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Das coisas INVIS˝VEIS - asborboletas.com · A mais recente reuniªo de contos de Tatiane de Oliveira Gonçalves, intitulada Das coisas invisíveis, traz mais de duas de-zenas de

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ILUSTRAÇÕES DO MIOLO

Eli Lima (Artista plástica)www.elilima.com

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Tatiane de Oliveira Gonçalves

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Gonçalves, Tatiane de OliveiraDas coisas invisíveis / Tatiane de Oliveira

Gonçalves. - - São Paulo : Scortecci, 2009.

ISBN 978-85-366-1543 - 1

1. Contos brasileiros I. Título.

Copyright© Tatiane de Oliveira Gonçalves4961/ 1 � 250 � 72 � 2009

Scortecci EditoraCaixa Postal 11481 - São Paulo - SP - CEP 05422-970

Telefax: (11) 3032-1179 e (11) 3032-6501www.scortecci.com.br

[email protected]

09-07109 CDD- 869.93

Índices para catálogo sistemático:

1. Contos brasileiros I. Titulo.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Livraria e Loja Virtual Asabeçawww.asabeca.com.br

Grupo Editorial Scortecci

O conteúdo desta obra é de responsabilidade do(a) autor(a),proprietário(a) do Direito Autoral.

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DAS COISAS INVISÍVEIS

Gerana Damulakis

A mais recente reunião de contos de Tatiane de OliveiraGonçalves, intitulada Das coisas invisíveis, traz mais de duas de-zenas de �contos pequenos�, menores do que a maioria dasnarrativas do seu volume anterior, As borboletas são assim.

As elipses narrativas estão mais acentuadas nos textos danova coletânea. O �conto pequeno� vai se aproximando dominiconto, quem sabe um dia chegará ao nanoconto. O que seencontra nas dez linhas do texto �Estranha� já dá uma pistasobre o assunto, ou seja, o caminho está aberto, não será sur-presa se o próximo livro trouxer contos mínimos. Tatiane su-gere cada vez mais e mostra cada vez menos, porque a históriapor trás da história, como diz Ricardo Piglia, em O laboratóriodo escritor (Iluminuras, 1993), deve ser preenchida pelo leitor.

As borboletas (nesta altura, já como uma marca da auto-ra) aparecem em cores duras, mas têm sua leveza destacada pelasutil admiração de uma dançarina. Não se pense que a ficção deTatiane namora com o lírico por conta das borboletas, das dan-çarinas e afins. Nada disso. Esta é uma ficção densa, sim, entre-tanto destila tanto sutilezas quanto asperezas, como no conto�O quarto de Candice�; por sinal, um conto memorável, passí-vel de figurar nas antologias futuras que valorizem nossos escri-tores contemporâneos.

Ao dizer que a ficção de Tatiane traz densidade, quero dizerque ela é consistente como a vida; um excelente modelo de comoas vicissitudes conferem tal envergadura está na inveja de uma mãepelo sucesso da filha, em �A bailarina�, o mais bem sucedido contodo volume que, inclusive, retrata bastante bem as paixões e anseiosdos personagens, habitantes do universo ficcional da escritora.

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Os contos são curtos, o que não impede um desenvolvi-mento muito equilibrado durante todas as suas narrações, sem ex-ceção, haja vista a autora ter como marca a justeza das expressões.A sensação final é a de que miramos um espelho d�água, calmo nasuperfície, liso, escondendo, entretanto, os vulcânicos abalos quefazem parte da essência humana, mesmo em existências suposta-mente protegidas, como no conto �Sozinha�, ou em �Madalena�,ambas as alegorias muito bem logradas em toda a sua intenção.

Os contos são curtos, muito curtos por vezes, repito, masnão abolem a descrição necessária: �Uma senhora muito ali-nhada�, em �O pacote�; �mãe zelosa, preocupada, presente�,em �As manhãs�. É assim que a escritora quer, é a dose que elanos passa, nada além.

Vale apontar �O quarteto�, �Questão de beleza� e �A plan-tonista� como exemplos curiosos, interessantes, mais realizadosno que tange ao ato de contar uma história. Prefiro, contudo, acontista que sugere e deixa o leitor completar o conto. Vale tam-bém citar o texto �Scherazade�, englobando �O amigo secre-to�, �A paixão�, �A obsessão�, �A sentença�, como uma formade homenagem ao encanto da contadora de histórias.

As borboletas são assim foi um volume de contos que trouxe,de saída, o aval de Maria da Conceição Paranhos percebendo oinsólito emergindo da banalidade e as surpresas que concorrempara o desvio de rota das narrativas de casos corriqueiros; os con-tos mostravam as coisas que nos afligem e como criamos escapa-tórias para a opressão da rotina. Enfatizei o talento de Tatiane deOliveira Gonçalves para a ficção, já apontado pela poeta e mestraConceição, na minha coluna de então, Olho Crítico, no jornal Tri-buna. Agora, com Das coisas invisíveis, enfatizo o lugar já bem fir-mado da ficcionista nas letras baianas. Tome assento, Tatiane.

Salvador, 24 de fevereiro de 2009

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Sumário

Antônio e o espelho .................................................................. 9As cores duras .......................................................................... 13Madalena................................................................................... 15A dançarina .............................................................................. 17Scheherazade ............................................................................ 19Estranha .................................................................................... 23A divisão................................................................................... 27O pacote ................................................................................... 31Sozinha ...................................................................................... 33As manhãs ................................................................................ 35Na beira do rio ........................................................................ 37A outra ...................................................................................... 39O viaduto.................................................................................. 41O trabalho de Lauro ................................................................ 45Festa no quintal ........................................................................ 47O quarteto ................................................................................ 51O quarto de Candice ............................................................... 53A leveza .................................................................................... 57A bailarina ................................................................................ 59Amália ....................................................................................... 63Questão de beleza .................................................................... 65A plantonista ............................................................................ 67

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Antônio e o espelho

Enquanto Antônio dormia eu buscava arguta em suaspálpebras cerradas, insone que sou, respostas: alma, vísceras,algo que me ajudasse a entendê-lo de verdade. Era fria estahora, meu corpo nu se arrepiava. Hora sem som, hora inda-gando, hora madrugada.

Antônio dormia, e eu tentava entrar em seus olhos depaisagens diversas, surpresas grandes e casas vazias.

Disse-me uma vez, em meio às suas galhofas, que haviamudado de casa várias vezes em sua vida. As casas, ora embairros diferentes, ora em cidades diferentes, tinham cores di-ferentes. Todas elas. E eu não conseguia compreender o queele queria dizer com aquilo. Passei noites pensando nas casascoloridas. Acho mesmo que ele sabia que eu ficava intrigada eaté fazia de propósito. Contava-me nas horas de penumbra his-tórias. E com seu sorriso me dava um buquê evasivo da veraci-dade dos relatos. Seus olhos brilhavam tanto naqueles momen-tos. Agora fechados, nada queriam me dizer.

A pálpebra tremeu um pouco. Parecia que ia balbuciaralgo. Roncou. Antônio não queria ser revelado. Dormia pesa-do. E eu aflita desejando perscrutar-lhe a alma.

Enquanto o olhava com firmeza, como quem não querperder nada de uma imagem, ia lembrando o que me havia fala-do sobre sua vida. Viveu sempre com intensidade os seus amo-res, paixões, raivas e horrores. Não negava. Detalhava seus casosamorosos extraordinários tão cheios de elementos sensuais e anti-convencionais. Antônio bebia a vida em grandes goles, tão des-temido! Se estávamos a conversar ele vinha, de repente:

� Percebe este cheiro?

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Eu aspirava com vontade e nada percebia, mas para An-tônio havia um cheiro, um som, um vulto, uma sensação sódele e eu ficava do lado de fora como um bicho de estimação aquerer subir no sofá. E esta vontade de entrar nele era por si sóalgo incompreensível para mim mesma. A necessidade da uniãoabsoluta me parecia indevida. E inevitável. Sentia-me prisio-neira daquele homem tão especialmente indecifrável.

Ele não vinha todas as noites. Era preciso aproveitar-lhea presença para compreendê-lo. A noite esfriava. Com seudorso nu, puxava a coberta sem abrir os olhos num sonorelaxante. Sua imagem turvava-se um pouco, embaralhava-seao leve movimento. Um ronco mais. Turvava-se mais e depois,dentro do escuro, restava-me eu nua sob a coberta fina nopequeníssimo quarto espelhado.

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As cores duras

� Essas cores são muito duras.� O vestido é novo. Um presente. Também achei meio

extravagante.� Não...! Falo das borboletas ali fora, na janela. Não as vê?Desviou os olhos para a janela. Nada via. Hesitou um pou-

co. Por fim, respondeu:� Vi de relance a última que passou. Nem deu para ver a cor...Ele deu um sorriso como o único homem do mundo a ter

determinada informação e completou:� Falo das outras. Ainda estão lá atrás daquela que você

viu passar. São muitas. Como são duras as suas cores!Ela olhou de novo e não pode evitar o franzido na testa.

Era uma janela simples de vidro com perfil de alumínio branco.Tudo muito limpo. Do lado de fora, apenas uma grade de ferrobranca. Fora isso, o ambiente externo. Árvores, céu, portão bemlonge. Nada mais, nada mais.

Refletiu. Pensou no que poderia responder. Não gostavade dar corda àquilo tudo, mas uma resposta áspera poderiaprejudicá-lo. Ninguém perto. O que fazer? Coçou a mão es-querda. Depois esfregou, já fazendo careta.

� Um bicho! Me mordeu! Aqui tem mosquito? � Não. Aqui só tem borboletas de cores duras.Não deu para escapulir. Voltara ao ponto inicial. Já não

tinha opção. Suava sob o olhar inquisidor.� Não as vejo. Também minha vista nunca foi muito boa.

São bem pequenas, né? Mas não se aflija por elas terem coresduras...

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� Eu gosto de cores duras. Gosto mesmo! E gosto ain-da mais de borboletas.

� Entendo. Borboletas são bonitas mesmo. Tambémgosto delas.

� Sabe essa grade aí fora?� Sim, o que tem ela?� Não são para borboletas. Todas as noites quando to-

dos vão dormir eu levanto e abro a janela. Elas entram comsuas asas sonoras. Muitas mesmo! E até no escuro posso versuas cores duras. Depois eu deito de novo. Elas vêm para acama, e eu as cubro com a minha coberta. Elas e eu. Dormemcomigo. De manhã partem mansas.

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Madalena

Ela não sabia ao certo quando começou a ficar diferente.Talvez algo gradual, achava.

Sem data, nem hora, tampouco pretensão, acordou estra-nha para si mesma. Ainda Madalena de si, todavia outra Madalena.Avessa à anterior em parte, mas o dobro dela mesma em outra.Não era nova: uma Ruth, uma Sara, uma Ester. Madalena. Umpouco fresca, recém-saída de uma pele antiga, seca do tempo,do mofo do quarto abandonado e empoeirado por anos.

Olhava-se no espelho duvidando. Até o tom de seus ca-belos trazia novidades à sua feição atônita. Fazia caretas, le-vantava as sobrancelhas, franzia a testa na tentativa de desco-brir algo familiar.

Pensava e esforçava-se em compreender. Ninguém en-tenderia ela ter nascido assim da noite para o dia (e pior...! )dela mesma.

Partenogênesis humana! � diriam os jornais.Aberração! � diriam os religiosos.Não, não. Percebeu-se negando com o rosto na frente do

espelho. Chorou sem desprender o olhar de si. Vasculhou maisum pouco e nada. Nada. Nada.

Mudou de foco. Passou a divagar. Sua mente longe, mui-to longe. Pensamentos rápidos, tumulto, delírio. E pode versua imagem no espelho se turvando, se transfigurando até des-manchar. Lera a lombada de um livro numa livraria na noiteanterior o título: �Tudo que é sólido desmancha no ar�. E ago-ra ela mesma estava se desmanchando na imagem do espelho.

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Como saberia se algum dia existiu? Como saberia o queera real e o que era imaginado? Que tipo de droga poderialevar àquilo ou a um retorno?

Madalena vestia-se desconforme e permanecia absorta,onde o tempo apenas não existia.

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A dançarina

Seu nome bem que poderia ser Sinuosa ou Ondular, masera Janine. Ela tinha um não sei o quê nas mãos e nos pés poronde escorria um ritmo úmido e lúbrico que combinava per-feitamente com qualquer música que tocasse. Em qualquer tem-po e em qualquer lugar Janine traduzia com o corpo os sons eisso lhe bastava.

Numa noite de quinta-feira fui sozinha ao bar, onde unsamigos tocavam música instrumental. Vi Janine em sua levezae graça pela primeira vez. Parecia um membro da banda, ta-manha a sintonia com a sonoridade que explodia dos instru-mentos. Nada antecipava ou postergava. Era exata. Estavadentro da música.

Roubou-me o tino aquele espectro. Desvairou meu coração.

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Scheherazade

O amigo secreto

Havia amigo secreto na repartição todos os anos. Nãopela união dos funcionários, mas por hábito. Era de bom tomque houvesse troca de presentes entre colegas de trabalho noNatal. Era assim em todas as empresas e não havia de ser dife-rente na repartição. Tudo sempre transcorria bem e sem mui-tos arroubos ou exageros.

Astolfo apreciava muito ser presenteado. Nas vésperasdo evento chegava a apresentar certa ansiedade. Naquele anohavia sorteado a D. Marília, funcionária austera da engenharia.Não me lembro qual o presente que lhe dera muito embora eletenha me contado. Escapou-me da memória o presente da D.Marília, talvez porque o grande efeito tenha se dado em tornodo presente recebido e não do contrário.

Quando Astolfo percebeu quem o havia sorteado, fez certoesforço para esconder o descontentamento. Embora não tivessenada contra o Dr. Antunes, supervisor do jurídico, conhecia-lhe afama. Todos sabiam de sua erudição desmedida e, talvez por isso,costumava presentear seus amigos secretos ora com óperas, con-certos ou balés, ora com tratados científicos sobre temas varia-dos. No ano anterior seu presente, o Tratado acerca da reprodução dasPteridófitas, foi assunto para uma semana entre os cochichos doscorredores. E o pobre sorteado nem apreciava botânica.

Ao receber o embrulho, Astolfo agradeceu com pala-vras típicas. Abriu-o, ruborizou e agradeceu mais uma vez. Jáfora do centro das atenções leu: Scheherazade � NikolayRimsky-Korsakov.

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A paixão

Astolfo considerava-se eclético quanto ao gosto musical. Emrodas eruditas citava sempre a Sonata ao Luar, a quinta e a nonade Beethoven. Suspeito de que não conhecia outro compositornaquelas ocasiões. Fato que mudou após o tal amigo secreto.

Naquela noite, ele chegou em casa e após o habitual, sen-tou-se no sofá para escutar o disco: precisaria esboçar algumaopinião para o Dr. Antunes na segunda-feira. Ficou surpresologo no início da música. Causou-lhe arrepio. Pouco a poucodeslizou no sofá, reclinando-se e degustando-a com ouvido aten-to. Eram 45 minutos de beleza, precisão e esplendor. Astolfo foiarrebatado por Scheherazade. Nas duas repetições que se segui-ram pode experimentar detalhes do seu êxtase. Os pêlosouriçavam, um misto de calor e frio percorria-lhe o corpo leve-mente trêmulo, o coração em festa, um júbilo, uma excitaçãonunca antes vivida. A música percorreu-lhe o corpo como umbálsamo. Forte, rica e equilibrada. Chorou. Dormiu chorando.

A obsessão

Passou o fim de semana relendo o encarte do disco embusca de informações. Queria saber tudo sobre aquela músicae seu compositor. Buscou na internet. Leu e releu todo o mate-rial encontrado.

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Naquele fim de semana não levou nenhuma mulher aoapartamento. Achou-o curto para sua pesquisa e não pretendiadesperdiça-lo, ademais precisava ouvir a música muitas vezesmais e alguém por perto o perturbaria, tirar-lhe-ia a atenção e,pior, ficaria falando e exigindo respostas no decorrer da músi-ca. Não! Aquilo havia de ser íntimo naqueles dois dias. Haviadescoberto Scheherazade! A essa altura já sabia o que signifi-cava a peça.

Na segunda-feira Astolfo encontrou o Dr. Antunes nacopa da repartição durante o cafezinho. Era o momento. Co-mentou efusivamente a música com detalhes sinestésicos. Mes-mo não conhecendo nada de música, Astolfo conseguira dis-tinguir timbres e dinâmicas e vibrava enquanto falava com ocolega. O outro, atônito, observava e respondia uma ou outrapergunta de maneira evasiva. No fim da conversa Astolfo per-cebeu que o erudito nunca havia ouvido a música. Sentiu-sedecepcionado. Logo o Dr. Antunes. Tão culto...

A sentença

Desilusões à parte, Astolfo já pertencia a Scheherazade.Escutava-a, pelo menos, três vezes ao dia como um medica-mento que precisa ser administrado com rigor. Falava sobre oassunto de maneira obsessiva. Não havia em sua família, círcu-lo de amigos e mulheres com quem se deitava quem não hou-vesse escutado exaustivamente suas palestras sobre o caro tema.

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E era com fulgor que o fazia, completamente comovido. E sealguma mulher se aventurasse a escutar a música com ele, me-diante a promessa antecipada de não interrompê-la sob nenhu-ma hipótese, questionava no final.

� Percebestes o solo do fagote?� Fa.... o quê?Respostas vagas eram suficientes para torná-las enfado-

nhas e desinteressastes.O fato é que Astolfo mudou. Passou o resto da vida cole-

cionando informações e materiais diversos relacionados àScheherazade e à Rimsky-Korsakov. Adquiriu a edição mais re-cente, traduzida direto do árabe para o português, de As mil euma Noites, o balé Scheherazade em vídeo, a partitura da música,todos os discos que encontrou do compositor e o seu famosoTratado sobre orquestração. Abandonou o emprego na repartição ededicou o resto de sua vida ao estudo do compositor e sua obra.

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Estranha

Atravessando a vela a sua voz contornava notas musi-cais. Não era quarto escuro. Não era veneno de escorpião. Amúsica não cessava.

Seu longo vestido vermelho caía-lhe perfeitamente e nãoderretia ao contato da parafina líquida.

Eram tantas as caras, cúmplices de sentimentos alheios,tomadas emprestadas para a ocasião. Cumpria seu papel.

Os cabelos não só lhe rodeavam as orelhas como caíamopacos por cima dos olhos estreitos.

Estranha era aquela mulher dentro da vela.

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A divisão

� Se você tem seis biscoitos e deseja dividir com trêsamiguinhos...? Vamos lá, concentre-se! A mamãe acabou deexplicar...

A menina contava com os dedos apreensiva. Ficava ver-melha e não respondia. A mãe explicava a lição de novo compaciência e dedicação. Durante a explicação deslizava para umalembrança tão viva quanto ela própria.

A casa de dona Guiomar era cheia de filhos e netos. Mora-vam em quartos precários e esticados, divididos por cortinasimprovisadas. A comida era a conta de todas as bocas, poucomenos, às vezes. As crianças de pés descalços andavam pelo chãofrio em suas brincadeiras. As mulheres ora na costura, ora nacozinha revezavam-se também para olharem os pequenos. Vezpor outra passava um dos homens em direção à cozinha.

� Tá sem trabalho faz sete mês. O coitado tá que não seguenta. É só bebedeira � dona Guiomar falava resignada.

Apesar da idade, dona Guiomar ajudava a cuidar da casa.Fazia remédios de ervas para curar diversas mazelas e rezavaas pessoas que lá chegavam com mau-olhado e indisposiçõesgerais. Este foi um legado de sua avó.

Rúbia, a amiga, já a visitava a, fazia algum tempo. Sofriade dores lombares. Nenhum tratamento havia produzido efei-to, exceto as rezas e a garrafada de dona Guiomar. A amizadeentre as duas cresceu rapidamente. Embora as realidades fos-sem diversas, havia uma grande sintonia entre elas. Conversa-vam muito, geralmente depois do atendimento.

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Certo sábado como que a conversa tivesse entrado pelohorário do almoço, dona Guiomar insistiu que Rúbia ficasse.

� Fique, Rúbia. Hoje tem galinha, macarrão e feijão.Rúbia ficou e viu a matriarca servir a todos. Os pratos

cuidadosamente repartidos. Coube a Rúbia, a visita, uma gran-de sobrecoxa. A comida pareceu, misteriosamente, multipli-car-se entre os sorrisos que se iam saciando. E na hora da so-bremesa, uma manga grande foi dividida em tantos pedaçosquanto o necessário.

� Eu prefiro o caroço � falou uma das filhas de donaGuiomar sorrindo animada.

Aquele evento ficou marcado na memória de Rúbia demaneira indelével. A divisão de dona Guiomar a impressionouprofundamente. Tocou-a de maneira mágica e sublime.

� Dois biscoitos � disse a menina satisfeita.� Isso mesmo � falou Rúbia acenando a cabeça com um

olhar muito vago.

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O pacote

Na beira da tarde Marília esperava sentada num banco depraça. Alguém traria o pacote. Reconheceria o portador pelacor da roupa.

� Camisa verde e calça preta � disseram-lhe.Impacientava-se olhando para relógio desmedidamente.� Meia hora atrasado � resmungava.Não bastasse tudo aquilo, uma senhora muito alinhada

sentou do seu lado e começou uma conversa. Marília preferiaestar sozinha e calada. Nem sequer escolhera estar ali.

� Esteja lá às dezessete horas e traga o pacote imediatamente.Que escolha poderia ter?Foi-se sem demora. Tomou seu ônibus e lá ficou esperando.A senhora entrava e saía de assuntos diversos numa velo-

cidade impressionante. Costura, novela, culinária, netos, pio-lhos e colesterol. Não havia pausas em sua fala grave. O buçosuado apresentava-se em destaque nas ideias mais fortes. Cer-tas vezes respondia às próprias perguntas.

Marília lenta, olhos abatidos tentava dizer-lhe que calas-se a boca: estava ali por causa de um pacote.

Muito expansiva a senhora falava-lhe tocando o braço.Marília se coçava. Não gostava de toques, ora essa!

Só esperaria mais meia hora. Nada mais, nada mais!Os incansáveis verbos da senhora contadora de histórias

e a incansável expressão de Marília se alfinetavam velados. Ummuxoxo, um olhar; uma sobrancelha erguida, um abatimento eos minutos passaram rasos.

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Marília vencida pôs-se a ajeitar-se para levantar e ir em-bora. E a senhora percebendo sua iniciativa se adiantou.

� Ele não vem.� O quê? ! � o completo espanto de Marília.� É isso mesmo, minha filha, ele não vem. E antes que eu

me esqueça, pediu-me que lhe entregasse isto � revelou reti-rando de dentro de uma grande sacola que repousava aos seuspés um grande pacote.

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Sozinha

Marta passava dias inteiros sem sair de casa. Sua avó fa-zia tudo sozinha. Mercado, farmácia, banco, médicos. Martasó saía quando era imprescindível e ainda resmungava. Achavatedioso sair e ter de falar com as pessoas na rua.

Certa vez precisou sair num domingo e achou a rua va-zia, mas pensou que domingo devia ser assim mesmo. Outrassaídas deixaram-na surpresa e incomodada. �A rua está tãovazia!� Não que lhe fizesse falta as pessoas andando pela ruasem eira nem beira. Era estranho apenas. Tão intrigada estavaque pensou em sair mais.

Algum tempo depois sua avó ficou doente e sem delon-gas, finou-se. Marta deixou de ter escolha. Precisava sair. Nota-va o movimento nas ruas cada vez menor. Estranhava muito.

Um dia acordou e saiu. Não havia mais ninguém nas ruas.Algumas casas abertas, carros parados como que deixados paratrás, estabelecimentos comerciais abertos. A cidade jazia semsom e sem cheiro. Nada mais se movia nem moveria.

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As manhãs

Todas as manhãs levava o filho à escola. Mãos dadas,apertadas fortemente: mãe zelosa, preocupada, presente.

O menino sempre do lado interno da calçada. Caminha-da curta, dois quarteirões apenas. O cabelo penteado com es-mero, o uniforme de um branco imaculado e a merendeira azul.O tênis e o sapato, o sapato e o tênis. Atravessavam a rua de-fronte da pequena escola.

A mãe, na porta da sala, beijava o filho copiosa, comouma leoa lambe os filhotes. Um beijo molhado e saudoso faziacom que o pequeno passasse as costas da mão nas bochechas.E ela sorria olhando a pequena criaturinha se sentando ao ladodos colegas. Só depois saía da porta da sala.

No recreio as crianças saíam num bulício frenético parabrincar no pátio lateral da escola. Abriam suas merendeiraspara o lanche. Biscoitinhos, sanduíches, sucos e chocolates.

Havia no pátio uma janela gradeada muito alta que se comu-nicava com um ambiente externo da escola, onde existia um ban-co à sombra de uma frondosa amendoeira. Muitos pais espera-vam pelos filhos naquele local, mas no meio do turno era deserto.

Débora se sentava no banco para desfrutar anônima dorecreio. Era um tempo íntimo e preenchido pelos sentidos.Fechava os olhos e inspirava profundamente. Com as narinasmuito abertas e ansiosas deixava que o ar prenhe de cheiros esons encantadores tocasse-lhe com gotas de infância. A delíciae a impotência do momento agitavam-na. Bebia a manhã deOlavinho oculta, estática e frustrada.

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Na beira do rio

Naquela cidade ribeirinha era comum que os homens se tor-nassem pescadores. Celestino escolheu ser agricultor. Cuidava desuas terras com dedicação. Acordava muito cedo e lavrava sua ter-ra com esmero. Havia sido passada de pai para filho por três gera-ções. Fazia rodízio de culturas: um engenheiro agrônomo que este-ve na cidade por uns tempos o recomendou. Celestino concordoucom os dizeres do homem. Apesar de não ter estudos, Celestinofalava bem e sabia ouvir aqueles que lhe traziam novidades.

Foi assim também quando certo biólogo esteve por aque-las bandas. Falou muito sobre a preservação do mangue. Cer-ta feita, vendo uma pequena jibóia, falou para Celestino.

� Esta é comum por aqui. Vejo que vocês nem se assus-tam. E com razão, pois não há peçonha nesta cobra.

Celestino ficou intrigado com aquela palavra. �Peçonha...peçonha�. Perguntou ao biólogo que logo lhe explicou quepeçonha era o mesmo que veneno. Celestino muito feliz com anova palavra mudou o nome do seu cachorro para Peçonha,pois era um nome forte e bonito.

Era hábito de Celestino passar o fim de tarde na beira dorio, olhar fixo e admirado. Algumas vezes banhava-se na beira-da. Não abusava da correnteza do rio Piaçava. O Peçonha,mais afoito, arriscava-se mais.

� Peçonha � gritou Celestino com uma força vindadas entranhas.

O cachorro debatia-se enroscado numa sucuri muito gran-de. Celestino nadou para mais perto e tentou com as mãos e

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unhas separar a cobra do Peçonha. A correnteza atrapalhavatoda a manobra. A cobra muito grande puxava o Celestinopara o fundo junto com o cachorro. Debateu-se mais um pou-co, logo foi puxado para o fundo.

No dizer daquela gente ribeirinha Celestino fez história.Todos que ali chegavam ouviam as histórias da formação dacidade, das sereias e do Celestino e de Peçonha, seu cão.

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A outra

Falava sempre muito alto. Errava em algumas palavras.Espevitada. Quando sentava no bar da Noca não parava mais.E era frango, e era farofa, e era a branquinha.

� Mande mais um franguinho frito, Dona Noca.Conversava com um e com outro e se ria toda. Lá pelas

tantas ela, Ricardina, se assanhava com uns homens da vizi-nhança que passavam chegando do trabalho. Costumava saircarregada.

Não parava em trabalho nenhum. Um chefe grosso, umasupervisora invejosa, uma superiora metida a besta. Várias eramas formas de se justificar para a mãe.

� Aquela encostada fica lá no bar da Noca a tarde toda.Não para em emprego. Já pedi pro Damião do mercadinhover se arranja alguma coisa pra ela lá � queixava-se a mãe paraa vizinha.

E os dias de Ricardina passavam lentos e ébrios naquelenão fazer nada da vida. Apenas um dia após o outro com o quequer que ele lhe traga.

Suas galhofas no bar da Noca rendiam-lhe homens detodos os tipos, mas o que encantou Ricardina foi justamente oGonçalo, marido de dona Eustáquia.

O romance era velado, mas muitos já suspeitavam doarranjo. A pobre dona Eustáquia era muito religiosa e não vianada além do culto de sua igreja. Todas as suas energias eramvoltadas para a fé e para o bem. Uma criatura boa e sem mal-dade. Não tardou, no entanto, para que a verdade lhe chegasse

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aos ouvidos com requintes descritivos, com frases românticasrepetidas, com alfinetadas inflamadas.

Todos correram para a rua naquela tarde. Dona Eustáquiaseminua e despenteada com uma faca na mão, boca sangrando,tentava alcançar Ricardina com os golpes.

� Ela vai matar Ricardina! Alguém separe! � a mãe soluçava.Ricardina ria debochada completamente embriagada.

Esquivava-se como podia, mas caía, tropeçava. Logo foi aochão. Dona Eustáquia sentou sobre suas costas e retalhou ocorpo da outra.

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O viaduto

A obra do viaduto havia sido embargada por irregula-ridades nos materiais utilizados. A estrutura inacabada ficoupendurada sobre pernas duvidosas de ferragens. Aquilo já eraparte da cidade há uns três anos. Embrutecia mais a imagemda avenida.

Os trabalhos se perderam e os moradores esqueceram apossibilidade do novo viaduto até o episódio do Samuel.

Samuel tinha quatro filhos de idades muito parecidas. Suamulher havia morrido no último parto e era sua cunhada quemcuidava dos meninos. A cunhada logo passou a acalentá-lo nacama. Fazia a comida que ele levava para o trabalho na cons-trução. Ele era excelente pedreiro e trabalhou muito no inícioda obra do viaduto. Não havia hora certa e nem fim de sema-na. Os engenheiros tinham urgência e foram muitas horas ex-tras. Apesar de tudo, com o embargo, o trabalho cessou e logoSamuel foi desligado da construtora. Fez alguns biscates, masnão arranjava um fixo para garantir o alimento do mês. Eratudo muito incerto. Havia dias em que não tinha dinheiro prapor o de comer dentro de casa. Começou a ficar cabisbaixo.Procurava trabalhos diariamente.

� Qualquer coisa serve � dizia pálido.E o desânimo ia sorvendo-lhe as forças. O corpo ema-

grecido fraquejava nas andanças em busca de emprego. Ascrianças choravam de fome e ele chorava em silêncio sem lá-grimas a saltarem dos olhos. Já haviam secado junto com oseu corpo.

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A noitinha caía quando viram o homem em cima do via-duto. Ninguém podia explicar como subira, pois as extremida-des não haviam sido construídas. Ele andava de um lado para ooutro transtornado. Falava sozinho. Alguns que passavam pelaavenida achavam que estava bêbedo. Não houve tempo paramuitas conclusões. Samuel saltou da parte mais alta que pode eesvaiu-se sem dor, conforme contaram os jornais.

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O trabalho de Lauro

Lauro estava tenso. Sempre ficava assim em entrevistasde emprego. Tentava disfarçar e achava que conseguia.

� O próximo � a voz vinha de dentro da sala.Ergueu-se, respirou mais fundo e entrou com a pasta na mão.� Então você é o Lauro? � a mulher tinha uns cinquenta

anos. Segurava um currículo do candidato lendo as principaiscoisas, enquanto perguntava o que já estava escrito.

Lauro respondia as perguntas timidamente.Ela lhe falou sobre o trabalho e depois leu mais alguns

tópicos em voz alta enquanto balançava a cabeça.� Vinte e dois anos, solteiro, inglês, informática... Per-

feito, Lauro! A proposta lhe interessa? Se você quiser podecomeçar amanhã.

� Sim claro.� Traga os documentos desta lista às 08h00min e entre-

gue na recepção. Depois me procure aqui nesta sala. Vou lhemostrar a empresa.

Foi com felicidade que Lauro deixou a sala. Há muitoestava desempregado e aquela oportunidade lhe era impor-tantíssima.

Fez rapidamente toda a parte burocrática. Recebeu a car-teira assinada, mas o trabalho parecia-lhe vago. Ficava numasala climatizada e arrumada fazendo bobagens no computa-dor. Não havia volume de serviços e Lauro logo passou a te-mer o desemprego.

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� Lauro, vou terminar este relatório em casa e quero quevocê vá lá buscar hoje à noite para deixá-lo em seguida na casado Sr. Gomes � disse-lhe a chefe enquanto adentrava a sala.

� Claro, estarei lá.A secretária copiou o endereço e lhe deu.Às nove horas, conforme haviam combinado, Lauro

apresentou-se à chefe. Ela não havia terminado o relatório ain-da. As horas passaram rápidas e ela parecia exasperada diantedos papéis que ora imprimia, ora amassava. Revirava-se todana cadeira, enquanto Lauro aguardava lendo uma revista sobrecarros na antessala.

� Veja este parágrafo, Lauro. Lhe parece bom? � esticouas mãos entregando ao rapaz umas folhas impressas. O tercei-ro parágrafo da segunda página � retocou a mulher.

Lauro desviou os olhos desconcertado. A mulher de umahora para a outra aparecera com uma camisola transparente ecurta. O bico dos seios arrepiados, explicitamente seduzindo.Perguntou ao rapaz pelo parágrafo, o que achara, mas Lauropouco pode dizer. Não havia voz para escorregar daquela bocatrêmula. Abaixou a cabeça num gesto tímido e ela fez todo oresto. Aquela foi a primeira noite que Lauro passou fora decasa. A primeira de muitas.

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Festa no quintal

Para José Sílvio Roldão

A tarde de domingo cheirava a brigadeiro. As criançasiam chegando devagar ao quintal da casa de Bruninha, a ani-versariante. Tudo havia sido decorado com muito gosto pelaavó, mãe e tias. Dois cavaletes sustentavam uma grande tábuade madeira coberta com uma bela toalha. O bolo reinava entremuitos enfeites. Doces e salgados muito saborosos compunhamuma outra mesa. Cordas de bolas foram pregadas nas árvores.Bruninha recebia os convidados muito serelepe.

Danilo havia presenteado sua melhor amiga com um li-vro. Eram companheiros nas leituras. Trocavam livros e discu-tiam as histórias. Às vezes trocavam os finais para variar umpouco e colocavam a imaginação a produzir novos enredos.Riam cúmplices. E as aventuras eram muitas, ora em florestas,ora em navios. Muito sagaz ele fazia poemas sobre os temasque liam e indicava leituras para a amiga.

Os adultos sentavam nas cadeiras recuadas próximas àsmesas e as crianças corriam soltas em burburinho. Todas elasbrincavam animadas e o Dudu, irmão mais novo do Danilo,preparava mais uma arte para apresentar no aniversário. Muitocriativo ele arrumava umas ideias de dar inveja a ficcionistas.As traquinagens eram elaboradas! Ele as planejava muitobem. E todas elas tinham as melhores intenções e os melho-res argumentos.

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Seu pai o havia levado a um show pirotécnico um mêsantes do aniversário. Dudu ficou muito impressionado com abeleza dos fogos coloridos.

� Pai, é muito difícil pintar os fogos? � perguntou Dudu.O pai não teve tempo de responder em meio às exclama-

ções do filho. Os olhos do pequeno brilhavam enquanto Daniloescrevia uma Ode à noite pintada.

Foi então que se deu o estalo. A ideia exata para animar afesta da Bruninha. Dudu começou a elaborar sua homenagem.Ora, havia bolas de soprar cheias em várias árvores e ele desco-brira ainda uns galões de tintas na parte lateral do quintal dacasa. Era simples: as bolas estourariam e espirrariam as tintaspara o alto como no show que assistira. Todos ficariam satisfei-tos e veriam o quanto ele é esperto. Bruninha ficaria feliz e dariaum beijo em Danilo que ficaria muito contente com o irmão.

Discretamente, Dudu pegou uma corda com doze bolas efoi para a lateral do quintal, onde as desamarrou, esvaziou-aspara depois tornar a enchê-las com água e tinta. Preocupou-seem fazer isso com as cores diferentes que havia nas latas. Tudocuidadosamente. Nada poderia dar errado. Até cobriu a roupacom umas toalhas que havia no varal da casa, para não sujá-las.Com tudo pronto o sapeca colocou a corda com as bolas numaárvore ao lado da mesa do bolo. A surpresa seria na hora decantar o parabéns.

Logo chegou a esperada hora do bolo. Dudu estava an-sioso. Segurou o galhinho de buganvília, cheio de espinhos.Subiu numa cadeira e espichou o bracinho o mais que pode,sacudindo-o. As bolas pipocaram em cores e estouros sobre amesa decorada. Alguns respingos atingiram o bolo e a aniver-

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sariante, que ria muito animada com a homenagem.Depois do susto as pessoas não sabiam se riam ou se

aplaudiam. Dudu aplaudia sorrindo completamente colorido,verificando que o plano não saíra exatamente como o planeja-do, mas todos haviam entendido sua ideia para embelezar afesta. O pai ruborizou diante do feito do filho.

� Ano que vem teremos fogos coloridos no aniversárioda Bruninha! � disse a mãe da menina.

Danilo recebeu de sua escola o prêmio de melhor reda-ção do ano pelo texto Festa Colorida.

Dudu sorriu satisfeito.

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O quarteto

Um zigoto e duas meninas. Cresceram tão unidas quantono ventre materno. O pai, político. A mãe envolvida com obrasde caridade da igreja. Cercadas de afeto as meninas cresceramdóceis e sensíveis. E a vida na pequena cidade era tranquila, semarroubos.

Veio a adolescência e levou às moças certas inquietações,certos desejos e, acostumadas que estavam, queriam dividir tudo.Era um exercício completo de compartilhar. A felicidade dasmoças estava no dividir. E eram roupas, e sapatos, e batons: tudodividido com prazer e cumplicidade.

Lá pelos dezesseis anos, as irmãs se apaixonaram pelomesmo rapaz. Acharam por bem dividir também a relação.Conhecedoras dos limites da sociedade em que viviam, as mo-ças elaboraram um plano: teria de ser velado e o rapaz teria deconcordar. As partes envolvidas tinham de ser transparentes sem-pre. Tendo o rapaz concordado, estabeleceram um cronogramae definiram a história oficial. O rapaz, oficialmente, namorariauma delas. A outra ficaria horas e horas no quarto dedicando-seà leitura. Qual estaria no quarto lendo e qual estaria com o rapazem cada dia, somente o cronograma poderia dizer.

O que, a princípio, parecia uma brincadeira tornou-se umforte e sólido sentimento a três. Era um amor intenso, puro everdadeiro, nutrido de respeito e confiança. Algumas vezes,saiam juntos, mas não em romance. Como um casal saí comamigos ou parentes.

Os anos passaram e as irmãs já haviam lido muito livros.A família sempre cobrava.

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� E esse casamento, quando sai?O casal desconversava. Era uma situação mais complica-

da. Até pensavam em casar e levar a irmã para morar junto,mas a vizinhança logo levantaria histórias. Era preciso pensarno assunto e os três pensaram juntos.

Acharam então que a leitora de livros deveria tambémarranjar um namorado, coisa que, do ponto de vista prático,era muito fácil, pois as gêmeas eram belas, inteligentes, agradá-veis e de família tradicional e abastada. No entanto, o rapazteria de ser escolhido pelos três e teria de concordar com aqueleamor que já existia e que iria continuar existindo. No ciclo deamigos do trio, escolheram um rapaz que além de agradar aostrês, parecia ter condições de aceitar a proposta que lhe iriamfazer. Chamaram-no para uma reunião e propuseram. No iní-cio, o rapaz ficou estupefato, mas a possibilidade de ficar comas duas irmãs, mesmo que separadamente, instigou-o. Aceitoucom ressalvas.

Os namoros deram certo por muitos anos. Cada rapaznamorava com duas moças e cada moça namorava dois rapa-zes, conforme cronograma. Não havia infidelidade. Eram muitoleais. Não havia traição. Amavam entre eles, ninguém de fora.Todos ficaram muito felizes e satisfeitos. E o amor por fimabarcou aos quatro com a mesma pureza, respeito e fervor.

Casaram-se no mesmo dia as irmãs gêmeas e de tantaunião compraram um casarão onde os dois casais morarampelo resto da vida em pleno amor e sem ressalvas.

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O quarto de Candice

O quarto de dona Candice era repleto de histórias. Singe-las, às vezes extravagantes. Por duas gerações as crianças da casaouviram seus relatos. Era uma cama muito grande com criançasem volta das caixas de fotografias. Lá se aprendia sobre o passa-do da família. Bisavós, avós pessoas de todas as partes da famí-lia. Quem cortava relações com quem, quem reatava e coisas dogênero. Casamentos mal resolvidos, crianças deixadas em orfa-natos e depois recuperadas. Os pequenos ficavam fascinados comtudo aquilo. As fotos sem cores e amareladas pelo tempo, quaseapagadas revelavam a moda das gerações passadas. As maismocinhas observavam os chapéus, os vestidos, as poses come-didas. Era um encanto aquele tempo.

Era com prazer que eu levava o chá para eles no quartonaquelas divertidas tardes de lembrança. Era todo um riso espa-lhado pelo ambiente. A alegria expressada nos olhinhos atentos.Recebiam-me muito bem. Algumas vezes eu era convidada asentar-me numa poltrona perto da cama para ouvir algumas des-sas histórias. Nestes momentos dona Candice retirava da caixaalguma foto antiga de algum serviçal muito importante para afamília, sempre alguém que já havia morrido e contava uma lin-da história de dedicação, cumplicidade e confiança. Eu gostavamuito. Saía do quarto satisfeita. Era muito boa a dona Candice.

Por algum desatino ou por pura ilusão acreditei que donaCandice viveria mais do que eu. Desejei que alguma importan-te história minha que ainda iria acontecer fosse contada a ou-tras crianças, no entanto dona Candice partiu muito antes do

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que eu podia supor. Seus filhos jogaram fora as fotos dos em-pregados.

Foi com mágoa que recolhi as fotos do lixo. O passadodaquelas pessoas era muito importante para mim. Elas inte-gravam a minha história. Olhava com frequência aqueles retra-tos, recordava-me de alguns relatos. Outros tantos inventei tãoricos em detalhes como os de dona Candice.

Havia no meio das fotos um retrato de um homem mui-to vistoso, com roupas muito elegantes. Não parecia com osoutros empregados. Eu levaria aquelas fotos quando fosse vi-sitar minha mãe em sua gleba. A minha mãe trabalhou tambémpara a família Almeirão, mas num momento de sua vida foipara a terra em que nasceu, não muito longe dali. Lá se mante-ve plantando sua pequena horta e seu doce pomar. Ia visitá-la acada dois meses.

Numa das últimas vezes em que estive com mamãe ela mepareceu mais triste. A idade já cansava-lhe as feições. Mostrei--lhe a caixa de fotos recuperada do lixo dos Almeirões, indican-do aquele senhor tão refinado. Minha mãe respirou fundo.

� É seu pai, minha filha. Ele era um deles. Tio mais novode dona Candice. Nós estávamos apaixonados. Vivemos um lin-do amor. A família descobriu quando eu engravidei, e ele quiscasar comigo. Fizeram todo o possível para manter a situaçãoem segredo, para que aquela história �estapafúrdia�, como elesmesmos diziam, não saísse da casa. Eu até achava essa palavramuito linda, mas depois seu pai me explicou o que significava eeu não gostei mais.

Tive você. Não era maltratada. Dona Candice cuidou denós duas desde mocinha. Ela era contra a posição da família,mas nada podia fazer, tão frágil, coitada...

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Seu pai havia sido mandado estudar em outro país. Eleme explicou tudo antes de ir. Eu ainda grávida e ele me disseque viajaria, que não podia evitar aquilo, mas que retornariaem cinco anos para casarmos. De fato ele voltou e manteve suadecisão. Nosso amor havia sido conservado mesmo de longe.No entanto, o destino quis diferente.

Numa de suas idas à cidade para resolver coisas costu-meiras caiu do cavalo. A cela estava folgada e ele não sobrevi-veu. Fiquei naquela casa por mais dez anos por consideração adona Candice que implorou que ficássemos. Quando você com-pletou quinze anos, parti. Você gostava tanto de lá, não meimportei que ficasse, ainda mais com a insistência de donaCandice. Não chore, minha filha, não chore.

Não sabia o que pensar. Uma tristeza grande esmagou meucoração. Olhava a foto daquele homem, meu pai, jogada fora esentia uma dor estranha. Chorei ainda por muito dias, quandoretornei à casa para buscar minhas coisas. Sem dona Candice lá,não havia motivos para ficar. Retornei à gleba da mamãe não maiscomo visitante. Nas tardes mais frias me vinha a imagem de donaCandice na cama com os jovens em volta e suas histórias tão belas.Embora ela não tenha contado a história daquele homem, nadaseria capaz de macular aquelas tardes na minha memória.

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A leveza

Para Marcos da Silva Sampaio

A presença quente penetrava na sala. Pés silenciosos beija-vam lentamente o chão e Janice passava com imensa graça para acozinha. E ia linda, e ia nua. Ele, em seu labor, escrevendo maisum romance, A cor das ostras, este. Levantava os olhos para admirá-la. Rapidamente voltava ao texto. Havia um prazo estipulado pelaeditora e ele deveria se concentrar.

Janice passava o café forte para o marido que rompera amadrugada a escrever seu texto, um sentido forte, sério, mas noqual se ausentava algo a criar como que um vazio narrativo.

Com variantes de circunstância, assim decorriam as manhãsnaquela casa simples de piso pintado, janelas pequenas e teto detelha. A pintura antiga, bela e desgastada pelo tempo. A tempera-tura fresca da manhã entrava por debaixo das telhas. A janela seabria para o pequeno jardim e seria puro o café que lhe preenche-ria a boca. Seu paladar intenso pedia café forte e amargo.

De doce bastava a vida. Algo havia de ser amargo, ao me-nos para saber que existe o amargo. E então era o café que lhetrazia o sentimento desconhecido através de sabor decifrado emabismos de cores. Levava a caneca à boca e soprava um pouco. Ovapor quente deixava os óculos completamente baços.

Era intenso aquele amor. Mesmo depois de vinte e seis anosera cheio de surpresas e delícias. E mesmo o efeito do tempo se-duzia o casal apaixonado. Os cabelos grisalhos, a falta de cabelo, oseio caído e a flacidez das carnes. Nada havia de feio entre eles,

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amavam-se mais quando percebiam os efeitos do tempo sobreseus corpos. Contemplavam-se sábios, filhos do tempo.

E Janice ria com sua gargalhada gostosa, como uma criançaque sente cócegas.

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A bailarina

Para E. P.

Ela era uma incrível bailarina. Toda a sua vida dedicada aque-la arte. Seu pai a matriculara no balé muito cedo, percebendo suavocação nata, o brilho nos olhos quando o assunto passava poresse sonho. Sua mãe também apreciava a ideia ao seu jeito: sem-pre quis ser bailarina e nunca pode. Sua família era humilde demaispara entender sua vocação e financiá-la.

A menina bailarina cresceu e tornou-se uma artista de reno-me. Viajava para se apresentar em várias cidades do mundo, ga-nhava prêmios, fazia um nome de glória com o seu dançar.

A mãe, cada vez mais cabisbaixa, passou a nutrir um senti-mento que não podia entender e que não sabia medir. Cada vezque via a filha radiante, conquistando seu sonho, sentia-se ferida demorte. Sentia o fel travar-lhe a boca. Sentia mesmo um asco de siprópria e do mundo. Contraía-se em sua ira silenciosa.

A filha nada percebia. Costumava narrar suas vitórias para amãe. Num sentimento de cumplicidade expunha seus sonhos, suasrealizações. A mãe, mal podendo conter sua raiva e sua frustração,ouvia resignada. Aquela que dela saíra concretizou tudo o que quis,enquanto que ela mesma nada teve. E assim alimentava aquelassensações com uma espécie de desprezo mudo.

Um vento breve e inesperado levou a jovem bailarina e amãe amargurou-se de culpa e remorso por ter desejado algumasvezes, em silêncio, a sua morte. Amanheceu morta três meses apósa filha. Havia um líquido verde na lateral de sua boca.

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Amália

Amália era filha e neta de prostitutas. Sua mãe, tendoconhecido os obscuros caminhos do seu trabalho, desejou-lheuma sorte diferente. Foi assim que, antes de completar doismeses, já morava em um orfanato.

Quanto ao sentimento da mãe, pouco se sabe. Uns diriamse tratar de uma insensível. Abandonara uma pobre criança quenão pedira para nascer; outros que a mãe num gesto de abnega-ção, rompeu com o laço mais forte que existe na vida em favorda felicidade da filha.

Sobre o sentimento da filha, é certo dizer que Amálianunca conheceu revolta ou medo. Seu espírito ingênuo não foitocado por essas ferozes sensações; ao contrário, era leve epairava sobre as asperezas da vida.

Teve sorte, pode-se dizer. Fora adotada rapidamente poruma família sólida, amorosa e acolhedora. Soube, desde cedo,que havia sido adotada e que havia sido escolhida entre outraspor amor.

� Quando te vi, a Terra esqueceu de rodar em torno de si.Havia a ausência de sons e o incrível cheiro de anis tomou o am-biente. Você balançava as pernas no berço sem se dar conta domundo externo. Era uma linda criança serena de pequenos olhosbrilhantes. O cheiro de anis emanava dos seus poros inebriandoo quarto. Tomei-a no colo e soube que seu mundo havia penetra-do no meu através daquele cheiro. Nunca me esquecerei.

Amália sorria satisfeita a cada vez que a mãe relembravaa história. Para ela, aquele era o momento de sua concepção.

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Todos hão de concordar que a Terra não poderia conti-nuar sem rodar como na narrativa da mãe de Amália. Rodou obastante para que a menina se tornasse uma mulher encantado-ra e doce com seus olhos brilhantes e riso solto. Simples, purae livre de vaidades. Amália era o puro amor. Um amor enraiza-do partindo dos pés até a ponta dos cabelos. Um amor que lhesaltava aos sentidos. Um amor que de tão puro chegava a serbruto como uma rocha encontrada na natureza.

E foi adulta, ao experimentar o sexo pela primeira vez,que Amália descobriu como transbordar e dissipar todo aque-le amor que carregava. Não que lhe pesasse, mas por necessi-dade de compartilhá-lo com o mundo.

Amou homens, mulheres, negros, brancos, índios, estran-geiros, pobres, ricos, destros, canhotos, enfim, todos aquelescapazes de suportar a leveza e liberdade do seu amor ímpar.Assim Amália viveu, percorrendo cidades em diversos países,em completa liberdade entregando seu amor com os olhos,com a boca, com as mãos, com os seios, com o ventre, com osexo e, sobretudo, com os poros que derramavam seu profun-do cheiro de anis.

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Questão de beleza

O salão de Sílvia, embora fosse o mais antigo daquele bair-ro, já não rendia como em outros tempos. Quando se estabelecerano Ampureú não havia outros salões e a classe média frequentavao Beleza da Sílvia.

Foram anos de sucesso. Depois de um tempo, uns salõesmenores começaram a aparecer em ruas próximas e, por último,já era possível ver na mesma rua mais de três salões de beleza.

Foi mais ou menos nessa época que a Sílvia resolveu tomaruma atitude para tentar chamar a freguesia. Sem muito dinheiro eideias, Sílvia colocou uma faixa bem grande na porta de seu salão:

O SUCESSO DEPENDE DA BELEZA!!!Isso mesmo, não é exagero, com três exclamações

bem grandes.O incrível foi que o salão passou a encher após a tal faixa,

pois além do cartaz também havia algumas promoções. Mui-tas moças que iam fazer entrevistas de trabalho passavam antesno Beleza da Sívia para fazerem suas unhas e cabelos. Houve umcerto rebuliço.

Sílvia era toda sorriso. Felicidade completa. Não demo-rou muito, todavia, a observar uma mendiga que chegava sem-pre por volta das 17h00min e começava a se acomodar paradormir na porta do salão, cuja marquise protegia da chuva.

Sílvia começou a ficar zangada com aquela situação insó-lita. Comentava com seus amigos mais íntimos, com a família.Pedia conselhos e se irritava muito com a situação.

�Ela não tem dentes, ela não tem dentes.� Indignava-se.

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Estava próxima de explodir com aquela situação. Achavaque a mulher espantaria sua freguesia.

Certa vez aproximou-se da mulher que aparentava ter uns40 anos, portanto mais jovem que ela mesma e perguntou-lhe:

� A senhora não tem ninguém?� Ninguém, ninguém, ninguém... � disse a mulher.� E a senhora não tem pra onde ir, não é?� Tenho sim. Posso ficar na casa da Custódia.� E por que a senhora não vai para a casa da Custódia?

Ela mora longe? Quer que eu tente lhe ajudar com a passa-gem? Por que não vai lá, toma um banho? Vai se sentir me-lhor. Vai ficar mais bonita.

� Bonita?� Sim, bonita! Quem sabe se depois de tudo você não

passa aqui... faço uma escova no seu cabelo e aí você voltapara a casa da Custódia.

� Hum, bonita... A Custódia disse que beleza é igual aser criança, passa muito rápido. Olha, moça, eu acredito naCustódia. E agora me dá licença que eu preciso descansar.

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A plantonista

Havia atrás do espelho, num compartimento que se abria,muitos frascos. Com rótulos, coloridos, com vidro âmbar etranslúcido, pequenos, médios e grandes. Uns do tipo conta-gotas, outro com palheta para uso tópico. Havia ainda poma-das e emplastros. Para tudo havia uma solução dentro daquelearmário de banheiro: enxaqueca, cólica, sinusite, diarréia, gri-pe, micose, torcicolo, frieira, afta e muitas outras patologiasque não ouso citar para não enfadar o leitor. Orgulhava-se deter sempre em sua bolsa uma boa pomada de largo espectro.

A vizinhança recorria ao apartamento 36 nas horas de aperto.� Acordou com muita dor de barriga e vomitando. Olha

como está pálido � a mãe balançava o menino magro no coloenquanto ele chorava com olhos esbugalhados.

Das Dores acudia de pronto. Buscava em seu armário asolução pediátrica.

� É amargo. Ele vai reclamar, mas deve tomar uma dosea cada seis horas.

Cumpria a sua missão. E se sentia médica aquela senhorado 36. Sozinha, sem filhos e sem marido, dedicou a vida aosmoradores do Edifício Pitágoras. Eram 110 apartamentosmodestos preenchidos por pessoas diversas.

Por aqueles arredores havia um posto de saúde, mas as filaseram enormes. Pessoas morreram esperando. Os condôminospreferiam o atendimento no apartamento 36, deixando para oposto ou hospital público apenas os casos gravíssimos.

O sábio destino incumbido de dar alguma chance aosmenos favorecidos iluminava a mente da senhora grisalha. Nun-

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ca houve um caso de reação alérgica sequer. E quem passassepor Das Dores ou ficava curado ou era por ela encaminhadopara algum hospital já com parte do diagnóstico definido.

Estive no posto uma única vez antes de conhecer DasDores. A fila estava muito grande. Havia uma quantidade su-ficiente de enfermeiras, eu achava, mas elas estavam muitoocupadas, tão elegantes! Elas conversavam sobre o final danovela das oito. Uma outra mostrava a cor do esmalte. Vezpor outra uma médica se juntava ao grupo para comentarcoisas importantes sobre aqueles temas. De repente uma es-pécie de urro brotou da fila e um senhor debateu-se no chão.As enfermeiras fizeram um muxoxo para a médica queretibuiu e voltaram ao trabalho.

Deste dia em diante virei uma das maiores frequentadorasdo apartamento 36.

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Este livro foi impresso em São Paulo, emAgosto de 2009, pela Gráfica Scortecci, paraa Editora Scortecci.O papel do miolo é chamois fine 80g/m²,e o da capa é cartão 250g/m²