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CÂMARA DOS DEPUTADOS
DEPARTAMENTO DE TAQUIGRAFIA, REVISÃO E REDAÇÃO
NÚCLEO DE REDAÇÃO FINAL EM COMISSÕES
TEXTO COM REDAÇÃO FINAL
COMISSÃO DE RELAÇÃO EXTERIORES E DE DEFESA NACIONALEVENTO: Seminário N°: 0742/02 DATA: 15/08/02INÍCIO: 09h16min TÉRMINO: 13h35min DURAÇÃO: 04h19minTEMPO DE GRAVAÇÃO: 04h12min PÁGINAS: 99 QUARTOS: 51REVISÃO: Anna Augusta, Carla, Cássia Regina, Cláudia Castro, Gilberto, Liz, Maria Teresa,Mesquita, Monica, Odilon, Tatiana, WaldecíriaSUPERVISÃO: Amanda, Graça, Joel, Márcia, Maria Luíza, Myrinha, Neusinha, ZuzuCONCATENAÇÃO: Márcia
DEPOENTE/CONVIDADO - QUALIFICAÇÃO
OVÍDIO DE ANDRADE MELO – Embaixador aposentado e ex-representante do Brasil emAngola;REGINA ZAPPA – Jornalista, filha de Ítalo Zappa;IRENE VIDA GALA – Chefe da Divisão de África II do Ministério das Relações Exteriores;JOSÉ FLÁVIO SOMBRA SARAIVA – Diretor da Assessoria de Assuntos Internacionais daUniversidade de Brasília — UnB;JOSÉ WALTER BAUTISTA VIDAL – Ex-Secretário de Política Externa, ex-secretário deTecnologia Industrial, professor, físico e membro do Conselho Nacional de DesenvolvimentoCientífico e Tecnológico;FLÁVIA PIOVESAN – Procuradora-Geral do Estado de São Paulo e professora de Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica — PUC, de São Paulo;MARCELO CASTRO – Economista da Pontifícia Universidade Católica — PUC, do Rio deJaneiro e Gerente de Renda Fixa do Banco BNP-Baribas;CARLOS HENRIQUE CARDIM – Diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais —IPRI, do Ministério das Relações Exteriores;LUIS FERNANDES – Diretor-Científico da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo àPesquisa no Rio de Janeiro — FAPERJ.
SUMÁRIO: Homenagem ao Embaixador Ovídio de Andrade Melo.Seminário Política Externa do Brasil para o Século XXI.Temas: “Perspectivas das relações do Brasil com o mundo lusófono” e “Desafiosinternacionais para o século XXI”.
OBSERVAÇÕES
A reunião esteve suspensa por alguns instantes.
CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINALNome: Comissão de Relação Exteriores e de Defesa NacionalNúmero: 0742/02 Data: 15/08/02
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O SR. PRESIDENTE (Deputado Aldo Rebelo) – Declaro abertos os trabalhos
da presente reunião, que, inicialmente, visa a homenagear o Sr. Embaixador Ovídio
Melo, por seu brilhante trabalho, e também a memória do Sr. Embaixador Ítalo
Zappa. Em seguida, retomaremos nossos trabalhos, com a instalação da Mesa
destinada a discutir a perspectiva das relações do Brasil com o mundo lusófano.
Convido o homenageado, Sr. Ovídio de Andrade Melo, embaixador
aposentado e ex-representante do nosso País em Luanda, Angola, para compor a
Mesa. (Palmas.)
Registro a honrosa presença dos familiares do Sr. Embaixador Ítalo Zappa,
Sr. Sérgio Zappa, filho; Sra. Cristina Zappa, filha; Sra. Ana Elisa, filha; o jovem João
Pedro, neto, e a jovem Laura, também neta. Convido para integrar a Mesa a Sra.
Regina Zappa aqui representando a família do homenageado. (Palmas.)
Convido também para compor a Mesa o Conselheiro Raul de Taunay,
representante do Ministério das Relações Exteriores e Subchefe da Assessoria de
Relações com o Congresso. (Palmas.)
Convido o Sr. Embaixador da República de Angola em Brasília, Embaixador
Extraordinário e Plenipotenciário Alberto Correia Neto. (Palmas.)
Convido também o Sr. Amadeu Paulo da Conceição, Embaixador em Brasília
da República de Moçambique. (Palmas.)
Convido ainda a Sra. Secretária-Chefe da Divisão da África II, Irene Vida
Gala, do Ministério das Relações Exteriores. (Palmas.)
Exmo. Sr. Embaixador Ovídio de Andrade Melo, Sra. Regina Zappa, senhores
embaixadores, senhores integrantes do corpo diplomático, minhas amigas e meus
amigos, Monteiro Lobato dizia que um país se faz com homens e livros. Há aqueles
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que têm a característica, o traço, diante da história e dos desafios, de querer dar
uma contribuição a mais na construção material e espiritual das nações.
A Comissão de Relações Exteriores procurou, no momento difícil da vida
nacional, carregado de desafios, de exigência de ousadia e de perseverança para
encetarmos o prosseguimento da tarefa dos nossos ancestrais, buscar não apenas
cumprir sua tarefa constitucional e regimental de produzir, no seu dia-a-dia, o
trabalho necessário ao andamento das relações do Congresso com o Poder
Executivo e com a sociedade e do nosso País com o mundo. A esse empenho
ordinário, cotidiano, a Comissão de Relações Exteriores procurou também oferecer
sua contribuição para elevar, neste momento de encruzilhada, a auto-estima do
nosso povo e do nosso País diante dos desafios que enfrentamos.
O Brasil, ao longo de sua história, produziu princípios fundamentais nas suas
relações internacionais, confirmou o princípio da solução pacífica dos conflitos, o
princípio da luta anticolonialista, o princípio da autodeterminação dos povos, o
princípio da igualdade entre os Estados e o princípio da defesa dos direitos
humanos.
Quando a defesa desses princípios ultrapassa a simples doutrina, a
convivência pacífica com o papel, com a letra da lei ou dos artigos dos nossos
tratados e da nossa Constituição, e tenta adentrar terreno difícil e espinhoso da
prática é que surgem os homens capazes e à altura da execução dos elevados
propósitos que marcaram a trajetória do nosso País como nação independente.
Esses homens surgiram exatamente nos momentos cruciais da vida nacional.
Esses homens têm traços de José Bonifácio de Andrada e Silva, o Patriarca, que, no
momento exato da luta pela consolidação da independência, percebia a necessidade
de firmar a presença do Brasil no cenário das nações livres e independentes.
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Esses homens surgem nos graves momentos, como no da consolidação da
República. Cito o Marechal Floriano Peixoto, cuja diplomacia, reverenciada na obra
do Embaixador Sergio Corrêa da Costa, demonstra também como em situação
gravíssima para a vida nacional, de luta pela superação de um regime e pela
consolidação de outro, soube ter a firmeza, a persistência e, ao mesmo tempo, a
sabedoria para firmar no espaço internacional a independência da nossa Pátria.
Nos anos 30, às vésperas do grande conflito mundial, os dirigentes brasileiros
souberam também defender e preservar os interesses nacionais.
Ainda antes dos anos 30, há a figura hoje centenária do Barão do Rio Branco.
Como Ministro das Relações Exteriores, S.Exa. soube também combinar
perseverança na defesa de uma solução pacífica para os litígios de fronteira. Com
firmeza e determinação defendeu a soberania da nossa Pátria.
Nos anos 60 e 70, o mundo vivia período de luta contra os impérios coloniais
em declínio em todo o planeta. O Brasil vivia o desafio de ampliar seus horizontes de
relações internacionais. Exatamente nesse momento, nessas circunstâncias, dois
homens cumpriram e carregaram sobre seus ombros frágeis, como diria o poeta, a
responsabilidade de interpretar e defender a dignidade, a soberania e a grandeza do
nosso País e do nosso povo.
Creio que, ao outorgar, por unanimidade, uma placa em homenagem ao
Embaixador Ovídio de Andrade Melo, como também ao Embaixador Ítalo Zappa, já
falecido, a Comissão de Relações Exteriores faz uma reverência à grandeza e à
dignidade do nosso País representadas na trajetória da vida e da carreira dos dois
embaixadores.
O Embaixador Ovídio de Andrade Melo estava servindo em Angola nos idos
de 1975. Chegava ao fim o império colonial português na África. O Brasil vivia sob
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regime de exceção, marcado pela radicalização ideológica e doutrinária de então.
Eram tempos da Guerra Fria, e chegavam a Luanda os destacamentos do
movimento popular pela libertação de Angola — guerrilha de caráter marxista.
Os Estados Unidos pressionavam para que nenhum Governo do mundo, e
muito menos seus aliados, reconhecessem a força militar e política que ocupava a
cidade de Luanda, Capital dessa colônia portuguesa e futura Capital da Angola livre.
Os Estados Unidos pressionavam contra o reconhecimento daquele Governo.
O Governo brasileiro enfrentava crise de indecisão. O Presidente Geisel tinha
contra o reconhecimento exatamente a opinião de seus três Ministros militares, do
Exército, da Marinha e da Aeronáutica. Em Luanda, ao afrontar a opinião de um
império, por um lado, e contrariar a posição dos mais fortes Ministros do Governo
brasileiro, por outro, nosso diplomata defendia a visão e os interesses do nosso
País.
Não sei se num momento daqueles, mesmo na sua posição de diplomata
frágil diante de contendores que tinham peso externo, como os Estados Unidos, e
interno, como os próprios Ministros militares do Governo Geisel, qualquer um que
analisasse a correlação de forças se inclinaria a dizer que as opiniões do
Embaixador Ovídio de Andrade estavam previamente derrotadas. Por circunstâncias
compreensíveis naquele período, não encontrariam, e não teriam como encontrar,
apoio do Congresso, da opinião pública ou da imprensa. Mas foi exatamente nesse
momento que a firmeza, a convicção, a perseverança e o amor à Pátria — o alento
mais forte nas ocasiões cruciais para os indivíduos, como dizia Frei Caneca —
levaram o Embaixador Ovídio de Andrade a manter e defender sua posição,
fazendo-a então prevalecer.
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O Brasil reconheceu o que era justo, reconheceu o que era da sua tradição, o
Brasil ultrapassou situações e uma correlação de forças conjunturalmente
desfavoráveis para manter sua tradição em defesa do fim dos impérios coloniais e
da libertação das colônias.
Creio que, apoiado nessa tradição, na sua firme convicção, no seu espírito
público e no seu patriotismo, se deveu a ele, dentre outros diplomatas nesse
episódio particular, a adoção de posição justa, posição que até hoje é reverenciada
pelo nosso país-irmão, posição que coroou o reconhecimento generoso ao esforço
de décadas de luta do povo angolano pela libertação.
Sr. Embaixador Ovídio de Andrade Melo, receba da Comissão de Relações
Exteriores e de Defesa Nacional, pela unanimidade de todos os partidos dela
integrantes e da Câmara dos Deputados — unanimidade que, na minha modesta
interpretação, representa o que há de mais puro, mais verdadeiro e mais generoso
nesta Comissão —, esta homenagem. Receba, portanto, da Casa do povo, da
Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional o reconhecimento da
sociedade e do Congresso por seu patriotismo. E que ele sirva de exemplo e de
estímulo ao nosso corpo diplomático e ao nosso País:
“Esta placa constitui uma justa homenagem da
Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional
da Câmara dos Deputados ao Embaixador Ovídio de
Andrade Melo, cuja carreira de relevantes serviços
prestados ao Brasil serve de modelo e de inspiração a
todos os brasileiros que com ousadia e altivez projetam a
imagem do País no exterior.
Brasília, 24 de abril do ano de 2002.” (Palmas.)
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Neste momento, concedo a palavra ao nosso homenageado. Tem V.Exa. a
palavra, Sr. Embaixador.
O SR. OVÍDIO DE ANDRADE MELO – É com profunda emoção que recebo
esta homenagem e relembro aqueles anos passados na preparação daquele
trabalho e o ano de 1975, passado totalmente em Angola, em meio às lutas que lá
aconteceram.
Sou do Vale do Paraíba, das terras de café, da cidade de Barra do Piraí.
Desde minha infância, senti a importância da contribuição africana para o
desenvolvimento e o crescimento do Brasil, justamente com aquela frase de
Bernardo Pereira de Vasconcelos: “A África civiliza o Brasil, porque a África, palavra
de Joaquim Nabuco, construiu também o Brasil”. Creio que isso se sentia
perfeitamente na região de onde venho, onde há descendência de africanos mais
numerosa até do que nos Estados da Bahia e de Minas Gerais.
Acredito que isso contribuiu em muito para que eu sentisse, e sentisse de
coração, o art. 3º, pelo qual Portugal reconhece nossa independência, mas com uma
concessão de filho para pai. Dom Pedro I promete que não intervirá em nada para
ajudar na independência das colônias africanas.
Eu achava isso verdadeiramente vergonhoso, porque representantes de
Moçambique, Angola e Brasil vinham ao Rio de Janeiro coordenar a sua posição
antes de conversar com Portugal, em Lisboa, sobre a colonização, sobre o reino
unido que então se formara.
Tudo isso fez com que eu e Zappa, criados juntos e amigos de infância,
estivéssemos absolutamente afinados desde o primeiro momento com a
descolonização e com a necessidade de o Itamaraty adotar atitude firme diante da
África.
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Na época, eu era cônsul-geral em Londres. Acompanhei a súbita mudança
com a Revolução dos Cravos, mas nada tinha a ver naquele momento com os
acontecimentos que se desenrolavam em Lisboa.
Na Inglaterra, pude assistir à revolta da população contra o Governo Salazar
e massacres que tropas portuguesas haviam feito na localidade de Wiriyamu, na
Província de Tete, em Moçambique. E o Governo de Marcelo Caetano — não era
Salazar, que havia caído — fez um desmentido que, verdadeiramente, enfureceu o
jornal Times, de Londres, porque se limitou a negar que a aldeia de Wiriyamu
existisse na Província de Tete. Foi preciso que geógrafos, historiadores e jornalistas
do Times comprovassem com fotografias horripilantes o que havia acontecido
naquela província, a fim de que Portugal aceitasse a acusação.
A visita de Marcelo Caetano a Londres foi então cheia de ignomínia, porque
foi vaiado, maltratado mesmo pelas autoridades londrinas.
Estava eu em Londres e vim ao Brasil de férias quando, para minha surpresa,
fui convidado por Ítalo Zappa, meu amigo de sempre, para tomar parte numa política
efetiva, que seria ir para a África e criar algo que, até então, não existira na história
da diplomacia mundial. Era uma idéia que o Zappa havia tido e fora aprovada pelos
altos níveis no Palácio. Tratava-se da criação de representação especial dos dois
países africanos que iam tornar-se independentes: Moçambique e Angola.
Essa representação tinha como finalidade preparar a cooperação que o Brasil
pretenderia dar a esses países quando ficassem de todo independentes. Mas ambos
entrariam, a partir daquele momento, no Tratado de Alvor, num período de transição,
em que todos os partidos, que eram, na verdade, movimentos guerrilheiros armados,
e o Governo português passavam a governar a colônia simultaneamente.
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Eu fui, tive conversas com líderes da Frente de Libertação de Moçambique —
FRELIMO e com todos os chefes de movimentos em Angola. Estive no interior de
Angola, onde falei com Savimbi. Estive em Kinshasa e falei com Holden Roberto. E
em Dar-es-Salam, onde tive longa entrevista com Agostinho Neto.
Vou narrar minha impressão sobre essas entrevistas. Desde logo, achei
Agostinho Neto um estadista, um homem que tinha visão do Brasil, da cooperação
que o País poderia dar a Angola quando se tornasse independente. Era um homem
que tinha visão de historiador, digamos, das afinidades que existiam entre Brasil e
Angola, na cultura em todos os seus aspectos, na culinária, na dança, na música,
enfim, onde quer que fôssemos buscar, encontraríamos afinidades entre Brasil e
Angola. Outros movimentos de Angola não representavam esse sentimento, essa
visão. Tinham uma visão oportunista.
Holden Roberto era sustentado pelos Estados Unidos. Era uma sustentação
inconveniente de certa maneira, porque, ao mesmo tempo em que o incitavam
verbalmente a atacar Portugal e também Angola, os Estados Unidos o continham,
por causa das bases de que precisavam em Açores. Então, era um “empurramento”,
que, ao mesmo tempo, significava contenção.
Também Savimbi era uma criação das tropas portuguesas, da polícia
portuguesa que, nos últimos tempos, fora destacado para a região leste de Angola e
combatia não os portugueses, mas o MPLA. Então, era como se fosse uma força
auxiliar das tropas portuguesas no combate ao MPLA.
E, naturalmente, o que Savimbi poderia esperar do Brasil? Que o Brasil lhe
desse dinheiro, armas, coisa que eu não tinha. O que o Brasil, o Zappa e o Itamaraty
tinham a oferecer eram equanimidade e neutralidade, e isso não interessava a esses
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senhores da guerra, que estavam lutando a partir de Kinshasa, ou a partir de Silva
Porto, atualmente Huambo.
Mas Agostinho Neto me impressionara. Chegando a Luanda, onde se
concentraram as forças dos partidos, tive oportunidade de conhecê-lo melhor e
também sua equipe de governo. Assim, verifiquei todos aqueles membros do
Governo com quem eu me relacionei, principalmente aqueles com que o Brasil
poderia ter cooperação mais intensa: Ministérios da Saúde, da Agricultura, da
Educação, enfim, aqueles Ministérios que, verdadeiramente, permitiriam desde logo
uma cooperação brasileira de cunho apolítico.
Em todos esses casos, eu tive excelente impressão da equipe do MPLA. Essa
impressão perdurou. Houve um momento por volta de julho, quando o MPLA
prevaleceu sobre os demais movimentos, ou seja, alguns Ministros dos outros
movimentos permaneceram inexplicavelmente num governo que já não era tripartite.
Os portugueses continuam com o Governador-Geral, dando certo endosso a
situação que já não era tripartite. Ou seja, o Acordo de Alvor foi para as nuvens,
desapareceu.
Na verdade, a situação em Angola se definiu com uma eleição a bala. O
MPLA expulsou das cidades as tropas do Zaire, que se disfarçavam como tropas de
Holden Roberto, e expulsou as tropas do Savimbi, que, na verdade, jogavam como
um pêndulo entre Holden Roberto e o MPLA, mas não se decidiam, buscavam
sempre uma fímbria de poder sem se decidir.
Nesse momento, houve hesitação de Portugal e ligeira hesitação do Brasil
também, como decorrência da hesitação portuguesa. Felizmente, vim ao Rio e tive a
oportunidade de fazer prevalecer posição que, independentemente do que Portugal
decidisse, levaria o Brasil a apoiar o vencedor.
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Na realidade, digamos francamente, a política brasileira era um pouco
machadiana: “Ao vencedor as batatas”. E quem ganhara a guerra em Angola, já em
julho, era o MPLA. Isso era extremamente importante, porque a independência viria
em 11 de novembro. Os portugueses confirmaram que, a despeito de o Acordo de
Alvor já não existir, a independência ocorreria em 11 de novembro, tal como
prometido originalmente. Então, de setembro a 11 de novembro, teriam muito pouco
tempo para que houvesse qualquer mudança de política brasileira. Não haveria
tempo para tal, e fiz sentir isso ao Itamaraty. Era preciso manter a política como
estava e reconhecer Angola.
Nesse entretempo, ocorreram fatos verdadeiramente surpreendentes. A África
do Sul, combalida por sanções, vilipendiada pelo detestável regime de apartheid
que adotava, armou uma agressão com tanques contra Angola, contra o Governo do
MPLA. Houve, então, uma situação terrível, em que tropas sul-africanas, com 200
tanques Panhart, o último modelo francês, invadiram Angola e a divisa com o litoral
na região de Benguela e foram subindo pelo litoral para chegar a Luanda antes de
11 de novembro, a data da independência.
Simultaneamente, tropas do Zaire, com mercenários da CIA recrutados
principalmente na Inglaterra, onde eu vivera, e com o apoio de Holden Roberto, do
FNLA e suas pequenas tropas apoiadas pelos chineses, moveram-se do norte do
Zaire em direção a Luanda. Ao norte estavam a 25 quilômetros, em Caxito,
ameaçando o fornecimento de água para Luanda, que vinha de Quifangondo. Ao sul
já haviam tomado todos os portos: Benguela, Lobito. Já estavam perto de Novo
Redondo, o porto mais próximo de Luanda. Não havia por onde o MPLA receber
suprimentos, armas, comida, o que fosse, dos aliados socialistas.
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Eu, o único representante, estava contando com colaboradores excelentes,
como Raul Taunay, jovem Secretário na época. Estava numa cidade sitiada, onde
faltava comida, água e luz de vez em quando e onde as dificuldades de vida eram
tremendas. Somente a organização de minha mulher conseguiu fazer com que
aquelas dezesseis pessoas que estavam comigo pudessem manter-se durante um
ano em Angola, porque ela montou um verdadeiro armazém e um verdadeiro
hospital. De manhã, saía distribuindo pastilhas. Cuidávamos da água com
permanganato de potássio, porque o cloro havia acabado. Guardávamos a água na
banheira para beber. Tivemos de blindar algumas janelas mais expostas a tiroteios,
e mesmo assim a casa do consulado foi metralhada de alto a baixo. Houve vários
combates nas imediações, até que a situação se definiu num combate fortíssimo,
que durou duas ou três semanas e em que as tropas da FNLA e da UNITA foram
expulsas de Angola.
Nesse momento, o que havia de vital era a resistência de Angola, das tropas
do MPLA e do povo de Angola. Aqueles ataques que vinham do Norte e do Sul.
Minha convicção, lidando com o povo e com os militares angolanos, era de que os
ataques seriam rechaçados com mais ou menos tempo, porque o povo não se
amedrontava. Os militares angolanos diziam algo absolutamente verdadeiro: um
ataque de tanques é algo tenebroso, mas ninguém mora dentro de um tanque. É
preciso sair dele para comer, dormir e fazer as suas necessidades, e simplesmente
se pode morrer a facadas. Era essa a disposição do povo angolano com respeito às
invasões sul-africanas e às invasões zairenses contra o MPLA.
Eu tinha a minha convicção íntima, pouco a pouco expressada no Itamaraty,
de que o MPLA prevaleceria em guerra, como prevalecera em tempos de relativa
paz. Ou seja, aquilo que antes fora uma guerra civil entre pseudopartidos para
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disputar, por eleições teóricas, o Governo de Angola tornara-se um episódio da
Guerra Fria, com a invasão sul-africana. E a imprensa internacional descaradamente
a ocultava, pois, durante dois meses, desde que saíram os primeiros tanques da
Namíbia, na África do Sul, ocultou-se que isso era uma invasão estrangeira
desproporcional às forças de Angola. Disfarçava-se isso como se fosse uma
ofensiva fulminante da UNITA e do FNLA, também no Norte. Os auxílios que as
tropas zairenses e a CIA, com os seus mercenários, davam a Holden Roberto não
eram em absoluto noticiados pela imprensa internacional.
Era uma posição absolutamente infeliz aquela em que eu estava, tentando
informar a verdade, como era também infeliz a situação dos poucos jornalistas
brasileiros que iam lá verificar a realidade. As manchetes dos jornais foram
terceirizadas no Brasil, copiadas das manchetes da imprensa internacional, que
simplesmente ocultava e mentia no tocante à realidade. Não havia presença cubana,
não havia presença alemã oriental, não havia presença russa. Poderia haver, no
meio dos matos, conselheiros militares que pudessem dar conselhos a respeito do
uso de uma ou outra arma, mas não havia, em massa, presença de tropas
comunistas nessa luta.
A grande surpresa é que, quando chegou 11 de novembro, tivemos as festas
de independência, e o Brasil se dispôs a reconhecer Angola. Compareci a todas as
festas numa cidade sitiada, ameaçada de bombardeios, ameaçada de invasão pelo
Sul e pelo Norte, e, nesse momento, houve a invasão cubana. Não pude saber dela
porque, no mesmo momento em que o Governador português se retirava, sem glória
e sem honra nenhuma, num porto às escuras, no mesmo momento em que
Agostinho Neto assumia e declarava a independência de Angola, no aeroporto, às
escuras, os cubanos desembarcavam três aviões britânicos com cerca de 150
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artilheiros e armas necessárias para resistir e para perfurar a blindagem dos
tanques, algo até então impossível para as lutas e as armas disponíveis para os
guerrilheiros.
Foi nesse momento decisivo que a África do Sul experimentou uma derrota
acachapante e que Holden Roberto, que já vinha com as suas tropas civis para
assumir o Governo e tentava aproximar-se de Luanda para esse fim, também foi
repelido e mandado para o Norte de Angola.
Essa foi a situação que vivi naquele país, e, já depois disso, a República de
Angola foi criada. A Embaixada do Brasil, que eu houvera montado durante esse
período de guerra — pois cabia-me também montar a embaixada e tê-la preparada
para funcionar durante o período de guerra —, estava pronta para funcionar.
Dispunha de telex, serviço comercial, enfim, tinha tudo. Era a única embaixada, não
havia nenhuma outra. A embaixada inglesa fugira de Luanda. O embaixador
americano telefonou-me nos últimos momentos e disse: “Estou indo embora. Sinto
muito. Você vai ficar? Sabe qual é a posição do Brasil?” Eu disse: “Presumo que o
Brasil vá reconhecer”. Ele disse: “Compreendo perfeitamente a posição do Brasil.”
Esse embaixador entrou em desgraça, porque as informações que ele dava
eram semelhantes às minhas, e o Kissinger não gostava dessas informações. O
Nathaniel Davies, Chefe do Departamento da África, que tinha sido embaixador no
Chile, era contrário à intervenção americana e dizia: “Reconheçam o MPLA o quanto
antes. Façam o que o Brasil está fazendo”. Também brigou com Kissinger e teve a
carreira truncada.
Também tive minha carreira truncada pelos brasileiros. Eu, que até então
tinha estado na Secretaria-Geral, tive postos importantes, chefias de divisão, postos
agradáveis na Argentina e em Washington, passei a ter postos extremamente
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turísticos, bastante agradáveis, mas sem grande peso no contexto da política
brasileira. E passei a prezar imediatamente o Congresso, porque fui Embaixador na
Tailândia e cumulativamente fui Embaixador na Malásia e em Cingapura, depois de
Angola. E nunca passei pelo Senado. O Itamaraty tirou-me do Senado, alegando
que eu era um mero cônsul — eu era Cônsul Geral em Londres —, sem importância,
e que ia para um país sem importância. Então, dos países com os quais tínhamos
relações, a Tailândia passava a ser sem importância, Cingapura e a Malásia
igualmente. E o Senado me dispensou.
Cinco anos depois, fui para a Jamaica, e o mesmo truque foi aplicado. O
Vasco Marins, encarregado de relações pelo Congresso, declarou no Jornal do
Brasil que foi encarregado pelo Silveirinha, pelo Guerreiro, de explicar ao Senado
que eu era um mero cônsul ou um embaixador que vinha da Tailândia, sem
nenhuma importância; ia para a Jamaica, outro país sem importância, e não
precisava ser sabatinado. Com o maior cinismo, ele disse que eu não podia ser
sabatinado, porque, se o fosse, a sabatina começaria na Tailândia e terminaria em
Angola, ou começaria na Jamaica e terminaria em Angola. E assim seria
forçosamente. Devo dizer com franqueza que vivi 76 anos até hoje, dos quais 50
anos trabalhando no Itamaraty. Mas se houve um ano em que aprendi, em que vivi
intensamente, foi o de 1975, que passei em Angola. Aprendi sobre a vida, sobre o
Itamaraty, sobre política, dez vezes mais do que tudo o que fiz no Itamaraty nesses
anos todos de vida.
Quero agradecer à Comissão a bondade de me dar essa placa, que guardarei
com carinho extraordinário. Verdadeiramente, acho excepcional que a Comissão e o
Senado procurem revitalizar este princípio básico da democracia: a fiscalização do
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Ministério das Relações Exteriores e de todos os Ministérios, para termos relações
externas condizentes com a importância do Brasil.
Muito obrigado. (Palmas prolongadas.)
O SR. PRESIDENTE (Deputado Aldo Rebelo) – Agradecemos ao estimado
Embaixador Ovídio de Andrade Melo as palavras. O seu depoimento é o testemunho
de justeza da singela homenagem que esta Comissão lhe presta.
Faremos, agora, a entrega da placa em homenagem ao Embaixador Ítalo
Zappa, outro grande embaixador do nosso País. Não tive oportunidade de conhecê-
lo pessoalmente. Conheci sua obra e sei o respeito que lhe é dedicado no mundo
diplomático e no Congresso Nacional.
O Embaixador Ítalo Zappa era homem dedicado à vida pública, ao Estado, e
tinha seu pensamento e sua ação voltados exatamente para os interesses maiores
do nosso País. Ainda jovem, foi Secretário-Geral do Ministério das Relações
Exteriores, mas destacou-se nas áreas de fronteira das nossas relações
internacionais. Onde o Brasil buscava ampliar seus horizontes políticos, geopolíticos,
comerciais e econômicos, lá estava o Embaixador Ítalo Zappa. Ele esteve em
Moçambique, em Cuba, na China e no Vietnã, seu último posto, e em todos esses
países criou as condições para as relações do Brasil com essas nações. Em todas
elas, foi nosso primeiro Embaixador e, como tal, não criava as condições apenas
para as relações formais entre Estados, via a diplomacia como uma atividade
multidisciplinar e não apenas entre governantes, entre Estados. Era também uma
relação entre povos. Ele somava essa visão de Estado também a um profundo
espírito democrático no exercício de suas funções.
É possível encontrar ainda hoje pessoas que se depararam com as atividades
do Embaixador Ítalo Zappa nos tempos difíceis do regime de exceção.
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Principalmente em Moçambique, colhemos vários desses depoimentos. Era comum
ativistas de esquerda, militantes de partidos de contestação ao Governo da época,
sofrerem restrições em repartições consulares do Brasil. Recentemente, o próprio
Senador José Serra fez publicamente queixa nesse sentido. Mas aqueles que viviam
em Moçambique registram que essas dificuldades não existiam enquanto lá estava o
Embaixador Ítalo Zappa.
Em 1968, recebi de uma funcionária cassada do Ministério das Relações
Exteriores depoimento singelo. Presa em processo que a ligava a uma organização
de esquerda e submetida ao tratamento comum na época, a constrangimentos e
vexames, recebeu ela a visita do então Secretário-Geral do Itamaraty, Embaixador
Ítalo Zappa.
Essa jovem, afastada das suas funções no final dos anos 60, só retornou ao
Itamaraty no início dos anos 90. Ela me disse que, depois de décadas sem ver o
Embaixador Ítalo Zappa, não teve dificuldade de reconhecê-lo no Ministério pela
forma como segurava seu inseparável cigarro. Procurou-o e disse: “Estou, neste
momento, depois de décadas, retomando minhas atividades no Itamaraty depois da
anistia. O senhor, como está?” Ele respondeu: “Estou assumindo a Embaixada do
Brasil no Vietnã. Você quer ir para lá nos ajudar?” Ela prontamente disse que queria.
Quando estive no Vietnã, o Embaixador Zappa já estava doente. Afastado de
suas funções, tinha nessa funcionária a expressão mais elevada da nossa
diplomacia.
Essa jovem optou por não viver na área destinada à residência dos
diplomatas e foi morar num bairro popular de Hanói. Ali fazia suas relações com as
famílias, as pessoas, e, ao lado dos funcionários da Embaixada de Cuba, promovia
grandes atividades em nome do Brasil.
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Portanto, prezados familiares, a Comissão de Relações Exteriores presta esta
homenagem mais do que justa ao Embaixador, ao homem de Estado. Ela presta
esta homenagem também a um estilo, a uma forma de encarar a vida pública, à
lealdade, à dedicação, ao espírito que levou o diplomata a ter sempre as razões do
seu povo e do seu País.
A Comissão de Relações Exteriores presta essa singela homenagem ao
Embaixador Ítalo Zappa exatamente porque vê nele a expressão mais pura e mais
elevada do diplomata, do homem público e do homem de Estado.
Leio o que diz a placa:
“Esta placa simboliza o sentimento de apreço,
respeito e consideração da Comissão de Relações
Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos
Deputados à memória do Embaixador Ítalo Zappa,
diplomata exemplar que marcou sua trajetória profissional
por atitudes pioneiras e corajosas na defesa dos mais
altos interesses do Brasil.
Brasília, abril de 2002.” (Palmas.)
A SRA. REGINA ZAPPA – Evidentemente, estou muito emocionada. Creio
que meus irmãos também estão. Apenas quero agradecer ao Deputado Aldo
Rebelo, à Comissão de Relações Exteriores e a todos os presentes esta
homenagem ao meu pai justamente no momento em que se debate temas
importantes do cenário internacional.
Quero cumprimentar também o Embaixador Ovídio de Andrade Melo pela
justíssima homenagem. Conheço o embaixador desde que nasci, por conta da sua
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amizade com meu pai. Lembro-me das longas conversas que tinham, as quais tive o
privilégio de ouvir calada, sentada num canto.
Em meu nome e no dos meus irmãos, quero dizer que é uma honra para nós
estarmos aqui recebendo esta homenagem. Tenho certeza de que meu pai gostaria
de estar aqui agora recebendo essa homenagem e também participando da
discussão dessas idéias.
É muito difícil para mim falar sobre ele. Posso dizer apenas que pude
acompanhar de dentro de casa a retidão e a seriedade com as quais conduziu sua
vida e seu trabalho. Aprendi muito com ele. Ajudou-me ao longo da minha vida
pessoal e de jornalista seu senso de justiça e de liberdade.
Ele tinha paixão por este País que abraçou — uma vez que nasceu na Itália,
veio para o Brasil com os pais aos 2 anos e optou por ser brasileiro aos 18 anos —
com amor e dedicação.
Quero lembrar que meu pai costumava dizer que o Brasil, apesar de às vezes
trilhar caminhos tortuosos e difíceis, estava condenado à grandeza e nunca poderá
fugir desse seu destino.
Espero de coração que ele esteja certo.
Muito obrigada a todos. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Deputado Aldo Rebelo) – Senhoras e senhores,
prezados amigos, Embaixador Ovídio de Andrade Melo, prezada amiga Regina, Srs.
Embaixadores, espero que a trajetória de homens públicos como o Embaixador
Ovídio e o Embaixador Ítalo Zappa ilumine os caminhos difíceis do nosso País e do
nosso povo.
Muito obrigado. (Palmas.)
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O SR. PRESIDENTE (Deputado Aldo Rebelo) – Senhoras e senhores,
passamos à composição da Mesa destinada a debater o tema “As Perspectivas das
Relações do Brasil com o Mundo Lusófono”, que tem como expositores o Prof. José
Flávio Sombra Saraiva, Diretor do Instituto Brasileiro e Relações Internacionais e
Chefe da Assessoria de Assuntos Internacionais da Universidade de Brasília, e a
Sra. Irene Vida Gala, Chefe da Divisão de África II do Ministério das Relações
Exteriores.
Comunico que, em função da escassez de tempo, as intervenções terão o
tempo de 20 minutos.
Iniciaremos o painel desta manhã com a exposição da Sra. Irene Vida Gala, a
quem passo a palavra.
A SRA. IRENE VIDA GALA – Bom dia a todos, em especial ao Embaixador
Ovídio de Andrade Melo.
É um privilégio para mim, que trabalho há 15 anos com a África no Itamaraty,
ter ouvido seu testemunho depois de tanto ter lido a respeito do trabalho que S.Exa.
fez em Angola.
Cumprimento de forma especial a família do Embaixador Ítalo Zappa, a quem
também não tive o privilégio de conhecer, mas sinto-me muito satisfeita por ter
acompanhado a cerimônia em sua homenagem.
É muito importante situar nossa reflexão sobre as perspecti vas da relação do
Brasil com o mundo lusófono dentro até de uma reflexão sobre o que a Constituição
brasileira diz a propósito das relações exteriores do Brasil.
Quando a atual Constituição foi elaborada, houve grande discussão sobre
projetos de integração com a América Latina, em especial com a América do Sul. As
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relações do Brasil com a América do Sul ficaram consagradas como meta da política
externa brasileira.
Posso dizer — é claro que submeto isso a avaliações de outros convidados —
que se a Constituição brasileira fosse elaborada hoje, haveria referência ao
compromisso de relações privilegiadas com os países de língua portuguesa.
Estou convencida de que, desde os anos 60, quando as relações do Brasil
com a África começam sob a égide da política externa independente do Presidente
Jânio Quadros, até os anos 90, quando surgiu a CPLP, esse foi o grande momento
das relações do Brasil com os países de língua portuguesa. Nesse período, a
relação do Brasil com os países africanos, em especial com os países africanos de
língua portuguesa, ganhou densidade e sobretudo maior razão de ser.
Então, a lógica que aproxima o Brasil dos países africanos, em particular os
de língua portuguesa, remonta o final dos anos 90 e o início do século XXI.
Dito isso, que considero como introdução, refiro que Portugal e Timor Leste
são também países do mundo lusófono, mas neste momento os retiro da avaliação
que vou fazer. No final, poderei fazer alguns comentários sobre Portugal e Timor.
É importante pensarmos que a relação e as perspectivas do Brasil com o
mundo lusófono sejam consideradas de acordo com o histórico da sua relação com
esses países. Se estamos aqui para discutir perspectivas, precisamos ver como
essas relações se reinauguraram a partir dos anos 90, porque, nos anos 60 e 70 e,
em certa medida, nos anos 80, a presença do Brasil no exterior era outra. Houve
uma revisão do que era considerado interesse brasileiro.
No início dos anos 90, começou a desenhar-se outro quadro que não o de
Guerra Fria. A partir do momento em que a Guerra Fria deixa de ser determinante
das ligações entre os países do sul e as relações leste-oeste convertem-se em
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norte-sul, o Brasil precisa situar-se nesse novo contexto, no qual imagino devamos
pensar em referência às perspectivas do Brasil com os países do mundo lusófono,
como Portugal e Timor.
Esse novo contexto nos traz algumas dúvidas. O Embaixador Araújo Castro
participou do primeiro dia do seminário e disse que a política externa brasileira está
há alguns anos orientada para ter presença importante no sistema internacional
multilateral. Hoje, o Brasil faz questão de estar presente em todos os Legislativos
internacionais, porque quer participar das decisões sobre o sistema internacional.
Portanto, para a defesa de seus interesses, é essencial que ele participe das
discussões de temas como plataforma continental, comunicações, enfim, em todos
os regimes — e o Embaixador foi bastante claro a esse respeito.
O sistema internacional é bastante democrático quanto à participação dos
países, que são eleitos para os vários foros por meio de votação. Na maioria dos
casos, com exceção de Fundo Monetário Internacional ou semelhantes, são os votos
que podem levar o Brasil ao Legislativo internacional.
Qual é o grande conjunto de eleitores do Brasil no cenário internacional?
Essencialmente, países africanos, em número de 53 ou 54, que são tradicionais
eleitores do Brasil. Um parêntese: estou falando do conjunto africano porque a
relação do Brasil com os lusófonos tem de ser vista no contexto geral da África
Continental.
Como dizia, o Brasil tem na África um conjunto de eleitores tradicionais, a fim
de que possa ser eleito para o Legislativo internacional. Então, independente do que
sejam valores do comércio, do que sejam relações políticas bilaterais mais estreitas,
temos um grande elemento que justifica a aproximação com o conjunto africano, que
é a tentativa do Brasil de manter presença de peso nos organismos internacionais.
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Se considerarmos o número de votos que o Brasil consegue na América
Latina, que é sua outra vizinhança imediata, com aquele que pode conseguir na
África, esta tem um peso específico bastante grande e praticamente concede mais
do que o dobro de votos.
Os votos foram construídos historicamente pela relação cultural, pela
proximidade ética e pelos vínculos históricos. Hoje em dia, isso evolui menos para
uma questão tradicional e mais para uma questão temática. O Brasil é candidato, por
exemplo, ao Conselho de Segurança para 2004 e 2005 e já enviou nota aos países
solicitando apoio à candidatura brasileira.
É bastante interessante que, na nota, o Governo brasileiro diz que gostaria de
contar com o apoio dos países em desenvolvimento — refiro-me particularmente às
notas enviadas aos africanos. O Governo brasileiro diz: ”Nós, Brasil, gostaríamos de
contar com o apoio desse governo, porque o Brasil representará, no Conselho de
Segurança, os interesses desse conjunto de países em desenvolvimento.” Esse é
um compromisso que o Brasil faz.
Pela confiança que os outros países têm na capacidade do Brasil de defender
linhas de política externa orientadas para a defesa dos interesses dos países do sul
é que o Brasil vai conseguir votos. Essa é um pouco a relação da África com o
Brasil.
Talvez esteja fazendo uma leitura menos tradicional, porque o mais comum
são as pessoas se referirem às questões comerciais, tal como o faz a imprensa ou
mesmo os analistas.
Como o Brasil não tem recursos humanos, para não falar de recursos
financeiros — afinal, somos apenas mil diplomatas para um conjunto de países no
mundo inteiro —, e não é capaz de estar presente em toda a África, o que parece
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bastante claro na política externa brasileira nos anos 90 é que o País consegue
estabelecer algumas pontes de presença no continente africano. É a partir dessa
visão que o Itamaraty tem buscado estreitar as relações com o continente africano.
Essa é uma leitura bastante atualizada das relações internacionais, porque o
Itamaraty deixa de ver os países africanos do ponto de vista exclusivamente bilateral
e passa a entendê-los como regiões. Essa é a tendência. A tendência hoje são
blocos não só econômicos, mas também de identidade, de interesses comuns. Os
interesses tratados individualmente vêm perdendo expressão no final do século XX e
princípio do século XXI.
O que o Brasil tem hoje? Relações privilegiadas com a África do Sul.
Recentemente, a Ministra desse país esteve no Brasil para desenvolver parcerias
econômicas e tentar negociar um acordo entre o MERCOSUL e a África do Sul. O
Brasil também tem buscado estreitar relações com os países da África do Norte, os
países árabes, com a Nigéria e com o Senegal, cujo Chanceler esteve recentemente
no Brasil, na costa ocidental. Mas o Brasil não está em toda a África. Onde o Brasil
de fato está é na África portuguesa, nas ex-colônias. É preciso ver nossa presença
na África portuguesa sob um ângulo geográfico. Dos cinco países de língua
portuguesa na África, três estão na costa ocidental; um está na costa atlântica da
África Austral e outro na costa índica da África Austral. Os dois principais países da
África de língua portuguesa, exatamente Angola e Moçambique, fazem parte do
conjunto mais dinâmico da África, a África Austral. Se o Brasil mantém relações
absolutamente privilegiadas com Angola e Moçambique — não vou aqui discutir de
maneira pormenorizada, porque tudo está no texto — e tem hoje um parceiro
bastante importante na África Austral, que é a África do Sul, o que temos?
Importante presença na área mais dinâmica do continente africano, o sul da África.
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Isso dá a dinâmica de uma política externa feita com visão de futuro e que se está
buscando fazer na CPLP.
Quando surge a CPLP? Ela surge nos anos 90, após o fim do contexto da
Guerra Fria. Nos anos 70, havia uma luta anticolonial, apesar dos problemas nas ex-
colônias portuguesas, e, a partir do fim da colonização, o Brasil engaja-se numa
posição de princípio anticolonial, sobretudo no que se refere à África do Sul e à
Namíbia, contra o apartheid. Ao acabar a Guerra Fria, o Brasil perde seu discurso.
Nós, de alguma forma, tínhamos relações comerciais que também se enfraqueceram
em função do fim das linhas de crédito, do endividamento do Brasil, do
endividamento da África. Portanto, o que acontece? Os anos 90 são uma década
que se inicia sem um tema, vamos dizer assim, de política externa que se pretende
continental, com substância e que não constrói relações país a país.
A CPLP surge a partir da presença não de um homem, mas de um processo
histórico, embora, sem dúvida alguma, a presença do Embaixador José Aparecido
de Oliveira, já como Ministro da Cultura, tenha sido bastante importante. Costumo
dizer que ele é o político brasileiro que mais visitou os países de língua portuguesa e
talvez o único que tenha conhecido os cinco países, faltando apenas mandá-lo ao
Timor — também para essa questão, ele teve importante posição. Enfim, o fato é
que a CPLP surge num momento em que há espaço para essa nova política de
aproximação.
Quando, há pouco, falava da visualização geográfica da CPLP, referia-me à
África Ocidental, essencialmente francesa com alguma presença inglesa; também a
Nigéria é um grande país. A presença de países de língua portuguesa na África
Ocidental permite ao Brasil eleger alguns para irradiar respeito pela sua Diplomacia.
E o que faz o Brasil? Procura, com essas nações, realizar trabalho que não se
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resume às fronteiras nacionais. A idéia é a de mostrar aos demais países que o
Brasil tem importante política do ponto de vista de substância.
Cito o exemplo da África Ocidental com relação à dívida externa. O Brasil
perdoou 95% da dívida de Moçambique, o que significou, em 2000, em termos de
contas nacionais, algo ao redor de 300 milhões de dólares. Para os senhores terem
uma idéia, na última reunião do G-8, a Inglaterra anunciou plano de redução da
dívida externa de todos os países africanos para os próximos 12 ou 15 anos, e essa
dívida chega à casa dos 700 milhões de dólares. O Brasil fez metade disso de uma
única vez e sem nenhum anúncio, ou seja, temos uma política muito mais
consistente do que anunciamos. Talvez pudéssemos ser mais extrovertidos na forma
de anunciar o trabalho que o Governo brasileiro faz na África.
Outro caso na África Ocidental diz respeito ao perdão, por parte do Brasil, de
significativa parte da dívida externa de Cabo Verde. Nosso País está renegociando a
dívida externa da Guiné Bissau. Quando me refiro a esses exemplos, bastante
importantes no caso da dívida externa, estou querendo dizer que o Brasil adota
nesses países política que dá seriedade à sua política externa. Quando o nosso
País declara às demais nações que as defenderá no Conselho de Segurança, nos
vários assentos que já ocupa ou nos que venha a ocupar no Legislativo
Internacional, quer dizer o seguinte: “Eu faço políticas que de alguma forma
procuram ir ao encontro dos interesses de todos”.
Como só disponho de mais cinco minutos para falar especificamente das
perspectivas, quero lembrar que as perspectivas da política externa brasileira para o
século XXI dependem de condicionantes externas e internas. As condicionantes
externas têm bastante a ver com a própria evolução dos países africanos. Estes
estão buscando um trabalho de consolidação democrática, de correção das suas
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próprias economias, porque já fizeram o mea-culpa de um modelo de
desenvolvimento que também não os ajudou. Essas condicionantes externas
também têm a ver com a própria evolução do sistema internacional e em que medida
as ex-metrópoles, associadas aos Estados Unidos, deixarão aos países africanos a
liberdade de estabelecer relações com o Brasil.
Nosso País, é importante que se diga, ao buscar uma relação com a África,
tem de se bater com as grandes potências que, em termos sistêmicos, fazem uma
política de inviabilização das linhas de diálogo Sul—Sul.
Além dessas condicionantes externas, temos talvez o mais importante: as
condicionantes internas. Minha impressão é a de que o Governo brasileiro,
sobretudo ao longo dos últimos dez anos, na década de 90 e início do século XXI,
tem realizado política bastante consistente. É importante afirmar — e trabalho com
isso já há algum tempo — que há fortíssima e ampla convergência de setores da
sociedade civil brasileira em prol da política africana. Talvez haja setores que
gostariam de ver o Brasil mais agressivo nessa ou naquela área, mas todos
concordam com o fato de que o País está na linha certa quando procura aproximar-
se desses países. Quando digo todos, refiro-me ao setor empresarial, que tem
curiosidade em saber como obter novos mercados, estabelecer joint ventures e
mudar sua rota de investimento, de forma a, mediante concessões do sistema
Norte—Sul, ter melhor acesso aos mercados europeus.
Grande número de agentes técnicos brasileiros, como, por exemplo, o SENAI
e a FIOCRUZ, têm interesse nisso, porque estão aprendendo a fazer cooperação
internacional nos países de língua portuguesa.
Existem ainda algumas condicionantes internas bastante importantes, como a
imprensa. O Itamaraty navega muito sozinho, e a imprensa deixa muito a desejar
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enquanto parceira que conduz o Brasil nessa política, que me parece bastante
legítima, de aproximação com a África, tendo em vista os interesses que mencionei
no princípio.
O Congresso Nacional tem sido extraordinário parceiro do Brasil no que se
refere às relações com os países de língua portuguesa. Faço especial
agradecimento ao Deputado Aldo Rebelo e aos demais Deputados e Senadores
que, com suas emendas, conseguiram recursos adicionais do Orçamento da União
para promover a cooperação com os países de língua portuguesa. Essas nações
são as únicas que têm rubrica específica para cooperação no Orçamento nacional.
E, como o Orçamento é prioridade, temos aí clara manifestação de que o Congresso
considera prioridade os países de língua portuguesa.
Por fim, encontram-se os agentes políticos do Executivo. A última reunião da
CPLP foi importante para mostrar o engajamento do Presidente Fernando Henrique,
agora Presidente da Comunidade. A sensação que nós, do Itamaraty, temos é a de
que os demais agentes políticos da Esplanada dos Ministérios perceberam que a
relação com a África de língua portuguesa é importante e deve ser compromisso da
política brasileira.
Dito isso, refiro-me apenas ao Timor Leste e a Portugal. A relação com
Portugal — e tenho impressão de que o Prof. Flávio Saraiva irá falar um pouco mais
sobre isso — é bastante amadurecida, mas, no que se refere aos países de língua
portuguesa, em alguns momentos, passa por certas dificuldades. A relação Brasil—
Portugal, no tocante à África de língua portuguesa, não é tão convergente. Com
relação ao Timor, porém, foi um acréscimo dos mais felizes. Tenho a percepção de
que sua luta por independência trouxe para a sociedade civil brasileira, para nosso
consciente coletivo, a idéia de que se pode fazer uma política externa com vocação
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a promover a língua portuguesa, não pelo que ela representa como patrimônio, mas
pelo que ela representa como produto de exportação de valores, como os já
referidos anteriormente: soberania e igualdade entre os povos.
Nesse aspecto, a CPLP é um grande exemplo. O Timor, que acabou de entrar
para a CPLP, tem direito a voto. Todos falam com a mesma voz. Trata-se de
exercício da diplomacia multilateral para um país que tem apenas três meses no
cenário internacional. A CPLP dá às novas lideranças timorenses oportunidade de
fazer esse exercício de diplomacia multilateral. Para nós, já antigos nesse cenário,
Timor dá nova referência, como disse o Primeiro-Ministro português na abertura da
Comunidade, de que é possível trabalhar com ideais. Na CPLP temos clara visão de
que isso é possível.
Termino por aqui, colocando-me à disposição para responder a possíveis
indagações.
Muito obrigada. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Deputado Aldo Rebelo) – Muito obrigado, Sra.
Secretária Irene Gala. De público, a Comissão de Relações Exteriores agradece e
reconhece o esforço de V.Sa. no sentido de aprofundar as relações do Itamaraty
com o Congresso e deste com nossos irmãos, os países de língua portuguesa, aos
quais nos unimos não só pelos laços do idioma e da História, mas pela identidade
comum de desafios.
Com a palavra o Prof. Flávio Saraiva, Diretor da Assessoria de Assuntos
Internacionais da Universidade de Brasília.
O SR. JOSÉ FLÁVIO SOMBRA SARAIVA – Felicito todos os membros da
Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados,
na figura do seu Presidente, Deputado Aldo Rebelo; o Embaixador Ovídio de
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Andrade Melo; a família do Embaixador de Moçambique, Ítalo Zappa, que recebe a
homenagem póstuma do Governo brasileiro e, em especial, deste Parlamento.
Agrada-me a forma cooperativa com que acadêmicos, diplomatas e
Parlamentares foram convocados a opinar sobre matéria que, embora de interesse
societário, ainda se circunscreve, neste País, ao viés prejudicial no trato da política
externa como assunto burocrático de especialistas ou profissionais em Diplomacia.
O exercício pedagógico e democrático vem crescendo. A socialização do
debate acerca das possibilidades do meio internacional é retratada neste mesmo
auditório quando se percebe a extraordinária adesão não apenas dos membros da
Comissão e dos andarilhos de Brasília, mas dos jovens que se incluem no conjunto
de estudantes de Relações Internacionais, que, nas universidades brasileiras,
alcançam hoje o número aproximado de 22 mil estudantes, em 60 cursos da área
credenciados pelo Ministério da Educação, segundo documento ontem publicado
pelo mesmo órgão.
Trata-se de extraordinária responsabilidade social do Parlamento, assim
como da Chancelaria e dos professores. E essa responsabilidade diz respeito ao
ambiente de geração de conhecimento mais sofisticado e democratizado na área
internacional.
É, portanto, essencial o exercício que aqui está sendo feito.
Circunscrevo-me ao tema proposto a partir de um lugar, a universidade, que é
a observância, nos últimos 15 anos, da nossa relação com a África, país sobre o
qual escrevi alguns livros. Tenho sobre ela a seguinte preocupação: a de que sua
história com o Brasil, com os países de língua portuguesa, acumule oportunidades
que foram exploradas e algumas não, relançamentos de forma ciclotímica e
esquecimentos depois das festas. É um triângulo que se move entre Brasília, Lisboa,
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capitais africanas de língua portuguesa e agora Timor Leste; é um compasso
nervoso, modulado no tempo, entre memória e esquecimentos, ação e abandono,
vontade e desinteresse.
Mesmo assim, o Brasil oscilou historicamente entre uma espécie de amor
incontido nas suas relações com Lisboa, muitas vezes em detrimento das
possibilidades de diálogo direto com outras partes do mundo oficial de língua
portuguesa. As posições desenhadas no extraordinário depoimento do Embaixador,
de ativo reconhecimento rebelde, devem ser consideradas contra interesses de
potências hegemônicas diante de processos revolucionárias na África.
Ainda componho a geração renovada de Embaixadores a acreditar, a partir da
sociedade civil, na imaginação da política africana no Brasil, que possa ela ser não
apenas a continuação do que se está fazendo, mas também incluir algumas ações
de forma extremamente positiva.
A Secretária Irene Gala exemplifica esse movimento com sua dedicação à
carreira e ao seu ofício, apesar dos constrangimentos diante de meios escassos e
do afastamento político-intelectual da África, o que não é de responsabilidade
exclusiva da Chancelaria, mas de nós mesmos, em todas as nossas instituições, e
que está no seio da sociedade.
Portanto, é ímpar e urgente que o Parlamento, ao reconvocar o tema da
ALCA para novembro, em acréscimo ao que fez no ano passado, tenha promovido
este seminário com o cuidado de incluir os assuntos africanos e dos países
lusófonos nesse ambiente. É portanto, um ato de coragem.
Tenho três aspectos para abordar. O tempo é o constrangimento, mas não
posso perder a oportunidade de tratar de três problemas. O primeiro é a própria
CPLP, aqui já abordada em algum de seus contributos pela Secretária Irene Gala. O
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segundo é o que chamo de constrangimento para o relançamento de política
africana mais agressiva no século XXI, de acordo com o tema deste seminário. Em
terceiro lugar, as contribuições que a sociedade brasileira pode dar à construção da
mencionada política.
Celebramos a IV Conferência dos Chefes de Estado e de Governo da CPLP,
que se realizará entre o final de agosto e o início de setembro deste ano, ocasião
alvissareira em que se passará em revista o percurso histórico da infanta instituição
dotada — o que deve ser relembrado aos estudantes — de personalidades jurídicas
internacionais, como tem o common goal e o instituto da francofonia — este último
posterior ao próprio estatuto jurídico da CPLP —, para investigar as possibilidades
no futuro.
Há importantes novidades na Conferência em Brasília, como a inclusão do
seu oitavo membro, o Timor Leste, com a abertura, portanto, de uma franja asiática
para a instituição tingida ainda pela baixa visibilidade interna dos Estados-membros
e por quase imperceptibilidade perante a comunidade internacional.
Destaca-se o relançamento da estratégia conjunta dos Chefes de Estado e de
Governo no sentido da redução das barreiras impostas pelas legislações nacionais,
ciosas da abertura de seus portos e aeroportos à livre circulação de 200 milhões de
cidadãos do clube da língua portuguesa. Reforça-se a cooperação técnica na área
de saúde, com acordos voltados para ações conjuntas na prevenção, diagnóstico e
assistência aos doentes contaminados pelo HIV. A idéia da transferência de
tecnologia, que é um velho recurso brasileiro na África entre os países-membros,
bem como a formulação de políticas de acesso aos próprios medicamentos, foram
acordos também assinados. Então, vida à CPLP!
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Não podemos, porém, esquecer as dificuldades do caminho tortuoso da
instituição criada no Palácio de Belém, em 1996. Ela padece de algumas
ambigüidades que emergem da convivência histórica desses sete países — agora,
oito — , em projetos e interesses distintos no ambiente comunitário.
Brasil e Portugal nem sempre coincidiram nas suas intenções de convergir
políticas em favor da valorização da CPLP. Os países africanos de língua
portuguesa, por sua vez, nem sempre podem oferecer aos esquemas de
funcionamento da instituição aquilo que desejamos.
O Brasil expõe dificuldade de origem, transportada para o momento atual, que
não tem a ver com o esforço que a divisão dos Departamentos África I e II do
Itamaraty faz, mas está relacionada com a terrível coincidência do lançamento da
CPLP com o ciclo de retraimento das relações comerciais, diplomáticas e
estratégicas do Brasil com os países do outro lado da franja asiática.
Está vedada a evolução do quadro dos diplomatas brasileiros no exterior.
Basta verificar a gradativa redução, que se iniciou no final dos anos 80, mas foi
claramente deflagrada no início dos anos 90, do contingente dos diplomatas em
atuação nas nossas representações. O comércio é outro exemplo.
As relações do Brasil com tais países, nos anos 90 e no início do século,
portanto, vêm se ajustando ao contexto atlântico menos relevante na inserção
internacional do nosso País.
Ficaram para trás os anos de ativa cooperação mútua de empreendimentos
comuns, sustentados na determinação política do Estado brasileiro — não pretendo
criticar o Governo — de desenvolver projetos econômicos voltados para o
desenvolvimento da África (o ciclo se encerrou), diversificando as parcerias, o
comércio internacional, subtraindo o que houve nas décadas de 70 e 80, a chamada
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vulnerabilidade energética. A própria sociedade civil perdeu, nos últimos tempos,
parte do encantamento acerca das chamadas possibilidades construtivas de forte
presença brasileira na África.
O silêncio na imprensa, no Parlamento e na universidade sobre o que
acontece na África é impressionante. Chamo isso de perda da vocação atlântica. Ela
tem gerado desmobilização diplomática e, evidentemente, não nutre apenas as
nossas vicissitudes e dificuldades, mas também a leitura do que se passa do outro
lado, que nem sempre é adequada. Está particularmente dominada pelo paradigma
do afro-pessimismo, que nem sempre corresponde às realidades da evolução
política, econômica, da democratização, ainda que lenta, e da retomada de certos
processos de desenvolvimento econômico em países de língua portuguesa na
África.
Há determinado ponto nevrálgico na CPLP que atinge Portugal e Brasil, em
especial: uma certa ausência de conteúdo político e econômico nas formulações e
práticas da instituição. De tal crítica advém o rosário de reclamos com relação à
dinâmica de trabalho e aos financiamentos dos projetos.
A CPLP, apesar do empenho, mostrou historicamente, no seu pequeno
período de experiência, ter enormes dificuldades na construção e no financiamento
de projetos focais, como aqueles voltados ao combate ao HIV e à AIDS, à formação
dos centros regionais de excelência e de desenvolvimento empresarial e de
administração pública, projetos extremamente relevantes. Eles têm se limitado a
restrições de toda ordem, sobretudo orçamentárias.
Em outras palavras, para concluir o primeiro ponto, o que se espera é que o
momento midiático dos debates da Conferência de Brasília não tenha apenas
encapsulado a CPLP a poucos minutos de glória.
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O esforço do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais do Itamaraty,
que realizou excelente seminário organizado pelo Instituto Brasileiro de Relações
Internacionais — IBRI, não pode fenecer no ambiente global e no contexto
pantanoso em que vivemos, pela dimensão dos países de língua portuguesa, no
último tópico da agenda, ou no último painel a ser tratado.
Portanto, há a atitude de reconhecimento naquilo que se vem desenvolvendo,
mas há desconfiança metódica, não de ceticismo de fins, porém de meios acerca do
muito que se precisa fazer.
Segundo aspecto: a política africana no Brasil. Sem ela não se pode pensar
no desenvolvimento da política externa do Brasil para os chamados países
lusófonos. Utilizo pouco esse termo. Prefiro dizer “países de língua oficial
portuguesa”. Nem todo país que fala a língua portuguesa tem a expressão da língua
portuguesa oficialmente ou a expressão lingüística cultural dominante lusófona. São
os limites para o relançamento da política africana no Brasil no seio da quadratura
em que vivemos.
Há constrangimentos estruturais para o lançamento da política africana. Eles
estão relacionados com a adoção de modelo econômico perverso que, na última
década, foi marcado por não identificar a Nação e por impulsionar o terreno
movediço das vulnerabilidades criadas pela alienação do patrimônio nacional a
grandes companhias. Tal modelo inibiu vontades políticas dos governantes, limitou
investimentos naturais na economia atlântica e reduziu a criatividade diplomática.
Do lado africano, o que torna difícil o diálogo é o acumular, depois de quatro
décadas do início das independências, dos contornos de uma crise de explicação
controversa e de renascimento ainda incompreendido deste lado do Atlântico.
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Nem as políticas de ajustamento estrutural preconizadas pelo Banco Mundial
e pelo FMI, nem os processos de ampliação democrática dos sistemas políticos têm
sido suficientes para enfrentar, em grande parte dos países africanos, a
profundidade dos problemas econômicos, políticos e sociais.
Havia o sonho, nos anos 60 e em parte dos 70, de caminho distinto do que a
África no seu conjunto tomou. Temos parte nisso, porque também construímos
parâmetros oscilantes na política externa brasileira nos anos 90, com reverberação
na política africana e que nada têm a ver apenas com o movimento específico de
organismos ou de funções diplomáticas.
O País parece ter transitado entre alguns parâmetros confusos em política
externa nos anos 90. Desde aqueles que chamo de equívocos de substância — e
não apenas eu, mas muitos —, os da apresentação da abertura econômica, da
estabilidade monetária e da democracia como vetores de política externa, mesmo
sabendo que tais vetores nunca serviram a Estados maduros como externos,
passando pela aplicação acrítica de políticas importadas de rigidez fiscal, que
retiram o Estado dos investimentos produtivos, contraem salários, privatizam
empresas públicas, vendendo-as às companhias estrangeiras para arrecadar
dólares e pagar a dívida externa, até os equívocos de meios. Esses equívocos de
meios, que não são de substância, também se reverberaram na política africana,
como a crença kantiana e idealista, em especial da diplomacia de Cardoso nos foros
multilaterais, de que se podia mudar o mundo por intermédio de mobilização
multilateral em grande escala e que a generosidade kantiana emergiria. Esses
equívocos, evidentemente, tiveram reverberação num acumulado de relações
bilaterais, de parcerias estratégicas, que haviam sido historicamente desenhadas no
Brasil em um ciclo de racionalidade anterior à década de 90.
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A África, portanto, se outras regiões ficaram excluídas desse norte, ficou mais
fora ainda. O Brasil se deixou contaminar pela interpretação ingênua das relações
internacionais kantianas, em torno das quais as saídas para a modernidade estavam
no multilateralismo, no esforço da construção de uma agenda global consensual e
na regulação de temas globais como o liberalismo econômico, o meio ambiente, os
direitos humanos, o sacrifício da segurança nacional, entre outros.
Tal confusão conceitual levou, no caso específico da África, ao abandono de
alguns ricos caminhos anteriores já trilhados pelo Brasil e que reaparecem agora em
capítulos relevantes dos programas de política externa dos candidatos à Presidência
da República deste País: o modelo de substituição de importações e política de
promoções comerciais agressiva.
Portanto, a confusão entre meios e fins, de vez ou outra ocasiona o jogo entre
a racionalidade e a irracionalidade nos conceitos de política externa.
A reversão do comércio exterior, amparada no preconceito de que certo
protecionismo ao mercado interno emperrava o crescimento econômico e de que o
comércio exterior, que foi o braço essencial nas relações Brasil—África, perdera sua
função de gerar saldos, matou as matrizes que davam materialidade à política
atlântica do Brasil. Associo tal dificuldade ao fato de que, por parte de diplomatas e
negociadores brasileiros, se gerara extraordinária expectativa nas potências
avançadas sobre vontade reformadora do sistema multilateral — o que não se vem
fazendo —, a conduzir o Brasil para a modernidade que muito distava do padrão de
relacionamento comercial externo que embalara os anos dourados da política
africana do Brasil.
Não me estenderei na crítica, apenas insisto no fato de que a erosão do
modelo empurrou o Brasil para o MERCOSUL, afastando-o da África. Ela expõe
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justamente a dificuldade de trato da dimensão múltipla, orgânica e de valorização de
múltiplas estratégias em uma visão um pouco mais brasileira e menos copista, que
poderia ter gerado a permanência de uma política africana mais ativa do que a que
temos hoje.
Vou concluir, porque me restam apenas cinco minutos, abordando outros
aspectos importantes para o debate: as razões pelas quais temos a obrigação
histórica, social, diplomática, estratégica, comercial e militar de renovar a política
africana do Brasil no início do novo século. Este será um desafio para o próximo
Presidente da República e para o próximo Congresso Nacional.
Cito quatro elementos. Em primeiro lugar, a rica tradição, muitas vezes
esquecida, que gerou frutos de valor para a inserção internacional do Brasil, na forja
de parcerias múltiplas, consonantes com a tolerância da nossa sociedade,
desprovida de ódios étnicos e laboratório de experiência de recepção de todos que
um dia aportaram na Terra de Pindorama. É fundamentalmente dessa tradição que
deriva a vocação universalista da política exterior do Brasil, que provém da
sociedade brasileira, dos seus fundamentos; é um constructo social. Estar na África
é, portanto, estar prestando contas internas, naquele aspecto que nos faz ímpar e
originais no seio da comunidade internacional.
Ademais, como bem sabemos — e as lições do presente nos indicam —, não
se podem concentrar relações externas no Brasil em pólos únicos, em detrimento de
outros, apenas pela razão do poder hegemônico, imperial ou especulativo que tais
centros exercem. As relações internacionais não se realizam apenas na realpolitik
nem no ambiente dos interesses imediatos. A dimensão africana da política externa
do Brasil é mediata, não imediata; não pode se circunscrever, pela sua própria
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dinâmica, apenas aos fatores da materialidade, por mais romântica e piegas que a
frase possa parecer.
A política africana deve ter estatuto próprio, identidade que a torne singular no
emaranhado de interesses múltiplos do Estado e da sociedade brasileira.
Em segundo lugar, há uma dívida histórica com a África. Isso foi declarado
muitas vezes por Ministros de Estado e por Presidentes da República. É preciso
preencher essa frase com densidade contextual e prática. Há, na sociedade,
demanda de uma política específica, pública e legitimada por intermédio de
instituições, como o Parlamento, as universidades, as empresas e a opinião pública.
A África é lugar privilegiado de formação da brasilidade, curtida e urdida ao longo do
compasso do tempo. Os dois Atlânticos já se abraçaram em era geológica remota,
compondo um mundo único. A África ocupou o papel cêntrico na formação da
sociedade e da economia do Brasil.
Apesar dos laços encerrados em certo momento e do silêncio que imperou
nos escassos contatos atlânticos em grande parte do século XX, períodos afônicos,
a África permanece como uma lavra fundadora da brasilidade — e verificamos
também retomadas importantes, gestos diplomáticos extraordinários, gestos
comerciais fundamentais. Creio, porém, que ainda precisamos, de forma mais
criativa, aproveitar as oportunidades que o continente vem abrindo.
Em sua diversidade, a política para Moçambique não é a mesma para Angola,
África do Sul, Gabão ou Nigéria, porque a África são muitas Áfricas. Varia de nação
a nação, de povo a povo, na diversidade que compõe o xadrez africano. Isso é
importante, porque, quando se fala da política européia do Brasil, não se fala na
política do Brasil para a Europa ou apenas MERCOSUL—União Européia ou nas
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relações bilaterais importantes, como a que rege Brasil—Alemanha e a que rege
Brasil—França.
Portanto, o xadrez africano é múltiplo. E se não há mais possibilidade de
grande política para todos, há escolha, há opção entre possibilidades, sobretudo,
nessa dimensão da diversidade, das formas de pensar.
Em terceiro lugar, Sr. Presidente, para concluir, o relançamento da política
africana não seria apenas um ato de fé — mesmo com o romantismo que pareço
transmitir nas conclusões —, mas o resultado de cálculo político e econômico.
Politicamente, ir à África e lá permanecer serve para reforçar a idéia de que o Brasil
ainda tem um projeto cooperativo no Sul para engendrar alguma liderança nas
novas rodadas de negociação de temas globais, na reformulação do Conselho de
Segurança das Nações Unidas, na busca de parcerias estratégicas ao Sul, junto
com países como África do Sul, Índia e China.
Portanto, são possibilidades de o País concertar com seus parceiros de forma
horizontal, e o Brasil tem todas as condições de constituir instrumento de barganha e
reorientar o próprio eixo diplomático, passando de temas como o terrorismo para
outros mais construtivos e de nosso interesse, como o desenvolvimento sustentável
e a cooperação Sul—Sul.
Esse aspecto político se desdobra economicamente. De modo que uma
política africana serviria de instrumento ou de reforço ao conjunto de movimentos
que a inserção internacional do Brasil terá de fazer nos próximos anos, em nítida
crise de identidade no momento atual. Em contraste com a inserção marcada pelo
triunfalismo liberal, a África serviria ao esforço de aproveitamento de brechas
estruturais na ordem internacional e de reforço na retomada de um modelo de
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inserção internacional de bases mais nacionais e voltado para o desenvolvimento
interno sustentável, gerador de empregos e produtivista, mais que financista.
A África está interessada nessa cooperação e sabe muito bem o que
aconteceu no País na última década. Estudam o Brasil como nem sempre
estudamos a África.
Portanto, seriam necessárias iniciativas no interior dessas brechas. Refiro-me
aos espaços que se abrem no coração da crise internacional do momento pelos
foros da própria tecnoburocracia internacional do Banco Mundial, do FMI, no sentido
da percepção da vulnerabilidade desses modelos, da sua reconstituição, das
brechas para uma revisão crítica, especialmente dos efeitos perversos realizados de
um lado e do outro do Atlântico. Mas não vou seguir nisso, porque pode parecer que
faço proselitismo político, e este lugar é de Deputado, não de acadêmico.
Quero falar sobre algo particular e útil, que me parece importante: as relações
luso-brasileiras.
A Secretária Irene, sob constrangimento diplomático, mas de forma
apropriada, chamou a atenção, ao final, para o fato de que precisamos nos acertar
com Portugal. Antes, estávamos cada um de um lado. Juntamo-nos em alguns
instantes, mas não podemos mais atuar na África de forma isolada.
Há novo ambiente. Há substrato inédito. Há um Portugal que se fez europeu,
mas que não pode abandonar seu braço atlântico. Há nova engenharia da atuação
bilateral, que se configura na Comissão Bilateral e na relação Brasil—Portugal — o
Presidente encerrará seu mandato indo a Portugal, em novembro ou dezembro. Há
investimentos portugueses, turismo lado a lado, comemorações da viagem de
Cabral, tratados de Porto Seguro. Há coisas lá e cá. Mas não vemos essa energia
sendo orientada dos dois lados, tanto do setor empresarial, como do setor político-
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diplomático; ou seja, a construção do que chamo plataforma atlântica cooperativa e
utilitária em projetos de troca de experiência na África. Por quê?
Se analisarmos o que foi dito sobre a CPLP nesses dias de reunião,
poderemos sintetizar algumas idéias publicadas, acessíveis a todos. Por exemplo,
para que a língua portuguesa na África, se as línguas do desenvolvimento e da
obtenção de possibilidades de ajuda internacional passam, naquele país, pelo inglês
e pelo francês?
Essa discussão está posta. Na Internet, encontrei um desses críticos de
plantão. A possibilidade de seguir o transcurso da própria presença cultural, de dar
diversidade ao mundo, de mostrar que o mundo não tem uma única polaridade, um
só caminho, em que a cultura e a língua estejam presentes, pode fenecer, se
fraquejarmos na materialidade da ação naquele continente.
Os jovens de algumas capitais africanas — não vou referir-me a elas neste
instante — já se interessam muito mais pelo estudo das línguas inglesa e francesa
— eles estão nesse ambiente regional de grande presença dessas línguas — do que
pelo estudo do português. Vamos abdicar dessa presença, deixando a materialidade
tomar conta das possibilidades permanentes dessa forma?
Portanto, são essas as questões, a título de debate, sob o ângulo
tendencialmente provocador do professor.
Muito obrigado, Deputado.
Agradeço a todos a atenção. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Deputado Aldo Rebelo) – Desejo registrar que nosso
serviço de comunicação, a TV Câmara, transmitiu ao vivo — e continua a fazê-lo —
toda a sessão da manhã de hoje.
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Quero avisar que as conferências serão publicadas na íntegra pelos
organizadores, inclusive as desta Mesa. Em função do tempo, nem a Secretária
Irene Gala, nem o Prof. Flávio Saraiva tiveram oportunidade de expor o conjunto das
suas opiniões e das suas preocupações em relação ao tema. E exatamente pelo
fator tempo não teremos também, nesta Mesa, a possibilidade de realizar o debate.
Mas as perguntas, por si só, já constituem importante conquista das exposições.
Então, pelo menos isso já se produziu.
Agradeço, mais uma vez, ao Prof. Flávio Saraiva e à Secretária Irene Gala as
presenças.
Vou suspender os trabalhos por cinco minutos e retomá-los com a próxima
Mesa, cujos debatedores já estão presentes.
Muito obrigado. (Palmas.)
(A reunião é suspensa.)
O SR. PRESIDENTE (Deputado Aldo Rebelo) – Senhoras e senhores,
retomamos nossos trabalhos, com a penúltima atividade: a Mesa de nº 9, que tem
como tema os desafios internacionais para o século XXI: a proteção internacional
dos direitos humanos; as transformações da natureza; os conflitos internacionais;
novas formas de intervenção; o sistema financeiro internacional; os organismos
internacionais, os capitais transnacionais; a dívida externa dos países menos
desenvolvidos; a relação entre o FMI e os países em desenvolvimento; a assistência
ou a ingerência; os capitais transnacionais; a regulação internacional ou o livre
mercado; a dívida externa dos países emergentes; as mudanças de paradigmas na
questão ambiental; o Protocolo de Kioto.
O conferencistas será o físico e professor da Universidade de Brasília, José
Walter Bautista Vidal, a quem convidamos para integrar a Mesa. Convidamos ainda
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para integrarem a Mesa a Procuradora-Geral do Estado de São Paulo, Dra. Flávia
Piovesan, e o Sr. Marcelo Castro.
Após o término desta Mesa, juntamente com o Prof. Luis Fernandes, Diretor
da FAPERJ, e com o Ministro Carlos Cardim, Diretor do Instituto de Pesquisa de
Relações Internacionais do Itamaraty, faremos o encerramento do nosso seminário.
Não precisamos declarar que estamos premidos pela circunstância do tempo.
Vou conceder, de acordo com o que adotamos desde a tarde de ontem, um
período de vinte minutos para os expositores. Em seguida, faremos o encerramento
do nosso seminário.
Então, passamos a palavra, para a intervenção inicial do tema da presente
Mesa, ao professor da Universidade de Brasília, físico e ex-Secretário de Política
Industrial do Brasil, José Walter Bautista Vidal.
O SR. JOSÉ WALTER BAUTISTA VIDAL – Sr. Presidente da Comissão de
Relações Exteriores e de Defesa Nacional, Deputado Aldo Rebelo, senhores
membros da Comissão, senhores diplomatas, minhas senhoras e meus senhores,
gostaria inicialmente de me congratular com a Comissão pela oportunidade deste
seminário no presente momento, não só por estarmos num ano eleitoral, num ano,
acredito, decisivo, mas também pelas circunstâncias em que se encontra o mundo.
Na realidade o mundo está em guerra, por causa do fim de uma era que
durou duzentos anos e está colocando as nações hegemônicas em situação
desesperadora, em razão de problemas energéticos, ecológicos e do efeito estufa.
Prevemos para o futuro situações muito sérias.
É sobre essa questão que vou centralizar minha exposição, tendo em vista o
papel fundamental que, acredito, o Brasil tem a desempenhar nesse contexto do
início do século XXI, nessa terrível situação em que vivemos.
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Congratulo-me com a Comissão por esta importante homenagem aos dois
embaixadores. Conhecia de nome o Embaixador Ovídio de Andrade Melo, mas
convivi muito com o Embaixador Ítalo Zappa, que era amigo íntimo do Ministro
Severo Gomes e freqüentemente nos encontrávamos no Ministério — um patriota e
homem de grande visão, com enorme capacidade e coragem. Percebo que os
senhores estiveram juntos desde a infância e são realmente dois exemplos
fundamentais de referência para o Brasil no futuro.
Este trabalho propõe a formulação de grupo de alianças do Brasil com
importantes países para resolverem questões convergentes com as excepcionais
vocações brasileiras, com vistas à solução de problemas cruciais desses países e
também para atender a fortes e consistentes interesses comuns.
Essas alianças orientariam nossa política externa de modo a criarem
condições de fortalecimento do conjunto, para assim podermos resistir a
devastadoras investidas de grupos oligárquicos que dominam o sistema financeiro
mundial, os quais estão levando as nações e os povos ao desastre. Por esse
processo, países detentores de grandes potenciais de riqueza e povos operosos
estão sendo transformados, em curto espaço de tempo, em párias internacionais.
Além de emitirem moeda em regime de monopólio e sem qualquer critério —
as regras de Breton Woods deixaram de existir desde 1971 —, esses grupos
inundam o mundo com moeda falsamente simbólica, sem lastro, em proporção de
dez para um, submetem a irresponsável desregulamentação os Estados nacionais, o
que praticamente destrói suas respectivas moedas e estabelece a tirania do dinheiro
falso de controle externo. Os ricos patrimônios naturais das nações, imprescindíveis
ao processo civilizatório, são desvalorizados ao extremo e têm seus controles
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transferidos para grupos externos, o que compromete gravemente a vida das futuras
gerações.
Esse dinheiro sem pátria, sem lastro e sem lei invade as estruturas
institucionais e jurídicas dos diferentes Estados, ao tempo em que o comando efetivo
destes é entregue a suspeitos gestores ligados a esses grupos oligárquicos. Assim,
fica facilitada a entrega dos principais ativos e patrimônios naturais estratégicos
nacionais a grupos externos pelo chamado processo de privatização, na realidade,
internacionalização, em ilegítimos atos usurpadores.
Os agentes da oligarquia externa que dominam o Estado pela via da tirania
financeira manipulam índices a seu bel-prazer, como taxas de câmbio, de inflação e
de juros, de modo a submeter a riqueza nacional e todos os instrumentos e meios
econômicos do País ao controle desses grupos.
Enquanto o industrial brasileiro ou o produtor agrícola de capital nacional
pagam taxas de juros, na melhor das hipóteses, de 20% a 40% ao ano — chegaram
a 49% com Gustavo Franco no Banco Central —, o seu competidor externo,
operando em território nacional, consegue em suas origens recursos financeiros de
1% a 4% de taxas anuais. Nessas condições, por questão de aritmética elementar, é
impossível ao nacional competir e sobreviver.
Partimos aqui de algumas premissas básicas e de recentes fatos concretos
assustadores, que estão ocorrendo, por exemplo, na vizinha Argentina, um dos
países mais bem dotados do planeta, que já teve, per capita, a segunda maior
renda e a maior exportação do mundo. Grande supridor de alimentos, com auto-
suficiência energética, mesmo dispondo das melhores terras agricultáveis e com
povo de excelente nível de educação, está sendo esmagado por criminosas políticas
financeiras impostas por entidades do “governo mundial”. Cinqüenta por cento da
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sua população já se encontram na miséria, em crescente e rápida deterioração
generalizada.
Esse sistema monetário está levando o povo argentino a acelerado processo
de planejada destruição. A absurda aritmética que regula o endividamento externo
levou o país de uma dívida externa de 27 bilhões de dólares, em 1980, a 140 bilhões
de dólares, em 2002, embora tivesse pago nesse período 120 bilhões de dólares,
em esquizofrênica aritmética!
O exemplo da Argentina tende a repetir-se, provavelmente com maior
impiedade e violência, no Brasil, pois os fundamentos das políticas dos dois países,
impostos de fora, são muito próximos e as posturas de seus dirigentes, igualmente
servis. Apesar dos trágicos resultados já lá atingidos e das evidências de que
caminhamos nas mesma direção, comportamo-nos como se nada semelhante fosse
ocorrer conosco e, passivamente, aguardamos a proximidade do desastre.
As premissas previstas são aquelas de procurarmos sair desse nefasto
sistema de abstrações afastadas da realidade e voltarmos para o mundo concreto da
natureza, da terra, da água, da energia, do trabalho e da ciência; enfim, voltarmos a
fundamentar nossa vida nos elementos físicos retirados do nosso continente tropical.
É preciso também resgatarmos os conhecimentos acumulados pela ciência e pela
experiência da nossa natureza e recuperarmos os valores morais da verdade e da
justiça, que suportam as nossas melhores tradições e a dignidade humana. É dessa
base física territorial que iremos retirar inquestionáveis soluções para os gravíssimos
colapsos que atingem a humanidade, especialmente o dos combustíveis fósseis, das
matérias-primas estratégicas, da água e do meio ambiente. Por isso, é grande crime
transferir, a troco de nada, o controle desse soberbo patrimônio natural estratégico
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para grupos externos suspeitos, de modo a comprometer irremediavelmente as
futuras gerações.
É essencial também recuperarmos os fundamentos do Estado nacional e
libertarmo-nos desse sedicioso processo de colonização que inunda e mutila a
mente de nosso povo, em especial dos lamentáveis dirigentes que infelicitam nossa
vida e nosso destino.
Não podemos pensar em dar passos decisivos em benefício do povo
brasileiro se não detemos o controle dos resultados retirados do esplendoroso
espaço do nosso território continental e se não reconhecemos os graves problemas
que afligem outros povos no início desse século XXI. Para isso, é necessário nos
contrapormos à postura de mentes colonizadas, de dirigentes descomprometidos,
conforme a definição do pensador José Ortega y Gasset: "Mentes colonizadas são
aquelas que ignoram o seu espaço — o território nacional — e o seu tempo".
Vivem países e blocos econômicos fase de grande complexidade, em parte,
conseqüência do desmoronamento da bipolaridade do poder mundial e,
principalmente, devido ao previsto colapso dos combustíveis fósseis, que
sustentaram a evolução do mundo nos últimos duzentos anos, além da crescente
escassez de matérias-primas e de água.
Essa complexidade reflete também a perda da estabilidade que vinha desde a
Conferência de Ialta, que determinou a divisão do mundo desde o final da Segunda
Grande Guerra e que dava equilíbrio ao mundo bipolar. Este viveu em permanente
confronto ideológico do capitalismo com o socialismo, sem levar em consideração a
necessária sustentação energética do processo.
Assim, prevêem-se profundas mudanças no fim do que se convencionou
chamar de “Era dos Combustíveis Fósseis”. Elas seriam de tal ordem que se
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sobreporiam em importância às razões que motivaram as duas grandes guerras do
século passado e decorrem de: ocaso inexorável do uso de combustíveis fósseis —
carvão mineral e petróleo —, cujas evidências de declínio vêm ocorrendo desde
1973; processo de previsível e irremediável implosão da bolha monetária no sistema
financeiro internacional, montado em Bretton Woods, em 1944.
Tal processo foi interrompido em 1971 de maneira unilateral pelos Estados
Unidos. O dólar, moeda de referência internacional, desvinculou-se do lastro-ouro e
o mundo passou a viver a era do dinheiro falsamente simbólico, sob a égide tirânica
desse sistema.
Essas profundas modificações são de natureza distinta daquelas ideológicas
que dominaram o século XX e que se refletiram diretamente no confronto Leste-
Oeste, especialmente durante a chamada Guerra Fria, que tinham como motivação
principal as relações capital/trabalho.
Na realidade, isso ocorria em modelo energético estruturado, tendo por
fundamento o uso extensivo de combustíveis fósseis, com supostas reservas
ilimitadas. Elas definiram a matriz energética do mundo desde a Primeira Revolução
Industrial, inicialmente com o carvão mineral e depois com o petróleo, até os dias
atuais.
As dinâmicas que iniciaram essa era foram desencadeadas, de um lado, pelo
uso da máquina a vapor, acionada por energia concentrada do carvão mineral e, de
outro lado, pela intensificação do comércio mundial decorrente da superação do
barco a vela e de sua substituição pelo barco a vapor. A decadência dessa era
ocorre com o declínio dos combustíveis fósseis, que de forma tão predominante
deram suporte ao processo civilizatório desenvolvido nesse período. Esse declínio
se dá com o petróleo, pela crescente diminuição de suas reservas, e com o carvão
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mineral, pela necessidade da redução drástica do seu uso, em conseqüência dos
tremendos efeitos ambientais que vem provocando.
É importante destacar que houve forte motivação de natureza geopolítica para
que inicialmente a Inglaterra e depois a Europa e os Estados Unidos da América
impusessem ao mundo essas formas energéticas predominantes, apesar das
inúmeras desvantagens que traziam, especialmente as mais críticas, devido a sua
natureza não-renovável e aos dramáticos danos ambientais que produzem.
Essa motivação foi a ausência, nas regiões temperadas e frias do planeta,
onde, no Hemisfério Norte, localizam-se as nações hegemônicas, de outras formas
energéticas extensivas nas dimensões que alcançaram os combustíveis fósseis.
Tais modalidades de energia são capazes de estabelecer modelo civilizatório
energético mais consistente e limpo que o associado aos fósseis.
Mesmo após o embargo do petróleo, ocorrido em 1973, promovido pela
OPEP e por corporações petrolíferas transnacionais, como conseqüência direta da
limitação das reservas existentes, houve grande esforço na mídia mundial,
patrocinada por essas corporações e pelas da área automobilística, para afastar da
opinião pública a irremediável idéia de limitação dessas reservas.
Assim, as enfáticas preocupações iniciais com a busca de alternativas
praticamente desapareceram, embora as conseqüências das evidentes reduções
das reservas de petróleo tenham levado a continuadas guerras, que vêm ocorrendo,
cada vez com maior intensidade, desde a época do Presidente Nasser, do Egito. Os
conflitos estiveram concentrados inicialmente no Oriente Médio e foram se
estendendo a outra regiões, como no caso dos atentados ao Pentágono, em
Washington, e às torres do World Trade Center, em Nova Iorque, em 11 de
setembro de 2001; dos bombardeiros sobre o Afeganistão; da agressão de Israel
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aos palestinos; da prevista invasão do Iraque pelos norte-americanos. Todos esses
movimentos bélicos têm motivação no fim da era dos combustíveis fósseis e nas
gravíssimas conseqüências dele decorrentes.
A segunda principal motivação ocorreu muito depois, no final da Segunda
Grande Guerra, com a implantação do sistema financeiro de moeda de emissão
monopólica, que dava à agora grande potência Estados Unidos o controle do
símbolo absoluto de todas as riquezas, o dólar, moeda internacional de referência
desde 1944. Foi assim que os Estados Unidos e seus aliados estabeleceram o
domínio econômico sobre o resto do mundo. Por outro lado, o valor dessa moeda,
após sua desvinculação do lastro-ouro, em 1971, passou a depender de sua
vinculação à compra do petróleo, agora garantida por meio militar.
O ciclo de correspondência entre os dois entes — dólar e petróleo — foi
fechado quando o acesso a esse combustível fóssil no Oriente Médio, onde se
localizam mais de 70% das reservas mundiais, ficou sob controle militar de forças
norte-americanas.
Com as questões de poder do mundo físico colocadas nesse quadro de
interconexões e com o controle da propriedade sujeito ao falso valor monetário do
dólar de Bretton Woods, restaram aos governos e povos as disputas ideológicas
entre o capital e o trabalho, agora arrefecidas com o desmoronamento da União
Soviética.
Algo semelhante ao ocaso dos combustíveis fósseis também ocorre com o
sistema internacional de moeda monopólica de referência. Esta, ao desvincular-se
do suporte concreto do mundo físico que lhe dava sustentação e lastro, perde
legitimidade e caminha para o declínio.
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É a ocupação militar norte-americana no Oriente Médio que impõe ao dólar o
valor de referência internacional como moeda que compra petróleo. O valor dessa
moeda, assim, vincula-se à essencialidade do petróleo, que ainda movimenta o
mundo, embora o ouro negro esteja no ocaso e tenda a exaurir-se. Existe a evidente
possibilidade de ele ser preservado para o consumo exclusivo das nações nucleares
hegemônicas. Ou seja, corre-se o risco de, em prazo relativamente curto, embora
impossível de prever-se, ocorrer perigoso vácuo energético que, como
conseqüência, porá em perigo o valor da moeda de referência e ameaçará levar o
mundo ao colapso.
Com o desaparecimento da base energética que dava suporte estrutural
principal à produção de bens de utilidade e de poder, ficam faltando os fundamentos
da natureza, que garantiam o processo de evolução das nações e das civilizações.
Assim, o século XXI começa com a necessidade extrema de urgente
equacionamento dessas questões, com vistas a recompor-se a estabilidade perdida
e a buscar-se o reencontro do processo civilizatório em sólidas bases físicas e não
com falsas simbologias e salamaleques irresponsáveis.
Com o desmoronamento dos símbolos de valor e de troca, representados
pela moeda de referência, devido a seu deslocamento da realidade concreta, surge
grande vácuo que compromete tudo o que sempre existiu e funcionou. O mundo
permanece envolvido em absoluta inconsistência, com a possibilidade de colapso,
todos no aguardo do que se convencionou chamar de “implosão da bolha
financeira”.
Ademais, surge forte complicador adicional, que são as questões ambientais
do efeito estufa e da chuva ácida pela continuada queima, em grandes proporções,
dos combustíveis fósseis. Seu início de solução, porém, encontrou rejeição no
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principal causador, os Estados Unidos da América, mais preocupados em não
reduzir os seus ganhos econômicos do que em preservar o equilíbrio termodinâmico
do ecosfera.
Essas dificuldades resultaram do modo precário como o processo civilizatório
definiu as relações do homem com a natureza, como se ela fosse permanente,
imutável, sobre a qual não houvesse necessidade de cautelas e como se estivesse
sempre ao dispor do homem e da economia, de modo contínuo, com recursos
naturais estratégicos supostamente infinitos.
Essa visão do processo civilizatório reflete-se diretamente nas relações entre
os países criando perversas desigualdades e subjugações inaceitáveis. Os mais
poderosos procuram impor suas regras em enlouquecida corrida de “salve-se quem
puder”, ao tempo em que esmagam os mais fracos e usurpam seus patrimônios
naturais.
Essa visão é também responsável pelos critérios que estabelecem
degradados valores aos bens e aos recursos da natureza por imposições coloniais
arbitrárias. É crescente o grau de depreciação desses valores em injusta e seletiva
divisão internacional das atividades produtivas: as de alta rentabilidade (produtos
industrializados, acabados) e as de baixa rentabilidade ou apresentadoras de
prejuízo (produtos da agricultura e matérias-primas em geral, embora estas sejam
absolutamente essenciais, escassas e, em grande parte, não-renováveis).
Fica assim imposta pelos fortes a divisão do mundo entre grandes usuários
dos recursos naturais do planeta (países ditos ricos ou desenvolvidos) e os eternos
fornecedores desses recursos (os chamados países pobres ou em desenvolvimento,
apesar de detentores de sólidas bases físicas para a produção de riqueza.
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Nesse contexto, o que foi exemplificado com o caso energético dos fósseis
pode ser dito dos recursos minerais e de outros elementos absolutamente essenciais
para o processo civilizatório, como a terra, a água e o sol, elementos predominantes
da natureza.
Essas questões, porém, suscitam enorme resistência para discussão e
principalmente para solução, pois implicam a revisão de práticas seculares,
consolidadas pelos hegemônicos, que estão levando o mundo a situações muito
perigosas, com motivações bélicas comprovadamente evidentes e irreversíveis.
É sintomático que, no contexto das ideologias sobre as quais falamos, os
aspectos essenciais do uso dos recursos da natureza nunca tenha sido
adequadamente considerados. O relacionamento entre os países, nessas questões,
aprofundou tremendas desigualdades, impossíveis de serem mantidas sem deflagrar
processos destrutivos de gravíssimas conseqüências. Vimos recentemente os
ataques ao Afeganistão com um manto de poderosas bombas, que terão como
conseqüência a previsível ocupação do território daquele país por gasodutos e
oleodutos, com vistas ao escoamento do petróleo e do gás do Mar Cáspio, como é
de interesse de corporações norte-americanas. Os conflitos resultantes dessas
questões, concentrados inicialmente em países do Oriente Médio, tendem a se
estender a outras regiões do mundo. Há grupos hegemônicos radicais interessados
em ver o circo pegar fogo. Eles querem transformar esses problemas energéticos
em choques de civilizações que atinjam todos os países, especialmente os do
mundo árabe, que por acaso detêm em seus territórios a maior porção das reservas
remanescentes de petróleo.
Fica assim evidenciado que, pelas imitações das reservas de petróleo que
restam e pela continuada série de conflitos bélicos relacionados com o controle
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dessas formas energéticas que movimentaram o mundo nos últimos 200 anos e que
caminham para o ocaso, aqueles embates estão diretamente relacionados com a
energia do passado. Para nós brasileiros é importante responder à seguinte
pergunta: onde serão localizados os conflitos relacionados com as formas
energéticas predominantes no futuro? Para nós brasileiros essa pergunta cabe
perfeitamente. Em se considerando as evidências dadas pela Ciência, as leis e os
princípios que regem a natureza física, a resposta é que eles se localizarão nas
regiões com intensa incidência de luz solar e abundância de água doce — ou seja,
nas regiões tropicais do continental território brasileiro. Essa é a principal questão
que se coloca à Humanidade no início deste século, não somente diante da
crescente vulnerabilidade das nações dependentes, fornecedoras de recursos
naturais primários, o que põe em risco a sobrevivência dessas nações como tais,
mas também pela imensa imprevidência, arrogância, truculência dos países
hegemônicos, todos situados em regiões temperadas e frias do planeta, os quais,
portanto, não têm perspectivas de solução em seus territórios para os problemas
concretos decorrentes dos colapsos a que está submetida a Humanidade neste
início do século XXI.
As profundas modificações a que nos referimos anteriormente dizem respeito
ao obsoleto e perverso processo de colonialismo que impera e que divide o mundo
em dois grupos: um pequeno, constituído de países privilegiados, e outro formado
por países dependentes, que em sua grande maioria são submetidos a um regime
profundamente discriminatório de globalização, que condena ao extermínio grande
parte da Humanidade, em benefício de uns poucos. Esse status quo é mantido pelo
chamado "governo mundial", que detém instituições controladas por poucos países
hegemônicos, sob a égide dos Estados Unidos da América, como o Banco Mundial,
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o Fundo Monetário Internacional, a Organização Mundial do Comércio e algumas
agências financeiras, além de outras estruturas complementares de poder, como a
OTAN e órgãos de dominação regional, a exemplo do NAFTA e da pretendida
ALCA.
Falemos agora das alianças. Identificamos nos países situações muito
complicadas e especiais que evidenciam práticas até aqui consagradas, apesar de
sua natureza explosiva, mas impossíveis de serem continuadas, além de
profundamente injustas para os povos, explorados ao extremo em seus patrimônios
naturais.
O caso do Japão é sintomático e pode encaminhar soluções novas, que
representam um grande avanço nas relações futuras entre os povos. Com a derrota
militar perante os Estados Unidos da América e a clarividente ocupação do General
MacArthur, esse país foi transformado numa poderosa economia industrial
capitalista, com a função de impedir a expansão da União Soviética no Pacífico.
Com um povo operoso, capaz de grandes realizações técnicas e com um profundo
sentimento nacionalista, o que lhe dá sentido de unidade continuada, o Japão
transformou-se numa importante potência industrial-tecnológica, de elevado poder
competitivo, capaz de conquistar mercados das mais avançadas nações. Faltava-
lhe, porém, algo crucial: os recursos naturais essenciais, como energia e matérias-
primas. Esse gargalo absolutamente impeditivo foi superado pelo Japão mediante o
acesso às ricas matérias-primas concentradas em países do chamado Terceiro
Mundo e vendidas por valores insignificantes, muitas vezes abaixo dos custos de
extração e transporte, como estabelecido pela tradição colonial do século XIX,
mantida no século XX.
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Quanto ao petróleo, especialmente o do Oriente Médio, distribuído hoje pelas
"quatro irmãs", seus baixos preços favoreceram ainda mais o Japão. Sem petróleo, o
Japão pára em poucos meses.
Esses suprimentos de matérias-primas e de energia realizaram-se em
grandes proporções e representaram sempre pequenas porcentagens do PIB
japonês, quando comparadas com as exportações de produtos acabados resultantes
das transformações dessas matérias-primas e do uso dessa energia, sempre com
elevado valor agregado. Isso deu ao Japão constantes superávits no balanço
comercial — o terceiro maior do mundo, depois dos Estados Unidos e da Alemanha.
O Japão passou a dominar tecnologias sofisticadas que lhe deram grande poder de
barganha. Sua grande competitividade tecnológica permitiu-lhe penetrar em outras
importantes economias com grandes vantagens em relação às empresas locais. Isso
ocorreu, por exemplo, nos setores eletrônico e automobilístico dos Estados Unidos e
de outros países, o que começou a criar graves dificuldades para as políticas locais,
que visavam, logicamente, favorecer as indústrias dessas nações.
Esses conflitos ganharam dimensão na medida em que o domínio japonês
crescia, e já havia ocorrido o desmoronamento da União Soviética; então, não
existiam mais razões para o Japão servir de freio à expansão soviética para o
Pacífico, o que tinha justificado sua ampla liberdade de usufruir condições coloniais
excepcionais no acesso a recursos naturais de países ligados à área da influência
política e econômica dos Estados Unidos. De qualquer forma, o Japão já se tinha
beneficiado ao extremo de tais condições, que privilegiam os chamados países ricos,
no confronto com os detentores de recursos naturais. Nessas condições, os
interesses ianques começaram a pressionar para impedir, na origem ou pela via
marítima, o acesso do Japão a esses recursos em condições tão favoráveis.
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Autores americanos consideram inevitável que o aumento dessas restrições,
que objetivam tentar bloquear o acesso do Japão a matérias-primas essenciais
nessas condições e frear, portanto, o ímpeto competitivo nipônico, leve à guerra.
Segundo esses autores, as vantagens obtidas pelos japoneses não poderão
persistir. Configura-se assim, claramente, neste caso, uma guerra por matérias-
primas, que vem juntar-se às guerras que vêm ocorrendo em relação ao petróleo.
Não tardarão a surgir guerras relacionadas ao controle da água.
O Brasil é um dos principais fornecedores de matérias-primas em condições
coloniais para as nações hegemônicas. Eis alguns exemplos:
1- Há pouco mais de uma década, exportávamos a tonelada de minério de
ferro por valor equivalente a 22 gramas de ouro; hoje exportamos por pouco mais de
1 grama.
2- Para um brasileiro dormir uma noite em um hotel de quatro estrelas em
Nova Iorque, o Brasil precisa colocar 30 toneladas de minério de ferro no outro lado
do mundo.
3- Exportávamos quartzo para fins piezelétricos, usados nos telégrafos da 1ª
Guerra, pelo valor de 5 dólares o quilo. Com o surgimento da tecnologia do silício,
que tornou toda a eletrônica contemporânea dependente do quartzo de primeira
qualidade, a demanda cresceu enormemente; então, o Brasil, produtor de mais de
98% do quartzo mundial, passou a exportá-lo por 40 centavos de dólar o quilo, em
vez de 5 dólares. Note-se que a demanda aumentou, mas, surpreendentemente, o
preço baixou. Esse é um flagrante exemplo de que a decantada lei da oferta e da
procura é manipulada por quem pode.
4- A produção de alumínio metálico exige uso intenso de eletricidade. Cerca
de 80% do custo de produção do metal é despendido em energia elétrica. As
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grandes corporações transacionais de alumínio vieram localizar-se próximo à
Hidrelétrica de Tucuruí para usufruir da energia ali gerada, que, pelos elevados juros
dos empréstimos feitos, custa cerca de 42 dólares o megawatt-hora. A
ELETRONORTE vende essa energia por valores próximos dos 10 dólares para as
corporações de alumínio transacionais.
Os exemplos são tantos que podemos considerar essas práticas como
sistemáticas de uma política de exportação que visa favorecer o importador colonial.
A China vem conseguindo há longo tempo um crescimento excepcional, e o
nível de vida do seu povo vem melhorando. Sua população, de cerca de 1,2 bilhão
de habitantes, dá-lhe uma base sólida para esse crescimento. Prevê-se que em
poucos anos o país terá um PIB maior do que o dos Estados Unidos. Ademais, a
China vem dando alta prioridade ao desenvolvimento tecnológico autônomo, o que
favorece o uso comparativo de seus fatores de produção. O principal problema da
China localiza-se na crucial área dos recursos naturais, na área energética. Embora
disponha de razoáveis reservas de petróleo, elas não são suficientes para enfrentar
o extraordinário crescimento econômico que o país está alcançando. Sua principal
fonte energética são as imensas reservas de carvão mineral, cuja queima, como
sabemos, contribui de maneira ponderável para aumentar o efeito estufa. Hoje, a
China já é o segundo maior poluidor do planeta, depois dos Estados Unidos. Com
seu crescimento econômico em grande parte devido ao aumento do uso do carvão
mineral, ela passaria a ser o maior poluidor, o que, evidentemente, desqualifica o
enorme esforço em benefício de seu povo, pois tal crescimento seria alcançado à
custa de graves conseqüências para a humanidade.
Além da acentuada necessidade de fontes energéticas limpas, como as
derivadas da biomassa tropical, a China, com um quinto da população do mundo,
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dispõe de um imenso mercado para um grande produtor de alimentos. Os campos
de interesses do Brasil e da China são, sem dúvida, de enorme potencial estratégico
e de grande extensão e diversidade.
A Alemanha adotou talvez a mais corajosa e saudável política energética dos
últimos dez anos, com extraordinários efeitos para o futuro: decidiu interromper a
geração de energia elétrica de origem nuclear, quando já atendia 30% da demanda
com essa modalidade. Desativará os reatores atômicos à medida que cumprirem
sua previsão de utilidade, e não os substituirá por outros. Essa posição de
vanguarda mundial, tratando-se de um país de primeiro nível tecnológico, abre
perspectivas muito interessantes para a procura de novas formas energéticas por
meio de intensa cooperação comercial e tecnológica com países de regiões
tropicais. Por exemplo, em sua política de cooperação tecnológica, a Alemanha há
muito vem dando elevada prioridade a formas renováveis e limpas de energia. Sua
política de procurar substituir derivados do petróleo na agricultura, especialmente por
óleo vegetais, como o da colza e o do girassol, é demonstração evidente dessa
política.
No caso da Rússia, embora com ponderáveis reservas de petróleo e muito
maiores de carvão mineral, a grande população e as condições climáticas exigem
uma prudente postura ante o futuro. O enorme consumo energético, em grande
parte do ano para aquecimento, e a necessidade de moderar o uso do carvão
mineral por questões ecológicas são condicionantes que justificam a procura de
soluções permanentes e limpas. Suas reservas de petróleo, como acontecerá
inexoravelmente com todos aqueles que dispõem ainda de volumes importantes,
caminham para o ocaso em prazos históricos relativamente reduzidos. Isso
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aconselha-os naturalmente a poupá-las, substituindo-as paulatinamente por formas
renováveis, enfaticamente por aquelas de efeitos ambientais benévolos.
A Índia é um caso muito especial. Pela imensidão territorial e pela grande
população, tem um papel crucial no futuro do mundo. Suas analogias e diferenças
com o Brasil oferecem largo espectro de convergências e ações complementares, o
que permite muitos ajustes e ações de cooperação. A dependência energética no
fim da era dos combustíveis fósseis predestina a Índia a uma potencialmente intensa
cooperação com o Brasil e com os demais países aqui considerados. Seu peso
populacional e territorial é sem dúvida extraordinário, e dá grande sentido ao
conjunto. Ademais, a Índia, sem ser caso evidente de carências, como a China e o
Japão, exige um tratamento prioritário e cuidadoso, pela natureza de sua estrutura
social e cultural.
Esses países formam com o Brasil um grupo que tem tudo para harmonizar
seus interesses cruciais em torno da questão energética, de inestimáveis efeitos
para todos, no momento em que o mundo, em contraste, parece caminhar para
graves dificuldades e conflitos. Lembremo-nos de que esse conjunto — China,
Japão, Alemanha, Rússia, Índia e Brasil — representa parcela ponderável da
humanidade. Esses países são capazes, portanto, de retomar o valor da natureza
como principal reservatório dos elementos físicos essenciais à vida e ao processo
civilizatório. Hoje faz-se o contrário. E, ao desvalorizar a natureza e substituí-la de
modo inconsistente por uma moeda abstrata, que deveria simbolizá-la, cria-se um
vácuo de valor que leva o mundo a incríveis discrepâncias com o universo físico e a
permanentes conflitos.
Ademais, é necessário dar um passo decisivo na recuperação da necessária
estabilidade nas relações entre os povos, com vistas a superar os dois maiores
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colapsos estruturais que a humanidade jamais sofreu: o ambiental e o energético,
decorrentes da queima desproporcional de combustíveis fósseis.
Com novas políticas de relações internacionais para esse conjunto de
importantes países, o Brasil poderia ajudar a superar problemas cruciais, que
impedem a evolução humana. Cabe, entretanto, ir agregando paulatinamente outros
que venham a juntar-se no esforço coletivo, a exemplo de experiências de alta
potencialidade, como a dos países do MERCOSUL, esmagados pela oligarquia
financeira internacional e pelo projeto colonial da ALCA que os Estados Unidos
pretendem impor. Nesse caso, a Argentina tem uma contribuição efetiva a dar ao
conjunto dos países, pelo seu elevado potencial de produção alimentícia para
suprimento de grandes populações, como as da Índia e da China, mas, sem
nenhuma dúvida, o país-chave desse conjunto é o Brasil. Por seu território
continental, seu clima tropical, com grandes reservas naturais estratégicas e
respostas práticas e possíveis, extraídas do mundo concreto e afastadas da loucura
atual, ele é importante tanto para a solução dos problemas relacionados com os dois
colapsos mundiais, o ambiental e o energético, como para superar a perigosa
escassez de matérias-primas e de água.
Há inúmeros precedentes de iniciativas de cooperação de alguns desses
países com o Brasil, iniciativas essas que demonstram predisposição de busca de
soluções para questões cruciais com base em elementos estratégicos da nossa
natureza, mas que não vão adiante por não encontrarem interlocutor do lado
brasileiro nem políticas ou respostas concretas relacionadas com vocações
brasileiras de importância mundial. O descolamento da ação do Estado brasileiro
das suas vocações naturais frusta qualquer iniciativa em favor do seu povo. Seus
atuais dirigentes concentram-se na administração do desastre financeiro
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programado, do dinheiro digital abstrato, conduzido de fora do País por agentes da
oligarquia financeira internacional.
A então Comissão Européia promoveu, em outubro de 1997, em Brasília, uma
conferência internacional sobre o tema "Biomassa para a produção de eletricidade:
experiências e perspectivas na União Européia e no Brasil". O desinteresse do
Governo brasileiro praticamente interrompeu o processo, que se iniciava com uma
conferência realizada em Brasília por iniciativa da União Européia, totalmente
custeada por eles.
Os Estados Unidos, que estavam importando crescentes quantidades de
etanol do Brasil, bloquearam essas importações mediante um subsídio de 100%
para seus produtores de álcool obtido de milho, ineficiente conversor energético,
com vistas à substituição do chumbo em mistura com a gasolina. Com a
impossibilidade de obter etanol em quantidade suficiente, passaram a adotar a
substância química MTBE, altamente poluidora, no lugar do chumbo. Após vários
anos de prática dessa substituição, uma fundação norte-americana dedicada ao
setor ambiental levantou que em 31 Estados a substância tinha contaminado 50%
dos poços de água potável — um verdadeiro desastre ecológico.
Para ganhar fôlego e poder levar avante esse ambicioso programa de
alianças com importantes países, é crucial consolidar a situação interna, com
ampliação substantiva do nosso mercado consumidor, eliminando a miséria, as
odiosas e perversas desigualdades, e criando vários milhões de novos postos de
trabalho, precisamente por meio da ampliação do uso de formas energéticas
renováveis e limpas do estoque. Isso permitirá construir, com meios próprios, a base
de uma infra-estrutura de produção e distribuição essencial para o ambicioso e
necessário programa das referidas alianças externas.
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A ênfase dada ao novo papel do Brasil no contexto internacional encontra,
porém, do nosso lado, graves carências estruturais, como conseqüência de políticas
de destruição do Estado implantadas de acordo com os objetivos propugnados pelo
Consenso de Washington e pelo neoliberalismo. Deles resultaram a eliminação dos
poucos instrumentos de que dispúnhamos para atuação no mercado externo. Assim,
foi fechada a INTERBRÁS, de elevado poder de barganha internacional, por ser a
principal compradora individual de petróleo do mundo; o Instituto do Açúcar e do
Álcool (IAA), que atuava nas exportações de açúcar e álcool; e o Instituto Brasileiro
do Café (IBC), na área do café. Não dispomos de instrumentos nem mesmo para
promover o comércio dos nossos principais produtos de exportação.
A questão ambiental do efeito estufa tem muitos outros fatores. A mais
importante entidade ambiental mundial, a norte-americana Worldwatch Institute,
propugnou, no documento "A situação do mundo", de 1997, a criação de uma cúpula
mundial, a ser formada pelos principais países relacionados com essas questões.
Seria o Grupo E-9 — "E" de environment —, mais poderoso que o atual G-8, que
atua na área financeira. O E-9 seria composto de três superpotências ambientais: os
Estados Unidos, a maior potência industrial-militar e o maior poluidor; a China, com
um quinto da população do planeta, segundo maior poluidor, com possibilidade de
passar a ser rapidamente o principal; e o Brasil, o país-continente tropical, o único
não predador do conjunto. Os outros seis países seriam a Alemanha, o Japão, a
Indonésia, a Grã-Bretanha, a Índia e a Rússia.
Note-se que os países que comporiam o E-9 — proposto pelos norte-
americanos, repito — são aqueles que têm problemas cruciais, no que se refere
tanto à energia e ao meio ambiente como a matérias-primas, em convergência
complementar com o Brasil. Excetuam-se dessa condição os Estados Unidos e a
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Grã-Bretanha, por motivos óbvios, e a Indonésia, com quem não temos relações
intensas.
Esse complexo quadro de alianças não tem o critério geográfico ou cultural
como princípio unificador, mas sim razões mais fundamentais, ligadas à evolução e
até à sobrevivência dos países envolvidos. Sua característica principal é oposta
àquela radical que orienta o chamado "choque das culturas", confinadora dos povos
no redil de suas culturas originais, e limitadora, de modo indevido, do amplo
potencial de cooperação em questões vitais. Os resultados do quadro de alianças
aqui apresentado representam o oposto daqueles pretendidos com o "choque de
culturas", que leva à guerra.
A conotação bélica, destruidora, que caracteriza o "choque de culturas",
conforme defendem intelectuais do Império, fica superada, na presente proposta do
quadro de alianças, pelo papel pacificador desempenhado pelo nosso país-
continente tropical, que pode resolver problemas cruciais de países de grande peso
na população mundial. A redução das tensões que o surgimento de uma forma de
energia extensiva, permanente e limpa, em condições de substituir plenamente os
combustíveis fósseis, poderá representar é sem dúvida uma razão substantiva e
prática para se alcançar a paz no mundo. O contraponto do estopim de conflitos
provocados pelo ocaso do petróleo e pelo declínio dos demais combustíveis fósseis
por questões ambientais são as formas energéticas renováveis e limpas de origem
vegetal nos trópicos.
Todas as formas energéticas utilizadas pelo homem, com exceção da energia
das marés, da geotermia e da energia nuclear, vêm do Sol, o eterno e imenso reator
da fusão nuclear natural. A energia solar acumulada nos hidratos de carbono das
plantas e de animais microscópicos necessita de centenas de milhões de anos para
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transformar-se em combustível fóssil. O uso direto dos hidratos de carbono das
plantas encurta em eras geológicas a possibilidade de uso da energia solar em
formas concentradas, sólidas, líquidas e gasosas. Enquanto os hidrocarbonetos,
cujas misturas formam o petróleo, derivam dos hidratos de carbono pela perda de
oxigênio, no processo de fossilização, e levam quatrocentos ou mais milhões de
anos para se formar, o óleo de girassol, limpo e renovável, do ponto de vista
ecológico, que chega a fazer 40 quilômetros por litro em motores ciclo diesel, um
excepcional substituto do óleo diesel do petróleo, leva apenas três semanas para se
formar. Assim, em vez de usar-se o capital da energia solar, que exige centenas de
milhões de anos para se constituir, usemos os dividendos dessa energia, renovados
de forma permanente.
Os combustíveis derivados da biomassa, hidratos de carbono vegetal, exigem
formação acelerada, o que ocorre com muito sol e muita água. Isso somente é
possível em regiões tropicais. O território continental brasileiro detém de 22% a 24%
da água doce da Terra. Somente a região amazônica tem 18% desse montante,
ficando o Canadá em segundo lugar, com 14%, embora em forma de gelo durante
grande parte do ano.
Finalmente, ser o principal supridor mundial de energia renovável e limpa ou
de produtos de elevado conteúdo energético exige territórios de dimensões
continentais localizados nos trópicos, dotados de água e com imensas áreas não
ocupadas. Assim, oferece-se ao Brasil a grande oportunidade econômica que jamais
país algum teve na História da Humanidade, o que justifica o papel importante que
temos no mundo, neste começo do século XXI, como propomos neste trabalho.
Aproveito a oportunidade desta reunião para acrescentar que esse projeto,
óbvio, claro, absolutamente pragmático e decisivo para o futuro e a paz da
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humanidade, exige governo no Brasil. Estamos em vésperas de uma eleição, e, na
minha perspectiva, duas coisas podem acontecer: ou o futuro Presidente da
República vira um líder mundial, um estadista compatível com a dimensão de um
programa dessa natureza, ou será o nosso De la Rúa.
Muito obrigado. (Palmas.)
O SR. COORDENADOR (Deputado Aldo Rebelo) - Prof. José Walter Bautista
Vidal, agradecemos a V.Sa. a exposição.
Passo agora a palavra à Dra. Flávia Piovesan, Procuradora do Estado de São
Paulo, professora de Direito Constitucional e de Direitos Humanos do Programa de
Pós-Graduação da PUC de São Paulo e autora do livro "Direitos Humanos e o
Direito Constitucional Internacional", publicado pela Editora Max Limonad, já na 5ª
edição.
A SRA. FLÁVIA PIOVESAN - Bom dia a todos. Inicialmente, eu gostaria de
agradecer às entidades organizadoras deste evento o especial e honroso convite
para participarmos deste seminário em que se discute a política externa do Brasil
para o século XXI.
Cumprimento o Coordenador dos trabalhos e Presidente da Comissão de
Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados, Deputado
Aldo Rebelo, o Prof. José Walter Bautista Vidal, que fez uma excelente intervenção,
e o Prof. Marcelo Castro, que falará a seguir.
O tema da minha exposição será "A proteção internacional dos direitos
humanos — desafios internacionais para o século XXI". Pretendo trazer ao debate
duas reflexões que me parecem centrais. A primeira, eu diria, é uma abordagem
preliminar sobre a proteção internacional dos direitos humanos, ou seja, como
compreender o sistema internacional de proteção desses direitos, seu perfil, seu
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objetivo, sua lógica, sua epistemologia. Num segundo momento, avançarei no
campo das inovações e dos desafios contemporâneos da proteção internacional dos
direitos humanos, isto é, nos desafios e perspectivas desse sistema à luz do
contexto contemporâneo.
Primeira indagação: como compreender a arquitetura internacional de
proteção dos direitos humanos? A que veio? Qual é seu propósito, seu objetivo, sua
lógica, sua epistemologia? Começo pela historicidade dos direitos humanos,
afirmando, como diz Anna Arendt, que os direitos humanos não são um dado, mas
sim um construído. Eles têm a sua história e a sua dinâmica própria de construção e
reconstrução. Pautas como direito ao meio ambiente, direitos reprodutivos, direito ao
desenvolvimento sustentável, direito ao acesso à tecnologia seriam impensáveis
cinco décadas atrás.
Não obstante essa historicidade, os direitos humanos sempre celebram a
linguagem da inclusão, a linguagem emancipatória do nosso tempo. Posso então
dizer, tendo em vista esse olhar histórico e alinhando-me às lições de Norberto
Bobbio, que os direitos humanos nascem como direitos naturais universais — invoco
o legado iluminista — e desenvolvem-se como direitos positivos particulares quando
cada Estado escreve sua própria Constituição, contemplando sua própria declaração
de direitos, para, no dizer de Bobbio, finalmente encontrarem sua plena realização
como direitos positivos universais.
O que significa essa sistemática internacional de proteção aos direitos
humanos? Por que, em determinado momento histórico, a humanidade clamou por
uma sistemática supra-estatal de proteção desses direitos?
Trago algumas notícias que evidenciam esse fenômeno. Uma delas foi pauta
deste seminário, o Tribunal Penal Internacional. Teremos o privilégio de poder
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freqüentar ineditamente a instalação do primeiro Tribunal Penal Internacional,
inaugurado no mês de julho deste ano, para o julgamento dos graves crimes que
afetam a ordem internacional. Outra matéria, também impensável há algumas
décadas, intitulada "Comissão de Direitos Humanos da Câmara denuncia o
esquema de exploração sexual infantil na Paraíba junto à OEA", foi publicada em
maio deste ano, mostrando o que ocorre no interior da Paraíba, e submetida ao crivo
da comunidade internacional. Há também a notícia que foi estampada na mídia em
junho deste ano, intitulada "Brasil teme punição pela OEA por absolvições no caso
Eldorado dos Carajás". Essas três notícias possuem em comum essa gramática
internacional dos direitos humanos, fenômeno extremamente recente da História,
como resposta às atrocidades, aos horrores, à barbárie da era Hitler.
Quando o Estado se faz o grande delinqüente no marco jurídico, é necessário
ousar, na visão de um constitucionalismo global, com capacidade de proteger
direitos e limitar o arbítrio acima ou numa ordem internacional. Dessa maneira, a 2ª
Guerra surge como a ruptura dos direitos humanos, e o pós-guerra como a
esperança de um horizonte moral, a esperança de reconstrução desses direitos.
Fortalece-se a idéia de que a proteção dos direitos humanos não deve reduzir-se ao
domínio reservado de um Estado, mas é tema global de legítimo interesse da
comunidade internacional. Por sua vez, isso traz duas conseqüências. A primeira é a
necessidade de revisitar a noção tradicional de soberania absoluta do Estado, que
passa por um processo de redefinição, de releitura.
No campo dos direitos humanos, direitos humanos globais significam uma
soberania menos centrada no âmago do Estado e mais centrada no âmago de uma
cidadania universal. Como diz o Prof. Lafer, temos de transitar da lente ex parte
principis, focada no Estado, nos deveres dos súditos, para a lente ex parte populi,
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focada nos direitos individuais. Assim, nesse cenário, nasce em 1948 a Declaração
Universal, com a tentativa de traduzir esse mínimo ético irredutível, parâmetros
mínimos de proteção, transcendendo a diversidade cultural de cada um dos Estados.
A Declaração Universal traz a nova visão dos direitos humanos, pautada pela
sua universalidade e indivisibilidade, rompe com o legado nazista, que entendia que
o sujeito de direito estava integrado a uma raça específica, a "raça pura ariana", e
traz a visão de que a dignidade humana é o fundamento dos direitos humanos,
porque o ser humano é um ser essencialmente moral, dotado de dignidade. Traz
também a visão da indivisibilidade desses direitos, porque celebra a conjugação da
plataforma liberal com a social. É o primeiro documento da nossa História a prever
direitos civis e políticos combinados com direitos sociais, econômicos e culturais.
Tão importante é o direito à liberdade, o direito de não ser submetido a tortura, como
o direito à educação, à saúde, ao trabalho, à Previdência e à justiça social.
Liberdade e igualdade somam-se, na medida em que não há liberdade sem
igualdade, tampouco igualdade sem liberdade.
Com isso, nasce essa arquitetura internacional, e são pautados consensos
éticos afinados com temas centrais para a dignidade humana. Ou seja, o grande
esforço aqui se traduz em parâmetros mínimos de proteção capazes de evitar
abusos, retrocessos, e de potencializar avanços no âmbito interno dos Estados. Cito
o exemplo do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, com o aval de 147
Estados Parte; o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais,
atualmente com o aval de 145 Estados Parte; a Convenção sobre os Direitos da
Criança, com o recorde de ratificações, celebrado na voz de 191 Estados, excluídos
os Estados Unidos e a Somália; a Convenção Racial, com a ampla adesão de 157
Estados; a Convenção da Mulher, com o aval de 168 Estados.
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Por que esses números? Porque esses números são capazes de ilustrar o
grau desses consensos internacionais, buscando a proteção da dignidade humana.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos mapeia esse horizonte moral
contemporâneo. À época, foi adotada em 48 Estados, sendo que oito deles se
abstiveram. Passados 50 anos, a Conferência Mundial de Viena endossou a mesma
gramática, afirmando serem os direitos humanos universais interdependentes e
inter-relacionados; indo além, travando o diálogo necessário entre direitos humanos,
democracia e desenvolvimento. Ou seja, não há direitos humanos sem democracia e
vice-versa. Reitero: o regime mais compatível com a proteção dos direitos humanos
é o democrático.
Novamente, valho-me de Bobbio para dizer que a liberdade e a igualdade são
valores que fundamentam a democracia. Entre as várias definições de democracia, a
que leva em conta não só as regras do jogo, mas os princípios e os criadores dele, é
a de que a democracia não é sociedade livre de iguais, mas sociedade regulada, de
tal modo que os indivíduos que a compõem sejam livres e iguais em qualquer outra
forma de convivência política. Ou seja, a democracia promove a igualdade e a
liberdade e, por isso, dialoga com a gramática dos direitos humanos. Igualmente, foi
a fala do vetor desenvolvimento do hemisfério sul sobre o direito ao
desenvolvimento, também obstado pelos Estados Unidos, como direito universal e
inalienável, direito a uma globalização ética e solidária, na medida em que reflete
uma demanda crucial da atualidade. E a demanda é simples: quatro quintos da
população mundial não mais aceita o fato de um quinto continuar a construir sua
riqueza com base na miséria e na pobreza deles remanescentes.
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Assim, surge a ética dos direitos humanos, que compreende a
interdependência, a democracia e o desenvolvimento, pressupondo-se sempre uma
gramática de inclusão, uma plataforma emancipatória.
Quais as inovações, os desafios, as perspectivas do sistema internacional à
luz da ordem contemporânea?
Há cinco desafios centrais para o século XXI.
O primeiro se refere ao processo de sanção dos direitos humanos. Ou seja,
especialmente nós do eixo sul precisamos ter voz neste debate, trazer nossas
reivindicações específicas, buscando romper com a tradição que sempre priorizou os
direitos civis e políticos e não os direitos sociais, econômicos e culturais. Lembro que
o Brasil tem inventado essa gramática.
Trago matéria publicada este ano sobre a vitória do Brasil na Comissão de
Direitos Humanos da ONU, que permitiu a entrada de remédios para tuberculose e
malária. Algo impensável há décadas. Então, quando se fala em direitos humanos,
fala-se na expansão contínua e dinâmica dos direitos humanos — e isso traz
impactos ao sistema internacional.
O segundo se refere ao processo de identificação de novos sujeitos de
direitos e a criação de uma tutela jurídica específica no plano internacional.
Se numa primeira fase, especialmente no cenário internacional, buscou-se a
proteção geral, abstrata e genérica das pessoas — até porque a diferença fomentou
a arquitetura da destruição —, hoje percebemos como é importante a especificação
do sujeito de direito. O sujeito de direito precisa ganhar rosto, gênero, recortes de
raça, etnia, idade, dentre outros. Ou seja, surgem sujeitos especificados e a ordem
jurídica internacional deve transpor uma proteção específica.
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O direito à diferença nasce ao lado do direito à igualdade. A igualdade tem
que ser contemplada com base na diversidade e na diferença — diferença não mais
como elemento de destruição, mas de construção de direitos. É nessa perspectiva
que lembro a Conferência de Durban, na África do Sul, no ano passado, e penso
que, ao trabalharmos com direitos humanos, temos de abranger os recortes de
gênero, etnia, raça e exclusão social. Há pesquisas com as quais sempre me
escandalizo quando leio. Uma pesquisa feita pelo PNUD mostra que 96 anos
separam Lagoa e Acari, bairros do Rio de Janeiro. Quer dizer, no mesmo Município,
temos Índices de Desenvolvimento Humano absolutamente distintos. O IDH da
Lagoa é semelhante ao da Itália; o IDH de Acari é semelhante ao da Argélia. Isso
significa, por exemplo, que quem nasce na Lagoa vive em média 73 anos e quem
nasce em Acari vive 56 anos, quase 20 anos a menos. Quem nasce na Lagoa tem
uma taxa de escolaridade média de 12 anos e em Acari, de 3 anos. O recorte
exclusão social tem de estar presente, como também o recorte raça e etnia. O nosso
País figura dentre as grandes economias mundiais, 11ª ou 12ª. Contudo, estamos
classificados em 73º lugar pelo IDH. E sob o prisma racial, se indagássemos como
vive aqui a população branca, subiríamos 30 casas; se indagássemos como vive a
população negra, desceríamos 30 casas. Temos de dar visibilidade a esse
apartheid quando lidamos com direitos humanos.
Terceiro aspecto: o processo de reconhecimento de novos atores na ordem
internacional e a democratização dos instrumentos internacionais. Foi-se o tempo
em que os Estados eram os únicos protagonistas da ordem internacional. Hoje,
temos uma sociedade civil internacional, entidades, organizações regionais, blocos
regionais, indivíduos, e isso tudo mapeia um outro mosaico nas relações
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internacionais e demanda uma reavaliação dessa arquitetura pensada para lidar
apenas com Estados.
Portanto, na ótica dos direitos humanos, aceno a essa democratização.
Citaria cada vez mais, por exemplo, o sistema europeu que já admite, desde 1998, o
acesso direto do indivíduo à Corte Européia de Direitos Humanos como sujeito de
direito. Vejo que ainda muitos Estados resistem em aceitar a sistemática de petição
individual presente nos Tratados de Direitos Humanos. Pela petição individual, posso
encaminhar uma denúncia de violação de direitos humanos a instâncias
internacionais. Mas isso é cláusula facultativa de muitos tratados. Para que os
senhores tenham uma idéia, dos 124 Estados que fazem parte da Convenção
Contra a Tortura, 40 aceitam as petições individuais. Dos 157 Estados que fazem
parte da Convenção Racial, 34 aceitam a sistemática de petição individual.
Felizmente, dentre eles, o Brasil, em razão do acolhimento desse mecanismo neste
ano de 2002. Tenho aqui outros números, mas não vou cansá-los; no entanto, aceno
a essa resistência dos Estados na democratização desses instrumentos
internacionais.
Faço também a minha crítica. É fundamental encorajar os Estados a
aceitarem esses mecanismos, sendo hoje inadmissível que os Estados aceitem
direitos e, ao mesmo tempo, neguem a garantia da sua proteção.
Quarto aspecto: necessidade de incorporar a agenda de direitos humanos nas
organizações e instituições econômicas regionais e globais, especialmente na arena
da globalização econômica em que temos não só Estados, mas blocos regionais e
grandes multinacionais. Lembro que das cem maiores economias mundiais hoje, 51
são multinacionais e 49 são Estados. Há multinacionais cujo faturamento anual
exorbita e muito o PIB de Estados.
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Como repensar a gramática dos direitos humanos nesse novo contexto?
Parece-me central que neste contexto há o desafio de que os direitos humanos
possam atingir, permear as políticas macroeconômica, fiscal, monetária e cambial.
Trago aqui a observação que Mary Robinson, a então Alta Comissária da ONU para
os Direitos Humanos, faz: “O incompetente diretor do Banco Central é muito mais
lesivo aos direitos humanos do que o incompetente Ministro da Educação”, porque
há um impacto explícito dessas políticas nesses direitos.
A ONU vive uma grande esquizofrenia, diria, porque, de um lado, há o vetor
includente dos direitos humanos com esses tantos tratados, e, de outro, há todo o
braço do sistema — agências financeiras internacionais, Sistema Bretton Woods,
FMI, Banco Mundial e tantos outros — que não traz a mesma tônica includente. Ou
seja, estamos assistindo ao desastre da América Latina, na medida em que toda a
política do FMI, orientada pela condicionalidade, submete países em
subdesenvolvimento a modelos de ajustes estrutural incompatíveis com os direitos
humanos. Aqui me vem à lembrança Jack Morraine, para quem mercados livres são
economicamente análogos a um sistema político baseado na regra da maioria, sem
a observância, contudo, dos direitos das minorias.
As políticas sociais são fundamentais, essenciais para resguardar os direitos
das minorias em desvantagem ou privadas pelos mercados e para que elas sejam
consideradas com respeito na ordem econômica. Também aceno a responsabilidade
social do setor privado. Se hoje vivemos a privatização do público, do mesmo modo
devemos ter a contrapartida: a publicização do privado. Imagino o Código dos
Direitos Humanos com relação à atividade do comércio, às sanções comerciais, seja
o que for.
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Para terminar, cito o quinto e último fator: o processo de jurisdicionalização
do Direito Internacional, que passa a ganhar garras e dentes, ou seja, passa a não
mais se limitar às sanções do power of embarrassment, poder do embaraço, do
constrangimento político e moral. Passamos a ter hoje, como já mencionei, justiça
internacional. E isso nos dá novo lastro no campo dos direitos humanos. Temos o
Tribunal Penal Internacional, a Justiça Internacional no campo da OEA e do sistema
europeu, também previsto no sistema africano, ainda não instalado. É fundamental
que exista esse braço jurisdicional, porque não há Estado de Direito sem Judiciário.
E se pensamos, ainda que utopicamente, no Estado de Direito no campo
internacional que se desamarre do Estado natureza, é fundamental que haja a
prestação jurisdicional, que existam cortes independentes que profiram decisões
obrigatórias e vinculantes e que façam com que os Estados levem a sério os direitos
humanos, já que as cortes têm essa especial legitimidade.
Por fim, no contexto após 11 de setembro, há o desafio de prosseguir no
esforço construtivo de um Estado de Direito Internacional em uma arena mais
democrática e participativa, tentando romper com as mazelas de um Estado polícia,
de um Estado fundamentalmente guiado pelo lema da força e segurança
internacional. O maior desafio — lembro Paulo Sérgio Pinheiro — é evitar a
neoguerra fria, tendente a conduzir ao perigoso retorno às polaridades. De um lado,
as noções de terrorismo e, do outro, os métodos para combatê-lo. Sabemos que o
risco é que a luta contra o terror comprometa esse aparato civilizatório de décadas
construtivo dos direitos. E contra esse terrorismo de Estado só resta haver a
construtiva dos delineamentos do Estado de Direito.
Que o Direito, portanto, possa prevalecer em razão da força; que a força do
Direito prevaleça em detrimento do direito da força. Esse é o grande desafio, e
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sempre foi, do cenário internacional. O após 11 de setembro invoca, então, o maior
desafio: avançar na era dos direitos, avançar no Estado do Direito Internacional ou
retroceder ao Estado de polícia. Que o Direito Internacional no tocante aos direitos
humanos, ao consagrar esses parâmetros protetores mínimos de defesa da
dignidade, seja capaz de impedir retrocessos, arbitrariedades e propiciar avanços.
Hoje, mais do que nunca, é tempo de inventar uma nova ordem mais includente,
democrática e igualitária e que sobretudo tenha na sua centralidade o valor da
absoluta prevalência da dignidade humana.
Muito obrigada. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Deputado Aldo Rebelo) – Agradeço à Dra. Flávia
Piovesan.
Concedo a palavra ao Sr. Marcelo Castro, Economista da PUC do Rio de
Janeiro e Gerente de Renda Fixa do Banco BNP-Baribas.
O SR. MARCELO CASTRO – Sr. Presidente, Deputado Aldo Rebelo,
diplomatas aqui presentes, turistas que vieram para a apresentação, senhoras e
senhores, concentrarei minha apresentação na questão do capital financeiro
internacional e sua interação com a realidade brasileira. Nesta apresentação,
descreverei as duas grandes tendências mundiais a que assisti nesses treze anos
de minha carreira em bancos, trabalhando tanto no Brasil quanto em Nova Iorque,
onde permaneci durante seis anos, e como elas estabelecem novos desafios para
nosso País no século XXI.
A virada do século XX foi marcada por grandes crises financeiras, a começar
pelas crises do México, em 1995, seguida pela crise asiática, em 1997, a crise da
Rússia, em 1998 e, finalmente, o triste débâcle da Argentina, em 2001. Agora
mesmo, nosso País passa por sérios percalços que encerram graves incertezas
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sobre o futuro. Porém, encerram também certas oportunidades de mudar o que não
está dando certo, ou mesmo oportunidades de o País ser testado pela comunidade
internacional e passar no teste, seguindo adiante mais robusto e autoconfiante.
Todas essas crises recentes, inclusive o atual momento de nosso País,
tiveram duas características comuns: afetaram o capital financeiro numa escala
global e possuíram uma sincronia perversa entre os diversos participantes do
mercado. São essas as duas tendências que procurarei aqui desenvolver.
Antes, porém, peço um pouco de paciência dos presentes para discorrer
sobre a doutrina.
A teoria financeira clássica tradicional postula que os preços dos ativos e das
taxas de juros decorrem dos fundamentos econômicos. Ou seja, o estado da
economia de um país determina a taxa de juros; a capacidade de geração de caixa
de uma empresa determina o preço de sua ação na bolsa de valores. Se uma nova
informação mostra que os fundamentos se alteraram, imediatamente essa
informação se dissemina pelos agentes do mercado, e o preço oscila de acordo com
ela. É importante notar a causalidade sempre dos fundamentos econômicos para os
preços dos ativos.
Quem trabalha no mercado financeiro já experimentou na prática que a
realidade não é tão simples assim. Normalmente, o primeiro aprendizado, de que os
preços podem se descolar dos fundamentos de forma irracional, ocorre
dolorosamente para os operadores. Há duas razões básicas para tal, que vou aqui
descrever.
A primeira razão é o comportamento das multidões, que na língua inglesa é
denominado efeito manada. Indivíduos que interagem com outros, por vezes,
desenvolvem algum padrão de comportamento que parece combinado, quando de
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fato ocorreu espontaneamente. Cabe frisar a palavra “espontaneamente”, porque
quem observa de fora tende a pensar que há certo conluio entre os indivíduos, o que
não é verdade. Quem teve a chance de assistir a um jogo de futebol no Maracanã,
quando havia ainda a geral, pode entender bem esse ponto. Na geral, os torcedores
assistiam ao jogo em pé, separados do campo somente por um fosso. Volta e meia,
algo acontecia na geral, uma briga, por exemplo, e alguns poucos torcedores
corriam. Não era raro, no entanto, ver aquela pequena agitação se transformar numa
onda de corre-corre, que, sem motivo aparente, dava uma volta em torno do campo
até se dissipar.
Outro exemplo de cunho futebolísticos, para ilustrar o comportamento das
multidões, é a organização das torcidas cariocas no Maracanã. As torcidas do Vasco
da Gama e do Flamengo são as únicas que jamais trocam de lado no Maracanã:
sempre à direita e à esquerda das cadeiras especiais, respectivamente.
A torcida do Botafogo também quer ocupar o lado direito, à exceção de
quando joga com o Vasco. Nesse caso, a torcida do Botafogo cede o lado direito das
cadeiras à torcida do Vasco. O mesmo acontece com a torcida do Fluminense, que
ocupa o lado esquerdo do estádio só em dias de Fla x Flu. Então, há uma regra de
posicionamento das torcidas e dessas grandes multidões no Maracanã,
independentemente de qual time joga. Interessante notar que essas regras se
originaram de forma totalmente espontânea. Normalmente, depois de várias brigas,
atritos e querelas.
Da mesma forma que acontece nas torcidas de futebol, o mercado é uma
grande multidão. São inúmeros os exemplos de sincronização espontânea de
agentes de mercado. Um estudo dessas regras de como as multidões se organizam
é objeto fundamental da Ciência Econômica. Na maioria das vezes, o
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comportamento dessas multidões é estabilizador, aludindo, no caso, ao exemplo do
posicionamento das torcidas no Maracanã. Outras vezes, o comportamento
resultante é caótico, originando um corre-corre na geral. Quando isso acontece, os
preços costumam perder aderência aos fundamentos econômicos. Nessas ocasiões,
é normal a mídia e os jornalistas procurarem uma razão para tal comportamento em
interesses escusos, teorias conspiracionistas ou ataques especulativos. Não estou
dizendo que isso não ocorre; volta e meia existe manipulação de mercado e ataque
especulativo, mas é raro. Na maior parte das vezes, é simplesmente esse
comportamento de multidão que causa esses fenômenos irracionais. Esse é o
primeiro ponto que influencia o comportamento dos preços.
O segundo ponto é um conceito que se chama “Teoria da Reflexividade”,
desenvolvido pelo megaespeculador George Soros, que ganhou muito dinheiro com
ele. São as chamadas profecias auto-realizáveis. Por exemplo, o pessoal vende na
bolsa e com isso o dólar sobe, gera inflação, que gera um desconforto, que acaba
validando o fato de a pessoa ter vendido na bolsa num primeiro momento. Há
também o fato de especularem contra títulos da dívida brasileira, o que também gera
uma situação de desconforto, afetando inclusive nossa questão política. Essas
profecias auto-realizáveis, às vezes de cunho realmente escuso, outras vezes
movidas por questões externas a nós, geram também esse comportamento.
Disse anteriormente que existem duas razões no mundo atual que trazem
esse prejuízo. Primeiro, quando os preços se descolam, o que já é problemático.
Quando os preços se descolam ocorrem as duas coisas: um movimento irracional de
preços, que gera fundamentos piores para a economia, prejudica nossa sociedade,
com crises severíssimas como a que estamos vivendo atualmente.
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Essa conjunção de fatores perversos ficou exacerbada na primeira virada do
século XX, de acordo com duas tendências que abordarei agora.
A primeira tendência é a existência de um capital financeiro cada vez mais
sofisticado. Jamais houve abundância de capital especializado no mundo. Ou seja,
um capital muito especializado que se originou com esse sistema de previdência
privada e demais sistemas de capitalização e floresceu uma indústria de
gerenciamento de recursos — fundo de pensão, empresas seguradoras, fundos
mútuos. Esses fundos perscrutam o mundo em busca de aplicações financeiras que
proporcionem um retorno superior aos seus clientes acionistas. Além disso, nessas
empresas mais tradicionais há também fundos ultra-especializados. Por exemplo, há
fundos indexados, que não querem ter um retorno superior, simplesmente querem
replicar o retorno equivalente ao da bolsa americana ou do rendimento do ouro.
Existem os famosos fundos alavancados, os perversos hedge funds, em que se
apostam grandes tendências mundiais — se o juro vai cair, se haverá crise. São
fundos de valor relativo, que na verdade investem comprando um produto e
vendendo outro. Há ainda os fundos de dívida estressada, os fundos abutres. São
terríveis porque compram dívidas de países que já realizaram reestruturação da
dívida, como Argentina e Peru, e depois tornam a vida desses países um inferno.
Vão a tribunais internacionais, ameaçam arrestar os bens desses países, como a
Itália está fazendo com os bens argentinos e a exemplo do que aconteceu no Peru.
Esses países são obrigados a fazer acordos à parte com esses fundos para evitar
esse inferno. Isso acontece no mundo moderno.
Além desses agentes especializadíssimos, os bancos internacionais
desenvolveram, na última década, departamentos de risco que comparam retorno de
um vasto número de ativos. Já vi isso funcionar. São modelos de risco capazes de
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padronizar retornos de ativos muito díspares, ou seja, títulos do Tesouro americano,
bônus da dívida do Equador, títulos de hipoteca da Dinamarca, opções de títulos do
Banco do Japão. Tudo isso é colocado lado a lado basicamente para se ver onde há
maior possibilidade de ganho e de retorno.
As empresas transnacionais também participam desse movimento de
globalização do capital com operações de câmbio em vários países, diversificando
suas linhas de produção entre diferentes localizações do mundo. Esse capital
movimenta-se rapidamente de um país para outro e está pronto para avaliar as mais
diversas oportunidades de investimento e especulação. Além disso, esse capital
formou uma rede de conexões que não tem centro e por isso é muito dinâmica,
semelhante à Internet. Diria mesmo que semelhante à maneira como a Al Qaeda se
organiza no mundo. Quer dizer, é uma rede sem centro e por isso é muito robusta.
Há alianças entre empresas, trocas de informação entre altos executivos,
autoridades e empresas de consultoria. Tudo isso gera uma rede de contatos em
que a informação flui rapidamente.
Essa teia de relacionamentos não só compartilha informação como também
interage através de fusões e aquisições, contratos de fornecimento, serviços de
consultoria e terceirização de atividades. Da mesma forma que os chefes de Estado
mantêm contato entre si, o mesmo ocorre entre diretorias das empresas
transnacionais, bancos e gerenciadores de recursos, que se encontram em eventos
em Davos ou Nova Iorque para discutir decisões estratégicas. Freqüentemente, têm
decisões semelhantes ou compartilham a mesma visão sobre determinado assunto.
A segunda grande tendência é que o altíssimo grau de interação que acabei
de descrever não desenvolveu capacidade de julgamento na mesma medida. É
impressionante, parece até contraditório, mas arrisco dizer que a modernidade gerou
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um excesso de informação que, de fato, prejudica o julgamento. Para julgar, é
necessário introspecção, o que por sua vez é a antítese dessa cultura da Internet, da
informação em tempo real, da ânsia de estar conectado ao mundo.
Neste ponto, relembro um conto de Jorge Luis Borges chamado “Fumes, o
Memorioso”. Trata-se de um “gaucho” possuidor de memória absoluta; lembrava-se
de cada folha da árvore que avistava, de cada estrela do céu, decorava as mais
diversas línguas. Mas Borges observa: “Suspeito, no entanto, que não era muito
capaz de pensa”. Pensar é esquecer diferenças, generalizar, abstrair. No
abarrotado mundo de Fumes não havia senão detalhes quase imediatos.
Este conto de Borges é para mim a metáfora dessa Internet, em que o afã de
se conectar prejudica a capacidade de introspecção e de desenvolver julgamento
independente.
Uma rede de capital financeiro altamente especializada e conectada, aliada a
esse empobrecimento da capacidade de introspecção, levou à exacerbação do
comportamento de multidões. O mercado global tornou-se a multidão final. Na
azáfama da geral do Maracanã, os pobres “geraldinos” correm sem saber por qual
motivo. Pois sim, num mercado globalizado não é tão raro que se compre porque
todos estão a comprar, que se entre em pânico simplesmente porque todos estão
tomados de pânico. É impressionante como esse ambiente é propício à propagação
de modismos, mitos e idéias reducionistas, quando não flagrantemente falsas.
Em minha vida profissional, várias vezes vi que, de repente, todos os
gerentes de risco de vários bancos começavam a pensar ao mesmo tempo: “Ah, o
Brasil é o melhor lugar do mundo, o Brasil vai fazer o default”. Não acho que seja só
um problema de conspiração, mas de falta de julgamento dessa questão que estou
abordando.
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O ponto que quero deixar claro é que no século XXI o Brasil deve incentivar
os investimentos e desencorajar a especulação. Mas, antes de discutir como fazê-lo,
convém diferenciar claramente os conceitos de especulação e investimento. O
célebre investidor Benjamin Graham, professor do grande investidor Warren Buffett,
que está nas páginas dos jornais, escreveu um livro muito bom, “Intelligent Investor”.
No primeiro capítulo, diferencia investimento de especulação da seguinte forma: uma
operação de investimento é aquela que, após análise rigorosa, promete segurança
do principal e retorno adequado. Operações que não obedecem a esses critérios
são especulativas.
A essa lapidar definição, acrescento ainda a origem etimológica da palavra
especulação. Vem do latim. O verbo depoente, cuja forma infinitiva é speculari,
segundo o dicionário Saraiva, significa observar de lugar alto, estar de observação,
estar de atalaia, de sentinela. Speculari occasionem quer dizer espreitar a ocasião.
Speculari consilia significa expiar os desígnios. Speculabor unde significa
espreitarei a oportunidade de. Finalmente, speculatores era o nome dado aos
batedores do exército de César, que iam à frente para desbravar o terreno e adquirir
informação.
Investimento pressupõe um comprometimento de longo prazo, haja vista que
a preservação do capital está sendo assegurada. Já especulação é uma atividade
na qual a perda do capital é uma possibilidade real, por isso exige retornos mais
elevados e prazos menores. Ao contrário do investidor, o especulador necessita de
uma porta de saída, caso mude de opinião sobre o cenário traçado. Como os
batedores do império romano, o especulador espreita matreiramente, aproxima-se
aos poucos, fica de sentinela e foge rapidamente ao primeiro estampido.
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Definidos assim esses conceitos, diria que toda economia com preços livres,
invariavelmente, por bem ou por mal, necessita de especuladores e investidores. Os
especuladores conferem liquidez à economia. Além disso, várias atividades
cotidianas são na verdade atividades especulativas. Por exemplo, a decisão de um
exportador de fechar o câmbio para exportar minério de ferro a um dólar de 2,90 ou
esperar mais uma semana para ver se sobe mais um pouco é uma decisão
especulativa. Uma dona de casa que recebeu o extrato da conta do Fundo DI e se
apavorou com o que viu e resolveu tirar tudo par aplicar em um fundo cambial está
agindo como uma especuladora.
Compreendido o que significa especulação, todos temos de concordar que
nenhum país pode traçar um projeto de longo prazo em que contemple depender
desse tipo de capital para fechar suas contas fiscais ou externas.
É particularmente trágico que dependamos da agências internacionais de
avaliação de risco como a Standard & Poor’s e a Mood’s para que o mundo veja o
Brasil como país propício a receber capitais de longo prazo, um país com grau de
investimento. Essas agências já cometeram vários equívocos notoriamente
documentados, mas a crua realidade é que ainda permanecem como referência para
aquela rede de capital internacional que descrevi. É grave que todas as agências
internacionais no momento classifiquem o Brasil como país conveniente somente
para capitais especulativos. Não podemos nos contentar com isso.
Como evitar ser destino de capitais especulativos? Faço um adendo. O capital
especulativo é como se fosse um vampiro: só vai à sua casa se for convidado.
Qualquer pessoa que já viu um filme de terror sabe disso.
Então, como devemos evitar convidar esse capital especulativo para entrar
aqui? Na minha humilde opinião, o País deveria atuar em diversas áreas. A
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providência mais eficaz, e também a mais árdua, seria adotar um plano de médio
prazo para galgar essa escala de avaliação das agências internacionais, atingindo o
grau de investimento. Na América Latina, apesar de todas as crises, o México e o
Chile já atingiram esse nível. Não é coincidência que esses países sofreram menos
contágio do que nós próprios em razão dessas crises todas que assolam o mundo.
Deveria ainda o País reforçar a atuação dos órgãos fiscalizadores como
Banco Central, Conselho Monetário Nacional e Comissão de Valores Mobiliários,
para que zelem para o bom funcionamento dos mercados, evitando a manipulação
de preços e minimizando a aparição de efeitos manada, tão deletérios para a
economia. É importante notar que o efeito manada pode ocorrer tanto para o lado do
otimismo, caso da bolha da Internet, quanto do pessimismo, que talvez esteja
acontecendo agora com o nosso País. Ambos são nocivos e devem ser
desencorajados.
A política que melhor os combate é a da ampla transparência. Informação
sobre contas públicas, contas externas, inflação, diálogo contínuo, além de dados
precisos sobre a situação patrimonial, de fluxo de caixa das empresas negociadas
em bolsa conferem racionalidade à formação dos preços, porém, reduzindo, não
eliminando totalmente o risco de bolhas especulativas.
É necessário admitir que o Banco Central sozinho não possui todos os
instrumentos suficientes para promover a estabilidade, como bem mostrou a Profa.
Piovesan. Sem um regime fiscal austero, a política monetária não tem como garantir
inflação baixa e, sem uma política tributária eficiente, o País arrisca perder
investimentos de longo prazo para outros países que oferecem condições melhores.
Temos de reconhecer também o prejuízo enorme que o crime organizado e o atual
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ambiente de insegurança acarretam para o investimento e, conseqüentemente, para
o crescimento econômico do País.
Relacionamento com o FMI.
O FMI apoiou e fomentou políticas econômicas equivocadas em alguns
países, que liberaram seus mercados ao capital especulativo quando ainda não
estavam maduros para tal. Em artigo publicado recentemente na revista The
Economist, de 3 de agosto, o diretor do Departamento de Pesquisa do FMI, Dr.
Kenneth Rogoff, reconheceu que “em suas visitas — o texto foi truncado assim
mesmo; demorou para reconhecer o erro do FMI, mas reconheceu — de rotina,
antes da crise da Ásia, o FMI algumas vezes pendeu longe demais em direção a
uma certa negligência benigna, quando os países liberaram seus mercados para
capitais de curto prazo, antes que a estrutura regulatória doméstica estivesse pronta
para lidar com eles. Agora, a opinião do FMI tem mais nuanças.” O Dr. Rogoff usou
de um inglês muito nebuloso para admitir o erro da instituição.
Entretanto, o FMI não impõe sua política a nenhum país, isso é importante. O
FMI é sempre requisitado pelos outros países, chamado pelos governos para auxílio.
A opção de assinar o acordo é soberana do país. Nesse sentido, o FMI é uma das
alternativas de que dispõe o país. Pode às vezes ser uma boa alternativa, ou pode
muitas vezes não o ser. Cabe ao país avaliar responsavelmente, sem paixão, seu
leque de opções, tendo como objetivo primordial — diria mesmo o único objetivo —
garantir o crescimento econômico de longo prazo e a melhoria das suas condições
de vida.
China, Rússia, Malásia são exemplos de países que não seguiram o
receituário do FMI. Romperam com o FMI. A questão sobre se obtiveram ou não
resultados melhores por ter seguido seus próprios rumos é tema de controvérsia no
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ambiente acadêmico, mas alguns autores de renome como o Prêmio Nobel Stiglitz e
o respeitado economista de Harvard Dani Rodrik, bem como o especulador George
Soros, em recente artigo no Financial Times sustentaram que sim, que em alguns
casos países que não aderiram às políticas do Fundo conseguiram resultados
melhores do que os que o fizerem.
Cabe ao Brasil fazer nesse momento a sua própria avaliação do que o FMI
oferece e tomar sua posição. O relacionamento deve ser de parceria, jamais de
submissão. A via certa para a submissão é esperar que a comissão técnica do FMI
venha aqui, analise nossas contas, nossa economia e, ante algumas
condicionalidades, disponibilize algumas dezenas de bilhões de dólares. Com isso,
esperamos que os problemas se resolvam. Essa é a receita para a submissão
completa.
Não é isso o que o FMI deseja. Pelo contrário. Acredito que o Brasil tem as
condições para resolver sozinho seus dilemas, mas se o FMI pode minimizar o custo
social da solução e acelerar a retomada do crescimento, então que um acordo seja
bem-vindo.
Finalmente, concluindo, diria que no século XXI há de se ter clareza de
propósitos, transparência e consistência nas políticas econômicas. No século XXI
não há mais espaço para políticas inconsistentes. O motivo é muito simples. Com o
advento da Internet, com a informação em tempo real, o relacionamento entre
governos e mercados é francamente assimétrico.
O que é o mercado? São milhares de pessoas tomando decisões de negócios
a todo momento; é toda essa rede de capitais globalizados que descrevi nesta
apresentação; são meus familiares quando perguntam o que fazer com suas
economias; são os aposentados e também V.Sas. quando pensam em comprar um
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imóvel, um carro, ou aplicar na poupança. E mais, são todas essas pessoas munidas
das cabeças mais brilhantes e bem informadas, consultores financeiros, advogados,
economistas com larga experiência, jornalistas versadíssimos. Isto é o mercado.
E do lado dos governos, quem dita a política econômica? Diria que, no
máximo, umas trinta pessoas — patriotas, inteligentes, bem-intencionados e bem
informados, porém estressados, com agenda lotada, sem tempo para a introspecção
que o cargo exigiria. A única forma de lidar com o mercado nessa situação é ser
transparente, rigoroso e consistente nas ações. Na expressão popular, é não colocar
prego sem estopa, não presumir que o mercado não vai se dar conta de algum furo
de política.
A simetria de informação e de recursos disponíveis é evidente. Praticar
políticas econômicas inconsistentes no século XXI é ter certeza do fracasso, é como
jogar xadrez contra um grande mestre internacional e fazer o seguinte raciocínio:
vou posicionar meu cavalo, se ele não notar o que pretendo fazer, em cinco lances
dou o xeque-mate. Por outro lado, se o grande mestre der conta, arrisco perder meu
cavalo em dois lances. No século XXI, governos que agirem assim estarão a
especular com o dinheiro do povo. Governos especuladores perdem sempre, pois
especulação é um jogo que os governantes não dominam e, pelo bem do povo, não
devem jogar.
Muito obrigado. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Deputado Aldo Rebelo) – A Presidência agradece à
Dra. Flávia Piovesan, que precisa sair de imediato.
Conversei com os presentes e percebi que algumas conferências já estão
disponíveis em disquete. Portanto, as palestras dos senhores estarão disponíveis
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não apenas em livro, mas também na Internet, nas páginas da Comissão de
Relações Exteriores e de Defesa Nacional, do IPRI e da FAPERJ.
Agradecemos também ao Prof. José Walter Bautista Vidal e ao economista
Marcelo Castro pela presença e pela disposição em colaborar com este seminário.
Convido para integrar a Mesa, neste encerramento, o Ministro Carlos
Henrique Cardim, Diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais do
Itamaraty, da Fundação Alexandre de Gusmão; o Prof. Luis Fernandes, Diretor
Científico da FAPERJ. Saúdo os Embaixadores Musa Amer Odeh, da Palestina, e
Samuel Pinheiro Guimarães, que resistiram ao adiantado da hora.
Vamos encerrar os trabalhos com um balanço final de nossa atividade. Nosso
propósito é fazer um encerramento singelo e informal. Para tanto, passo a palavra a
um dos idealizadores deste evento, com quem mantivemos contato permanente, o
estimado Ministro Carlos Henrique Cardim, Diretor do IPRI.
O SR. CARLOS HENRIQUE CARDIM – Sr. Presidente, senhoras e senhores,
é uma grande satisfação concluir este seminário que representa um estudo das
relações internacionais no Brasil.
Tomo a liberdade de citar o Prof. Karl Deutsch, grande especialista em
relações internacionais. Ele dizia que nas relações internacionais e na política em
geral há dois elementos fundamentais: a ação e o conhecimento. Segundo Deutsch,
numa situação médica, por exemplo, não basta somente a ação, por mais bem-
intencionada que seja e por maiores que sejam a boa vontade e o empenho; é
necessário também que o médico tenha conhecimento específico, caso contrário, o
paciente sofrerá muito, e poderá perder a vida. Esse mesmo modelo pode ser
aplicado em relações internacionais, em que, além da ação, o conhecimento é
fundamental. Mas há uma diferença entre o erro do médico e o do especialista em
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relações internacionais. Nas relações internacionais, precisamos de cemitérios
muito maiores do que na Medicina, ou seja, realmente as conseqüências da falta de
conhecimento nas relações internacionais podem ser terríveis.
Acredito que o conhecimento tem duas dimensões: a pessoal e a social. A
dimensão social, justamente no caso brasileiro, implica ampliar o debate,
incrementar a reflexão sobre as relações internacionais. Eventos como este
seminário colaboram decisivamente para a ampliação e o incremento do assunto. Os
textos produzidos vão gerar conhecimento, debates, e vão estar nas universidades,
além do livro que pretendemos publicar .
Quando estava na Inglaterra, chamava-me a atenção o fato de que, quando
alguém queria perguntar o que se estava estudando não dizia, What are you
studying? mas, What are you reading? O sinônimo de estudo é a escrita, que se
encontra numa universidade, num seminário, no que se pode ter acesso e ler.
Eventos assim são importantes colaborações. Registro, com grande satisfação, a
boa combinação que logramos entre a Comissão de Relações Exteriores e de
Defesa Nacional, a FAPERJ e o IPRI. E espero que essa parceria resulte em novos
empreendimentos em breve.
Muito obrigado. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Deputado Aldo Rebelo) – Concedo a palavra, com
muita satisfação, ao Sr. Luis Fernandes, Diretor Cientifico da FAPERJ, professor do
Instituto de Relações Internacionais da PUC do Rio de Janeiro e da Universidade
Federal Fluminense, para suas considerações sobre o seminário. Sinto-me honrado
com a longa trajetória de nossa amizade e de termos integrado juntos a diretoria da
gloriosa União Nacional dos Estudantes.
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O Prof. Luis Fernandes teve papel decisivo na elaboração da concepção
deste evento. Graças a seu entusiasmo e ao valor que atribui às relações
internacionais, como parte importante da centralidade da questão nacional,
conseguimos realizar este seminário. Por seu intermédio, agradeço ao Prof. Renato
Lessa e à FAPERJ.
O SR. LUIS FERNANDES - Sr. Presidente, em primeiro lugar, agradeço à
Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados
a oportunidade de colaborar na organização deste seminário, juntamente com o
Ministro Carlos Henrique Cardim, e de contar com o trabalho conjunto e a
cooperação do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais do Ministério das
Relações Exteriores.
Todos que participaram deste seminário farão suas avaliações ao ler os
trabalhos aqui apresentados, mas na minha apreciação o seminário é amplamente
positivo e uma iniciativa — vou usar uma palavra ousada — sem precedentes. É
normal reunir membros de um Ministério e de setores da área acadêmica para
discutir alguns temas; é normal uma relação institucional regular entre o Ministério,
seus órgãos e Comissão de Relações Exteriores — da Câmara dos Deputados ou
do Senado Federal. Mas esta conjunção que conseguimos reunir é singular, pois há
a participação ativa do Ministério, na organização e apresentação dos trabalhos e
dos debates, da Comissão da Câmara dos Deputados e do mundo acadêmico, que
resultam numa triangulação não muito usual. Esse talvez tenha sido um dos pontos
altos do seminário que realizamos.
Como mencionou o Deputado Aldo Rebelo, sempre há a contribuição da
biografia individual das pessoas envolvidas, além da relação institucional. Nesse
caso, não é comum ter na direção de uma importante agência de fomento no País
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alguém da área de Ciências Sociais. E é menos raro ter — estou há mais de três
anos na função de diretor científico — alguém da área acadêmica de relações
internacionais. No caso da FAPERJ, além dessa singularidade, tivemos durante
quase dois anos como diretor-presidente outra pessoa que também é da área do
Direito Internacional, o Prof. Antônio Celso, que participou de uma das mesas neste
seminário, e mais recentemente um cientista político de renome como diretor-
presidente também da FAPERJ. Aliado a isso, o fato de termos na presidência da
Comissão alguém para quem as relações internacionais e a política externa do País
não são mero pretexto e preocupação desse cargo; são parte das preocupações
existenciais e individuais deste presidente. A conjunção desses fatores singulares
nos permitiu fazer esse desenho e reunir esse conjunto de atores que se fizeram
presentes neste seminário.
Tais fatos singulares devem ser superados daqui para frente, porque o que
atendemos com este seminário foi a uma necessidade permanente do Estado
brasileiro — mais importante do que o fato de pessoas a ocuparem cargos de
direção nas instituições e fundações respectivas e também na Comissão de
Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados.
Talvez o nosso grande desafio seja avançar na institucionalização desse tipo
de iniciativa para que ela tenha continuidade ao refletir o interesse e necessidade
permanente do Estado e do povo brasileiro.
Por ter sido representante de uma das instituições organizadores, tive
oportunidade de participar de todos os seminários, do início ao fim. Nem todos
tiveram essa chance. A minha impressão é que tivemos um painel bastante rico e
abrangente dos desafios da política externa brasileira no início do século XXI, que
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captou tanto a riqueza quanto a variedade dos desafios que se apresentam para a
política externa do País.
Apesar das diferenças existentes nas apresentações — comentava isso com
o Ministro Carlos Henrique Cardim no intervalo —, as discussões foram marcadas
por uma convergência de preocupações e de propósitos.
Vou até me valer da imagem do futebol, apresentada pelo Marcelo Castro, na
mesa anterior. Freqüento o Maracanã há quase quatro décadas, sempre sentando
do lado direito. Então, vocês podem tirar as conclusões futebolísticas desse
posicionamento. O fato é que há três anos, os órgãos de segurança do Governo do
Estado do Rio de Janeiro tomaram uma decisão que tem implicações, para
entendermos as conclusões desse seminário: além de distribuir as torcidas dentro do
Maracanã, distribuíram também fora dele, especialmente no caso de clássicos de
maior rivalidade do futebol carioca, como Vasco e Flamengo. O que ocorreu? A
rivalidade territorializada e controlada dentro do estádio foi transferida para fora dele,
em circunstância absolutamente desterritorializada.
Qual foi o resultado? Não foi ordem, harmonia, relações pacíficas, mas
justamente o inverso, a liberação de um conflito, de uma identidade que antes
estava territorializada em um espaço não territorializado de organização dessa
tensão e o aumento gigantesco da violência, inclusive casos de mortes em
decorrência das tensões entre as torcidas.
Houve uma preocupação que serviu de fio condutor para o seminário, ou seja,
a supremacia adquirida por uma única potência no sistema internacional, após o fim
da Guerra Fria, traduziu-se, depois dos atentados de 11 de setembro, em uma
política menos respeitosa para os fóruns multilaterais e tendente a buscar preservar
e consolidar uma supremacia unipolar, impossível de se consolidar no sistema
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internacional. Isso gera um ambiente internacional muito preocupante e propício ao
agravamento de tensões e conflitos dentro do qual o Brasil deve procurar
posicionar-se com cautela, mas com coragem e firmeza, buscando preservar a sua
autonomia e a sua margem de manobra no sistema internacional.
Vimos nas discussões do seminário uma valorização de esforços de
integração que fortaleçam a posição do Brasil no sistema internacional, com
destaque para o MERCOSUL, como o embrião de uma integralização sul-americana,
e esforços de aproximação no âmbito da comunidade dos países de língua
portuguesa. Para além disso, a necessidade de investir e de valorizar processos de
multipolarização no sistema internacional que impeçam o simples predomínio da lei
do mais forte no sistema internacional e que possam fornecer bases materiais para
consolidação do respeito aos fóruns multilaterais. Por isso a necessidade da busca
de maior aproximação com diversos países integrantes da União Européia; a busca
de um aproximação, tanto política quanto econômica, com pólos regionais que se
formam e se consolidam no sistema internacional; e o reforço firme e decidido do
Brasil aos seus compromissos com os fóruns multilaterais, como resposta racional à
irracionalidade da lei do mais forte no sistema internacional.
Essas foram as preocupações convergentes que dominaram as discussões
do seminário e que formam uma pauta de política externa do Estado brasileiro, que
independe propriamente das variações do Governo.
Acredito que esta pauta está presente na agenda dos candidatos que hoje
disputam as eleições para Presidente do Brasil. Ter tornado pública essa pauta,
ajudando a debatê-la e discuti-la foi a grande realização deste seminário. Sinto-me
satisfeito por ter podido ajudar na sua organização e realização.
Agradeço a todos a participação e a atenção. (Palmas.)
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O SR. PRESIDENTE (Deputado Aldo Rebelo) - Muito obrigado, Dr. Luis
Fernandes.
Não há nada a acrescentar às palavras do Ministro Carlos Henrique Cardim e
do Prof. Luis Fernandes. Diria apenas que o esforço da Comissão de Relações
Exteriores e de Defesa Nacional de encontrar espaço para o debate de projetos de
interesses do povo brasileiro e a formulação de uma política externa, no início do
século XXI, ao lado do Poder Executivo, das universidades, do Itamaraty, da
sociedade brasileira, foi bem-sucedido, vitorioso, embora ainda inicial.
Num mundo tão carregado de adversidades e riscos, o Brasil tem condições
de desempenhar suas potencialidades como poucos países possuem, a partir de
sua fronteira mais próxima.
Ao longo de quase 15.800 quilômetros de fronteira com dez países não
encontramos um palmo sequer de discórdia, de ressentimento, de insatisfação. Para
exemplificar: no frontispício do papel timbrado do Congresso argentino está lavrado
que as Malvinas e outra ilha são argentinas, embora estejam em posse da Inglaterra;
no brasão da República Colombiana ainda figura como território desocupado o
Panamá; no mapa da Venezuela ainda figura um espaço reivindicado junto à Guiana
Inglesa, se não me engano; o Peru e o Equador só recentemente conseguiram
celebrar — queira Deus que em definitivo — a paz em torno da disputa fronteiriça.
Ou seja, o Brasil dispõe de condições muito favoráveis para desempenhar esse
papel a partir da América do Sul e para enfrentar, sem qualquer recurso à
beligerância ou à arrogância — que, além do mais, não seriam aconselháveis — as
circunstâncias de um processo de integração. Por um lado, pode ser a nossa
vocação, a partir do MERCOSUL e da América do Sul, e por outro, uma opção
imposta nós, diante de dificuldades não apenas comerciais — cito o caso do aço, da
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soja, do calçado, da carne —, mas diplomáticas. Por exemplo: o que ocorreu
recentemente com o Presidente da Organização para Proibição de Armas Químicas,
quando houve a tentativa de isolamento do Brasil não só diante do mundo, mas aqui
mesmo na América do Sul, em que países como o Uruguai e a Argentina foram
levados a votar contra os interesses do Brasil e contra o nosso embaixador, na
tentativa de não permitir o isolamento de Cuba, que conduziu a diplomacia do nosso
grande vizinho e irmão do norte a levar o Uruguai a adotar a posição que resultou no
rompimento das relações diplomáticas entre o Uruguai e um país latino-americano
por história, por opção e por natureza, que é Cuba; a Argentina a adotar posição
semelhante; que levou às diferenças de posição que temos adotado diante do que
ocorre na crise econômica argentina, na crise militar na Colômbia e na crise política
na Venezuela.
Então, há uma grande área com enorme coeficiente de atritos no aspecto
comercial, econômico, diplomático, militar, envolvendo os interesses do Brasil. E
creio que nessas circunstâncias, quando boa parte da agenda de política econômica
tem migrado, nesta Casa, para a Comissão de Relações Exteriores e de Defesa
Nacional, porque não podemos discutir política econômica sem discutir ALCA,
MERCOSUL, OMC, e assim por diante, é importante que a sociedade encontre um
espaço para refletir, para debater e para ajudar a formular, escolher e sustentar
caminhos que abram espaço para a afirmação do nosso País. A democracia, os
direitos humanos, o desenvolvimento, só para citar a agenda da Dra. Flávia
Piovesan, serão palavras vãs se não forem sustentadas pela autonomia, pela
independência, pela soberania do nosso País. Uma colônia não tem autonomia para
criar democracia, direitos sociais, nem desenvolvimento. Uma colônia financeira,
militar, tecnológica não tem autonomia para forjar ou formular políticas próprias. E
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sem desenvolvimento, sem soberania seremos ainda mais frágeis e será mais difícil
a realização dos objetivos legítimos e justos do Brasil em política externa.
Agradeço à Presidência da Câmara dos Deputados o apoio; à Comissão
Mista de Planos, Orçamentos Públicos e Fiscalização; à Comissão de Constituição e
Justiça e de Redação; à Consultoria Legislativa; à Secretaria de Comunicação e
Relações Públicas; à TV Câmara; ao CEFOR; ao Cerimonial da Casa; à Taquigrafia,
ao Serviço de Copa; aos companheiros da Segurança; e, finalmente, aos promotores
deste seminário, em destaque a FAPERJ, na pessoa do Prof. Luis Fernandes.
Na próxima semana teremos novo seminário, também com o apoio da
FAPERJ, sobre política de defesa para o Brasil no século XXI.
Declaro encerrada a presente reunião.
Muito obrigado. (Palmas.)