21
[-] www.sinaldemenos.org Ano 5, Edição Especial, 2013 91 Decifra-me ou devoro-te As jornadas de junho/julho e a luta de classes no Brasil contemporâneo Diego Grossi 1 Os filósofos até hoje se preocuparam em interpretar o mundo, mas o que importa é transformá-lo. Karl Marx Inovar no método e sempre que falhar, tentar outro. Lenin Introdução O objetivo do presente trabalho é discutir o caráter histórico das jornadas de junho/ julho, situando não só as mobilizações em si, mas também os agentes envolvidos, no quadro geral do desenvolvimento econômico de caráter capitalista ocorrido no país na última década, assim como, tendo noção de que vivemos um processo ainda em curso, contribuir para que o fenômeno traga saldos positivos ao povo brasileiro em longo prazo (o que torna fundamental uma renovação crítica das organizações de esquerda). As manifestações que vêm ocorrendo em todo o Brasil nos últimos anos atingiram o ápice nos meses de junho e julho de 2013. Sua origem mais aparente foi a campanha contra o aumento no preço das passagens do transporte público em São Paulo, em que, diante da repressão policial e da divulgação através da internet (principalmente o Facebook) a adesão popular aumentou rapidamente no município e serviu de estímulo para que outras localidades se sublevassem (ou voltassem às ruas 1 Diego Grossi é professor de História da rede pública de Magé-RJ e especialista em História do Brasil Contemporâneo (Unesa). E-mail: [email protected]

Decifra-me ou devoro-te: As jornadas de junho/ julho e a luta de classes no Brasil (por Diego Grossi)

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Análise marxista das jornadas de junho/ julho que tomaram as ruas do Brasil. É apontado que a esquerda organizada precisa se renovar, a nível de teoria e de métodos (inclusive com a utilização do ciberativismo) para poder influenciar ideologicamente essas massas, cujo um dos elementos centrais é um novo proletariado (parcialmente vinculado ao ramo da tecnologia), resultado da modernização capitalista vivida na última década de governo PT/PMDB e também de suas contradições.

Citation preview

[-] www.sinaldemenos.org Ano 5, Edição Especial, 2013

91

Decifra-me ou devoro-te

As jornadas de junho/julho e a luta de classes no Brasil contemporâneo

Diego Grossi1

Os filósofos até hoje se preocuparam em interpretar o mundo, mas o que importa é

transformá-lo.

Karl Marx

Inovar no método e sempre que falhar, tentar outro.

Lenin

Introdução

O objetivo do presente trabalho é discutir o caráter histórico das jornadas de

junho/ julho, situando não só as mobilizações em si, mas também os agentes

envolvidos, no quadro geral do desenvolvimento econômico de caráter capitalista

ocorrido no país na última década, assim como, tendo noção de que vivemos um

processo ainda em curso, contribuir para que o fenômeno traga saldos positivos ao povo

brasileiro em longo prazo (o que torna fundamental uma renovação crítica das

organizações de esquerda).

As manifestações que vêm ocorrendo em todo o Brasil nos últimos anos

atingiram o ápice nos meses de junho e julho de 2013. Sua origem mais aparente foi a

campanha contra o aumento no preço das passagens do transporte público em São

Paulo, em que, diante da repressão policial e da divulgação através da internet

(principalmente o Facebook) a adesão popular aumentou rapidamente no município e

serviu de estímulo para que outras localidades se sublevassem (ou voltassem às ruas

1 Diego Grossi é professor de História da rede pública de Magé-RJ e especialista em História do Brasil

Contemporâneo (Unesa). E-mail: [email protected]

[-] www.sinaldemenos.org Ano 5, Edição Especial, 2013

92

com mais força, como no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro, nos quais havia uma

série de processos reivindicatórios em curso).

A ampla cobertura da mídia tradicional e os aspectos ideológicos dos

propagandistas das mídias digitais (principalmente os perfis anonymous) fizeram com

que as reivindicações fossem metamorfoseadas rapidamente, o que mobilizou setores

com anseios diversos e até mesmo contraditórios. Ensaiando uma forte guinada à

direita, as passeatas passaram a repudiar organizações tradicionalmente envolvidas com

as lutas de massa, como os partidos de esquerda e os sindicatos, pegando de surpresa a

militância desses movimentos (alguns chegaram a ficar feridos por conta de ataques

físicos), que também foram às ruas de maneira unificada em julho para colocar em

pauta reivindicações históricas da classe trabalhadora, como a redução da jornada de

trabalho para 40 horas semanais.

Quando a onda de protestos espontâneos já entrava em declínio no Brasil, o Rio

de Janeiro foi palco de uma nova reorientação ideológica, dessa vez para a esquerda, em

que a Rede Globo de Televisão se tornou o alvo principal dos protestos, junto do

governador Sérgio Cabral (confrontado com grande força desde o início do processo).

Inseridas no quadro de modernização capitalista pela qual o Brasil vem passando

com o governo do PT, as jornadas desnudam todas as contradições desse processo,

inclusive a incapacidade das organizações tradicionais da esquerda de oferecerem

alternativas reais aos anseios das massas nesse início de século XXI, colocando como

desafio a inovação da teoria e da prática. Nesse sentido vale a pena resgatar as

contribuições teóricas daqueles que estiveram a frente dos grandes processos

revolucionários do século XX, como Lenin e Mao Tsé-Tung.

1. Brasileiros e brasileiras ocupam as ruas

Os protestos que ganharam as ruas de todo o Brasil em junho e julho foram o

coroamento do acirramento da luta de classes no país, fenômeno que já vinha dando

sinais há algum tempo. Em 2012, de acordo com o Dieese (Departamento Intersindical

[-] www.sinaldemenos.org Ano 5, Edição Especial, 2013

93

de Estatística e Estudos Socioeconômicos)2, o número de greves cresceu 58%

(comparado com 2011), totalizando 873 paralisações, sendo 461 na esfera privada e 409

na esfera pública. Os trabalhadores do ramo industrial e os funcionários públicos

municipais foram os principais agentes desse processo (330 e 227 greves

respectivamente). 75% das mobilizações obtiveram sucesso. No Rio de Janeiro, um bom

exemplo ainda está em curso, no qual, desde o ano passado, estudantes e funcionários

da Universidade Gama Filho vêm promovendo uma série de atividades3 contra o

aumento das mensalidades e por melhores condições de trabalho, incluindo greves e

ocupações da reitoria e do prédio da mantenedora, algo inédito no movimento

estudantil nacional. Logo, o grande diferencial adicionado pelas massas no meio deste

ano foi, além do elevado número de pessoas nas ruas (que no dia 20 de junho chegou a

mais de meio milhão em todo o Brasil4), certa unidade pragmática e a solidariedade

entre os movimentos. Por mais que, em cada localidade, pautas diversas fossem

levantadas por diferentes setores sociais, havia um sentimento em comum que cobrava

dos governantes posturas éticas e competência diante dos serviços públicos mais

básicos, como transporte, saúde e educação.

Os protestos que se iniciaram contra o aumento das tarifas do transporte público

sofreram ampla cobertura dos meios digitais. A repressão policial só aumentou a

indignação e a solidariedade coletiva levando um contingente ainda maior de pessoas às

ruas que passaram a pautar determinadas bandeiras que já vinham crescendo no senso

comum há algum tempo. A questão ética tornou-se o principal eixo aglutinador

tornando comum a presença de gritos de guerra contra a corrupção, exaltando a figura

de Joaquim Barbosa5 e criticando a PEC 376. Os gastos com a Copa do Mundo também

estiveram em pauta.

2 "Número de greves no ano de 2012 foi o maior desde 1997, aponta o Dieese" <http://www.brasildefato.com.br/node/13006> Acesso em 30 de julho de 2013 3 O blog da União Estadual dos Estudantes - RJ oferece uma série de matérias sobre o tema <http://ueerio.blogspot.com.br> Acesso em 30 de julho de 2013 4 Só no Rio de Janeiro foram 300 mil, já em São Paulo, 100 mil. 5 Ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) que ganhou destaque na grande mídia por ser o principal

elemento no julgamento dos acusados pelo “Mensalão”, suposto esquema de compra de parlamentares ocorrido durante o primeiro governo de Lula.

6 Proposta de Emenda Constitucional que tirava do Ministério Público o poder de investigação criminal. Com os protestos a mesma foi rejeitada por ampla maioria de votos na Câmara dos Deputados.

[-] www.sinaldemenos.org Ano 5, Edição Especial, 2013

94

A onda de lutas que já vinham sendo promovidas em locais diversos e por

motivos variados, inclusive as atividades mais radicais de grupos feministas, como as

Femen, criou condições subjetivas para a legitimação dos protestos enquanto exercício

da cidadania. Assim, os problemas presentes no imaginário dos brasileiros tomaram as

ruas ao serem canalizados pelo clima criado7 com a Copa das Confederações, prelúdio da

Copa do Mundo, em que os questionamentos morais sobre os gastos públicos levaram

logicamente às críticas aos demais problemas relacionados à corrupção. A própria forma

das manifestações, assim como seus símbolos e palavras de ordem retratam uma relação

direta entre a subjetividade popular e os costumes tradicionalmente relacionados à

própria Copa do Mundo, como desfiles em massa com a bandeira e as cores do Brasil, o

canto do hino nacional, etc.

Inicialmente, quando o foco ainda era a questão do preço da passagem, a

cobertura da mídia seguiu o padrão de boicote geral com pequenas exceções para as

difamações, porém a contra-informação dos meios alternativos e a legitimidade

alcançada pelos protestos locais hegemonizaram a percepção popular, fazendo, como já

foi dito, com que a adesão aos protestos crescesse8. Diante da nova conjuntura os

grandes meios de comunicação adotam uma estratégia diferente, não só dando grande

cobertura aos atos, mas também insuflando as idéias direitistas que já vinham

implantando no senso comum há tempos, colocando em atividade um público com

perfil mais conservador.

O caráter ideológico diluído num patriotismo confuso e em questões abstratas

sobre a corrupção, assim como tal postura da mídia, facilitou a infiltração de setores

declaradamente direitistas, como gangues neofascistas9. Sob a alegação de que a

população ali manifesta era apartidária (na prática antipartidária), sem ideologia (“nem

7 A visibilidade mundial da visita do papa contribuiu para a continuidade desse clima de manifestações no

Rio de Janeiro após a primeira fase de ascensão, pois manteve na subjetividade das massas um momento concreto compartilhado e conhecido por todos e, por isso, palco propício para as demonstrações públicas de indignação.

8 Numa pesquisa com claros intuitos difamatórios realizada por Datena no programa Brasil Urgente, da Band, o apresentador ficou numa situação complicada com a insistência popular em apoiar os protestos que estavam ocorrendo. O vídeo com o momento encontra-se no Youtube (http://www.youtube.com/watch?v=A_DmLsVUr9I)

9 “Ex-integralista denuncia ação de grupos de extrema direita contra militantes de esquerda” <http://www.pco.org.br/nacional/ex--integralista-denuncia-acao-de-grupos-de-extrema-direita-

contra-militantes-de-esquerda-/aiob,a.html> Acesso em 30 de julho de 2013

[-] www.sinaldemenos.org Ano 5, Edição Especial, 2013

95

de esquerda e nem de direita”) e cuja única bandeira seria a do Brasil, vários militantes

políticos e organizações de esquerda foram atacados e expulsos dos atos. O MPL

(Movimento Passe-Livre), que havia dado início às lutas em São Paulo, se retira

publicamente das manifestações por conta da guinada à direita10. Muito difuso, sem

direção e tendo possivelmente boa parte dos manifestantes cansados pelo ritmo intenso

das passeatas, no final de junho os protestos espontâneos diminuíram bruscamente.

Os que permaneceram nas ruas, mesmo em menor número, assumem objetivos

mais claros. Com a adesão em massa aos protestos contra a TV Globo no Rio, iniciados

por militantes de organizações políticas populares, as mobilizações reencontram-se com

uma perspectiva de esquerda, ainda que diluída e não dirigida por qualquer entidade.

Nos resquícios das passeatas de junho, em julho passam a ser alvos, além da TV Globo,

o governador de SP, Geraldo Alckmin, e o conservadorismo da Igreja Católica por conta

da Jornada Mundial de Juventude, além da continuidade aos ataques contra o

governador Sérgio Cabral no RJ.11

2. Organização, agitação e propaganda através do ciberativismo

O mais próximo de uma direção que essa primeira onda de protestos teve foi, sem

dúvida, o movimento ciberativista Anonymous. Possuindo origens distintas e

funcionando de forma descentralizada, os milhares de anonymous espalhados pelo

mundo inserem-se num contexto global de virtualização de diversas funções da

sociedade, como o comércio, a troca de informações e os relacionamentos pessoais.

Nesse processo foram surgindo especialistas autodidatas em informática que passaram

a utilizar a internet como forma de concretizar algum desejo por essa nova via. Entre

esses especialistas alguns se dedicaram a quebrar as leis tanto para o banditismo

comum (com o roubo de recursos financeiros ou informações), como para o protesto

social, oferecendo alternativas às censuras impostas pelos governos e grandes meios de

comunicação. A popularização da internet e o paralelo surgimento dos blogs e redes

10 "MPL se retira de protesto para evitar ser confundido com direita" <http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_secao=8&id_noticia=216734> Acesso em 30 de julho de

2013 11 "RJ: manifestantes voltam a protestar em frente à casa de Cabral" <http://noticias.terra.com.br/brasil/cidades/rj-manifestantes-voltam-a-protestar-em-frente-a-casa-de-

cabral,7918d5a9b2720410VgnVCM4000009bcceb0aRCRD.html> Acesso em 30 de julho de 2013

[-] www.sinaldemenos.org Ano 5, Edição Especial, 2013

96

sociais permitiram que esse ciberativismo passasse a ser compartilhado também por

pessoas leigas em informática.

Os anonymous12 ganham força justamente por conseguirem inserir numa

estratégia global de ação diversos indivíduos distintos, com habilidades por vezes

díspares, mas com certa afinidade ideológica e/ou pragmática. Na primeira década do

século XX algumas pessoas se mobilizaram na internet e saíram às ruas nos EUA para

protestarem contra questões pontuais de caráter religioso, muitos deles usavam as

máscaras do personagem V de Vingança13. A identificação da rebeldia hacker com o

herói anarquista ultrapassou a América do Norte e passou a ser o elo entre diversos

ciberativistas pelo mundo, principalmente com a campanha global contra as leis de

controle draconiano da internet e em defesa de Julian Assange, fundador da Wikileaks.

No geral os anonymous não se identificam enquanto entidade, mas na prática

funcionam como células que se organizam virtualmente sem qualquer tipo de comando

oficial, porém com certa unidade ideológica por conta da identificação simbólica (a

máscara do V14) e pragmática (defesa irrestrita da liberdade de expressão, do uso da

internet para compartilhamento de informações, certa inclinação ao anarquismo, etc.),

constituindo núcleos que acabam por irradiar suas bandeiras através de simpatizantes

menos familiarizados com as atividades clandestinas do movimento (como invasão e

derrubada de sites)15.

O próprio caso Assange16 demonstra a importância que o ciberativismo vem

ganhando enquanto manifestação da luta de classes em todo o planeta, pois em alguns

poucos anos conseguiu fazer do seu site Wikileaks um ponto de referência para a

divulgação de informações escondidas por diversos governos17.

12 Perfil no Facebook <https://www.facebook.com/AnonymousBr4sil?fref=ts> Site de outra célula <http://www.anonymousbrasil.com> 13 Herói dos gibis criado por Alan Moore na década de 1980, cujo cenário é uma Inglaterra fictícia em que

V é um anarquista que luta contra o governo de inspiração fascista. Ficou muito famoso por conta do filme lançado nos anos 2000.

14 A máscara do V, por sua vez, é baseada em Guy Fowkes, um rebelde real que tentou explodir o parlamento inglês no século XVI.

15 "Confira o mapeamento da difusão na internet nas primeiras manifestações" <http://revistaforum.com.br/blog/2013/06/mapeamento> Acesso em 30 de julho de 2013 16 Perseguido pelas atividades da Wikileaks, Assange foi vítima de uma falsa acusação de estupro na

Inglaterra, mas conseguiu fugir e se refugiar na embaixada do Equador. 17 Sobre Wikileaks e Bradley Manning conferir em: <http://www.brasildefato.com.br/node/14859> Acesso em 30 de julho de 2013

[-] www.sinaldemenos.org Ano 5, Edição Especial, 2013

97

A importância logística da internet é reconhecida até mesmo pelas práticas de

diversos governos18, como o chinês que possui um exército oficial de hackers treinados.

O imperialismo estadunidense chegou a criar um vírus especialmente voltado para

sabotar o programa nuclear iraniano, além de montar uma rede de espionagem global,

conforme relatado recentemente pelo ex-agente dos serviços secretos estadunidenses,

Edward Snowden19. O próprio Facebook foi acusado de ser uma armadilha utilizada pela

espionagem dos EUA.

Sendo ou não arma propositalmente criada, o fato é que o Facebook (e

anteriormente o Twitter) vem servindo de meio para organização, agitação e

propaganda de diversos movimentos sociais em todo o mundo, ganhando muito

destaque durante a chamada “Primavera Árabe”20. No Brasil as principais páginas

identificadas como Anonymous vinham sendo muito bem recebidas há algum tempo21,

promovendo ataques contra sites de governos e empresas, além de fornecer tutoriais

sobre técnicas de ciberativismo. Ideologicamente divulgavam tanto as lutas de

anonymous de outros países como vinham colocando em pauta as questões éticas da

política nacional (que ganharam as ruas de fato em junho), atacando governos de

diversas linhas sem se comprometer com nenhuma, por mais que a maioria das críticas

se dirigisse contra o PT (Partidos dos Trabalhadores).

Algumas convocações para manifestações já vinham sendo feitas pelos perfis

anonymous há tempos, mas nenhuma obteve adesão significativa. Apesar da influência

ideológica não havia real capacidade orgânica de mobilização. Porém, muitos que

passaram a ocupar as ruas em junho já estavam ideologicamente influenciados pelo

ciberativismo e tinham no Anonymous uma referência (o grande número de máscaras

18 "Hackers do exército chinês: a ponta do iceberg na guerra cibernética" <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/1241054-hackers-do-exercito-chines-a-ponta-do-iceberg-

na-guerra-cibernetica.shtml> Acesso em 30 de julho de 2013 19 "Caso Snowden expõe falhas de segurança na internet do Brasil" <http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=219109&id_secao=9> Acesso em 30 de julho de

2013 20 Que de primavera até agora não teve nada, servindo apenas para consolidar os interesses imperialistas

no Oriente Médio. É importante lembrar que há um equívoco na percepção do papel cumprido pela internet nesses

processos, pois em nenhum momento ela foi a causa para qualquer rebelião, servindo apenas como meio, uma ferramenta para que as pessoas descontentes com determinada situação real pudessem romper o controle do governos sobre os meios de comunicação.

21 A principal página no Facebook, hoje, é curtida por mais de um milhão de pessoas.

[-] www.sinaldemenos.org Ano 5, Edição Especial, 2013

98

do V nas manifestações ilustra bem o quadro), o que foi facilitado pela ausência de uma

direção reconhecida em grande parte dos protestos.

3. Ofensiva das centrais sindicais

Inicialmente rechaçado dos atos, o movimento sindical tenta se reorganizar e

assumir a direção da luta de classes no Brasil, demarcando com as manifestações

espontâneas e convocando atividades paralelas próprias. Mesmo unificadas, as centrais

não conseguem obter os mesmos impactos do movimento espontâneo, tanto por

debilidades próprias quanto por terem se lançado de maneira organizada já na fase de

descenso das mobilizações, o que não pode ofuscar o sucesso das manifestações que

mobilizaram cerca de 400 mil22 em todo o país no dia 11 de julho.

Diante do avanço das idéias de direita nos movimentos de massa que tomaram as

ruas em junho, o próprio ex-presidente Lula entrou em cena para articular os

movimentos sociais a nível nacional23. Atacados nas ruas tanto quanto os partidos

ligados ao governo, como PCdoB e PT, a oposição de esquerda (PSOL, PSTU, PCB e

outras organizações sem registro eleitoral) decide participar da construção do ato

unificado com suas respectivas centrais sindicais. Movimentos sociais tradicionais como

a UNE (União Nacional dos Estudantes) e o MST (Movimento dos Sem Terra)

acompanham os sindicatos nessa empreitada.

No dia 11 de julho os trabalhadores dirigidos pelas centrais realizam diversos atos

pelo em todo o Brasil, inclusive paralisações em empresas importantes como a

Eletrobrás, reivindicando, entre outras questões: redução da jornada de trabalho para

40 horas semanais, fim do fator previdenciário, democratização dos meios de

comunicação, 10% do PIB para saúde, 10% do PIB para a educação, reforma agrária, etc.

22 “Balanço das mobilizações de 11 de julho é positivo e 30 de agosto deve ser ainda maior” <http://www.cut.org.br/acontece/23502/balanco-das-mobilizacoes-de-11-de-julho-e-positivo-e-30-de-

agosto-deve-ser-ainda-maior> Acesso em 30 de julho de 2013 23 "Lula convoca movimentos sociais para ir à ruas pelo Brasil" <http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=217200&id_secao=8> Acesso em 30 de julho de

2013 É interessante observar também o artigo do ex-presidente publicado no New York Times, em que Lula

defende as manifestações: “The Message of Brazil’s Youth” < http://www.nytimes.com/2013/07/17/opinion/global/lula-da-silva-the-message-of-brazils-youth.html>.

[-] www.sinaldemenos.org Ano 5, Edição Especial, 2013

99

A proposta de plebiscito para reforma política24 levantada pela presidente Dilma como

resposta às pressões nas ruas em junho foi um dos focos das passeatas. Nas periferias

também ocorreram mobilizações, o que foi um grande avanço.

Com toda a expectativa criada, principalmente em cima de uma suposta greve

geral (questão levantada por um movimento surgido no Facebook para o dia 01 de julho

e que não teve nenhuma adesão considerável, com exceção de um lockout25 de

caminhoneiros), não houve muito lastro nas bandeiras levantadas que, ao contrário das

questões morais, caíram no esquecimento de grande parte da população. O próprio

governo recuou da proposta de reforma política no legislativo. A vitória inicial na

Câmara dos Deputados que garantia a viabilização dos 10% do PIB para a educação

através dos recursos do petróleo pré-sal foi parcialmente cortada no Senado.

O número de pessoas mobilizadas e a unidade dos movimentos sociais foi, sem

dúvida, uma vitória para todo o movimento sindical, principalmente diante da clara

oposição da grande mídia e do clima de ofensiva ideológica da direita. Porém a

perspectiva de que aconteceria algo mais profundo que as manifestações espontâneas

deixou um sentimento de insuficiência, inclusive por causa da própria confusão sobre o

dia nacional de lutas, que foi interpretado por diversas organizações como o dia da

verdadeira greve geral e assim foi divulgado26. Talvez não ousar mais e realmente

convocar uma paralisação nacional tenha sido uma oportunidade jogada fora pela

esquerda de assumir a direção da luta de massas no Brasil, por mais que o receio de se

repetir experiências desastrosas no passado (como durante o governo Allende em que

uma greve de caminhoneiros foi fundamental para o golpe militar liderado por

Pinochet) não seja completamente injustificado.

4. Algumas considerações sobre as possibilidades de um plano da direita

O avanço ideológico da direita através da mídia e do Facebook, assim como os

24 O ponto mais polêmico e central para se combater efetivamente a corrupção é o fim do financiamento

privado das campanhas eleitorais, as quais passariam a depender de um fundo público. Mais detalhes em: <http://g1.globo.com/politica/noticia/2013/06/dilma-propoe-5-pactos-e-plebiscito-para-constituinte-da-reforma-politica.html> Acesso em 30 de julho de 2013

25 Greve provocada por patrões que é ilegal no Brasil. 26 Na internet várias imagens compartilhadas pela militância de esquerda chamavam à greve geral.

[-] www.sinaldemenos.org Ano 5, Edição Especial, 2013

100

ataques físicos sofridos pelos militantes de esquerda durante os primeiros atos, fizeram

surgir hipóteses sobre a possibilidade de que uma articulação nada espontânea pudesse

estar em curso por trás dos movimentos de massa para derrubar o governo de centro-

esquerda de Dilma Rousseff27.

Essa possibilidade é aparentemente contraditória com o próprio processo

histórico pelo qual passa o Brasil que, ao contrários de vizinhos como Venezuela e

Bolívia, não rompeu drasticamente com a elite nacional nem com o imperialismo

estadunidense. O próprio crescimento econômico baseado no combate à miséria, nos

estímulos ao consumo e nos ganhos reais de salário foi acompanhado por enormes

lucros de bancos e grandes empresas privadas28. Porém existem alguns fatores que

merecem ser considerados, pois, por mais que a política econômica do governo PT seja

conservadora, existe uma direita política insatisfeita com o crescimento da esquerda nas

últimas eleições e um público adepto às questões morais e religiosas. Além disso,

mesmo sem bater diretamente de frente com os Estados Unidos, o Brasil tem feito uma

política externa independente, e cede apenas parcialmente o petróleo à exploração

internacional através dos leilões. Sem romper com o capitalismo dependente, mas

também sem se prostituir completamente como fizeram Collor e Fernando Henrique

Cardoso, o governo do PT representa um entrave a nível regional, por apoiar a

integração da América Latina e os inimigos declarados dos EUA na região. Vale lembrar

que o momento de descoberta da camada de petróleo pré-sal foi coincidente à reativação

da IV Frota, que havia parado de patrulhar o Oceano Atlântico após a II Guerra

Mundial29.

O próprio João Pedro Stédile, líder do MST, em entrevista ao Brasil de Fato (25

jun. 2013)30 levantou a possibilidade da direita e da CIA (Central de Inteligência

Americana) estarem se aproveitando das mobilizações populares e envolvidas num

27 "Está tudo tão estranho, e não é à toa." <https://medium.com/primavera-brasileira/dfa6bc73bd8a> Acesso em 30 de julho de 2013 28 "Bancos já lucraram R$ 127 bi no governo Lula" <www.pstu.org.br/node/15441> Acesso em 30 de julho de 2013 29 "A Quarta Frota e os senhores da guerra" <http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=177601&id_secao=9> Acesso em 30 de julho de

2013 30 “O significado e as perspectivas das mobilizações de rua” <

http://www.brasildefato.com.br/node/13339 >

[-] www.sinaldemenos.org Ano 5, Edição Especial, 2013

101

plano de desestabilização do governo, ainda que não através de um golpe (como alguns

levantaram), pois para ele o foco seria desgastar o governo para as eleições de 2014:

A classe dominante, os capitalistas, os interesses do império Estadunidense e seus porta-vozes ideológicos, que aparecem na televisão todos os dias, têm um grande objetivo: desgastar ao máximo o governo Dilma, enfraquecer as formas organizativas da classe trabalhadora, derrotar quaisquer propostas de mudanças estruturais na sociedade brasileira e ganhar as eleições de 2014, para recompor uma hegemonia total no comando do Estado brasileiro, que agora está em disputa. Para alcançar esses objetivos, eles estão ainda tateando, alternando suas táticas. Às vezes, provocam a violência para desfocar os objetivos dos jovens. Às vezes, colocam nos cartazes dos jovens a sua mensagem.

Apesar de difícil, a possibilidade de infiltração estrangeira vai ao encontro da

tática utilizada pelo imperialismo para assumir o controle de diversos movimentos de

massa pelo mundo, tanto no Oriente Médio como aqui na América Latina. No Paraguai,

inclusive, um presidente (Fernando Lugo), cujo governo tinha características moderadas

assim como o PT, foi vítima de um golpe branco por conta de um conflito entre as forças

do Estado e camponeses. As revelações de Snowden sobre o Brasil estar no centro da

espionagem ianque reforçam a hipótese de que algo especial pode estar acontecendo por

aqui. Stédile, na entrevista citada, comenta a questão:

(...) são evidentes os sinais da direita muito bem articulada e de seus serviços de inteligência, que usam a internet, se escondem atrás das máscaras e procuram criar ondas de boatos e opiniões pela internet. De repente, uma mensagem estranha alcança milhares de mensagens. E aí se passa a difundir o resultado como se ela fosse a expressão da maioria. Esses mecanismos de manipulação foram usados pela CIA e pelo Departamento de Estado Estadunidense, na Primavera Árabe, na tentativa de desestabilização da Venezuela, na guerra da Síria. É claro que eles estão operando aqui também para alcançar os seus objetivos.

A semelhança nas formas dos ataques perpetrados contra a militância de

esquerda também é alvo de suspeitas, pois em todos os casos foram relatados a presença

de homens mascarados sem qualquer disposição para diálogo e, em alguns momentos,

auxiliados por grupos de extrema direita. Ao que tudo indica são os mesmos elementos

[-] www.sinaldemenos.org Ano 5, Edição Especial, 2013

102

que, durante diversas manifestações, realizaram atos de depredação que serviram para

justificar a repressão. Um grupo de mascarados chegou a ser preso durante a

manifestação das centrais sindicais no Rio de Janeiro, mas a polícia não deu muitas

informações, limitando-se a dizer que os mesmos eram envolvidos com a milícia e o

tráfico de drogas31.

Com o acúmulo de experiência por parte dos manifestantes que continuam nas

ruas, algumas imagens mostraram indivíduos responsáveis por atos de depredação

durante as passeatas vestindo roupas da PM (Polícia Militar) em outros momentos,

confirmando as hipóteses de infiltração policial32. A questão é saber se é a infiltração que

sempre ocorreu visando simplesmente desacreditar o movimento e facilitar a repressão

ou se há interesses maiores por trás, o que ainda não está claro.

Mesmo que a possibilidade de atuação sistematizada da direita nacional e/ou

internacional seja verídica, o que fica claro, tanto no Brasil quanto nos outros países, é

que só quando não há capacidade das organizações populares (tradicionais ou surgidas

nas lutas do momento) levarem à frente um projeto histórico consequente e

independente é que surgem condições para que forças obscuras manobrem as

mobilizações de massa. É imperativo então que a esquerda organizada brasileira consiga

responder aos desafios dados.

5. Modernização e desenvolvimento capitalista no Brasil

Desde a queda da URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas) em 1991 os

povos do mundo têm sido colocados na defensiva diante dos ataques do imperialismo.

No entanto, vêm surgindo pólos importantes de resistência, principalmente na Ásia e na

América Latina. Com a deflagração da crise econômica mundial a partir de 2007/2008 a

luta de classes se acirrou até mesmo nos países capitalistas centrais, como EUA e nações

européias, em que a classe trabalhadora vem se organizando para lutar contra as

sangrias causadas pela crise global. No geral não há uma perspectiva estratégica clara,

31 Conforme denúncias de militantes presentes. 32 "Cabral diz que não sabia de policiais infiltrados em manifestações no Rio" <http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2013/07/cabral-diz-que-nao-sabia-de-policiais-

infiltrados-em-manifestacoes-no-rio.html> Acesso em 30 de julho de 2013

[-] www.sinaldemenos.org Ano 5, Edição Especial, 2013

103

com exceção de alguns países em que os partidos comunistas possuem larga influência e

capacidade de luta (como a Grécia). Porém aos poucos a consciência de classe dos

trabalhadores tem evoluído para um sentimento anti-sistema e de democracia radical,

sem ainda oferecer alternativas viáveis (o que pode vir a ocorrer com o acúmulo de

experiências).

No Brasil as jornadas de junho/ julho assumiram um caráter diferente, com perfil

mais heterogêneo e que não teve como causas a queda do nível de vida (pelo contrário,

nos últimos 10 anos os índices econômicos e sociais têm crescido constantemente33),

colocando as questões econômicas de forma secundária nas pautas de reivindicações,

diferentemente do que vem ocorrendo na Europa e nos EUA.

Se há no Brasil um processo de modernização capitalista, na qual as grandes

massas estão incluídas, sendo também beneficiadas, temos de compreender as causas

das grandes manifestações como parte desse próprio processo e de suas contradições.

Os principais limites referem-se à ausência de uma ruptura radical com a estrutura

interna e externa de dominação da classe burguesa nacional associada ao imperialismo

internacional. Por mais que em 10 anos de governo o PT/PMDB tenha atingido índices

sociais elevados, toda a orientação desse fenômeno foi no sentido conciliador, sem

enfrentar, a não ser pontualmente (e sempre que possível incorporando ao novo ciclo de

desenvolvimento capitalista), determinadas características herdadas ao longo dos 500

anos de história, como o poder dos latifundiários e as elites locais ligadas ao mesmo, o

monopólio dos meios de comunicação por parte de alguns grupos empresariais, o

sistema político-eleitoral, práticas arcaicas de manutenção e aproveitamento do Estado

(como a corrupção generalizada e a venda de votos), etc. Ao não conquistar mudanças

profundas, o governo de centro-esquerda deixou, apesar da melhoria na qualidade de

vida da população (o que, entre outros fatores, explica o bom desempenho eleitoral das

forças governistas), um leque amplo de insuficiências percebidas pelas pessoas com

condições e interesses em um Brasil mais moderno.

Com o desenvolvimento do modo de produção capitalista no país comandado

pelo Estado (garantindo a distribuição de renda entre as classes e as regiões do país) um

33 "Brasil atinge menor nível de desigualdade social desde 1960" <http://economia.estadao.com.br/noticias/economia,brasil-atinge-menor-nivel-de-desigualdade-

social-desde-1960,105210,0.htm> Acesso em 30 de julho de 2013

[-] www.sinaldemenos.org Ano 5, Edição Especial, 2013

104

maior número de pessoas teve acesso à informação (por diversos meios, inclusive a

escola e a universidade34) e passou a ter condições de refletir sobre as problemáticas que

os cercavam. Contraditoriamente, mesmo sendo fruto do governo PT/PMDB, é

justamente esse setor que compreende e sente os limites do processo e, facilitado pela

estabilidade econômica (o que afasta, por exemplo, o perigo do desemprego), passa a

ocupar as ruas do país.

Em junho as massas demonstram disposição a também serem agentes do

processo de modernização capitalista no país, que até agora foi feito de cima para baixo.

O fato de surgirem como beneficiados pelo sistema capitalista pode ajudar a explicar a

dificuldade que a esquerda vem enfrentando para penetrar nesse setor, erroneamente

classificado como “nova classe média”.

Além do conceito “classe média” ser inexato do ponto de vista histórico e social

(considerando como classe um grupo heterogêneo composto pela pequena burguesia,

aristocracia operária, etc.) a idéia de uma “nova” classe média esconde a condição de

simples trabalhador de grande parte dessas pessoas. Oficialmente esse grupo é

composto por famílias com renda per capita entre R$ 291 e R$ 1.019, agrupando mais

da metade da população do Brasil35. Para o DIEESE36, o salário mínimo deveria ser R$

2.873, sendo um absurdo considerar como médio um setor que, em sua maioria, vive

abaixo das necessidades consideradas mínimas.

Alguns dados coletados pelo IBOPE37 em oito capitais do país no dia 20 de junho

ajudam a compreender com mais exatidão quem era a multidão nas ruas: dos

manifestantes (divididos igualmente entre homens e mulheres) 75% trabalhavam, 52%

estudavam e 43% haviam terminado alguma faculdade. 23% possuíam renda familiar

maior que 10 salários mínimos, 26% entre 5 a 10, 30% entre 2 a 5 e 15% até 2 (6% das

34 "Ensino superior cresce 110% em dez anos" <http://www.brasil.gov.br/noticias/arquivos/2011/11/07/ensino-superior-cresce-110-em-dez-anos>

Acesso em 30 de julho de 2013 35 "Mais de 50% dos brasileiros estão na classe média" <http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2012-09-20/mais-de-50-dos-brasileiros-estao-na-classe-

media> Acesso em 30 de julho de 2013 36 "Salário mínimo precisaria ser de R$ 2.873,56, diz Dieese" <http://exame.abril.com.br/economia/noticias/salario-minimo-precisaria-ser-de-r-2-873-56-diz-

dieese> 37 Veja os dados da pesquisa do Ibope no link: <http://especial.g1.globo.com/fantastico/pesquisa-de-opiniao-publica-sobre-os-manifestantes> Acesso

em 30 de julho de 2013

[-] www.sinaldemenos.org Ano 5, Edição Especial, 2013

105

pessoas não responderam). Cerca de 80% esteve presente nas passeatas acompanhado

por alguém, na grande maioria por amigos, e mobilizados pela internet (91% ficou

sabendo dos atos virtualmente, sendo 62% via Facebook – usado por 75% das pessoas

para convocar outros participantes). Quase a metade (46%) estava participando de um

protesto pela primeira vez na vida. 61% disseram ter muito interesse em política e 28%

manifestaram interesse médio, contrastando com os 11% que disseram ter pouco ou

nenhum interesse na área. 89% não se sentem representados por nenhum partido e 81%

por nenhum político individual. 86% não são filiados a nenhuma organização de massa

(sindicato, entidade estudantil, etc.). 63% era composto por jovens de até 29 anos.

O que pode ser percebido é a entrada em cena de um setor inexperiente na luta de

classes e que se formou no meio de um processo histórico complicado, favorecendo a

desorientação política e a consequente manipulação por parte dos grandes meios de

comunicação e suas idéias pós-modernas muito em voga desde o fim da Guerra Fria,

como a suposta inexistência da esquerda e da direita. A configuração ideológica

assumida nessas primeiras jornadas reflete tais contradições, mas, no geral, pode ser

classificada como cidadã e patriótica, pois o sentimento que unia as pessoas nas ruas

era a vontade de se cobrar melhorias para o Brasil (dentro da ordem capitalista) por

meio de protestos justificados pela idéia de que o povo tem o direito e o dever de dirigir

a política do país.

Demonstrando grande disposição de luta, inclusive em situações de

enfrentamento às forças de repressão, esse setor encontra-se hoje em disputa, assim

como ele próprio busca disputar a participação no processo de modernização no Brasil,

que hoje tende a levar o país ao estado de bem-estar social. No entanto, resta saber se

será possível alcançar tal situação sob o capitalismo (necessariamente dependente) sem

romper bruscamente com as amarras internas e externas, e qual o nível de interferência

da população na condução desse projeto, o que dependerá da capacidade das entidades

tradicionais de esquerda reatarem seus laços orgânicos e ideológicos com as massas.

6. Os desafios da esquerda para a luta de classes no século XXI

De acordo com Friederich Engels, podemos definir como proletariado:

[-] www.sinaldemenos.org Ano 5, Edição Especial, 2013

106

(...) a classe dos trabalhadores assalariados modernos, os quais, não tendo meios próprios de produção, estão reduzidos a vender a sua força de trabalho para poderem viver.38

Nesse sentido, mesmo que consideremos a possível presença de profissionais

liberais, pequenos burgueses e membros da aristocracia operária nas manifestações

representando um contingente de 50% das pessoas (de acordo com uma interpretação

plausível diante dos dados apresentados pelo Ibope, referentes ao trabalho, a renda e a

educação), é razoável pensar que a outra metade faz parte de um novo setor da classe

trabalhadora, do proletariado moderno, forçando uma avaliação autocrítica por parte

das entidades de esquerda por não conseguirem atingir tais pessoas (o aparecimento de

trabalhadores ligados ao ramo da tecnologia, no qual quase não há sindicatos é um

indício do problema). Inicialmente é preciso tratar de algumas questões presentes no

discurso antipartidário com mais seriedade, pois se é verdade que o pensamento pós-

moderno direitista é constantemente insuflado, isso não leva a concluir que exista por

parte das massas uma assimilação mecânica e irracional dessas idéias. Se determinados

pontos do discurso da direita conseguem colar no senso comum é por, no geral, terem

algum tipo de sintonia com a realidade, por mais frágil que seja.

O problema mais gritante foi o repúdio aos “partidos políticos” de forma

generalizada, colocando no mesmo pacote as organizações que apóiam o governo Lula,

as que fazem oposição e até mesmo grupos sem qualquer vínculo institucional, como o

PCR (Partido Comunista Revolucionário). Basicamente havia duas justificativas: A

primeira era um sentimento de repúdio geral aos partidos por estarem sendo

identificados subjetivamente como parte de legitimação da política à qual se estava

combatendo, e a segunda era a identificação de qualquer partido de esquerda como

parte integrante do governo. Tais atitudes devem acender o alerta vermelho tanto para

as organizações que vem priorizando cada vez mais as atividades legislativas em

detrimento das lutas de massa (que estão se confundindo com aquilo que tentam

combater) quanto para as que se utilizam do discurso despolitizado atacando qualquer

forma de participação eleitoral e ignorando as diferenças, ainda que limitadas, entre a

38 MARX, Karl e ENGELS, Friederich. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Martin Claret, 2005.

[-] www.sinaldemenos.org Ano 5, Edição Especial, 2013

107

esquerda institucional e a direita, o que acaba por munir justamente o pensamento

direitista.

A presença de lideranças de qualquer tipo, ainda que individuais, surgidas

espontaneamente, mas principalmente organizadas, como os sindicatos, foi alvo

constante de desconfianças. O medo de cooptação e compra, além do oportunismo para

usar as manifestações como trampolim eleitoral, era a principal justificativa para o

comportamento anárquico. Nesse sentido deve-se refletir sobre práticas muito comuns,

como o afastamento das lideranças eleitas para o legislativo de suas antigas bases (o que

frequentemente leva a desgastes com a própria militância), a negociação sobre o fim de

movimentos e greves às portas fechadas e o dirigismo que trata o fato de se dirigir uma

entidade como um fim em si mesmo e não um meio para conduzir a luta (tanto que boa

parte das direções sindicais e estudantis sofre, durante as eleições de suas respectivas

entidades, os mesmos tipos de críticas, independente de quais forças políticas estejam

tanto na situação quanto na oposição).

Enfim, desde o final da década de 1980 e mais acentuadamente a partir de 2002,

com a entrada em massa de dirigentes populares na estrutura estatal, a burocratização

do movimento sindical vem desgastando as entidades tradicionais junto a suas bases.

Logicamente, tal fenômeno não é um problema exclusivo das direções, já que as mesmas

são formadas justamente em suas bases e nos processos de luta dessas. A conjuntura

global não favorável após a queda da URSS (como já foi dito) e o avanço do

neoliberalismo no Brasil dificultaram a luta de classes facilitando a burocratização. A

contradição que precisa ser solucionada agora, com a melhoria das condições para o

enfrentamento, é não deixar as estruturas burocratizadas já viciadas atrapalharem a

renovação física e teórica das entidades, para que as mesmas possam refletir um novo

ciclo de conquistas através da ocupação das ruas.

Lenin39 demonstrou como o movimento espontâneo é, por si mesmo, limitado.

Sendo necessária a presença de uma direção de vanguarda com agentes históricos que

compreendam as lutas específicas dentro de um contexto histórico geral. Hoje, as

39 LENIN, V. I. Que Fazer?. 1902. Disponível em:

<https://www.marxists.org/portugues/lenin/1902/quefazer/index.htm> Acesso em 30 de julho de 2013

[-] www.sinaldemenos.org Ano 5, Edição Especial, 2013

108

entidades de massa originalmente representativas do movimento espontâneo, como

sindicatos e entidades estudantis, ocupam papel intermediário, pois seus dirigentes são,

na imensa maioria, membros de partidos com tal compreensão (que não é única e nem

necessariamente correta). Além destas, que tendem a representar realmente o

movimento espontâneo conforme avançar a luta das respectivas categorias, novas

formas de organização primárias vem surgindo, cujo melhor exemplo é o ciberativismo,

no qual deveria ser também direcionado dentro de uma perspectiva histórica.

A orientação que os agentes históricos serão capazes ou não de oferecer não

precisa ser necessariamente aos moldes tradicionais de uma organização específica de

vanguarda, já que a vanguarda se forja e se mostra como tal na própria luta. A esquerda

tradicional deve se debruçar em construir saídas práticas e teóricas para as contradições

do Brasil de hoje, e para isso precisa ser capaz de entender os movimentos e anseios das

massas. Mao Tsé-Tung sintetiza a relação entre os agentes históricas de vanguarda e as

massas:

(...) toda a direção correta é necessariamente “das massas para as massas”. Isso significa recolher as idéias das massas (idéias dispersas, não sistemáticas), concentrá-las (transformá-las por meio do estudo em idéias sintetizadas e sistematizadas), ir de novo às massas para propagá-las e explicá-las de maneira que as massas as tomem como suas, persistam nelas e as traduzam em ação; e ainda verificar a justeza dessas idéias no decorrer da própria ação das massas. Depois é preciso voltar a concentrar as idéias das massas e levá-las outra vez às massas, para que estas persistam nelas e as apliquem firmemente. Sucessivamente, repetindo-se infinitamente esse processo, as idéias vão-se tornando cada vez mais corretas, mais vivas e mais ricas. Tal é a teoria marxista do conhecimento.40

Para isso não basta repetir com mais ênfase o que já vem sendo feito há décadas,

pelo contrário, a esquerda orgânica precisa se modernizar tanto a nível teórico quanto

prático. É um absurdo que uma militância cuja tradição passa pela vitória contra o

nazismo e o enfrentamento ao regime militar seja escorraçada de manifestações por

elementos mascarados, tendo sido ou não infiltrados. Combinar técnicas de luta legais

40 MAO, Tsé Tung. A Propósito dos Métodos de Direcção. 1943. Disponível em:

<http://www.marxists.org/portugues/mao/1943/06/01.htm> Acesso em 30 de julho de 2013

[-] www.sinaldemenos.org Ano 5, Edição Especial, 2013

109

com as clandestinas foi uma lição que Lenin41 fez questão de apontar como necessário

em todos os momentos. Quanto a isso, além dos problemas da defesa física, é

importantíssimo que haja um maior preparo quanto às técnicas de ciberativismo, que se

mostra cada vez mais um grande campo para a luta de classes num mundo em que o

desenvolvimento tecnológico assume proporções inimagináveis (podendo servir tanto

para a opressão quanto para a luta). A internet, aliás, serve também como meio de

comunicação interna e externa e deve ser utilizada com uma lógica própria, não basta

virtualizar o panfleto impresso. Os métodos, de uma forma geral, estão defasados. A

propaganda e a agitação são feitas do mesmo jeito há um século e não é só a questão de

utilizar mal as novas tecnologias, mas de ter pouco tato inclusive com as antigas42,

faltam os especialistas. O fato da máscara do V de Vingança ter se tornado símbolo das

manifestações indica a necessidade de ícones e palavras de ordem capazes de ganhar as

massas. Não basta ter só uma orientação política estratégica correta, é preciso ter

métodos eficazes e capacidade para implementá-los. Os próprios cursos de formação

deveriam preparar também para a ação e não apenas discutir a teoria clássica, que

mesmo tendo importância central é pouco assimilada pelos brasileiros (resultado do

baixo nível cultural do país), o que também precisa ser urgentemente superado.

Enfim, há que se ter criatividade e, por parte da esquerda revolucionária, estudar

profundamente o marxismo-leninismo para se dar respostas aos novos problemas

históricos. A tarefa deve ser encarada como de todos aqueles comprometidos com o fim

do sistema capitalista (mesmo que o indivíduo não tenha ainda a consciência de qual

será a alternativa) mobilizando de forma crítica amplos segmentos sociais. Não há

dúvidas de que as dificuldades da esquerda tradicional do país, principalmente para as

organizações de caráter socialista, são resultado de um momento histórico de ofensiva

imperialista e de um Brasil historicamente forjado de cima para baixo (e que eliminou

fisicamente entre 1964 e 1985 as grandes lideranças populares), mas não basta boa

vontade ou autopiedade, pois problemas como os que foram vivenciados no meio do ano

fazem parte da luta, não foi a primeira e nem será a última vez que tais situações terão

de ser enfrentadas. É necessário refletir e agir, pois o sucesso da esquerda brasileira na

41 LENIN, 1902. 42 A própria convocação dos atos do dia 11 de julho dava destaque muito maior às palavras “ato unificado

das centrais” do que a qualquer chamado de agitação. Um “Brasil mostra a tua cara” poderia ter, talvez, surtido melhores efeitos.

[-] www.sinaldemenos.org Ano 5, Edição Especial, 2013

110

atual conjuntura pode colocar a luta de classes de todo o mundo em outro patamar. Os

dilemas colocados por essa situação complexa e contraditória lembram o velho mito da

esfinge, pois a história está dizendo para a esquerda brasileira exatamente: “decifra-me

ou devoro-te”43.

Conclusão

O saldo das jornadas de junho e julho é até agora positivo. Em diversas cidades os

valores das tarifas de transporte público foram reduzidos e as manifestações

declaradamente de direita tiveram desempenho pífio. O movimento sindical se unificou

e vem insistindo em pautar reformas estruturais que, se forem hegemônicas entre as

massas, poderá alterar profundamente a estrutura política e social nacional.

Uma das grandes dificuldades para a transformação profunda do país é o baixo

nível cultural do povo, inclusive das supostas camadas intelectualizadas. O criticismo

preguiçoso que prevaleceu nas manifestações, apesar de representar um avanço e estar

logicamente ainda em gênese, vem há alguns anos reproduzindo o discurso do senso

comum e da grande mídia, sendo incapaz de separar o que pode servir ao oprimido e o

que pode servir ao opressor. Essa falta de formação política básica, inclusive das noções

de direita e esquerda ou dos partidos e entidades que compõe ou fazem oposição ao

governo, é um desafio que a esquerda tradicional precisa priorizar e enfrentar,

politizando a população.

A classe trabalhadora precisa hegemonizar a ascensão das massas no Brasil,

incorporando inclusive as habilidades de seus novos setores. Para isso, suas

organizações tradicionais precisam renovar a prática e a teoria. Além das questões

pontuais é preciso trabalhar em cima de propostas alternativas ao próprio sistema

capitalista, pois, por mais que tal ponto não esteja na ordem do dia, o desgaste do

Estado enquanto tal tem crescido e, como a história é cheia de surpresas, vale colocar a

discussão do problema, ainda que com muito tato para não se afastar ainda mais da

população.

43 Na mitologia grega a esfinge era um monstro que lançava um enigma para os viajantes do deserto

terminando com a frase citada e devorando literalmente os que falhavam em lhe responder corretamente.

[-] www.sinaldemenos.org Ano 5, Edição Especial, 2013

111

As jornadas de junho/ julho foram só a primeira etapa de um processo cíclico que

tende a voltar com grande força em 2014, com a Copa do Mundo, e em 2016, com as

Olimpíadas. Cabe à classe trabalhadora se organizar e conquistar não só vitórias, mas

também papel de destaque na atual fase de modernização vivida pelo Brasil, adquirindo,

talvez, a capacidade de ir até mais longe. Até lá, em datas de significado patriótico, como

o 7 de setembro e o 15 de novembro, as consequências de junho irão continuar a se

manifestar, acirrando a luta de classes no Brasil.