral, como Antnio Vieira, os jesutas assumiram grandes riscos no resguardo e na defesa dos ndios. Foram, por isso, expulsos, primeiro, de So Paulo e, depois, do estado do Maranho e Gro-Par pelos colonos. Afinal, a prpria Coroa, na pessoa do marqus de Pombal, decide acabar com aquela experincia socialista precoce, expulsando-os do Brasil. (p.51)O SALVACIONISMO

Aqueles ndios, to diferentes dos europeus, que os viam e os descreviam, mas tambm to semelhantes, seriam eles tambm membros do gnero humano, feitos do mesmo barro pelas mos de Deus, sua imagem e semelhana? Caram na impiedade. Teriam salvao? (p.52) Se foi compondo um discurso cada vez mais racional e cada vez mais insano, frente realidade do que sucedeu aos ndios: esmagados e escravizados pelo colonizador, cego e surdo a razes que no fossem as do haver e do dever pecunirios. (p.53)Esses discursos respondiam a uma necessidade igualmente imperativa. A de atribuir alguma dignidade formal guerra de extermnio que se levava adiante, brutalidade da conquista, perversidade da eliminao de tantos povos. (p.53)De todo o debate, s reduzia, clara como o sol, para a cpula real e para a Igreja, a misso salvacionista que cumpria cristandade exercer, a ferro e fogo, se preciso, para incorporar as novas gentes ao rebanho do rei e da Igreja. (p.54)Configuram-se, assim, duas destinaes cruamente opostas, desfrutando, cada qual, o predomnio na dominao do Novo Mundo. De um lado, a dos colonos, frente de seus negcios. Do outro lado, a dos religiosos, frente de suas misses. Em princpio, em terra to vasta, trabalhando em cada qual em sua provncia, puderam crescer paralelamente, mas logo o contraste se converteu em conflito aberto. (p.54)A histria faria prevalecer o plano oposto, obrigando os prprios evangelizadores a cumprir o projeto colonial atravs da guerra genocida contra todos os ndios e da ao missionria, a seu pesar, etnocida. (p.55)A tarefa a que os missionrios se propunham no era transplantar os modos europeus de ser e de viver para o Novo Mundo. Era, ao contrrio, recriar aqui o humano, desenvolvendo suas melhores potencialidades, para implantar, afinal, uma sociedade solidria, igualitria, orante e pia, nas bases sonhadas pelos profetas. (p.55)Essas utopias se opunham to cruamente ao projeto colonial que a guerra se instalou prontamente entre colonos e sacerdotes. Foi um desastre, mesmo onde as misses se implantaram produtivas e at rentveis para a prpria Coroa como ocorreu com as dos Sete Povos, no sul, e ao norte, na misso tardia na Amaznia prevaleceu a vontade do colono, que via nos ndios a fora de trabalho de que necessitava para prosperar. (p.56)As Coroas, optaram, ambas, pelo projeto colonial. Os msticos haviam cumprido j a sua funo de dignificar a ao conquistadora. Agora, deviam dar lugar aos homens prticos, que assentariam e consolidariam as bases do imprio maior que jamais se viu. Em lugar de sacros reinos pios, sob reis missionrios a servio da Igreja e de Deus, os reis de Espanha e de Portugal queriam o reino deste mundo. (p.57)O PROCESSO CIVILIZATRIO POVOS GERMINAIS

O processo civilizatrio, acionado pela revoluo tecnolgica que possibilitou a navegao ocenica, transfigurou as naes ibricas, estruturando-as como imprios mercantis salvacionistas. (p.58)As teorias explicativas da histria mundial no oferecem categorias tericas capazes de explicar seja o poderio singular que alcanou a civilizao rabe por mais de um milnio de esplendor, seja a expanso ibrica, que criou a primeira civilizao universal. Essa carncia que nos obrigou, em nosso estudo do processo civilizatrio (Ribeiro 1968), a propor, com respeito ao mundo rabe, a categoria de imprio desptico salvacionista, enfatizando o carter atpico de seu salvacionismo, que nunca quis converter ningum. (p.58)

Ao mundo ibrico propusemos a categoria de imprio mercantil salvacionista, gerado pela mesma revoluo tecnolgica, a mercantil, que deu acesso ao ultramar. Tecnologia gerada no mundo rabe e no mundo oriental, mas acolhida e concatenada primeiro pelos portugueses. (p.58)Os iberos, num primeiro movimento, se livraram da secular ocupao rabe e expulsaram seu contingente judeu, assumindo inteiro comando de seu territrio atravs de um poder centralizado que no deixava espao para qualquer autonomia feudal ou qualquer monoplio comercial. (p.58-59)Num segundo movimento, se expandiram pelos mares, lanando-os em guerras de conquista, de saqueio e de evangelizao sobre os povos da frica, da sia e, principalmente, das Amricas. Estabeleceram, assim, os fundamentos do primeiro sistema econmico mundial, interrompendo o desenvolvimento autnomo das grandes civilizaes americanas. (p.59)Viabilizando-a na base dos saberes indgenas, que permitiram a adaptao do europeu em outras latitudes, e provendo largamente a fora de trabalho que as inseriu no mercado mundial em formao. (p.59)Naes germinais, como Roma no passado, foram os iberos, os ingleses e os russos no mundo moderno. Cada um deles deu origem a uma variante pondervel da humanidade a latino-americana, a neobritnica e a eslava , criando gentes to homogneas entre si, como diferenciadas de todas as demais. (p.59)Os eslavos, simultaneamente, se expandiram pelas suas estepes e tundras e foram ter no Alasca, Mas, contidos pelo esclerosamento de sua sociedade arcaica, rigidamente estratificada refrearam seu el de conquistar novos mundos. (p.59)Os ingleses se expandiram como operosos granjeiros puritanos ou como uma burguesia industrial e negocista, que calculava bem cada um dos seus lances. Empenhados em outro gnero de colonizao, sua tarefa era a de transplantar sua paisagem mundo afora, recriando pequenas Inglaterras, desatentos ou indiferentes ao que havia aonde chegaram. (p. 59-60)A causa primeira da expanso ultramarina, e portanto dos descobrimentos, fora a precoce unificao nacional de Portugal e da Espanha, movidos por toda uma revoluo tecnolgica que lhes deu acesso ao mundo inteiro com suas naus armadas, gestando uma nova civilizao. (p.60)Seu poderio cresce tanto que a certa altura a Espanha se prope exercer sua soberania tambm sobre a Europa. Portugal se v compelido a aliar-se Inglaterra, para manter sua independncia. (p.61)Nesses conflitos de amplitude mundial, a Ibria se debilita tanto que acaba por sucumbir como cabea do Imprio mundial sonhado tantas vezes. Sucumbe, porm, l nos conflitos com seus pares. C, nos novos mundos, seus smens continuam fecundando prodigiosamente a mestiagem americana; sua lngua e sua cultura prosseguem expandindo-se. (p.61)As dimenses desses domnios eram as do orbe que acabavam de ocupar. Sua heterogeneidade tnica original, ao contrrio, era sem paralelo na histria humana. S foi rompida e refundida atravs do esforo continuado de sculos, anulando qualquer veleidade tnica ou qualquer direito de autodeterminao dos povos avassalados. (p.61)Assim que a Ibria e a Gr-Bretanha, to recheadas de duras resistncias dos povos que englobam em seus territrios, que jamais conseguiram digerir, aqui deglutem e dissolvem quase tudo. (p.61)No Brasil, de ndios e negros, a obra colonial de Portugal foi tambm radical. Seu produto verdadeiro no foram os ouros afanosamente buscados e achados, nem as mercadorias produzidas e exportadas. Seu produto real foi um povo-nao, aqui plasmado principalmente pela mestiagem, que se multiplica prodigiosamente como uma morena humanidade em flor, espera do seu destino. (p.62)Nada mais continuado, tampouco to permanente, ao longo desses cinco sculos, do que essa classe dirigente exgena e infiel a seu povo. No af de gastar gentes e matas, bichos e coisas para lucrar, acabam com as florestas mais portentosas da terra. Desmontam morrarias incomensurveis, na busca de minerais. Erodem e arrasam terras sem conta. Gastam gente, aos milhes. (p.62) Tudo, nos sculos, transformou-se incessantemente. S ela, a classe dirigente, permaneceu igual a si mesma, exercendo sua interminvel hegemonia. (p.62)O BARROCO E O GTICO

Dois estilos de colonizao se inauguram no norte e no sul do Novo Mundo. L, o gtico altivo de frias gentes nrdicas [...] (p.63)

C, o barroco das gentes ibricas, mestiadas, que se mesclavam com os ndios, no lhes reconhecendo direitos que no fosse o de se multiplicarem em mais braos, postos a seu servio. Ao apartheid dos nrdicos, opunham o assimilacionismo dos caldeadores. Um a tolerncia soberba e orgulhosa dos que se sabem diferentes e assim querem permanecer. Outro a tolerncia opressiva, de quem quer conviver reinando sobre os corpos e as almas os cativos, ndios e pretos, que s podem conceber como os que devero ser, amanh, seus equivalentes, porque toda a diferena lhe intolervel. (p.63)Aqueles senhores gticos, de que suas novas ptrias no esperavam riquezas, se deram terras para viverem probas existncias camponesas. Como no havia que sujeit-los ao trabalho escravo, porque eram incapazes de produzir qualquer mercadoria prestante, lhes deram terra e liberdade. (p.63)Nada disso ocorre no mundo do barroco. Aqui, a Europa se defronta com multides de povos exticos, selvagens uns, civilizados outros, que podiam ser mobilizados como a mo de obra indispensvel para gerar riquezas que ali estavam, vista, ou que facilmente se podiam produzir . (p.64)Aqui, nenhuma terra se desperdia com o povo que se ia gerando. De toda ela se apropria a classe dominante, menos para uso, porque demasiada demais, mas a fim de obrigar os gentios subjugados a trabalhar em terra alheia. Nenhuma liberdade se consente, tambm, porque se trata com hereges a catequizar, livrando-os da perdio eterna. (p.64)Se considerando mais perfeitos, prudentes e pios, se avantajavam tanto a selvageria que seu destino era impor-se a ela como domnio natural dos bons sobre maus, dos sbios sobre os ignaros. (p.64)Era a dialtica do senhorio natural do cristo contra a servido, natural tambm, do brbaro. (p.65)Tal a fora dessa ideologia que ainda hoje ela impera, sobranceira. Faz a cabea do senhorio classista convencido de que orienta e civiliza seus serviais, forando-os a superar sua preguia inata para viverem vidas mais fecundas e mais lucrativas. Faz, tambm, a cabea dos oprimidos, que aprendem a ver a ordem social como sagrada e seu papel nela prescrito de criaturas de Deus em povoao, a caminho da vida eterna. (p.65)No plano histrico-cultural, os nrdicos realizam algumas das potencialidades da civilizao ocidental, como extenso sensaborona e legtima dela. Ns, ao contrrio, somos a promessa de uma nova civilizao remarcada por singularidades, principalmente, africanidades. J por isso, aparecemos a olhos europeus como gentes bizarras, o que, somado nossa tropicalidade ndia, chega para aqueles mesmos olhos a nos fazer exticos. (p.66)No somos e ningum nos toma como extenses de branquitudes, dessas que se acham a forma mais normal de ser humano. Ms no. Temos outras pautas e outros modos tomados de mais gentes. O que, bom lembrar, no nos faz mais pobres, mais ricos de humanidades, quer dizer, mais humanos. Essa nossa singularidade bizarra esteve mil vezes ameaada, mas afortunadamente conseguiu conciliar-se [...]ATUALIZAO HISTRICA

Estamos diante do resultado de um processo civilizatrio que, interrompendo a linha evolutiva prvia das populaes indgenas brasileiras, depois de subjug-las, recruta seus remanescentes como mo de obra servil de uma nova sociedade. No caso, esse passo se d por incorporao ou atualizao histrica que supe a perda da autonomia tnica dos ncleos engajados, sua dominao e transfigurao , estabelecendo as bases sobre as quais se edificaria da em diante a sociedade brasileira. (p.67)Tais bases se definiram com claridade com a implantao dos primeiros engenhos aucareiros que, vinculando os antigos ncleos extrativistas ao mercado mundial, viabilizavam sua existncia na condio socioeconmica de um proletariado externo, estruturado com uma colnia mercantil-escravista da metrpole portuguesa. (p.67)No plano adaptativo isto , o relativo tecnologia com que se produzem e reproduzem as condies materiais de existncia os ncleos coloniais brasileiros se estabeleceram nas seguintes bases:A incorporao da tecnologia europeia aplicada produo, ao transporte, construo, guerra, com o uso de instrumentos de metal e de mltiplos dispositivos mecnicos;A navegao transocenica que integrava os novos mundos em uma economia mundial, como produtores de mercadorias de exportao e como importadores de negros escravos e bens de consumo;O estabelecimento do engenho de cana, baseado na aplicao de complexos procedimentos agrcolas, qumicos e mecnicos para a produo de acar;e, depois, a minerao de ouro e diamante que envolviam o domnio de novas tecnologias;A introduo do gado, que fornecia carne e couro , bem como a criao de porcos, galinhas e outros animais domsticos que, associada lavoura tropical indgena, proveria a subsistncia dos ncleos coloniais;A adoo e difuso de novas espcies de plantas cultivveis, tanto alimentcias quanto industriais, que viriam a assumir, mais tarde, importncia decisiva na vida econmica de diversas variantes da sociedade nacional;A singela tecnologia portuguesa de produo de tijolos e telhas, sapatos e chapus, sabo, cachaa, rodas de carros, pontes e barcos, etc. (p.67-68)No plano associativo quer dizer, no que concerne aos modos de organizao da vida social e econmica, bipartiu que a sociedade em componentes rurais e urbanos e estratificou em classes antagonicamente opostas umas outras, ainda que interdependentes pela complementaridade de seus respectivos papis;Introduo da escravatura indgena, logo substituda pelo trfico de escravos africanos.Integrao de todos os ncleos locais em uma estrutura sociopoltica nica, que teria como classe dominante um patronato de empresas e uma elite patricial dirigenteDisponibilidade de capitais financeiros para custear a implantao das empresas, prov-las de escravos e outros recursos produtivos e capacitados para arrecadar as rendas que produzissem.(p.68)No plano ideolgico ou seja, o relativo s formas de comunicao, ao saber, as crenas, criao artstica e autoimagem tnica .

A lngua portuguesa, que se difunde lentamente, sculo aps sculo, at converter-se no veculo nico de comunicao das comunidades brasileiras entre si e delas com a metrpole;Um minsculo estrato social de letrados que orienta as atividades mais complexas e opera como centro difusor de conhecimentos, crenas e valores;Uma Igreja oficial, associada a um Estado salvacionista;Artistas que exercem suas atividades obedientes aos gneros e estilos europeus, principalmente o barroco, dentro de cujos cannes a nova sociedade comea a expressar-se onde e quando exibe algum fausto.(p.69)Regncia colonial portuguesa que as conformou com uma filial lusitana da civilizao europeia.Isso explica a ausncia de uma classe dominante nativa. (p.69)Com base nessa comunidade atpica e em seu acervo sociocultural,as novas entidades puderam enfrentar prontamente dois desafios cruciais. Um foi aniquilar os grupos indgenas que, no havendo sido apresados e obrigados a trabalhar como escravos, se afastaram do litoral e hostilizavam, desde o interior os ncleos neobrasileiros assentados na costa. Outro foi manter a regncia colonial portuguesa sobre ncleos neobrasileiros, que cresceram mantendo sua estratificao social interna e sua dependncia com relao metrpole. (p.70)GESTO TNICACRIATRIO DE GENTE

O CUNHADISMO

A instituio que possibilitou a formao do povo brasileiro foi o cunhadismo, velho uso indgena de incorporar estranhos sua comunidade. Consistia em lhes dar uma moa ndia como esposa. Assim que ele a assumisse, estabelecia, automaticamente, mil laos que o aparentavam com todos os membros do grupo. (p.72)A documentao espanhola, mais rica nisso, revela que em Assuno havia europeus com mais de oitenta temeric. A importncia era enorme e decorria de que aquele adventcio passava a contar uma multido de parentes, que podia pr a seu servio, seja para seu conforto pessoal, seja para a produo de mercadorias. (p.72)A instituio funcionava como uma forma vasta e eficaz de recrutamento de mo de obra para os trabalhos pesados de cortar paus-de-tinta, transportar e carregar para os navios, caar e amestrar papagaios e sons. (p.73)A funo do cunhadismo na sua nova insero civilizatria foi fazer surgir a numerosa camada de gente mestia que efetivamente ocupou o Brasil. (p.73)Sem a prtica do cunhadismo, era impraticvel a criao do Brasil. (p.73)Com base no cunhadismo se estabelecem criatrios de gente mestia nos focos onde nufragos e degredados se assentaram. (p.73)O primeiro e principal desses ncleos o paulista, assentado muito precocemente na costa, talvez at antes da chegada de Cabral. (p.74)Outro ncleo pioneiro, de importncia essencial, foi o de Diogo Alvares, Cramuru, pai herldico dos baianos. Ele se fixou, em 1510, na Bahia, tambm cercado de numerosa famlia indgena. Conseguiu manter certo equilbrio entre a indiana com que convivia cunhadalmente e os lusitanos que foram chegando. Converteu-se, assim, na base essencial da instalao lusitana na Bahia. Ajudou at mesmo os jesutas e legou bens a eles em seu testamento. (p.75)Um terceiro ncleo de importncia relativamente foi o de Pernambuco, em que vrios portugueses, associados com os ndios Tabajara, produziram quantidade de mamelucos. (p.75)Os franceses, por igual, fundaram seus criatrios com base no cunhadismo. Tantos que, no dizer do Capristano de Abreu, por muito tempo no se soube se o Brasil seria portugus ou francs, tal a fora de sua presena e o poder de sua influncia junto aos ndios. O principal deles foi o que se implantou na Guanabara, junto aos Tamoio do Rio de Janeiro, gerando mais de mil mamelucos que viviam ao longo dos rios que desguam na baa. Inclusive na Ilha do Governador, onde deveria se implantara Frana Antrtica.(p.76)

Os espanhis tambm participaram da fase cunhadstica da implantao europeia na costa brasileira. As crnicas falam de um Pero Galego, castelhano, intrprete dos Potiguara, que vivia com os beios furados como eles. Sua influncia teria sido grande, como se v pelo papel que representou na expulso dos portugueses da Paraba e, depois, nas lutas do Maranho, sempre ao lado dos franceses. (p.76)O GOVERNO GERAL

Para preservar seus interesses, ameaados pelo cunhadismo generalizado, a Coroa Portuguesa ps em execuo, em 1532, o regime das donatarias. Quase todos os contemplados vieram tomar posse com a funo de povo-las e faz-las produzir, elevando a economia colonial a um novo patamar. (p.76)O projeto real era enfrentar seus competidores povoando o Brasil atravs da transladao forada de degredados. (p.76)As donatarias, distribudas a grandes senhores, agregados ao trono e com fortunas prprias para coloniz-las, constituram verdadeiras provncias. Algumas delas alcanaram xito, como as de Pernambuco e de So Vicente.Quase todos deixaram novos povoados europeus, organizados em bases completamente novas, nas quais o ndio j no era um parente, mas mo de obra recrutvel como escrava. (p.77)A sorte corria variadamente em cada provncia quando a Coroa, descontente com o que se alcanara, pe sob controle as donatarias que sobreviveram. Implanta para isso um Governo Geral, com Tom Souza. Agora, na forma de vilas, com pelourinho, contingentes militares armados e fortificados, trazendo ao Brasil numerosos povoadores. (p.79)O primeiro governador chega ao Brasil em 1549, em trs naus, duas caravelas e um bergantim. Traziam funcionrios civis e militares, soldados e artesos. Mais de mil pessoas ao todo, principalmente degredados. Com ele vieram novos colonos, bem como os primeiros jesutas. Nbrega, mais velho e experiente, frente, e mais trs padres e dois irmos; Anchieta, um rapago de dezenove anos, veio na leva seguinte. (p.79)O governo instala-se na Bahia, construindo a cidade com a gente que trazia e com o apoio dos ndios e mamelucos de Caramuru. (p.79)No vieram mulheres solteiras, exceto, ao que se sabe, uma escrava provavelmente moura, que foi objeto de viva disputa. Consequentemente, os recm-chegados acasalaram-se comas ndias, tomando, como era uso na terra, tantas quantas pudessem, entrando a produzir mais mamelucos. (p.79)Nbrega assinala que para Pernambuco no era necessrio mandar mulheres nem meninos, por haverem muitas filhas de homens brancos e de ndias da terra, as quais todas agora casaro, com a ajuda do Senhor (carta de 1551 in Nbrega 1955:102). Eram as mamelucas, ingressando na histria do Brasil, como suas mes primrias. J no sendo ndias, procuravam espao para ser alguma categoria de gente digna. A nica que lhes abria era de fiis contritas dos santos catlicos, seguidoras entusiastas dos cultos. Essa foi a nica converso que os padres alcanaram. Elas foram, de fato, as implantadoras do catolicismo popular santeiro no Brasil. (p.80)O osso mais duro de roer para o novo governador, e principalmente para os jesutas, foi o enfrentamento com a Frana Antrtica, implantada quase simultaneamente na baa da Guanabara, com base nos numerosos ncleos de franco-mamelucos que l viviam. Vieram com Villegaigon uma dezena de calvinistas e uma massa maior de gente que ele descreve como rstica, sem honra nem civilidade, composta por marinheiros e lnguas normandos e bretes. (p.81) No fracasso da Frana Antrtica representou papel relevante o ardor religioso de Villegagigon, metade monge, metade soldado. Estalaram logo os conflitos entre hunguenotes, calvinistas e catlicos, e dilaceraram a comunidade nascente. (p.81)Uma verdadeira revoluo econmica se d com o salto da mltipla roa indgena, que se cultivava, misturando dezenas de plantas, para a fazenda de montonos canaviais aucareiros. Era o passo da fartura-fome para quem lavrara, porque iam deixando de cultivar o que se comia e usava, para produzir mercadoria. (p.81-82)Por longo tempo foi fcil aliciar ndios para esse imensos esforos, tal era a atrao das ferramentas e bugigangas. Com os anos surgiram dificuldades, porque os ndios queriam melhor retribuio por seus servios, seja porque os paus-de-tinta ficavam cada vez mais escassos e longquos; seja porque as roas que abriam para os brancos em troca de escambo tinham que ser cada vez maiores, dado o aumento crescente do nmero deles; seja porque os ndios estavam saciados dos artigos que os brancos lhes davam. Nessa altura, a escravido comeou a impor-se como forma de conscrio da mo de obra. (p.82)Quando da chegada de Mem de S como governador, a situao era crtica na Bahia, assolada pela epidemia e pela fome (1563-4). Os ndios, rebelados contra os colonos, se negavam a plantar, acossados em terras mais para o interior. (p.82)Dados de Anchieta, em sua Informao dos primeiros aldeamentos, registram que a populao indgena de arredores da Bahia, avaliada em 80 mil pessoas, se viu reduzida a menos de 10 mil. (p.83)Ao tempo de Mem de S foi que mais se assanharam as trs pragas do homem branco, representadas pelas pestes, pela guerra e pela escravizao, que se abateram mortais sobre os Tupinamb. (p.84)Em 1570, a dominao portuguesa estava assentada, solidamente, em oito implantaes, com cerca de 4 mil vizinhos (oito a doze pessoas cada), que correspondiam a uma populao de 30 ou 40 mil habitantes. Destacam-se, nesse conjunto, quatro implantaes: Bahia, Pernambuco, Esprito Santo e So Paulo com a prosperidade crescente. (p.84)O Rio de Janeiro portugus, fundado depois da expulso dos franceses, 1565, vive em paz com os ndios Tupinamb, seus aliados, porque contavam com quantidade de escravos entres os Tamoio vencidos. (p.85)A Bahia era o maior ncleo portugus. Conseguia manter ao redor da cidade, sob o controle dos jesutas, diversas comunidades indgenas que ajudavam na defesa da cidade e proviam de braos e de mantimentos. Havia trinta e tantos engenhos, movidos por 3 ou 4 mil escravos negros e 8 mil ndios. Nessa proporo, o componente negro-africano iria aumentar cada vez mais. (p.85)Simultaneamente, ia surgir no Nordeste aucareiro uma nova formao de brasileiros. Compostos originalmente por mamelucos ou brasilndios, gerados pela mestiagem de europeus com os ndios, logo se desdobrou pela presena precoce e cada vez mais macia de escravos africanos. Inclusive umas contadas mulheres que passaram a gerar mulatos e mulatas que j nasciam protobrasileiros por carncia, uma vez que no eram assimilveis aos ndios, aos europeus e aos africanos e aos seus mestios. (p.86)Em razo dessa presena negra e mulata, e sobretudo pelo reconhecimento posteriormente alcanado, aquela matriz logo se singularizou profundamente. Surge, assim, a rea cultural crioula, centrada na casa-grande e na senzala, com sua famlia patriarcal envolvente e uma vasta multido de serviais. (p.86)Uma frao dessa matriz, assumindo a funo de criadores de gado, tambm se diferencia, afeioando-se s lides pastoris. Diferencia-se, ainda, porque entra em contato sucessivamente com vrios povos tapuias de cultura especializada aridez das caatingas, com as quais se cruza profundamente, o que d lugar a um fentipo novo, o cabea-chata nordestino. (p.86)No plano lingustico, o tupi-guarani, como lngua-geral, permaneceu sendo por sculos a fala dos brasilndios paulistas. E no Nordeste aucareiro foi prontamente suplantado pelo portugus. Isso porque sua populao principal de escravos e mestios, sendo compelida a adotar a fala do capataz para se comunicar com os outros escravos, realizou o papel de consolidar a lngua portuguesa no Brasil. (p.86-87)Outra variante tpica do modo de ser brasileiro a dos gachos, especializados no pastoreio, mas com dois componentes diferenciadores, o da briosa gente de fronteira e de guerra e, sobretudo, o de caadores de gado, mais que de criadores, que cresce explorando os rebanhos que multiplicavam nos campos do Sul, cujo valor principal como mercadoria era o couro. (P.87-88)CATIVEIRO INGENA

A escravido indgena predominou ao longo de todo o primeiro sculo. S no sculo XVII a escravido negra viria a sobrepuj-la. (p.88)Milhares de ndios foram incorporados por essa via sociedade colonial. Incorporados no para se integrarem nela na qualidade de membros, mas para serem desgastados at a morte. (p.89)Custando uma quinta parte do preo de um negro importado, o ndio cativo se converteu no escravo dos pobres, numa sociedade em que os europeus deixavam de fazer qualquer trabalho manual. (p.89)O processo de apresamento como forma de recrutar a mo de obra nativa para a colonizao constituiu um genocdio de propores gigantescas. (p.92)A amplitude das diversas formas de legitimao do cativeiro se expressa bem no caso dos paulistas que juntavam em casa tantos ndios escravizados de tantos tipos que tiveram de desenvolver toda uma nomenclatura para escritur-los como pea dos seus inventrios. Assim que falam de peas de servios, gente roja, servios obrigatrios, gente do Brasil, servidores (Machado 1943:31-6). Tudo isso para que as mencionadas peas sucedessem de pai a filho como propriedade privada, sem falar em escravido. (p.92)A prpria reduo jesutica s pode ser tido como uma forma de cativeiro. As misses eram aldeamentos permanentes de ndios apresados em guerras ou atrados pelos missionrios para l viverem permanentemente, sob a direo dos padres. (p.92)Para os padres, eles seriam almas racionais mas transviadas, postas em corpos livres, mas carentes de resguardo e vigilncia. Estando ali, porm, deviam trabalhar para seu sustento e para fazer prspera a comunidade de que passavam a fazer parte. (p.93)Expulsos os jesutas,a situaes piorou muito, porque as suas misses foram entregues, ao Norte, s famlias de contemplados que passaram a explor-las como fazendas privadas. Nas outras regies, algumas misses foram entregues a ordens religiosas consentidas nessa funo. Alguns foram postos sob a direo de administradores civis que, podendo cobrar, porcentagem sobre os ndios que arrendava ou colocar os ndios a trabalhar em suas prprias fazendas, fizeram disso um alto negcio. (p.93-94)A expulso pombaliana que visava, nominalmente, liberar os ndios das misses jesuticas, integrando-os como iguais e at com certos privilgios na comunidade colonial, representou enorme logro. (p.94)Lanando os ndios nominalmente livres numa condio generalizada de cativeiro mais grave que o anterior. A situao desses ndios arrendados era pior que a dos escravos tidos pelo senhor a ttulo prprio, uma vez que estes, sendo um capital humano que se comprara com bom dinheiro, devia ser zelado, pelo menos para preservar seu valor venal; enquanto o ndio arrendado, no custando seno o preo de seu arrendamento, daria tanto mais lucro quanto menos comesse e quanto mais rapidamente realizasse as tarefas para que era alugado. Esse desgaste humano do trabalhador cativo constitui uma outra forma terrvel de genocdio imposta a mais de 1 milho de ndios. (p.94)MOINHOS DE GASTAR GENTE

A expanso do domnio portugus terra adentro, na constituio do Brasil, obra dos brasilndios ou mamelucos. Gerados por pais brancos, a maioria deles lusitanos, sobre mulheres ndias, dilataram o domnio portugus exorbitando a dao de papel das Tordesilhas, excedendo a tudo que se podia esperar. (p.95)

OS BRASILNDIOSOs portugueses de So Paulo foram os principais gestadores dos brasilndios ou mamelucos. O motor que movia aqueles velhos paulista era, essencialmente, a pobreza da feitoria paulistana . (p.95)

O que buscavam no fundo dos matos a distncias abismais era a nica mercadoria que estava a seu alcance: ndios para uso prprio e para a venda. (p.95) Nas entradas das profundas e pioneiras que duravam anos, viajavam uns quantos meses e acampavam para plantar e colher roas com que supriam de mantimentos para prosseguir serto adentro, atravs de matas e de campos naturais. Esse ofcio de caadores de gente se converte em gnero de vida dos paulistas, em cujo desempenho se fizeram respeitveis, destacando-se com altas honras, a seus prprios olhos, os mais valentes e briosos. (p.96)

Os brasilndios foram chamados de mamelucos pelos jesutas espanhis horrorizados com bruteza e desumanidade dessa gente castigadora de seu gentio materno. O termo originalmente se referia a uma casta de escravos que os rabes tomavam de seus pais para criar e adestrar em suas casas-criatrios, onde desenvolviam o talento que acaso tivessem. Seriam janzaros, se prometessem fazer-se geis cavaleiros de guerra, ou xipaios, se covardes e servissem melhor para policiais e espies. Castrados, serviriam como eunucos nos harns se no tivessem outro mrito. Mas podiam alcanar a alta condio de mamelucos se revelassem talento para exercer o mando e a suserania islmica sobre a gente de que foram tirados. (p.96)Nossos mamelucos ou brasilndios foram, na verdade, a seu pesar, heris civilizadores, serviais del-rei, impositores da dominao que os oprimia. Seu valor maior como agentes da civilizao advinha de sua prpria rusticidade de meio-ndios, incansveis nas marchas longussimas e sobretudo no trabalho de remar, de sol a sol, por meses e meses. (p.97)Os brasilndios ou mamelucos paulistas foram vtimas de duas rejeies drsticas. A dos pais, com quem queriam identificar-se, mas que os viam como impuros filhos da terra. (p.97)No podendo identificar-se o mameluco caa numa terra de ningum, a partir da qual constri sua identidade de brasileiro. (p.97)A segunda rejeio era a do gentio materno. Na concepo dos ndios, a mulher um simples saco em que o macho deposita sua semente. Quem nasce o filho do pai, e no da me [...]Assim que, por via do cunhadismo, levado a extremo, se criou um gnero humano novo, que no era, nem se reconhecia e nem era visto como tal pelos ndios, pelos europeus e pelos negros. (p.97)No Brasil seu xito foi imensamente maior, porque passaram a constituir o cerne mesmo da nao e, somando uns 14 milhes, juntamente com os negros abrasileirados, puderam suportar a invaso gringa mantendo sua cara e sua identidade. (p.98-99)A vida do ndio cativo no podia ser mais dura como cargueiro ou remador, que eram seus trabalhos principais. Pertencente a quem o apresasse, ele era um bem semovente, desgastado com maior indiferena, como se isso fosse o seu destino, mesmo porque havia um enfoque aparentemente inesgotvel de ndios para repor os que se gastavam. (p.100)

Alguns grupos tribais, ainda que conscritos economia colonial, lograram manter certa autonomia na qualidade de aliados dos brancos para suas guerras contra outros ndios. O relevante nesse caso que, em lugar de amadurecerem para a civilizao passando progressivamente da condio tribal nacional, da aldeia vila, como supuseram tantos historiadores , esses ncleos autnomos permaneceram irredutivelmente indgenas ou simplesmente se extinguiram pela morte de seus integrantes. Nos raros casos em que logram sobreviver uns tantos indgenas, todos eles mantm sua identificao tnica. (p.100-101)ndios e brasileiros se opem como alternos tnicos em um conflito irredutvel, que jamais d lugar a uma fuso. Onde quer que um grupo tribal tenha oportunidade de conservar a continuidade da prpria tradio pelo convvio de pais e filhos, preserva-se a identificao tnica. Atravs desse convvio aculturativo, porm, os ndios se tornam cada vez menos ndios no plano cultural, acabando por ser quase idnticos aos brasileiros de sua regio na lngua que falam, nos modos de trabalhar, de divertir-se e at nas tradies que cultuam. (p.101)No obstante, permanecem identificando-se com sua etnia tribal e sendo assim identificados pelos representantes da sociedade nacional com quem mantm contato.O passo que se d nesse processo no , pois, como se sups, o trnsito da condio de ndio de brasileiro, mas da situao de ndios especficos, investidos de seus atributos e vivendo segundo seus costumes, condio de ndios genricos, cada vez mais aculturados mas sempre ndios em sua identificao tnica. (p.101)

Os negros do Brasil foram trazidos principalmente da costa ocidental africana. Tal como ocorreu aos brancos, vindos mais tarde a integrar-se na etnia brasileira, os negros, encontrando j constituda aquela protoclula luso-tupi, tiveram de nela aprender a viver, plantando e cozinhando os alimentos da terra, chamando as coisas e os espritos pelos nomes tupis incorporados ao portugus. (p.102)

OS AFRO-BRASILEIROS

A diversidade lingustica e cultural dos contingentes negros introduzidos no Brasil, somada a essas hostilidades recprocas que eles traziam da frica e poltica de evitar a concentrao de escravos oriundos de uma mesma etnia, nas mesmas propriedades, e at nos mesmos navios negreiros, impediu a formao de ncleos solidrios que retivessem o patrimnio cultural africano. (p.103) Do, apesar de circunstncias to adversas, um passo adiante dos outros povoadores ao aprender o portugus com que os capatazes lhes gritavam e que, mais tarde, utilizariam para comunicar-se entre si.(p.103)

Nos dois casos, o engenho e a mina, os negros escravos se viram incorporados compulsoriamente a comunidades atpicas, porque no estavam destinados a atender s necessidades de sua populao, mas sim aos desgnios venais do senhor. (p.103)

S atravs de um esforo ingente e continuado, o negro escravo iria reconstruindo suas virtualidades de ser cultural pelo convvio de africanos de diversas procedncias com a gente de terra, previamente incorporada protoetnia brasileira. O negro transita, assim, da condio de boal preso ainda cultura autctone e s capaz de estabelecer uma comunicao primria com os demais integrantes do novo contorno social condio de ladino j mais integrado na nova sociedade e na nova cultura. (p.104)Concentrando-se em grandes massas nas reas de atividade mercantil mais intensa, onde o ndio escasseava cada vez mais, o negro exerceria o papel decisivo na formao da sociedade local. Seria, por excelncia, o agente de europeizao que difundiria a lngua do colonizador.Consegue, ainda assim, exercer influncia, seja emprestando dengues ao falar lusitano, seja impregnando todo o seu contexto com o pouco que lhe pde preservar da herana cultural africana. Sobreviveria principalmente no plano ideolgico porque era mais recndito e prprio. (p.104-105)