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1ª Edição. Revista de graduação VIS/UnB.

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Revista de Graduação do VIS/UnB

Ano 01, nº01 agosto/dezembro 2015

Brasília

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Kunstwollen(das)

UNIVERSIDADE DE BRASÍLIAReitorJosé Geraldo de Sousa JúniorVice-ReitorJoão Batista de Sousa

DEPARTAMENTO DE ARTES VISUAIS Coordenação de Teoria, Critica e História daArteCoordenadoraCecília Mori

REVISTA DAS KUNSTWOLLENEditoraRaissa Gonçalves

Conselho EditorialDanyella AndradeSarah de MeloVinícius Nascimento

Projeto GráficoVinícius Oliveira

Foto de CapaRicardo Caldeira

RevisãoRaissa Gonçalves

Departamento de Artes VisuaisUniversidade de BrasíliaCampus Universitário Darcy RibeiroPrédio SG-01Brasília - DF70910-900

[email protected]

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SUMÁRIO

06 Arte e tecnociência no trabalho de Eduardo Kac

Mateus Raynner André de Souza

22 O fim da história da arte: uma crítica ao método de construção linear

da história da arte

Alysson Camargo

29 Concepção do mundo pelas artes visuais, considerações sobre o

geométrico nas artes

Alexandre de Mello Cavalcanti Júnior

32 METAMORFOSES: Reflexões sobre pintura corporal indígena e

tatuagem

Marisa Mendonça Pires de Miranda

33 Deus é um Cosmético

Matheus Kayssan Opa

34 Uma visita ao mundo “polêmico” de León Ferrari

Emanuelle Feitosa

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Editorial

Quando nos solicitado um projeto de produção cultural, orientado pelo professor

Fábio Pedroza, algo nos ocorreu instantaneamente: produzir uma revista

acadêmica. O objetivo inicial era criar uma plataforma onde os estudantes de

graduação do VIS pudessem publicar seus textos, além de promover a interação

ao divulgar suas produções científicas.

Ao longo de um semestre, o projeto tomou forma, cores e voz, e agora é um

veículo para divulgação dos trabalhos dos graduandos de VIS/UnB, os quais

ainda contam com pouquíssimos espaços para suas publicações, além de um

enorme receio de submeter seus trabalhos às revistas de pós-graduação.

Com grande satisfação (e esforços!), apresentamos a primeira edição da revista

(das) Kunstwollen. Agradecemos aos professores, Cecília Mori e Elyeser

Szturm, e ao colegas colaboradores do VIS. À equipe editorial, nosso

agradecimento pelo esforço na reunião, organização e edição dos textos!

Brasília, 08 de Dezembro de 2015

Conselho Editorial

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Arte e tecnociência no trabalho de Eduardo Kac

Mateus Raynner André de Souza Resumo: A arte atualmente está cada vez mais conectada da tecnociência. Em um contexto em que a arte, ciência em tecnologia se unem para criação artística se insere Eduardo Kac. Este trabalho visa refletir de que forma o artista utiliza a tecnociência em sua criação poética, mas precisamente no que concerne a Arte Telemática e Bioarte, a partir de exemplos de grandes obras de arte do artista. Palavras-chaves: Eduardo Kac; Arte Contemporânea; Tecnociência; Arte e Tecnologia.

1. Introdução

O uso e propagação da ciência e da tecnologia por artistas sempre foi importante no processo de criação artística. Se para certo período o meio mais avançado foi o bronze, ou a tinta a óleo, hoje os meios são a biotecnologia, as memórias eletrônicas, as tecnologias digitais, o ciberespaço, as telecomunicações, a nanotecnologia, a robótica. Após a revolução industrial, a tecnologia passa a desempenhar papel fundamental na vida cotidiana, dessa forma, as relações entre arte e tecnociência tornaram-se mais estreitas. Utilizo o termo tecnociência aqui para caracterizar a ligação entre ciência e tecnologia e os laços que estas desempenham juntas em nossa sociedade. Na arte contemporânea são incontáveis os exemplos de artistas que se utilizam do apoio de cientistas para criar suas obras. Para estes artistas, sem a parceria com esses profissionais e sem o conhecimento técnico-científico não seria possível criar suas obras. Nesse campo, o artista assume papel de protagonismo frente as mais recentes descobertas científicas. Ele não apenas utiliza o conhecimento pronto. Ele participa ativamente em atividades de pesquisa, fazendo experiências, fomentando debates. Dessa forma, o espírito inventivo das duas áreas se une, de forma única, na contemporaneidade, na criação de poéticas artísticas. Tendo em vista a inexistência de uma história da arte abrangente que envolva as suas relações com a ciência e tecnologia, torna-se claro a importância desse trabalho que visa refletir sobre esse momento atual, das conexões entre arte e tecnociência a partir das obras de

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Eduardo Kac e a partir de alguns exemplos mostrar como o artista utiliza a tecnociência em sua poética de criação. Eduardo Kac se legitimou como artista nos anos 1980 na sua cidade natal, Rio de Janeiro, fazendo performances públicas, e foi um dos principais nomes do movimento Arte Pornô. Suas obras não se limitam a um domínio específico, dentro das pesquisas envolvendo arte e tecnologia, seu trabalho traz a tona temas dos debates mais recentes de teóricos da arte. Suas invenções em arte de telepresença e bioarte faz com que Kac assuma um lugar de destaque no cenário atual.

2. Telepresença Desde o início da década de 1980, muito artistas no Brasil e no mundo começaram a desenvolver obras que envolvam telecomunicações. Na grande maioria das vezes percebemos um desenvolvimento colaborativo dessas obras.

Empregando computadores, vídeos, moldens e outros dispositivos, esses artistas usam os recursos visuais como parte de um contexto de comunicação mais amplo, interativo, bidirecional. Imagens são criadas não para serem transmitidas por um artista de um ponto a outro, mas para estabelecer um diálogo visual multidirecional com outros artistas e participantes em localidades remotas. Esse diálogo pressupõe que as imagens serão trocadas e transformadas através do processo da mesma forma que o discurso é interrompido, complementado, alterado e reconfigurado em uma conversa direta e espontânea.1

A Arte da Telepresença é herdeira dessa arte de telecomunicações e envolve robótica, computadores e a interface homem-máquina. Segundo Kac (2013)2 é importante ter claro três conceitos, que muito se confundem, para se entender a Arte da Telepresença: Ciberespaço, Realidade Virtual e Telepresença. O ciberespaço pode ser definido como: "o espaço de comunicação aberto pela interconexão mundial de computadores e das memórias dos computadores. "3. Dessa forma ele permite o acesso e a

1 KAC, Eduardo. Telepresença e Bioarte: Humanos, Coelhos & Rôbos em Rede. Tradução,

Atonio de Padua Danesi...[et al.]. 1ª edição, São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo: 2013. p. 17.

2 KAC, Eduardo. Telepresença e Bioarte: Humanos, Coelhos & Rôbos em Rede. Tradução, Atonio de Padua Danesi...[et al.]. 1ª edição, São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo: 2013. p. 150.

3 LÉVY apud SANTOS, Franciele e SANTOS, Nara. Ciberespaço: Contribuições Para a Arte Contemporânea. In. 17º Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Arte Plásticas - Panorama da Pesquisa em Artes Visuais. Florianópolis, 2008. p.233.

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transmissão de imagens, sons, textos, informações em tempo quase real. Essa troca pode ocorrer em qualquer parte do mundo. Esse espaço que permite uma comunicação virtual, não necessita da presença física do homem para que ocorra uma troca. A realidade virtual é uma tecnologia que visa recriar uma realidade o mais crível possível para um indivíduo através de uma interface de computador. O usuário pode agir, manipular e intervir nesse universo 3D criado pela máquina.

A telepresença consiste, em linhas gerais, como um híbrido que envolve robótica e telecomunicações, onde também se transmitem imagens e sons, porém não há a tentativa de se comunicar significados específicos, podendo ser uma experiência individual. Um individuo pode estar virtualmente presente em um lugar real, dessa forma há o desaparecimento da noção de distância e de um lugar real. Podemos diferenciar a telepresença da realidade virtual a partir dos

seus efeitos na percepção humana. A realidade virtual dá ao

observador a ilusão de realmente estar em um mundo "real", ou seja,

torna "real" o que é apenas virtual. Já a telepresença, tem a

capacidade de transportar um individuo de um lugar para o outro a

partir da robótica e das telecomunicações. Ela torna virtual o que só

existe fisicamente.

Kac explica que a realidade virtual e a telepresença não são intrinsecamente opostas como pode parecer:

Proponho que um "princípio da equivalência" emerge dessa comparação: consideradas em conjunto, essas duas tecnologias indicam que o novo domínio da ação e da experiência humana abrange com a mesma intensidade o espaço eletrônico e o espaço físico. Mundos digitais podem torna-se temporariamente equivalentes a realidades tangíveis, já que tanto a tecnologia da telepresença quando a da realidade virtual podem projetar a ação humana em tempo real para além das barreiras espaçotemporais.4 2

A arte da telepresença, não apenas utiliza a ciência e a tecnologia mas também questiona e põe em cheque suas estruturas formadoras. Não é unidirecional e sim recíproca, pois qualquer decisão que o participante tome na obra afeta o ambiente remoto e a ele mesmo, como característica particular da obra.

Vejo a arte da telepresença como um meio de questionar as estruturas de comunicação unidirecionais que marcam

4 KAC, Eduardo. Telepresença e Bioarte: Humanos, Coelhos & Robôs em Rede. Tradução, Atonio de Padua Danesi...[et al.]. 1ª edição, São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo: 2013. p. 166.

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tanto as belas-artes tradicionais (pintura, escultura) quanto os meios de comunicação de massa (televisão, rádio). vejo a arte da telepresença desafiando a natureza teleológica da tecnologia, Para mim, a arte da telepresença cria um contexto único no qual os participantes são convidados a vivenciar mundos remotos inventados em perspectivas e escalas outras que não humanas.5 (3)

2.2 Rara Avis

Desenvolvida por Eduardo Kac e uma equipe de colaboradores em 1996, Rara Avis é uma instalação de telepresença. Teve sua primeira exibição no Nexus Contemporary Art Center, em Atlanta, também sendo exibida na I Bienal do Mercosul, ocorrida no final de 1997 em Porto Alegre. A proposta consistia em um espaço tangível, um aviário que continha em seu interior 30 pássaros mandarins cinzas bem pequenos e um pássaro grande e colorido parecido com uma arara, que movimentava a cabeça da esquerda para a direita e ocasionalmente imitia sons. Essa ave maior era na verdade um telerrobô, que consistia em uma arara com olhos de coruja, que fora chamada de arauja (macowl). Estes olhos possuíam duas minicâmeras. O espectador era convidado a entrar no aviário e colocar um visor, com esse visor o participante podia ver todo o espaço do ponto de vista da arauja, inclusive seu próprio corpo. O participante se vê ao mesmo tempo como observador e como observado. Quando o participante movia a cabeça, a cabeça do telerrobô fazia o mesmo movimento.

5 Idem. p. 150.

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A obra também estava a todo momento conectada à internet, o que permitia a participantes distantes a observar a galeria da perspectiva da arauja. Pela internet podiam, também, utilizar um microfone para acionar o mecanismo de som do telerrobô. Os sons, que eram uma mistura de vozes humanas com vozes de outros pássaros, eram ouvidos pelos participantes da internet e da galeria. Dessa forma o corpo da arauja era partilhado simultaneamente pelos participantes que visitavam a exposição e pelos participantes que estavam em todos os lugares do mundo pela internet. No entanto a obra não era a mesma para o participante local e para o remoto. O usuário padrão via as imagens em preto e branco e atualizadas a cada dez segundos, já os que tinham comprado um software específico recebiam imagens coloridas, em alta resolução e em tempo real. Segundo o próprio artista6 (4), a obra, pelo fato de o participante habitar por um período de tempo o corpo de uma ave, levanta questões críticas como o do exótico: "um conceito que revela mais sobre a relatividade dos contextos e a percepção limitada do observador e menos sobre a condição cultural do objeto observado".7 Devido ao fato dos participantes não verem as imagens da mesma forma (preto/branco, colorido), a obra também evidencia que as diferenças presentes no mundo tangível podem ser duplicadas on-line. Machado (2011)8, também diz que a obra levanta questões a cerca de identidade alteridade. Segundo ele, esta obra proporcionou ao ser humano, pela primeira vez, a experiência de compartilhar o corpo de uma ave que também era máquina e viver, em um sentido metafórico, a experiência de ser simultaneamente ave e máquina.

3. Bioarte

A bioarte se caracteriza como uma corrente artística que busca inspiração na biologia e na biotecnologia que possibilita a transformação, criação e a manipulação da vida, seja na criação de novas espécies, de um natureza artificial ou até mesmo pós-humana. Os bioartistas utilizam tecidos, células, DNA, manipulação genética em suas obras. A bioarte segue a tendência contemporânea em que a biologia deixou de ser um campo de estudo isolado e está atingindo cada vez mais novas áreas de conhecimento. Não é mais estranho ouvir falar em biofilosofia, biodireito, biossociologia, biopolítica.

6 ibidem. 7 ibidem. p. 173. 8 MACHADO, Arlindo. Corpos e mentes em expansão. In. MACHADO, Arlindo. O quarto iconoclasto e outros ensaios hereges. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001. Disponível em: <http://www.ekac.org/corposementes.html> Último acesso: 29/05/2014.

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Os bioartistas não pretendem simplesmente imitar a natureza ou a ciência. Mais uma vez eles estão à frente nas pesquisas a fim de que a ciência e a natureza não prestem apenas um serviço utilitário à arte, mas que com estas seja possível desenvolver uma genuína expressão artística. Já é conhecido que arte contemporânea continua na busca de tentar resolver vários problemas suscitados pelo modernismo e essa voga não é diferente para a bioarte.

Os bioartistas, seguindo as tendências do Modernismo em voga na primeira metade do Século XX, têm estado, sobretudo envolvidos em experimentar novas soluções e novos materiais, desprezando o ensino acadêmico das Belas-Artes e contestando os conceitos tradicionais do Belo, às vezes de forma irreverente e provocadora. Assim, o bioartista troca telas, madeiras e pedras por material biológico como proteínas, ADN, células estaminais e neurônios, entre outros, em seus novos ateliês: os laboratórios de manipulação genética. Esta convergência entre arte e ciência obriga a que o bioartista e o cientista respeitem mutuamente regras e os objetivos de cada uma das áreas. Se o objetivo do cientista é de interpretar o mundo, o do artista é representá-lo. 9 (5)

Estamos, graças aos avanços da tecnociência, cada vez mais próximos de dominar nosso corpo e dos outros organismos vivos. As máquinas cada vez mais ganham propriedades que eram exclusivas das criaturas vivas. Podemos pensar em uma época no futuro em que os seres vivos e máquinas não serão mais tão diferentes entre si, em que suas diferenças, pelo contrário serão pouquíssimas. Algumas invenções preveem essa nova era: o sangue sintético, órgãos artificiais, a clonagem, os dispositivos implantáveis no corpo humano. O que nos faz perguntar quais são diferenças essenciais entre os seres orgânicos, inorgânicos e as máquinas. (Machado, 2001)10. E não apenas as descobertas e a manipulação da ciência são matérias para a criação artística da bioarte.Os artistas valem-se dos debates e questionamentos por traz dessas invenções para trazê-los para o âmbito social e artístico.

3.1 Arte Transgênica

A arte transgênica insere-se no contexto da bioarte, e utiliza a engenharia genética na criação de seres vivos. A arte não é somente

9 ARAÚJO,op.cit., p.4. 10 MACHADO, op.cit..

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essas novas espécimes, é também uma relação que envolve: artista, novo organismo e público. Kac (2013)116 deixa claro que essa nova forma de arte deve manter um forte compromisso com a bioética. Sendo as preocupações éticas aqui deveras cruciais no momento em que se projeta a obra. Os projetos devem, segundo Kac, sempre resultar em criaturas saudáveis. A arte transgênica torna uma forma de tirar as pesquisas sobre novas espécies da sua forte relação com o capital, como vem acontecendo nos laboratórios pelo mundo. Exemplo disso é o constante plantio e consumo de milho, soja, e outros grãos transgênicos sem que se haja um estudo conciso sobre os risco ambientais desses produtos. Gomes nos mostra que esta forma de arte pode ter papel importante no que diz respeito em trazer essas questões para o público:

Assim, mesmo que estes trabalhos não apresentem novas possibilidades para a sociedade, elas fomentam as discussões que se levantam com o aproximar dessas possibilidades. Apesar de termos novas ofertas de tecnologia a um ritmo apressado, continua a ver um percurso entre o momento em que a descoberta científica é feita e o momento em que está disponível sob a forma de um produto ou serviço. [...] A imaginação artística projeta as esperanças e os medos da sociedade em geral, colocando-os perante ao público. Se bem sucedida, desperta o diálogo público necessário para que, como sociedade, estejamos melhor preparados para colher e lidar com as novas descobertas.Em vez de ideias abstractas alimentadas por conceitos que eventualmente levam um leigo a perde-se numa discussão sobre consequências do desenvolvimento da ciência e tecnologia, a bioarte apresenta-nos a materialização desses conceitos. Com isto, consegue com sucesso atrair atenções para temas importantes da agenda científica ou política.12

É importante, por fim diferenciarmos os seres criados a partir da manipulação genética e os seres criados pela arte transgênica. De acordo com Kac essa diferença se dá da seguinte forma:

Nesse sentido, uma qualidade única da arte transgênica é que o material genético é manipulado diretamente: o DNA externo é integrado precisamente no genoma do hospedeiro. Além da transferência genética de genes existentes de uma espécie para outra, podemos falar de "genes de artistas", ou seja, genes quiméricos ou

11 KAC, Eduardo. Telepresença e Bioarte: Humanos, Coelhos & Rôbos em Rede. Tradução, Atonio de Padua Danesi...[et al.]. 1ª edição, São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo: 2013. 12 GOMES, Miguel. Bioarte e a Relação do(s) Público(s) com a ciência. Disponível em: <http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/5995.pdf> Acesso em: 20/05/2013

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informação genética nova criada completamente por artistas através das bases complementares A (adenina) T (timina) ou C (citosina) e G (guanina). Isto significa que os artistas podem não somente combinar genes de diferentes espécies, como escrever uma sequência de DNA em seus processadores de texto, enviá-la por e-mail para um centro de síntese comercial, e em menos de uma semana receber um tubo de ensaio com milhões de moléculas de DNA com a sequência esperada. Todo organismo vivo tem genes que podem ser manipulados, e o DNA recombinante pode ser transmitido às próximas gerações. O artista se torna literalmente um programador genético capaz de criar formas de vida escrevendo ou alterando uma dada sequência. No futuro, com a criação e a procriação de mamíferos bioluminescentes e outras criaturas, a comunicação dialógicainterespécies mudará profundamente o que entendemos por arte interativa. Esses animais dever ser amados e criados exatamente como qualquer outro animal.13 (7)

Kac também lança a ideia de que esses animais devam sair dos espaços institucionalizados e serem criados em lares comuns, com a possibilidade de se reproduzirem e continuarem perpetuando a obra para sempre. Nessa leitura vemos a arte transgênica como uma espécie expandida de arte interativa.

3.1.1 GFP Bunny

Neste trabalho, Kac, deu origem a uma coelhinha fluorescente, nomeada de Alba pela família do artista. O projeto corresponde não apenas na criação da coelha, mas em três etapas: a primeira é a criação do animal em si em laboratório, a segunda seria todo o diálogo público gerado após o anúncio do nascimento do animal, e a terceira a criação e a integração social da coelha. Alba é uma coelha albina, portanto desprovida de pigmentação. Em condições normais, se parece com uma coelha comum branca. Mas, somente quando iluminada por uma luz azul específica e vista sob um filtro amarelo, ela reluz uma luz verde brilhante. Isso se dá devido à mutação de um gene verde fluorescente o (GFP), encontrado em algumas águas vivas. Dessa forma a existência da coelha está baseada em uma contradição fundamental: a de ser, ao mesmo tempo, igual e diferente. As segunda e terceira fases não se deram como previstas, tendo em vista que o artista planejará exibi-la em uma instalação e levá-la para casa para criar como um animal doméstico comum. Ambas as ideias foram proibidas pela equipe responsável pelo projeto laboratorial. E Alba teve que permanecer presa em laboratório.

13 KAC, Eduardo. Telepresença e Bioarte: Humanos, Coelhos & Rôbos em Rede. Tradução, Atonio de Padua Danesi...[et al.]. 1ª edição, São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo: 2013. p. 255.

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Essa interdição, reforçou os debates suscitados pela obra: sobre as possíveis consequências culturais e éticas da engenharia transgênica, a normalidade, hibridismoalteridade, a integração social de espécies geneticamente modificadas, biodiversidade e evolução. Questões que estão por trás da transgenia em si, mas são ignoradas por nós cotidianamente.

Vivemos numa sociedade cada vez mais integrada aos produtos transgênicos, mas jamais paramos para refletir a responsabilidade que temos com o que é criado. A utilização crescente da técnica de transgenia é apresentada na obra que toca literalmente na questão da evolução transgênica. Se, por um lado, não temos consciência da vida transgênica criada para fins investigativos, porque com ela jamais nos relacionamos, por outro, tampouco conseguimos perceber a complexidade implícita nos diferentes objetos transgênicos que estão a nossa disposição. Consumimos deliberadamente refrigerantes, cereais, sopas, óleos, alimentos enlatados, biscoitos modificados, sem, contudo, refletir as suas implicações no mundo contemporâneo. Não nos atemos à transformação cultural que a tecnologia transgênica propõe.14 (8)

Atualmente, o artista continua travando uma batalha intelectual e judicial para liberar o animal do laboratório e integrá-la socialmente, devolvendo assim a vida ao animal. Para tanto ele justifica que Alba não é um projeto de procriação e sim uma obra de arte transgênica.

14 SILVA, Karina. Comunicação, arte e ciência: um diálogo inusitado na arte transgênica de Eduardo Kac. Revista do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora: volume 1, número 2, dezembro, 2007. p.6.

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A diferença entre as duas práticas envolvem os princípios que orientam o trabalho e os procedimentos empregados, bem como seus principais objetivos. Tradicionalmente, a procriação animal tem sido processo de seleção multigeracional que almeja criar raças puras, com forma e estrutura padrão, geralmente para desempenhar uma função específica. Mas, na medida em que se deslocado ambiente rural para o urbano, a procriação deixa de valorizar atributos comportamentais mas segue guiada por uma noção estética fundada em traços visuais e princípios morfológicos. A arte transgênica, seguindo caminho contrário, oferece um conceito de estética que enfatiza aspectos sociais e comunicacionais em detrimento dos aspectos formais da vida e da biodiversidade. A arte transgênica, desafia noções de pureza genética, realiza trabalho preciso no nível genômico e revela maleabilidade do conceito de espécie em um contexto social transgênico em expansão.Como artista transgênico, não estou interessado na criação de objetos genéticos, mas na intervenção de sujeitos transgênicos sociais (Sujeitos de Arte). Em outras palavras, o que importa é o processo completamente integrado de criação da coelhinha, inserindo-a na sociedade e proporcionando-lhe um ambiente de amor e cuidados no qual ela possa crescer de forma segura e saudável. Esse processo integrado é importante porque coloca a engenharia genética num contexto social no qual o relacionamento entre as esferas pública e privado é negociado.15 (9)

3.1.2 O Oitavo Dia

Exposta em 2001, e desenvolvida no Institure for Studies in the Arts da Arizona State University, é uma obra que pretende investigar a ecologia fluorescente. A obrareúne além de seres vivos transgênicos, um biobot,( que é na verdade um biorrobô, ou seja, um robô que possui algum elemento biológico em seu corpo que se torna responsável por aspectos do seu comportamento).

Como o próprio artista explica em seu site16, na galeria, estão expostos uma semiesfera azul brilhante que contém uma ecologia transgênica - ratos, bactérias e peixes modificados genéticas para emanarem uma luz verde brilhante, em um processo de transgenia parecido com o da coelha Alba -, sons de um mar banhando um litoral e uma projeção do movimento da água projetado no chão, e o biobot. Esse biorrobô possui em seu interior uma colônia de amebas GFP, também fluorescentes, que funcionam como um cerebelo. Dessa forma, quando as amebas se multiplicam ou se movimentam para uma direção, o robô acompanha o mesmo movimento.

15 KAC, Eduardo. Telepresença e Bioarte: Humanos, Coelhos & Rôbos em Rede. Tradução, Atonio de Padua Danesi...[et al.]. 1ª edição, São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo: 2013. p.281. 16 http://www.ekac.org/

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O biorrobô funciona também como uma ligação dos participantes via internet e a galeria. Esses participantes remotos podem controlar a direção do olho do robô para poder ver, via web, o interior do domo. Dessa forma o movimento do biobot é manipulado tanto por seres humanos quanto pelas amebas. Mas as amebas e os seres humanos não detém o controle total, tendo em vista todo o aparato tecnológico do robô. Surge então uma nova ecologia aqui também, onde se rompe as fronteiras entre o físico e o virtual e o biológico e o tecnológico. O nome da instalação é uma referência ao mito bíblico da criação, que concebe que deus criou o universo em sete dias. Assim, para Kac, o oitavo dia seria o da criação de uma nova ecologia, onde seres humanos, organismos transgênicos e máquinas coabitariam um mesmo espaço. Dessa forma os seres interagem, não apenas fisicamente, por gestos ou palavras, mas também virtualmente por telepresença.

Outra referência bíblica e da cultura judaico-cristã está no fato do participante ter que pisar na projeção da água no chão para visualizar a semiesfera. Lembrando a história de Jesus Cristo, que caminha sobre a água. A obra além de funcionar como uma metáfora da vida na terra, pretende também problematizar a ideia bíblica, existente até hoje, de que o homem possui o poder de dominar outros seres.17 (10) Um discurso parecido permeia outra obra do artista, Gênesis.18

17 "Deixe que o homem domine sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os seres vivos que se movem na terra” (Gênesis 1, 28).

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Ao utilizar seres transgênicos, a obra levanta mais uma vez questões sobre o transgênico na vida do homem moderno. E como essa tecnologia nos afeta e afeta outras espécies. Cruz também chama atenção para a questão da autoria levantada pela obra, conceito bastante discutido pela arte contemporânea. Onde artistas contam com colaboração de equipes multidisciplinares para criarem suas obras (como no caso do O Oitavo Dia), ou apenas concebem esteticamente suas obras, cabendo a uma equipe de artistas em seu atelier desenvolve-la, etc.

Como em Genesis e GFP Bunny, o conceito de autoria (tanto a artística, quanto a divina) é colocado em questão. Além de a obra ser assinada não apenas por Kac, mas também por uma equipe transdisciplinar, a participação do público através da monitoria pela Internet e o imprevisível comportamento dos seres vivos que constituem a obra fazem com que esta tenha um desenvolvimento próprio independente de qualquer projeção a priori do artista ou dos cientistas que a criaram. A obra de arte adquire vida própria, evidenciando sua condição de “sistema vivo”19

3.2 Cápsula do Tempo e A-Positivo

Podemos citar ainda no campo na bioarte, outras duas obras anteriores e bastantes expressivas do artista, que nos faz refletir sobre a relação homem-máquina. É o caso da Cápsula do Tempo e a A-Positivo. A-Positivo consistiu em um evento realizado em 1997 em Chicago. O projeto contou com a colaboração de Ed Bennett, um projetista hardware especializado em robótica. Na obra, um ser humano estava conectado a um robô por uma agulha. O ser humano doava sangue ao robô, que extraia oxigênio do sangue para manter acesa uma chama em seu interior. O robô, em troca, doava dextrose ao homem. A essa nova categoria de robôs, Kac dá o nome de biorrobôs, ou seja máquinas que possuem em seu corpo elementos biológicos reais. No caso do biorrobô de A-Positivo, denominado flebô, o uso de células sanguíneas humanas. A chama dentro do robô é um simbolismo para a vida, e o fato da doação mútua de elementos vivos entre o ser humano e o biorrobô, chama a nossa atenção para as possíveis relações futuras desses novos corpos homem-máquina. E nos faz pensar em um possível

18 Para mais informações sobre obra acessar o site oficial do artista: http://www.ekac.org 19 CRUZ, Nina. Comunicação, arte e ciência: as experiências de Eduardo Kac, Christa Sommerer & Laurent Mignonneau. Tese de doutorado apresentada no curso de pós-graduação da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, 2004. p.107.

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futuro onde não haverá mais distinções entre o corpo humano e corpo robótico.

Já estamos habituados a conviver com os modelos generalizados pela ficção científica mais ordinária, em que os robôs são retratados como escravos ou rivais dos humanos. Kac, entretanto, nos coloca no coração de uma nova ecologia em que pessoas e máquinas convivem juntos num relacionamento delicado, ocasionalmente criando intercâmbios simbióticos. As máquinas, de um lado, estão se tornando dispositivos cada vez mais híbridos, incorporando elementos biológicos para funções sensoriais e metabólicas.20 (11)

Também em 1997, em São Paulo, Kac implantou em seu próprio corpo um microchip, que continua um número de identificação registrado em um banco de dados norte-americano via internet. A obra, denominada Cápsula do Tempo, é como explica o próprio artista "um evento-instalação local, uma intervenção site specific na qual o próprio site é tanto o meu corpo quanto um banco de dados remoto e um simulcast ao vivo na televisão e na web". 21 No local da obra, que havia se transformado em algo parecido com um quarto de hospital, havia instrumentos cirúrgicos, um médico, uma série de fotografias nas paredes - que eram as últimas memórias da família do artista morta na Polônia durante a Segunda Guerra Mundial . Havia também computadores, de onde era possível acessar o banco de dados norte-americano, disponibilizar para o mundo imagens do evento via web e escanear o chip através da internet. O evento também foi transmitido ao vivo através de uma rede comercial de televisão, e bastante repercutido na mídia televisa e escrita. Após a implantação do chip, foi exibido um raios-X da perna de Kac mostrando o chip implantado. O chip em questão, é uma transpoder utilizado em animais para identificação, como as marcações com ferro quente no passado. Foi a primeira vez que um chip como esse foi implantado em um humano, e o fato de ter sido implantado no tornozelo, nos remete aos tempos da escravidão, onde negros eram marcado no mesmo local a ferro quente. O corpo, tema que aparece nas duas obras sempre foi um tema na arte. As obras levantam debates sobre os novos corpos que estão surgindo na contemporaneidade, como podemos lidar com esses corpos e reagir a eles.

20 MACHADO, Arlindo. Corpos e mentes em expansão. In. MACHADO, Arlindo. O quarto iconoclasto e outros ensaios hereges. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001. Disponível em: <http://www.ekac.org/corposementes.html> Último acesso: 29/05/2014. 21 KAC, Eduardo. Telepresença e Bioarte: Humanos, Coelhos & Rôbos em Rede. Tradução, Atonio de Padua Danesi...[et al.]. 1ª edição, São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo: 2013. p.241.

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O corpo é um dos temas mais tradicionais na arte, tema que continua a nos fascinar, embora por razões inteiramente distintas das do passado. Mas em vez de retratar o corpo como predominante ou privilegiado, em contraste com o ambiente, investigamos a dimensão política e psicológica da nossa passagem para uma cultura digital. Assim, como compreendemos como a tecnologia está próxima do corpo, ou como ela já se aprofunda no corpo, devemos também perceber que o uso do modelo senhor/escravo na ciência robótica é mais que uma simples infeliz escolha de palavras. Ele supõe que as máquinas são escravas, com todas as conotações da palavra, perpetuando ideia de que certos tipos de criatura devem fornecer trabalho forçado, só que em nossa época as criaturas são eletrônicas. Embora possa ser fácil descartar essas considerações com base no fato de que as máquinas não terem vida orgânica, inteligente semelhante à humana ou vontade própria, a crescente presença de instrumentos eletrônicos e computacionais no interior do corpo humano e a investigação acelerada das direções biológicas para a robótica e a ciência da computação sugerem que os intervalos estão se estreitando lentamente para além do que poderíamos estar dispostos a admitir ou talvez aceitar.22 (12)

Seja através de uma relação simbiótica entre homem e máquina, ou inserindo componentes eletrônicos no corpo humano (memória digital), Kac aproxima e põe em pé de igualdade humanos e robôs. O fato das obras terem gerado polêmicas mundo a fora, só confirma a teoria do artista de que talvez não estejamos prontos para aceitar essas relações.

4. Conclusão Na contemporaneidade a tecnociência está presente em todos os momentos da nossa vida cotidiana. Porém esta evolui de uma maneira além do nosso controle, de forma que torna impossível acompanhar seus saltos e avanços. A arte, como um produto de seu tempo, incorpora essas novas tecnologias em sua poética. Os artistas vão aos laboratórios e centros de pesquisa. A ciência não apenas serve a arte, mas é material fundamental para a criação de obras. A arte contemporânea encontra-se livre para explorar áreas que antes não pertenciam a arte tradicional. Eduardo Kac é um dos pioneiros nesse ramo e na criação de formas de arte muito singular. Seja através da bioarte ou da telepresença, ele põe em debate na sociedade como essas tecnologia vêm afetando

22 KAC, Eduardo. Telepresença e Bioarte: Humanos, Coelhos & Rôbos em Rede. Tradução, Atonio de Padua Danesi...[et al.]. 1ª edição, São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo: 2013. p.240

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nossa vida cotidiana e como poderão afetar no futuro, sem que para isso se valha da velha dicotomia bem/mal. Sua arte assume papel crítico e questionador sobre como nos sentimentos fascinados e assustados frente as novas tecnologias e descobrimentos da ciência. Preparando, talvez, o homem aos novos desafios que este século nos propõe.

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5. Referências: ARAÚJO, Deise. O DNA semiótico: análise semiótica sobre bioarte. Revista Anagrama. São Paulo: ano 3, edição 2, setembro/dezembro, 2009/2010 COVAS, Iara. Eduardo Kac: Uma poética da criação. Dissertação apresentada no Programa de Pós-graduação em Língua Hebraica, Literatura e Culturas Judaicas do Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo - USP, 2009. CRUZ, Nina. Comunicação, arte e ciência: as experiências de Eduardo Kac, Christa Sommerer & Laurent Mignonneau. Tese de doutorado

apresentada no curso de pós-graduação da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, 2004. GOMES, Miguel. Bioarte e a Relação do(s) Público(s) com a ciência. Disponível em: <http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/5995.pdf> Acesso em: 20/05/2013 MACHADO, Arlindo. Corpos e mentes em expansão. In. MACHADO, Arlindo. O quarto iconoclasto e outros ensaios hereges. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001. Disponível em: <http://www.ekac.org/corposementes.html> Último acesso: 29/05/2014. SANTOS, Franciele e SANTOS, Nara. Ciberespaço: Contribuições Para a Arte Contemporânea. In. 17º Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Arte Plásticas - Panorama da Pesquisa em Artes Visuais. Florianópolis, 2008. SILVA, Karina. Comunicação, arte e ciência: um diálogo inusitado na arte transgênica de Eduardo Kac. Revista do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora: volume 1, número 2, dezembro, 2007. Imagens retiradas do site oficial do artista: http://www.ekac.org/

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O FIM DA HISTÓRIA DA ARTE: UMA CRÍTICA AO MÉTODO DE CONSTRUÇÃO LINEAR DA HISTÓRIA DA ARTE.

Alysson Camargo1

RESUMO: A disciplina de história da arte, utiliza de dois eixos

regulamentadores, o conceito de arte e estilo para organizar, classificar e definir

a linha histórica dos diversos movimentos artísticos presentes nessa construção.

Hans Belting oferece uma crítica a esse método linear de historização da arte,

seus principais argumentos estão relacionados a fragmentação desses

movimentos artísticos, na arte moderna há falta de instrumentos dessa disciplina

em relação aos seus objetivos outrora definidos, principalmente quando é

exigido dela a leitura de obras de vanguardas. Na arte moderna as obras

possuem uma linguagem e utilizam de materiais deferentes da arte antiga,

demostrando grandes falhas dessa disciplina.

Palavras Chaves: fim da história da arte, método linear, história narrativa da arte.

O teórico e historiador da arte Hans Belting, oferece uma panorama crítico

em relação ao fim história da arte como disciplina, em sua análise Belting

percebe como essa disciplina está diretamente atrelada a ideia de leitura

a partir de formas puras, ligadas estritamente a noção de estilo, “O saber

histórico adquirido no século XIX parece subitamente supérfluo, pois se

apreendeu a ler a história da arte a partir das próprias formas” (BELTING,

2012, p.72).

Nessa relação entre arte e cultura, compreendemos como a arte está

ligada a antropologia, e a partir dessa relação é possível estabelecer

como a história da arte, que em tese estava ligada somente ao estudo da

estética da arte, constroem relações com outras áreas na sua produção.

1 Estudante de Teoria, Crítica e História da Arte do Instituto de Artes da Universidade de Brasília.

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Nessa linha de raciocínio, a escrita da história da arte dialoga de forma

direta com a cultura a partir das obras de arte, pois, “O descobrimento do

caráter ficcional da história escrita da arte da modernidade liberaram o

olhar para uma tarefa maior: a inspeção da própria cultura com o olhar de

um etnólogo” (BELTING, 2012, p.303).

Nesse caminho o conceito de arte e as teorias estilísticas são os grandes

eixos dessa disciplina, o estilo, que nasce como o conceito

regulamentador de diferenciação entre os movimentos artísticos, e o

conceito de arte como linha a ser percorrida em relação a definição

classificatória.

Toda apresentação histórica da arte sempre esteve ligada a um conceito de arte que tinha de ser comprovado exatamente por meio dela. Já as teorias estilísticas da retórica antiga inventaram evoluções históricas que se mostravam mais evidentes do que os modos narrativos da história real. O conceito de estilo servia para denominar as fases isoladas dos acontecimentos e ordená-las ciclicamente em torno das condições do clássico. Foi assim que a apresentação histórica da arte começou como teoria da arte aplicada. (BELTING, 2012, p.223).

Um dos teóricos que aprofundou-se sobre a noção de estilo foi Riegl,

pesquisando como esse caráter regulamentador, o estilo artístico,

conseguia definir a estrutura da disciplina, conforme sua forma fosse

classificada, “Num livro intitulado Stilfragen [Questões de estilo], ele

fundava em 1893 uma ciência da arte que se voltava para a forma pura e

se ocupava justamente do ornamento” (BELTING, 2012, p.61).

Olhando para a história da arte como uma história de narrativas, divididas

por estilos ou movimentos artísticos, as linguagens artísticas, as obras de

arte e os artistas devem, eram sintetizados em sua expressão artística

para que a disciplina conseguisse narrar de forma linear essa jornada no

decorrer do caminho da história da arte.

Belting posiciona em relação essa noção narrativa da história da arte

como finita em relação ao seu objetivo, “O fim da história da arte é o fim

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de uma narrativa: ou porque a narrativa se transformou ou porque não

há mais nada a narrar no sentido entendido até então” (BELTING,2012,

p.46).

Se o objetivo já foi compreendido e atingido, como poderia a história da

arte obter um método para continuar com sua meta de organizar a arte de

forma universal, mesmo com a sua linguagem factual? “Quanto mais as

gavetas se encherem de um saber factual, tanto mais difícil tornou-se

manejar a cômoda e colocá-la em ordem” (BELTING, 2012, p.297).

Percebemos essa dificuldade também quando analisamos a rede ligada à

essa disciplina, principalmente entre os especialista da disciplina de

história da arte e os próprios artistas

Entre as palavras dos artistas e os temas dos historiadores da arte se descobrem sempre relações surpreendentes. Mas a arte pura assim como o mero estilo, foi logo trazida de volta para o terreno das teses e das significações. Os realistas voltavam-se com olhar crítico para a própria sociedade a fim de expor a “realidade nua e crua”, ao passo que os cientistas da arte se votavam, na verdade com o olhar dirigido à arte antiga, para a história social. (BELTING, 2012, p.73 - 74).

Quando essa disciplina com métodos próprios se propõem a fazer o

registro da história da arte universal, classificando e organizando,

“Entretanto instalou-se por toda parte a dúvida sobre se essa narrativa

ainda esconde conhecimentos em si ou se ela se tornou um fim”

(BELTING, 2012, p.299 - 300).

Na lógica tradicional dessa disciplina é por meio das obras de arte física

que então historiador da arte realiza o seu trabalho, ou por meio de

documentos primários históricos, o que acontece quando a linguagem dos

artistas desmaterializa?

Quais são as consequências quando a história da arte escrita não vive mais de obras e não se exprime mais sobre obras que têm uma existência independente, própria (mesmo em depósitos escuros), mas produz a si mesma na medida em que lança uma rede impenetrável

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de crônica e descrição sobre fatos fugazes e datas que sobrevivem apenas nesses relatos, ou seja, possuem vida apenas no texto? (BELTING, 2012, p.311).

Então adentramos na história da arte escrita, onde a descrição busca

abraçar a obra de arte que fisicamente não existe mais, começa a

aparecer os primeiras grandes dificuldades dessa disciplina em

compreender essas obras de forma eficaz.

Aparece uma divisão entre história e arte, a arte por si só, como

expressão não tem seu fim, porém já a história como objetivo registro

começa a ganhar limitações em relação a sua meta como disciplina,

“Dessa maneira, não se pode mais falar de um fim da arte, porque tal fim

não se encontra mais no seu conceito e porque, em contrapartida, um fim

só poderia ocorrer nos termos de uma história” (BELTING, 2012, p.307).

Olhando a linha da história da arte, podemos observar a questão a

respeito da noção de desenvolvimento ou inovação na arte, a história da

arte determina as regras de quem ou qual obra fará parte desse contexto

conforme caráter mais uma vez regulamentadores. “O que queria ser arte

tinha primeiro se tornar arte e se comprovar como inovação que se

destacou como invenção nos quadros de seu próprio medium. Desse

modo, toda arte ligada de antemão à lei da história da arte” (BELTING,

2012, p. 306).

Quando olhamos para a arte moderna, surge um outra grande

incoerência, um movimento artístico que nasceu como critica à tradição

artística, posicionando de forma plástica, política e social contra os

dogmas da arte antiga.

Esse posicionamento chamado de vanguarda, chega a história da arte,

como essa disciplina conseguirá historizar a vanguarda? “A historização

da vanguarda surgiu um problema curioso. De súbito, não se tratava mais

da história da vanguarda, mas da vanguarda como história, que não

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estava mais presente no tempo atual a não ser como lembrança”

(BELTING, 2012, p.294).

A arte moderna em contraposição a arte antiga, sofre do ponto de vista da

história da arte de uma fragmentação de estilo, uma individualização

artística,“Uma problema que diz respeito à suposta unidade e totalidade

da arte antiga, bem como ao seu oposto tão frequentemente enfatizado: o

fenômeno descentralizado e fragmentário da arte moderna” (BELTING,

2012, p. 299).

Nesse caminho, na década de 60, vemos alguns exemplos mais radicais

em relação a linguagem não material da arte, a estética da impertinência,

coloca como mais um grande desafio para a história da arte.

Em seu livro The Anxious Object [O objeto ansioso], o crítico de arte norte-americano Harold Rosenberg publicou em 1964 um ensaio sobre a “estética da impermanência”, que investigou a temporalização das artes plásticas e sua resolução numa figura de matérias efêmeros. “A obra de arte efêmera, dramatizada, por exemplo, pela escultura autodestrutiva, exposta por Tinguely alguns anos atrás nos jardins do MoMa, mostra a arte como um evento”. (BELTING, 2012, p. 309).

Em uma direção semelhante nasce a arte conceitual, cujo o campo de

produção artística não está fisicamente construído e tem como objetivo

direto a construção de uma forma estética em sua plasticidade, Belting

problematiza justamente essas grandes interferências para justificar a

falha do método tradicional e linear da disciplina de história da arte.

Ao mesmo tempo destacava-se cada vez mais imperiosa uma arte de ideias que se impõe não pelas obras, mas pelas ideias, ou seja, que dá por encerrada a obra como lugar comunicação. O artista, quando não produzia mais nenhuma obra, defrontava com seu corpo o espectador na performance e permanecia com essa cena efêmera na lembrança, em vez de permanecer presente por todos os tempos com uma obra. Com isso, desmaterializa-se não apenas a arte, como se constatou repetidas vezes desde os anos 60, mas também perde sei material a história da

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arte como narrativa e documentação (BELTING, 2012, p.308).

O discurso escrito da história da arte começa a valorizar-se em relação a

história das formas da arte antiga, como imaginar uma história da arte a

partir da escrita e não mais das formas plásticas e visuais?

Numa instalação de 1965 que se tornou célebre, Koduth expôs uma única cadeira três vezes: a cadeira real, a imagem da cadeira e a cadeira tal como é explicada no verbete do dicionário, a saber, a cadeira como princípio. A contraposição entre imagem e descrição é ardilosa, pois visa igualar imagem e texto e a nivelar a diferença tradicionalmente reconhecida entre eles: também a imagem se reduz aqui a uma mera definição. Visto como um todo, o comentário prevalece sobre a obra levando-a ao desaparecimento. (BELTING, 2012, p.55 - 56).

Hegel já se debruçaria sobre o fim da arte, nessa mesma relação entre o

papel e função da arte comparando arte antiga e arte moderna,

principalmente quanto utilizamos a arte conceitual como quase uma

noção de uma autoconsciência artística, enquanto Belting construiu em

seu ensaio sobre o fim da história da arte, por tanto “Depois que Hegel

pensou num fim da arte, enquanto fundava simultaneamente um novo

discurso da história da arte, nós pensamos inversamente no fim de uma

história linear” (BELTING, 2012, p. 307).

Afim de buscar uma saída em relação ao método que a disciplina de

história da arte utilizará em suas pesquisas, belting começa a propor um

caminho alternativo, uma história da arte ligada a noção de imagem, sua

referência de ponto inicial de leitura imagética, mostra-se anterior ao

panorama do conceito de arte utilizado na arte antiga e necessariamente

ao método atual que a história da arte utiliza “Na situação atual torna-se

possível uma terceira história da arte, que não teria nem as solenidades

da antiga história retrospectiva de estilo, nem a pretensão da verdade da

história monopolista das inovações” (BELTING, 2012, p. 295).

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Além de ter uma visão da história da arte de forma universal, em relação a

visão tradicional eurocêntrica de construção dessa disciplina “Alternativas

podem ter origem na própria cultura, mas, elas existem num outro lugar

onde até agora não as procuramos” (BELTING, 2012, p. 326).

Referências:

BELTING, Hans. O fim da história da arte: uma revisão dez anos depois

. 1º ed. São Paulo: Cosac Naify,2012. 448 p.

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Concepção do mundo pelas artes visuais,

considerações sobre o geométrico nas artes.

Alexandre de Mello Cavalcanti Júnior1

A concepção da Terra e do Mundo em Anaximandro é uma vitória do

espírito geométrico.

Jaeger, “Paideia”.

Tal concepção geométrica da Terra ultrapassa o estrito empirismo. E

contradiz certas concepções mais míticas que matemáticas, como a

imagem mítica do mergulho de Apolo no oceano (crepúsculo), no fim

do dia, para encontrar sua amante, Thétis. Por um caminho que

aparenta ser casual, as artes visuais trazem contribuições nesse

embate entre concepções de mundo. Concepções que tendem para

o mítico-alegórico convivem ou confrontam-se com concepções

puramente geométricas, empirismos e simbolismos combatem-se, e

temos sínteses complexas, de forma que obras ou artistas não podem

ser enquadrados como defensores de concepções unívocas e

redutoras do mundo. O espírito geométrico nas artes é presente em

vanguardas e programas que orientaram linguagens e poéticas. O

impulso para o chamado informalismo seria uma reação ao

geométrico. Uma outra manifestação desse espírito geométrico

estaria no possível embate entre o desenho e a cor. O formal e o

pictórico. Mas a arte trabalha nos tons de cinza, nos espaços

desfocados e limítrofes. Rothko é geométrico? O geometrismo de

Morandi ou de De Chirico é metafísico e, daí, mítico por

1 Formado em Artes Plásticas no VIS-IdA-UnB. Atualmente trabalha no Ministério da Cultura e

estuda Letras-Francês na UnB.

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descendência? De Chirico, ao pensar sua pintura, reflete sobre o

momento crepuscular, sobre o momento da descida de Apolo ao

oceano, seria o momento em que o ser humano se encontra com a

sua própria existência.

Digamos que se trata de espírito geométrico, mas não puro, mas, não,

ingênuo. Metafísico. Geometria como fronteiras de cor. Geometria de

tinta, muitas vezes. Se é tinta se fazendo geometria, é mais carnal do

que etérea. É geometria de arestas na Sainte-Victoire de Cézanne. E

nas fachadas ensolaradas das encostas do mesmo pintor. Busca-se

uma geometria com paixão, como busca-se um informalismo com

paixão. Uma busca entre outras no chamado modernismo. Ora trata-

se de musicalidade de composições, pensemos no neo-plasticismo;

ora busca-se uma linguagem que narra arquétipos ou versos

pictóricos, pensemos em Torrès García.

A contenção singela, mas eloqüente, a encontramos em casarios do

Grupo Santa Helena. Uma geometria de arte proletária. Pretende-se

não-mítica, mas achamos sua ligação com o popular, esse inevitável

celeiro de mitos. Oposição ao mítico caótico seria a ordem do

geometrismo de uma geração adiante, mas essa mesma – a que gera

concretismo e neo-concretismo – se encontra enfim com o Santa

Helena, e Volpi figura como parceiro desse geometrismo que, se não

se quer frio, pretende-se livre de uma concepção como a do Apolo

que adentra, tramontino, o horizonte oceânico.

A concepção geométrica que leva ao questionamento da própria

função da arte na concepção de mundo. Os pré-socráticos que

parecem frios ao reduzir o mundo ao simples, ao imaginar o átomo ou

o imutável, o mundo como um cilindro cuja abertura longínqua deixa

escapar o fogo solar, o próprio sol. Perdemos de vista que o espírito

geométrico é tão antigo quanto a arte. E geométrico é um buscar ligar-

se com a vida. É Oiticica em meta-esquemas que transmutam-se em

bólides para transmutarem-se em parangolés. Rubem Valentim é

religião e geometria, indissociáveis.

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O Santa Helena continua ensinando o caminho de uma geometria

alegre e singela e artística. Poesia de casarios. As paisagens de

Rebolo, de Bonadei. Ainda oferecem-se essas paisagens como

habitats para o olhar. Repousa-se a existência nessas vastidões

verdes e muros brancos. Desertos de pessoas, essas paisagens

buscam aquela entrega pré-socrática. O mundo é fogo, ou ar. A

paisagem é elementar, a casa é uma casa. Concepção geométrica

anti-moderna, casarios “de interior”. E, no interior dessas obras,

convites a estacionar-se. Habitar bandeirinhas de Volpi, por um certo

momento. A geometria deixa de ter a frieza que se lhe é atribuída, faz-

se tinta e carne. Alfredo Volpi, não por acaso, dedica-se a um material

menos industrial e padronizado, pesquisa a têmpera.

O espírito geométrico, como o espírito da arte, é um e mesmo, mas

cada obra lhe dá uma versão. O tabuleiro de xadrez pode ser uma

grade puramente geométrica. Mas é dele que parte-se para a

vertigem do espaço das “paisagens” de Maria Helena Vieira da Silva.

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METAMORFOSES: REFLEXÕES SOBRE

PINTURA CORPORAL INDÍGENA E

TATUAGEM

Marisa Mendonça Pires de Miranda1

RESUMO: “Metamorfoses: reflexões sobre pintura corporal indígena e tatuagem” se propos a refletir sobre processos de transformação social, cultural e perceptiva das duas formas de expressão, bem como estabelecer pontos de diferença e semelhança entre as mesmas. A pintura corporal indígena é refletida a partir de um mito Wayana que narra a metamorfose de um Homem-Lagarta. Já a tatuagem é refletida a partir do filme “A mosca” (CRONENBERG, 1986), que narra a metamorfose de um Homem-Mosca. As duas narrativas - que fazem alusão a práticas distintas - geram uma síntese. A síntese se baseia na reflexão de experiências práticas que dizem respeito especialmente à maneira como pessoas do contexto da tatuagem percebem a pintura corporal indígena. Esta reflexão se desenvolveu por meio de uma pesquisa que teve seu início na elaboração de aulas para uma experiência de estágio no Centro de Ensino Médio Elefante Branco (CEMEB), escola pública localizada na região do Plano Piloto de Brasília.

Palavras-chave: metamorfose, tatuagem, pintura corporal indígena,

percepção.

ABSTRACT: “Metamorphoses: reflections on indian corporal painting and tattoo” proposed a reflection on process of social, cultural and perceptive transformations of the two forms of expression, as well as bring up points of difference and similarity between them. The indian corporal painting is reflected through an Wayana mith that narrates the metamorphoses of a Caterpillar-Man. The tattoo, for its side, is reflected through the movie “The Fly” (1986. David Cronenberg. 96 minutes. Color. Horror Science Fiction.), that narrates the metamorphoses of a Fly-Man. The confront between the two narratives – each one respectively making allusion on these practices - originates a synthesis. The synthesis is based on a reflection of practical experiences that investigates the way people of the context of tattoo perceives the indian corporal painting. This reflection was desenvolved through an research that began with an mandatory intership for teaching license occurred in the Center of Secondary School White Elephant (Centro de Ensino Médio Elefante Branco), public school located in Plano Piloto, Brasília.

Key-words: metamorphose, tattoo, indian corporal painting, perception.

1 Formada em Artes Plásticas pelo Instituto de Artes da Universidade de Brasília.

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Deus é um Cosmético

Matheus Kayssan Opa

RESUMO: Esta pesquisa é uma expansão teórica de uma pesquisa artística.

Neste contexto, um motivador inicial foi pensar a religião como motivação para

processos criativos. A base para isto foi um questionamento sobre a qualidade dos

bens-de-consumo. Poderia também a religião ser apenas mais um produto?! Seria

a pós-modernidade acometida pelas consequências da teologia barata, onde cada

uma/um possui um deus, uma crença, de tal maneira que limita a divindade a ser

no máximo um cosmético, um desodorante ou um sabonete? Podemos comprar

um produto no supermercado da esquina facilmente, usá-lo até acabar, mudar de

marca, de estabelecimento onde compramos assim como fazemos com nossos

deuses e deusas atualmente. À medida que via em meu olhar essa indagação

sobre certas chatices pós-modernas todas as vezes que olhava meu reflexo num

espelho, crescia-me a vontade de modificar a marca Dove a fim de que se

pudesse ler ‘Deus’.

Palavras-chave: Sociedade de Consumo; Cosmética; Dove.

[Fig.1 e 2] Sequência de intervenções. Cedido pelo artista.

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Uma visita ao mundo “polêmico” de León

Ferrari

Emanuelle Feitosa1

León Ferrari foi um artista conceitual argentino, nascido em Buenos

Aires. Foi considerado um dos cinco artistas plásticos mais

importantes e provocadores quando se fala de arte como crítica da

religião, das guerras e da omissão da sociedade. León sempre

trabalhou com arte. Em suas obras, retratou sua opinião crítica em

relação às guerras, igreja católica e a ditadura argentina. Sendo um

renomado pintor, gravador, escultor e artista multimídia, dedicou seu

tempo à produção de várias obras consideradas polêmicas quando

se trata de intolerância religiosa. Usou a heliografia, serigrafia,

fotocópia, etc, para seus trabalhos, o que o faz cada vez mais

conhecido.

Ferrari começa seu trabalho na Itália como escultor, em 1960 fez

esculturas com arame e aço inoxidável, e depois produziu desenhos

caligráficos e colagens. Isso é só o começo de sua carreira. Quando

León vem para o Brasil exilado pela ditadura argentina, começa a

produzir obras que envolvem conteúdo religioso, que para muitos é

considerada banal, uma crítica exagerada da igreja católica e até

que o tornava blasfemo, como disse o Papa Francisco, que naquela

época era Arcebispo de Buenos Aires.

O artista sempre foi criticado pela sua forma de se expressar. Até

hoje, a série “Relecturas de la Biblia” é extremamente criticada por

religiosos mas não por estudiosos, críticos e admiradores imparciais

da arte. A beleza da arte é o poder de te levar para uma leitura

totalmente limpa de conceitos atuais impostos pela sociedade, o que

1 Estudante do Instituto de Artes da Universidade de Brasília.

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atrapalha quando se tenta analisar o real motivo da obra, o

significado que o artista quer revelar, que no caso de León Ferrari, é

dificilmente aceito.

Mas a meu ver, Ferrari quis mostrar o que a igreja não revela. Sua

pureza não é total, como é possível ver com tantos escândalos na

igreja católica e até em outras vertentes. Os temas tabus como a

religião e o kama sutra, que é usado por León em diversas obras, é

visto, por alguns, como uma afronta, desrespeito, e não como uma

expressão artística que é. Obviamente que nem todos são obrigados

a concordar com o posicionamento de Ferrari nas obras da série,

mas é possível analisá-las sem o pré-julgamento comum que a

religião e a sociedade ensina.

León Ferrari produziu, em sua série “Núnca Más”, uma expressão de

inconformismo com as tantas vítimas da ditadura argentina, da igreja

e da Segunda Guerra Mundial, o que pode chocar e fazer refletir

sobre tudo o que essas pessoas passaram com isso. Se o

espectador analisar as obras, verá exposta a tristeza e a ironia que o

artista retrata nas imagens.

Os anjos e demônios que são vistos na maioria dessas obras, só

nos trazem a reflexão e inconformismo, por coisas tão ruins que

aconteceram e que as pessoas deixaram passar e não se

envolveram. Vejo eu, que as séries em que León fala da

religiosidade, guerras e suas vítimas, é um jeito de tentar revelar ao

mundo o que realmente acontece, para que as pessoas não deixem

que isso ocorra novamente, que se expressem de alguma forma e

que conheçam a história de todos aqueles que sofreram com isso,

assim como ele também sofreu com a perda de seu filho, na ditadura

argentina.

Como artista, seu objetivo é alcançado quando expõe suas obras e

revela ao mundo sua opinião, os fatos que passaram e que foram

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deixados de lado como ele relata na série “Nosotros no sabíamos”,

onde os recortes de jornais que falam das pessoas exiladas que

foram se refugiar em outros países e todas as notícias que ele teve

de assassinatos e de julgamentos de argentinos.

Uma das séries onde mais se vê a crítica de León Ferrari para com a

igreja católica, é L’Osservatore, onde o artista substituiu as notícias

por gravuras que são irônicas para com o título. Se o título da notícia

fala da defesa da família e da vida, a gravura que esconde o texto é

de um anjo que acaba de matar crianças e “destrói” a família com as

mortes.

E mais uma vez, León é criticado por religiosos. Pode ser uma

preferência do artista em “tocar na ferida”, quando enlaça os títulos

das notícias com as figuras claramente medievais, onde a igreja

matou em nome de Deus e tudo era considerado blasfêmia, sendo a

morte como punição, ou a simples tentativa de mostrar o outro lado,

a opinião daqueles que não são escutados, que por muitos são

silenciados, e Ferrari usou a ferramenta que tinha para se expressar

por ele e pelos outros.

O envolvimento de Ferrari com essas questões foi pessoal, mas

também foi artístico, tanto que não foi somente de “polêmicas” que

as obras dele foram feitas. Em suas heliografias, o conceito de

massa foi amplamente visto pelo expectador que observa os carros

que continuamente seguem o caminho que é imposto, em que as

pessoas já têm uma direção pré-definida, como é visível em várias

obras, assim como o jogo de padronagem e caos que ele usou.

O conceito que León trouxe em suas esculturas é admirável pela sua

dedicação na produção, tanto das esculturas quanto dos desenhos,

em que a formação da palavra tem outro significado e que o texto

em si não precisa ser legível para ser interpretado como texto.

Os objetos que o artista modificou e adaptou com conteúdo religioso

ou não, são extremamente interessantes. O observador desses

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objetos tem a possibilidade de rir com a criatividade nas

intervenções do artista, como no aquário em que o artista colocou

um pênis de borracha ou no brinquedo em que figuras religiosas

estão prontas para serem assadas ou cozinhadas.

Sua obra “Vocabulario” é uma bela representação da imagem que se

relaciona com o texto, mista com suas formas que são entendidas

pelo autor e com um pouco de esforço, pelo espectador, a

interpretação é única de cada um e mostra a facilidade do artista em

mesclar esses dois conceitos.

O artista se posicionou contra a alienação da sociedade

contemporânea, que hoje é mais fácil de ver ocupada com a

tecnologia do que com formas de arte e cultura. O padrão foi usado

em suas heliografias para criticar justamente isso, a perca de

interesse nas coisas que antes eram tão importantes e hoje não se

tem atenção.

Alguns artistas são como León, expõem sua crítica, seu modo de

pensar em sua arte e isso traz ao público, muito além do que a

áurea imposta hoje nos artistas, de que eles são superiores e

intocáveis. Ferrari experimentou um lado ruim da humanidade e se

expressou do seu jeito. Deu para o mundo sua criatividade e opinião,

enriquecendo a arte conceitual e o envolvimento da arte com a

literatura, como em várias obras dele. É claro que a opinião de quem

vê sempre falará mais alto ao analisar as obras, mas é de se

concordar que não são perca de tempo, que pelo contrário, são de

extrema importância hoje para o aprendizado e reflexão dos que

admiram a arte pelo poder da palavra que ela tem na sociedade.

Suas obras foram e são referências para artistas em todo o mundo,

como também são afrontas. O que vale é o ponto de vista. Acredito

que objetivo de León Ferrari, que seria “causar”, chocar, impactar o

mundo, foi mais do que bem sucedido, e a opinião de que sua obra é

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“ruim ou boa” é variada, mas que o artista conseguiu ser visto e

ouvido, isso nenhuma opinião contrária pode negar.

Vale lembrar que o conceito histórico-social em que o artista vivia,

influenciou em sua obra. Ele tinha a liberdade de expressão para

retratar seus temas da forma como fez ou de um jeito menos

“agressivo”. A imparcialidade nele é inexistente. Pode-se considerar

que ele não foi um homem que viu as coisas acontecerem e ficou

calado, ele tomou uma posição, ele exerceu em suas obras, a

opinião e a tentativa de mudar e falar sobre o que estava

acontecendo, coisa que no mundo daquela época e até hoje, não é

tão visto.

León Ferrari assumiu o risco das suas obras gerarem consequências

ruins, o que talvez para ele não importasse mais depois da morte do

filho, mas que poderia afundar sua carreira. No mundo atual, artistas

como ele têm suas ações mais vistas e mais criticadas. Se

considerarmos que ele fez sérias críticas a igreja, como faz o jornal

Charlie Hebdo, quem sabe se teria o mesmo resultado como o

atentado que o jornal sofreu? Ferrari é tão lembrado por suas obras

“polêmicas” que seu envolvimento com a mistura da arte e da

literatura nem é tão visado hoje em dia, pois as pessoas estão cada

vez mais interessadas em ver “o circo pegar fogo”. Isso esconde

toda a capacidade do artista, que não era somente um crítico da

igreja.

As obras que envolvem os militares argentinos também são

impactantes quando o espectador procura o motivo delas existirem,

o conceito em que foram feitas e todo o sofrimento que elas

representam, pois apesar da ditadura argentina ter durado sete

anos, teve muito tempo para pessoas morrerem e atrocidades serem

feitas.

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O papel que León Ferrari exerceu é de alguém que tentou acordar a

sociedade para o que aconteceu na época, para a movimentação da

massa social, que age de acordo com o que a sociedade coloca que

devia e deve agir, assim como a importância da palavra que pode

ser substituída ou aliada à imagem, não subtraindo o significado

uma da outra, mas sim, complementando-se. Não deixando de lado

suas esculturas tão belas, cheias de significado e de habilidade

visível do artista.

Talvez o mundo não estivesse preparado para entender a

complexidade de suas obras, o que não deixa de revelar que apesar

das críticas, o que ele fez sobrevive ao tempo e a sociedade,

ocupado espaços e mentes, fazendo com que reflexões e debates

sobre limites de expressão sejam criados a todo o momento. A

ditadura, a religião, o nazismo, tudo o que o homem fez e faz será

um dia representado na arte, se já não o foi.

E a arte está na humanidade para representar, falar, criticar,

lembrar, ultrapassar limites e impor limites, ser aceita, ser julgada, e

muitas vezes até ignorada. León Ferrari só fez parte desse mundo

de homens e mulheres que ousaram, ou foram só mais um na

multidão, foram esquecidos, ou serão eternamente lembrados, são

desconhecidos ou são aclamados. Um mundo de uma diversidade

incomum, que não é hoje que vai ser abalado, e esperamos que

amanhã não o seja.

Referências:

Exposição León Ferrari – Resistências e Transgressões, CCBB

Brasília 2015

<http://www.leonferrari.com.ar> Último acesso: 20/05/2015.

<http://www.escritoriodearte.com> Último acesso: 20/05/2015.

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