Desigualdades Escolares e Desigualdades Sociais

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DESIGUALDADES ESCOLARES E DESIGUALDADES SOCIAIS Teresa Seabra

Os ideais da igualdade surgem num contexto histrico preciso e correspondem a uma nova concepo de justia que funda e organiza as sociedades modernas.1 Como esclarecem Fitoussi e Rosanvallon (1997): A igualdade um projecto, um princpio de organizao que estrutura o devir de uma sociedade. [] O princpio de igualdade [] um movimento atravs do qual a sociedade procura libertar, ainda que parcialmente, os indivduos da sua histria para lhes permitir enfrentar melhor o seu futuro, abrindo-lhes um leque de escolhas que certas circunstncias do seu passado restringiram em demasia. A ideia de igualdade instaura um combate contra o determinismo, a explicao linear do futuro pelo passado. (pp. 64-5). Historicamente, no debate dos princpios orientadores dos sistemas pblicos de ensino passou-se da ideia inicial de igualdade de equidade e a de igualdade de oportunidades foi dando lugar de igualdade de resultados. Igualdade, equidade, igualdade de oportunidades e igualdade de resultados A escola tem o tempo da escrita (Terrail, 2002), mas s se associa ao desgnio da igualdade de oportunidades com o advento da construo da escola pblica. Condorcet, um dos mais acrrimos promotores da estatizao da escola, defende, em 1792, que a escola deve permitir a qualquer criana, em funo das suas prprias capacidades, chegar melhor situao social possvel, onde os critrios de seleco e de orientao so por isso intrnsecos personalidade do aluno e no sofrem o efeito da origem social (Van Haecht, 2001: 13). As decises dos poderes pblicos foram centradas em garantir as condies de acesso e de frequncia da escola pblica, instituindo a gratuitidade do ensino e, posteriormente, a sua obrigatoriedade.2 A primeira preocupao no foi propriamente a de criar condies para a igualdade de oportunidades, mas a de garantir o acesso de todos instruo elementar. Em pases onde a classe mercantil tinha criado uma rede significativa de educao privada, como era o caso de Inglaterra, o sistema de ensino na segunda metade do sculo XIX era completamente dual: as escolas privadas continuaram a ser frequentadas pelas classes sociais mais favorecidas e o pblico escolar das escolas pblicas eram os filhos dos trabalhadores; a par desta distino de pblicos (e tambm por causa dela) os currculos eram diferentes e o1 2 O artigo corresponde, com algumas alteraes, a parte de um dos captulos da tese de doutoramento da autora (Seabra, 2008). Em Portugal, institui-se o princpio da gratuitidade para todos os cidados em 1826 e a obrigatoriedade de frequncia (trs anos) declarada em 1911.SOCIOLOGIA, PROBLEMAS E PRTICAS, n. 59, 2009, pp. 75-106

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da escola pblica no se adequava ao prosseguimento de estudos (Coleman, 1975 [1968]).3 Esta situao foi sendo progressivamente questionada medida que se afirmavam os ideais da igualdade de oportunidades e se foi efectivando e alargando a escolaridade obrigatria. S quando todas ou quase todos as crianas so escolarizadas entre os 6 e os 12 anos [se torna] legtimo reclamar para cada um o direito de adquirir uma formao sua escolha, desde que tenha capacidades. A origem social do indivduo, seu sexo, sua nacionalidade, sua origem tnica ou regional, os rendimentos dos pais no podem constituir obstculos (Crahay, 2000). no mesmo sentido que Lahire (2003) salienta s fazer sentido relacionar as desigualdades sociais com as desigualdades escolares quando h uma igualdade na procura e valorizao da escolaridade por parte de todos os grupos sociais e nem todos conseguem atingir os nveis de escolarizao ou o tipo de formao desejados. A acepo dominante da igualdade de oportunidades comea por ser a de garantir o acesso de todos escola e a exposio dos alunos s mesmas condies de ensino, ou mais simplesmente, tudo igual para todos. obrigao do estado proporcionar essas condies de paridade e passa a ser obrigao das famlias e das crianas usarem a oportunidade que lhes oferecida (Coleman, 1975 [1968]). Trata-se de fazer depender o futuro do mrito de cada um, j que todos esto sujeitos s mesmas exigncias; suprimindo os obstculos decorrentes da condio social, o sucesso ou o insucesso dependem em primeiro lugar do mrito do prprio aluno, o qual integra para alm dos dotes naturais o esforo despendido quem reprova o culpado pois no se esforou (Husn, s/d). Esta concepo meritocrtica da igualdade de oportunidades foi reforada no perodo imediato ao segundo ps-guerra, com o desgnio de a escola proporcionar a identificao dos talentos necessrios reconstruo e expanso econmica. Esta procura da reserva de talentos, acompanhada das teorias do capital humano, que atingiram o seu expoente mximo tambm neste perodo, veio reforar a ideia do papel redentor que a escola podia ter na mudana societal. Concomitantemente, uniformizavam-se o mais possvel os sistemas educativos, sobretudo no que veio progressivamente a ser designado por escolaridade bsica.4 Neste primeiro patamar da escola, todos deveriam aceder a um sistema de ensino em tudo semelhante: os mesmos currculos, a mesma qualidade de professores, as mesmas exigncias, de modo a que os resultados no fossem afectados pela disparidade de condies escolares e fosse assim possvel diferenciar os alunos de acordo com o mrito revelado.5 Nos Estados Unidos, semelhana do que tinha acontecido em Inglaterra com a separao entre as escolas pblicas das classes3 Em Inglaterra constituram-se mesmo dois departamentos governamentais diferentes o Departamento da Educao e Departamento das Cincias e Artes que preparavam e avaliavam os exames dos dois tipos de escolas, as board schools e as voluntary schools e s nestas ltimas o currculo e o exame podiam dar origem admisso na educao superior (Coleman, 1975 [1968]). Em Portugal s em 1968 os alunos passaram a ser obrigados a frequentar seis anos de escolaridade (decretada em 1964) e nesse ano, pela primeira vez, o ensino igual para todos at ao 6. ano o ciclo preparatrio do ensino secundrio unifica os dois primeiros anos do ensino tcnico e liceal.SOCIOLOGIA, PROBLEMAS E PRTICAS, n. 59, 2009, pp. 75-106

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populares e as privadas das classes mais favorecidas, a primeira metade do sculo XX foi marcada por clara separao entre as escolas frequentadas pelos negros e as frequentadas pelos brancos (por funcionamento do mercado escolar). Esta separao foi sendo questionada e discutida nos fruns sociais legitimados e o argumento evocado para se defender a alterao dessa situao foi o dos efeitos que produzia a escolaridade efectivada nessas condies, dado que os resultados da populao escolar negra seriam diferentes se no fossem escolarizados em escolas segregadas do ponto de vista racial. Coleman (1975 [1968]) assinala que, nesse momento, se introduziu uma nova acepo do conceito de igualdade de oportunidades, pois passou a considerar-se os efeitos da escolarizao e, portanto, a ateno passou a focar-se, alm do acesso, tambm nos resultados. O debate acerca do que devia considerar-se como alvo e medida da igualdade de oportunidades foi-se aprofundando e o nvel de exigncia foi aumentando. Em meados dos anos 60 publicam-se os resultados de estudos empricos de grande envergadura, pelos recursos envolvidos e pela dimenso das amostras, realizados com o objectivo de ser avaliado o grau de concretizao da igualdade de oportunidades, a pedido das instncias governativas, nos Estados Unidos e em Inglaterra, e que ficaram conhecidos por, respectivamente, Relatrio Coleman e Relatrio Plowden, publicado o primeiro em 1966 e o segundo em 1967.6 Os dados evidenciaram a insuficincia das medidas em curso na consecuo da igualdade de oportunidades: mesmo estando sujeitos (pelo menos aparentemente) s mesmas condies de ensino, a disparidade de resultados entre as classes populares e as socialmente mais favorecidas, assim como entre os alunos negros e brancos, era muito significativa e sempre penalizadora dos filhos dos mais desfavorecidos socialmente. Simultaneamente, publica-se em 1964, relativamente sociedade francesa, uma obra de referncia no domnio da sociologia da educao, pela sua riqueza analtica e pela denncia do elitismo social dos estudantes do ensino superior trata-se de Les Hritiers. Les tudiants et la Culture, de Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron. Este conjunto de pesquisas, produzidas nos pases que constituam a vanguarda da modernidade, deu vigor ideia de que para proporcionar igualdade de oportunidades no era suficiente, nem desejvel, dar tudo igual a todos, e que esta poltica tinha como efeito perverso potenciar a desigualdade de oportunidades. Consequentemente, os governos adoptam uma nova perspectiva, que consiste num deslocamento da lgica de igualdade para uma lgica de equidade: a distribuio de recursos deve ser diferenciada em funo das necessidades tambm diferenciadas. Se, quando acedem escola, os prprios alunos so portadores de diferentes condies de apreenderem o que a escola lhes proporciona, torna-se necessrio dar5 Hussn, em obra publicada em 1975 (cuja traduo portuguesa dos Livros Horizonte no tem data), levanta a questo da justia da prpria ideia de meritocracia: ser justo o destino social ser decidido em funo do mrito revelado, uma vez que este pode ser parcialmente atribuvel ao potencial gentico? Assim, defende ser importante a escola criar as condies necessrias a que todos tenham resultados positivos. No caso do Relatrio Coleman foi aplicado um inqurito a uma amostra representativa dos alunos americanos do 1. ao 12. ano de escolaridade; o Relatrio Plowden circunscreveu-se aos alunos da escola primria.SOCIOLOGIA, PROBLEMAS E PRTICAS, n. 59, 2009, pp. 75-98

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mais aos que esto, partida, menos munidos para responder s exigncias escolares, de modo a igualar as condies de obteno de resultados e estes serem dependentes exclusivamente do mrito de cada um. Como especificam Fitoussi e Rosanvallon, trata-se de uma desigualdade correctora, destinada a reduzir ou a compensar uma desigualdade primeira. [] a equidade no se ope igualdade e supe, pelo contrrio, a busca de critrios de igualdade mais exigentes (p. 63). E acrescentam: A igualdade de oportunidades pode conciliar-se com desigualdades muito grandes de realizao. Mas tais desigualdades so consideradas inaceitveis se a sociedade tiver a impresso de que o princpio inicial, a igualdade de oportunidades, no respeitado. (1997: 64) Esta poltica de discriminao positiva materializou-se de diferentes formas nos vrios pases ocidentais e em tempos tambm diferentes. So exemplos, os Estados Unidos que, nos anos 60, inauguraram uma intensa campanha de educao compensatria,7 a Gr-Bretanha que cria em 1968 as reas de Educao Prioritria, e a Frana que em 1981 institui as Zonas de Educao Prioritria (ZEP). As medidas tomadas estavam enformadas pela ideia de se proporcionar a todos a igualdade de resultados, no no sentido de pr fim hierarquizao e selectividade escolares levadas a efeito pelo sistema de avaliao, mas de garantir que os alunos de todos os grupos sociais, independentemente das suas condies de partida, tinham a mesma probabilidade de ter sucesso escolar (seguir determinada fileira, entrar no ensino superior). Do ponto de vista operacional, foram emergindo modalidades diferentes e de crescente nvel de exigncia, correspondentes a diferentes tipos de desigualdades escolares. Duas destas hipteses so assim enunciadas por Coleman: i) verificar se o mesmo tipo de alunos teria os mesmos resultados em diferentes escolas; ii) verificar se h igualdade de resultados, dados diferentes inputs individuais, o que remete para avaliar se a escola conseguiu ou no ensinar todos os alunos, independentemente da sua condio social e do corresponde ponto de partida. Esta igualdade de resultados no implica que todos os estudantes tenham idnticos resultados, mas s que as mdias para os dois grupos de populaes [negros e brancos] que comeam em diferentes nveis acabem por ser idnticas (Coleman, 1975 [1968]: 239). Globalmente, os efeitos das polticas de discriminao positiva no contexto escolar no tm produzido os resultados esperados e tm mesmo sido assinalados alguns efeitos perversos. O balano salda-se pela positiva apenas na medida em que melhorou o ambiente escolar, apesar de no melhorarem os resultados (Dubet, 2004). Segundo Van Zanten (1996), esta poltica produziu frutos na medida em que impediu a degradao dos resultados escolares das crianas ou a escalada de violncia nos estabelecimentos situados nos bairros difceis (p. 286). O caso das ZEP francesas sintomtico: a identificao de determinadas escolas e territrios como tendo particulares handicaps que o estado estava a tentar suprir contribuiu7 Estas medidas incluram o que ficou conhecido por busing, que consistiu na implantao de um sistema de transporte das crianas de modo a reduzir a guetizao e a aumentar a heterogeneidade social nas escolas.SOCIOLOGIA, PROBLEMAS E PRTICAS, n. 59, 2009, pp. 75-106

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para potenciar a fuga das classes mdias destes contextos, semelhana do que j tinha acontecido nos Estados Unidos com a fuga dos brancos no quadro de uma poltica voluntarista de integrao escolar (Van Zanten, 1996). De facto, tem-se assistido a um conjunto de estratgias desenvolvidas pelas classes mdias, de modo a garantir e consolidar as conquistas alcanadas que o alargamento da escola para todos segundo perodo da massificao escolar (Dubet, 1996) e a consequente desvalorizao dos diplomas pareciam ameaar. Algumas destas estratgias so publicamente assumidas, como o caso da livre escolha da escola, outras so mais subtis, como a presso sobre os agentes escolares no sentido da constituio de turmas de nvel e a preferncia por horrios com os professores mais qualificados, a coberto da conciliao com a frequncia de actividades extra-escolares. Apesar das tentativas de proporcionar maior igualdade de oportunidades tanto ao nvel das condies de acesso como das condies escolares, de modo a garantir igualdade de oportunidades a nvel tambm dos resultados os processos de segregao escolar no tm deixado de se fazer sentir, assumindo, nesta fase de ampla escolarizao de todos, diversas formas no interior do prprio sistema de ensino. Em pases como a Inglaterra e os Estados Unidos, onde o liberalismo e a diferenciao tm mais histria, coexistem paralelamente dois mercados educativos: um reservado aos meios mais desfavorecidos e aos imigrantes [] e outro aberto a todos aqueles que podem participar na competio escolar e onde as estratgias parentais e as polticas dos agentes da instituio escolar criaram equilbrios instveis em perptua recomposio(Van Zanten, 1996: 290). Em pases com tradio mais centralizada e onde o estado durante mais tempo tentou uniformizar todo o sistema de oferta educativa (por exemplo: Frana, Portugal, Espanha), a segregao escolar ou, mais especificamente, a selectividade social produzida nas e pelas escolas passa sobretudo por processos de diferenciao interna, como a definio de diferentes fileiras de formao e o papel da orientao escolar. Constata-se, como assinala Van Zanten, uma forte interaco entre o valor das fileiras a as opes oferecidas pelas diferentes estabelecimentos e o valor escolar e social do seu pblico (1996: 287), e no tocante orientao esta faz-se por um processo que conduzido pela negativa: o aluno s escolhe dentro do que lhe resta a escolher em funo das suas performances [] [e] encontra-se envolvido num processo de excluso relativa (Dubet, 1996: 501). Para os alunos oriundos dos meios sociais mais desfavorecidos (que, como vimos, s nas ltimas dcadas tiveram acesso oferta proporcionada pelo sistema de ensino) a escola conquista-se e perde-se, pois, estando nela, so, ao mesmo tempo, relegados para os lugares mais indesejveis, para as fileiras menos prestigiadas, para os diplomas de menor valor econmico e simblico; na esclarecedora expresso de Bourdieu e Champagne (1992), a escola actual, ao guardar no seu seio aqueles que exclui, gera os excludos do interior. De acordo com estes autores, a escola exclui como sempre, mas agora exclui de uma maneira permanente e subtil, atravs de uma seleco cada vez mais precoce, realizada em torno da diversificao de fileiras associadas aos processos de orientao so prticas de excluso doces, ou melhor, insensveis, no duplo sentido de contnuas, graduais e imperceptveis, despercebidas,SOCIOLOGIA, PROBLEMAS E PRTICAS, n. 59, 2009, pp. 75-106

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tanto pelos que as exercem como para os que a elas se sujeitam (pp. 72-73). neste contexto que a instituio escolar tende a aparecer cada vez mais, tanto s famlias quanto aos prprios alunos, como um logro, fonte de uma imensa decepo colectiva: esta espcie de terra prometida, como o horizonte, recua medida que avanamos para ela( p. 72). Esta sedimentao progressiva das desigualdades sociais nas carreiras escolares, acompanhada dos processos de selectividade escolar que do origem forte concentrao, em algumas escolas, de alunos oriundos de grupos sociais mais desfavorecidos, e ainda, como veremos seguidamente, da persistncia da selectividade social do insucesso escolar, tem questionado o papel e o sentido da escola nica. Como objecta Crahay (2000), deve adaptar-se o ensino ao potencial destino profissional e social dos alunos ou devem manter-se os objectivos comuns e diferenciar os modos de os atingir, tendo em conta a diversidade individual? Tem sido crescente a defesa desta ltima hiptese, que vai no sentido de a todos serem dadas as condies adequadas ao domnio de um conjunto de saberes, normas e valores que sustentem a integrao social e o exerccio da cidadania. Esta , precisamente, uma das propostas do Collge de France aos governantes franceses em 1985: Sem deixar de respeitar os particularismos culturais, lingusticos e religiosos, o estado deve assegurar a todos o mnimo cultural comum, condio do exerccio duma actividade profissional bem sucedida e da manuteno do mnimo de comunicao indispensvel ao exerccio esclarecido dos direitos do homem e do cidado. (Bourdieu, 1987: 110) Durante o ltimo meio sculo, os sistemas educativos tm vivido nesta permanente tenso entre homogeneizao e diferenciao, sendo ambas, e em simultneo, exigncias feitas pelas sociedades contemporneas escola. distncia de um sculo, o primeiro socilogo analista dos sistemas de ensino, mile Durkheim, evidenciava esta dupla funo, ao afirmar que a educao tem por objecto suscitar e desenvolver na criana um certo nmero de estados fsicos, intelectuais e morais que lhe exigem a sociedade poltica no seu conjunto e o meio especial ao qual est particularmente destinada (Durkheim, 2001: 52). Mas, se se trata de diferenciar, diferencia-se desde quando? Em que medida? A que nveis? Pode-se diferenciar sem hierarquizar? Como multiplicar as formas de excelncia cultural socialmente reconhecidas (Bourdieu, 1987: 105)? Flexibilizar e reduzir a selectividade at certo patamar da escolaridade? Ser possvel atenuar o carcter social da selectividade escolar? Conceber um sistema educativo escolar capaz de avaliar o mrito de cada um, independentemente da sua origem social, e hierarquizar em relao exclusiva com esse mrito , estamos hoje conscientes, uma tarefa impossvel (Duru-Bellat, 2003). J em 1968 Coleman taxativo quando afirma: a igualdade de oportunidades s pode ser aproximada e nunca completamente alcanada. O conceito tornou-se no grau de proximidade igualdade de oportunidades. A proximidade determinada no somente pela igualdade de inputs educacionais mas pela intensidade da influncia da escola em relao s divergentes influncias externas [] [ou seja], pelo poder dos recursos [escolares] para produzir resultados. (1975 [1968]: 240). Duru-Bellat refora a ideia de que o determinante passa por no tolerar nenhuma desigualdade na qualidade da oferta pedaggica (2003: 39).SOCIOLOGIA, PROBLEMAS E PRTICAS, n. 59, 2009, pp. 75-106

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Em suma, atravessamos um perodo histrico menos idealista, por estarmos mais conscientes das limitaes desse mesmo ideal, mas esta postura no significa, necessariamente, o abandono dos ideais meritocrticos que enformam as sociedades ocidentais. Desigualdade de trajectrias escolares e condies sociais: um diagnstico A explorao das relaes entre as trajectrias escolares dos alunos e o conjunto das respectivas propriedades sociais, com o objectivo de aferir o grau de consecuo do princpio da igualdade de oportunidades, tem-se realizado regularmente desde que se iniciou a implementao efectiva da escola nica, que, como vimos, data dos anos 50 do sculo passado. Ao longo do tempo, esta linha de pesquisa nunca foi abandonada, apesar de ser varivel em intensidade e em questionamentos. Pode dizer-se que tem havido um processo cumulativo, acompanhado de um progressivo aprofundamento analtico e de um alargamento do mbito das variveis em estudo, resultantes tanto do desenvolvimento terico e metodolgico das cincias sociais como das transformaes sociais globais em curso nas sociedades contemporneas. Diferentes linhas de pesquisa so desenvolvidas nos pases francfonos e anglo-saxnicos: os primeiros, mais centrados nos aspectos de ordem macrossociolgica, como a anlise das desigualdades sociais na escola e a evoluo das mesmas ao longo do sculo XX; os segundos, com uma maior imbricao entre os investigadores e os decisores polticos, do um maior contributo ao estudo dos processos escolares, nomeadamente, os de ordem meso e microssociolgica, como so o estudo dos modos de organizao e funcionamento das escolas que potenciam a sua eficcia, ou a anlise dos processos de interaco na sala de aula. A constituio do insucesso escolar enquanto objecto de anlise cientfica decorre directamente da pretenso das sociedades democrticas modernas de proporcionarem o mximo possvel de igualdade de oportunidades aos seus membros. Segundo Ravon (2000), por vivermos numa sociedade que pretende transformar as condies democrticas da sua existncia que o insucesso escolar constitui um problema. precisamente nos anos 60, quando se constata o carcter macio e socialmente selectivo do fenmeno, que este conceptualizado enquanto fenmeno social, e Ravon acrescenta que mais do que a marca individual de uma situao de reprovao ou orientao em classes de transio, [passou a ser tido como] a expresso de um problema colectivo: insucesso da escola, falncia da sociedade (p. 279). As diferenas sociais que se tm revelado associadas desigualdade de trajectrias escolares so as condies sociais dos progenitores do aluno, a origem tnico-nacional do prprio e/ou dos seus ascendentes, o territrio de residncia (rural, urbano, centro da cidade, subrbios) e, mais recentemente, a condio de gnero. Globalmente, e considerando cada um destes conjuntos de variveis isoladamente, podemos afirmar que a escola tem penalizado os alunos cujas famlias soSOCIOLOGIA, PROBLEMAS E PRTICAS, n. 59, 2009, pp. 75-106

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pouco escolarizadas e desempenham profisses consideradas socialmente como subalternas, os alunos negros, os que vivem em meios rurais e do interior ou em condies de habitao degradada (no centro das cidades ou nas periferias destas, conforme a dinmica urbana dos pases em causa) e, ainda, os alunos do sexo masculino. Os primeiros trabalhos empricos relacionados com a anlise da diversidade de trajectrias escolares datam dos anos 50, justamente nos pases charneira do desenvolvimento dos sistemas educativos: a Inglaterra e a Frana. Os investigadores britnicos que mais se destacaram nesta fase de emergncia da sociologia da educao foram, por um lado, Floud, Halsey e Martin, com o estudo da influncia da origem social e do ambiente familiar nos resultados e orientao escolares de alunos com 10-11 anos no acesso s escolas secundrias e, por outro, Bernstein, que vai desenvolver incisivos e prolongados estudos sobre a relao entre o sucesso escolar e o cdigo lingustico de que so portadores os alunos. Os primeiros realizaram um vasto inqurito (por entrevista) a cerca de 1500 famlias distribudas por duas regies socialmente contrastantes dos arredores de Londres (Floud, Halsey e Martin, 1956) e, j nesta altura, detectam, em ambos os contextos sociais, ambies parentais de escolaridade longa (concluir o liceu), uma relao clara entre o sucesso escolar e maiores nveis de escolaridade dos pais, e concluem que, para um mesmo nvel de classe social, no so os que tm mais prosperidade econmica os que tm melhores resultados (p. 89), mas os que tm condies culturais favorveis (atitudes e preferncias dos pais). interessante constatarmos a robustez de resultados como estes, uma vez que, at hoje, no se conhece nenhuma investigao que os tenha contradito. Bernstein publica os seus primeiros artigos sobre a relao entre classes sociais e linguagem entre 1959 e 1961, leva a efeito uma profunda investigao emprica sobre os modos de comunicao em contextos familiar e escolar,8 e conclui pela existncia de uma relao entre o uso do cdigo restrito, predominante nas famlias operrias, e o insucesso escolar. Em Frana, tiveram um papel pioneiro no levantamento de dados sobre as desigualdades sociais na escola as pesquisas produzidas por Girard, investigador do Instituto Nacional de Estudos Demogrficos (INED), publicadas entre 1953 e 1963 na revista Population, um trabalho de Christiane Peyne publicado em 1959 na revista Recherches de Sociologie du Travail e os trabalhos desenvolvidos pelos investigadores do Centro de Sociologia Europeia, com destaque para Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, publicados a partir de 1963 (Masson, 2001). Tanto os trabalhos de Girad como o de Peyne se centraram no acesso ao 6. ano de escolaridade e nos processos de orientao nesta fase do percurso escolar, enquanto os de Bourdieu e Passeron analisaram os estudantes do ensino superior. Esta diferena explica, em grande parte, a disparidade das concluses: os primeiros concluem pelos progressos significativos na democratizao da escola at 1946, com alguma estagnao no perodo subsequente, enquanto os segundos concluem pela persistncia de fortes desigualdades8 S entre 1971 e 1973 publica trs volumes da sua obra emblemtica Classes, Codes and Control.SOCIOLOGIA, PROBLEMAS E PRTICAS, n. 59, 2009, pp. 75-106

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sociais no acesso ao ensino superior mais precisamente, em 1961, o filho de um quadro superior/profissional liberal e o de um quadro mdio teriam, respectivamente, uma probabilidade de aceder universidade sessenta e trinta vezes maior do que o filho de um operrio (Bourdieu e Passeron, 1964: 13). De facto, s aparentemente chegam a concluses contraditrias: pode persistir uma forte desigualdade relacionada com a pertena social, mas as diferenas entre os grupos podem, simultaneamente, ter-se reduzido relativamente a momentos anteriores. No caso de Les Hritiers, os comentrios de Tranton (1965) assinalam precisamente a falta de perspectiva diacrnica da obra, pois esta apresenta a evoluo da escolarizao no ensino superior desde o incio do sculo, mas no o faz no tocante s origens sociais dos estudantes, e a estatstica nacional revelava existir evoluo (entre 1939 e 1962 a proporo de filhos de operrios no ensino superior teria quadruplicado) (Masson, 2001); o inqurito nacional sobre orientao escolar realizado pelo INED em 1962, sob a responsabilidade de Girard, confirma tambm que persistem desvantagens significativas no acesso ao ensino por parte das crianas de origem popular e que as desigualdades de orientao s em parte se devem a diferenas de resultados, ou seja, no meritocrtica, fazendo com que a origem social produza efeitos prprios. Como foi referido supra, foi ainda nesta dcada que se publicaram o Relatrio Coleman e o Relatrio Plowden que, por terem sido realizados a pedido do poder poltico, conheceram ampla divulgao e difuso. Do ponto de vista das polticas pblicas, a concluso mais importante retirada de ambos os relatrios foi a de que a diferena nos resultados escolares se relaciona mais com a condio social das famlias do que com os recursos escolares disponveis: o primeiro relatrio destaca a importncia do estatuto social das famlias e o segundo identifica a linguagem, a socializao familiar e as atitudes parentais como as variveis mais influentes nos resultados escolares (Lee, 1989). Os efeitos na comunidade cientfica tambm no se fizeram tardar e se, para uns, os resultados s vieram sedimentar a importncia, que j vinha sendo assinalada por estudos de menor amplitude, do papel central das condies sociais das famlias nos resultados escolares, para outros, os resultados so questionveis, por incorporarem importantes deficincias de ordem metodolgica e, em consonncia com esta postura, desenvolveram estudos onde rebatem essas concluses. Esta polmica inaugura um debate que permanece actual, acerca da maior ou menor influncia das variveis escolares no xito escolar, ou seja, at hoje permanece inconclusiva a definio do poder da escola para produzir resultados escolares que sejam independentes da condio social dos seus alunos. Mas, afinal, que balano pode fazer-se, decorrido meio sculo da escola de massas, da evoluo do papel da escola na promoo da mobilidade social? Que efeitos tem produzido o aumento da escolaridade na democratizao das oportunidades? Goux e Maurin, com base nos resultados dos inquritos de Formao e Qualificao Profissional levados a efeito na sociedade francesa nos anos de 1970, 1977, 1985 e 1993, fazem uma anlise aprofundada da evoluo das desigualdades de oportunidades e concluem ter ocorrido uma democratizao uniforme, na medida em que o aumento da diplomao se verificou em relao a todas asSOCIOLOGIA, PROBLEMAS E PRTICAS, n. 59, 2009, pp. 75-106

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crianas independentemente do seu meio de origem. Ao longo deste perodo temporal, a evoluo das desigualdades no ter seguido uma tendncia firme, nem no sentido de uma reduo nem no de um reforo (1995: 115). Duru-Bellat e Kieffer (2000), partindo justamente dos mesmos dados e actualizando para anos mais recentes com base no painel de alunos entrados no 6. ano em 1989 publicado pelo Ministrio da Educao francs o que permite reconstrurem as transformaes ocorridas com as geraes nascidas entre 1919 e 1978 , tambm concluem que se o bem educao se difundiu largamente, as desigualdades sociais na competio pelo acesso a tal ou tal nvel afiguram-se estveis, e tendem a deslocar-se para os nveis que preservam um valor distintivo(p. 79). Em estudo publicado no mesmo ano, Merle analisou a evoluo da democratizao do ensino secundrio francs entre 1985 e 1995 e constatou, justamente, ter ocorrido uma democratizao segregativa no acesso ao bac, na medida em que paralelamente ao movimento de democratizao do conjunto das classes terminais, desigualdades escolares de outra forma, prprias da organizao actual do ensino secundrio, acompanharam o desenvolvimento da escolarizao. A democratizao do acesso ao nvel do bac e a acentuao da especializao social das diferentes sries de bac so concomitantes. (Merle, 2000: 40). Este autor d nesta obra um importante contributo para a definio das diferentes modalidades de democratizao que podem ocorrer, ao propor uma tipologia de democratizao que contempla trs hipteses: se o aumento geral das taxas de escolarizao por idade acompanhado por uma diminuio das distncias nas taxas de acesso segundo a origem social, estamos perante uma democratizao igualitria; se esse crescimento das taxas de escolarizao por idade est associado um aumento das distncias sociais de acesso, trata-se de uma democratizao segregativa; se ocorre uma manuteno das distncias sociais, ela uma democratizao uniforme (designao j utilizada por Goux e Maurin). Em dissonncia com as concluses destes estudos encontramos a pesquisa de Thlot e Vallet (2000) que, analisando a evoluo do destino escolar das geraes nascidas em Frana entre 1908 e 1972, concluem ser atribuvel ao enfraquecimento do elo entre a origem social e o destino escolar cerca de uma stima parte dessa variao, ou seja, demonstram que, apesar de o alongamento geral dos estudos ser o grande responsvel pela evoluo ele explica trs quartos da diferena dos destinos escolares segundo a origem social, entre as geraes extremas (p. 3) , uma parte no negligencivel deve-se reduo da distncia das trajectrias escolares dos grupos sociais (que se deu sobretudo nos anos 50 e 60), pelo que se pode falar de uma democratizao qualitativa proporcionada pelo sistema educativo (e no s quantitativa).9 A percepo genrica com que se fica a de assistirmos a um deslocamento das desigualdades para os nveis superiores do sistema escolar, mantendo-se ou9 Merle (2002) comenta precisamente estas concluses, relativizando-as, na medida em que os autores no mediram o efeito das desigualdades para alm do nvel da licenciatura que acolhia perto de 20% de uma classe de idade em 1995 [e, por isso, ] subestimaram o fenmeno de deslocamento das desigualdades para nveis mais elevados da escolaridade (p. 66).SOCIOLOGIA, PROBLEMAS E PRTICAS, n. 59, 2009, pp. 75-106

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renovando-se as desigualdades entre os grupos em cada uma das etapas de orientao. Essa percepo corroborada pelas concluses dos estudos internacionais: as desigualdades deslocam-se e no diminuem, excepto em alguns pases (Sucia e Pases Baixos) onde as desigualdades entre os grupos sociais se esbateram, induzindo menos diferenciaes sociais nas etapas de orientao (Duru-Bellat e Kieffer, 2000: 73). Resumindo, houve sem dvida uma democratizao do sistema educativo no sentido de maior acesso aos diferentes nveis de ensino por parte dos mais desfavorecidos, ou seja, as distncias sociais reduziram-se no acesso, mas produziram-se novas diferenciaes internas, mais subtis, que produziram mesmo um aumento das clivagens sociais no acesso a certos ramos e fileiras do sistema de ensino. Mas, como veremos, quando se aprofundam estas concluses globais, podem detectar-se dinmicas diferenciadas de acordo com o segmento de alunos em estudo ou com o nvel de ensino considerado. Duru-Bellat e Kieffer (2000), ao analisarem a probabilidade de os filhos dos quadros acederem a determinado nvel (6me, 2me e obteno do bac),10 em comparao com a dos filhos dos operrios (odds ratio), puderam constatar que essa probabilidade diminuiu ao longo do tempo, isto , as desigualdades sociais reduziram-se e por isso pode falar-se de uma certa democratizao no acesso (p. 59). Mas, quando analisam a evoluo das desigualdades s entre os alunos que entraram no 6me, chegaram a concluses divergentes das primeiras: na entrada no secundrio (2me) a diferena na probabilidade de entrar aumentou, ou seja, as desigualdades entre os filhos dos quadros e os filhos dos operrios aumentaram e na concluso do secundrio (obteno do bac) a relao manteve-se estvel; neste caso no podemos falar de democratizao da escolaridade: os filhos dos operrios beneficiaram claramente da abertura do 6me mas so os primeiros a serem encaminhados para outras fileiras logo no 6me ou no fim do 3me e, reciprocamente, os filhos dos quadros perderam progressivamente a sua vantagem na entrada no 6me mas continuam a realizar escolaridades mais longas e essa vantagem no d sinais de abrandamento (2000: 59). Este nvel da escolaridade o collge corresponde ao patamar que mais tenso encerra, na medida em que, por um lado, o nvel mais democratizado todos ainda esto na escola e sujeitos a currculos iguais ou semelhantes e, por outro, o que mais distancia os alunos. Duru-Bellat e Mingat publicaram em 1993 resultados de uma pesquisa em que verificam produzir-se nos dois primeiros anos deste ciclo (nossos 6. e 7. anos) mais desigualdades sociais de resultados do que em toda a escolaridade anterior: as distncias sociais so particularmente importantes se atendermos aos percursos sem reprovao: a probabilidade de entrar no 4me [nosso 8. ano] dois anos depois de ter entrado no 6me [nosso 6. ano] varia de10 O sistema escolar francs no superior est estruturado da seguinte forma: 1. a escola elementar compreende os cinco primeiros anos de escolaridade (at 11 anos de idade) e vai do 11me ao 7me (a contagem sempre feita de forma decrescente); 2. o collge tem os quatro anos de escolaridade subsequentes (at 15 anos de idade) e vai do 6me ao 3me; 3. o liceu corresponde aos trs anos seguintes (dos 16 aos 18 anos), designados por 2me, 1re e terminal.SOCIOLOGIA, PROBLEMAS E PRTICAS, n. 59, 2009, pp. 75-106

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mais de 95% para os filhos dos professores a 56% para os filhos dos operrios no qualificados (e mesmo 49% para os filhos de inactivos) (Duru-Bellat, 2002: 73). A seleco dos segmentos de alunos em anlise tambm revela importncia, podendo as concluses que se retira serem aparentemente contraditrias: Euriat e Thlot (1995) estudaram o recrutamento social de quatro grandes escolas francesas, e concluram que h uma ligeira democratizao destas escolas se compararmos as classes populares com as classes superiores, mas o resultado inverso se compararmos as classes mdias com as superiores. Refiram-se, ainda, as concluses diferenciadas a que chega Merle (2000: 50), quando distingue os nveis do ensino secundrio: a nvel do collge h uma democratizao uniforme (e pontualmente segregativa mais do que igualitria), enquanto ao nvel do liceu se verifica que entre 1985 e 1995 ocorreu uma democratizao claramente segregativa.11 Ainda relativamente s condies sociais das famlias dos alunos, que balano possvel fazer-se da variao, ao longo das ltimas dcadas, da posio relativa dos diferentes grupos sociais face escola? A mudana mais visvel foi, sem dvida, a melhoria da posio relativa dos filhos dos agricultores (Duru-Bellat e Kieffer, 2000; Goux e Maurin, 1995; Thlot e Vallet, 2000). Como sintetizam Duru e Kieffer, pode dizer-se que ao longo deste perodo no se assistiu a reclassificaes importantes entre os diferentes grupos sociais, com excepo dos agricultores, que melhoraram a sua posio relativa (2000: 66).12 Esta evoluo assinalada nos diferentes estudos, incluindo os que so de ndole comparativa internacional (Marks, 2005), est, com certeza, relacionada com as profundas mudanas sociolgicas deste grupo profissional no contexto das economias centrais: a modernidade fez acompanhar a reduo do seu quantitativo por uma excluso dos estratos menos escolarizados, que no subsistiram no quadro competitivo do comrcio agrcola. Esta melhoria da posio relativa dos filhos dos agricultores foi, em contrapartida, acompanhada por alguma degradao relativa na posio global dos filhos das profisses intermdias e dos operrios (Duru-Bellat e Kieffer, 2000: 67). Na base da hierarquia dos resultados escolares permanecem agora solitrios os filhos dos operrios no qualificados enquanto no princpio do sculo XX as suas trajectrias escolares eram quase sobreponveis s dos filhos dos agricultores, estes fazem hoje, em mdia, melhores estudos do que os filhos dos operrios no qualificados (Thlot e Vallet, 2000: 12). A crescente salincia da importncia dos factores culturais relativamente aos de ordem econmica, vulgarmente aferidos, respectivamente, pela situao socioprofissional e pelo nvel de instruo do(s) progenitor(es), no desempenho escolar dos seus descendentes, foi outro aspecto detectado nos estudos mais recentes. Goux11 O autor chama a ateno para o facto de as anlises nem sempre serem suficientemente finas, deixando escapar diferenciaes internas importantes (por exemplo, a hierarquia de fileiras ou de cursos de um mesmo grau de ensino), e isso estar na base de algumas concluses que, ao no desvendarem eventuais dinmicas internas (segregativas ou igualitrias), apontam para a existncia de uma democratizao uniforme (caso de Goux e Maurin). A excepo a esta tendncia global precisamente Portugal, onde no se conseguiu afirmar um sector agrcola competitivo e onde persiste o predomnio da agricultura de subsistncia (Marks, 2005).SOCIOLOGIA, PROBLEMAS E PRTICAS, n. 59, 2009, pp. 75-106

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e Maurin descobrem que de uma gerao a outra, as desigualdades perante a escola parecem mesmo ter uma origem cada vez mais cultural e menos socioeconmica (1997: 35), e Thlot e Vallet concluem que o elo sistematicamente mais forte sempre que, para caracterizar o meio de origem dos filhos, introduzimos o diploma da me em vez da profisso do pai (2000: 13). Ainda relativamente anlise dos diplomas parentais, Duru-Bellat e Kieffer (2000) verificam que cada diploma suplementar possudo por um dos progenitores encerra uma vantagem, mas o que parece mais importante no propriamente o diploma possudo por cada um dos pais, mas o volume total de instruo ou stock de instruo familiar (Girard, 1970, citado por Duru-Bellat e Kieffer, 2000: 66), na medida em que h quase uma equivalncia entre os casais em que um dos cnjuges tem um nvel escolar alto e outro baixo e os casais em que ambos dispem de recursos escolares mdios. Apesar de os recursos socioprofissionais e escolares das famlias dos alunos constituirem, sobretudo na produo cientfica francfona, a varivel mais largamente explorada na relao com a diferenciao das suas trajectrias escolares, outras variveis, ainda relacionadas com as dimenses sociais, foram sendo integradas na anlise e foram fazendo prova de relevncia; o caso da diferenciao territorial (interior/litoral, urbano/rural, centro/periferia urbanos), da diferena de gnero e da diversidade de origens tnico-nacionais. Com a expanso da escolaridade, apenas uma mudana, no sentido da democratizao, se afirmou de modo incontornvel e inequvoco: as raparigas, que at meados do sculo passado faziam percursos escolares mais curtos do que os rapazes, acedendo aos patamares superiores da escolaridade em nmero muito reduzido, foram as que maior proveito retiraram da mesma, com percursos escolares mais bem sucedidos e progressivamente mais longos.13 Estamos perante uma vantagem que transcende as fronteiras da classe social, da localizao residencial ou mesmo da origem tnico-nacional, ou seja, para iguais condies a estes nveis de anlise, a probabilidade de acesso aos diferentes nveis de ensino sempre maior do que a dos seus pares masculinos. Thlot e Vallet (2000), no seu estudo sobre o destino escolar, segundo a origem social, das geraes nascidas nas primeiras sete dcadas do sculo passado em Frana, para alm de terem verificado que o alongamento dos estudos foi mais intenso para as raparigas do que para os rapazes, detectaram um progressivo relevo da relao entre os resultados escolares das raparigas e os nveis de escolaridade atingidos pelos progenitores: O elo global entre meio de origem e o diploma , em todo o perodo [estudado], quase sempre mais marcado para os rapazes do que para as raparigas. No entanto, na gerao mais recente, revela-se mais pronunciado entre estas, sempre que se tem em conta a herana cultural, atravs dos estudos da me ou do diploma mais elevado dos pais. (p. 14) No tocante importncia da diversidade de origem regional ou de origem tnico-nacional na definio dos contornos das trajectrias escolares, os resultados de que dispomos so menos conclusivos, sobretudo por raramente se integrar nos13 Como fazem notar Duru-Bellat e Kieffer (2000), devemos ter em conta que esta vantagem crescente das raparigas tambm no alheia ao facto de no serem to frequentemente canalizadas para as fileiras alternativas de tipo profissionalizante, como acontece com os rapazes.SOCIOLOGIA, PROBLEMAS E PRTICAS, n. 59, 2009, pp. 75-106

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modelos de anlise o controlo do conjunto das variveis sociais envolvidas, isto , frequentemente no se avalia o efeito especfico dessa diversidade, por no se manterem constantes as restantes variveis. Algumas das pesquisas mais recentes tm adoptado este procedimento, e os resultados so conducentes a uma relativizao da relao da origem regional ou tnico-nacional com o desempenho escolar. Quando consideramos as diferenas territoriais, maior a probabilidade de os alunos que residem longe dos centros urbanos ou nas periferias destes e nas regies do interior terem menor desempenho escolar do que os que residem em zonas de maior desenvolvimento econmico e cultural; no entanto, se considerarmos os alunos a viverem em regies marcadamente diferenciadas, mas cujas famlias tm a mesma origem de classe e/ou os mesmos nveis de escolaridade, essas diferenas nas trajectrias escolares esbatem-se. Quanto aos efeitos da origem tnico-nacional,14 a anlise complexifica-se e sabemos que s algumas destas origens tendem claramente a produzir efeitos nos desempenhos escolares, tanto pela positiva (caso dos alunos de origem asitica) como pela negativa (caso dos alunos negros). Muito sumariamente, sabemos que: i) sempre que se controlam as condies sociais dos alunos descendentes de imigrantes ou pertencentes s minorias etnicamente diferenciadas, os resultados escolares destes aproximam-se dos resultados obtidos pelos alunos autctones, podendo, em alguns casos, igual-los ou super-los (Demack, Drew e Grimsley, 2000; Kao e Tienda, 1995; Moudon, 1984; OCDE, 2006); ii) para alm das clivagens de classe social (as mais intensas), existem clivagens que remetem para a etnicidade e raa: a desigualdade de desempenhos fortemente atenuada sempre que se homogenezam as habilitaes escolares e as condies socioprofissionais das famlias, mas, regra geral, no se altera a hierarquia previamente estabelecida (Demack, Drew e Grimsley, 2000; Portes e MacLeod, 1996 e 1999). Concluindo, a escola da modernidade universalizou-se no acesso, prolongou o tempo de permanncia de todos, criou a escola nica, mas s muito parcialmente se democratizou adiou-se a excluso escolar explcita para momentos mais tardios, criaram-se novas modalidades de distino e hierarquizao dos pblicos escolares, em suma, as desigualdades escolares sofreram uma translao nos tempos e nos espaos em que ocorrem, sem nunca terem deixado de assumir a intensa marca das diferenas sociais. As desigualdades escolares: a procura de um modelo explicativo A par do diagnstico da relao entre as desigualdades escolares e as desigualdades sociais, a investigao sociolgica do (in)sucesso escolar foi desenvolvendo diversos quadros terico-analticos que procuram contribuir para a inteligibilidade das relaes observadas (e observveis) entre os dois fenmenos. A investigao14 Neste domnio h uma clara supremacia da investigao anglo-saxnica, dado que integram esta varivel desde as primeiras pesquisas sobre a diferenciao escolar, com tendncia a sobrepor-se s variveis de ordem classista (Forquin, 1997: 54).SOCIOLOGIA, PROBLEMAS E PRTICAS, n. 59, 2009, pp. 75-106

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tem sido profcua e esta diversidade de referenciais no tem impedido a formao de um largo consenso, que sustenta a construo de um modelo analtico com estabilidade e consistncia assinalveis, crescentemente enriquecido com contributos renovados e mais aprofundados. Em traos globais, dispomos de um modelo analtico que identifica e relaciona uma variedade considervel de factores explicativos da diversidade de trajectrias escolares, e integra diferentes nveis de anlise: especificamente, acciona variveis que remetem quer para o plano da estrutura social como para o da aco, e tanto se incluem as condies familiares e as do mercado de trabalho como as condies e processos escolares (dos currculos e programas explcitos ou ocultos aos processos interactivos e organizacionais). Um ponto prvio explanao dos elementos avanados no entendimento das desigualdades escolares a referncia s condies sociais de produo destas teorias. Como salientam Foster, Gomm e Hammersley, os investigadores tm estado eles prprios envolvidos na construo do problema da desigualdade educacional, definindo-o e reflectindo-o. Isto verdade de forma mais visvel ao nvel discursivo, mas tambm o em alguma medida a nvel da formatao das polticas pblicas (1996: 20).15 Pode dizer-se que esta relao entre o nvel da conceptualizao e interpretao analtica e o nvel das prticas se tem traduzido num processo de apropriao mtua, na medida em que a aco poltica tem sustentado algumas das suas decises nos resultados da investigao e em que esta tem beneficiado da reflexo proporcionada pela implementao dessas decises polticas. O corpo terico de maior destaque na explicao sociolgica das desigualdades sociais em contexto escolar so as teorias da reproduo, que renem um vasto conjunto de autores cujas anlises permitiram esclarecer os mecanismos atravs dos quais a escola tende a reproduzir as desigualdades sociais preexistentes. Apesar de os autores de referncia desta perspectiva analtica serem Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, com a publicao em 1964 de Les Hritiers e em 1970 de La Reproduction (que deu nome designao da corrente), muitas outras obras, publicadas nos anos 60 e 70 do sculo passado, analisaram a relao entre a escola e a sociedade, concluindo pelo papel reprodutor da primeira. Por considerarmos serem estes autores franceses e o ingls Basil Bernstein, com a sua obra Class, Codes and Control,16 os mais emblemticos desta corrente interpretativa, e por existir uma consonncia e uma complementaridade entre as suas anlises, limitamo-nos a apresentar os seus contributos.17 Estes autores construram15 Os autores britnicos salientam ainda que, em pases com forte tradio na relao entre a investigao e os poderes pblicos, como o caso dos pases anglo-saxnicos, esta imbricao pode, por um lado, ser fortemente empobrecedora do ponto de vista do desenvolvimento terico e, por outro, pode tender-se a retirar concluses precipitadas, ao no serem avaliadas com rigor as possibilidades de generalizao das concluses retiradas de estudos de caso. Obra repartida por quatro volumes, sendo os trs primeiros publicados entre 1971 e 1973 e o quarto em 1990. Nesta sequncia de publicaes o autor foi reformulando e afinando o seu modelo analtico, parcialmente como resultado da polmica e dos equvocos que frequentemente geraram as suas formulaes. Anteriormente (1964), o autor publicara um artigo em que j fazia uma primeira definio dos cdigos lingusticos, e desde 1959 que publica sobre a relao entre a linguagem e as classes sociais.SOCIOLOGIA, PROBLEMAS E PRTICAS, n. 59, 2009, pp. 75-106

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modelos analticos de grande consistncia terica em torno da tese de que so as diferenas culturais entre a escola e os grupos sociais mais desfavorecidos que explicam o seu insucesso escolar. Enquanto os filhos destes grupos sentem uma descontinuidade ou mesmo ruptura entre o seu universo cultural e o que enforma a escola, os filhos dos grupos sociais mais favorecidos vivem a escolaridade como um prolongamento da sua cultura familiar, dado serem os membros destes grupos que definem o que escolarmente valorizado. Estamos perante a desocultao do carcter arbitrrio da cultura escolar, que uma entre as vrias culturas existentes socialmente, e nessa medida no socialmente neutra nem equidistante da cultura dos vrios grupos sociais que a ela acedem, colocando em vantagem alguns relativamente a outros.18 Como explicitam Bourdieu e Passeron (1964), as aptides medidas com o critrio escolar resultam, no tanto de quaisquer dons naturais (que sero sempre hipotticos enquanto pudermos atribuir a desigualdade escolar a outras causas), mas da maior ou menor afinidade entre os hbitos culturais duma classe, as exigncias do sistema de ensino e os critrios que a definem o sucesso. [] Para os filhos de camponeses, de operrios, de empregados ou de pequenos comerciantes, a aquisio da cultura escolar aculturao. (p. 37) Nesta perspectiva analtica, a escola, ao ser enformada pela cultura das classes dominantes e ao no reconhecer legitimidade nem valor acadmico a modelos culturais diferentes do que adopta, penaliza os estudantes que so portadores de uma cultura familiar que dissemelhante da cultura escolar. As dificuldades acrescidas sentidas pelos alunos oriundos das classes sociais mais desfavorecidas e o seu consequente insucesso escolar macio explicam-se por esta ruptura cultural sentida ao acederem escola. O sucesso escolar dos estudantes mais favorecidos socialmente encontra a sua razo de ser nas afinidades culturais sentidas e nas vantagens decorrentes da deteno (e uso) do capital cultural herdado.19 Em suma, os autores defendem, como bem sintetizam Cacouault e Oeuvrard, que as desigualdades sociais de sucesso escolar resultam das desigualdades de repartio do capital cultural (2003: 54). Bernstein centra-se na anlise das diferentes formas de comunicao presentes nos grupos sociais e na escola, e detecta existirem estruturas de comunicao (ou cdigos lingusticos) diferentes entre os grupos sociais, usando a escola uma dessas estruturas. A vantagem a do grupo de alunos oriundo das famlias que usam o mesmo tipo de cdigo comunicacional, pois vivem a escola como um17 18 19 Na produo dos pases anglo-saxnicos sobre o papel reprodutor da escola destacam-se ainda as obras de Bowles e Gintis (1976) e de Young (1971), e entre os autores franceses temos o importante contributo de Baudelot e Establet (1971 e 1975). A dissimulao destes factos constituiria um dos pilares do papel reprodutor da escola, favorecendo os mais favorecidos e penalizando os mais desfavorecidos, ao fazer crer que socialmente neutra. Bourdieu (1979) distingue trs formas de que se pode revestir o capital cultural: o estado incorporado, o estado objectivado e o estado institucionalizado, correspondendo, respectivamente, s disposies durveis do organismo (apresentao de si, modos, linguagem, relao com a escola e a cultura), aos bens culturais disponveis (quadros, livros, dicionrios, instrumentos) e aos diplomas escolares obtidos.SOCIOLOGIA, PROBLEMAS E PRTICAS, n. 59, 2009, pp. 75-106

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prolongamento da famlia e, na mesma lgica relacional bourdieusiana e marxista entre grupos dominantes e grupos dominados, o cdigo escolar coincide com o cdigo dos grupos sociais favorecidos. O autor define cdigo como sendo um princpio regulador, tacitamente adquirido, que selecciona e integra significados relevantes (quem diz o qu), a forma da sua realizao (como o faz) e os contextos evocadores (onde e quando o faz), que regulado por valores de classificao (princpios hierrquicos) e por valores de enquadramento (princpios de comunicao) e ao mesmo tempo gera as regras de reconhecimento e as regras de realizao que tornam possvel a comunicao.20 Especifica que as relaes de classe estabelecem determinada distribuio de poder e determinado princpio de controlo (de modo a assegurar essa distribuio de poder): as diferentes orientaes para a codificao (os cdigos) resultam das diferentes posies na diviso social do trabalho, ao proporcionarem diferentes relaes com a base material e diferentes prticas interaccionais. Distingue, assim, duas modalidades distintas de comunicao: uma em que predomina o universalismo (orientao para os significados independente dos contextos imediatos) e que mais utilizada pelos grupos sociais mais favorecidos e a usada na escola o cdigo elaborado , e outra que particularista (orientao para os significados dependente dos contextos imediatos) e predominantemente usada pelas classes populares o cdigo restrito.21 O contributo destes autores foi decisivo para centrar a ateno sobre o papel da escola na produo do insucesso escolar, apesar de frequentemente lhes ser imputada a responsabilidade do contrrio, isto , de terem contribudo para acentuar a ideia, j data suficientemente instalada, de que os problemas estavam no exterior da escola, com seus modos de socializao inadequados socializao escolar. Como referimos, o problema reside, na perspectiva analtica que adoptam estes autores, nas dificuldades relacionais entre a escola e as famlias socialmente desfavorecidas a quem a escola exige aculturao. A instituio escolar, embora limitada na sua aco pelo quadro das relaes de dominao estabelecidas na sociedade de que faz parte, no est impedida de implementar aces que vo no sentido de contrariar, ou pelo menos atenuar, o papel reprodutor das desigualdades sociais para que estaria vocacionada. Bernstein, quando impelido a indicar solues, claro:No creio que se trate de mudar cdigos mas de criar as condies necessrias para que a criana explore outras formas de significados, outros estilos de comunicao. [] esse cdigo [restrito] o meio atravs do qual a criana mostra a sua identidade, a autenticidade da comunidade cultural de que procede. [] O cdigo deve ser respeitado pela escola e dele deve partir, a escola deve dar um reconhecimento legtimo ao

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Detectam-se algumas afinidades interessantes entre o conceito de cdigo e o de habitus: so conceitos abrangentes (constituem modos de percepcionar o mundo e de agir sobre ele), integradores de elementos, tanto do plano material como do simblico, e so a um mesmo tempo produtos regulados pelas condies objectivas de existncia e produtores das prticas e representaes. Para maior esclarecimento da sua teoria veja-se a obra de Domingos, Barradas, Rainha e Neves (1986) que resume o essencial da teoria de Bernstein e de onde foram retiradas as teses apresentadas (pp. 243-277).SOCIOLOGIA, PROBLEMAS E PRTICAS, n. 59, 2009, pp. 75-106

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cdigo da criana, pois se o cdigo escolar no permite a existncia do cdigo da criana esta afastar a escola inclusive antes que a escola a afaste. (entrevista a Oliveira, 1980: 21 (sublinhado nosso)

De facto, o diagnstico da diferena entre as famlias mais desmunidas de capitais, em especial de capital cultural, e a escola tem historicamente conduzido, por parte desta, culpabilizao destas famlias (de desinvestimento na escolaridade, de desadequao do seu modelo educativo) e intensificao da inculcao da cultura escolar, implementando o que ficou conhecido por educao compensatria. Especialmente aps a publicao do Relatrio Coleman (1966), ao ter demonstrado a dependncia do sucesso escolar das condies familiares (o estatuto social das famlias explicava 30 a 50% da varincia total),22 os estudos que assinalavam diferenas nas famlias mais desfavorecidas assumiram redobrada visibilidade, por essas serem entendidas como handicaps ao sucesso escolar, e multiplicaram-se as anlises, predominantemente no domnio da psicologia social, que em detalhe procuravam identificar as propriedades familiares relacionadas com o insucesso escolar, as dificuldades de aprendizagem e/ou com o desenvolvimento intelectual dos descendentes. Refira-se, a ttulo exemplificativo, a obra de Pourtois (1979), que analisou o efeito das diferentes formas de as mes ensinarem aos filhos uma nova tarefa e o xito escolar, a de Lautrey (1980), que relaciona o tipo de estruturao familiar (rgida, fraca ou flexvel) com o desenvolvimento cognitivo da criana, ou a de Clark (1983), que associa o xito escolar ao encorajamento parental, existncia de normas claras em relao ao comportamento das crianas, forte vigilncia dos horrios e dos contactos com o exterior. Neste debate entre os problemas e as virtudes da educao familiar em relao escola, os socilogos e os antroplogos foram dando o seu contributo no sentido de questionar a perspectiva do handicap familiar na diferenciao das trajectrias escolares,23 mas isso no significa que no tenham atribudo tambm s famlias um papel importante na definio destas trajectrias, nomeadamente o seu grau de mobilizao face escolaridade dos seus membros.24 Bourdieu e Passeron explicam o sucesso das classes mdias e o insucesso das classes populares justamente por nas primeiras existir uma forte propenso para adquirir a cultura escolar, resultado da interiorizao da probabilidade objectiva de lhe acederem: no que respeita quer facilidade para assimilar a cultura, quer propenso para a adquirir que os estudantes originrios das classes camponesas e22 23 As variveis familiares revelaram ser as que tm um maior poder explicativo da variao dos resultados escolares, para todos os grupos tnicos e sociais e para todos os nveis de escolaridade. Combessie (1969) criticou este etnocentrismo da classe mdia que, baseada em muitos dos estudos publicados na Amrica nos anos 50, tomou as caractersticas especficas das classes populares (por exemplo, o primado do grupo, a centrao no presente) como responsveis pelo seu insucesso escolar. Tm sido publicadas, em nmero assinalvel, investigaes sobre as relaes das famlias com a escola, umas cujo objectivo no o de relacionar directamente os tipos de relao com os resultados escolares (Berthelot, 1983; Kellerhals e Montandon, 1991; Troutot e Montandon, 1988) e outras, de origem anglo-saxnica, em que isso acontece (Clark, 1983; Dornbush e Wood, 1989).SOCIOLOGIA, PROBLEMAS E PRTICAS, n. 59, 2009, pp. 75-106

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operrias se encontram desfavorecidos: at a uma poca recente nem encontravam no meio familiar esse incitamento ao esforo escolar que permitia s classes mdias compensar a ausncia da posse pela aspirao mesma. [] Embora o desejo de ascenso no seja menos forte nas classes inferiores do que nas classes mdias, permanece perfeitamente onrico e abstracto quando as probabilidades objectivas de o satisfazer so nfimas. (Bourdieu e Passeron, 1964: 37-38). A explicao para este diferencial de mobilizao das famlias em relao escola constitui um dos aspectos que mais alimentou a polmica entre Bourdieu e Boudon:25 para este ltimo, decorrente da sua concepo accionalista das desigualdades sociais, o investimento das famlias (e do aluno) na escolaridade no se faz pela interiorizao subjectiva das oportunidades objectivas, mas pelo uso de uma racionalidade (limitada pela sua posio particular) em termos de um clculo do tipo custos/benefcios: a sobrevivncia de um indivduo no sistema escolar, nele prprio ou numa fileira particular do sistema escolar, depende de um processo de deciso cujos parmetros existem em funo da posio social ou posio de classe. A par da sua posio, os indivduos ou as famlias tm uma estimativa diferente dos custos, riscos e benefcios antecipados que se associam a uma deciso. (Boudon, 1973: 73) A tese das (des)continuidades culturais entre as famlias e a escola mantm ainda hoje o seu vigor analtico e permanece como um instrumento de grande potencial heurstico, mas tem sido confrontada e interpelada por um conjunto de dados empricos que tm revelado as suas limitaes e insuficincias e, assim, conduzido ao enriquecimento deste referencial terico explicativo, ou seja, h um conjunto de questes cuja resposta exige o seu aprofundamento ou mesmo o seu questionamento. De entre estas, destacam-se as seguintes: i) Como explicar o melhor desempenho escolar dos alunos descendentes de imigrantes cujas culturas de origem so de grande contraste cultural com a cultura do pas de acolhimento? ii) Como podem ter sucesso escolar uma parte (mesmo que pequena) dos filhos das classes populares? iii) Como explicar que a escola favorea o xito escolar das raparigas quando definio da cultura escolar presidem os grupos sociais dominantes, neste caso, a dominao masculina (Bourdieu, 1998)? Como lembram Van Zanten e Anderson-Levitt, j em 1978 o antroplogo americano John Ogbu, que se dedicou ao estudo da integrao das minorias tnicas na escola, assinalava insuficincias nesta tese, ao confront-la com a existncia de uma grande diversidade nos resultados escolares das crianas oriundas de diferentes minorias no seio do mesmo pas, assim como de crianas sadas do mesmo grupo tnico segundo os pases. Se a isto juntarmos o facto de as crianas que tm mais xito no serem necessariamente as que mais se aproximam da cultura dominante, como o exemplo das crianas de origem asitica nos Estados Unidos, legtimo argumentar que as explicaes em termos das descontinuidades culturais devem, pelo menos parcialmente, ser postas em questo. (1992: 89). Mais de vinte anos depois a interrogao subsiste. Duru-Bellat questiona-se nestes termos: compreende-se mal, se a25 A polmica entre os dois autores no seio da sociologia da educao foi artificialmente empolada. Como reconhece recentemente Duru-Bellat (2002: 189): Boudon prope uma outra verso da reproduo, onde a desigualdade de posies sociais que determina a desigualdade social. SOCIOLOGIA, PROBLEMAS E PRTICAS, n. 59, 2009, pp. 75-106

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herana cultural importante, a falta de dificuldades especficas dos alunos estrangeiros ou sados da imigrao (para alm da sua pertena a um meio social desfavorecido) ou ainda que os filhos dos agricultores tenham mais sucesso que os filhos dos operrios (2002: 185). Tanto o xito escolar excepcional dos descendentes das classes populares como o macio sucesso das raparigas constituram-se como objectos privilegiados da investigao emprica internacional, especialmente ao longo dos anos 90. No primeiro domnio destacam-se as pesquisas de Terrail (1990), de Laurens (1992), de Charlot, Bautier e Rochex (1992) e de Lahire (1995) e, no segundo caso, a investigao de Felouzis (1994) e as anlises e reflexes de Duru-Bellat (1990) e de Baudelot e Establet (1992). Bernard Lahire, ao estudar a diversidade de trajectrias escolares de alunos de meios populares inseridos em condies sociais muito precrias, onde o sucesso escolar era muito improvvel,26 detecta existirem outras condies (para alm da condio de classe) relacionadas com o bom desempenho escolar, como so a relao com a escrita, especialmente o seu uso no quotidiano, e um universo domstico ordenado material e temporalmente [pois a criana] adquire, imperceptivelmente, mtodos de organizao, estruturas cognitivas ordenadas e predispostas a funcionar como estruturas de ordenamento do mundo (1995: 25). Charlot, Bautier e Rochex, com base nos resultados da pesquisa emprica que conduziram junto de alunos dos meios populares, defendem ser central no xito escolar a relao do aluno com os saberes: uma relao meramente instrumental com os saberes escolares aparece associada ao fracasso escolar e uma relao fundada no interesse e prazer de aprender ao sucesso. Na mesma linha de aprofundamento das teses culturalistas, Jean-Pierre Terrail e Jean-Paul Laurens tambm estudam a excepo regra filhos dos operrios que frequentam ou concluram cursos superiores27 e concluem, por diferentes vias, pela mesma importncia da histria familiar scio-histria de uma linhagem enquanto actor social colectivo (Terrail) ou de uma sociogenealogia (Laurens) que requer a mobilizao de toda a famlia e do prprio em relao escola (Terrail) e um sobreinvestimento parental na escola, constituindo esta a prioridade familiar na gesto do quotidiano (Laurens, 1992: 39). No caso do sucesso escolar das raparigas, as explicaes para esta energia escolar tm assinalado tratar-se da conjugao de dois factores: as vantagens da socializao familiar no cumprimento do ofcio do aluno e o sobreinvestimento que faro na escolaridade, como melhor meio de concretizar a sua trajectria de emancipao. O primeiro argumento tem encontrado alguma sustentao emprica nas

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O autor elege as configuraes familiares como objecto privilegiado de anlise e observa as mediaes concretas da rede familiar. Estuda 26 casos, entrevistando os pais, o aluno e o respectivo docente, contemplando uma ampla diversidade de condies e situaes que incluem a condio de imigrante. Terrail analisa 23 relatos de vida de transfugas da classe operria e Laurens reconstri a trajectria escolar de 31 engenheiros cujos pais eram operrios no momento da sua entrada no ensino superior.SOCIOLOGIA, PROBLEMAS E PRTICAS, n. 59, 2009, pp. 75-106

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investigaes que analisam os mecanismos de fabricao (Perrenoud, 1984) do sucesso escolar no interior da escola: esta valoriza (e premeia) comportamentos e competncias integradores do sistema de disposies que as raparigas geralmente incorporam no processo de socializao familiar estabilidade motora, ateno, autocontrolo, autonomia (Duru-Bellat, 1990: 60) , e estas qualidades sero mais conformes s representaes do aluno ideal partilhadas pelos professores. Estaro em jogo comportamentos das raparigas que objectivamente agradam mais aos professores e, em simultneo, interferiro esteretipos de gnero que lhes atribuem mais estudo e maior esforo.28 Trata-se, portanto, de um efeito relacional, de correspondncia entre as expectativas dos professores e o comportamento das alunas (efectivo ou suposto) e de uma maior capacidade por parte destas em lhe corresponderem. Como afirmam Baudelot e Establet: A maior parte dos observadores sublinharam como, na educao familiar, se espera, sobretudo das raparigas, que elas antecipem as expectativas do outro, que elas respeitem e interiorizem as regras estabelecidas. (1992: 110). Em suma, a excelncia escolar das raparigas no questiona a tese das vantagens da continuidade cultural entre a famlia e a escola (at a refora),29 mas interpela a escola enquanto instrumento nuclear de reproduo dos grupos dominantes. Mesmo sabendo que esta vantagem das raparigas se transforma, na maior parte das vezes, num jogo de soma nula, ao escolherem profisses que as reconduzem a lugares sociais de subordinao relativa, cabe perguntar se no estaremos perante um caso ilustrativo do potencial transformador da escola. A mesma autonomia relativa que contribui para a eficaz reproduo das desigualdades sociais no proporcionar a emergncia de espaos de resistncia a essa mesma reproduo social?30 Baudelot e Establet assinalam, precisamente, o papel transformador da escola no tocante s questes de gnero: A escola, no que respeita mistura de gnero, constitui um foco de inovao social. Em franco avano em relao famlia e empresa, ela est envolvida num movimento social para cuja criao contribuiu e que impulsiona as raparigas a libertarem-se do peso do destino ditado pelos corporativismos da empresa e das tradies familiares. (1992: 234) Analisar e avaliar a escola precisamente enquanto agente produtor do social (e no apenas reprodutor) tem constitudo, especialmente nas duas ltimas dcadas, alvo de interesse de muitos investigadores. Estas pesquisas tm conseguido documentar a vida e a experincia escolar de alunos e professores, de escolas ou de turmas, sendo, contudo, ainda pouco slidos os conhecimentos de que dispomos sobre os efeitos das variveis escolares nos resultados escolares, especificamente na reduo ou potenciao da (des)igualdade de oportunidades, ou seja, no conhecimento do poder da escola na (re)produo das (des)igualdades.

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No estudo da relao professor-alunos sobressaem os trabalhos clssicos de Gilly (1980), de Delamont (1980) e de Sirota (1988). interessante a aluso de Bernstein diferenciao detectada nos cdigos lingusticos das raparigas da classe operria em relao aos seus pares masculinos: ao serem portadoras de um cdigo restrito instvel teriam maiores possibilidades de mudana de cdigo (1990: 117). Trata-se de uma tese j amplamente defendida pelas teorias da resistncia, cujos trabalhos emblemticos so o de Paul Willis (1977), o de Peter Woods (1979) e o de Henry Giroux (1983).SOCIOLOGIA, PROBLEMAS E PRTICAS, n. 59, 2009, pp. 75-106

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Nos pases anglo-saxnicos, sobretudo nos Estados Unidos, encontramos desde muito cedo interesse pelo estudo dos estabelecimentos escolares (sociologia da escola): a obra pioneira The Sociology of Teaching foi publicada em 1932 (e reeditada em 1965) por Waller que, directamente inspirado nos conceitos e mtodos que a escola de Chicago tinha forjado para o estudo das colectividades urbanas, descreve e analisa a vida escolar, nomeadamente a cultura e o ritual da escola, o trabalho, as situaes e o jogo dos estatutos e dos papis (Derouet, 1987: 87). Nos anos 60 e 70 publicam-se alguns trabalhos etnogrficos de referncia neste domnio: no Reino Unido, Hargreaves (1967) e Rutter e outros (1979) estudam a vida de escolas secundrias e, nos Estados Unidos, Halpin e Croft (1963) aplicam escola as teorias emergentes na sociologia das organizaes e estudam o clima da escola e os fenmenos de liderana. No prolongamento desta linha de estudos surgiu, no incio dos anos 80, o desenvolvimento da corrente das escolas eficazes, que procura identificar as caractersticas e os modos de funcionamento que as tornam mais eficientes e eficazes,31 no pressuposto de que as escolas podem ter uma influncia nas performances dos alunos, quaisquer que sejam as caractersticas sociais dos seu pblico (Duru-Bellat, 2002: 21). Centremo-nos na questo primordial: em que medida os sistemas educativos, aos seus vrios nveis, podem ampliar ou reduzir o efeito das desigualdades sociais na desigualdade de trajectrias escolares? Consideremos trs nveis de anlise distintos, apesar de relacionados e com influncia recproca: a estrutura e organizao especfica dos sistemas educativos (nvel macro), a escola enquanto organizao (nvel meso) e a sala de aula (nvel micro). No primeiro caso, impe-se proceder a uma comparao internacional da importncia que assume a relao entre a condio social das famlias e os resultados escolares, ou o nvel educativo atingido, considerando a estrutura mais ou menos selectiva do sistema de ensino em causa e a organizao dos itinerrios escolares. Desta comparao, constata-se no existir relao directa entre o grau de mobilidade social que os diferentes pases tornam possvel e o modo como definem e organizam a diferenciao de fileiras no interior do seu sistema de ensino; parecem ser mais importantes as polticas sociais que reduzem as desigualdades de condies de vida e de segurana econmica do que propriamente as polticas escolares. Como esclarece Duru-Bellat, nenhuma relao clara se vislumbra entre, por um lado, a amplitude da imobilidade social e, por outro, as polticas escolares seguidas e as caractersticas dos sistemas educativos.(2006: 33).32 No entanto, as diferenas31 Good e Weinstein referem as concluses dos trabalhos de Edmonds, que considera serem estas as principais caractersticas das escolas de sucesso: a) gesto centrada na qualidade de ensino; b) importncia primordial s aprendizagens acadmicas; c) clima tranquilo e bem organizado, propcio ao ensino e aprendizagem; d) comportamentos dos professores transmitindo expectativas positivas quanto possibilidade de todos os alunos obterem nvel mnimo de competncias; e e) utilizao dos resultados dos alunos como base da avaliao dos programas e currculos. (1992: 83-84). A autora ilustra esta concluso com o caso de Frana e da Alemanha que, tendo ambos mobilidade social fraca, tm a todos os nveis sistemas educativos diferenciados (Frana com a escola nica, Alemanha com as fileiras precoces), e o inverso com pases como a Sucia e os PasesSOCIOLOGIA, PROBLEMAS E PRTICAS, n. 59, 2009, pp. 75-106

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observadas entre os pases parecem relacionadas com o modo como estes regulam a orientao escolar dos alunos, pois nos casos em que as decises de orientao dependem sobretudo das notas escolares (como o caso da Gr-Bretanha) as desigualdades de carreiras escolares aparecem menos afectadas pela origem social o peso que dado s classificaes reduz a auto-excluso que caracteriza os meios populares, a tal ponto que, na Gr-Bretanha, o efeito da origem social diminui medida que se avana nos estudos (Duru-Bellat, 2002: 167).33 No plano dos efeitos da aco de cada escola e de cada professor na selectividade social dos resultados escolares, surgem como variveis interferentes (com potencial explicativo) a composio social das turmas (e da prpria escola), as expectativas que o professor comunica aos alunos e, ainda, o modelo pedaggico que adopta. A partir destas pesquisas, vulgarmente designadas por estudo dos efeitos-escola (ou turma ou professor),34 dispomos de informaes valiosas: que a heterogeneidade social da turma (e da escola) beneficia os alunos com origem nas classes populares (Ball, 1986); que o sucesso dos alunos das classes mdias e altas potenciado pelas expectativas positivas que lhes so comunicadas pelos professores (Becker, 1952; Rosenthal e Jacobson, 1968)35 e pela adopo, por parte dos docentes, de uma estratgia pedaggica enformada por concepes elitistas (Isambert-Jamati e Grospiron, 1979). Como nos explica Van Zanten,os estudos britnicos, em particular, mostram que, todo o resto igual, os alunos progridem melhor nas boas turmas do que nas turmas fracas, porque os professores modelam consciente ou inconscientemente os contedos em funo do suposto nvel dos alunos: do um ensino mais abstracto, centrado nos conhecimentos, e exigem mais das primeiras, enquanto proporcionam um ensino mais concreto, centrado na relao professor-alunos e mais tolerante aos desvios em relao s exigncias nas segundas (1996: 288).36

Foram feitas ainda outras descobertas interessantes no tocante importncia do contexto e dos processos escolares: as escolas frequentadas maioritariamente por alunos de meios sociais favorecidos tm tendncia a ser menos selectivas em matria de orientao do que as escolas com forte componente popular (Van Zanten,Baixos, onde so grandes as amplitudes de mobilidade social e tambm neste caso os sistemas de ensino se diferenciam (Sucia com a escola nica e os Pases Baixos com as fileiras precoces). Referindo concluses dos trabalhos de Kerckoff e Trott, publicados em 1993[0]. Uma reviso bastante completa da investigao produzida neste domnio encontra-se em Bressoux (1994). J Parsons assinalava a importncia da actuao dos professores no cumprimento dos desgnios escolares. O autor distingue o plano formal da turma do plano informal, e coloca neste ltimo plano o tratamento diferencial dos professores em relao aos alunos, ou seja, no plano formal a situao regulada por princpios universalistas mas no plano informal praticam-se (e aceitam-se) excepes a esta regra, violando as expectativas universalistas da escola (1959: 439). A autora esclarece que os dados relativos aos estudos britnicos foram retirados do texto publicado por S. Ball (1986).SOCIOLOGIA, PROBLEMAS E PRTICAS, n. 59, 2009, pp. 75-106

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1996); quando se confrontam as classificaes dadas pelas escolas e as notas obtidas em testes estandardizados, constata-se que, por um lado, quando o nvel escolar do pblico em mdia elevado, as escolas so mais severas (dando notas em mdia mais baixas para nveis comparveis obtidos nas provas de conhecimento) e, por outro, para resultados comparveis em provas estandardizadas, os filhos dos quadros so mais bem cotados que os filhos dos operrios nas classificaes dadas pelas escolas (Duru-Bellat, 2002: 55-56).37 Este ltimo dado corrobora as concluses dos estudos que assinalam serem as apreciaes dos docentes afectadas, mesmo que inconscientemente, pela condio social dos alunos (profetizando o seu nvel de realizaes)38 e, deste modo, acrescentando s dificuldades decorrentes da diferenciao cultural sentidas pelos alunos dos meios populares um novo obstculo a vencer: as representaes negativas (e respectivas expectativas) das possibilidades de aprendizagem desses mesmos alunos. Como afirma Duru-Bellat, a definio do mrito sempre subjectiva e contextualizada e no mais do que um julgamento social (2002: 236). Em suma, depois de nos anos 60 os grandes estudos extensivos terem concludo pelo papel secundrio das variveis escolares no desempenho dos alunos (o que deu origem ao slogan Schools make no difference), desenvolveram-se, nos anos 70, pesquisas sobre os processos de ensino nas escolas que, como reaco a esse fatalismo, assumiram um carcter militante de luta contra as desigualdades sociais (Bressoux, 1994) e que, abrindo a caixa negra da escola,39 procuraram identificar os processos concretos que na vida escolar dificultam o acesso ao saber escolarmente valorizado, por parte dos alunos oriundos dos meios sociais mais desfavorecidos. Sabemos hoje que as dificuldades escolares destes alunos se fabricam no quotidiano escolar por descontinuidade cultural, mas tambm pela tendencial homogeneizao social das escolas e, em especial, das turmas (turmas de nvel), pelos processos de orientao que decorrem no seu seio e pela actuao dos professores. Acresce, ainda, que sabemos serem estes alunos mais sensveis aos factores de contexto do que os seus pares de condio social favorecida.40 Este conjunto de pesquisas teve o mrito de desvendar processos escolares que contribuem para explicar as trajectrias escolares menos bem sucedidas de37 38 39 40 Erikson e Jonsson (2000) demonstram que na Sucia as desigualdades sociais so maiores quando se usam as notas, menores quando se usam testes estandardizados e ainda menores quando se usam testes psicomtricos. Um interessante estudo de Harari e McDavid, publicado em 1973, demonstrou como provas associadas a nomes diferentes, tendo estes cargas sociais negativas ou positivas, eram cotadas mais positivamente quando nelas figurava um nome mais favorvel (Postic, 1984: 104). A metfora da caixa negra foi usada pelos socilogos anglo-saxnicos da Nova Sociologia da Educao, referindo-se aos trabalhos realizados at ento que consideram apenas os inputs e os outputs escolares, descurando o que se passava no interior da escola. Esta ltima concluso j era assinalada no relatrio Coleman e tem sido persistentemente confirmada. Duru-Bellat, a propsito da comparao de resultados em provas internacionais destaca, mais uma vez, esse facto: Note-se que para os alunos de meios desfavorecidos que as diferenas entre os pases, nas performances realizadas, so mais marcadas. Inversamente, os jovens de meios favorecidos tm xito de modo bem mais homogneo de um pas (portanto de um sistema educativo) para outro, o que confirma a sua menor sensibilidade ao contexto. (2002: 165).SOCIOLOGIA, PROBLEMAS E PRTICAS, n. 59, 2009, pp. 75-106

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alguns grupos sociais, mas ainda hoje nos debatemos com a escassez de estudos sobre o poder explicativo dos factores escolares na relao com os resultados escolares. Como assinalam Foster, Gomm e Hammersley, h pouca evidncia de que as diferenas entre as escolas na sua eficcia produzam resultados desiguais entre as diferentes categorias sociais de alunos; to-pouco em termos de recrutamento ou tratamento diferencial. Isto no quer dizer que estas diferenas no tm significado, mas simplesmente que no presente a evidncia insuficiente para ser possvel retirar concluses razoveis acerca da sua relao com as desigualdades de resultados; contudo, h indicaes de que provavelmente a contribuio dos factores escolares consideravelmente menor do que a realizao prvia e a bagagem (o background) da classe social (1996: 162-163). Esta preocupao em discernir a importncia relativa (o poder explicativo) dos factores familiares e dos factores escolares nos resultados est patente desde os anos 60, inscrita na prpria encomenda do Senado americano equipa de investigao liderada pelo j referido James Coleman. A controvrsia que se seguiu publicao dos estudos extensivos de grande amplitude, realizados nos Estados Unidos e em Inglaterra, que secundarizavam o relevo dos factores escolares41 no deu lugar a um aprofundamento da questo e, s nos anos 90, depois de muitos estudos de cariz qualitativo terem revelado o efeito das variveis escolares nos percursos escolares, se retomou esse interesse em adoptar modelos de pesquisa que consigam avaliar os efeitos comparativos dos dois tipos de factores. Com o objectivo de, precisamente, explicar a variedade das aquisies escolares, considerando tanto as variveis ligadas famlia como as ligadas escola, foram realizados recentemente dois estudos cujos resultados apontam para concluses divergentes: o de Mingat (1991), realizado junto de 2200 crianas a frequentar o curso preparatrio francs (6-7 anos de idade), e o de Entwistle, Alexander e Olson (1997), realizado junto de 800 crianas americanas durante cinco anos lectivos (desde o 1. ano de escolaridade). O primeiro considera: i) os factores pessoais quando se inicia a escola elementar (desenvolvimento cognitivo e lingustico e o comportamento face escola), ii) os factores caractersticos do meio familiar e iii) as diferenas no funcionamento da escola, por um lado, e do ensino, por outro (p. 47). Conclui serem os resultados obtidos no final desse ano lectivo mais afectados, por ordem decrescente, pelos factores pessoais, os escolares e os familiares (dentro dos factores escolares, assume proeminncia o poder explicativo dos aspectos relacionados com a actuao do professor).42 A segunda pesquisa utilizou testes aplicados a todas as crianas no incio e no final de cada ano lectivo, de modo a avaliar os efeitos especficos da aco da famlia (durante o Vero) e os da escola (durante o Inverno), e concluiu que as41 42 O relatrio Coleman conclui que s o estatuto social das famlias (apenas um dos indicadores da origem social das famlias) explica entre 30 a 50% da varincia total nos resultados. Estas concluses parecem-nos controversas, pois a pesquisa separa os factores pessoais dos familiares e faz sentido perguntarmo-nos se as diferenas detectadas nas crianas (factores pessoais) no incio do ano no estaro intimamente ligadas aco da famlia.SOCIOLOGIA, PROBLEMAS E PRTICAS, n. 59, 2009, pp. 75-106

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crianas da classe mdia conservam a dianteira em termos de aproveitamento ao longo da escolaridade devido s vantagens no incio da escolaridade (que conservam e ampliam) e no por tirarem mais partido da aco da escola. Os ganhos registados aps o decurso do ano lectivo so sempre prximos para todas as crianas, independentemente da condio social das suas famlias, mas os ganhos atribuveis aco da famlia (escola de Vero) so sempre muito superiores no caso das crianas da classe mdia(Grcio, 2002: 51-52). Estaremos perante mais um indcio de que a escola avalia e sanciona o que ela prpria no proporciona? Concluindo Dispomos de algumas indicaes e de poucas certezas. Duru-Bellat considera que nenhuma das teorias existentes consegue integrar o conjunto dos trabalhos sobre desigualdades na escola acumulados ao longo dos ltimos trinta anos e que estamos longe de um desmentido ou validao global,43 sendo apenas possvel constatar que para alguns tipos de problema tal teoria aparece como heurstica e para alguns tipos de constataes empricas ela no aparece refutada (2002: 199). No entanto, sobre a particular incidncia do insucesso escolar nos alunos das classes populares, nos rapazes e em alguns grupos de origem imigrante, sabemos que se trata de um fenmeno social multidimensional e relacional: integra e implica a socializao familiar e a escolar, a relao entre ambas e a relao da escola com a sociedade em que se inscreve, nomeadamente com a amplitude das desigualdades sociais existente nessa sociedade e com a interaco entre a escola e o mercado de trabalho. Sabemos ainda que a combinao dos factores mais importante do que cada um deles tomado isoladamente(Bressoux, 1994). Um estudo recente de Millet e Thin sobre as rupturas escolares salienta, mais uma vez, a importncia da confluncia de factores na produo de uma dada situao: os processos de rupturas escolares so combinatrias e resultam de uma articulao de diferentes dimenses da vida social dos alunos, cada dimenso imbricando-se com as outras que os tornam possveis e os reforam, e sem as quais eles no teriam nem o mesmo sentido nem o mesmo efeito (2005: 295); a par da instabilidade, da incerteza e das ameaas vividas na famlia, h um processo de rejeio mtua da escola (dos alunos e dos professores e instituio). Se verdade que a escola tem um papel limitado no esbatimento das desigualdades sociais, podendo mesmo exercer uma influncia negativa, ela, simultaneamente, permanece no centro da integrao. A escola no muda a sociedade, como inicialmente se sups, mas isso no significa que no constitua o contexto social com maiores probabilidades de concretizar alguma mobilidade social. Concordamos com Duru-Bellat (2002: 203) quando indica a necessidade de dispormos de teorias de mdio alcance que permitam analisar as interaces entre a origem social e43 J em 1970 Coleman assumia a dificuldade em separar os efeitos atribudos s diferenas entre os alunos e os que so devidos s diferenas dos estabelecimentos escolares e defende a necessidade de se recorrer a dados longitudinais para atacar o problema (Husn, s/d: 248).SOCIOLOGIA, PROBLEMAS E PRTICAS, n. 59, 2009, pp. 75-106

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o destino social, em que a escola tem um papel de intermediria, agindo e retroagindo sobre essa relao entre a origem e o destino. Referncias bibliogrficasBall, S. (1986), The Sociology of the school: streaming and mixed ability and social class, em R. Rogers (org.), Education and Social Class, Londres, The Falmer Press. Baudelot, C., e R. Establet (1971), Lcole Capitaliste en France, Paris, Maspro. Baudelot, C., e R. Establet (1975), Lcole Primaire Divis, Paris, Maspro. Baudelot, C., e R. Establet (1992), Allez les Filles!, Paris, d. du Seuil. Becker, H. S. (1952), Social-class variations in the teacher-pupil relationship, Journal of Educational Sociology, 25 (8), pp. 451-465. Bernstein, B. (1964), Elaborated and restricted codes: their social origins and some consequences, American Anthropologist, 66, pp. 55-69. Bernstein, B. (1990), Poder, Education y Conciencia: Sociologia de la Transmision Cultural, Barcelona, El Roure Editorial. Berthelot, J.-M. (1983), Le Pige Scolaire, Paris, PUF. Boudon, R. (1973), LInegalit des Chances. La Mobilit Sociale dans les Socits Industrielles, Paris, Armand Colin. Bourdieu, P. (1979), Les trois tats du capital culturel, Actes de la Recherche en Sciences Soci