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Marta Sales: text and illustrations Nuno Viana: photography
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Vou começar de forma abrupta
Hoje fizeste-me pensar que sou bonita.És um bom espelho. Não vou conseguir desenhar-me, pensei.
Vi-me em perspectiva aérea,deitada na cama a olhar para as nuvens lá fora. Não me vi com nenhum defeito particular, só feitios.
A deformação física e o envelhecimento que queriam ser registados agora, para que no futuro se desvanecessem, desapareceram do meu olhar instantaneamente.
Comecei a desenhar,
Esforcei-me por me ver de fora num dado momento, num texto antigo, e ilustrá-lo.Queria representar um olhar em particular.
O meu próprio olhar naquele instante particular. Queria desenhar-me aos teus olhos,Conseguiste apanhá-lo tu que és outro, captaste o meu olhar e mais não posso adiantar.
Déjà Vu é um substantivo pluralQuem és tu?
Quem és tu agora?
Vieste-te para dentro dos meus olhos abertos.Eu gostei.
Continuo sem saber o que sinto por ti.Sei que na altura queria perceber,queria ver,ver-te sair, ver-te fora de ti.
Acabei por te ter dentro dos olhosardeu muito e ainda queima.
É perigoso ser-se boa a provocar déjà vu,andar às voltas numa rotunda pode ser divertidomas é também assustador.
Quem és tu agora?
Estás na minha cama,não estou a olhar para ti.Quem és tu?Não estou a pensar em ti.Sei muito bem o que é ser fiel,estou a olhar para mim.
És um espelho, como o são todos os outros.
És o meu espelho.Estou a ficar velha,é um prazer explorar o meu corpo contigo.
Quem és tu agora?
Quem fala?(...)
Toca o telefone.
Toma o café, logo se vê.
Quem é?
Bom dia!
Quem fala?
(...)
O Enfabulador
-
O meu pai tratava-o por tu, chamava-o o enfabulador.Eu trato-o na terceira pessoa.
O meu pai diría: - És muito chato, mantém-te vivo!
É importante para mim que esteja aqui, no café, sentado.
Há coisa de uns anos já eram velhos, o enfabulador e o meu pai,o primeiro mais que o segundo.
O papel escasseia por isso vou directa ao assunto.
Não sei que idade tem,a sua aparência não mudou desde a nossa primeira conversa.Eu tinha vinte e três anos e agora tenho trinta e três.
Disse-me que era cientista natural,especialista em paisagem.
Perguntei-lhe o que eram cristalizações.
Explicou-me.
Perguntei-lhe o que eram cristalizações no coração.
Perguntou-me o porquê da pergunta.
Não me lembro de responder.
Perguntou-me onde lêra sobre o assunto.
No Amor Louco do André Breton.
A flor dos Olivais
Se fosse homem sonharia fazer amor com esta pessoa até morrer com o meu corpo e com o dela.
A flor da idade usa meias de liga, um casaco branco muito bonito, um lenço de seda vermelha e uma flor no cabelo.
Tem um sorriso contagiante mas hoje estava triste.
Ás vezes mostra-me o seu cinto de ligas, alegre por não haver motivo de vergonha.
Não gostou do desenho, não gostou de se ver.Ai, tão velha que eu estou, disse e rogou que não o mostrasse a ninguém.
Reler cadernos
É como olhar para fotografias antigas,com os anos passamos a ver-nos melhor, com melhor cara,menos olheiras, menos rugas, menos papos.
Só que pensamos ao contrário.
Toda a gente sabe que o nosso olhar está de pernas para o ar.
Assim se passa contigo,de quem tenho apenas registos antigos.quem és tu agora? Não me interessa.
Estás aqui comigo.
Relêr cadernos
É como olhar para fotografias antigas,com os aono passamos a ver-nos melhor, com melhor cara,menos olheiras, menos rugas, menos papos.
Só que pensamos ao contrário.
Toda a gente sabe que o nosso olhar está de pernas para o ar.
Assim se passa contigo,de quem tenho apenas registos antigos.quem és tu agora? Não me interessa.
Estás aqui comigo.
Sentido de Orientaçãotu estás aqui
Qual é o espaço mais intímo em tua casa? O quarto ou a casa de banho?Qual é o teu espaço íntimo?
Vou parar
Enfiar-me na dobra desta página e rebolar num lençol branco e cor-de-sangue-seco.
Perdeste-te novamente
Esqueceste-te de manter consciente a tua rota deambulatória.Estavas com dificuldades no que toca a identificar referênciase não te apetecia vaguear.
Desceste a rua, o centro e os rios ficam sempre para baixo e para cima montes muitas vezes santos.
Conhecias a cidade mas esta estava maior, desproporcionada. Depois da clausura, sentias agorofobia (medo do agora), excesso de espaço, carência de limites.
O mapa físico era nítido, mas os lugares estranhos, irreconhecíveis.
Estavas livre, moravas num bairro antigo tinhas uma vista bonita para o rio.Estavas livre, moravas num bairro moderno e tinhas uma vista bonita para o rio.
Querias um banho e um cigarro.CASA CASA CASA
Se corresses a gritar CASA, talvez adormecesses nos braços de alguém.
As batidas cardíacas dos crocodilos são espaçadas e ordenadas.Tu não és um crocodilo.
Caminhas de mãos dadas atrás das costas,um gajo tem que manter a postura.
Passos largos, determinados, como se andasses na linha,o equilíbrio teme pelas suas formas quando alguém anda na linha.
Mantiveste-te firme e chegaste à tua porta. O cão ficou demente. Empurraste-o com o pé.
Abrir gavetas
Remexer nas gavetas para fazer as pazes com as coisas, enfrentar fragmentos de intimidade que,com o passar das horas e a escuridão dos cadernos fechados,se conseguiram apaziguar.
Poderá ser gutural, poderá ter que ser.
Os cigarros são como ponteiros
Agora que o relógio passou com a estabilidade de um comboioe tu escureceste.
Acendes a meia noite antes de dormir.Tic fósforo, Tac baforada.
Dura quantos cigarros o teu dia?Quantas reconciliações tens por fazer?
Vou dormir, antes que acenda outro cigarro para dilatar o tempo que ocupas em mim.
Há um mês que não desenho nada
Tenho medo de gastar folhas.
Não sei o que desenhar.
Ando à toa.
Qualquer bairro pode ser labiríntico, quando nos perdemos por dentro.
Porque desenhas?
Porque envelheço.
Tentativa
Tentar viver e trabalhar em Portugal é tentar nadar enrodilhado de algas. Duvidar acima de tudo da minha própria imaginação, dos desenhos e das palavras que no dia seguinte já não me parecem meus.
Porque as palavras das páginas anteriores foram sempre escritas por algum outro.
Tenta mais activamente
Desenha o futuro de memória,desenha uma porra de uma linha.Não te escondas na poesia,não percas tempo.
Antes o presente à vista que o passado imaginado,embora nada disto te sirva de bússola, ainda que percaso caderno, o mapa, as linhas guia. As coordenadas do envelhecimento não deixarão de mover-se como abelhas.
Na demência uma senhora aborda-te, Qual é o caminho para casa? Pergunta a sorrir.
Não sabia onde morava, nem sequer estava nos Olivais,naquela paragem do 708, estava refugiada mentalmenteem Campo de Ourique, onde vivera até casar. Tinha um cartão com a sua morada e um número de telefone de emergência.
As abelhas zumbem cada vez mais, a tristeza às vezes estoira, por causa dos seus ferrões.
O meu sonho era esquecer
Poder voltar atrás, refazer o mal feito.
O meu sonho é conversar com o passado num passeio feliz por não ter perspectivas.
O meu sonho é um agora sem consequências.
O meu sonho propaga-se pelo dia mas não atrapalha.
O meu sonho é a luz que me projecta por aí,
Eras miúdo
Pediste-me boleia.
Tu vais violar-me? Perguntei a meio do caminho.Não! Claro que não.
Impossibilidade de comunicação
Uma barreira de cimento cortava a estrada
Tiraste as chaves da ignição.Não queres morrer, pois não?Pensei um segundo.
Sem mais palavras,sujaste-me o casaco e largaste as chaves no chão.
Foi bom para ti? Perguntaste a sorrir.Não respondi. Arranquei e não te atropelei.
A conduzir e ainda a tremer
Liguei para ti,telefone desligado.
Liguei para ti,não atendeste.
Liguei para ti.Fui violada...Também, sais à procura de homens. Foi o que disseste.
Toca o telefone outra vez
Toma o café,
logo se vê...
Quem é?
Bom dia!
Quem fala?
Sou eu.
O que te dei é teu, não recordo tudo, não é possível refazer nada.
O meu amor ligou-me daqui para aquie eu fiquei ali a queimar os pés no pó dos cometas.
As tuas aspirações são gigantes
Quando mergulhas e persegues o que queres,quando te afastas de mim, o nosso barco balança um pouco.
No dia seguinte acordo ofegante e ainda submersa, inspirar um pouco de água é difícil mas não mata.
Os teus sonhos são desapegados dos meus mas fazem-me ser mais ambiciosa do que costumava ser.
Bendita genética
Quem conhece os meus pés, sabe que são pequenos e quem os conheça agora,saberá que estão em deformação.
Quem por acaso só conheça os pés da minha mãe,fique sabendo que eu tenho uns iguais.
As minhas irmãs têm-nos parecidos
já faço o desenho.
Mãe - Arruma o teu quarto!
Filha - Mãe, tenho tantas coisas que fazer...
Mãe - Começas numa ponta e acabas na outra.
Filha - O meu quarto não é uma linha.