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O presente artigo irá abordar a última etapa do pensamento de Jacques Derrida,no que tange à noção de uma "nova Internacional" e sua relação intrínseca comum novo cosmopolitismo e uma democracia por vir e que possuem como motoruma meta-ética da hospitalidade. Para tal, será levado a cabo uma análise deoutros conceitos que estão em relação com esta noção de modo a melhorelucidar o problema. O artigo se divide em duas partes, aonde serãoabordados em um primeiro momento e de modo bem sucinto as noções dedesconstrução, herança e espectro; e posteriormente, iremos nos concentrar narelação entre cosmopolitismo e democracia por vir, hospitalidade e a "novainternacional".
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RODRIGUEZ, A. Ensaios Filosficos, Volume VIII Dezembro/2013
Derrida e o problema de uma "nova Internacional"
A herana marxista da desconstruo e a tica da hospitalidade
Daniel Arbaiza Rodriguez1
Resumo
O presente artigo ir abordar a ltima etapa do pensamento de Jacques Derrida,
no que tange noo de uma "nova Internacional" e sua relao intrnseca com
um novo cosmopolitismo e uma democracia por vir e que possuem como motor
uma meta-tica da hospitalidade. Para tal, ser levado a cabo uma anlise de
outros conceitos que esto em relao com esta noo de modo a melhor
elucidar o problema. O artigo se divide em duas partes, aonde sero
abordados em um primeiro momento e de modo bem sucinto as noes de
desconstruo, herana e espectro; e posteriormente, iremos nos concentrar na
relao entre cosmopolitismo e democracia por vir, hospitalidade e a "nova
internacional".
Palavras-chave: Nova Internacional. Hospitalidade. Cosmopolitismo por vir.
Rsum
L'article se concentrera dans la dernire tape de la pense de Jacques Derrida,
au sujet de la notion d'une nouvelle Internationale et sa relation
intrinsque avec un nouveau cosmopolitisme et d'une dmocratie qui sont
venir et qui possdent comme moteur une mta- thique de l'hospitalit. Pour
cela, nous irons mener bien une lucidation d'autres concepts qui sont en
relation avec cette notion afin de mieux lucider le problme. L'article est
divis en deux parties, o ils seront abords dans une premier moment et de
manire trs succincte les notions de dconstruction, de hritage et de
spectralit, et par la suite, nous irons nous concentrer sur la relation entre le
cosmopolitisme et la dmocratie qui sont venir, l'hospitalit et la nouvelle
Internationale.
Mots-cls: Nouvelle International. Hospitalit. Cosmopolitisme venir.
Introduo
Em 1993 Derrida publica seu livro intitulado Spectros de Marx, que possui
como subttulo "O Estado da dvida, o trabalho de luto e a nova internacional"; ele deve
ser lido como um duplo genitivo, subjetivo e objetivo: espectros do marxismo e do
comunismo que nos assombram e o trabalho reativo do luto, de uma conjurao poltica
do retorno subversivo de um esprito de Marx; h tambm uma referncia aos espectros
1 Daniel Arbaiza Rodriguez, mestre pelo programa Erasmus Mundus Europhilosophie (Praga, Bolonha,
Toulouse II Le-Mirail). Currculo lattes: http://lattes.cnpq.br/0950155021778431 .
E-mail: [email protected]
Derrida e o problema de uma "nova Internacional"
que assombraram o prprio Marx, espectros que ele busca exorcizar ao longo de sua obra.
O subttulo por sua vez deve ser lido com ateno: "O Estado da dvida" faz referncia
guerra econmica sem trgua entre os Estados-Naes e a agravao da dvida exterior,
que uma contradio das flutuaes geopolticas como fruto de uma insero desigual
no livre mercado. Ns podemos ler a "dvida" como uma prestao de contas de
Derrida com o esprito marxista que lhe acompanhou ao longo de sua obra e
desempenhou um papel preponderante na sua filosofia da desconstruo. Finalmente, no
que concerne noo de uma nova Internacional, iremos tematizar a relao de
insuficincia democrtica do direito internacional atual e das instituies supranacionais
para pensar um novo conceito de cosmopolitismo ligado a uma outra democracia, os
dois por virem, para formar novas alianas entorno da acolhida incondicional da
singularidade que chega.
Procedamos, pois de modo sistemtico para abordar estas noes e efetuar um
esforo interpretativo do papel que Marx desempenha para Derrida. Em um primeiro
momento iremos abordar de modo sucinto a noo de desconstruo para o autor e a
importncia de um dos espritos de Marx para seu desenvolvimento; em um segundo
momento, faremos referncia ao conceito de espectro que intitula o livro e a noo
central de herana. Por fim, nos concentraremos sobre a noo de uma nova
Internacional e sua relao intrnseca com um novo cosmopolitismo e uma democracia
que esto por vir e que possuem como motor uma meta-tica da hospitalidade, ideia
desenvolvida por Derrida, sobretudo em sua maturidade, ao longo dos anos noventa at
sua morte em 2004.
A desconstruo e o esprito marxista
A filosofia da desconstruo de Derrida uma operao de denncia das
estruturas e valores sedimentados no discurso da tradio ocidental na medida em que
se traz tona seus princpios dissimulados; trata-se de pr em evidncia os
pressupostos constitutivos da produo de subjetividade e de verdade. A
desconstruo um movimento de abalo estrutural no regime discursivo da tradio,
deslocando o centro de gravidade e de relevncia aonde os elementos que lhe so
constitutivos orbitam rumo a um plano descentralizado, sem referentes ou significantes.
A desconstruo se pe margem da metafsica ocidental com o intuito de entrar em
RODRIGUEZ, A. Ensaios Filosficos, Volume VIII Dezembro/2013
seu vocabulrio e abalar seus pressupostos de modo a retirar-lhe o rastro impregnado
(DERRIDA, 1972, p. 81), para tal, ela entra no mbito desta sem se confundir com seu
regime, criando conceitos que por sua relevncia e novidade iro determinar a "verdade".
Analisando os pares conceituais binrios enraizados na metafsica ocidental,
Derrida questiona o porqu da hegemonia de um termo sobre o outro, denuncia a
hierarquia implcita que aceita ou refuta um determinado termo, que privilegia a
presentificao imediata, a unidade e identidade em detrimento da ausncia,
diversidade e diferena. Ele leva a cabo uma ruptura com a lgica oposicional que
delimita o pensamento nas fronteiras do definvel, reclama a independncia total de
uma cadeia de significantes onde cada termo seria supostamente localizvel,
estabilizado em um plano rgido em torno de um centro de referncia ou de origem.
Saindo de um pensamento do negativo que submete a diferena ao domnio da
identidade, a desconstruo efetua um duplo movimento: reinverte o conceito
estabelecido no discurso analisado e a golpes de martelo desestabiliza a hierarquia que
lhe implcita, um processo de desmoronamento que no possui uma sntese derradeira.
Este movimento, portanto se caracteriza por entrar na histria da filosofia de modo mais
fiel e profundo possvel, efetuando a leitura genuna, aquela que indissocivel da
escritura (DERRIDA, 1972, p. 15), decifrando e marcando s margens e entre as linhas
dos textos primordiais de nossa tradio, um deslocamento dos conceitos, do lxico e
dos axiomas elementares, naturais e intocveis que nos so transmitidos; trata-se de
depurar os pressupostos metafsicos que implicam efeitos indesejados mediante um
posicionamento crtico de nossa herana.
a crtica afirmativa que pe em movimento a desconstruo. O legado que se
recebe de modo fiel na medida em que se infiel possui uma natureza intempestiva,
pois, contra seu tempo, ela redefine as questes e urgncias que no possuem um
horizonte previsvel. Buscando as formas de desenvolvimento e perfectibilidade mais
elevadas, a desconstruo tem como norte os conceitos que no so passveis de
desconstruo tais como a justia, por exemplo, ou seja, a experincia da vinda do
outro enquanto outro, afirmao de um evento que aquele que vem, abertura ao por
vir. Deixar vir o todo outro, estar aberto diferena e ao outro em si mesmo um
aspecto poltico da desconstruo, onde o espectro de Marx desempenha um papel
relevante: a crtica marxista e o clamor messinico por um plano social e poltico mais
justo e democrtico, clamor pelas formas de desenvolvimento humanas mais elevadas,
Derrida e o problema de uma "nova Internacional"
engajamento poltico de toda filosofia que busca dar respostas aos desafios a
contratempo prprio empresa de Derrida.
Espectros
Se nos anos sessenta e setenta Derrida se ocupou principalmente das anlises
tericas onde se observa a fundamentao da filosofia da desconstruo, nos anos
oitenta em diante ele se aproxima de modo decisivo s questes de natureza tico-
polticas j presentes em germe em suas primeiras obras. Este movimento est
correlacionado com um aumento das referncias aos trabalhos de Lvinas e em
consonncia com o projeto compartilhado por certos autores (notadamente tienne
Balibar e Daniel Bensad) diante da crise do marxismo, de se liberar de toda forma de
ontologia ou dogmatismo. Em vistas das urgncias e da iminncia do que nos constrange
a pensar, aqui e agora, Derrida se v na necessidade de conceber uma nova aliana entre
os viventes, novos engajamento para alm da cidadania presa s fronteiras do Estado-
nao.
Derrida surpreendeu quanto se ps a falar de Marx, a fazer falar um certo Marx
pela necessidade de responder um compromisso: precisamente porque Marx est
morto e enterrado, reduzido ao silncio, negado e anulado aps a queda do muro de
Berlim, que os representantes que exaltaram o triunfo do capitalismo neoliberal com um
tom apocaltico, profetizaram o "fim da histria" com grande jbilo. Foi o caso de
Francis Fukuyama e seu best seller " The End of History and the Last Man"2, que faz
do esprito do velho Marx nada mais do que um dos ltimos e mais melanclicos
captulos da concluso da histria. Se h um ato de coragem de Derrida, no o de
buscar restaurar certo tipo de "marxismo", de legitimar um certo tipo de discurso marxista,
mais sim de mudar o terreno da discusso que se levava a cabo no comeo dos anos
noventa e combater o novo consenso que se estabelecia em torno de uma ordem
mundial nica de modo inovador e crtico.
Para combater o consenso de tom eufrico e triunfante da ligao da democracia
com a lgica do liberalismo econmico, o fim da crtica do capitalismo pela celebrao
2 Derrida ira consagrar uma grande parte do captulo II de Spectros de Marx "conjurar - o marxismo"
discusso do livro de Fukoyama e sobre a conjurao do anti-marxismo dos anos noventa.
RODRIGUEZ, A. Ensaios Filosficos, Volume VIII Dezembro/2013
do livre mercado; Derrida se levanta no apenas contra uma certa ortodoxia marxista
mas igualmente contra o novo dogma antimarxista. No se trata de um retorno tardio
Marx, dvida antiga da filosofia da desconstruo com uma de suas principais
influncias, mais um retorno de Marx, ateno uma certa "volta" de Marx que no
tem nada a ver com a reabilitao deste. Espectros de Marx um texto que visa acolher
certo Marx, o nome prprio "Marx", que concentra neste momento a mais forte
acumulao de negao e censura, um longo trabalho de luto3. O Marx morto que
aparece no "panteo dos grandes filsofos" nos livros de introduo filosofia
aquele de um pensamento politicamente estril; analisar o processo despolitizante deste
trabalho de luto analisar a situao contempornea do estabelecimento de uma nova
ordem mundial, onde certo esprito de Marx faz retorno reivindicando o carter
intempestivo de seu pensamento.
Mas o que significa acolher um certo esprito? A capacidade de retorno de um
esprito est ligada ao conceito de fantasma, aquele cuja morte permanece inquietante,
ela assombra e nos acompanha a uma distncia suficiente para que possamos viver
nossas prprias vidas sem lhe esquecer, sem perder sua capacidade de afeco. A
essncia do fantasma a espectralidade: entre a vida e a morte, a heterogeneidade de
um esprito insiste em retornar no enquanto mesmo, mais como fora sempre
diferenciada. H um eterno retorno do mesmo, do original, somente como differance;
escutar a voz de um fantasma requer a capacidade de acentuar sua singularidade, de lhe
acolher como pura fora de diferenciao.
Herana
O tempo da herana um tempo heterogneo e descontnuo; a histria poltica e
econmica no possui a sincronia entre a globalizao, a homogeneizao e a
homohegemonia; nossa contemporaneidade sempre "out of joint" como dir Hamlet, o
qual Marx tanto apreciava. Tempo deslocado, disjuntivo, onde as urgncias possuem
uma natureza anacrnica em relao ao espectro. A "assombrologia", que se opem
ontologia, possui uma lgica paradoxal que no permite a distino entre ser e no ser,
3 Para Derrida, o luto o que resta do outro que morto ou desaparecido, o que permanece no interior
do eu como corpo estrangeiro, parasitando-o permanentemente. H uma dimenso do eu que habitada
pelo outro, pelo seu esprito que no esgotvel. A incompletude do outro em mim a condio de lhe
respeitar enquanto outro, enquanto ser irredutvel.
Derrida e o problema de uma "nova Internacional"
atual e virtual, vivente e no-vivente. O que caracteriza esta lgica atribuir direito
palavra em contratempo, tarefa de natureza poltica.
O espectro e o fantasma fazem referncia visibilidade (Phinesthai). Aquele
que retorna no possui necessariamente viso, imagem; ele no requer um ato
deliberado para adquirir direito de volta, ele no submetido a nenhuma instancia, pois
desempenha um papel ativo: com sua voz que nos parasita e olhar que nos assombra, o
fantasma nos escolhe e volta sem a necessidade de ser chamado. Escutar a fala espectral
daquele que volta, daquele que vem antes de ns e ao qual ns recebemos sem qualquer
deliberao, daquele que retorna sem periodizao, saber bem receber nossa herana.
Mas quem so os verdadeiros herdeiros de Marx? Como escolher os pretendentes
legtimos dessa filiao? A herana no um bem, uma riqueza passvel de ser
guardada em segurana; a herana na verdade uma afirmao ativa, seletiva, que
realizada e reafirmada plenamente pelos herdeiros ilegtimos, por aqueles que levam a
cabo uma leitura performativa da tradio, utilizando-os contra seu tempo.
O engajamento poltico para Derrida passa pela questo da recepo da
herana. Ela compreendida no como um bem capitalizvel ou rastrevel, ela se
confunde com o fantasmtico no sentido da desfiliao, da re-filiao a partir da
desfiliao. Trata-se assim de ser fiel sendo infiel, pois o herdeiro deve sempre
responder a uma dupla injuno, a uma designao contraditria: necessrio saber
reafirmar ativamente este esprito que nos chama, uma reafirmao que no somente
aceitao, mas abordar de modo diferente o esprito e lhe manter vivo. No escolhemos
nossa herana, ns a recebemos como uma imposio. O que varia a atitude em face
dessa herana: ns podemos interpret-la, reativ-la em um ato de responsabilidade
com aquele que imperativamente vem.
Derrida nos diz explicitamente (DERRIDA, 2002, p. 18-19) que seu livro sobre
Marx um livro sobre a herana, de uma herana que nunca unvoca, mas que em sua
heterogeneidade e na bifurcao de suas prprias contradies nos impem uma
injuno a ser respondida, a se posicionar diante dela. No h herdeiro fiel, legtimo;
Derrida descontri a lei da filiao patrimonial, a linhagem pai-filho, o
falogocentrismo paternalista ao longo de sua obra. A recepo de um legado, a
confrontao com aquele que vem um ato de responsabilidade, de resposta crtica aos
espritos heterogneos, mltiplos, que nos leva a uma interpretao de seus labirintos,
RODRIGUEZ, A. Ensaios Filosficos, Volume VIII Dezembro/2013
de suas encruzilhadas e contradies sem normas prescritas, abordando o que ainda
no foi dito. Os espritos de Marx neste sentido continuam a nos assombrar: o
espectro do comunismo, do totalitarismo, do estalinismo, do desastre socio-tecno-
econmico ainda esto presentes para ns (DERRIDA, 1993, p. 37 e 150). No obstante,
outros espritos de Marx no devem ser renunciados: o esprito da crtica, que Marx
herda do iluminismo, de um certo Kant da crtica radical; o esprito de afirmao
emancipatria e messinica, liberada de todo dogmatismo e messianismo, de todo tipo de
determinao metafsico-religiosa.
Para Derrida, ns somos todos irremediavelmente herdeiros de Marx, de um
certo esprito do marxismo (DERRIDA, 1993, p. 36). O nome de Marx possui
consigo a carga de um acontecimento que no pode ser apagado, acontecimento este
que veio e continuar a vir de modo imprevisvel, sem um horizonte antecipvel, que
nos toma desprevenidos e que no necessariamente fantasmtico ou espectral,
porque invisvel, tal como um bombardeio areo, explosivo e que nos toma de
surpresa4. O carter intempestivo de seu pensamento permanece ainda uma pujana
interpretativa infinitamente aberta, que nos constrange uma resposta no esprito da
crtica radical, resposta questes de natureza social, ecolgica, tcnica, econmica, de
direito internacional e geopoltica. A insistncia em um certo Marx no comeo dos anos
noventa possui um papel estratgico para Derrida, a volta de um autor que apesar de
todo o trabalho de luto poltico de sua morte continua a aportar a leitura prtica e
sintomtica do tempo presente.
Marx, tal como entende Derrida, tambm foi um pensador da espectralidade:
espectro do comunismo que assombra todas as potncias europeias no Manifesto, a
dimenso espectral do fetichismo da mercadoria no comeo do Capital, etc. Marx busca
exorcizar os espectros mostrando que por exemplo o valor de uso j assombrado pela
dimenso espectral do valor de troca, ele mantm portanto uma oposio entre
mercadoria espectral e valor de uso real. O Marx de Derrida representa o germe de um
pensamento da virtualizao, do espao e do tempo, virtualizao dos eventos com
grande velocidade5. Trata-se de um Marx que no aquele da ontologia, do sistema
4 Jacques Derrida, Infine non fu la parola (ghost of marx), Parte final d'uma entrevista de Jacques Derrida
com Enrico Ghezzi. Disponvel em: http://www.youtube.com/watch?v=KMKIv5_yj6s 5 ibid; sobre a noo de virtualizao dos eventos e do papel das medias Cf. DERRIDA, J.;
HABERMAS, J. Le concept du 11 septembre : Dialogues New York (octobre-dcembre 2001) avec
Derrida e o problema de uma "nova Internacional"
filosfico ou metafsico, do materialismo histrico, dos aparelhos de Estado, de partido
ou de uma Internacional proletria; mais bem um filsofo de escritura testamentria,
intempestiva, que requer uma intepretao performativa para dar as respostas s
urgncia do presente6: as novas configuraes da pobreza e do desemprego; a excluso
massiva dos cidados da vida democrtica, dos exilados, aptridas e imigrantes; as
novas formas de guerra econmica, monetria e o protecionismo econmico; os
mecanismos de manuteno e gesto das dvidas externas; ameaas militares e o risco
atmico; guerras entre etnias; trfico e fora dos Estados paralelos; insuficincia do
direito internacional e de suas instituies face a uma globalizao desigual.
Esta globalizao aparece para Derrida como a expresso de um evento
mltiplo, com fenmenos e efeitos inditos. Os anos noventa representam o momento
de consolidao de um capitalismo tele- e tecno-cientfico, com um aumento
considervel do ritmo de circulao de pessoas, de capital, informao e de
comunicao instantneas (internet, fax, celular); aumento das trocas materiais, visuais,
culturais; integrao global da cadeia produtiva, dos transportes; consolidao de uma
hegemonia global do modelo de livre mercado que se encontra em vias de abertura
regulamentada aps a queda da URSS e que possui implicaes socio-polticas
decisivas. Nunca a interao com o outro foi experimentada com tamanha intensidade.
Continuar no domnio de um plano legislativo aonde o exerccio do direito amparado
no saber-poder tecno-cientfico, nas estratgias poltico-econmico-militares, possuem
consequncias nefastas para uma grande parcela da humanidade.
O discurso de uma abertura homogeneizante da globalizao tematizada por
Derrida, sobretudo por suas implicaes tico-polticas. O discurso de uma participao
universal, uma insero igualitria nos debates e na gesto dos problemas globais so
vistos por ele como uma iluso, demagogia, pois os resultados de uma economia
mundial integrada, os desastres ecolgicos, a disseminao de epidemias como a AIDS,
a desnutrio, e diversas outras tragdias so a prova de que os benefcios desse processo
limitado a uma parte restrita da humanidade. Nesse sentido, o esprito cosmopolita da
globalizao ainda no aconteceu, ele continua por vir. Os marginalizados da economia
Giovanna Borradori. Paris: Galile, 2004. 6 Derrida descreve estas urgncias como as "Dez pragas da 'nova ordem mundial'", em Spectres de Marx, p.
134-140.
RODRIGUEZ, A. Ensaios Filosficos, Volume VIII Dezembro/2013
global, aqueles que testemunham a injustia e o enriquecimento suas custas possuem
ainda a esperana messinica (mais sem Messias) de outro cosmopolitismo que no seja
aquele do artifcio meditico-poltico; eles possuem a esperana de outra democracia
que se encontra dentro de um dos espritos de Marx.
O cosmopolitismo por vir e a "nova Internacional"
Derrida busca sustentar o projeto de uma "nova internacional", fundada sobre a
necessidade de uma transformao profunda e de longa durao no direito internacional,
de seus conceitos e de seu campo de interveno, que dever se estender e se
intensificar at incluir o novo campo econmico, social e poltico mundial. Trata-se de
uma resposta engajada s urgncias do presente, uma abertura alteridade, experincia
de um evento radicalmente imprevisto, inseparvel de uma promessa e de uma injuno
que ordena uma resposta imediata:
A "nova Internacional", no apenas aquilo que busca um novo direito
internacional a travs de seus crimes. um lao de afinidade, de sofrimento
e de esperana, um lao ainda discreto, quase secreto, como em meados de
1848, mas cada vez mais visvel - temos mais de um signo disso. um lao
intempestivo e sem estatuto, sem ttulo e sem nome, passvel de pena
pblica mesmo que ele no seja clandestino, sem contrato, "out of joint",
sem coordenao, sem partido, sem ptria, sem comunidade nacional
(Internacional antes, a travs e para alm de toda determinao nacional), sem
co-cidadania, sem pertencimento comum uma classe. O que se chama aqui,
sob o nome de nova Internacional, o que lembra a amizade de uma aliana
sem instituio entre aqueles que, mesmo no crendo mais ou que jamais
acreditaram na internacional socialista-marxista, na ditadura do proletariado,
no papel messiano-escatolgico da unio universal dos proletariados de todos
os pases, continuam a se inspirar ao menos de um dos espritos de Marx ou
do marxismo (eles agora sabem que h mais de um) para se aliar, sob um
modo novo, concreto, real, ainda que esta aliana no tome a forma de um
partido ou da internacional obreira mas aquela de um tipo de contra
conjurao, na crtica (terica e prtica) do estado do direito internacional, dos
conceitos de Estado e nao, etc.; para renovar esta crtica e sobretudo
radicaliz-la. (Derrida, 1993, p. 141-142 [traduo nossa])
Desta forma, percebemos que o projeto de uma "nova Internacional" apresentado
no incio dos anos noventa requer o apelo um novo cosmopolitismo que se funda com
a promessa de uma democracia por vir. A reflexo sobre a hospitalidade se inscreve no
cerne deste perodo. O pano de fundo das pesquisas tico-polticas de Derrida
(DERRIDA, 2001d) so as relaes estabelecidas entorno do estrangeiro, do imigrante,
do exilado, do deportado, ou dos que no possuem estatuto poltico, os sans-papiers ou
Derrida e o problema de uma "nova Internacional"
sem identidade nacional; ele reflete sobre os grandes deslocamentos de massas que
ocorreu aps a primeira guerra mundial e que se intensificou ao longo das dcadas
seguintes no quadro de um capitalismo tardio. O tema da hospitalidade surge no seio das
urgncias concretas que articualm a poltica tica, e longe de destruir ou de negar
totalmente uma tradio de pensamento entorno da hospitalidade cosmopolita, o autor
reconhece e ressalta os progressos alcanados, reafirmando-os mediante a denncia de
suas insuficincias ou de seus efeitos indesejados. Derrida desconstri o edifcio da
discursividade jurdica aonde a hospitalidade se encontra ligada logica do mesmo,
para lhe conduzir em direo um encontro assimtrico com a singularidade do outro
em um transbordamento dos limites do poltico. Ele se posiciona junto Lvinas, junto
a um pensamento da hospitalidade que no se limita a um problema poltico-jurdico, mas
que o princpio mesmo da eticidade, uma mta-tica (DERRIDA, 1997c, p. 94).
Para Lvinas, a hospitalidade no se limita ao acolhimento de um outro
estrangeiro consigo, na casa, cidade ou nao; j no momento mesmo de abertura diante
da alteridade do outro, nos encontramos em uma disposio acolhedora. No conflito, na
xenofobia e na guerra, a relao que se estabelece com o outro inimigo j a de uma
abertura, uma reao a perda de seu mbito prprio (chez soi), abertura uma
hospitalidade primeira. A hospitalidade se encontra diante de um Eu, do ipse, e da
identidade, ela sua condio de possibilidade que a relao com o outro favorece
(DERRIDA, 1997c, p. 42). A representao do Eu, da relao que estabeleo comigo
mesmo e com meu espao precedida pela vinda sbita de outro e precede minha
ipseidade. Desta forma, a acolhida uma atitude primeira diante do outro, de outro o
qual recebo e sou refm, um hspede que o meu liberador, "como se o estrangeiro
pudesse salvar o mestre, prisioneiro de seu lugar e de seu poder, de sua ipseidade, de sua
subjetividade (sua subjetividade refm)" (DERRIDA, 1997d, p. 111 [traduo
nossa]). Sou refm do hspede que existe em mim, no meu espao, no que me
prprio; isso define minha responsabilidade face ao outro. H, portanto uma relao de
tenso nessa estrutura inevitvel de subordinao, j que minha liberdade se torna
dependente de um outro. O que Derrida prope com esse pensamento um imperativo
de acolhimento da alteridade do todo outro, daquele que vem e proporciona um
deslocamento essencial do meu "chez moi". Trata-se da afirmao do acaso, da
contingncia da vinda do outro, uma abertura ao devir outro em ns mesmos que torna
propcio uma mudana de subjetividade, uma nova reconfigurao do presente. Para tal,
necessrio refletir acerca de uma tica da alteridade pois devemos respeitar o outro por
RODRIGUEZ, A. Ensaios Filosficos, Volume VIII Dezembro/2013
si mesmo, em sua singularidade insubstituvel.
Nesse sentido, Derrida se aproxima de Lvinas e seu pensamento que aborda a
relao com um outro irredutvel ao mesmo, compreendido como um Eu individual ou
como um identidade e coletiva. O Eu, noo que inclui a identidade e a ipseidade,
uma formao que existe apenas em funo de um outro; somente no momento onde
vemos "o rosto do outro", que um Eu se forma e se informa sobre esta alteridade
irredutvel, insubstituvel, interpretada a sua prpria maneira e segundo valores morais.
Esse pensamento denuncia a suposta homogeneidade idealizada do Eu ou do sujeito, a
crena em uma unidade estvel, indivisvel, que expulsa fora de si toda
heterogeneidade, toda disputa. O que se oblitera com esta iluso a multiplicidade
interior ao indivduo, um constante devir outro em si na relao com o outro, pois "Eu
no estou sozinho comigo mesmo, assim como a um outro, eu no sou apenas um. Um
'eu' no um tomo indivisvel." (DERRIDA, 2001b, p. 184 [traduo nossa]).
No que concerne a relao com o outro - aquele que no somente vem do
exterior, de um meio fechado, de uma famlia, comunidade, cidade, nao ou Estado;
aquele que pode ser o barbaro ou o selvagem, mas tambm o amigo e o prximo
(sendo essa proximidade traduzida frequentemente em termos mais econmicos e
blicos do que culturais) - ela regida pelo direito do Estado-nao que delimita e
normatiza a vinda do outro por uma sistematizao das leis da hospitalidade, leis que
estipulam as condies e os critrios de apario e acolhimento do outro que chega. Para
dar conta da questo das leis da hospitalidade, Derrida efetua uma desconstruo sobre
uma longa herana do pensamento cosmopolita que possui mltiplas filiaes e se
encontra na encruzilhada de tradies heterogneas, aonde formam a hegemonia ou o
centro de referncia ao qual se busca denunciar. Tal herana aquela de uma
politizao cosmopolita dos cidados do mundo que nos remete a um certo estoicismo
grego e um cristianismo pauliniano, que ser transmitido at o iluminismo, onde Kant
o principal herdeiro (DERRIDA, 1997b, p.45-50). na senda de uma herana da
hospitalidade cosmopolita de dupla filiao que determina a vinda do outro no plano
jurdico-poltico, pelo crivo da integibilidade pela identificao, que Derrida ir
interpolar Kant. O pensador alemo sintetiza os elementos que iro influenciar
parcialmente ou diretamente o direito internacional, acordos entre Estados, organizaes
supranacionais tais como a Sociedade de Naes, da posterior ONU e da emergente Unio
Europeia.
Derrida e o problema de uma "nova Internacional"
Derrida entra em um dilogo profundo com os textos kantianos nesse perodo.
Ele analisa o terceiro artigo definitivo do Projeto de paz perptua, um percurso
filosfico, onde Kant fala do direito que tem um estrangeiro de no ser tratado com
hostilidade pelo fato de estar fora de seu pas. O direito de visita a um outro Estado
pertence a todos os seres humanos pois a terra uma propriedade comum da
humanidade e ela se partilha em sociedade de modo igualitrio (KANT, 1958, B 39-
41). A possibilidade de visita uma condio do cosmopolitismo para Kant, pois a
cultura e a ordem social so o resultado da dialtica do antagonismo de nossas
tendncias: acordo e desacordo (que numa escala entre povos seria da ordem da lngua,
crenas, costumes, viso de mundo, etc.). O encontro entre povos, numa relao unio-
desagregao tal como se passa com indivduos em um mesmo Estado, cria o estmulo
do esprito de liberdade que conduz inevitavelmente a formas superiores de
desenvolvimento. O conceito ontolgico de um plano da natureza anuncia a sentena
triunfante do direito no "tribunal da razo": ele no se produz como a imposio
exterior de uma obrigao da razo prtica, mas como um imperativo racional que lhe
prprio. O direito cosmopolita hospitalidade universal, como condio paz
perptua, compreendido assim como um direito natural, inalienvel e indispensvel.
Na leitura performativa de Derrida, mais do que mostrar o carter
predominantemente europeu das formulaes kantianas, ele ressalta o fato que os
"cidados do mundo" possuem o direito cosmopolita (Weltbrgerrecht) hospitalidade.
Esta, num plano global, deve ser universal e outorgada aos indivduos enquanto
cidados, pertencentes a um Estado-nao, o que implicitamente um
condicionamento restritivo para os no-cidados. Se o direito de visita a um outro
Estado pertence aos cidados na medida em que a terra um bem comum, Derrida
acrescenta que o condicionamento hospitalidade exclui tudo aquilo que se encontra
nesta mesma terra e sobre ela (DERRIDA, 1997b, p. 53), seja num plano material, seja
no domnio cultural ou lingustico. A hospitalidade condicionada cidadania
submetida legislao estatal, s relaes interestatais e aos interesses poltico-
economicos do Estado-nao. O Weltbrgerrecht, na medida em que condiciona a
chegada do outro cidadania, violenta o que singular neste estrangeiro recm-
chegado, protege contra os "riscos potenciais" que uma vinda indesejvel pode
provocar e ao mesmo tempo restringe a alteridade, a diferena e a positividade de um
devir outro.
RODRIGUEZ, A. Ensaios Filosficos, Volume VIII Dezembro/2013
Derrida ressalta o avano notvel do cosmopolitismo kantiano ao mesmo tempo
em que critica certos postulados e as injustias que lhes so decorrentes,
contextualizando o cenrio poltico internacional aonde ele se encontra. A crise do
Estado-nao e do constante retorno do fascismo e do racismo com os quais somos
confrontados no momento atual, esto em consonncia com a insuficincia da
hospitalidade interestatal, com a incapacidade do Estado de assegurar a proteo e a
liberdade de seus cidados quando no ela mesmo o motor destas violncias.
Prximo s anlises de Hannah Arendt em As Origens do Totalitarismo, Derrida
lembra os Heimatlosen (DERRIDA, 1997b, p.23-24), aqueles que surgiram durante a
primeira guerra mundial, os aptridas, os refugiados, deportados de mltiplas origens
para os quais a legislao dos Estados-naes foram insuficiente e que dentro do
contexto hodierno de globalizao e intensificao dos fluxos migratrios, se tornaram
protagonistas de uma ampla crise social em escala global. A hospitalidade cosmopolita
insuficiente quando lida com essa populao em termos de integrao, naturalizao ou
de repatriamento.
A vinda inesperada do todo outro, do estrangeiro annimo (com o duplo
sentido que a palavra francesa tranger comporta) representa uma modificao
essencial do "chez soi": o estranho/estrangeiro traz a diferena com a sua chegada em
uma nova casa, numa nova famlia, Estado, nao, lngua, religio ou qualquer outra
forma identidade. A vinda do outro ameaa todo esprito reativo que deseja manter seu
territrio sob controle, ameaa a deliberao de acolhimento e pem em risco a
estabilidade de um espao ficticiamente homogneo, a estabilidade da prpria
ipseidade. O risco de desagregao do corpo social impe a necessidade de estabelecer
critrios que condicionem a vinda desse estranho/estrangeiro, processos de seleo que
do acolhimento a travs de um clculo regulado que busca mensurar o grau de
"adaptabilidade" ao estabelecido, neutralizao da diferena e de sua singularidade.
Toda hospitalidade passa assim por uma certa hostipitalidade.
Contra as foras reativas que zelam pelo regime do mesmo, Derrida propem o
imperativo contra intuitivo de uma hospitalidade incondicional. Isto no significa,
como uma primeira leitura possa dar a entender, que se trate da simples abertura sem
critrios de todas as fronteiras, sejam elas pblicas ou privadas, das fronteiras estatais ou
dos muros, portas e janelas da casa. No que poderia consistir ento um imperativo de
hospitalidade que ordena o acolhimento incondicional do todo outro?
Derrida e o problema de uma "nova Internacional"
A vinda sempre inesperada do todo outro, do estrangeiro absoluto, acarreta a
angstia face ao imensurvel, ela implica necessariamente uma mudana qualitativa no
territrio e no prprio acolhedor. A hospitalidade incondicional ordena o acolhimento
sem critrios daquele que vem: o estrangeiro sem documentos, sem identidade, com
dbia insero no mercado de trabalho, um potencial "parasita" do Estado de bem estar
social. Trata-se de um acolhimento inusitado que no pede provas ou estabelece
critrios de reconhecimento, no se verifica a lngua, etnia, religio ou capacidade para
o trabalho (DERRIDA [et al.], 2001c, p. 116). Anterior s leis que condicionam a vinda
do outro, esta lei da hospitalidade no se encontra num plano tico ou poltico, ela se
posiciona de modo anterior como uma mta-tica ou como uma ultra-tica. Ela dobra a
linguagem poltico-jurdica para deslocar seu centro de referncia na direo do outro,
ela inventa uma nova lngua, uma nova potica da hospitalidade (DERRIDA [et al.],
2001c, p. 116 ; DERRIDA [et al.], 1997d, p. 10).
Mas como acolher um todo outro sem nenhuma garantia, na indeterminao de
sua identidade, com o risco potencial de colocar a casa em desordem na medida em que
ele pode no respeitar nossas tradies, nossa cultura, as leis institudas e aqueles que a
instituem? Essa hospitalidade acarreta o temor diante de uma imprevisibilidade to
absoluta. Como posso deixar entrar qualquer um na minha casa no como convidado,
mas para comigo morar, instituindo suas leis, me impondo seus hbitos, sua religio,
sua lngua, sem minha permisso, sem meu conhecimento e mesmo subtraindo o que
tenho? A hospitalidade incondicional nos pareceria assim no apenas irrealizvel, mas
impossvel. precisamente na impossibilidade que a hospitalidade incondicional se
torna possvel. a travs dessa caracterstica paradoxal compartilhada com a
desconstruo que a hospitalidade um limite ou esfera absolutamente necessria ao
pensamento. Trata-se de um "pensamento do possvel impossvel, do possvel como
impossvel, de um possvel- impossvel que no se deixa mais determinar pela
interpretao metafsica da possibilidade ou da virtualidade" (DERRIDA, 2001a, p. 47).
Como realizar uma utopia? O que fazer do impossvel? Ou melhor, "ser que o
impossvel possvel?" (DERRIDA [et al], 2001c, p. 174-175.) Fazer o possvel
nada fazer, nada decidir, seria deixar apenas desenrolar um programa de possveis.
necessrio transgredir as leis que delimitam o campo de possibilidades, transgredir as
normas, as condies, os direitos e deveres impostos:
RODRIGUEZ, A. Ensaios Filosficos, Volume VIII Dezembro/2013
No h tica, no h responsabilidade moral, como se diz, ou uma deciso
tica onde no h mais regras ou normas ticas. Se h regras, uma tica
disponvel ou um conjunto de regras, nesse caso suficiente saber quais so as
regras e proceder em sua aplicao, e assim, no h mais deciso tica. O
paradoxo que, para haver uma deciso tica, necessrio que no haja mais
tica, que no haja mais regras ou normas precedentes. preciso reinventar
cada situao particular ou regras que no existam previamente. (DERRIDA,
2001d [traduo nossa] )
Podemos dizer ento que a hospitalidade incondicional um tipo de ideia
reguladora no sentido kantiano, que no se realiza, mas que uma direo a qual
devemos tender, um rumo para alcanar formas de organizaes polticas mais
pacficas, justas, complexas e eficazes. Tudo isso sem uma concepo teleolgica da
histria, sem um conceito formulado de antemo, pois o conceito ele mesmo est por
vir. A hospitalidade para sair de uma abstrao, requer a materializao nas instituies
(nacionais ou internacionais), no poltico, jurdico, na famlia, nao, etc. Para se tornar
efetiva; ela requer as leis que a limitam para que ela possa se realizar, afetar e
transformar o prprio institudo; portanto elas no se opem. Da hospitalidade pura,
incondicional ou infinita, ns no temos a experincia, mas apenas a catstrofe ordinria
que se sofre todos os dias, "pelas pessoas, as naes, as comunidades mesmo as mais
acolhedoras, que se protegem pela lei, pelo controle das fronteiras, pelo que se chama de
bons modos" (DERRIDA in: FATHY, 1999 [traduo nossa]). Ela no se inscreve nas
categorias do direito nem nas convenes jurdicas internacionais, tais como a
hospitalidade condicionada ou limitada; mas ela tambm no as renuncia, ela as
reacomoda.
H uma antinomia entre a lei e as leis da hospitalidade, aquela que nos
apresenta o imperativo de incondicionalidade e a outra que institui estas condies.
Trata-se de uma antinomia que no dialetizvel, de uma tenso que no binria e que
inscreve a lei da hospitalidade em um plano precedente s prprias leis. Podemos dizer
que h um tipo de simbiose entre estas duas esferas da hospitalidade, uma servindo de
direo com o imperativo de sua lei e a outra se materializando nas leis, i.e. colocando-
a em prtica. A inveno poltica que reivindica Derrida se d, portanto na deciso e na
responsabilidade diante do outro, buscando estabelecer uma legislao que minimize os
efeitos negativos e maximize o respeito pela alteridade; sempre diante de cada caso
concreto e inventando uma melhor legislao, respeitando o princpio de hospitalidade,
um princpio que se encontra anteriormente a toda norma ou axioma estabelecido, pois
Derrida e o problema de uma "nova Internacional"
uma meta- tica.
no plano kantiano de uma ideia reguladora como direo e sem conceito de
antemo, a promessa de um futuro legvel a partir de certos aspectos do presente, tais
como a paz perptua (no nosso caso a hospitalidade incondicional), que se vislumbra o
perfil do cosmopolitismo por vir. Impulsionado pela sua impossibilidade, ela ir
redefinir a prpria categoria do poltico que vai alm de sua raiz na polis, soberania do
Estado-nao, figura mesma do Estado e s relaes entre cidados. A lei da
hospitalidade assim o princpio que transborda o poltico e o jurdico, no se confunde
com eles, ela deve ser ajustada para sair de seus limites estatais e se posicionar em um
cosmopolitismo que no sofra com as mesmas insuficincias de perfectibilidade e
universalidade. Ela o motor de uma nova configurao social mais justa e solidria
entre os viventes7, inspirada por um dos espritos de Marx.
nesse esprito, que numa referncia concluso do clebre Manifesto,
Derrida vai proclamar: "Cosmopolitas de todos os pases, mais um esforo!", um
chamado a melhorar a hospitalidade cosmopolita de sua atual insuficincia e injustia em
favor de um cosmopolitismo por vir apoiado numa nova inspirao poltico-jurdica
que ultrapasse os limites estatais. O cosmopolitismo atual vlido mas no d conta
das relaes entre os viventes, pois os reduz cidadania, regulamentao tal como no
caso dos grandes deslocamentos de populaes, os Heimatlosen das grandes guerras
os quais os Estados-naes e suas legislaes relegam marginalidade, tal como a
situao atual dos sans-papier na Europa. O cosmopolitismo por vir , pois, sustentado
pela nova tica da hospitalidade que no nega sua herana, mas a transgride almejando
um pensamento ainda em formao, baseado na ideia de uma nova democracia
igualmente por vir.
O cosmopolitismo por vir, construdo sobre o princpio da hospitalidade pura,
tematiza uma relao entre espao e direito8, um meio que mediatiza e torna favorvel o
7 Derrida engloba a noo de vivente na de todo outro absoluto, uma alteridade radical que tem em conta
igualmente os viventes no-humanos, situando-os fora do fonocentrismo ou logocentrismo numa questo
estratgica e crucial para o autor. A exposio desta questo se encontra alm dos limites deste artigo,
mas pode ser abordada em violence contre les animaux in De quoi demain... p. 105-127; L'animal
que donc je suis in: L'animal autobiographique, autour de Jacques Derrida (dir. Marie-Louise Mallet),
Paris: Galile, 1999. e 'Il faut manger' ou le calcul du sujet , Entrevista com Jean-Luc Nancy publicada
em Cahiers Confrontation, 20, hiver 1989: Aprs le sujet qui vient. 8 DAVID, Pascal : "Ses Visages" in :(DERRIDA [et al], 2001c, p. 25)
RODRIGUEZ, A. Ensaios Filosficos, Volume VIII Dezembro/2013
encontro com o outro, ao qual se reconhece o direito fala, de abrir as portas e as janelas
e de tornar acessvel uma sociedade mais solidria. Isso conduz inevitavelmente uma
mediao que em sua interveno considera o patrimnio do outro (cultural, lingustico,
religioso, etc) para que sua voz possa ser escutada em equidade com o institudo, no
submetendo-o ao crivo de um centro de referncia. Acolher o outro no cosmopolitismo
por vir dar conta de um outro que no renuncia sua lngua e a tudo o que lhe vem
junto: a cultura, as normas, as tradies, os costumes, a memria, etc.; mas ao mesmo
tempo, que sua vinda respeite e se situe numa mesma igualdade com a lngua local,
com a cultura local e todo o institudo; no pode haver a imposio de aprendizagem de
uma lngua local em vistas de uma "futura integrao". Trata-se de um impasse de
difcil soluo, pois a vinda do outro desencadeia um conflito cuja soluo mais justa
varia diante de cada caso especfico. necessrio uma articulao de pontos de vista
particulares e universais, entre universalismo e relativismo de modo a dar conta das
modalidades concretas de uma poltica da alteridade9.
O que Derrida nos propem uma outra concepo de democracia, por vir,
condio de um novo cosmopolititismo, inveno de um evento de traduo. Esta nova
democracia dever tematizar as relaes descontnuas entre os viventes antes de todo
registro identitrio e toda fronteira, em suas interaes e coabitao em um mesmo
territrio. Ela no sucumbe homogeneidade fictcia de um ns idealmente
estabelecido entorno de identidades sempre ambguas, mas aborda uma nova forma de
organizao social, cuja instvel unidade de uma massa heterognea de viventes no
sofrero assimetria, pois no h centro regulador. No se busca com essa democracia
uma homogeneizao unvoca, mas sim um encontro de aceitao e acordo em uma
interao difcil, sem renncia da diferena e da singularidade. Ela requer uma
capacidade de acolhimento, "(...) de uma certa plasticidade nas pessoas que sabem lidar
consigo mesmas, que so mais livres e possuem uma boa relao com sua sociedade
interior" (DERRIDA [et al], 2001c, p. 172-173 [traduo nossa]).
A hospitalidade implica que aquele que recebe aquele que vem sejam capazes de acolher o outro em
si, seu prprio Eu estrangeiro, que eles consigam superar seus fantasmas internos e aceitem suas
multiplicidades, suas capacidades de tornarem-se outros sublimando os comportamentos xenfobos e anti-
9 WIEVIORKA, Michel. "Les difficults d'une politique de l'altrit" in :(DERRIDA [et al],
2001c, p. 158)
Derrida e o problema de uma "nova Internacional"
hospitaleiros diante dos outros e de si mesmos:
Para que este espao democrtico se abra, preciso que cada um dos
cidados e cidads, que cada uma dessas multiplicidades de vozes, sejam na
medida do possvel liberadas. preciso que os cidados e cidads tratem
bem dentro de si o proble das vozes, da diferena sexual, dos fantasmas, etc.
para poder trata-los como se deve, fora. Se eu sou tirano dentro de mim, eu
terei a tendncia de s-lo fora. porque a poltica passa tambm por uma
espcie de autoanlise, por um tipo de experincia de si. Se algum no
trata bem seu inconsciente, se uma autoanlise no est sempre sendo
levada a cabo, o exerccio da responsabilidade poltica sofrer. (DERRIDA in:
FATHY, 1999 [traduo nossa] )
A multiplicidade ou a pluralidade tematizada por Derrida deve ser considerada a
partir da heterogeneidade originria, que o ethos da desconstruo. A operao
desconstrutora distingue a incondicionalidade da hospitalidade com a soberania do
Estado sem se opor suas instncias, assim como ela o faz com o regime discursivo da
metafsica ocidental; no se trata de formar pares conceituais binrios, mas de romper
com a lgica oposicional. no movimento de retrao, se posicionando em um plano
anterior democracia e ao poltico, ao poder e polis, que a desconstruo buscar
depurar esses conceitos. O espao democrtico que Derrida nos apresenta na
"democracia por vir" requer uma redefinio da democracia e do poltico que no seja
somente aquela do demos e da polis, ela no se encontra ligada suas condies.
A democracia por vir pressupem uma atitude consigo e com o outro, ela o
resultado do que fao aqui e agora, vem at ns como uma promessa, uma dimenso de
um futuro que nunca se faz presente. O por vir da democracia no consiste em uma
impossibilidade de realizao tal como a ideia reguladora kantiana, mas se trata de um
norte indeconstrutvel que nos engaja em suas urgncias. A cada configurao do
presente, ela tem seus pressupostos, seus axiomas e sua eficacia interrogados; ela requer
uma desconstruo infinita, sem sntese, que acompanha seu processo de
perfectibilidade, uma postura crtica que se harmoniza com seu movimento orgnico. A
operao descontrutora pois uma espcie de sentinela da indeconstrutvel democracia,
ela deve vigi-la sem cessar, deslocando todo institudo de seu conformismo.
A democracia por vir, assim como a desconstruo, possui como condio de
possibilidade a autonomia do pensamento, a livre participao ao espao pblico e o
exerccio do direito incondicional de colocar tudo em questo. O princpio de abertura
RODRIGUEZ, A. Ensaios Filosficos, Volume VIII Dezembro/2013
como condio da desconstruo e da democracia se confunde com a liberao da
multiplicidade de vozes evocada por Derrida, uma abertura ao outro em si e fora de si
deve atravessar toda interdio, todo domnio do poder que submeta a pluralidade ou a
multiplicidade hegemonia de um centro de referncia (monolinguismo,
falogocentrismo, fonocentrismo, soberania do Estado-nao, etc.).
Derrida no um relativista que tematiza um multiculturalismo radical, uma
tica da hospitalidade incondicional que somente veja positividades na vinda do todo
outro. A tica da hospitalidade enquanto motor da democracia por vir se apoia numa
desconstruo "mestia", que vai alm da busca pela coexistncia pacfica entre culturas
heterogneas e as identidades em um mesmo espao de coabitao. Derrida denuncia a
atitude arrogante das sociedades ditas "progressistas" que abrem suas fronteiras e
acolhem o estrangeiro com "tolerncia" (mas como vimos, sempre pelo crivo das
regras de acolhimento: cidadania, capacidade para o trabalho, assimilao e integrao
numa cultura local, etc.). O multiculturalismo reconfigurado pela desconstruo na
medida em que retira suas razes do "contrato social" da "autoctonia", denunciando a
ambiguidade de conceitos tais como cultura e identidade. O cosmopolitismo por vir,
assim como a democracia por vir devem se distanciar de toda "tolerncia" porque
embora ela vise a igualdade e a reciprocidade das "identidades culturais" em interao
constante, ela se encontra ligada lgica do mais forte, ao registro onto-teolgico da
soberania (lingustica, subjetiva, sexual, cidad, cultural, estatal, nacional, etc.),
pensando a coexistncia em termos de adio, de ser-com, submetendo a
multiplicidade a uma fictcia identidade homognea, una e indivisvel.
O cosmopolitismo por vir no consiste em um chamado ao acolhimento
incondicional sem precedentes, ela no sugere regras ou leis que devem ser aplicadas,
pois em cada caso singular e diante de cada singularidade deve haver uma nova
configurao da lei de hospitalidade nas leis. No h modelo de hospitalidade, apenas o
compromisso de uma depurao que vise melhorar e tornar mais justas as leis
materializadas. Sobre o cosmopolitismo por vir no temos o conceito, mas
compreendemos que ele pode resultar de experincias com o direito internacional, da
criao de alternativas polticas do espao pblico e de novas relaes com nossa
herana. A tica da hospitalidade o motor de um cosmopolitismo por vir sedimentado
em uma nova democracia, ela nos ajuda a conceber um outro espao e um outro direito
internacional, um direito cidade, um espao que favorise o encontro e que garanta a
Derrida e o problema de uma "nova Internacional"
coabitao da massa heterognea de viventes. A meta-tica da hospitalidade se
apresenta como o princpio de manuteno da multiplicidade, preservao da
singularidade e da diferena sem apelo a nenhum centro de referncia, ela vem como a
promessa de uma nova aliana entre os viventes, condio de uma "nova internacional".
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1h08 - Cor. Som.