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1 DESCOLONIZAÇÃO DE SABERES: FILOSOFIAS SOBRE ÁFRICA, FILOSOFIAS AFRICANAS Milene Cristina Santos (USP/Brasil) 1 Resumo Considerando perspectivas epistemológicas pós-coloniais e decoloniais, críticas da racionalidade eurocêntrica, nortecêntrica e epistemicida que se afirma como universal, devido aos privilégios simbólicos da branquitude que se perpetuam em ambientes escolares e universitários, e aceitando os desafios inaugurados com a Lei 10.639/03 de descolonizar as mentes e educar para as relações raciais, a fim de combater o racismo estrutural que se reproduz institucionalmente e conhecer as histórias e culturas africanas e afro-brasileiras, pretendo contrapor e comparar ideias filosóficas europeias sobre África a ideias filosóficas produzidas por africanos e afro-brasileiros, por meio de uma revisão bibliográfica que mapeie debates teóricos africanos, afro-atlânticos e afro- diaspóricos que permitem desconstruir a ideia de uma única filosofia universal, que teria se originado na Grécia da Antiguidade clássica, dentro da controvertida proposta de uma leitura da história da filosofia em afroperspectiva. Inúmeras questões teóricas subjazem à proposta de análise, dentre as quais: haveria diferença significativa entre perspectivas pós-coloniais e decoloniais? Haveria identidade entre as propostas epistemológicas em afroperspectiva e as afrocêntricas? Em que medida conceitos como “eurocentrismo”, “nortecentrismo”, “epistemicídio”, “ecologia de saberes”, “epistemologias do Sul”, por terem sido elaborados por ou fortemente embasados em perspectivas teóricas de homens brancos europeus são efetivamente emancipatórios? Apresentar os pressupostos racistas das ideias coloniais, que cânones da filosofia ocidental reforçaram sobre a inferioridade intelectual e cultural das sociedades africanas, constitui exercício de releitura do passado, na medida em que se considera necessário romper com a longa duração de perspectivas racistas que ainda balizam a produção e disseminação do conhecimento, a fim de iniciar a construção de futuros 1 Doutoranda em Direito do Estado pela USP. Mestre em Direito, Estado e Constituição pela UnB. Professora universitária. Esse artigo integra a agenda de pesquisa do doutoramento, e alguns trechos foram previamente publicados em: Santos, Milene Cristina. O ensino da história e da cultura africana e afro-brasileira como promoção de saberes e práticas feministas e descolonizadoras. In: Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress, 2017, Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2017, 12p.

DESCOLONIZAÇÃO DE SABERES FILOSOFIAS SOBRE ÁFRICA ... · descolonizar as mentes e educar para as relações raciais, a fim de combater o racismo estrutural que se reproduz institucionalmente

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DESCOLONIZAÇÃO DE SABERES: FILOSOFIAS SOBRE ÁFRICA, FILOSOFIAS AFRICANAS

Milene Cristina Santos (USP/Brasil)1

Resumo

Considerando perspectivas epistemológicas pós-coloniais e decoloniais, críticas da

racionalidade eurocêntrica, nortecêntrica e epistemicida que se afirma como universal,

devido aos privilégios simbólicos da branquitude que se perpetuam em ambientes

escolares e universitários, e aceitando os desafios inaugurados com a Lei 10.639/03 de

descolonizar as mentes e educar para as relações raciais, a fim de combater o racismo

estrutural que se reproduz institucionalmente e conhecer as histórias e culturas africanas

e afro-brasileiras, pretendo contrapor e comparar ideias filosóficas europeias sobre

África a ideias filosóficas produzidas por africanos e afro-brasileiros, por meio de uma

revisão bibliográfica que mapeie debates teóricos africanos, afro-atlânticos e afro-

diaspóricos que permitem desconstruir a ideia de uma única filosofia universal, que teria

se originado na Grécia da Antiguidade clássica, dentro da controvertida proposta de

uma leitura da história da filosofia em afroperspectiva. Inúmeras questões teóricas

subjazem à proposta de análise, dentre as quais: haveria diferença significativa entre

perspectivas pós-coloniais e decoloniais? Haveria identidade entre as propostas

epistemológicas em afroperspectiva e as afrocêntricas? Em que medida conceitos como

“eurocentrismo”, “nortecentrismo”, “epistemicídio”, “ecologia de saberes”,

“epistemologias do Sul”, por terem sido elaborados por ou fortemente embasados em

perspectivas teóricas de homens brancos europeus são efetivamente emancipatórios?

Apresentar os pressupostos racistas das ideias coloniais, que cânones da filosofia

ocidental reforçaram sobre a inferioridade intelectual e cultural das sociedades

africanas, constitui exercício de releitura do passado, na medida em que se considera

necessário romper com a longa duração de perspectivas racistas que ainda balizam a

produção e disseminação do conhecimento, a fim de iniciar a construção de futuros

1 Doutoranda em Direito do Estado pela USP. Mestre em Direito, Estado e Constituição pela UnB.

Professora universitária. Esse artigo integra a agenda de pesquisa do doutoramento, e alguns trechos

foram previamente publicados em: Santos, Milene Cristina. O ensino da história e da cultura africana e

afro-brasileira como promoção de saberes e práticas feministas e descolonizadoras. In: Seminário

Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress, 2017, Florianópolis: Universidade

Federal de Santa Catarina, 2017, 12p.

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múltiplos. Tanto a proposta de uma ecologia de saberes pós-abissal como a da filosofia

em afroperspectiva, embasadas nos giros epistemológicos pós-coloniais e decoloniais,

possibilitam a valorização de debates entre filósofos africanos, afro-brasileiros e afro-

diaspóricos, rompendo com estereótipos estigmatizantes que foram impostos aos negros

como pessoas destituídas de racionalidade. A filosofia abre-se, assim, a novos olhares,

sabores e temperos, ampliando as visões de mundo possíveis.

Palavras-chave: epistemologias pós-coloniais e decoloniais; filosofias africanas e afro-

brasileiras.

Introdução

Branquitude pode ser definida como o conjunto de significados e privilégios,

materiais e simbólicos, socialmente atribuídos às pessoas brancas, identificadas por sua

brancura (pele) e por seus traços fenotípicos mais ou menos europeus (cabelos lisos,

traços afinalados) (Schucman, 2014, p.56). A defesa da supremacia racial branca

(intelectual, cultural, estética e moral), embora não mais possua o apoio das teorias

científicas eugenistas e racistas dos séculos XIX e XX, encontra-se largamente

difundida na mentalidade social do racismo à brasileira, fundado na ideologia da

democracia racial, do branqueamento e da miscigenação. Reflexo da estrutura social

racista nas escolas e universidades brasileiras é não pesquisar sobre a história e a cultura

africanas, não conhecer a profícua produção dos intelectuais negros e das intelectuais

negras, não se comprometer com o ideal de uma comunidade docente e discente mais

plural.

O sistema colonial de educação é baseado no branqueamento da racionalidade

dos povos colonizados. Os brancos e brancas, que não refletiram sobre seus privilégios

materiais e simbólicos, não se vêem como grupos racializados. Com base em pactos

narcísicos inconscientes, negam os problemas raciais, silenciam quanto a práticas

racistas, interditam negros e negras em espaços de poder e privilégio, invisibilizam a

contribuição civilizatória de outros povos na construção da racionalidade humana

(Bento, 2002, p. 41). A História da civilização branca europeia é ensinada como

universal, enquanto todas as outras são particulares (ex: história da América, da África,

da Ásia). A Filosofia é apresentada como invenção exclusivamente grega, colocando

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novamente a Europa no centro do projeto civilizatório da humanidade, o que caracteriza

eurocentrismo. Os saberes filosóficos africanos são invisibilizados, desvalorizados

como meras “crenças” de “culturas” a-históricas, estáticas e irracionais, reafirmando o

pensamento ocidental abissal, com sua racionalidade eurocêntrica e androcêntrica,

desqualificando outras perspectivas e possibilidades epistemológicas, o que caracteriza

o epistemicídio.

A Lei 10.639 de 2003 tornou obrigatório, nos estabelecimentos de ensino

fundamental e médio, oficiais e particulares, o “estudo da História da África e dos

Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na

formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas

social, econômica e política pertinentes à História do Brasil” por meio do acréscimo, à

Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), do art. 26-A2. Ela resultou de longa luta

de intelectuais e militantes negros tanto pela valorização da educação para

afrodescendentes, como pela compreensão de que os ambientes escolares e

universitários precisam ser descolonizados para que as contribuições históricas,

filosóficas e culturais africanas e afro-brasileiras possam ser utilizadas simultaneamente

como meio de combate ao racismo institucional e de educação para as relações raciais.

Tratando especificamente da filosofia, identifico a seguir algumas ideias de

filósofos europeus que defenderam expressamente a inferioridade moral e intelectual

dos negros africanos, como fizeram Gislene Aparecida dos Santos e Renato Noguera;

posteriormente, efetuo considerações sobre o giro epistemológico pós-colonial e

decolonial e, por fim, apresento algumas ideias de filósofos africanos, imbuída do

objetivo de oferecer pequena contribuição no sentido da descolonização do pensamento

e, consequentemente, para a desconstrução do eurocentrismo e do epistemicídio que

permeiam nossa formação escolar e universitária.

2 A lei exigiu, ainda, a transversalidade do ensino dos conteúdos referentes à História e Cultura Afro-

brasileira, bem como especial abordagem nas disciplinas de Educação artística, Literatura e História

Brasileiras. A Lei 11.645 de 2008, por sua vez, alterou a redação do art. 26-A da LDB para adicionar a obrigatoriedade do estudo dos povos indígenas, sua história, suas lutas e sua contribuição para a formação

social, econômica e política do Brasil. Merece destaque, ainda, a Resolução n. 01, de 17 de junho de

2004, do Conselho Nacional do Ministério da Educação, que obriga as instituições de ensino superior a

incluir em seus cursos a educação das relações étnico-raciais, bem como o tratamento de questões e

temáticas que dizem respeito às afrodescendentes, nos termos do Parecer CNE/CP 3/2004.

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1. Filosofias sobre África

Desde a antiguidade clássica, cultivavam-se imagens que apresentavam a África

como uma terra de figuras monstruosas, de pecado e imoralidade. As imagens sobre o

negro forjaram olhares europeus estereotipados, para os quais a África seria habitada

por “povos de climas tórridos com sangue quente e paixões anormais que só sabem

fornicar e beber” (Santos, G., 2002b, p. 55). Esse imaginário teria sido construído muito

antes de o racismo ter se tornado um projeto político-ideológico de dominação.

Enquanto a África era apresentada como sinônimo de barbárie, a Europa era

tornada paradigma de civilização, cultura e progresso da humanidade. Com base em tais

ideias, foi construída uma estética da brancura, a qual não poderia ser maculada por

simbolizar a superioridade intelectual, religiosa e moral do branco, representação da

divindade, da luz, da harmonia, da perfeição, da beleza, da inocência, do sublime, da

felicidade, em síntese, do bem; restava, portanto, ao negro, personificar o mal, o

demônio, as trevas, o caos, a feiúra, o vício, a tristeza, a culpabilidade, o pecado, a

degradação moral (Santos, G., 2002a, p. 279).

O negro, sendo um duplo do branco, personifica uma simbolização que

representa todos os terrores do branco encarnadas num outro contra o qual se projeta o

estranhamento, o medo de destruição e de castração. A primeira característica da

simbolização seria o exotismo3.

Deivison Mendes Faustino, com base em Frantz Fanon, explica como esse

histórico processo de inferiorização e estigmatização do ser negro afeta tanto negros

quanto brancos. Enquanto o negro é relacionado sempre ao corpo (hipersexualização,

emoções, músculos e pulsões), ao lúdico (ritmos, cores e sabores, de preferência para

entretenimento do branco) e à terra (natureza), o branco será relacionado a uma

“racionalidade fria e castradora”. O branco criou o negro e, ao fazê-lo, negou a

humanidade de ambos4.

3 O primeiro olhar em direção ao negro é o do exotismo, da admiração da diferença, da tentativa de

oferecer-lhe sentido para se afastar do medo diante deste desconhecido que foge a qualquer significação

(...). Contudo, o exotismo não se limita ao movimento estético de admiração. Ele implica, ao mesmo

tempo, uma tensão entre um fascínio e um repúdio, é patente na identificação do negro como um demônio

que gera terror (Santos, G., 2002a, p. 281). 4 Para Fanon, por outro lado, embora o Branco goze de privilégios, não está isento às reificações

intrínsecas à situação colonial, pois ao atribuir ao ‘outro’ elementos humanos que também são seus, aliena

sua própria humanidade. O complexo de inferioridade infringido ao negro é proporcionalmente

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Durante a Idade Média, a África foi submetida ao crivo da religiosidade cristã,

vista como universal e obrigatória para todos os povos da terra. O fato de o Diabo ser

quase sempre representado como negro na iconografia cristã (“Cavaleiro Negro”;

“Grande Negro”; “Príncipe das Trevas”) apenas intensificou os preconceitos contra

todos os seres humanos de cor escura, e a África ora foi estigmatizada “porta para o

inferno” (Santos, G., 2002b, pp. 53 e ss.), ora foi concebida como paraíso exótico

permeado de riquezas. Muitas explicações foram aventadas para a pele escura dos

africanos5.

Quaisquer que fossem as explicações, os negros foram vistos como inferiores,

selvagens, exóticos, demoníacos, sem rei, sem lei, sem religião. Justificava-se, assim, a

escravização de africanos como forma de salvação de suas almas, direcionando-as ao

progresso e à civilização. O Brasil foi concebido pela Igreja como colônia-purgatório,

na qual o cativeiro era sinônimo de redenção: “O cativeiro oferecia o branqueamento e

a purificação das almas dos negros escravos que, quanto mais obedientes e servis

fossem, mais próximos da salvação eterna estariam”. (Santos, G., 2002a, pp. 286).

Os filósofos iluministas da Idade Moderna agravaram, ainda mais, as

concepções contraditórias dos europeus sobre os negros e o continente africano. Gislene

Aparecida dos Santos, na obra “A invenção do ser negro: um percurso das ideias que

naturalizaram a inferioridade dos negros”, analisa as contradições da ilustração no que

se refere aos negros, pois ao mesmo tempo em que se defendiam direitos universais dos

homens e tolerância para com as diferenças, justificava-se a escravidão e a dominação

colonial.

Enquanto filósofos iluministas concordavam sobre a existência de uma espécie

humana, que se diferenciava por sua capacidade racional de modificar a natureza,

divergiam sobre as origens dos “tipos” humanos observados. Para Diderot (1713-1784),

acompanhado por um complexo de superioridade por parte do Branco, mas esse complexo é marcado por

um sentimento de castração. Esse ‘outro’ amaldiçoado e inferiorizado assombra e atrai com seus atributos

‘sobre-humanos’ – exatamente àqueles que o Branco deixa de ver em si – exageradamente mistificados e

animalizados. (grifos originais).

5 Teriam os negros a pele escura devido à forte influência do sol nas regiões por eles habitadas? Seriam os

negros tão escuros por sua descendência de Caim, que teve sua face enegrecida por Deus após matar

Abel? Ou pela maldição de Noé sobre Caim do qual todos os negros descenderiam? Seriam negros por

causa da água e do alimento que os nutria, encontrado somente na África? (Santos, G., 2002b, p. 54).

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os homens variavam quanto à cor (cabelos, olhos e pele), à grandeza e à forma

(proporções corpóreas, estrutura da cabeça e do rosto), e quanto às diferenças entre os

povos (relacionadas a inclinações e costumes). Especificamente sobre os negros, afirma

Diderot que seriam habitantes da África:

Não somente sua cor os distingue, mas eles diferem dos outros homens, pelos

traços de seu rosto, narizes largos e chatos, lábios grossos, lã no lugar de

cabelos, que parecem constituir uma nova espécie de homem (...). Os homens

negros, nascidos vigorosos e acostumados a um alimento grosseiro,

encontram na América as doçuras que lhes fazem a vida rude muito melhor

que em seus países. (Diderot 1778-1779, tomo 22, p. 835 e 843 apud Santos,

2002b, pp. 32 e 33).

Voltaire (1694-1778), por sua vez, defendia que os homens possuíam origens

diferentes, e os negros apresentariam leve superioridade frente aos animais, podendo o

homem negro ser definido como:

Um animal preto, que possui lã sobre a cabeça, caminha sobre duas patas, é

quase tão destro quanto símio, é menos forte do que outros animais de seu

tamanho, provido de um pouco mais de ideias do que eles e dotado de maior

facilidade de expressão. Ademais, está submetido igualmente às mesmas

necessidades que os outros, nascendo, vivendo e morrendo exatamente como

eles. (...) Quer me parecer que agora estou muito bem fundamentado para

crer que os homens são como as árvores: assim como as parreiras, os

ciprestes, os carvalhos e os abricoteiros não vêm de uma mesma árvore,

assim também os brancos barbados, os negros de lã, os amarelos com crina e

os homens imberbes não vêm do mesmo homem (VOLTAIRE, 1984, pp. 61

e ss.).

Em sua descrição sobre os povos negro-africanos, Kant (1724-1804) foi

categórico ao afirmar a superioridade do branco sobre o negro:

Os negros da África não possuem, por natureza, nenhum sentimento que se

eleve acima do ridículo. O senhor Hume desafia qualquer um a citar um

único exemplo em que um negro tenha mostrado talentos e afirma: dentre os

milhões de pretos que foram deportados de seus países, não obstante muitos

deles terem sido postos em liberdade, não se encontrou um único sequer que

apresentasse algo grandioso na arte ou na ciência, ou em qualquer outra

aptidão; já entre os brancos, constantemente arrojam-se aqueles que, saídos

da plebe mais baixa, adquirem no mundo certo prestígio, por força de dons

excelentes. Tão essencial é a diferença entre essas duas raças humanas que

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parece ser tão grande em relação às capacidades mentais quanto à diferença

de cores. A religião do fetiche, tão difundida entre eles, talvez seja uma

espécie de idolatria, que se aprofunda tanto no ridículo quanto parece

possível à natureza humana. A pluma de um pássaro, o chifre de uma vaca,

uma concha, ou qualquer coisa ordinária, tão logo seja consagrada por

algumas palavras, tornam-se objeto de adoração e invocação nos esconjuros.

Os negros são muito vaidosos, mas à sua própria maneira, tão

matraqueadores que se deve dispersá-los a pauladas (Kant, 1993, pp. 75-76).

Hegel (1770-1831), por sua vez, foi igualmente eloquente na defesa da

inferioridade negro-africana:

(...) a principal característica dos negros é que sua consciência ainda não

atingiu a intuição de qualquer objetividade fixa, como Deus, como leis (...)

negro representa, como já foi dito, o homem natural, selvagem e indomável

(...). Neles, nada evoca a ideia do caráter humano (...). Entre os negros, os

sentimentos morais são totalmente fracos – ou, para ser mais exato,

inexistentes (Hegel, 1999, pp. 83-86).

Sabemos que o filósofo compreendeu o desenvolvimento da História como

desenvolvimento do espírito, da razão e da liberdade. Ao colocar o Ocidente como ápice

do desenvolvimento histórico, situou a África na infância da humanidade, a qual poderia

ser explicada por condições geográficas e climáticas. Sendo a maioria dos africanos

incapazes de consciência e abstração, estaria a África fechada sobre si mesma, na

escuridão da noite, em estado de barbárie e selvageria, distante da civilização não

apenas devido à sua natureza tropical, como também à sua constituição geográfica.

Entretanto, como não era possível negar o desenvolvimento da razão e da ciência no

Egito, concebeu o continente Africano como dividido em três partes, incomunicáveis

entre si: (i) a África do Norte branca ou europeia (mediterrânea, magrebina), (ii) a

África subsaariana, negra, subdesenvolvida, fechada sobre si mesma na infância da

humanidade, e (iii) a África em conexão com a Ásia, na região da bacia do Nilo.

A África subsaariana foi, dessa forma, excluída da história universal e

apresentada como estática, congelada no tempo, incapaz de desenvolvimento e

evolução. As ideias de Hegel perpassaram o pensamento ocidental sobre o continente

africano de finais do século XIX a meados do século XX, contribuindo para que este

fosse concebido como a-histórico (Furtado, 2016, pp. 122-123).

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Algumas perguntas podem ser formuladas em face dos trechos filosóficos acima

transcritos: (i) qual a importância de se constatar o racismo contra os negros no

pensamento de alguns filósofos europeus? ; (ii) essa constatação coloca em xeque a

relevância desses filósofos como cânones do pensamento ocidental? ; (iii) é válido

construir críticas no presente sobre ideias que eram amplamente aceitas pelos homens

do passado?

A relevância de identificar o racismo presente no pensamento dos cânones

ocidentais reside na identificação da profundidade das ideias que basearam o

empreendimento colonial, e em sua longa duração6. Esses pensadores adotaram uma

concepção teleológica da história que situava a Europa no ápice da evolução humana,

uma vez que sua superioridade técnica e política confirmavam sua afinidade eletiva e

profunda com a lógica da História, ou do Espírito na terminologia hegeliana. Desta

forma, a Europa afirmou-se como o espaço da modernidade, enquanto à África restou a

identificação como espaço da tradição (Macamo, 2014, p. 363). Decerto que nenhum

estudioso da filosofia há de negar a relevância dos autores europeus supracitados na

formação do pensamento filosófico ocidental, mas a consideração desses saberes como

saberes locais, não universalizáveis, é de suma importância para desconstruir as

heranças coloniais que, ao longo de séculos, apontam a África como espaço de desrazão

e de atraso. Defende Gislene Aparecida dos Santos que, por meio da filosofia,

poderíamos “compreender como, por meio do racismo, se permite a desumanização dos

homens, se entrelaçam teorias do pensamento autoritário, e uma ideologia que

impregna as sociedades e seus indivíduos de modo a fazê-los reproduzir aquilo mesmo

que os nega”, construindo um pensamento crítico sobre as relações raciais (Santos, G.,

2010, p. 08).

Por fim, não se trata de negar a cada filósofo o contexto histórico de seu

pensamento, mas justamente de compreender que não há ponto de vista filosófico que

6 Cristiano Paixão Araújo Pinto, historiador do Direito, explica que o conceito de longa duração deve-se à

inovadora Escola Francesa dos Annales, especificamente à obra de Fernand Braudel. Opondo-se à

historiografia centrada apenas em eventos e acontecimentos políticos, Braudel apresenta três tempos

históricos fundamentais: (i) o tempo da curta duração, próprio da “história dos acontecimentos” ou

“história factual”, tempo dos indivíduos, da vida cotidiana; (ii) o tempo da média duração, das mudanças

cíclicas ao longo das gerações, próprio das conjunturas econômicas e sociais; e (iii) o tempo da longa

duração, tempo das estruturas longas, das relações fixas entre realidades e massas sociais, que levam

gerações, séculos para se transformar. É através do conceito de longa duração que podemos identificar as

continuidades que se escondem através das aparentes rupturas. Cf. Pinto, 2002, p. 129 e ss.

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não seja encarnado, localizado, parcial; ademais, a história se escreve a partir do

presente, ressignificando o passado para construir um futuro: “O ofício da história é

necessariamente o diálogo da nossa contemporaneidade com o passado, de que

gostaríamos de nos libertar ou pelo menos de ver a distância, com os olhos iluminados

pelas possibilidades múltiplas do nosso vir a ser no futuro” (Dias, 1994, p. 378). No

mesmo sentido, afirma Coelho que “(...) o presente é demasiado largo, demasiado

complexo e demasiado precioso para permanecer refém de uma interpretação fechada

e rígida sobre o passado”; sendo o passado uma “terra sem tenentes”, é preciso ter em

mente que “ao perguntarmos ao passado também estamos, de certa maneira, a fazer

perguntas sobre o presente” (Coelho, 2015, pp. 163-164).

2. Estudos pós-coloniais e decoloniais latino-americanos: desconstruindo o

eurocentrismo, o epistemicídio e o pensamento abissal

Os estudos pós-coloniais e decoloniais latino-americanos são úteis para

desconstruir essas ideias filosóficas eurocêntricas e epistemicidas que tiveram longa

duração histórica, e continuam a influenciar a imagem que muitos possuem da África e

dos Africanos. As ideias de Aníbal Quijano e Santiago Castro Gómez serão utilizadas

para compreender o conceito de eurocentrismo, e as de Boaventura Sousa Santos, para

delinear o conceito de epistemicídio e de pensamento abissal.

Para Aníbal Quijano, a ideia de raça não tem história conhecida antes do projeto

colonial de conquista da América. Relações sociais foram forjadas nessa suposta

diferença biológica entre grupamentos humanos, gerando identidades como índios,

negros e mestiços. Em síntese, raça e identidade racial eram conceitos mobilizados em

torno de relações de poder e dominação. Não apenas os traços fenotípicos dos povos

dominados foram postos numa situação de inferioridade, mas também suas descobertas

mentais e culturais (Quijano, 2005, pp. 117-118).

Ao se colocar no centro do sistema-mundo capitalista, “todas as experiências,

histórias, recursos e produtos culturais terminaram também articulados numa só ordem

cultural global em torno da hegemonia européia ou ocidental”. Sob o domínio do poder

hegemônico europeu, controlavam-se as subjetividades, a cultura e, especialmente, a

produção do conhecimento. Dentre as várias estratégias de dominação, destaca-se a

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repressão às “formas de produção de conhecimento dos colonizados, seus padrões de

produção de sentidos, seu universo simbólico, seus padrões de expressão e de

objetivação da subjetividade”. Tanto índios quanto africanos foram despojados de suas

heranças culturais, desqualificadas como “subculturas iletradas e camponesas”;

ademais, foram obrigados a aprender a cultura dos dominadores, especialmente a

religiosa, o que redundou numa “colonização de perspectivas cognitivas”. A associação

entre o etnocentrismo e a classificação racial universal fundamentou o sentimento de

superioridade do europeu em relação a todos os povos do mundo. (Quijano, 2005, p.

121)7.

Tanto Quijano quanto Castro-Gómez, situados no âmbito do debate decolonial

latino-americano, não efetuam críticas apenas no plano da cultura, como supostamente

fazem os teóricos pós-coloniais ingleses e indianos. Castro-Gómez, apesar de imbuído

de uma perspectiva marxista que busca resgatar as especificidades latino-americanas no

sistema-mundo capitalista, critica as ideias eurocêntricas e teleológicas do próprio

Marx, que não teria vislumbrado o colonialismo como elemento constitutivo da

modernidade; ademais, ao adotar parcialmente perspectivas hegelianas, Marx teria

considerado as sociedades latino-americanas como pré-modernas, nas quais os conflitos

étnico-raciais seriam fenômenos pré-capitalistas, próprios de sociedades nas quais não

havia emergido uma burguesia, e ainda reinavam estruturas estamentais e relações

feudais de produção, dominadas por uma classe de caudilhos políticos, dotados de

privilégios étnicos e poderes ditatoriais para controlar as massas ignorantes. Os estudos

pós-coloniais de autores como Edward Said, Homi Bhabha e Gayatri Chakravorty

Spivak teriam tido o mérito de demonstrar que o colonialismo não é apenas um

fenômeno político, de dominação pela força, mas que possui uma dimensão epistêmica

e simbólica que ajudaram a construir um imaginário sobre os subalternos colonizados.

7 O fato de que os europeus ocidentais imaginaram ser a culminação de uma trajetória civilizatória desde

um estado de natureza, levou-os também a pensar-se como os modernos da humanidade e de sua história,

isto é, como o novo e ao mesmo tempo o mais avançado da espécie. Mas já que ao mesmo tempo

atribuíam ao restante da espécie o pertencimento a uma categoria, por natureza, inferior e por isso

anterior, isto é, o passado no processo da espécie, os europeus imaginaram também serem não apenas os

portadores exclusivos de tal modernidade, mas igualmente seus exclusivos criadores e protagonistas.

(Quijano, 2005, p. 122).

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A imagem das sociedades latino-americanas, africanas e asiáticas como

tradicionais, a-históricas e estáveis (insuscetíveis de desenvolvimento histórico), servia

ao propósito de apresentar o presente colonial como projeto da modernidade: a

colonização traria aos colonizados as bases da civilização europeia, sua superioridade

intelectual, científica, tecnológica, cultural, moral, religiosa e estética. O orientalismo de

Said teria tido o mérito de formular uma crítica ao eurocentrismo8.

Embora reconheçam a importância de desvendar as dimensões epistêmicas do

colonialismo, Quijano e Castro-Gómez criticam as teorias pós-modernas e pós-

estruturalistas que embasam as teorias pós-coloniais inglesas, as quais negariam a

possibilidade de desvendar a realidade mesma, possibilitando a articulação de uma luta

contra as novas formas de colonialismo e exploração capitalista. A crítica ao

eurocentrismo não é suficiente para elaborar uma crítica do capitalismo. Para Dirlik

(1997), citado por Castro-Gómez: “as teorias pós-coloniais se concentraram na crítica

do essencialismo epistêmico da modernidade a nível microestrutural, mas olvidando a

análise das macroestruturas capitalistas que tornaram possível dita essencialização”

(Castro-Gómez, 2005, p. 34).

A colonialidade do poder descrita por Quijano expõe as dimensões simbólicas

do colonialismo, sem ignorar sua matriz capitalista. Castro-Gómez, por sua vez, coloca

em evidência o conceito da “hybris do ponto zero”: “(...) uma forma de conhecimento

humano que traz pretensões de objetividade e cientificidade partindo do pressuposto de

que o observador não forma parte do observado” (Castro-Gómez, 2005, p. 63). O ponto

zero representa não apenas o começo do epistemológico absoluto, mas igualmente o do

controle europeu (social, econômico e cultural) do mundo9.

8 O orientalismo mostrou que o presente da Ásia nada teria que dizer à Europa, pois a ilustração havia

postulado que essas manifestações culturais eram “velhas” e haviam sido já “rebaixadas” pela civilização

moderna. Das culturas asiáticas tão somente interessava seu passado enquanto momento “preparatório”

para a emergência da racionalidade moderna europeia. Desde a perspectiva ilustrada, as demais vozes

culturais da humanidade são vistas como “tradicionais”, “primitivas” ou “pré-modernas” e se encontram,

por isso, fora do Weltgeschichte. (Castro-Gómez, 2005, p. 24).

9 Desde a perspectiva do ponto zero os conhecimentos humanos foram ordenados em uma escala

epistemológica que vai desde o tradicional até o moderno, desde a barbaria até à civilização, desde a

comunidade até o indivíduo, desde a tirania até a democracia, desde o individual até o universal, desde o

oriente até o ocidente. (Castro-Gómez, 2005, pp. 63-64).

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Boaventura Sousa Santos desenvolve o conceito de epistemicídio, retomado por

Aparecida Sueli Carneiro. O colonialismo teria desencadeado um processo de

destruição de corpos, mentes e espíritos, isto é, o epistemicídio pode ser compreendido

como a faceta intelectual do genocídio. Para Carneiro (2005, p. 97), Sousa Santos define

epistemicídio como um eficaz instrumento de dominação étnico-racial, que nega

legitimidade ao conhecimento produzido por grupos dominados; trata-se de um

“processo de destruição da racionalidade, da cultura e da civilização do outro”. A

desqualificação do conhecimento produzido por povos dominados produz a

desconsideração desses povos como sujeitos cognoscentes. Além dos cânones da

história da filosofia europeia que consideraram os povos africanos como insuscetíveis

de progresso intelectual e civilizatório (Noguera, 2014, pp. 30-31), é preciso considerar

que a imagem dos negros como seres sem alma, a suposta naturalização da escravidão

em terras africanas, as “superstições diabólicas” e os “costumes bárbaros” africanos

justificaram o genocídio negro e a dominação branca nas Américas.

O sujeito universal da tradição filosófica é homem, branco, ocidental, civilizado,

heterossexual e culturalmente cristão; seu pensamento dicotômico opera uma hierarquia

entre os saberes, opondo bárbaros e civilizados, brancos e negros, masculino e

feminino; essa racionalidade epistêmica é epistemicida, verdadeira injustiça cognitiva

que hierarquiza os saberes dos povos colonizados como “crenças” e “pseudosaberes”

que não podem ser considerados totalmente racionais, quiçá filosóficos. (Noguera,

2014, pp. 21-32). As epistemologias feministas de Donna Haraway e Sandra Harding

esforçam-se por negar o “olhar conquistador que não vem de lugar algum”, que

“permite à categoria não marcada ter o poder de ver sem ser vista, de representar,

escapando à representação”, apresentando a possibilidade de construir saberes

localizados, corporificados, plurais e provisórios, que transcendam a divisão entre

sujeito cognoscente e objeto cognoscível (Haraway, 1995, pp. 23-24).

Além do conceito de epistemicídio, são pertinentes a esta análise as

considerações de Boaventura Sousa Santos acerca do pensamento abissal. O

pensamento moderno ocidental, como pensamento abissal, traçou uma profunda divisão

entre o velho e o novo mundo, entre a ciência, a filosofia e a teologia, de um lado, e as

crenças, opiniões, magias e idolatrias, de outro. Enquanto o velho mundo saberia

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distinguir o verdadeiro do falso, o legal do ilegal, a civilização da barbárie, o novo

mundo estaria mergulhado em estado de natureza, representando o passado ocidental:

“O contato hegemônico converte simultaneidade em não-contemporaneidade,

inventando passados para dar lugar a um futuro único e homogêneo” (Santos, B., 2007,

p. 74). A humanidade moderna e ocidental necessita de um outro que represente o

subumano, caso contrário não poderia ser tida como universal. Santos postula a

necessidade de um pensamento pós-abissal, pois a resistência política deve ser

acompanhada de resistência epistemológica, e a justiça global não se fará sem justiça

cognitiva. Tal pensamento seria baseado numa ecologia de saberes, fundada no

reconhecimento da pluralidade de saberes, na “co-presença radical”, no

“interconhecimento”, na “inesgotável diversidade epistemológica do mundo” (Santos,

B., 2007, pp. 84 e ss.).

3. Filosofias Africanas

Cheikh Anta Diop, físico, historiador, arqueólogo, egiptólogo e político

senegalês, problematizou a ausência do pensamento africano na História e na Filosofia,

apresentadas como disciplinas eminentemente ocidentais e europeias. Ele desenvolveu

uma série de investigações acerca do Antigo Egito, no sentido de apresentá-lo como

uma civilização negra que foi tão berço da filosofia quanto a civilização negra. As

escolas filosóficas do Egito teriam sido anteriores e contemporâneas às escolas gregas

pré-socráticas. No mesmo sentido, George James apresentou uma obra intitulada

“Stolen legacy: greek philosophy is stolen Egyptian philosophy” (Legado roubado: a

filosofia grega é um roubo da filosofia egípcia) (Noguera, 2014, pp. 55 e ss).

No que se refere à sociedade egípcia, Diop apresenta a perspectiva de que a

população egípcia, desde o início conhecido da história da humanidade até o período

dinástico, era, fundamentalmente, negra. Os negros foram preponderantes do início ao

fim da história egípcia, desmentindo a tese de que teriam se estabelecido tardiamente no

Egito: “Assim, fica evidente que toda a população egípcia era negra, com exceção de

uma infiltração de nômades brancos no período protodinástico”. As várias

classificações antropológicas sobre as raças presentes no Antigo Egito não permitem

concluir a existência de uma raça branca egípcia e, no entanto, os egípcios foram quase

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sempre representados como brancos. Os indo-europeus teriam sido apenas cativos,

conquistados pelos negros. Conclui Diop pela existência de duas raças negras: “os

negros de cabelos lisos, representados na Ásia pelos dravidianos e, na África, pelos

núbios e os tuboou ou Tedda, todos com pele negro-azeviche” e “os negros de cabelo

crespo das regiões equatoriais” (Diop, 2010, p. 46). Ele defende as múmias dos faraós

sejam testadas para verificar a existência de melanina na pele, o que pode ser feito

cientificamente sem maiores problemas, a fim de atestar que os grandes faraós egípcios

eram negros. Recorre a Heródoto, o primeiro historiador grego, e a Aristóteles, grande

filósofo grego, para afirmar que desde a antiguidade, os sábios gregos já sabiam que os

egípcios eram povos negros. De acordo com Aristóteles: “Aqueles que são muito negros

são covardes, como, por exemplo, os egípcios e os etíopes. Mas os excessivamente

brancos também são covardes, como podemos ver pelo exemplo das mulheres; a

coloração da coragem está entre o negro e o branco”. (Apud Diop, 2010, p. 51).

De acordo com a maioria dos manuais de filosofia, a filosofia teria se iniciado

com o grego Tales de Mileto (640-562 a.C.). O nascimento da filosofia marcaria o fim

da racionalidade mítica e o início da era da razão (logos). Ocorre que, para esses

filósofos africanos, Tales de Mileto teria recebido sua formação filosófica no Egito

antigo. Para Diop, o primeiro filósofo foi Im-hotep (2.700 a.C.). A filosofia egípcia

destacava-se pela valorização da racionalidade, do direito e da justiça.

Marcien Towa, filósofo camaronês, entende que o que caracteriza a filosofia é a

coragem de pensar o absoluto; pensar significa pesar os prós e os contras, debater

representações, crenças e opiniões, considerando verdadeiras apenas as que resistirem

ao teste da crítica (Towa, 2015, p. 17 e ss.). Considera as tradições semitas, judaico-

cristãs e islâmicas, como fundamentalmente antifilosóficas, pois em seus mitos

religiosos o homem que julga por si mesmo o bem e o mal, que ousa pensar por si

mesmo, afasta-se da divindade e aproxima-se do mal absoluto: “A renúncia ao

pensamento e à submissão consagram o rebaixamento e a humilhação do homem sob a

autoridade de um deus hostil à razão, um deus que é apenas uma roupagem

transparente do despotismo oriental”. (Towa, 2015, p. 29). Lembrando o pensamento

de Cheik Anta Diop, Marcien Towa situa o berço da filosofia africana no Antigo Egito.

Considera como característica marcante do Antigo Egito a preocupação com a unidade,

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a integração, a síntese de todos os valores. As divindades egípcias simbolizariam, na

verdade, os vários aspectos de um mesmo deus. Os deuses egípcios, como os deuses

africanos em geral, não são senhores dirigindo servos, mas primos inter pares; afirma-se

uma identidade entre os homens e os deuses, uma vez que os homens podem se tornar

imortais e divinizados, e os deuses, por sua vez, são seres imperfeitos moralmente e

limitados intelectualmente. Tanto homens quanto deuses devem cultivar a racionalidade

como norma suprema de comportamento, e orientar suas condutas de acordo com os

princípios de justiça, sintetizados na ideia da Maat10.

Marcien Towa traça um paralelo entre contos filosóficos de outras regiões da

África com os princípios da filosofia egípcia, o que confirmaria o Egito como berço da

filosofia africana: “Nos dois casos, a inteligência e o direito se opõem à força bruta e

injusta; nos dois casos, a inteligência e o direito triunfam sobre a brutalidade e a

injustiça” (Towa, 2015, pp. 44-45). A filosofia africana, por sua vez, possuiria duas

características fundamentais: (i) nada está acima da inteligência; (ii) ninguém possui o

monopólio da inteligência e da perfeição ética. Enquanto a inteligência é a faculdade de

criar soluções para os problemas com base em conhecimentos e processos objetivos,

julgando por si o que é bom ou ruim, a estupidez consiste em deixar essa

responsabilidade de julgamento para os demais, em se deixar conduzir, sem

compreender os valores que orientam o bom comportamento. Por fim, tantos homens

quanto deuses, sendo limitados intelectualmente e imperfeitos moralmente, devem

orientar suas condutas pela abertura do debate, da livre reflexão, reconhecendo que não

lhes cabe ditar verdades absolutas11.

10 Essa noção densa e complexa designa a ordem cósmica, social e interior. No plano físico, a Maat é

exatidão, medida correta; no plano social ético, ela é verdade, justiça e ordem. Percebe-se, então, que a

Maat designa uma ordem boa em si, mas constantemente ameaçada pelo seu contrário, a desordem, a

desmedida, a violência. A Maat se impõe então como um dever: para o rei, dever de manter ou de

restaurar, na vida social, a ordem, a justiça, o direito; para o homem comum, dever de respeitar a justiça e

a honestidade, na relação com os outros ou no esforço de controle de suas próprias paixões, para adquirir

o autocontrole e a verdade. (Towa, 2015, p. 36). 11 (...) o pensador da África negra tradicional e o pensador Egípcio estão de acordo em recusar a

onisciência e a perfeição ética a um ser qualquer e admitem que todo homem é capaz de adquiri-las em

maior ou menor grau. Assim, eles descartam toda a ideia de uma revelação de toda a verdade que teria

sido proclamada de uma vez por todas e colocam a necessidade da reflexão, da busca e da troca de ideias

como única via de acesso à verdade. E nós sabemos que essa exigência da verdade sobre o essencial é

outra maneira de se referir à exigência filosófica. Esses elementos de semelhança entre o pensamento

egípcio e o pensamento do restante da África negra nos parecem suficientemente numerosos e

importantes para nos autorizar a afirmar a existência de uma tradição filosófica africana fundamental, que

remonta à mais alta antiguidade que existe. (Towa, 2015, p. 48).

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A posição da mulher no Antigo Egito e no Egito pré-colonial não pode ser

comparada aos padrões ocidentais de submissão feminina que foram impostos durante a

colonização das sociedades africanas. Nesse sentido, a análise de Dwayne Wong

(Omowale) sobre o poder das mulheres e da maternidade na África pré-colonial conclui

que, em contraste com muitas sociedades contemporâneas, as mulheres do Egito

possuíam muito mais poder e liberdade, pois estavam autorizadas a: (i) possuir e manter

suas propriedades, mesmo depois do casamento; (ii) iniciar o processo de divórcio, se

assim o desejassem; (iii) ficar com uma parte da riqueza adquirida pelo casal, em casos

de divórcio. Destaca-se, ainda, a tradição das rainhas-mãe em várias sociedades

africanas que, no Egito, foram representadas pela rainha Tiye, esposa do rei Amenhotep

III e mãe do futuro rei Akhenaton, que serviu de conselheira política a ambos.

Paulin J. Hountondji critica as ideias filosóficas ocidentais sobre a África que

são erroneamente apresentadas como “filosofias africanas”. Os missionários ocidentais

que procuravam sistematizar o pensamento africano partiam do pressuposto da

inconsciência dos nativos em relação à sua própria filosofia. Na tradição filosófica

estudada por Hountondji, a saber, a filosofia da consciência, a filosofia é considerada a

disciplina mais autoconsciente de todas, constituindo uma contradição em termos a

ideia de uma filosofia inconsciente12.

Ao afirmar em sua obra “Filosofia Africana: mito e realidade” que a filosofia

africana era “um conjunto de textos”, o filósofo estabeleceu uma diferenciação entre as

filosofias produzidas por africanistas (em regra ocidentais estudiosos da África) e

africanos no âmbito da filosofia. Sem negar a “solidariedade temática” ou a

“cumplicidade intelectual” entre a filosofia africana e a africanista, afirma-se que a

filosofia africana, para ser considerada como tal, precisa ser produzida por africanos.

A filosofia africana não é unânime, é composta de contradições e debates

internos, de tensões intelectuais “que dão vivacidade a esta filosofia e que fazem da

cultura africana, no seu todo, uma cultura viva e não morta” (Hountondji, 2008, p.

12 A meu ver, a filosofia africana não devia ser concebida como uma mundivisão implícita partilhada

inconscientemente por todos os africanos. Existia uma contradição na filosofia ocidental, quando esta se

considerava a mais autoconsciente de todas as disciplinas intelectuais, mas presumia ao mesmo tempo,

que algumas filosofias não-ocidentais podiam ser desprovidas dessa consciência de si mesmas.

(Hountondji, 2008, p. 153).

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154). Há o debate entre os adeptos da Etnofilosofia e os partidários da Filosofia crítica;

há trabalhos filosóficos africanos que buscam pensar, repensar ou simplesmente

compreender a filosofia ocidental, islâmica, chinesa ou indiana; outros se voltam a

conceitos universais com temas relacionados à lógica; à filosofia, história e sociologia

da ciência; à antropologia do conhecimento; à ética e à filosofia política; à filosofia da

linguagem etc.

Embora marcados por uma espécie de “pecado original”, a saber, pelo papel que

os estudos africanistas assumiram na disputa e dominação colonial ou na Alemanha

nacional-socialista de Hitler, ou ainda no regime fascista português de Salazar, não se

pode negar sua importância na construção dos conhecimentos sobre a África e sobre os

africanos. Nesse sentido, Hountondji defende que a filosofia africana utilize como

modelo os estudos africanistas alemães que, em sua perspectiva, partilham uma língua

comum, e movem-se de acordo com um debate interno, horizontal e de sustentação

própria. Desta forma, a filosofia africana promoveria uma investigação científica

autônoma e autoconfiante, que ao invés de se voltar a temas de interesse ocidental,

numa atividade científica extravertida, orientada ao encontro das necessidades teóricas

dos parceiros ocidentais, buscando responder às perguntas por eles colocadas, seria

fundamentada num debate horizontal entre filósofos africanos, a fim de entabular “um

processo autônomo e autoconfiante de produção de conhecimento e de capitalização

que nos permita responder às nossas próprias questões e ir ao encontro das

necessidades tanto intelectuais como materiais das sociedades africanas” (Hountondji,

2008, pp. 157-158)13.

Questões endógenas, que permeiam o debate africano sobre filosofia, é

justamente a importância do Antigo Egito na tradição filosófica mundial e africana, e

sua compreensão como civilização negra, enfrentadas tanto por Cheikh Anta Diop

quanto por Marcien Towa. A defesa de Towa sobre a existência de uma filosofia negro-

13 Os estudos africanos em África não deveriam contentar-se em contribuir apenas para a acumulação do

conhecimento sobre África, um tipo de conhecimento que é capitalizado pelo Norte global e por ele

gerido, tal como acontece com todos os outros setores do conhecimento científico. Os investigadores

africanos envolvidos nos estudos africanos deverão ter uma outra prioridade: desenvolver, antes de mais,

uma tradição de conhecimento em todas as disciplinas e com base em África, uma tradição em que as

questões a estudar sejam desencadeadas pelas próprias sociedades africanas e a agenda da investigação

por elas direta ou indiretamente determinada. (Hountondji, 2008, p. 158).

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africana é relevante na medida em que ainda há filósofos, inclusive africanos, chamados

de “filósofos modernistas”, que negam a existência dessa filosofia, pois haveria apenas

uma única filosofia universal, a filosofia ocidental. Para os “filósofos tradicionalistas”,

haveria uma filosofia africana genuína, baseada na cultura africana, que deveria seguir

seu desenvolvimento próprio (Santos, B., 2007, p. 91). Por fim, há as perspectivas que

defendem a pluriversalidade, para as quais “não faz sentido justificar uma experiência

particular de filosofia como única e precursora” (Noguera, 2014, p. 58); toda filosofia

possui um ponto de partida particular, há muitas filosofias e é possível estabelecer um

diálogo entre elas.

Dentro da perspectiva pluriversal, da abordagem filosófica em afroperspectiva,

há diversas perspectivas epistemológicas, não havendo a possibilidade de definir uma

essência da filosofia14.

De acordo com Gislene Aparecida dos Santos, a perspectiva afrocêntrica

permitiria, ainda, considerar as “contribuições que as culturas negras – da África e da

Diáspora – oferecem e ofereceram, mas também permitiria uma leitura africana e

diaspórica de toda a produção cultural” (Santos, G., 2010, p. 13). Para Elisa Larkin

Nascimento, as críticas ao afrocentrismo, que o consideram uma versão africana,

igualmente essencialista e mítica, do eurocentrismo, não seriam pertinentes, uma vez

que o afrocentrismo não possuiria a mesma pretensão de hegemonia cultural que o

eurocentrismo (Nascimento, 2009, pp. 181 e ss.). Trata-se, como bem definiu

Nascimento, de uma abordagem polêmica15.

Considerações finais

Sem olvidar os debates entre as várias correntes da filosofia africana, o que fica

patente com esses estudos são justamente essas múltiplas perspectivas e possibilidades

epistemológicas que rompem com os privilégios simbólicos da branquitude, ainda tão

14 Para Noguera, ela abarcaria, ainda, a proposta de: “(...) colocar a história da filosofia em

afroperspectiva permitirá a consideração do pensamento filosófico dos povos ameríndios, dos povos

asiáticos, da Oceania, além da produção filosófica africana. Ou seja, afroperspectivizar a filosofia é um

projeto de passar a limpo a história da humanidade, tanto para dirimir as consequências negativas de

eliminar culturas e povos não ocidentais do rol do pensamento filosófico, como para desfazer as

hierarquizações que advêm desse processo” (Noguera, 2014, p. 71). 15 Para Bussotti e Tembe, a perspectiva afrocêntrica teria caráter essencialista ao oprimir os homossexuais

sob a justificativa de que a homossexualidade não integra as tradições africanas. Cf. Bussoti & Tembe,

2014, pp. 15-24.

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presentes no ambiente universitário. A apresentação de múltiplas perspectivas

filosóficas africanas e afro-brasileiras é indispensável para romper a lógica racista

essencializante e homogeneizante, que tende a afirmar categorias universais como “os

negros”, “as mulheres”, “os africanos”. Os sujeitos historicamente subalternizados são

diversos entre si, e a valorização do seu pensamento deve ser feita de maneira crítica e

controvertida, expondo debates e contradições.

Acerca da persistência dos privilégios simbólicos da branquitude em ambientes

intelectualizados, concordo com Gislene Aparecida dos Santos, para quem:

A lógica da branquitude perpassa a produção do conhecimento não somente

pela forma como a racionalidade se define e a razão é definida, mas também

(...) pelo modo como brancos e não brancos são vistos e tratados dentro do

espaço de produção do conhecimento como se a cor da pele, por si só,

definisse a qualidade do conhecimento a ser produzido e sua aparente

neutralidade e racionalidade. Os negros, necessariamente, seriam desviados

do saber pelo comprometimento das causas pelas quais lutam e os brancos,

isentos de ideologias, estariam aptos a produzir o verdadeiro e desinteressado

conhecimento que, de fato, poderia contribuir para desnudar a alienação

presente na sociedade. E é deste lugar também racializado, mas que não se

enxerga ou se afirma como tal que ataques e desqualificações são feitas a

intelectuais e acadêmicos de grande valor que são negros e por serem negros

são considerados incompetentes por que quem se alega o direito de fala

somente por estar em um lugar privilegiado, o lugar da brancura, já não tem

nenhuma ‘qualificação’ intelectual que poderia chamar para si. Fala e escreve

e é ouvido por ser branco e nada mais do que isso. E é deste lugar da

brancura que pretende fazer crer que está isento de razões, ideologias e

intenções políticas presentes naqueles aos quais ataca, levianamente. (Santos,

G., 2010, p. 25).

Uma questão subjacente ao debate sobre branquitude pode ser elaborada nesses

termos: deveriam todos os conceitos filosóficos elaborados por homens brancos

europeus e norte-americanos ser prontamente desconsiderados como colonizadores?

Intelectuais negras e latino-americanas de peso – como Sueli Carneiro – valem-se dos

conceitos elaborados por Boaventura Sousa Santos, homem branco europeu, para

apresentar suas propostas de descolonização do ensino e reconstrução do pensamento

científico, todavia renovam teorias europeias e norte-americanas com sua compreensão,

teorizada e vivida, da história e da sociedade brasileiras, conferindo enorme peso e valor

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à produção intelectual negra. O objetivo da crítica, portanto, não é negar contribuições

filosóficas apenas porque foram elaboradas por homens brancos, europeus ou norte-

americanos, mas construir uma universalidade verdadeira, acrescentando as perspectivas

das mulheres, brancas e negras, dos homens, brancos e negros, dos índios, etc.

Através das ideias das críticas à branquitude, ao eurocentrismo, ao epistemicídio

e ao pensamento abissal, e por meio da apresentação de ideias presentes nos debates

filosóficos africanos, segui a sugestão da autora de que devemos alimentar o espírito

como alimentamos o corpo: experimentando sempre novos sabores e temperos,

ampliando nossas perspectivas e visões sobre o mundo (Santos, G., 2010, p. 28), sem

pretensões de esgotar o debate ou de apresentar perspectivas de caráter universalizante.

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