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882 DESCORTINANDO O CONCEITO DE INFÂNCIA NA HISTÓRIA: DO PASSADO À CONTEMPORANEIDADE Sandro da Silva Cordeiro Universidade Federal do Rio Grande do Norte Maria das Graças Pinto Coelho Universidade Federal do Rio Grande do Norte RESUMO Para compreendermos as mais recentes configurações impostas à infância temos necessariamente que retroceder ao passado, buscando nos aspectos históricos algumas respostas para o presente. Partindo deste entendimento, a idéia de criança pode ser considerada a partir de uma noção histórica e cultural construída, a qual veio sofrendo diversas alterações percebidas no transcorrer dos tempos. Cada época tratou de proferir um discurso que revela em sua essência os ideais e expectativas depositadas na criança, tendo tais discursos conseqüências sobre esses indivíduos em formação. Essa conceituação, tal como a encontramos na atualidade é recente e seu surgimento está atrelado à noção de família e ao desenvolvimento da educação escolar a partir do século XVII. Recorrendo-se a definição da palavra infância, oriunda do latim infantia, significa “incapacidade de falar”. Considerava-se que a criança, antes dos 7 anos de idade, não teria condições de falar, de expressar seus pensamentos, seus sentimentos. Desde a sua gênese, a palavra infância carrega consigo o estigma da incapacidade, da incompletude perante os mais experientes, relegando-lhes uma condição subalterna diante da sociedade. Era um ser anônimo, sem um espaço determinado socialmente. Este trabalho visa refletir acerca do conceito de infância ao longo da historiografia humana, extraindo destes acontecimentos registrados a percepção sobre as crianças em seus diferentes períodos, culminando com as suas atuais determinações desveladas em nossa contemporaneidade, influenciada principalmente pela sociedade da informação e do consumo. Para tanto, recorremos a algumas fontes bibliográficas ligadas tanto a história da educação, quanto a alguns autores que dialogam sobre as questões envolvendo a atualidade, vinculadas as correntes da sociologia e da comunicação social. Desse modo, perpassa várias áreas do conhecimento, tornando-se fundamental esta reflexão na busca de uma compreensão acerca da visão construída hoje sobre o ser criança. Neste espaço mutante e efêmero, a noção de infância adquiriu uma nova roupagem, incorporando uma reestruturação que lhe confere um outro status. A criança desses novos tempos possui outras características, necessidades não encontradas outrora, aspirações estas fruto da recente ordem estabelecida mediante os ditames da globalização e do neoliberalismo. Neste contexto, as mídias se configuram como elementos fornecedores de uma considerável quantidade de informações disponíveis através de diferentes suportes. Isso contribuiu, direta e indiretamente, na montagem dessa nova fase da infância, na qual a criança é encarada como um sujeito receptor e consumidor em potencial. Diferentemente do protótipo de criança desenvolvidos nos séculos anteriores a criança, calcado no mito da infância feliz deste novo milênio, possui um espírito mais independente, pois desenvolveu uma série de habilidades no contato a mídia. No entanto, ainda precisa da ação interventora e mediadora do adulto, no sentido de conduzi-la na elaboração das estratégias de percepção da realidade, auxiliando-a nas suas escolhas, na constituição de princípios e valores baseados na justiça e na solidariedade, proporcionando a construção de um olhar crítico frente o mundo circundante. Desse modo, percebe-se que todos os acontecimentos ocorridos na história da infância serviram para estruturar uma nova caracterização da criança, do ponto de vista sociológico, como um componente histórico-cultural moldada por condicionantes econômicos e políticos atuando diretamente sobre ela. Considerando tais elementos, encaramos esta fase da vida humana como detentora de direitos, dotada de competências e capacidades a serem aprimoradas

Descortinando o Conceito de Infância Na História Do Passado à Contemporaneidade

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    DESCORTINANDO O CONCEITO DE INFNCIA NA HISTRIA: DO PASSADO CONTEMPORANEIDADE

    Sandro da Silva Cordeiro Universidade Federal do Rio Grande do Norte

    Maria das Graas Pinto Coelho Universidade Federal do Rio Grande do Norte

    RESUMO

    Para compreendermos as mais recentes configuraes impostas infncia temos necessariamente que retroceder ao passado, buscando nos aspectos histricos algumas respostas para o presente. Partindo deste entendimento, a idia de criana pode ser considerada a partir de uma noo histrica e cultural construda, a qual veio sofrendo diversas alteraes percebidas no transcorrer dos tempos. Cada poca tratou de proferir um discurso que revela em sua essncia os ideais e expectativas depositadas na criana, tendo tais discursos conseqncias sobre esses indivduos em formao. Essa conceituao, tal como a encontramos na atualidade recente e seu surgimento est atrelado noo de famlia e ao desenvolvimento da educao escolar a partir do sculo XVII. Recorrendo-se a definio da palavra infncia, oriunda do latim infantia, significa incapacidade de falar. Considerava-se que a criana, antes dos 7 anos de idade, no teria condies de falar, de expressar seus pensamentos, seus sentimentos. Desde a sua gnese, a palavra infncia carrega consigo o estigma da incapacidade, da incompletude perante os mais experientes, relegando-lhes uma condio subalterna diante da sociedade. Era um ser annimo, sem um espao determinado socialmente. Este trabalho visa refletir acerca do conceito de infncia ao longo da historiografia humana, extraindo destes acontecimentos registrados a percepo sobre as crianas em seus diferentes perodos, culminando com as suas atuais determinaes desveladas em nossa contemporaneidade, influenciada principalmente pela sociedade da informao e do consumo. Para tanto, recorremos a algumas fontes bibliogrficas ligadas tanto a histria da educao, quanto a alguns autores que dialogam sobre as questes envolvendo a atualidade, vinculadas as correntes da sociologia e da comunicao social. Desse modo, perpassa vrias reas do conhecimento, tornando-se fundamental esta reflexo na busca de uma compreenso acerca da viso construda hoje sobre o ser criana. Neste espao mutante e efmero, a noo de infncia adquiriu uma nova roupagem, incorporando uma reestruturao que lhe confere um outro status. A criana desses novos tempos possui outras caractersticas, necessidades no encontradas outrora, aspiraes estas fruto da recente ordem estabelecida mediante os ditames da globalizao e do neoliberalismo. Neste contexto, as mdias se configuram como elementos fornecedores de uma considervel quantidade de informaes disponveis atravs de diferentes suportes. Isso contribuiu, direta e indiretamente, na montagem dessa nova fase da infncia, na qual a criana encarada como um sujeito receptor e consumidor em potencial. Diferentemente do prottipo de criana desenvolvidos nos sculos anteriores a criana, calcado no mito da infncia feliz deste novo milnio, possui um esprito mais independente, pois desenvolveu uma srie de habilidades no contato a mdia. No entanto, ainda precisa da ao interventora e mediadora do adulto, no sentido de conduzi-la na elaborao das estratgias de percepo da realidade, auxiliando-a nas suas escolhas, na constituio de princpios e valores baseados na justia e na solidariedade, proporcionando a construo de um olhar crtico frente o mundo circundante. Desse modo, percebe-se que todos os acontecimentos ocorridos na histria da infncia serviram para estruturar uma nova caracterizao da criana, do ponto de vista sociolgico, como um componente histrico-cultural moldada por condicionantes econmicos e polticos atuando diretamente sobre ela. Considerando tais elementos, encaramos esta fase da vida humana como detentora de direitos, dotada de competncias e capacidades a serem aprimoradas

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    TRABALHO COMPLETO

    Introduo

    O mundo contemporneo impe novos paradigmas aos sujeitos neste incio de milnio. As transformaes econmicas, sociais e culturais ocorridas principalmente a partir da segunda metade do sculo XX provocaram profundos impactos na sociedade, alterando verdades consideradas absolutas e incitando questionamentos sobre o rumo tomado pela humanidade. Um clima de incertezas paira no ar, trazendo consigo tempos em que a instabilidade, aliada a efemeridade ditam as novas relaes travadas no interior do tecido social.

    So relaes pautadas por paradoxos e contradies, nas quais o revolucionrio e o conservador aparecem num mesmo contexto. Esse novo standard social est impregnado de uma enorme ausncia e vazio de valores. Em contrapartida, ao mesmo tempo em que as incertezas geram temor pelas proposies futuristas, visvel a abertura de novas portas anunciando um mundo infinito de possibilidades.

    Sobre o sentimento de transformao e das suas possveis conseqncias, Marshall Berman elucida este entendimento com o seguinte comentrio:

    So todos movidos, ao mesmo tempo, pelo desejo de mudana - de autotransformao ed e transformao do mundo em redor e pelo terror da desorientao e da desintegrao, o terror da vida que se desfaz em pedaos. Todos conhecem a vertigem e o terror de um mundo no qual tudo que slido se desmancha no ar (BERMAN, 1987, p. 13).

    Essas transformaes ocorridas em diversos mbitos das relaes coletivas no acarretaram mudanas apenas populao adulta. A construo social da infncia adquiriu caractersticas que a introjetam num cenrio de crise, baseadas em fatores oriundos principalmente da desfragmentao do ncleo familiar e do acesso ilimitado s informaes prprias do universo adulto, alterando o modo como elas se vem e so vistas pelos indivduos. Isso nos leva a constatar que esses novos tempos anunciam uma nova era para a infncia, ocasionando uma drstica mudana de rumo histrica.

    A partir das afirmaes acima levantadas, pertinente empreendermos uma breve incurso ao longo da historiografia humana, extraindo destes acontecimentos registrados a percepo sobre as crianas em seus diferentes perodos e notando a sua escala de evoluo, culminando com as suas atuais determinaes em nossos dias, influenciada pela sociedade da informao e do consumo.

    Falando sobre a infncia de ontem...

    Para iniciar nossa trajetria ao passado, podemos inferir que as referncias histricas sobre a famlia obtidas em nossos dias, materializadas pela existncia de pinturas, antigos dirios de famlia, testamentos, documentos eclesisticos e tmulos, constituem-se numa valiosa fonte de pesquisa para os estudos da sociedade, deixando um legado de impresses e vestgios teis para a posteridade, auxiliando no desvelamento dos acontecimentos ocorridos no passado.

    Considerando tais fontes documentais portadoras de informaes e de significados no encontramos, at por volta do sculo XII, registros representando a infncia. Denotamos a partir desta constatao que a infncia antes dessa delimitao histrica no existia conceitualmente. bem provvel que no houvesse um lugar de destaque voltado para esta fase da vida. Confirmando tal verificao, Steinberg e Kincheloe atestam sobre o conceito de infncia como uma classificao especfica de seres

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    humanos, necessitadas de um tratamento especial, diferente daquele fornecido aos adultos, ainda no havia sido desenvolvido na Idade Mdia (STEINBERG, KINCHELOE, 2001, p. 11).

    bem verdade que a infncia sempre existiu desde os primrdios da humanidade, mas a sua percepo enquanto construo e categoria social, dotada de uma representao sentida a partir dos sculos XVII e XVIII. Sobre a datao do surgimento da infncia, Carvalho nos aponta a seguinte afirmativa:

    A apario da infncia ocorreu em torno do sculo XIII e XIV, mas os sinais de sua evoluo tornaram-se claras e evidentes, no continente europeu, entre os sculos XVI e XVII no momento em que a estrutura social vigente (Mercantilismo) provocou uma alterao nos sentimentos e nas relaes frente infncia (CARVALHO, 2003, p. 47).

    Recorrendo-se a definio da palavra infncia, oriunda do latim infantia, significa incapacidade de falar. Considerava-se que a criana, antes dos 7 anos de idade, no teria condies de falar, de expressar seus pensamentos, seus sentimentos. Desde a sua gnese, a palavra infncia carrega consigo o estigma da incapacidade, da incompletude perante os mais experientes, relegando-lhes uma condio subalterna diante dos membros adultos. Era um ser annimo, sem um espao determinado socialmente.

    Ao serem representadas, principalmente atravs de pinturas, geralmente aparecia numa verso miniatura do adulto. Seus trajes no diferiam daqueles destinados aos j crescidos. Notamos trata-se de crianas pelo fato dessas figuras se apresentarem em tamanho reduzido, embora com rostos e musculatura de pessoas maduras.

    At este perodo, seguindo uma forma de organizao social da famlia tradicional, a fase da infncia tinha uma curta durao, restringindo-se apenas a sua etapa de fragilidade fsica. Ao adquirir uma certa independncia, era imediatamente conduzida ao convvio adulto, compartilhando de seus trabalhos e jogos, sem estar plenamente preparada fsica e psicologicamente para tanto. Sobre essa passagem precoce ao contato adulto Phillipe ris refora este entendimento com o posicionamento a seguir:

    De criancinha pequena, ela se transforma imediatamente em homem jovem, sem passar pelas etapas da juventude, que talvez fossem praticadas antes da Idade Mdia e que se tornaram aspectos essenciais das sociedades evoludas de hoje (ARIS, 1986, p. 10).

    Ainda neste momento, nota-se um sentimento superficial sobre a criana denominado de pararicao, reservado a ela durante os seus primeiros meses de existncia. Apesar dessa aparente ateno e sentimentos fraternos, sua inocncia, ingenuidade e graciosidade a tornavam um instrumento de diverso, tal qual um animal de estimao em termos de importncia. Caso chegasse a falecer1, muito freqente devido s condies precrias de sobrevivncia, havia um sentimento de substituio, pois logo outra criana nasceria e a substituiria. Uma espcie de anonimato estava presente neste sentimento dirigido infncia. Esse detalhe da histria da infncia deixa transparecer a posio secundria relegada a esta, condio que perdurou ainda por vrios sculos.

    2 Era extremamente alto o ndice de mortalidade infantil que atingia as populaes e, por isso, a morte das crianas

    era considerada natural. A partir do sculo XVI as descobertas cientficas provocaram o prolongamento da vida, ao menos nas classes dominantes (KRAMER, 1992, p. 37).

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    Neste perodo, a transmisso de valores e dos conhecimentos estava vinculada ao contato das crianas com os jovens ou os adultos atravs de um processo de socializao. Era uma aprendizagem de cunho prtico, baseada na observao do trabalho desempenhado pelos mais experientes.

    Com o estabelecimento de uma nova ordem social, em fins do sculo XVII, so notadas algumas mudanas considerveis alterando a estrutura at ento em vigncia. Com isso, sentiu-se a necessidade da criao de escolas, um dos mecanismos de fornecimento da formao inicial aos pequenos, a fim de dominarem a leitura, a escrita e a aritmtica, como mais um dos artifcios de preparao para a vida adulta. A escola passou a substituir a aprendizagem obtida empiricamente pela observao dos mais experientes, deixando de aprender a vida diretamente. O advento da escola moderna est atrelado ao surgimento de um novo sentimento do adulto para com as crianas, implicando em cuidados especiais. Tal processo est atrelado ao grande movimento de moralizao promovido pelos reformuladores catlicos e protestantes, alm da cumplicidade sentimental das famlias, numa afeio entre os cnjuges, entre pais e filhos. A respeito da introduo da criana em instituies de ensino sistematizadas, ris pondera de forma crtica este momento, emitindo o seguinte pensamento:

    A despeito das muitas reticncias e retardamentos, a criana foi separada dos adultos e mantida distncia numa espcie de quarentena, antes de ser solta no mundo. Essa quarentena foi a escola, o colgio. Comeou ento um longo processo de enclausuramento das crianas (como os loucos, dos pobres e das prostitutas) que se estende at nossos dias e ao qual se d o nome de escolarizao (ARIS, 1986, p. 11).

    Com o apogeu da Revoluo Industrial, ocorrido entre os sculos XVIII e XIX, foi direcionado um novo olhar sobre a infncia. Estas passaram a ser vista como tendo um valor econmico a ser explorado. A urgncia por mo-de-obra provoca o no cumprimento dos direitos infantis de acesso escola, levando as crianas novamente ao mercado de trabalho, submetidas s exploraes em nome dos ditames econmicos. Sobre essa fase nebulosa, Amarilha refora as afirmaes acima levantadas com este comentrio:

    Se a vida em comum com os adultos, antes da Revoluo Industrial, tratava a criana com descaso, agora, o seu valor enquanto gerao de braos para a indstria e cabeas para o comando lhe traz o exlio do seu tempo. Viver a infncia passa a ser um perodo dominado por modelos de preparao para ser o futuro adulto. A criana como tal, com identidade especfica, continua desrespeitada e desumanizada (AMARILHA, 2002, p. 128-129).

    Delimitamos entre os anos de 1850 a 1950 como o momento do pice da infncia tradicional. Com o desenvolvimento das cincias humanas e conseqente compreenso acerca desse perodo da vida humana, as crianas passaram a ser retiradas das fbricas e novamente inseridas em contextos promotores de aprendizagens sistematizadas, sendo as instituies educativas os locais mais apropriados para esses propsitos.

    Com a consolidao do prottipo de famlia em fins do sculo XIX, a responsabilidade dos genitores passou a assegurar mais responsabilidades com o bem-estar das crianas, garantindo os direitos que lhes assistem e maiores cuidados fsicos. A noo de infncia, agora, passa pelo crivo dos conceitos tcnicos e cientficos. Essa anlise respaldada e analisada luz da Psicologia, da Sociologia, da Medicina, dentre outros campos do saber, passando a emitir um parecer cientfico a respeito dessa fase da vida humana, adquirindo estas constataes uma maior respeitabilidade frente sociedade.

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    A infncia de hoje: espao de inmeras acepes

    Ao adentrarmos na trilha da contemporaneidade nos deparamos com uma srie de mudanas em curso, formando novas conjecturas e desencadeando diferentes concepes e olhares sobre um mesmo fato ou acontecimento, sendo evidenciadas e processadas algumas rupturas significativas na ordem conceitual at ento em vigncia. Neste espao mutante e efmero, a noo de infncia adquiriu uma nova roupagem, incorporando uma reestruturao que lhe confere um outro status. A criana desses novos tempos possui outras caractersticas, necessidades no encontradas outrora, aspiraes estas fruto da recente ordem estabelecida mediante os ditames da globalizao e do neoliberalismo.

    Para exemplificar concretamente essas alteraes em relao viso da infncia, podemos recorrer s mdias como um dos elementos fornecedores de uma considervel quantidade de informaes disponveis atravs de diferentes suportes. Isso contribuiu, direta e indiretamente, na montagem dessa nova fase da infncia, na qual a criana encarada como um sujeito receptor e consumidor em potencial.

    Por muitos anos, como constatado no decorrer da historiografia levantada anteriormente, a famlia e posteriormente a escola permaneceram como os principais espaos de socializao, considerados os agentes primrios na troca de experincias. Hoje as mdias, principalmente a televiso, acabaram ocupando esse lugar e roubando a cena, constituindo-se num dos principais meios de divulgao das informaes e de acesso ao mundo. Esse contato independe da classe social ou faixa etria, ocorrendo muito antes do que se imagina.

    Segundo estudos realizados por Pfromm Netto, as crianas tm interesse pela televiso a partir dos seis meses de vida, passando a assistir com maior regularidade a programao por volta dos dois ou trs anos de idade. (PFROMM NETTO, 1998, p. 48). Quando uma criana inicia o seu processo formativo na escola, leva consigo uma bagagem de conhecimentos inestimvel, adquirida atravs das vrias horas passadas em frente ao televisor desde quando ainda era um beb. A escola, muitas vezes, despreza esses conhecimentos prvios, trabalhando com informaes totalmente descontextualizadas dessa realidade. Isso provoca um distanciamento entre as prticas educativas e as vivncias infantis concentrando, em parte, a averso dos alunos escola.

    Os produtores corporativos da cultura infantil invadem a vida privada das crianas. Percebendo o enorme poder dos meios de comunicao e informao, atacam a vulnerabilidade infantil desenvolvendo uma infinidade de produtos para atingir a essa faixa etria, criando necessidades para este pblico consumidor e incitando a aquisio exacerbada dos produtos veiculados pelas mdias. Conforme atesta Rizzardi, alm dos aspectos voltados para o entretenimento e lazer, a televiso tambm se apresenta como uma poderosa gndola eletrnica para a exposio e seduo destes pequenos consumidores (RIZZARDI, 2003, p. 231).

    Alm disso, convm ressaltar um outro agravante, uma caracterstica tipicamente desenvolvida pela sociedade contempornea: a individualizao dos sujeitos. Aprisionados pelas suas rotinas profissionais, os pais acabam enclausurando as crianas em casa, de modo a permanecerem sozinhas. A televiso, estruturada com seus poderosos apelos comerciais, acabam invadindo a vida das crianas e se agregando na prpria constituio, ditando valores, regras, modismos, formas de encarar e atuar no mundo. Todo esse movimento desenrolado e incorporado, sem a devida filtragem, pois as crianas no dispem do contato com pessoas mais experientes.

    Sobre a aquisio de bens e produtos veiculados largamente pela mdia, os estudos desenvolvidos por Jean Baudrillard (1995) indicam que a insatisfao emocional dos indivduos o motor do consumismo. A estimulao acontece atravs das campanhas publicitrias, estando a felicidade atrelada ao consumo de bens materiais. Esse consumo desenfreado, realimentado no contato com novos bens, gera um ciclo vicioso ocasionando numa insatisfao psicolgica permanente do consumidor. o estado de insatisfao crnica que torna o indivduo um consumidor modelo (COSTA, 2004, p. 139).

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    Com isso, h uma desestabilizao das identidades culturais, deixando o indivduo moderno fragmentado, com fronteiras pouco definidas, tal como preconizado por Stuart Hall (2004). Em contrapartida uma nova identidade vai sendo construda gradativamente, por intermdio de produtos destinados s crianas tais como brinquedos, filmes, artigos de moda, dentre outros. O sujeito-criana, seguindo esta linha de raciocnio, reduzido ao corpo e torna-se consumidor. Essa compreenso dos fatos altera totalmente a noo de infncia construda at ento. Sobre essa transformao no entendimento do ser criana, Ghiraldelli Jnior nos esclarece brilhantemente acenando que:

    Ser criana ter corpo que consome coisa de criana. Que coisas so estas? Primeiro, coisas que a mdia define como tendo sido feitas para o corpo da criana. Segundo, coisas que ela define como sendo prprias do corpo da criana. Respectivamente, por um lado, bolachas, danoninhos, sucos, roupas, aparatos para jogos, etc, por outro, gestos, comportamentos, posturas corporais, expresses, etc. Ser criana algo definido pela mdia, na medida em que um corpo-que-consome-corpo (GHIRALDELLI JR., 1996, p. 38).

    Nesta perspectiva, h uma mudana de foco, pois a infncia deixa de ser uma fase natural da vida humana sendo, agora, um artefato construdo, autorizado e ditado pela mdia. Esta, por sua vez, recria esta imagem da criana livre, protegida, feliz, deturpando e camuflando a verdadeira face da realidade. O que temos, na verdade, no passa de um simulacro da infncia.

    Num entendimento de cunho scio e antropolgico, reconhece-se a existncia de uma infncia heterognea, percebendo as diferenas encontradas e a influncia de contextos especficos na edificao da diversidade. Isso evidencia a existncia de diferentes infncias vividas num mesmo espao e tempo, refletindo os paradoxos experimentados pelas crianas (CARVALHO, 2003, p. 41). O discurso proliferado pela mdia acaba desconsiderando estes dados, homogeneizando comportamentos e atitudes infantis, desconsiderando a individualidade do ser criana, construindo a idia de que todas as crianas so felizes e vivem em condies de vida favorveis ao seu crescimento, tal como preconizado pelas campanhas publicitrias e demais gneros televisivos.

    Como nos aponta Steinberg e Kincheloe (2001, p. 32) desde a dcada de 50, cada vez mais as experincias infantis tm sido pautadas e produzidas pelas corporaes. Programas de TV, cinema, videogames e as msicas passam a fazer parte exclusivamente do domnio privado das crianas. A cultura destinada infncia ignora, muitas vezes, os problemas de origem econmica, social, tnica e cultural vivenciados diariamente pelas crianas, mostrando um mundo de plasticidades onde reina a mais perfeita ordem, modelada pela performance miditica e ausentando-se de uma ressignificao.

    Diferentemente do prottipo de criana desenvolvidos nos sculos anteriores a criana, calcado no mito da infncia feliz deste novo milnio possui um esprito mais independente, pois desenvolveu uma srie de habilidades no contato a mdia. No entanto, ainda precisam da ao interventora e mediadora do adulto, no sentido de conduzi-la na elaborao das estratgias de percepo da realidade. Existe uma urgncia na preparao das crianas para o contato com o bombardeio de informaes de to fcil acesso, primando pela construo de um filtro capaz de selecionar quelas de maior qualidade alm do trato com a acuidade visual, eficaz no entendimento das imagens que povoam nosso cotidiano.

    Todos os acontecimentos que perpassam a histria da infncia serviram para estruturar uma nova caracterizao da criana, do ponto de vista sociolgico, como um componente histrico-cultural moldada por condicionantes econmicos e polticos atuando diretamente sobre ela. Considerando tais elementos, encaramos esta fase da vida humana como detentora de direitos, dotada de competncias e capacidades a serem aprimoradas, tendo condies para exercer o seu papel como cidad dentro de um processo evolutivo de socializao.

    A criana contempornea amadurece precocemente, dada as estimulaes ofertadas no meio circundante. De notvel inteligncia e criatividade, precisam ser ouvidas e consideradas como parte

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    integrante da sociedade. Mesmo tendo adquirido uma certa independncia desde cedo, inestimvel o apoio, a proteo e o contato do adulto, auxiliando-a nas suas escolhas, na constituio dos princpios e valores baseados na justia e na solidariedade, proporcionando a construo de um olhar crtico frente o mundo que nos envolve. S assim estaremos preparando nossas crianas para viverem plenamente estes novos tempos.

    E essa crise da infncia pode ser provocada por alguns fatores que devem ser considerados. A produo corporativa da cultura infantil, em outras palavras, os artefatos da cultura produzido por grandes empresas especializadas, exercem uma forte influncia na formao dessas crianas e merecem uma apreciao detalhada de pais e educadores. Ao examinarmos as pedagogias escolar e cultural, poderemos dar um sentido mais adequado ao processo educacional em vigncia, preocupado com essas questes tipicamente contemporneas e que interferem diretamente no processo de ensino e aprendizagem infantil. Desse modo, cabe ao educador compreender a trajetria de desenvolvimento do conceito de infncia e as suas atuais determinaes em nossos dias, que encontra suas influncias nos elementos da cultura e nos aportes miditicos. Essa medida auxilia no oferecimento de uma educao imbuda de criticidade e capaz de trazer s crianas todas as oportunidades disponveis para o seu crescimento, seja fsico, social e intelectual. Somente assim, estaremos preparando nossas crianas para viverem esses novos tempos que se anunciam, carregados de novas necessidades, novas aspiraes, novos desejos e novos desafios.

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