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Romildo Henriques Pinas Deus na Pessoa Humana Segundo Wolfhart Pannenberg Dissertação de Mestrado Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Teologia da PUC – Rio como requisito parcial para Obtenção do título de Mestre em Teologia. Orientador: Dr. Mario de França Miranda Rio de Janeiro Outubro de 2007

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Romildo Henriques Pinas

Deus na Pessoa Humana Segundo Wolfhart Pannenberg

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Teologia da PUC – Rio como

requisito parcial para Obtenção do título de Mestre em Teologia.

Orientador: Dr. Mario de França Miranda

Rio de Janeiro Outubro de 2007

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Romildo Henriques Pinas

Deus na Pessoa Humana Segundo Wolfhart Pannenberg

Dissertação apresentada como requisito parcial para Obtenção Do grau de Mestre pelo Programa de Pós- Graduação emTeologia do Departamento de Teologia do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Prof. Mário De França Miranda Orientador

Departamento de Teologia _ PUC-Rio

Prof. Paulo Cezar Costa Departamento de Teologia _ PUC-Rio

Prof. Cleto Caliman PUC-Minas

Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade Coordenador Setorial de Pós-Graduação e Pesquisa do Centro de Teologia e Ciências Humanas _ PUC-Rio

Rio de Janeiro,

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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, do autor e do orientador. Romildo Henriques Pinas Graduou-se em Filosofia Na PUC –Minas ( Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais) em 1996. Pós-graduado em Filosofia Contemporânea, também pela PUC-Minas em 1998. Bacharelou-se em Teologia pelo Instituto Santo Tomás De Aquino em Belo Horizonte- MG em 2002. Participou de diversos seminários e congressos de Filosofia e Teologia. Atualmente trabalha no SSEP (Sistema Salesiano de Educação Popular) da Inspetoria São João Bosco (ISJB), atuando na animação de duas obras sociais na cidade do Rio de Janeiro: Centro Juvenil Salesiano –RJ e CESAM-RJ (Centro Salesiano do Adolescente Trabalhador).

Ficha Catalográfica

CDD:200

iPinas, Romildo Henriques

Deus na pessoa humana segundo WolfhartPannenberg / Romildo Henriques Pinas ; orientador:Mario de França Miranda. – 2007. 123 f. ; 30 cm Dissertação (Mestrado em Teologia)–PontifíciaUniversidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,2007. Inclui bibliografia 1. Teologia – Teses. 2. Deus. 3. Pessoa. 4.Antropologia teológica. 5. Pannenberg, Wolfhart. I.Miranda, Mario de França. II. Pontifícia UniversidadeCatólica do Rio de Janeiro. Departamento de Teologia.III. Título.

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À minha família, de um modo todo especial, à minha mãe,

que nos precedeu no encontro definitivo com Deus.

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Agradecimentos

No silêncio misterioso do princípio originário da vida uma pergunta

se faz ecoar no mais profundo de nosso ser: por que eu fui chamado à

vida? E nas inquietações da existência, como apelos do espírito, nos

atiramos em busca das mais diversas respostas. O desejo de respostas

vai como que sombreando à margem do nosso peregrinar pela vida. Tal

desejo não nos abandona um instante sequer e, como um destino fatal

que sempre nos atormenta na busca de mais e mais. O eco ensurdecedor

da voz deste desejo, que grita numa fome infinita de conhecimento do

Absoluto, é talvez, o que tenha impulsionado Agostinho a afirmar “tarde

Senhor, te conheci”. Aqui antes de tudo, agradeço a Deus por ter

colocado em mim o desejo de conhecê-lo, mais que conhecê-lo, amá-lo.

Agradeço sobretudo pelo seu amor infinito manifestado à toda

humanidade em Jesus Cristo.

Agradeço à minha família, à minha mãe que sempre soube nos

educar para a partilha, para o amor ao próximo e para o temor a Deus.

Ela sempre dizia: “com Deus não se brinca”, demonstrando para com

Deus um singular respeito e adoração. Da minha família não posso

esquecer meu pai, homem que sempre trabalhou e lutou para criar os

filhos, já que com ele aprendi o valor do respeito e da dignidade humana.

Ainda agradeço aos meus 5 irmãos, pois foi junto deles que consegui me

iniciar nos princípios da fraternidade cristã.

De forma muito singular, demonstro minha gratidão ao Dr. Mario de

França Miranda, docente da Pontifícia Universidade Católica do Rio de

Janeiro, orientador disponível, sério e seguro; homem que desde a

primeira aula aprendi a admirar e valorizar em suas incomensuráveis

qualidades, sobretudo, pela bondade e compreensão para com seus

alunos – homem profundamente humano.

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Aos professores e funcionários do Departamento de Teologia da

PUC-RJ, não me constranjo em citar o pe. Garcia homem admirável,

integrado e afetuoso para com seus alunos, intelectual respeitado e

exigente. A Denise e Jussara que sempre atendem na secretaria com

profissionalismo e cordialidade.

Agradeço também a três professores que muito marcaram o meu

caminho de estudante: pe. Cleto Caliman, intelectual profundo e humano;

pe. Gruen, singular exegeta e de imensa disponibilidade; Irmã Maria

Carmelita de Freitas, professora exigente, bondosa e amiga.

Agradeço à (CAPES) Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal

de Nível Superior.

Por fim seria ingratidão deixar de lembrar a Inspetoria São João

Bosco (ISJB) na pessoa do pe. Ovídio Geraldo Zancanella, atual Inspetor,

onde passei a maior parte de minha vida; nesta minha nova casa, desde

adolescente, adquiri gosto pelos livros e pela cultura.

A todos minha eterna gratidão.

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Resumo

Henriques, Romildo Pinas; Miranda, Mário de França. Deus na Pessoa Humana segundo Wolfhart Pannenberg. Rio de Janeiro, 2007. p. 122. Dissertação de Mestrado _ Departamento de Teologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

O presente estudo busca fazer uma leitura da antropologia

teológica de W. Pannenberg, sistematizando a temática e demonstrando,

através do autor mencionado, a dimensão religiosa como constitutivo

essencial do ser humano. O cenário que faz fundo a este estudo é a

modernidade, o homem situado num contexto moderno. Num primeiro

momento, o trabalho aborda as dimensões espiritual e corporal da

pessoa, apontando para uma integração entre elas, principalmente dentro

do contexto bíblico cristão. O estudo aprofunda a temática da pessoa

humana, inserindo a mesma no contexto do relacionamento social,

mostrando a tensão entre indivíduo e sociedade – abertura e fechamento.

Num segundo momento, o estudo pontua a liberdade como constitutivo

indispensável do ser humano e da subjetividade verdadeira. É na

experiência da liberdade que se pode falar do homem como consciência.

A liberdade, bem como a transcendência, são pressupostos para a

dimensão religiosa do homem e, a transcendência não só exprime o

movimento do homem na sua vida como espírito, mas também, constitui

o movimento da história, isso principalmente dentro da visão cristã de

homem e de história. O estudo mostra o homem como abertura para Deus

e a fundamentação teológica para esta argumentação. Aqui se trabalha a

temática da imagem e semelhança com Deus no pensamento de

Pannenberg e a relação dessa imago Dei com o mundo. A pesquisa faz a

abordagem da validade da dimensão religiosa e a idéia de confiança e

abertura no contexto da religião; para daí situar a pessoa como identidade

religiosa. Por fim, o estudo chega à sua fundamentação em Jesus Cristo.

É Jesus o protótipo de pessoa humana; ele é o fundamento de nossa

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liberdade, o destino para onde a mesma caminha. Jesus é o que

reconcilia o homem com Deus e consigo mesmo. Nele o homem encontra

a sua plenitude como esperança escatológica.

Palavras-chave Deus; Pessoa; Antropologia Teológica; Wolfhart Pannenberg

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Abstract Henriques, Romildo Pinas; Miranda, Mário de França. God in Human Person According Wolfhart Pannenberg. Rio de Janeiro, 2007. p. 122. Dissertação de Mestrado _ Departamento de Teologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

The aim of this paper is a reading into Pannenberg’s theological

anthropology, by systematizing the theme and demonstrating, through the

aforesaid author, that the religious dimension is an essential constitutive

of the human being. The background of the paper is modernity -- man

situated in a modern context. In a first moment, the study discusses the

person’s spiritual and corporeal dimensions, pointing out their mutual

integration, specifically in Christian biblical context. The essay inquires into

the theme of the human being, embedding it in the context of social

relations, showing the tension existing between the individual and society

– openness and seclusion. In a second moment, the study points out

freedom as an indispensable constitutive of the human and of true

subjectivity. It is in the experience of freedom that it is possible to speak

about man as conscience. Freedom as well as transcendence are

presuppositions for man’s religious dimension; transcendence expresses

man’s movement in his life as a spirit; it also constitutes the movement of

history, especially in the Christian vision of man and history. This paper

shows man as openness to God, and evinces the theological basis for

such argumentation. This is where the study develops the theme of man

as image and likeness of God in Pannenberg’s thought, and the relation

between this imago Dei and the world. At this point, the paper faces the

question about validity of the religious dimension, and the idea of trust and

openness in religious context, so as to situate the person as a religious

identity. Finally the study reaches its foundation on Jesus Christ. Jesus is

the prototype of the human; he is the foundation of our freedom and its

goal. Jesus is the one who reconciles man with God and with himself; in

Jesus, man finds his plenitude as eschatological hope.

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Keywords God; Person; Theological Anthropology; Wolfhart Pannenberg.

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Sumário 1. Introdução 14

2. A modernidade e o homem como centro –antropocentrismo 19 2.1 . Wolfhart Pannenberg e sua produção acadêmica 20 2.2. Alguns pressupostos para compreender o homem: as dimensões de

corpo e espírito 26

2.2.1. O corpo como dimensão essencial do homem 27 2.2.2. O espírito humano na antropologia teológica de Pannenberg 31 2.2.2.1. A abordagem de espírito na antropologia filosófica 31

2.2.2.2. O espírito como dimensão da pessoa humana na linguagem

bíblico-cristã 33

2.3. O homem e a modernidade secularizada 38 2.3.1. A Relação entre indivíduo e sociedade 42 2.3.1.1. Tensão entre indivíduo e sociedade – fechamento e abertura 42 2.3.2. Personalismo dialógico e personalismo dialético 48 2.3.3. O homem como abertura

51

3. A realidade humana como pressuposto para a dimensão religiosa –

liberdade e subjetividade; transcendência e história 55

3.1. O indivíduo como liberdade 55 3.1.1. A pessoa como liberdade e consciência 56 3.2. A pessoa humana como ser transcendente 61 3.2.1. A transcendência como superação humana 62 3.2.2. Transcendência humana e história 65 3.2.3. Transcendência e história no cristianismo 68

4. O ser humano como abertura para Deus – uma leitura teológica do

ser humano em Pannenberg 72

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4.1. A abordagem bíblica e outras abordagens do tema da imagem

e semelhança de Deus no decorrer da história cristã

73

81 4.1.1. A imagem e semelhança de Deus e o mundo 85 4.2. O homem religioso na antropologia de Pannenberg 85 4.2.1. A validade da dimensão religiosa 88 4.2.2. Confiança e abertura – características do ser religioso do homem 91 4.2.3. A pessoa como identidade religiosa 95 5. A salvação como esperança escatológica _ realização plena do

homem

96 5.1. Libertados plenamente no Deus de Jesus Cristo 99 5.1.1. A noção bíblico-cristã do tema liberdade 103 5.2. Jesus Cristo como revelação de Deus no homem 103 5.2.1. Jesus Cristo protótipo de homem na antropologia teológica cristã 108 5.2.2. O Verbo se encarna e o homem se reconcilia com Deus na pessoa

de Jesus Cristo

111 5.3. A plenitude do homem na revelação do amor de Deus 114 6. Conclusão Final 120 7. Referências bibliográficas

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Abreviações APT Antropologia em Perspectiva Teológica

EhcP El Hombre como Problema

TS1 Teologia Sistemática I

TS2 Teologia Sistemática II

TS3 Teologia Sistemática III

VHVD Verdadeiro Deus e Verdadeiro Homem (Tese Doutoral de

Marco Antônio Santana)

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1 Introdução

O presente estudo visa a uma reflexão sobre o homem e a sua

relação com o divino e deste modo, já se demarca aqui parte do objetivo

desejado. O objetivo se completa quando citamos o autor em questão,

Wolfhart Pannenberg, uma vez que ele é um dos grandes nomes da

teologia atual e de forma profunda e aberta dialoga com a modernidade e

com todos os desafios dela advindos. Este estudo, vale dizer, é uma

busca de fundamentar, através deste autor, um argumento antropológico

para a dimensão religiosa do ser humano. Assim, a presente pesquisa

procura sistematizar na antropologia de Pannenberg alguns fragmentos

de resposta para as inquietações antropológicas ligadas à relação

homem-Deus, no dia-a-dia da vida.

Como já mencionado, este estudo da antropologia de W.

Pannenberg, procura alguma luz para a reflexão teológica, elaborando

uma compreensão do homem como alguém que por natureza é um ser

religioso, já que o homem sem Deus é um ser que se perde em si mesmo

e se fecha num egoísmo sem fim. Somente quando a pessoa se abre ao

seu verdadeiro destino, é que a mesma consegue se realizar como

portadora da imagem e semelhança de Deus.

Nossa pesquisa dedica-se restritamente à antropologia teológica

deste autor1, recorrendo de forma parcial também à Teologia Sistemática2

volumes 1, 2, e 3.

O trabalho foi elaborado em quatro capítulos que procuram

sistematizar alguns elementos da visão antropológica de Pannenberg.

Em primeiro momento, o trabalho apresenta o autor e sua produção

acadêmica, para logo nos itens subseqüentes colocar alguns

pressupostos necessários para pensar o homem no contexto da

modernidade. Nestes pressupostos foram tratadas as dimensões corpo-

1 PANNENBERG, Wolfhart. Antropologia en Perspectiva Teológica, Salamanca: Sigueme, 1993. 2 PANNENBERG, Wolfhart. Teologia Sistematica, Tomo I, Madrid: Universidade Pontificia Comillas, 1996; Teologia Sistematica, Tomo II, Madrid:Universidad Pontificia Comillas, 1996; Teologia Sistematica, Tomo III, Brescia: Queriniana, 1996.

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espírito dentro da elaboração filosófica e da linguagem bíblico-cristã. Em

seguida apresenta o homem e a modernidade secularizada, pontuando a

relação indivíduo e sociedade e os constitutivos antropológicos de

fechamento e abertura, como traços da realidade do indivíduo e de sua

relação com a sociedade. Na relação, indivíduo e sociedade, mesmo que

brevemente, buscamos conceituar o personalismo dialógico e o

personalismo dialético, para daí fecharmos o primeiro capítulo situando o

homem como ser caracterizado pela abertura.

Já apresentadas as dimensões essenciais como constitutivas do

ser humano na dualidade corpo-espírito, o segundo capítulo busca

avançar na análise antropológica em Pannenberg, elaborando as

temáticas da liberdade, subjetividade, transcendência e história, dentro da

reflexão da antropologia filosófica. Este capítulo tem como finalidade

lançar as bases conceituais, para daí chegarmos à afirmação central do

estudo: a dimensão religiosa do homem como realidade essencial na

constituição do mesmo. Para afirmar o dado religioso do ser humano em

Pannenberg, se faz muito importante, ou melhor, indispensável buscar

compreender a temática da liberdade, já que esta é um dado essencial na

vida humana. Ao traçar o caminho da liberdade, o autor a relaciona com

a noção de indivíduo e de consciência, pois sem acrescentar estes dois

últimos elementos, a liberdade como tal fica enfraquecida.

Outro aspecto que se faz presente no segundo capítulo é o dado

da transcendência humana. Em Pannenberg, a transcendência é dado

fundamental para se definir o homem; sem ela o homem se perderia em si

mesmo e também ficaria difícil de abordar a sua dimensão religiosa.

Assim, a transcendência é uma característica do espírito e marca a

possibilidade do homem se abrir ao mundo, pois é pela força

dinamizadora do espírito presente nela, que possibilita ao homem tomar

consciência do seu ser pessoa. A atitude de transcendência possibilita ao

homem superar cotidianamente a sua finitude e os condicionamentos

presentes no decorrer de sua existência. A transcendência, na sua

compreensão mais pontual, não se dá na direção dos dados empíricos,

mas na busca de unidade com o Absoluto, ou seja, com o divino. É o

homem como pessoa quem ao dar conta de si mesmo pela linguagem e

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pela razão, formula na cultura a superação dos seus limites,

transcendendo o mundo e a natureza. Neste sentido de superação, é que

se faz necessário tratar também a transcendência como história. Na

história, o homem participa de seu evoluir como espírito, transcendendo-a

e no processar dos fatos, a pessoa avança até a plenitude da história,

sendo que tal plenitude, para Pannenberg, se dá em Deus como

realização plena da pessoa humana. A história favorece ao homem um

constante transcender das situações provisórias do seu percurso, para

atingir a meta final de seu caminho. No último tópico deste capítulo

pontua-se que a transcendência humana já se inicia na história, sendo

que o seu destino final é Jesus Cristo. Neste sentido, tanto a

transcendência humana como a história adquirem um novo sentido que

será tema do último capítulo. Elas são marcadas pela Graça. O terceiro capítulo constitui a parte central do estudo, pois é nesse

momento que procuramos demonstrar o pensamento do autor no que se

refere ao fundamento antropológico para a questão religiosa. Aqui se

busca compreender a dimensão de abertura do ser humano para Deus e

as implicações da mesma. Para afirmar tal dado, fez-se necessário tratar

a abordagem bíblica e algumas outras abordagens do tema da imagem e

semelhança de Deus na história cristã. Deste modo, a afirmação bíblica

“façamos o homem a nossa imagem e semelhança” torna-se de muito

peso para tratar o dado religioso no ser humano, dado este, que já se faz

presente desde a origem da criatura. Ainda no sentido da imago Dei, o

autor trabalha a relação do homem que é marcado pelo divino, mas é

convidado a realizar este traço na vivência concreta do mundo. É na

história, que o homem deve buscar realizar a sua imagem e semelhança

com Deus. O modelo perfeito de imagem e semelhança com Deus é

Jesus Cristo; Ele é a plenitude da dignidade humana e revela ao homem

o homem novo, como esperança escatológica já realizada na história e na

vida humana.

Depois de pontuar alguns elementos na temática da imago Dei, o

trabalho demonstra na antropologia de Pannenberg a essencialidade

religiosa no antropológico. Aqui busca-se fazer uma abordagem da

validade da dimensão religiosa quando se fala do homem tratando logo

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em seguida, do tema da confiança e abertura como características do

homem religioso. Ainda, tematiza a pessoa como identidade religiosa,

pois somente compreendendo o verdadeiro sentido do ser pessoa e

buscando responder às necessidades da mesma, como ser espiritual, é

que se consegue algumas respostas para questões que vão além do puro

racional. Na identidade da pessoa, como ser integral e integrado, o

indivíduo se descobre como identidade religiosa, construindo para si

símbolos e ritos. Ele busca adentrar no mundo do mistério inefável que

transcende a ele mesmo. Para Pannenberg, o homem já é marcado em

sua natureza pela dimensão religiosa. Tal dimensão não está como um

penduricalho colocado nele, ao contrário, ela faz parte do ser pessoa e a

pessoa só se realiza de forma integral quando se coloca na condição de

abertura ao mundo, aos outros e a Deus.

O capítulo quarto, mais voltado para a escatologia, é o culminar da

abordagem anterior. Ele mostra que o destino do ser humano está

fundamentado na pessoa de Jesus Cristo. É Jesus o verdadeiro libertador

do homem. Se antes o tema da liberdade foi abordado mais na ótica

filosófica, agora ele assume um conteúdo teológico-bíblico. Assim, a

liberdade não é somente conquista do ser humano, mas muito mais dom

e graça que ele recebe de Deus desde o momento da criação. Somos

libertados na liberdade divina e, esta constitui a verdadeira liberdade.

Para o cristão, a liberdade é comunhão com Jesus e a participação na

sua filiação junto do Pai, isso implica na participação da sua missão. Ela

não é somente uma formulação conceitual filosófica, mas é fruto da

bondade de Deus e dom do espírito que torna os homens

permanentemente livres e os fazem participantes da filiação de Jesus

Cristo.

Esse capítulo tem um caráter escatológico. Mesmo que o estudo

não tenha tido esta finalidade específica, vimos que não tinha como falar

dos fundamentos antropológicos do ser humano sem chegar a tal

desfecho. A Encarnação de Jesus é para o ser humano um marco

decisivo e definitivo de esperança e de realização. Ao apresentar Jesus

Cristo como modelo para o homem, fica evidente em Pannenberg a sua

posição antropológica: a salvação do homem se realiza em Jesus Cristo,

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ela não é uma salvação fora da história e alienada do mundo, ao

contrário, ela se dá na história e no homem situado no aqui da vida. O

Filho se encarna e se faz homem para elevar o homem à condição divina;

esta é a esperança que norteia a vida do ser humano. Na ressurreição de

Jesus, a pessoa humana é reconciliada com o Pai e a história marcada

por pecados e fragilidades se eleva ao divino. Desse modo, o futuro do

homem já é revelado no presente escatológico da ressurreição de Jesus.

A plenitude da realização humana não está nele mesmo como esperança,

mas ela se dá na revelação do amor de Deus. Ele mesmo quis

demonstrar esse amor para com a humanidade enviando seu Filho ao

mundo. Aqui vale encerrar com a frase de João: Deus é amor.

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2

A modernidade e o homem como centro -antropocentrismo

Introdução

No primeiro momento deste estudo, mostraremos alguns traços

biográficos do autor Wolfhart Pannenberg, considerado um dos grandes

teólogos ainda vivo e, até o presente, não é muito conhecido no Brasil.

Indicaremos também suas obras de maior projeção ou que ajudam no

desenvolvimento da temática proposta nesta pesquisa. Logo em seguida

nos voltaremos para uma reflexão sobre o homem como pessoa dentro do

contexto da modernidade, lugar onde o autor Pannenberg também se

encontra situado. Nós nos preocuparemos em apresentar alguns

pressupostos antropológicos presentes na antropologia de Pannenberg e

que são indispensáveis para refletir, mais adiante, a temática da

antropologia teológica que é nossa finalidade específica. Tais

pressupostos terão o objetivo de definir o homem nas categorias de

corpo e espírito que se revelam indispensáveis quando perguntarmos

quem é o homem. Estes elementos, antes de qualquer outro, são

fundamentais para se ter uma visão do ser humano e assim situá-lo no

mundo. Pannenberg trabalha na sua antropologia teológica a leitura

destas dimensões como integradoras da realidade humana como pessoa,

fundamentando, exatamente no indivíduo como pessoa situada no

mundo, a realidade de abertura para Deus como constitutivo

antropológico. De início já se pode dizer: a revelação de Deus é situada

na história do homem.

Mesmo que esta primeira parte ainda se caracterize pela abordagem

mais antropológica que teológica, faz-se necessário abordar os temas

espírito- corpo e pessoa também na visão bíblico-cristã, para ainda neste

primeiro capítulo relacionar o homem com a temática da modernidade.

Não nos ateremos detalhadamente ao longo caminho feito pelas ciências

no que se refere ao estudo do homem como corpo e espírito, mas

apontaremos alguns elementos sintéticos sobre a compreensão destas

dimensões, para assim podermos entrar de forma mais profunda na visão

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que Pannenberg apresenta de homem na perspectiva teológico-cristã e

nos esforçarmos numa sintética compreensão de sua antropologia

teológica como argumento da dimensão religiosa do ser humano, que é

objetivo principal deste estudo.

2.1 Wolfhart Pannenberg e sua produção acadêmica

Wolfhart Pannenberg nasceu em 1928, na cidade de Stettin, cidade

que fazia parte do território Alemão e hoje é ligada à Polônia. Pannenberg

no tempo de criança não recebeu formação religiosa, isso somente veio

acontecer mais tarde no decorrer de sua vida. Ele fez uma trajetória

marcada pela reflexão racional, para somente depois chegar ao

cristianismo. Ele acreditou entender sua experiência humana lendo os

grandes filósofos e pensadores religiosos. Embora batizado luterano

quando criança, mesmo assim, na sua infância não teve algum contato

com a igreja.

Na juventude, ele menciona uma experiência chamada de

“experiência iluminada”3, que marcou sua vida profundamente. Viveu sua

juventude durante o duro regime totalitário do Socialismo Nacional (NS),

sofrendo ainda, no início de sua vida, os revezes da segunda guerra

mundial.

Já em 1947, Pannenberg, sem se saber cristão ou não, vai estudar

teologia em Berlin. Influenciado por um professor que havia conhecido

nesta mesma ocasião, ele começa a perceber que o cristianismo pode ser

algo completamente distinto do que ele havia lido em Nietzsche4. A sua

primeira grande novidade foi o contato com o núcleo teológico de Karl

Barth “Deus é Deus”, e ele, como jovem, fica impactado pela maneira com

que aquela teologia propunha a soberana liberdade de Deus5.

3 Cf. http://www.theology.ie/theologians/pannen.htm, p. 1, 02-04-2007. 4 J. A. Martinez Camino, In: PANNENBERG, W. Teologia Sistemática I (trad. Espanhola) p. XI. Madrid: UPCO, 1992. A partir de agora quando nos referirmos à Teologia Sistemática I de Pannenberg na tradução espanhola a indicaremos pela abreviação TS1. 5 J. A. Martinez. Camino. Op.Cit. p. XII.

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Já em Basiléia, o jovem Pannenberg estuda teologia com K. Barth,

embora já tivesse tido contato com N. Hartmann com quem pôde refletir

sobre as grandes problemáticas da filosofia. Em Basiléia Pannenberg teve

a oportunidade de estudar também com Karl Jaspers, filósofo

existencialista cristão, que muito o ajudou a entender o valor da religião

como elemento fundamental da existência humana. Nos estudos

realizados com K. Barth, Pannenberg questiona o caráter absoluto do

cristianismo, mas aceita a soberania de Deus, a perspectiva singular de

sua revelação em Cristo e a dimensão universal da teologia. Pannenberg

não aceita o dualismo barthiano entre Deus e realidade natural. Para ele a

teologia pode partir de baixo, pois não há dualismo, e não se pode cair

numa indiferença em relação à história. Assim, com um forte acento na

história, a teologia assumida por Pannenberg terá um caráter mais

ascendente que descendente, e isso fica claro no seu projeto

cristológico6.

A partir de 1951 Pannenberg se estabelece na Universidade de

Heidelberg, onde conclui seus estudos com a tese doutoral e habilitação

para lecionar. Neste mesmo período lecionava nessa universidade o

grande exegeta Gerhard Von Rad, que juntamente com Hans Von

Campenhausen formavam um grupo de estudos da teologia, chamado de

“ Círculo de Heidelberg”. Neste grupo havia um forte enfoque na história7.

É nessa perspectiva histórica que será formulada a linha mestra da

teologia de W. Pannenberg.

Em 1959, Pannenberg escreveu um artigo “Evento de salvação e

História”, Aí ele afirma que Deus se revela indiretamente mediante a

proeza que ele realiza na história: revelação como auto-revelação

histórica indireta; revelação como história. Pannenberg propõe uma

revelação que se dá por intermédio dos fatos e não através da palavra

6 SANTANA, Marcos Antônio de. Verdadeiro Homem e Verdadeiro Deus: Fundamentos Cristológicos da Antropologia Cristã na reflexão de Wolfhart Pannenberg. Rio de Janeiro, 2003, 330p. ( Tese de doutorado), Faculdade de Teologia, Puc-Rio. Para nos referir outras vezes à tese de Marcos Santana abreviaremos a primeira parte do título da mesma pelas quatro primeiras consoantes (VHVD) 7 GIBELLINI, Rosino. A Teologia do Século XX. Trad. João Paixão Neto, São Paulo: Loyola, p.270, 1998.

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como afirma K. Barth. Deus se revela na línguagem dos fatos por suas

intervenções na história.

A fórmula “revelação como história” (Offenbarung als Geschichte)

não deve ser confundida com a fórmula de caráter idealista, sobretudo

hegeliano, de “História como revelação”. Não é a história como tal que é

revelação do absoluto: a revelação acontece em fatos históricos, em fatos

realizados por Deus na história, em fatos que manifestam o sentido da

história e o destino do homem. Não história como revelação, e sim

revelação como história8.

Depois do tempo de Heidelberg, Pannenberg foi lecionar no

seminário luterano de Wuppertal a convite de J. Moltmann. Em 5 de

janeiro de 1959 Pannenberg faz uma conferência para os professores do

ensino superior que teve como título Acontecimento Salvífico e História (

Heisgeschehen und Geschichte). Neste trabalho o autor afirma que a

história é o horizonte hermenêutico de toda teologia9, distanciando-se

assim, da teologia existencial de Bultmann e da de K Barth. Bultmann

dissolve a dimensão histórica na historicidade da existência, retirando do

acontecimento salvífico o dado objetivo e se volta para a experiência

subjetiva do sujeito. Barth apoiando-se na perspectiva em que a teologia

da história da salvação se refugia em uma supra-história, afasta a teologia

da análise histórico-crítica10.

No ano de 1961 Pannenberg assume uma cátedra em Moguncia e

neste mesmo ano publica sua teoria sobre a revelação “a revelação como

história” (Offenbarung als Geschichte). Neste trabalho ele mostra que a

auto – revelação de Deus não se realizou de forma direta, como uma

teofania, senão, indiretamente pelas obras de Deus na história11.

8 SANTANA, Marcos Antônio de. Op. Cit. p. 84. 9 Cf. Ibid., p. 84. Se faz importante a lembrança de que Wolfhart Pannenberg ainda na aurora do seu produzir teológico busca exatamente compreender a revelação como história; neste sentido sua teologia é uma teologia que se elabora na história humana, partindo deste dado já se encontra fundamentos para explicar a profundidade e o alcance de sua antropologia. 10 Cf. J. A. Martinez Camino. Op. Cit. p. XIII. 11 Cf. SANTANA, Marcos Antônio de. Op. Cit. p. 85. A compreensão da revelação como história coloca, como que naturalmente, em Pannenberg, uma posição cristológica que se fundamenta também na história, assim ele assume uma cristologia com forte característica ascendente.

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Depois do tempo em Moguncia Pannenberg foi para a universidade

de Munique onde ficaria até aposentar. Em Munique ele foi professor e

também diretor do Instituto de Teologia Fundamental e Ecumênica,

faculdade de teologia, que na época havia sido recém-criada.

Pannenberg sempre explorou o seu interesse pela filosofia da

história e pela história universal. Para sua reflexão sobre a história ele faz

uso de seu amplo conhecimento da filosofia moderna, através do

pensamento de Hegel, Kant e outros. Como é visível em sua produção

acadêmica, ele trava diálogos profundos com Max Scheler, Karl Marx, S.

Freud para então chegar a uma síntese consistente de sua construção

teológica.

A partir dos anos 70, Pannenberg começa a demonstrar interesse

pela teologia relacionada com as ciências naturais. Em 71-72 escreve

alguns estudos sobre Teilhard de Chardin e se esforça para formular uma

teologia da natureza, mesmo trabalhando a clara distinção entre ambas

as ciências12.

Pannenberg, com o passar do tempo, tornou-se conhecido tanto nos

Estados Unidos como na Europa, principalmente nos espaços teológicos,

em que se deseja estudar uma teologia sistemática em diálogo com as

ciências modernas. Vale recordar que sua teologia, além de ser formulada

em cima dos pilares que sustentam a razão moderna, se dedica também

às questões antropológicas desta época como elemento básico da

teologia fundamental. Ao estudar o homem, ele o situa como

“naturalmente religioso”, indicando assim, o destino de tal homem13.

Devida à vastidão da sua produção acadêmica, torna-se muito difícil

entrar em detalhes sobre sua produção bibliográfica, por isso aqui serão

apenas mencionados alguns dos livros que sintetizam momentos da

carreira teológica de Pannenberg; ou então obras que estão diretamente

ligadas à finalidade deste estudo.

Além da obra “Revelação como História” uma outra obra que marca

a trajetória teológica de Pannenberg é a que ele publicou em 1964 com o

título original de “Grundzuge der Christologie” - Fundamentos de

12 Cf. http://www.theology.ie/theologians/pannen.htm, p. 13, 02-04-2007. 13 Cf. A. Martinez Camino. Op. Cit. p. XIV.

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Cristologia. Nessa obra ele valoriza o encontro com os dados históricos

que deram origem à fé cristã14.

No ano de 1967, Pannenberg publica a obra “Teologia e Reino de

Deus” – Theology and Kingdom of God15, fruto da compilação de várias

conferências realizadas por ele nos Estados Unidos entre 1966 e 1967

sobre Deus, a Igreja e Ética. Em 1973 foi publicado “Wissenschaftstheorie

und Theologie”16, teoria da Ciência e Teologia, em que Pannenberg

define teologia como a ciência de Deus, não somente da religião cristã,

mas de outras religiões históricas que têm o caráter de perguntar sobre a

verdadeira realidade de Deus.

A partir do momento em que Pannenberg elaborou os fundamentos

epistemológicos para formular sua teologia, ele voltou sua atenção para o

antropológico. Em Valencia publicou “Antropologia Cristiana y

Personalidad”17. Com esta obra ele constata que uma das contribuições

básicas da tradição judaica-cristã foi o desenvolvimento da idéia da

singularidade da existência humana e afirma que cada um constitui o

ponto com o qual coincidem claramente a experiência da historicidade do

homem e a consciência de sua personalidade. Isto porque a idéia da

personalidade se refere à singularidade do indivíduo. É em nome desse

personalismo que proclama o valor infinito do ser humano. No entanto ele

reconhece que tal personalismo desencadeou também o amplo

secularismo18 e subjetivismo19, instaurando no homem uma liberdade

14 SANTANA, Marcos Antônio de. Op. Cit. p.86. 15 Cf. Ibid., p.86. 16 Cf. Ibid., p.87. O atestado epistemológico para a teologia é uma das grandes preocupações de W. Pannenberg, ele mesmo vai afirmar em sua antropologia na perspectiva teológica que uma teologia nos tempos atuais só será de fato reconhecida se assumir, não uma postura de qualquer superstição, mas assumir um caráter cientifico de universalidade. Cf. Antropologia em perspectiva Teológica – Implicaciones religiosas de la teoria antropológica. Salamanca: Sigueme, 1993, p. 20. 17 Cf. Ibid., p.89. 18 Conforme o Dicionário Aurélio Secularização se define como ato de secularizar, ou seja, fenômeno histórico dos últimos séculos, pelo qual as crenças e instituições religiosas se converteram em doutrinas filosóficas e em instituições leigas. Claro que quando se busca as raízes mais profundas da secularização se depara com questões e problemáticas muito mais complexas do que a definição acima. Para melhor aprofundar esta temática Cf. Wolfhart Pannenberg. How to Think About Secularism e When Everything is Permitted. In: www: theology.il/theologians/pannen.htm, 02-04-2007. Mario de França Miranda. A Igreja Numa Sociedade Fragmentada. São Paulo: Loyola, 2006. Steven Connor. Cultura Pós-Moderna –

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sem limites e que diante de tais elementos o cristianismo deve assumir

uma postura crítica e dialógica 20.

Ainda buscando responder às inquietações sobre o homem, mais de

vinte anos depois de Pannenberg ter publicado o estudo intitulado “was ist

der Mensch?”21, ele publica outra obra de grande densidade de conteúdo

“Anthropologie in Theologischer Perspektive”22, Antropologia na

Perspectiva Teológica. Tal obra de grande profundidade antropológica

realiza uma verdadeira odisséia sobre a história humana, perpassando

por vários elementos da cultura humana ocidental. Todo tematizar

antropológico evidencia que é no ser humano que se fundamenta a

formulação teológica e que o homem tem em sua própria natureza traços

de Deus. A antropologia deixa de ser puro debate filosófico e vai além,

entrando na dimensão religiosa. O homem se abre para Deus numa

atitude de fé.

No ano de 1996 Pannenberg publica três grandes obras, uma das

quais intitulada Theologie und Philosophie (Teologia e Filosofia), em que

o autor procura interagir o caminho histórico das duas ciências, através de

um diálogo sólido e profundo. Outra obra deste mesmo ano é Ethik und Ekklesiologie ( Ética e Eclesiologia), na qual o próprio autor diz que busca

abordar o tema da ética no contexto eclesiológico e em relação à doutrina

da igreja. Por fim, a outra obra que compõe essa tríade de 1996 é

Grundlagen der Ethik (Fundamentos da Ética), em que Pannenberg faz

Introdução às teorias do Contemporâneo. São Paulo: Loyola, 1993. Gilles Lipovetsky. A Era do Vazio. Lisboa: Gallimard, 1983. Jean Baudrillard. A sociedade de Consumo. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70,1995. 19 É um termo moderno que designa a doutrina que reduz a realidade ou os valores a estados ou atos do sujeito ( universal ou individual). Nesse sentido, o idealismo é subjetivismo porque reduz a realidade das coisas a estados do sujeito (percepções ou representações). Analogamente, fala-se de subjetivismo moral e subjetivismo estético quando o bem, o mal, o belo ou o feio são reduzidos às preferências individuais. Cf. Nicola Abbagnano. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes. Verbete Subjetivismo. 20 SANTANA, Marcos Antônio de. Op. Cit. p.89. 21 Cf. Ibid., p.85. Esta obra foi traduzida para o espanhol Pela editora Herder em 1976, com o título El Hombre como Problema – Hacia uma antropologia teológica. Tal obra pode ser considerada o prenúncio da grande obra de antropologia produzida por Pannenberg que será apresentada alguns anos depois com o título de Antropologogie in Theologischer Perspektive. 22 Cf. Ibid., p.90. É exatamente a obra para a qual nos voltaremos com maior intensidade no estudo a que nos propusemos realizar. O autor apresenta com singular profundidade uma abordagem ampla e complexa sobre o homem, fundamentando-se no pensamento moderno traz uma base sólida para justificar uma antropologia teológica, onde a dimensão religiosa do ser humano se faz indispensável.

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um longo intinerário pela ciência da ética e busca mostrar que teologia

dogmática protestante e ética não se separam, mas se complementam.

Antes de citar a obra magna de Pannenberg que são os três

volumes da teologia sistemática, vale lembrar que sua obra se estende

numa ampla produção acadêmica entre livros, artigos e outros. Alguns

artigos mais atuais do autor como When Everything is Permitted ou How

to Think About Secularism23, indicam um posicionamento profundo e claro

do autor sobre o tema da modernidade e do secularismo.

Antes de encerrar cabe lembrar os três volumes de Teologia

Sistemática, a “Systematische Theologie”24 I, II, III que, com certeza, foi a

obra maior de Pannenberg. Estes três volumes representam a maturidade

de um pensador que levou toda sua caminhada intelectual com grande

seriedade. É uma densa e profunda caminhada pela teologia ocidental

desde a teologia clássica até nossos dias. Nessas obras, fica claro o

grande conhecimento que Pannenberg apresenta da patrística grega e

latina, além de todo itinerário da filosofia ocidental. Pode-se concluir

dizendo que Pannenberg é um dos grandes teólogos protestantes da

contemporaneidade25. Aberto aos tempos atuais e com um paradigma

interdisciplinar que caracteriza o seu fazer teológico, ele consegue propôr

através da teologia um cristianismo autêntico, bem fundamentado,

consistente e plausível de ser apresentado à sociedade secularizada do

mundo atual.

2.2 Alguns pressupostos para compreender o homem: as dimensões de corpo e espírito

23 Cf. http://www.theology.ie/theologians/pannen.htm, p. 13, 02-04-2007. Além dos artigos citados o site apresenta outras publicações de Pannenberg como também de outros teólogos da atualidade. 24 PANNENBERG,W. Teologia Sistemática trad. italiana Volume 2, 1994; Volume 3, 1996; Brescia: Queriniana,. Tradução espanhola, Volume I , Madird: UPCO, 1992. 25 ACOORDINI, Giuseppe. Wolfhart Pannenberg. São Paulo: Loyola, 2006. Diz este autor na p. 22. Pannenberg dá a impressão de um detetive brilhante, porém meticuloso, que repercorre repetidamente os seus passos em busca de novos fios condutores, sem o temor de desafiar o que parece óbvio ou de pensar o impossível. Evita perseguir a retórica do efeito e desdenha um brilhante objeto para si próprio.

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2.2.1 O Corpo como dimensão essencial do homem

O problema que aparece de imediato, quando se fala do ser humano

é exatamente o de sua presença no mundo, e tal presença se dá através

de seu corpo. É o corpo que mediatiza o revelar visível do ser humano e

a corporeidade surge como fato essencial para a autocomprensão do

homem.

Pannenberg, ao retomar o pensamento clássico para definir o

corpo do homem, demonstra que sempre esteve presente uma visão do

corpo como instrumento da alma. Em Platão, ele é visto como uma prisão

para a alma humana. Também a escolástica se deteve nesta forma de

definir o corpo humano, justificando-se na idéia do pecado e da queda

humana. Ainda, sustentando-se nas bases do pensamento de Platão, o

corpo foi compreendido como uma realidade inferior e o grande drama

humano, seria superar esta realidade inferior através do domínio do

próprio corpo pela força da alma26. Ao homem cabe superar a corrupção

e a decadência moral, ocasionadas pelo corpo e tal superação será

através da força da alma superior. É nesta linha que cabe lembrar o

ascetismo medieval, em que se buscava purificar o corpo dos desejos e

do pecado através de práticas de exercícios (ascese).

No Renascimento e na Idade Moderna houve transformações na

maneira de olhar para o corpo humano. Nesse período da história, o

corpo era visto como objeto da ciência, perdendo a sua dimensão

sagrada. Na forma moderna de abordar o corpo, dois autores que muito

contribuíram para uma nova forma de entender o corpo humano foram R.

Descartes27 e T.Hobbes. O novo jeito de fazer ciência, proposto por eles,

serviu para instrumentalizar o corpo humano, comparando-o com uma

máquina racional. Esta nova visão do corpo humano será de grande

26 PANNENBERG, W. Teologia Sistemática 2. trad. Do alemão. Dino Pezzeta. Brescia: Queriniana, vol. II, p. 212. A partir da presente citação, quando nos referirmos a esta obra indicaremos autor, página e seu título abreviado por TS2. 27 Cabe esclarecimento, no que se refere a Descartes, o tratamento dado à res cogitans e à res extensa. A res cogitans é claramente distinta do mundo corpóreo, fazendo parte do mundo espiritual. Já a res extensa é o mundo material. Pannenbeg, como cristão, compreende a unidade corpo-alma e não uma visão dualista.

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significado para entender o homem na modernidade. Se na compreensão

platônica o espírito se sobrepunha ao corpo, agora o homem se volta

com toda intensidade para a natureza, criando um novo desequilíbrio

entre corpo e espírito. Acentua-se a natureza e a matéria, não mais o

espírito como acontecia em Platão28.

O auge da visão moderna de homem, na sua dimensão corporal,

dar-se-á na física de I. Newton que apresenta uma nova leitura para a

“dynamis” ao afirmar que a força vem da natureza. Tal afirmação faz a

dissociação definitiva de qualquer relação com a idéia de Deus29,

colocando o homem, deste modo, na centralidade do mundo.

Ainda, ao tratarmos do corpo na perspectiva da antropologia

teológica de Pannenberg, cabe lembrar que ele é afirmado como parte

fundamental do ser humano, como uma dimensão da totalidade

complexa que é o homem. É nessa perspectiva que se situa o

pensamento de Pannenberg. O corpo como diz ele : “é o núcleo mais

íntimo de nossa própria pertença material”30. Assim, o corpo se torna

base indispensável para referir-se ao eu e ao si mesmo31, já que não tem

como se referir ao ser humano senão no espaço e no tempo, ou seja,

constituído de uma corporeidade.

Pannenberg observa que o corpo possibilita ao homem fazer

rupturas consigo mesmo e sair de si numa atitude de excentricidade32. A

28 É somente no pensamento de Baruc Espinoza com seu Tratado Teológico Político que haverá um esforço de unidade e equilíbrio para a relação corpo – espírito. Nesta obra ele defende a idéia do paralelismo, onde corpo e espírito se harmonizam sem causalidade hierárquica, havendo sim, uma correspondência entre ambas categorias. Espinoza, busca preservar no homem, também como corpo, a dimensão de criatura de Deus. LUCIA, Maria de Arruda Aranha; HELLENA, Maria Pires Martins. Filosofando –Introdução à Filosofia. São Paulo: Moderna, p. 311-318. 29 PANNENBERG, W. Op. Cit. p. 98. 30 PANNENBERG,W. Antropologia En Perspectiva Teologica. Implicaciones religiosas de la teoría antropológica. Trad. do alemão por Miguel García-Baró. Salamanca: Ediciones Sigueme, 1993, p. 255. Esta obra constitui aqui texto fundamental para abordarmos o tema da antropologia em Pannenberg e será essencial para nosso estudo. Para nos referirmos à ela usaremos o Nome do autor, página e a abreviação APT para indicar o título da mesma. 31 A idéia da compreensão relacional do eu com o si mesmo está sustentada na compreensão moderna de autoreflexão, onde a consciência humana se volta para si própria se transformando em objeto do pensar. E´ neste diálogo entre consciência que se faz sujeito e objeto do pensamento, que o homem busca a unidade da autocompreensão do próprio homem como existência. Pannenberg faz um profundo caminho pela psicologia passando por G.H. Mead, Erikson, Fchte, Kant. Para Kant tal problema constitui o fundamento da unidade de toda experiência. Pois a consciência de que penso os conteúdos de minha consciência, tem que poder acompanhar a todas minhas representações. Cf. PANNENBERG, W.APT. p.250. 32 Cf. Ibid., p. 101.

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experiência da corporeidade humana é uma experiência de limite e de

superação. Há momentos de fracassos e de conquistas no tomar

consciência do próprio corpo, mas é no esforço, elaborado pela razão e

pela linguagem, que o homem transcende ao próprio corpo e se mostra

com índole extracorporal, criando, assim, uma tensão com a sua

finitude,33 que tem fundamento visível no próprio corpo. Desse modo,

corpo e alma constituem o que Pannenberg chama de unidade do viver

humano; alma e consciência são profundamente radicadas na

corporeidade do homem e, vice-versa, o corpo humano não é um

cadáver, mas realidade animada em todas as suas expressões vitais34.

Para afirmar o ser humano numa unidade corpo e alma, Pannenberg não

descuida de distanciar-se de Platão, nem das tendências gnósticas que

apresentavam o corpo como realidade inferior e prisão para a alma. Ele

caminha pelas veredas da patrística, em que há um esforço da Igreja dos

primeiros séculos em elaborar uma compreensão cristã da pessoa

humana integral. Em tal perspectiva, corpo e alma são igualmente

criados por Deus e são bons, fazendo parte da vontade criadora de Deus.

Pannenberg expõe que a totalidade do indivíduo como pessoa é

uma realidade que vai sendo construída, elaborada no complexo de corpo

e espírito que é o ser humano. Desse modo, o ser humano como abertura

ainda não está definitivamente pronto, mas vai se produzindo na sua

história, na qual, constantemente em dialética, estão a identidade da

pessoa como eu e a continuidade na historia como si mesmo, que abre

numa atitude de excentricidade ao mundo,35à sociedade e a Deus. Não é

33 Cf. Ibid., p. 102. A dialética vivida pelo ser humano, como ser corporal, pertencente à natureza, mas ao mesmo tempo ser que deseja superar tal natureza é um marco na história da cultura humana. Aqui se instaura o que na filosofia se chama segunda natureza, ou seja, o homem cria a cultura. Este conflito que o homem vive diante de sua existência será de certo modo superado com o emergir da razão e da elaboração de uma cadeia de costumes e valores, preservados dentro da sociedade. Cassirer, ao invés de definir o homem pela razão, prefere usar em sua obra Ensaio sobre o Homem A compreensão de homem simbólico, adentrando assim, mais na dimensão cultural e religiosa do homem. Cf. CASSIRER, Ernst. Ensaio Sobre o Homem. São Paulo: Martins fontes, 1997. 34 PANNENBERG, W. Op. Cit. p.210. Ainda neste tema do corpo, Pannenberg recorda que paralelo a visão de unidade do corpo e alma sempre esteve presente na visão cristã do ser humano a visão dualista de homem, visão de procedência helenista, onde compreende as dimensões corpo e alma como duas substâncias. 35 Na problemática da identidade, Pannenberg trabalha longamente os estudos da psicologia behaviorista e da psicanálise de S. Freud. A primeira muito voltada para os comportamentos humanos exteriorizados nos dados empíricos corporais encontrados no indivíduo. Freud, por sua

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o homem como corpo ou como espírito que participa deste processo de

se construir no mundo como pessoa, mas é a pessoa como unidade que

continuamente vai se elaborando nas dimensões corpóreo-espiritual.

Conclusão Tratar o homem como totalidade e buscar situá-lo dentro de uma

visão integral sempre foi dificuldade para todas as ciências. Os grandes

equívocos na forma de compreender o homem se instauraram na leitura

dualista da pessoa humana, sustentada em abordagens equivocadas do

mesmo. A compreensão da realidade humana, que parte do princípio

dualista, representa uma longa história na cultura ocidental, vindo desde

as releituras distorcidas de Platão ou de textos sagrados que tratam das

dimensões corpo e espírito, até chegar em nossos dias. As reflexões

sobre o homem quase sempre tenderam a valorizar em excesso o espírito

menosprezando o corpo ou, ao contrário, como se vê na cultura atual,

em que o corpo é supervalorizado em detrimento da dimensão espiritual.

A antropologia teológica busca superar a visão secionada de

homem e tenta retomar a idéia presente na criação que apresenta o

homem como uma totalidade composta por dimensões: corporal e

espiritual. Esta visão de homem como totalidade está presente na

antropologia de Pannenberg e, apresenta seu ponto culminante na

realização do homem em Deus. Se o corpo é uma categoria fundamental

para Pannenberg, ele não é abordado de forma isolada, mas fazendo

parte de uma totalidade que é o homem . Este homem composto de

corpo e alma, lembra Pannenberg, aparece como imagem e semelhança

de Deus.

Por fim, fica claro em Pannenberg, que sua visão moderna de

pessoa não se restringe às dicotomias e dualismos evidentes em tal

época; ao contrário, ele busca uma perspectiva de leitura do ser

humano como sujeito integrado e aberto para a construção de sua

vez, situa o indivíduo no universo das pulsões e dos desejos. Para Pannenberg a resposta mais profunda para a identidade humana vai além da realidade humana, pois se trata da sua condição de incompletude, possibilitando a sua abertura a algo maior, que é Deus.

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identidade como indivíduo. Neste sentido, cabe ainda trabalhar a outra

dimensão que constitui parte essencial do ser humano que é o espírito,

para somente mais adiante, podermos entrar na abordagem da pessoa

como liberdade, como transcendência e como sujeito de relações.

2.2.2 O espírito humano na antropologia teológica de Pannenberg

2.2.2.1 A abordagem de espírito na antropologia filosófica

Depois de ter apresentado algumas características da categoria de

corpo em Pannenberg, outra dimensão que se faz essencial para

compreender a antropologia pannenberguiana é a constituição do

homem como dimensão espiritual. Tal dimensão foi vista no decorrer da

antropologia como a fonte originária da vida, e constitutivo dinâmico da

mesma no processar da história. Faremos uma breve conceituação de

espírito a partir da antropologia filosófica e em seguida apresentaremos,

também uma sintética compreensão da temática na perspectiva bíblico-

cristã, conforme o pensamento de W. Pannenberg. É no entendimento do

homem como ser espiritual que se poderá falar da abordagem do homem

como homo religiosus em Pannenberg. Todo percurso que Pannenberg

faz pela filosofia e por outras ciências para chegar a uma tematização de

espírito revela-nos como objetivo alcançar a fundamentação teológica do

antropológico. Pode-se dizer que o espírito, como parte da totalidade do

homem, lança este homem para além dele mesmo na busca de algo

maior, ou seja, Deus.

O homem assume sua vida como intencionalidade, interiorizando o

mundo e elaborando para si um mundo interior, tomando, assim,

consciência de si mesmo. Aqui se pode dizer que o homem elabora a

noção de sujeito consciente, para daí avançar até a categoria de espírito

como parte integrante do ser pessoa.

A noção de espírito, como sopro animador, ou aquilo que vivifica,

fez-se presente durante toda história deste conceito até a modernidade. É

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no pensamento moderno que esta compreensão passará por alterações

de forma definitiva. Hegel é quem apresenta uma nova maneira de afirmar

a idéia de espírito. Ele o classifica através de três adjetivos: subjetivo,

objetivo e absoluto. O espírito objetivo é apresentado por ele como as

instituições fundamentais do mundo humano (direito, moralidade e

eticidade), o espírito subjetivo é o espírito finito como (alma, razão e

intelecto); já, o espírito absoluto é apresentado como o mundo da arte, da

religião e da filosofia. Nesta compreensão, o espírito objetivo e o espírito

absoluto fazem a superação da dimensão subjetiva tornando-se realidade

histórica universal. Aqui se instaura o mundo dos valores36.

Pela definição acima, verifica-se uma noção de espírito em que o

homem supera a sua mera existência de finitude e se eleva ao horizonte

do definitivo. A presença do verdadeiro e do definitivo nos processos

históricos, que às vezes são processos também de fracassos e

transitoriedade terrenal, pode ser definida como espírito37. É na história,

pela experiência da cultura, vivenciada na subjetividade humana, que a

pessoa chega ao entendimento do seu ser espiritual. Aqui não há razão,

lembra Pannenberg, para voltar à noção tradicional de espírito que

apresenta um dualismo antropológico, como na teoria das duas

substâncias, defendidas por Descartes ( res extensa e res cogitans).

Pannenberg faz uma definição de espírito, que se distingue das idéias

puramente filosóficas, sendo que estas partem do fenômeno da

consciência e da subjetividade, ele afirma:

“O espírito no sentido em que eu uso esta palavra, não deve ser entendido, partindo do fenômeno da consciência e subjetividade _ no sentido da unidade da vida social e da vida cultural, assim como o nexo próprio da história ( na abertura e inconclusão de seus processos). A todos estes fenômenos lhes são comuns a presença eficaz de uma esfera de sentido que está dada de antemão aos indivíduos e que sobrepassa e constitui sua existência, uma esfera de sentido que se franqueia, ao menos parcialmente, no viver dos homens, e a cuja configuração, estes fazem sua contribuição, porém não é produto seu”38.

36 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Verbete: Espírito, p.354-356, São Paulo: Martins fontes, 1998. 37 PANNENBERG, W. APT. p. 656. 38 Cf. Ibid., p. 657. Nas paginas que seguem Pannenberg apresenta também a definição diltheiniana de espírito que parte de uma representação como força vital que se manifesta através da atividade dos indivíduos como energia do gênero, aí explica a idéia de e dos nexos estruturais do viver humano.

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33

Quando define o conceito de espírito, Pannenberg interage com

outras definições já existentes, principalmente a hegeliana, mas a sua

definição como visto acima apresenta algo específico nesta categoria. Ele

apresenta a afirmação do espírito num horizonte de abertura, de

incompletude. Se a temática filosófica sempre buscou afirmar as

realidades em conceitos fechados, aqui surge a novidade: o espírito se

abre como excentricidade. Além da abertura, outro aspecto que parece

ser marcante em tal definição é que o espírito não tem em si a totalidade

de si mesmo. O conceito não alcança toda realidade, como queria Hegel.

O espírito, conforme Pannenberg, possui algo que está além dele, algo

que vem de fora. Neste sentido o espírito como realidade humana, em

Pannenberg, recebe como na definição bíblica, algo que vem de Deus, ou

seja, o sopro divino.

Ainda aprofundando a reflexão sobre a temática do espírito,

Pannenberg coloca uma dificuldade em tematizar tal conceito na

antropologia, pois este seria suficientemente examinado em seus

problemas e implicações, somente no âmbito da ontologia geral. A

antropologia se contenta em dar as indicações a respeito do problema de

fundamentação do conceito de espírito. Em contrapartida, ao tema do

espírito, além dos elementos antropológicos, cabe fazer um nexo com a

linguagem da tradição bíblica e da doutrina cristã, para assim ampliar o

alcance na compreensão de tal conceito. É nesta perspectiva que

buscaremos apresentar elementos característicos da abordagem do

espírito a partir da linguagem bíblico-cristã em Pannenberg.

2.2.2.2 O espírito como dimensão da pessoa humana na linguagem bíblico-cristã

A Escritura não fala primordialmente de espírito relacionando-o com

o princípio da consciência, mas o espírito é apresentado como origem da

vida. O espírito, para o Israel antigo, é o próprio espírito criador de Deus

(Gn, 1,2) É este espírito que dá vida às criaturas, às plantas e aos

animais; ele é força “dynamis” que sustenta a vida (Sl, 104,30). Nesta

compreensão a vida é sustentada pelo espírito de Deus, pois na ausência

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34

dele, ela se tornaria um nada. Pannenberg lembra a passagem de Gn 2,7

quando na narração do mito da criação Deus, ao fazer o homem, sopra

em suas narinas o hálito de vida, ou seja, o seu “ruah”. Se Deus

reclamasse de volta o seu espírito e retomasse seu sopro de vida, toda

carne morreria ao mesmo instante e o homem retornaria ao pó (Gn

34,14s)39. Na morte o corpo é dado à terra e o espírito é devolvido a

Deus, pois o homem na sua arrogância e convencimento impossibilita que

o espírito doado por Deus esteja nele para sempre ( Gn 6.3). Nesta

perspectiva, a morte surge para o homem como uma ruptura no princípio

da vida doada por Deus na criação. Tal ruptura é também emancipação e

independência contra a origem divina da vida. Somente no futuro, quando

a ressurreição dos mortos acontecer, é que a vida retornará à sua origem

na união com Deus numa vida imortal40.

Mesmo nas contradições da vida, o homem carrega uma contínua

esperança que o sustenta no caminho e o eleva acima de suas fraquezas.

Ele espera a plenitude da vida em Jesus Cristo, pois é nele que confirma

a nossa ressurreição. Paulo afirma que a ressurreição é o grande desejo

humano e a máxima que fundamenta a fé do homem (I Cor. 15). Tal

esperança já se faz presente na vida do povo de Deus desde o pós-exílio

e é sustentada na força do espírito. É pela força do espírito, como

esperança, que o homem se projeta para mais além de si mesmo, ele

se identifica como espírito e se eleva até o mais alto de seu desejo. No

pensamento de Pannenberg este desejo do homem se expressa de forma

clara na salvação anunciada e trazida por Jesus, em que o ser humano é

associado e introduzido no reino de Deus.

Ao pensar o espírito nesta dimensão antropológico-cristã, verifica -se

que ele não é algo próprio do ser humano, como essência, mas ele

sobrevém ao homem; o espírito é algo que o homem recebe, como de

39 PANNENBERG, W. TS2. p. 210 et. seq. 40 PANNENBERG, W. APT. p. 660. É este retorno a Deus que move o ser humano no seu existir, mesmo quando na sua trajetória de liberdade, o homem se equivoca como um ser errante pelo mundo; também nos erros cometidos por ele, é a esperança que o sustenta. É o espaço religioso, como marca mais profunda da esperança humana, que se abre como horizonte reconciliador entre homem e Deus. Assim a religião adquire uma força que vai além dela mesma. Ela tem o papel de propiciar ao homem uma força espiritual maior que ele mesmo e o mesmo em suas fraquezas encontra algo muito maior, ou seja, infinito e pleno. Este algo, na denominação teológico-cristã não tem outro nome senão Deus.

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fato o recebeu e, tal espírito atua nele, mas sem ser idêntico a ele,

porém somente graças à atuação do espírito que o homem é de fato

homem.

A expressão pneuma é uma forma corrente para se falar do espírito

nos escritos neotestamentários e no judaísmo helenístico. Tal expressão

aparece também com o significado de alma em suas funções

cognoscitivas e emocionais. Fala-se também de espírito divino que

contrasta com a alma humana, mas a alma é sempre vista como o alento

de vida, doado por Deus ao homem. A alma (nefesh) não é um

componente do homem que é adicionado ao corpo, como apresenta o

pensamento dualista de Platão e Descartes, mas sim, é este ser corporal

que é vivo41. Nesta perspectiva, também pensava a igreja latina, quando

afirmava a alma como forma essencial do corpo do homem; no entanto, a

vida do corpo é efeito do espírito vivificante de Deus. O divino Espírito

criador faz o homem possuir em si mesmo a vida42, sendo que o espírito

se faz presente inteiramente no homem, sem se converter em parte dele.

É pela dinâmica do espírito que o homem experimenta o movimento de

transcendência, colocando-se para além da existência corporal própria e

se lança no mundo, onde de fato, a vida se realiza43.

É na experiência da dinâmica do espírito, e associando-se a ela, que

o homem busca construir sua vida e seu sustento físico e espiritual; ele se

abre aos outros, fazendo a experiência de se elevar acima de sua própria

finitude. Este elevar acontece pela consciência humana, na qual o homem

mostra-se maior que qualquer outro ser vivente que não seja ele mesmo.

Pode-se afirmar que a consciência possibilita ao ser humano reter

no presente, através da linguagem, o passado e o que já é ausente;

deste modo, a consciência desenvolve no homem o poder de superar o

tempo, proporcionando um vislumbre de eternidade, antecipação do

futuro44.

A intenção de autotranscendência como característica do espírito,

leva o homem a almejar seu destino, que é o amor salvador de Deus. No 41 Cf. Ibid., p.661. 42 Cf. Ibid., p. 661. 43 Cf. Ibid., p. 661. 44 Cf. Ibid., p. 663.

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sentido bíblico, o destino do homem, como esperança, é caracterizado

pela experiência de fé, conforme se confirma na Carta aos Hebreus: “A fé

é um modo de possuir desde agora o que se espera, um meio de

conhecer realidades que não se vêem”. A busca de compreender o

homem e sua história, como processo de formação de um caminho até o

futuro desejado como destino próprio deste homem, é já antecipar a sua

meta como missão que se realiza na história. Tal caminho, para a

esperança futura, constitui a identidade do homem diante de si mesmo,

revelando-se também, como identidade de toda humanidade.

Pelo visto até este momento, o espírito se faz presente no

movimento extático da vida e, através da consciência humana mediando

a identidade e possibilitando a superação do tempo, o homem se torna

independente, ou seja, ele se faz sujeito de ação responsável. O ser

humano age pela atuação do espírito e é neste espírito que o homem se

torna pessoa e se distingue dos demais,bem como se distingue da

verdade das coisas45.

O homem constrói a sua identidade como pessoa e busca sua

autoconstrução no caminho da subjetividade livre. Ele retira a sua vida da

origem do espírito divino e busca fundá-la em si mesmo. Aqui remete ao

estado de queda e de morte que marcam a vida humana. A vida humana

é marcada pelo limitar da vida divina no espírito, abrindo no homem um

estado de perversão e fechamento em si mesmo. Tal estado, retira o

homem de sua trajetória de excentricidade e de participação, como

criatura, da eficácia do espírito.

O homem supera não só o estado de ruptura com sua origem, mas

também o da situação de perversão somente na experiência de

comunidade. É na vivência histórica, em unidade com outros, que o

homem faz a experiência de transcendência e de alcance da sua meta

como destino. Aqui fica claro falar de um espírito que perpassa a história,

uma época e uma cultura. Tal Espírito, dentro da antropologia cristã, é

proveniente de Deus, e penetra no acontecer da vida, suscitando o

homem a voltar-se para a unidade com ele na experiência da fé e do

45 Cf. Ibid., p. 667.

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amor. O homem, pela fé, abandona o percurso de fechamento e se volta

para o seu verdadeiro destino de imagem e semelhança de Deus. O

modelo perfeito a ser seguido é Jesus Cristo, como lembra Paulo aos

Coríntios:”Cristo que é imagem de Deus” (2Cor. 4,4)46.

No que se refere à temática do espírito vale encerrar com as

palavras exatas de Pannenberg, quando este apresenta o futuro

escatológico como realização plena do homem na sua compreensão

como pneuma. Assim, a plenitude da vida, segundo o espírito, dar-se-á no

manifestar pleno do reino de Deus. “A presença do futuro escatológico na vida da igreja, é de um modo especial, a obra do Espírito. A vida do fiel e a vida da comunidade eucarística, que é a Igreja, está marcada mediante o Espírito, pela participação antecipativa no destino definitivo do homem. O Espírito é a primícia e o dom da vida nova e imperecível, que já apareceu em Cristo ressuscitado (Rm 8,23;2Cor. 1,22; cf. I Cor. 15,20) Esta nova vida já não se acha separada de sua origem no espírito de Deus, ao contrário, está penetrada por ele (I Cor. 15,44s) e é precisamente por Ele imortal47.

Conclusão Compreender o homem como ser espiritual, exige também,

considerar a longa trajetória das reflexões antropológicas. A solução

harmoniosa de suas dimensões, num equilíbrio perfeito, ainda parece

desafio; mesmo que não o seja no mundo da reflexão, torna-se visível no

mundo da vivência. Uma leitura fragmentada do homem percorreu longos

séculos da história do pensamento, iniciada com a visão dualista

platônica e as distorções do conteúdo bíblico e, na modernidade,

continuada com a idéia das substâncias apresentada por R. Descartes.

A compreensão de homem às vezes acentuou muito o espírito,

esquecendo sua dimensão corporal ou se dedicou maior atenção ao

corpo menosprezando o espírito. Equalizar tais dimensões de forma

integrada ainda é um ideal desejado para a antropologia.

O pensamento cristão, sustentado nas bases bíblicas, apresenta o

homem como uma totalidade integrada. O pecado e a queda não

impossibilitam ao homem de encontrar o seu destino final que é viver em

46 Cf. Ibid., p.670. 47 Cf.Ibid., p.672.

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plenitude a sua realização como pessoa. Tal realização se dá na

superação das fragilidades psico-corporais e na elevação do espírito até

sua plenitude infinita que é Deus. 48

Por fim, Pannenberg, como cristão vê a plenificação do espírito

humano somente realizada em Deus, através de Jesus Cristo. Em Jesus

Cristo nos tornamos filhos no Filho. O momento escatológico aparece

como decisivo para a plenificação da vida segundo o espírito. É o

momento em que o espírito finito alcança o seu infinito no Espírito de

Deus. De certo modo o homem volta à sua origem, agora revelada

plenamente na imagem do Filho de Deus. Sobre a temática da realização

plena do homem em Deus, aqui nos referimos a ela somente para indicar

o evoluir da dimensão espiritual do ser humano, mas voltaremos a este

tema com maior aprofundamento quando trabalharmos os fundamentos

teológicos da argumentação antropológica de Pannenberg, embora já

tendo anteriormente apresentado alguns elementos que caracterizam as

dimensões corpo-espírito, ou seja, o homem como pessoa. Nosso

próximo passo será buscar situar tal homem no contexto da modernidade.

Isso será feito pela indicação de algumas características do momento

moderno e também da relação indivíduo – sociedade.

2.3 O homem e a modernidade secularizada

Ao estudar o pensamento de Pannenberg e também a sua

antropologia, surge daí a necessidade de situar o homem no cenário da

48 A incompletude e imperfeição do ato espiritual, no nosso espírito finito, não apontam para a incompletude e imperfeição do que é inferior – das coisas sujeitas ao fluir do tempo - mas para a plenitude e perfeição do Espírito infinito cuja presença abre, no cerne mais intimo do espírito finito _ interior intimo _ a ferida de uma indigência essencial que espera e apela pelo dom de uma vida divina. HENRIQUE, C.L. Vaz. Antropologia Filosófica I. São Paulo: Loyola, p. 242, 1993. Esta citação, presente no texto de Lima Vaz, remete à Célebre obra de Santo Agostinho, Confissões, tal obra mostra a trajetória existencial de Agostinho e uma verdadeira exposição biográfica do mesmo. O mais expressivo nesta obra , talvez seja, a apresentação da inquietude humana no seu peregrinar no mundo, antes do encontro definitivo com Deus. Agostinho apresenta um homem de coração inquieto até que descanse em Deus. Parece ser exatamente esta esperança de se descansar em Deus, como destino do homem, que faz tais princípios muito similares aos apresentados na antropologia teológica de W. Pannenberg.

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modernidade, uma vez que tal autor tem um amplo diálogo com este

momento histórico. Sem negar o longo itinerário que Pannenberg realiza

pela antropologia filosófica e pela teologia do período clássico, ele

também apresenta, de forma profunda e elaborada, uma ampla visão da

modernidade e constrói com ela um diálogo extremamente promissor para

os resultados de sua produção teológica.

Aqui buscaremos apresentar alguns elementos que caracterizam o

mundo moderno para mais adiante, ainda neste capítulo, trazer à

compreensão como a modernidade incide na vida do homem e na

antropologia cristã proposta pelo autor estudado.

Já se pode afirmar de antemão, partindo da antropologia de

Pannenberg, que o cenário moderno, onde formulam as críticas à religião

de autores como L.Feuerbach, K. Marx, F. Nietzsche e em Freud,

apresentando uma nova maneira de compreender o homem. É um

momento em que a fé religiosa e, de forma especial, o cristianismo perde

toda pretensão de credibilidade geral no contexto da vida humana49.

Deste modo, a reflexão sobre a fé não pode ser debatida no espaço da

superstição, mas deve desejar para si mesma uma validade como

verdade universal. Assim, ao contrário da ética e da moralidade que são

assumidas como problema de significância pública, o tema de Deus é

pensado como um problema exotérico para teólogos e pessoas que se

interessam por estas coisas50.

O secularismo, o relativismo e a exacerbação da subjetividade

aparecem como grandes desafios para a sociedade atual. O homem se vê

perdido no caminho para a busca da essência da verdade do ser que é

também a sua verdade. Perdendo-se no caminho para um conhecimento

substantivo do ser, ele se desorienta também na busca do ser Supremo,

que no universo religioso é afirmado como Deus; aqui se evidencia o

secularismo atual. Um dos pontos que é fundamento da atitude

secularista é que o sujeito reivindica para si um valor absoluto, ele

49 Cf. Ibid., p. 20. 50 PANNENBERG,W. When Everything is Permitted. 1998, p.1. in: – 27-http://www.theolo gyie theologians/pannen.htm, 06-2007

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assume o lugar de seu Criador, esquecendo assim a sua dimensão de

finitude e de criatura.

O secularismo bem como a modernidade são marcados pela

característica do rompimento com a fé cristã. Diz Pannenberg que K.

Barth já havia afirmado que a cultura moderna tem sido a revolta contra a

fé cristã, visando colocar o ser humano no lugar de Deus51. No artigo, o

autor fala que não é fácil a relação com a modernidade para a fé cristã,

pois tal relação é ambivalente. Ao mesmo tempo que a cultura moderna

afeta o dia-a dia da fé e das pessoas ligadas ao cristianismo, puxando-as

para um estado de alienação e afastamento da mesma; é também a

modernidade que propicia aos cristãos ler e compreender a evolução da

modernidade e da cultura como tal. O autor recorda que a distinção entre

domínio secular e domínio religioso ou espiritual não é novo na história do

cristianismo, só que antes a distinção não era suficiente para fazer uma

separação radical, como vai acontecer na modernidade, principalmente a

partir da Reforma e das guerras religiosas deste período. Deste modo, a

religião não é mais elemento que funda a ordem universal da sociedade.

Agora, já na modernidade, o homem busca fundar a unidade social na

natureza humana e é neste período que surgem as teorias naturais de

governo, formuladas através da apresentação das teorias do contrato

social52.

Hoje argumentos de que a unidade da sociedade se sustenta na

unidade religiosa já é um posicionamento inadequado e que não tem

muita força, pois as pessoas saíram de um mundo da argumentação

teórica para um mundo da razão pragmática. As pessoas usam a razão a

serviço da técnica e da produção, mudando assim a maneira de

compreender a natureza e o mundo. Cabe entender que a emancipação

moderna da religião não foi intencional, mas resultado de um longo

período em que a sociedade vai se reelaborando sobre outras realidades

que não a fé religiosa. Pannenberg no artigo mencionado acima “Como

pensar sobre Secularismo” lembra que o secularismo é pensado por 51 PANNENBERG,W. How to think About Secularism. 1996, p.2. In: http://www.theology.ie /theologians/pannen.htm , 27-06-2007. 52Cf. Ibid., 1996, p.2. In: http://www.theology. ie/theologians/pannen.htm, 27-06-2007.

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alguns teóricos, como a secularização da esperança escatológica cristã53.

Assim, o conteúdo religioso é transformado em alguma coisa imanente

neste mundo. Ele constata, também, que os defensores da própria

modernidade pertencem como origem, ao cristianismo.

O que fica evidente, é que com o domínio da modernidade, esta

continuará penetrando em todos aspectos do comportamento individual e

social, colocando-se cada vez mais à margem a religião. O que

Pannenberg procura demonstrar é que o secularismo traz consigo um

grande sentimento de falta de sentido e um imenso vazio na vida e na

cultura, bem como muita insatisfação e violência como resultado. Assim, a

circunstância da sociedade secular moderna é a mais frágil que podemos

imaginar.

O pensamento de Pannenberg apresenta uma compreensão clara

sobre a modernidade e o secularismo. Segundo o autor não é se

apegando às posições tradicionalistas e fechadas que os problemas

serão solucionados, mas ao contrário, é abrindo-se ao diálogo racional e

verdadeiro, é que se poderão resolver as dificuldades surgidas no

contexto da modernidade. Desse modo, o cenário da modernidade

desafia a fé cristã e os valores humanos construídos ao longo do tempo e,

somente através de uma autocrítica, bem como uma crítica que faz

interrogações sobre tal realidade é que se poderá de fato afirmar os

valores da fé cristã de forma consistente para o homem54.

A antropologia teológica cristã procura dar respostas para os

desafios apresentados acima, elaborando uma visão de mundo e de

homem, que preserve os valores formulados ao longo da história.

Pannenberg está na fileira dos que trabalham um diálogo científico e

53 PANNENBERG, W. Op. Cit. 1996, p.4. In: http://www.theology.ie /theologians/pannen.htm, 27-06-2007. “Other theories of secularization have claimed that the modern belief in progress is a secularization of Cristian escatological hope. The hope for a better world is no longer directed toward another world, but becomes the human project to improve this world”. Não entraremos na distinção entre secularização e secularismo, mas buscaremos apenas mostrar algumas implicações da sociedade secularista no comportamento religioso da pessoa. 54 Cf. Ibid., 1996, p. 8. Nesta página expõe Pannenberg: “My argument is that, if we think it is necessary to protect divinely revealed truth from critical inquiry, we are in fact displaying our unbelief. Such inquiry, whele it may at times pose difficulties, will finally enhanee the splendor of the truth of God. Confidence in that truth –a confidence exhibited in proclamation and life –is the only adequate and worthy response to the challenge of secularism”.

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profundo com a modernidade, colocando a antropologia teológica na

condição de igualdade científica para debater tais problemas. Diante da

breve apresentação de alguns elementos que constituem o cenário da

modernidade e assumindo-a como pressuposto histórico no pensamento

de Pannenberg, apresentaremos também nesta perspectiva alguns traços

que marcam a relação do individuo com a sociedade.

2.3.1 A Relação entre Indivíduo e Sociedade

2.3.1.1 Tensão entre indivíduo e sociedade - fechamento e abertura

Aqui, apresentaremos alguns dados antropológicos como indicativos

da relação do indivíduo consigo mesmo, confrontando tais dados com a

dimensão social do indivíduo, ou seja, seu apelo para a vida em

sociedade. Um fechamento do homem em si mesmo desnorteia o seu

caminho, ocasionando um subjetivismo e um individualismo exacerbado e

egoísta, não possibilitando sua abertura para o próximo e, muito menos,

para o transcendente. Em Pannenberg, esta atitude do homem dificulta a

realização do plano de Deus, projeto que se efetiva na abertura e

aceitação do homem como imagem e semelhança de Deus.

Quando abordamos o homem na sua identidade, verificamos uma

infinidade de ações e características que o definem. Conforme seu

princípio de autonomia e de liberdade, ele é sujeito de suas próprias

ações. Ao homem, por si só, convém decidir de forma positiva para qual

fim deve se destinar a sua vida. Na busca livre, porém limitada pela

própria fragilidade, o homem procura a si como destino, ou seja, como

projeção para sua infinitude na sua realização pessoal. Nesse sentido,

cabe falar de um paradoxo presente na pessoa e que gera um constante

conflito de difícil solução. Diante deste conflito, o que resta ao homem é

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buscar o seu destino e verificar claramente para onde apontam seus

desejos55.

Não há como aprofundar a compreensão de indivíduo em

Pannenberg sem persistirmos na idéia que se faz presente na

antropologia teológica deste autor. Para ele, caracteriza-se como

indispensável a abertura ao mundo e à sociedade, e esta abertura deve

acontecer de forma corajosa, na qual a reflexão racional busca

aprofundar e questionar a realidade, partindo-se de princípios e conceitos

formulados no bojo desta mesma sociedade. É somente dentro de tal

contexto que se pode falar do homem como indivíduo e de sua relação

com a sociedade. É experimentando a história na sua periodicidade que o

homem se volta para o seu ser pessoa e busca os interesses que

caracterizam as preocupações sobre si mesmo. Para Pannenberg, a

relação indivíduo e sociedade sempre se instaura num lugar conflituoso,

mas tal relação se faz imprescindível para o ser humano ir se formando

como identidade. É na participação, através das instituições sociais, que a

pessoa assume seu papel em tais espaços. Logo, estas instituições se

revelam como representantes do destino dos homens como realização. A

representação na sociedade através dos papéis assumidos já demarca no

homem a representação do religioso na cultura humana56.

Não há como negar o paradoxo,como constata Pannenberg,

vivenciado pelo homem na sua experiência diante da sociedade,

sobretudo na sociedade moderna. O indivíduo busca se realizar como

pessoa, mas ao mesmo tempo necessita do convívio social para

complementar tal realização. Desse modo, é somente pelo confronto

realizado consigo mesmo e com seus desejos, que ele percebe diante de 55 PANNENBERG, W. El Hombre Como Problema – Hacia una antropologia teológica. Trad. para o espanhol por Rufino Jimeno. Barcelona: Editorial Herder, 1976, p. 81. Esta obra pode ser considerada um resumo, através de vários tópicos da antropologia teológica de W. Pannenberg. O tema desta obra será amplamente desenvolvido na obra apresentada ao público em 1983 Que foi a Antropologia na perspectiva teológica. Usaremos deste ponto em diante para nos referirmos à obra El Hombre Como Problema apenas as letras EhcP para indicar o título da obra. 56 PANNENBERG, W. APT. p. 606 et. seq. O que fica evidente no pensamento de Pannenberg é a complexidade da relação indivíduo e sociedade, pois já é característico do mundo moderno a presença da subjetividade humana que constantemente conflita quando se fala de relação sociedade-indivíduo; uma vez que os interesses privados se tornaram bastante acentuados no momento atual. Pannenberg deixa claro que as instituições representavam ao homem a possibilidade de transcender aos próprios limites e condicionamentos terrenos, elevando-o acima do mundo da vida cotidiana.

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si, ou seja, no seu ser pessoal imediato, um conflito, uma tensão entre a

autoreferência como personalidade e sua abertura à sociedade, aos

outros. No momento em que o indivíduo se fecha em si mesmo no seu ser

pessoal como eu, ele se perde em si mesmo, esquecendo a sua

dimensão de abertura aos outros e à sociedade.

O mencionado até este ponto indica no homem uma contradição:

nele há uma dimensão de abertura e outra que se opõe a isso,

constituindo o fechamento do homem em si mesmo. Ao se apegar a esta

última, ao negar o seu potencial de excentricidade, ele impossibilita seu

verdadeiro potencial de pessoa humana e se isola no seu eu, através de

uma couraça, fechando-se ao que seria sua autêntica destinação57, que é

a possibilidade de convívio social como parte indispensável para a

elaboração do seu ser homem. O que é inegável para Pannenberg é que,

mesmo nesta condição de conflito, em que o indivíduo vive entre o seu

fechamento pessoal e sua abertura, há no homem um apelo de realização

antropológica, e tal apelo de realização só será possível de acontecer se

o homem se lançar para além de si mesmo, numa atitude de

relacionamento e de socialização. Pannenberg mostra que antes do

indivíduo se lançar como relacionamento, ele necessita buscar sua

identificação como consciência, como pessoa.

Ao afirmar no homem o fenômeno da autoconsciência58 e da

personalidade59, encontra-se aí a solução para o antagonismo indivíduo-

sociedade. Mesmo assim, ainda persistem várias formas de manifestação

da dificuldade humana para se relacionar consigo mesma, em que a 57 Cf. Ibid., p.303. 58 Conforme a história desse conceito, pode-se dizer que ele começa com Kant, como alternativa de consciência. A autoconsciência não é a consciência (empírica de si), mas a consciência puramente lógica que o eu tem de si mesmo como sujeito de pensamento. A autoconsciência, conforme Kant, é o lugar onde o homem pode pensar ele mesmo, e assim, se autoproduzir, se autocriar e se distinguir dos demais objetos da natureza. Depois de Kant houve outras abordagens sobre o tema autoconsciência, mas nada muito substancial que vá além do proposto por Kant. Cf. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia, Verbete: Autoconsciência. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 59 O conceito de personalidade já foi definido por Tomás de Aquino como condição ou modo de ser pessoa (S.Th. I,q.39,ª3, ed. 4 ª) e tal termo é usado pelos filósofos que às vezes o empregam no lugar de pessoa. Já a psicologia o define como organização que a pessoa imprime à multiplicidade de relações que a constituem, desta compreensão, origina a idéia contemporânea onde há quem a define como a organização mais ou menos estável e duradoura do caráter, do temperamento, do intelecto e do físico de uma pessoa, organização que determina sua adaptação total ao ambiente (H.J. Eysenck). Cf. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia, Verbete: Personalidade. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

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pessoa submete a totalidade que é o ser pessoa à particularidade do eu

individual, gerando não só uma relação consigo mesma pervertida, mas

também criando dificuldades às relações interpessoais e nos conflitos

com a sociedade60.

Na tematização do ser humano no que diz respeito a tomar

consciência de si mesmo como pessoa, abre-se caminho para adentrar na

análise dos sentimentos e desejos humanos, situando desse modo, a

pessoa na sua relação com as demais. Cabe afirmar que é somente pela

autoconsciência, como autoconhecimento, que o homem se situa no

mundo, e ao mesmo tempo, se distingue dele, assim se individualizando.

Ao sentir-se no mundo e, se distinguindo dos objetos, o homem constrói a

história de sua individualidade61.

Mesmo verificando que o antagonismo entre indivíduo e sociedade

tenha encontrado solução nos fenômenos da autoconsciência e da

personalidade do homem, ainda persistem várias formas de manifestação

do limite humano que submete a totalidade da pessoa e seu mundo, à

particularidade do “eu”, pervertendo a relação do “eu” com o seu si

mesmo; dificultando assim, as relações inter-humanas e a ordem da

sociedade62. Ao tematizar o ser humano no seu tomar consciência de si,

abre-se espaço para analisar os sentimentos e desejos humanos e dessa

maneira situar a pessoa em relação às outras. Somente no

autoconhecimento é que o homem consegue se localizar no mundo e se

distinguir dele. Ao sentir-se no mundo, em distinção dos objetos, o homem

constrói o processo histórico de sua individualidade63. É também nesse

processo de se autoconhecer que o homem experimenta em sua vida,

sentimentos de prazer e dor, afetos e paixão; sentimentos que serão

socializados no decurso de seu existir no mundo e na sociedade. Tais

sentimentos fortificam a formulação da personalidade do indivíduo e o

projetam na realização dos mesmos. Na atitude de fechamento em si

mesmo, através de experiências equivocadas, dificulta o processo de

realização da pessoa, falseando a identidade do indivíduo e impedindo o 60 PANNENBERG, W. Op. Cit. p.303. 61 Cf. Ibid., p. 312. 62 Cf. Ibid., p.303. 63 Cf. Ibid., p. 312.

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caminho que o leva ao seu destino de realização. É no sentido de

fechamento e de não realização da pessoa como abertura, que se pode

tratar do tema da angústia caracterizada no momento decisivo do

exercício da liberdade humana, como resposta ao conflito vivido.

No contexto dos sentimentos humanos, o problema da angústia

humana se dá devido a não realização do homem diante do tomar

consciência de si mesmo. Assim, também a entendiam Kierkegaard e

Heidegger. Tal sentimento é fruto da infelicidade diante do isolamento do

indivíduo, opondo-se ao sentimento de liberdade e da existência autêntica

do ser aí no mundo64. No momento em que o homem se nega construir

na relação com seu entorno social, ele elimina uma polaridade no

elaborar de sua identidade e da formação de si, deixando algo em aberto.

Cabe afirmar que é no lugar social onde o homem encontra dados para ir

superando seus limites e sua finitude, conforme teoriza a psicologia

freudiana65.

O pensamento de Pannenberg deixa evidente, que o homem está

ordenado a uma realização de sua vida, que sobrepassa a ele mesmo, e

que se manifesta na comunidade com os demais, desse modo, no seu

processo de fechamento, na sua subjetividade, a pessoa se perde no

caminho de autoconstrução, caindo num estado de angústia, tristeza e

ódio. Vale perguntar quais são as causas que levam o homem a cair no

estado de angústia. Para Pannenberg, é fruto da contradição humana e

do pecado, fragilidades que fazem parte da história do ser homem. E a

superação desta contradição, só acontecerá diante de uma resposta

positiva pelo homem, no momento em que este se defrontar com seu

destino.

Como possibilidade de autoconsciência, o homem apreende o seu si

mesmo no seu nexo com o mundo e com os outros, para aí desenvolver

seus afetos positivos e sua identidade. Ao cair no seu baixo estado de

64 Cf. Ibid., 318 et. Seq. A idéia de angústia em M. Heidegger foi motivo de muitos debates inflamados, pois tal conceito neste autor, retrata uma visão, compreendida por muitos, como muito pessimista do ser humano. Aí mais um elemento que ajuda a situar o pensamento de M. Heidegger como um pensamento fatalista e que leva o ser humano a um certo caos existencial, ou seja como ele mesmo afirma o homem como “ser para a morte”. 65 Cf. Ibid., p. 330.

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ânimo66 pelos afetos negativos o homem, como pessoa,não se abre ao

outro. Aqui vale recorrer ao termo da tradição cristã, ele se encurva sobre

si mesmo – homo incurvatus in seipso. Portanto, o seu voltar-se para a

comunidade, como realização essencial do seu ser pessoa humana, não

acontece e o sentido de sua vida, que é estar aberto ao mundo, também

não se realiza, penalizando dados essenciais de sua identidade.

O pensamento sobre o homem sempre identificou nele duas fortes

inclinações|: uma, para o fechamento; e outra, para a abertura; tal

compreensão se faz presente também na filosofia moderna. O

pensamento kantiano mostra que há uma inclinação para se associar aos

outros e outra para o fechamento e o egoísmo. Kant afirma um

antagonismo na natureza do indivíduo, antagonismo entre sociedade e

indivíduo, sendo que tal situação só será possível de resolução nas

relações pessoais, em que estão localizados o eu e sua constituição

como pessoa.

Hoje, vozes de todos os lados ressoam mostrando a relevância da

vida social para a formação da individualidade, afirmando assim, que a

época do individualismo já passou, mas o novo modelo que busca

subordinar o indivíduo à sociedade também se mostra ameaçado por uma

contradição interna, já que ele também é representado por indivíduos. A

preeminência programática da sociedade sobre o indivíduo se converte

facilmente na máscara ideológica do poder dos indivíduos que pretendem

atuar em nome do todo social e não admitem nenhuma liberdade

individual, que lhes faça oposição, mas tratam toda insubordinação como

um delito contra a sociedade67.

66 Estado de animo surge no contexto da fenomenologia, como categoria que vem indicar a situação do homem em relação a seus afetos e sensação de prazer e desprazer, é um conceito que busca achar a relação entre sentimento e estado sentimental. O baixo estado de ânimo indica a dificuldade do ser humano de integrar equilibradamente tais sentimentos. 67 PANNENBERG, W. APT. p.224. É também lembrado por Pannenberg, uma situação que revela uma atitude diferente da que é indicada acima. No artigo de Pannenberg intitulado When Everything is Permited. Pannenberg mostra que na modernidade das últimas décadas há uma exacerbação das atitudes do indivíduo, onde ele assume o lugar central que Deus exercia na sociedade. E diante disso ele assume o domínio do universo e da história. O domínio do homem, pela razão natural, instaura um momento novo na cultura Ocidental e facilita um escamoteamento dos valores fundamentais elaborados durante longos anos na sociedade humana. Pannenberg não se coloca numa posição reacionária a tal realidade, mas numa posição de abertura e de diálogo, pois ele crê que, somente assim, a teologia cristã poderá enfrentar os desafios do mundo moderno.

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Por fim, cabe dizer que o desafio do mundo moderno, que é também

o desafio para a teologia, é buscar uma solução razoável no que se

refere aos princípios da liberdade do indivíduo, e ao mesmo tempo,

garantir os princípios que constituem os valores da coletividade. Sempre

houve um desequilíbrio marcante no que constitui os dois elementos que

compõem tal realidade. Houve momentos em que o indivíduo foi quase

anulado, marcando um domínio pleno da sociedade. Momentos, também,

em que o indivíduo busca impor sobre a sociedade sua identidade

pessoal a todo custo. Chegar a um equilíbrio harmonioso nesta relação

continuará sendo a busca das ciências que se encarregam de tal

temática. Pannenberg não ignora o conflito e indica a solução exatamente

na noção de abertura existente no ser humano e, na sua capacidade de

diálogo. Nesse sentido, definiremos brevemente os personalismos

dialógico e dialético que caracterizam formas de compreender as relações

do homem no mundo.

2.3.2 Personalismo dialógico e personalismo dialético

Ainda com a finalidade de continuar aprofundando o tema do

indivíduo e suas relações, buscaremos conceituar brevemente os

personalismos dialógico e o dialético. Tanto o personalismo dialógico,

como o dialético ajudam a perceber o indivíduo e sua abertura ao outro e

à sociedade.

Compreender o indivíduo em relação ao outro, ou seja, ao tu como

outra pessoa, revela-se a constituição do homem como si mesmo. A idéia

que fundamenta o chamado personalismo dialógico é a afirmação,

diferentemente da filosofia transcendental da consciência, na qual o

sujeito é apresentado como ilhado ou visto como um eu abstrato e supra-

individual. A definição de sujeitos singulares chega até o liberalismo

europeu. O irromper de uma posição crítica de tal compreensão de

indivíduo só vai acontecer no século XX, período em que o indivíduo

inicia uma nova forma de se posicionar diante da sociedade e das

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instituições sociais. É na elaboração da compreensão moderna de

sujeito, que surge também a idéia mais explícita do antagonismo entre

indivíduo e sociedade e, este antagonismo busca se conciliar, através das

relações pessoais em que se encontra o eu e naquelas em que o mesmo

se constitui. O indivíduo é compreendido na sua constituição social como

tal, quando não se põe em relação imediata ao indivíduo e à sociedade

globalmente compreendida, mas quando se começa a considerá-lo em

referência ao outro individual, ou seja, ao tu.

Pannenberg lembra que Marx, Hegel, Schleiermacher e outros,

mostram o papel constitutivo da vida social para a formação da

individualidade. Há de se perguntar se a época do individualismo já

passou, tendo em vista que o modelo que subordina o indivíduo à

sociedade está ameaçado por uma contradição interna, já que as

instituições são representadas por indivíduos.68

Ao definir resumidamente o que caracteriza os personalismos

(dialógico e dialético), eles seriam caracterizados pelo esforço para

situar o ser humano em um horizonte de abertura e de relacionamento

com o seu semelhante. É um esforço para colocar o ser humano na

condição de excentricidade, ao invés de isolado em si mesmo.

Pannenberg pontua que o grande mérito do personalismo dialógico foi

sinalizar para a idéia do eu , porque se tal eu era pensado antes como

sujeito soberano, agora ele depende do encontro com o tu. Já o

personalismo dialético mostrou do ponto de vista objetivo a dependência

do indivíduo em relação à sociedade. Pode-se dizer que o que distingue

os dois personalismos, é exatamente a compreensão teleológica dos

mesmos: O personalismo dialógico pontua a relação de um indivíduo com

outro indivíduo; o personalismo dialético pontua a relação do indivíduo

com a sociedade, ou seja, há a mediação institucional, como por exemplo,

a mediação do estado. A limitação de ambos personalismos está na

insistência do caráter imediato das relações, esquecendo que o encontro

do eu com o tu ou com o ele é mediado pelo mundo das coisas comuns 68 Cf. Ibid., p.224. Pannenberg mostra que a preeminência programática da sociedade sobre o indivíduo se converte por isso facilmente na máscara ideológica do poder dos indivíduos que pretendem atuar em nome do todo social, não admitindo nenhuma liberdade individual que lhes faça oposição, mas tratam toda insubordinação como um delito contra a sociedade.

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50

ao tu e ao eu69. Esta mediação será realizada através da cultura e da

linguagem.

A teologia também buscou suporte na idéia personalista, sobretudo

a teologia evangélica, uma vez que para ela, o homem busca um tu

divino, que é Deus, pela mediação do mistério. A própria palavra de Deus

é o tu divino que vem até o homem.

Ainda se faz pertinente lembrar que, o homem só se realiza como

vida humana, superando o conflito existencial, quando enfrenta a luta do

eu com o si mesmo no dilema vivido diante do outro, ou seja, o tu. Somente se compreende a constituição social do indivíduo como tal,

quando este se coloca em relação com os outros indivíduos que

constituem seu círculo de vida. Somente em tal contexto o homem se

reconhecerá como abertura ao mundo do outro, construindo desse modo

a própria identidade como pessoa. Na excentricidade o homem supera o

seu egocentrismo e se coloca como exigência de superar a si mesmo,

numa trajetória de verdadeira realização como pessoa. Conforme

Pannenberg, mesmo que no homem haja tantas amarras e um forte

apego à sua centralidade como indivíduo, no evoluir da história humana,

ele busca se mover para além de tal fechamento, superando os

condicionamentos internos e externos e lançando-se para a sua

verdadeira finalidade como ser humano, se abrindo ao outro, ao mundo e,

sobretudo, a Deus.

O homem, como inclinação ao fechamento é uma realidade

constatável. Tal afirmação fica evidente quando Pannenberg desenvolve

sua antropologia, mostrando que esta ambigüidade é constitutiva da

existência humana, mas a solução para ela se dá na força criadora de

Deus que se faz presente no homem. Assim sendo, o homem tem em si

um potencial de abertura e de exteriorização. Na sua vontade natural de

se realizar, o homem busca o outro e se abre ao mundo e à sociedade.

No horizonte da antropologia teológica, mesmo que o fechamento

apareça como inclinação do homem ou como pecado, pode-se dizer que

a abertura aparece como possibilidade e como graça. Esta dimensão da

69 Cf. Ibid., p.228 et.seq.

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abertura como gratuidade e como dom deverá ser retomada no evoluir

deste trabalho. Antes porém, faremos uma sintética abordagem do

homem como abertura, ou seja, na atitude de superação do seu

fechamento em si mesmo.

2.3.3 O homem como abertura

Traremos neste momento alguns elementos que indicam no homem

sua dimensão de abertura, para no próximo capitulo aprofundarmos o

tema através das noções de subjetividade, liberdade e transcendência

como experiências humanas que apontam para a sua excentricidade na

sua condição de relação com os outros, com o mundo e com Deus.

Na relação indivíduo e sociedade presenciamos o paradoxo

existencial do homem, em que fechamento e abertura são duas

inclinações presentes no ser humano marcado pela autonomia e pela

liberdade. Como já foi dito, há no homem a possibilidade de se encurvar

sobre si mesmo, fechando-se num profundo egoísmo e angústia e há

também possibilidade deste mesmo homem se lançar no projeto positivo

de realização de sua pessoa como abertura ao outro, ao mundo e ao

transcendente. Como confirma Pannenberg, é na realidade em que tal

homem se encontra situado, que ele se verifica como pessoa através do

seu lançar-se ao mundo, buscando, assim, se construir sobre um fim que

não está em si mesmo, mas para além de si70.

É no paradoxo do se valorizar como pessoa e como realização

construtiva de si mesmo e do buscar ser valorizado e reconhecido pelo

seu semelhante, que o homem responde ao seu apelo mais profundo: o

de abertura ao mundo e aos outros. Ao abrir para o encontro com o

outro, ele estabelece uma situação vital para a essencial definição do

seu ser humano71.

É plausível dizer que toda vida humana se apresenta marcada pela

tensão entre a autoreferência e abertura ao mundo de fora. O homem,

70 PANNENBERG, W. EhcP.p.81 et. Seq. 71 Cf. Ibid., p. 87.

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como natureza, se vê projetado num constante movimento de superação

da autoreferência que o prende e o imobiliza. Se a centralidade puxa o

ser humano para dentro de si, a excentricidade o atira para o mundo, para

fora de si72. Pannenberg diz que o que distingue o homem dos animais

não é somente a sua dimensão espiritual, mas sua possibilidade de

enxergar a alteridade e a identificar de forma objetiva. Ele se distingue do

externo que está em sua volta e, o mais importante, ele como pessoa, se

autotranscende numa condição de abertura a este mundo. O Homem que

se constitui como excentricidade, se lança ilimitadamente num

empreendimento indefinido de realização, entra na realidade do mundo

como experiência e sempre assimila algo a mais para o seu eu pessoal.

Nesse movimento, o homem se mostra, a todo tempo, um ser incompleto

e por isso, desejoso de algo além do experimentado. Nessa dinâmica o

homem se explica como transcendência e como espírito que possibilitam

o superar da finitude e o lançar-se no desejo de infinito, elemento

constitutivo do movimento do homem para Deus.

Na superação do fechamento em si mesmo, o homem se percebe

como realidade maior, e se vê em condições de transcender os limites de

sua existência e atingir uma realização de si que vai além do que se

apresenta no seu situar-se na natureza. Além de todas as misérias e

fragilidades, que apontam para o fechamento e para a soberba, ele é

portador de uma vocação de caminhante até outras latitudes; ele se

coloca a caminho do infinito73.

Aqui, podemos afirmar, com Pannenberg, que a abertura é um

constitutivo essencial no homem, sendo um princípio que modifica a

estrutura da vida do homem no seu estado de evolução. Ele se

autotranscende no seu colocar-se em direção ao mundo e busca na sua

excentricidade se construir, superando seus limites naturais e culturais.

Uma antropologia aberta coloca o homem com disposição para uma

evolução de si até uma realidade absoluta, situando-o num lugar especial

72 Cf. ibid., p. 87. 73 Cf. Ibid., p.99

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na natureza e direcionando-o para sua experiência vital de realização

como homem, experiência que é possibilitada ao homem por Deus74.

Por fim, cabe constatar que o homem não se abre ao outro e ao

mundo por acaso. Além de fazer parte de sua natureza, a inclinação de

abertura é também um intuito de realização. O homem deseja algo mais e

tal desejo não cessa até chegar no grande desejo que sustenta a vida

humana, desejo que pode ser caracterizado como desejo de realização

plena. Para Pannenberg a realização plena do homem só acontecerá em

Deus. É abrindo-se à graça oferecida por Deus, através de Jesus Cristo,

que verdadeiramente se efetiva no homem a felicidade. Assim, quando o

homem falha neste processo de abertura, não é atributo divino, mas fruto

do pecado humano. Fruto de um uso equivocado de sua liberdade e de

sua subjetividade, como teremos a oportunidade de verificar no estudo do

próximo capítulo.

Conclusão Nesse primeiro capítulo buscamos apresentar alguns elementos que

caracterizam o homem na sua constituição como corpo e alma dentro da

antropologia de Pannenberg. A sua forma de elaborar tal compreensão

passa pelas abordagens filosófica e teológica do período clássico, bem

como da modernidade. Pannenberg situa o homem num cenário cultural

complexo, mas imprescindível para compreendê-lo. Este primeiro

momento do trabalho, além de tentar conceituar as categorias de corpo e

espírito como dualidade que compõe o homem para Pannenberg,

buscamos também, acenar para alguns elementos da atualidade

moderna; elementos esses, que vão de encontro ao pensamento

antropológico do autor em questão.

Nessas observações finais, ainda cabe dizer que Pannenberg situa

com profundidade o homem no contexto da modernidade, dialoga com ela

e apresenta uma compreensão de homem que não está conectada com a

visão dicotômica de alma e corpo, mas, seguindo os fundamentos bíblicos

74 PANNENBERG,W. APT. p.54 et.seq.

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e patrísticos, ele apresenta uma abordagem das dimensões corpo e alma

de forma integradas no homem.

Outra característica da sua antropologia é apresentar o homem

como quem se constitui paradoxalmente pelo fechamento ou centralidade,

e como abertura (excentricidade). É diante desse dilema existencial, que o

pensamento de Pannenberg dá visibilidade à dimensão sagrada do

homem, uma vez que, em último caso, o homem é um ser aberto e que

tem sua origem em Deus. Entretanto, naturalmente deve se voltar para

Ele. A realização da abertura humana tem uma finalidade muito clara; não

se trata da mera experiência existencial, é sem dúvida, um pressuposto

para se chegar ao homem como experiência de Deus. A abertura é a

base que este autor lança para afirmar a dimensão religiosa no homem,

tema que será devidamente tratado no último capítulo.

No próximo capítulo, buscando avançar um pouco mais na

compreensão de homem para Pannenberg, se faz muito significativo

abordar alguns temas de alta relevância na filosofia moderna, temas, que

por sua vez, também se fazem relevantes nesse autor. Trabalharemos,

mesmo que de forma muito sintética, os temas da liberdade humana, da

subjetividade e da transcendência. Este capítulo ajudará no preparo do

solo para podermos fundamentar na realidade humana a dimensão

teológica, ou seja, a revelação de Deus que se dá na vida do homem.

Aqui, mesmo que sinteticamente, convém já afirmar, que em Pannenberg

antropologia e revelação de Deus convivem em harmoniosa unidade. Isto

será apresentado quando adentrarmos na antropologia teológica de mais

no final do percurso proposto.

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3 A experiência humana como pressuposto para a dimensão religiosa na antropologia teológica de W. Pannenberg - liberdade e subjetividade; transcendência e história

Introdução

Tendo já visto como se pode definir o homem na sua constituição

como corpo-espírito e tendo-o situado no contexto da modernidade, cabe

agora apresentar alguns atributos e valores referentes à pessoa humana

que foram construídos durante longo período de sua história, e assim

passaram a ser constitutivos indispensáveis para se falar do homem como

tal. Neste capítulo buscaremos trabalhar, a partir da antropologia de

Pannenberg, algumas características que compõem o ser pessoa humana

e os implicativos destas características. Em um primeiro momento desse capítulo, será investigado, de forma

específica, a compreensão da liberdade para o indivíduo e a implicação

desta no tomar consciência de si mesmo no que se refere ao sentido do

ser pessoa humana. Na sistematização do tema liberdade será

indispensável ter presente os longos debates de Pannenberg com

teóricos da modernidade. É partindo deste itinerário, que se fará possível

chegar a uma síntese da abordagem epistemológica do conceito de

liberdade, realizada por ele em sua antropologia. Já, o tema liberdade

cristã, imprescindível em Pannenberg, será tratado na abordagem

teológica que acontecerá na última parte desse trabalho.

Ainda neste capítulo, trabalharemos a temática da transcendência

humana como experiência existencial filosófica bem como as implicações

deste conceito na dimensão histórica e social do homem. A

transcendência também se faz de grande valia para entender o homem

como ser espiritual, por isso é significativo situar tal conceito no contexto

cristão. 3.1

O indivíduo como liberdade

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Quando se tem em vista refletir sobre o tema da presença de Deus na vida do homem, na antropologia teológica de Pannenberg, é

indispensável estudar, neste mesmo autor, a compreensão do ser

humano como liberdade, pois somente no espaço da liberdade a pessoa

pode se relacionar com o Absoluto e se colocar numa situação de

abertura para Deus. Neste primeiro momento buscaremos acompanhar

Pannenberg no seu itinerário pelo tema da liberdade. Tal tema se

apresenta de forma correlata com as temáticas da consciência e da

subjetividade. Logo, tais conceitos também estarão nos acompanhando

de forma oblíqua durante a exposição.

Na trajetória da experiência existencial do ser humano, torna-se

possível de compreender o profundo valor da liberdade humana e o

esforço que o indivíduo sempre fez para preservar tal valor. A liberdade foi

arduamente construída e conquistada no acontecer da história do ser

humano. Os registros das origens da cultura humana revelam como foi

aprofundando o significado do termo liberdade na trajetória humana.

Na modernidade, principalmente nas ciências humanas, filosofia,

psicologia, teologia entre outras, o princípio da liberdade, cada vez mais

foi se tornando centro das reflexões. Em uma cultura antropocêntrica, na

qual o homem se fez centralidade, a liberdade se apresenta como

imprescindível e necessária para definir este homem. O tema da liberdade

atinge seu auge no efervescer das idéias iluministas da Revolução

Francesa.

3.1.1 A pessoa como liberdade e consciência

Pannenberg recorre ao pensamento de autores modernos para

tratar da abordagem filosófica e teológica do tema liberdade. Ele observa

que o homem é um ser que ao tomar consciência de si diante da

realidade, se percebe livre em relação a tudo que o circunda75. Dessa

75 Márcia C. de Sá Cavalcante em Introdução à Essência da Liberdade Humana de F. W. Shelling. Petrópolis: Vozes, 1991. “O homem não pode ser herdado, nem vendido e nem tampouco

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57

forma, em todas as circunstâncias, o homem se vê em condições de dar

uma resposta livre. Pannenberg situa a liberdade no sentido mais

profundo do qualificativo das ações do homem, igualando-a com a vida. É

no exercício da liberdade que o homem se eleva à condição de superar

todas as condições e situações limitadoras que aparecem na sua

trajetória. É pela atitude de autotranscendência e pela superação

transformadora de condições que o homem constrói a si mesmo na

cultura e na história76.

O autor apresenta os fundamentos da liberdade na antropologia

filosófica e recorre ao diálogo com filósofos e teólogos clássicos e

modernos. Trabalha vários conceitos da antropologia elevando-os à

categoria teológica. Um destes conceitos, aprofundado por ele, é o de

angústia77; assunto longamente abordado por S. Kierkegaard e M.

Heidegger. Ao ter como base tais autores, Pannenberg apresenta o

dilema existencial do humano na experiência da angústia e o apelo

constante da liberdade como valor fundamental. Mesmo que a

contingência da angústia assole a vontade humana, pelo exercício da

própria liberdade, o homem consegue vislumbrar um horizonte mais além,

que se instaura no seu infinito desejo. Assim sendo, a experiência

humana se exercita para superar a angústia e atingir o infinito, no qual a

consciência se eleva à realidade do espírito78. Paradoxalmente, tal

presenteado. O homem não pode ser propriedade de ninguém porque ele é e deve permanecer propriedade de si mesmo. Ele carrega no fundo de seu peito uma chama divina, a consciência moral, que o eleva sobre a animalidade, tornando –o cidadão de um mundo cujo primeiro parceiro é Deus. Essa consciência lhe possibilita querer isso ou não querer aquilo de maneira incondicional, livre e a partir de seu próprio movimento, sem nenhuma pressão exterior. Nesta afirmação de Shelling pode encontrar um elo antropológico que une diacronicamente com o pensamento de Pannenberg, pois este também busca situar o homem, bem como, a sua fundamentação antropológico religiosa na experiência da liberdade humana”. 76 PANNENBERG.W. Op. Cit. p.50 et. seq. A história para O teólogo de Heidelberg é um marco em sua trajetória acadêmica, pois não por acaso este é chamado de teólogo da história. No seu livro Revelação como História, ele mostra que a história não é uma abordagem como pensava a fórmula idealista heigeliana, onde via a historia como revelação. Não é a história como tal que é revelação do Absoluto: a revelação acontece em fatos históricos, em fatos realizados por Deus na história, em fatos que manifestam o sentido da história e o destino do Homem ( cf. nota 8). 77 Angústia é um termo usado no pensamento de Kierkegaard para indicar a atitude do homem em face de sua situação no mundo. Assim, a angústia é parte essencial da espiritualidade própria do homem. Em Heidegger a angústia no homem é fruto de sua existência mortal. É o conflito do homem diante da morte. Cf. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Verbete: Angústia, São Paulo: Martins Fontes, 1998. 78 Como foi trabalhado no primeiro capítulo o conceito de espírito se faz indispensável para buscar entender o homem moderno. Vários estudos brindaram a modernidade abordando esta

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consciência, se depara com o limite árduo da finitude existencial e é neste

dilema da liberdade que se dá a experiência da angústia79. A angústia, ao

mesmo tempo em que é empecilho, é também, propulsora da vontade de

decisão que o ser humano elabora no contexto da própria existência e

por conseguinte, o homem busca, no em si de sua autoconsciência, uma

resposta para o conflito existente entre sua finitude e o desejo profundo

de infinito.

O tema da consciência80 de culpa, que perpassa o desenvolver da

ação do homem no uso de sua liberdade, revela que o homem ainda não

se parece idêntico à idéia que orienta o seu destino. Nesse sentido, a

consciência de culpa é um momento marcante no processo de libertação

do homem até si mesmo. O homem deve tomar consciência de seu

destino, para assim, num ato de superação, ir se elevando além de si

mesmo. O homem caminha para a totalidade de sua existência,

colocando-se em relação com o instante presente do eu e com o mistério

que transcende tal presente deste mesmo eu. O presente é presente de

uma história ainda inacabada na vida do indivíduo que está a caminho até

seu destino pessoal.

Cabe afirmar que pessoa e liberdade se vinculam na medida em

que a liberdade representa o indivíduo na sua capacidade formal de ser

humano, capacidade dada desde sempre como abertura ao mundo. A

liberdade permite ao indivíduo ser ele mesmo. Pannenberg recorre à idéia

de autonomia81 para dizer que esta é expressão da própria identidade do

dimensão do ser humano. Entre outras, singulariza-se a Fenomenologia do Espírito de W.G. F. Hegel, que aparece como referência determinante no tratamento de tal temática na modernidade. 79 PANNENBERG,W. APT p. 119. Além de Kierkegaard e Heidegger, bastante citados por Pannenberg. Outro autor que também trabalha arduamente o tema da angústia é Jean Paul Sartre, na sua obra principal que foi O Ser e o Nada. Ele tematiza a angústia muito voltada para a crise do homem diante do nada e diante do engajamento, mesmo que a angústia leve o homem a buscar alguma resposta para si diante do mundo, talvez mais do que em Heidegger; Sartre se coloca numa situação bastante fatalista para o tema humano. Neste sentido o caminho realizado por Pannenberg visa elevar o homem como liberdade à liberdade plena, concretizada em Jesus Cristo, pela fé. 80 O tema da consciência, amplamente abordado por Pannenberg e também em toda filosofia moderna. Aponta que a alma tem uma relação consigo mesma, ou seja, uma relação intrínseca ao homem, interior ou espiritual, pela qual ele pode conhecer-se de modo imediato e privilegiado. O homem pela consciência se distingue dos objetos e dos outros . 81 Um termo muito usado na Ética de Kant e que caracteriza a vontade pura enquanto ela apenas se determina em virtude de sua própria essência, quer dizer, unicamente pela forma universal da lei moral, com exclusão de todo motivo sensível. Cf. LANLANDE, André.

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eu. É no uso autônomo da liberdade que a pessoa alcança a plenitude do

seu ser-para-si82.

Em Pannenberg, liberdade e consciência estão em constante

diálogo e se situam no mesmo espaço antropológico. É na liberdade

presente na consciência do indivíduo, como conquista do pensamento

antropológico moderno, que é desenvolvida a sua idéia de homem. Em

sua reflexão ficam evidentes os valores antropológicos, históricos e

culturais da filosofia moderna, cenário propício para a formulação de um

princípio de liberdade que se instaura no lugar do agir racional do

homem.

O homem é marcado pela idéia de liberdade e de subjetividade,

desta maneira, este homem que se vê livre, assume o dever de aventurar

a sua experiência existencial elevada ao extremo de tocar o próprio

nada83. Esta liberdade elevada ao extremo no homem e, tão especial para

ele mesmo, é o que na antropologia se caracteriza como abertura ao

mundo84. Nesta mesma perspectiva, a ontologia diz que o princípio da

liberdade humana pode ser afirmado na experiência de que não é a

liberdade que pertence ao homem, mas o homem que pertence à

liberdade85. O tema liberdade não deixa de significar conceito e princípio

necessários da existência, absolutizado no lugar teórico da racionalidade,

mas é também experiência e aplicabilidade sensível que se pode

experimentar no mundo da vida86.

Vocabulário Técnico e Crítico da filosofia. Verbete: Autonomia. São Paulo: Martins Fontes, 1996. 82PANNENBERG, W. APT. p. 299. 83 PANNENBERG,W. TS2. p. 283. 84 PANNENBERG,W. EhcP. p.12. Pannenberg Recorre ao pensador H. Plessner que trabalha a sua antropologia numa perspectiva de excentricidade, onde o homem aparece como um ser aberto e, em tal abertura, ele rompe com seu mundo natural e o transcende, através da excentricidade e da autoconsciência, construindo assim, a própria identidade. 85 Para Pannenberg, a compreensão de liberdade caracterizada pela idéia de que ela não é somente dom humano, mas é apresentada também como relação abertura e graça. Pannenberg lembra em seu artigo: Fundamentação Cristológica de Uma Antropologia Cristã, (Concilium de 1973/6 Nº. X) que a hipótese da existência prévia da identidade do sujeito e, com isso, também da sua liberdade frente ao processo concreto da sua experiência é sempre contudo menos aceita, mas continua-se a falar de autodeterminação, auto-realização e autodesenvolvimento etc. deste modo incluem a identidade do sujeito como um pressuposto. 86 PANNENBERG, W. Op. Cit. p. 195 et. seq. Faz-se importante relembrar a amplidão e profundidade do tema liberdade para o autor em questão. Nos privamos de desenvolver mais amplamente outros temas relacionados com a liberdade, pois isso já fugiria do caminho proposto neste trabalho. Nos detivemos apenas no estudo da liberdade subjetiva do indivíduo, tentando

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No despontar da modernidade, a busca da liberdade se fez tão cara

ao ser humano que muitos acabaram se perdendo no caminho subjetivo,

idealizado pelo desejo tão profundo da mesma. Daí o que seria somente

meio ou ponto de passagem para chegar ao desejado, objetivou-se

como fim em si mesmo, ou pior, como obstáculo para a vivência do que

era buscado e desejado - a verdadeira liberdade.

Pannenberg, unindo-se a Kant, lembra que a liberdade é uma

necessidade universal instaurada no espaço da lei moral e que se lança

no horizonte do mundo da vida, fazendo parte da vontade e do agir do

homem. Nesse contexto, a liberdade se abre para um horizonte maior que

ela mesma. Ela projeta o humano para um além, um algo mais, facilitando

a realização da vontade humana no sentido mais profundo do seu

existir.87 Aqui, ainda cabe dizer que, em Pannenberg, a realização de tal

vontade só é possível acontecer quando o homem se coloca como

liberdade, na condição de abertura para Deus. A plena liberdade do

homem se dá na experiência da verdadeira libertação que acontece em

Jesus Cristo. Voltaremos ao tema liberdade mais adiante, no qual haverá

a preocupação de demonstrar que a verdadeira liberdade para

Pannenberg se dá na Graça libertadora de Deus através de Jesus Cristo. Por fim, resta afirmar que a liberdade e a noção de consciência são

dados indispensáveis para se falar da pessoa humana. Isso se faz

realidade também na antropologia do autor aqui estudado. Para ele

liberdade e consciência são elementos constitutivos do homem e dados

relacioná-la com a consciência. Para melhor aprofundamento do tema liberdade como formulação conceitual e de sua dimensão antropológica, é significativa a investigação filosófica de F. W. Schelling . A Essência da Liberdade Humana – ( Investigações filosóficas sobre a essência da liberdade humana e das questões conexas) – trad. e Introdução: Márcia C. de Sá Cavalcante – Petrópolis: Vozes, 1999. Já para tratar sobre o homem e sua abertura ao outro vale recorrer à Fenomenologia do Espírito de Hegel. Principalmente o tema da dialética do senhor e do escravo e da liberdade da consciência -de-sí. Cf. G.W. F. Hegel. Fenomenologia do Espírito – parte I, trad. Paulo Meneses. Petrópolis: Vozes, p.119ss. 87 HERRERO, Francisco Javier. Religião e História em Kant. Trad. José Ceschin, São Paulo: Loyola, 1991, p.22ss. Nesta obra o autor mostra com a profundidade própria do pensamento kantiano o desenvolver da liberdade humana e suas implicações antropológicas e religiosas; Para Kant, conforme mostra o autor, a vontade livre e autônoma é que permite ao homem dar uma resposta dentro da necessidade imperativa da moral a Deus, tal resposta traz implícita a idéia da religião fundamentada nos valores morais. A presente reflexão vai de encontro á problemática trabalhada por Pannenberg no que se refere à liberdade do homem e suas implicações na antropologia teológica, porém, para este último, o fundamento tanto da liberdade quanto da Religião são constitutivos naturais do homem e se explicitam na sua atitude de abertura e de excentricidade.

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fundamentais para se falar do homem como ser religioso. Não teria como

considerar a dimensão religiosa do homem e sua relação com Deus se

retirarmos dele o verdadeiro sentido da liberdade cristã tão valorizada na

elaboração da teologia. Liberdade e consciência são dados

antropológicos também de alcance espiritual e atributos que colocam o

homem na condição de transcendência e de abertura para o mundo e

para Deus. Na mesma condição da liberdade, também a transcendência

humana concorre para afirmar o dado religioso da natureza humana em

Pannenberg, como será exposto nos itens seguintes.

3.2 A pessoa humana como ser transcendente

O estudo da dimensão transcendental do homem marcou o decorrer

da história da filosofia e da teologia do ocidente. O transcendente no ser

humano caracteriza-se por uma trajetória, que se inicia desde o

alvorecer do conhecimento sobre o homem até as buscas mais profundas

do sentido da existência humana no mundo. As perguntas

transcendentais tentam formular, dentro ou fora razão, respostas que dão

fundamentos para o desejo de superação do homem, construindo assim

no chão da existência finita, formulações explicativas para seu desejo de

infinito. O homem não se contenta com o limite do tempo, do espaço e do

puramente empírico; ele sempre deseja se lançar além de tudo isso.

Dessa forma, o transcendente é a dimensão do homem que o coloca

numa eterna busca e o projeta na sua dimensão espiritual e divina.

Pannenberg, como filósofo e teólogo inserido no pensamento

moderno, também não ignora a dimensão transcendental do homem.

Seguindo elementos do sujeito transcendental de Kant e dados da

filosofia existencialista de Heidegger e de outros pensadores, ele, como

teólogo cristão, mostra que a plena transcendência humana se dá na

Encarnação de Jesus na história.

Nossa abordagem aqui consistirá em elencar alguns elementos que

apontam para o ser humano como ser transcendente na sua experiência

de vida, através da relação com o mundo e em seu eterno desejo de

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algo mais. A pessoa, marcada pela contínua abertura, deseja algo que

está além da própria existência, se abre ao outro, constrói história e se

lança par além dela. O homem, na sua atitude de transcendência, busca

o Absoluto, o indeterminado. Depois de indicar alguns elementos

antropológicos do tema transcendência, trabalharemos um breve

relacionamento do conceito de transcendência com a história e, por fim,

nos voltaremos para o tema transcendência na visão cristã.

3.2.1 A transcendência como superação humana

Já no início do seu tratado antropológico W. Pannenberg expõe

como elemento essencial de sua antropologia a capacidade humana de

superação de si mesmo. Aqui, o homem no conjunto das espécies deve

superar a fragilidade que o marca desde o seu princípio. Esta

capacidade de superação, que se faz presente no ser humano é o que o

coloca numa condição de distinção no mundo e o situa num lugar

específico na história da criação. A transcendência, constitui assim, um

dado essencial no homem e concorre para libertá-lo das marcas de

deficiências biológicas e do desamparo, que se encontram presentes

nele desde sua infância. O homem transcende a fragilidade de sua

espécie exatamente no momento em que não se contenta com a

repetição de esquemas inatos e supera o seu entorno, gerando o que

Pannenberg define como instabilidade natural88. Tal instabilidade,

propicia ao homem o início de uma relação com o mundo que será

sempre marcada pela busca de algo que, como já dito, está além dele

mesmo como criatura limitada e finita. Adentrando num caminho de

constante transcendência na sua relação com o mundo e com os objetos,

o homem continua perseguindo uma realização que nunca se plenifica na 88 PANNENBERG, W. Op. Cit. p. 41 et. seq. Instabilidade natural, consiste precisamente, como definição, no rompimento que o homem faz com o mundo dos instintos, e assumindo para si, um lugar especial no reino animal. Com outras palavras, há um momento em que o homem não se contenta mais com o seu entorno e surge nele um apelo interior que vai mais além dos instintos. Ele se verifica numa situação de não conformidade com o meio. Neste momento, ele rompe com o meio, rompendo assim com sua natureza imediata ( primeira natureza), instalando-se no espaço da cultura (segunda natureza). Pannenberg indica que neste momento é que o homem se faz distinto de todas as outras espécies animais.

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experiência de mundo. Desse modo, ele se coloca na situação de eterno

andarilho89 que sempre almeja algo mais.

O Homem, situado no mundo, procura na transcendência

alternativas para superar os seus limites, elevando-se por ela ao mais alto

de seus desejos. Para Pannenberg, o mais alto do elevar humano na sua

busca se dá na sua condição natural de abertura ao mundo e, sobretudo,

ao sagrado como destino de plena realização. Abrindo-se ao mundo,

como experiência e como superação de si mesmo enquanto instinto, o

homem realiza a sua autoobjetivação90 e toma consciência de si, se

distanciando da realidade que o circunda. Pela linguagem e pela técnica,

bem como pela cultura, ele elabora uma resposta de transcendência para

os inconvenientes existenciais que o acompanham no seu existir no

mundo91. Ao superar os primitivismos orgânicos e os instintos de sua

natureza ele se direciona ao que é propriamente humano projetando-se

como excentricidade.

A abertura ao mundo só se torna possível graças à categoria de

espírito, pois é pela força dinamizadora dele que o homem toma

consciência de seu ser pessoa e da sua relação de abertura ao mundo92.

Mesmo quando ele transcende toda experiência ou representação de

objetos perceptíveis, sua vida ainda permanece aberta a algo que está

além. A abertura a uma alteridade que se encontra para fora dele e de

todos os objetos do mundo, constitui a presença de um desejo que se

89 O termo aqui usado pode nos remeter à obra de Friedrich Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, onde ele representa no homem a atitude de um eterno andarilho como quem está sempre em busca de algo “ Segue o teu caminho de grandeza: aqui ninguém há de ir em teu seguimento” O andarilho que sobe às montanhas e sempre perambula em busca de si mesmo pode representar de forma categórica o contínuo transcender humano no que se refere ao si mesmo e em relação ao mundo. Como andarilho, angustiado diante de sua existência, o homem se vê obrigado a construir algo novo no solo de sua contingência e de sua finitude. Se na tradição cristã, apresentada por Pannenberg, esta construção se dá na abertura para Deus e para o Absoluto, através do dado antropológico constitutivo do humano, em Nietzsche ela se mostra ofuscada pela figura do Super-homem. 90 PANNENBERG, W. Op. Cit. p. 45. Conforme está na antropologia de Pannenberg, este conceito se assemelha muito ao de autoconsciência, pois se trata da distância que o indivíduo toma da realidade sendo capaz de objetivá-la, inclusive no que se refere a si mesmo. 91Cf. Ibid., p. 47 et. seq. 92 Na antropologia de Pannenberg, a abertura do homem ao mundo é pressuposto indispensável para a sua experiência religiosa, uma vez que Deus é algo que já é experimentado na história humana, é nela que Ele se revela. Com isso, a religião não se agrega secundariamente ao comportamento aberto ao mundo, mas acontece justamente no mesmo instante e o homem se afirma na sua abertura ou como um sem centro mais além, fora do mundo.

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instaura em algo maior: o incondicionado, o infinito. Nessa busca

contínua ele vai superando todos os finitos e se elevando à idéia de

infinito enquanto conceito e desejo93.

Na existência humana, a incompletude é um marco em seu caminho

inacabado, Pannenberg expõe que, diante de tal realidade, o homem vive

uma atitude de ilimitada abertura ao mundo94, condição que possibilita à

pessoa superar cotidianamente a sua finitude e os condicionamentos que

marcam o decorrer de sua vida. O movimento transcendente do humano

coloca-o rumo ao seu verdadeiro destino, que se realiza quando o sujeito

supera a natureza e se instala num novo lugar existencial95. Assim posto,

a transcendência na sua compreensão mais pontual não se dá na direção

dos dados empíricos, mas na busca de unidade com o Absoluto, ou seja,

com o divino. A existência, imanente no mundo e marcada pela

autoconsciência bem como pela relação com os outros, ainda não se

constitui como realidade completa. E diante de tal circunstância, o homem

se abre para algo mais além, ou seja para o infinito. Nesse processo, o

eu como pessoa, define-se como sujeito consciente, que deseja o

Absoluto e se abre a ele96. O ato de transcender-se, se numa dimensão é

um buscar algo fora do homem, ele é também um movimento em que a

pessoa toma consciência de si mesma, ou seja, um voltar para dentro, em

que o indivíduo vai descobrindo a sua identidade e, nesta descoberta, ele

verifica o seu potencial de abertura para a sociedade. Ele se instala numa

esfera social dialogante estruturada e se abre à totalidade. Nesse

processo, a pessoa como unidade bem como totalidade vai sendo

construída no decorrer de sua vida, não estando pronta num determinado 93 PANNENBERG, W. Op. Cit. p.100. No dilema humano ele carrega consigo um conflito contínuo entre o desejo de infinito e a experiência existencial de finitude. Na trajetória da cultura humana, verificamos uma contínua luta entre o mundo do desejo e a experiência da realidade; assim, essa intolerável contradição tempo e eternidade, que marca o mais profundo paradoxo da aspiração do ser, busca de todas as formas no decorrer da transcendência da história ser resolvida. Na razão filosófica, busca a ontologia explicar o rumo do homem para o ser perfeito, o ser para a imortalidade, mas é no conceito de pessoa, de linhagem teológica e ligando a ele o predicado de perfectissimum in tota natura, que na antropologia teológica é resgatada, ante o escândalo da morte, pela fé na absorção do ser-para-a -morte da temporalidade humana na vitória divino-humana de Jesus na sua Ressurreição. Em Jesus a eternidade se faz tempo para o tempo entrar na eternidade Cf. HENRIQUE, C.L. Vaz. Antropologia Teológica II, São Paulo: Loyola, 1992, p. 228 et seq. 94 Cf. Ibid., p.100. 95 Cf. Ibid., p.140. 96 Cf. Ibid., p. 264.

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dado específico da história humana97. Tanto para a antropologia teológica

de Pannenberg, quanto para a teologia cristã, a totalidade do homem

como realização é uma superação da vida terrena elevando-se até Deus.

É no encontro definitivo com Deus que o homem participa da bem-

aventurança eterna e se realiza de forma plena98.

A antropologia pannenberguiana revela uma concepção de

transcendência que é, sem maior dificuldade, compreendida no homem

como um dado experimentado na consciência subjetiva. É o homem como

pessoa que ao dar conta de si mesmo, pela linguagem e pela razão quem

formula na cultura a superação dos seus limites, transcendendo o mundo

e a natureza. Pelo simbólico, na cultura, a pessoa ultrapassa a linha que

limita a sua existência, adentrando assim, numa realidade mais que

humana99. É esta idéia de superação da realidade como tal que se torna

possível compreender na antropologia aqui estudada a dimensão de

história. Na história, o homem participa de seu evoluir como espírito,

transcendendo-a, e no processar dos fatos a pessoa avança até a

plenitude da história e tal plenitude, para este autor, se dá em Deus como

realização plena da pessoa. No próximo tema a ser tratado veremos uma

breve compreensão da história como transcendência, para logo depois

tratarmos da relação história e cristianismo também em relação à

transcendência.

3.2.2 Transcendência humana e história

Visto já a temática da transcendência humana em Pannenberg e a

confirmação dela como um dado que acontece na consciência humana e

na subjetividade, cabe afirmar também um expandir do eu para fora de si

97 Cf. Ibid., p. 295. 98 A comunidade dos bem-aventurados, conforme se lê em alguns textos apocalípticos indica um estado beatífico de vida, onde o ser humano alcança pela graça divina o dom de participar deste novo estado de vida. Esta experiência esperada pela comunidade de fé representa para os cristãos o ponto máximo da esperança escatológica; o cumprimento mais profundo do desejo humano de contemplar a Deus e participar de sua eternidade. Nesta experiência de contemplação de Deus como experiência mística, pode se afirmar como o mais auto grau da transcendência humana compreendida pela via cristã. 99 PANNENBERG, W. Op. Cit. p.428 et. seq.

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mesmo como superação, colocando-se numa condição de abertura ao

outro, ao mundo e também a Deus.

Já que a abertura do homem e o seu expandir como transcendência

se dão na história, agora faz-se necessário mostrar a relação

transcendência humana e história.

Pode-se dizer que a criação da cultura, como o testemunho mais

eminente do dado transcendental do indivíduo, bem como a sua abertura

à sociedade e à história no processar da vida e dos fatos, caracteriza a

força do espírito humano em que a pessoa adquire uma dinâmica

propulsora da superação do seu eu diante de si mesmo e o eleva à

condição de participante e membro de uma sociedade e de uma cultura.

Pela consciência de historicidade o ser humano elabora a

possibilidade de perceber a dinâmica da realidade, ou seja, o contínuo

processar da história. O próprio Pannenberg lembra, na sua antropologia

teológica, que nas estruturas das relações sociais, bem como entre os

indivíduos e, ainda nas constantes mudanças; é neste contínuo

caminhar, que todas as coisas que sucedem ou que fazemos suceder, aí

é o lugar onde se constitui a verdadeira realidade de cada um dos

homens. Todos os incidentes parciais de uma vida recebem seu sentido

e, adquirem transcendência do lugar que ocupam no conjunto da história

em geral100. É num contínuo caminhar da história, como dinâmica dos

fatos, que o homem evolui na sua existência e a própria história favorece

a ele o constante transcender das situações provisórias do seu percurso,

para atingir a meta final de seu caminho. A história é marcada pela

temporalidade e por contínua superação da mesma, assim, o homem está

posto num eterno devir, transcendendo a história, que, por sua vez,

conduz o indivíduo a sua transcendência pessoal101.

A história somente evolui pela ação dos indivíduos, sendo que os

desejos da pessoa assumem como história uma construção dentro da

comunidade humana; e o mundo comum de cada indivíduo é superado,

abrindo na sociedade o espaço para a universalidade. Pannenberg

prossegue seu pensamento mostrando na vontade de universal a

100 PANNENBERG, W. EhcP. p 194 et. seq. 101 PANNENBERG,W. APT. p.613 et. seq.

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explicação do dado antropológico religioso, que sempre marcou

presença na história das culturas. Este dado tem a força de projetar o ser

humano ao infinito de sua insaciabilidade e abrir a ele o horizonte da

totalidade, do universal102. O homem, como excentricidade transcendente,

busca algo que é constitutivo de sua história como homem, mas ao

mesmo tempo é trans-histórico, pois o seu desejo supera o mundo

previsível do empírico, abrindo para algo que não situa no puro racional.

Pannenberg propõe que o processo histórico não está concluído,

como pode desejar a própria história ou a filosofia quando desenvolvem

uma pretensão de abarcar a totalidade da realidade humana, posto que

isto é algo que é vedado à própria história como tal103. O alcance da

totalidade histórica se faz impossível na própria dinâmica da historicidade.

Desde os tempos das civilizações egípicias ou gregas, almejam em suas

experiências, alcançar a totalidade quando buscaram superar o limite

factual da existência, como subjetividade situada e contingente; porém

isso nunca foi possível. Esta ânsia ficou muito evidente na elaboração dos

mitos e na criação de divindades, como caminho substancial para

satisfazer o impulso insaciável do homem de reter na própria experiência

a totalidade da história. Pode-se dizer que a experiência religiosa tem a

finalidade de acompanhar a evolução da história, propiciando o superar

da fatalidade existencial e constituindo, assim, uma unidade espiritual no

seu acontecer.

Cabe concluir com a afirmação de que o maior sinal de

transcendência do homem na história e da própria história, para

Pannenberg, é a dimensão religiosa, já que está elaborada da forma 102 Quando se verifica o caminho da história para alguns autores modernos e o destino para o qual ela se dirige como fim, é possível de deparar com uma compreensão de história que se sustenta fortemente nos fundamentos da razão. Isto aparece muito evidente no pensamento de I. Kant, quando a história vai ter sua conclusão no universo da razão prática ou na natureza, em ambos pólos a história tem seu telos sustentado na razão. Também Hegel na Enciclopédia das Ciências Filosóficas) ou Fenomenologia do Espírito aponta para uma conclusão universal da história no movimento do espírito como libertação do em si que se eleva à consciência-de-si, revelando a própria essência do ser. A história parece bastar-se em si mesma e a encarregada final de elevar o espírito à exterioridade universal da história é também a razão – assim a história pressupõe um fim em si mesma, o que parece ser a grande crítica apresentada ao pensamento moderno, por Pannenberg, em sua antropologia teológica; uma vez que para a teologia cristã o espírito da história não se eleva à sua plenitude por si mesmo, mas ele carece de algo mais, e este algo mais é dom gratuito de Deus que é oferecido ao homem na história, através da Encarnação do Filho e da realização de sua missão de implantação do reino de Deus. 103 PANNENBERG,W. Op. Cit. p.614.

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mais diversa nas culturas. No cristianismo, tal elaboração se dá de forma

lapidar no evento da Encarnação de Jesus. Com a vinda de Jesus, a

eternidade entra no tempo para fazer com que o tempo transcenda e

atinja o infinito. O cristianismo apresenta a transcendência não como

puro fruto do espírito da história, mas sobretudo como Graça. Por ela,

Deus vem até os homens e, num gesto inexplicável de amor, eleva- os e a

história à condição de divina. O que a razão no seu penoso caminho de

busca alcança em fragmentos, o dom transformador da Graça oferece ao

homem em plenitude. O tema da transcendência vai atingir amplo alcance

na teologia cristã, por isso, faz-se necessário, mesmo que brevemente,

acenar para esta experiência na história do cristianismo.

3.2.3 Transcendência e história no cristianismo

Finalizando a abordagem do homem na perspectiva da

transcendência e da história, apresentaremos alguns elementos desta

temática dentro do horizonte cristão, lugar em que o homem é

transformado em sua história pela história da salvação. O mistério da

Encarnação de Jesus para os cristãos é o grande marco transformador da

história, e o desejo do reino de Deus passa a ser uma constante no

caminho histórico da humanidade como transcendência.

A história, nos moldes cristãos, não é somente história humana, ela

é também história da salvação humana, que se realiza no gesto gratuito

do amor de Deus104. É Deus que se coloca a disposição para nos salvar.

Assim, a história humana é marcada pela força transformadora da Graça,

proporcionando ao homem uma história de salvação. É conciliando a

104 Acreditamos que vai de encontro ao tema da história como salvação em Pannenberg a obra do teólogo Mario de França Miranda: A Igreja numa Sociedade Fragmentada, São Paulo: Loyola, 2006, onde o autor nos lembra, ao tratar da economia salvífica, que “a compreensão cristã de revelação afirma a iniciativa totalmente gratuita de Deus de vir ao nosso encontro para nos salvar. Esse gesto salvífico não é mera produção humana, pois nesse caso não teríamos propriamente revelação, mas provém do próprio Deus. Em outras palavras, é uma experiência religiosa determinada pelo próprio Deus. Isso significa que na própria experiência Deus mesmo condiciona sua inevitável interpretação, como componente intrínseca dela. Se Deus se revela na história e como história, a experiência (sempre interpretada) dos eventos históricos e capacitada pelo próprio Deus” cf. p. 287

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dimensão cristã com o dado natural de transcendência presente na

subjetividade humana, que se pode falar de um coeficiente transcendental

na história cristã.

O cristianismo primitivo afirmava a tese de que o homem só ascende

a seu autêntico destino na história de Jesus se estiver em comunhão com

ele105. Nessa comcepção o acontecimento Jesus Cristo possui validez

salvífica universal para o homem. Tal entendimento encontra na pessoa

de Jesus Cristo a figura de um segundo Adão, que é o Adão celeste e

dele o homem traz também a sua imagem (1 Cor. 15,47-49)106. Com

Jesus surge um homem novo, renovado na ressurreição de Cristo, que

transcende à sua condição de mortal e assume uma condição imortal107

Se a filosofia debatia o lugar que a essência humana ou a natureza

ocupava no homem pelo acontecer da história, a teologia cristã vai

enxergar no homem, como perene marca de seu ser no mundo, a “imago

Dei” que chega à plenitude com Jesus Cristo, pois é Ele quem revela ao

homem o caminho de perfeição a ser seguido. Sendo assim, a

compreensão cristã do homem como história, que acontece desde o

primeiro Adão ao novo e último Adão, dissolve em historicidade o conceito

filosófico de natureza essencial humana independente de tempo, ou

melhor, o resolve no movimento concreto da história108. Na compreensão

cristã de história, lembra Pannenberg, a natureza humana está à

disposição de um complemento sobrenatural. Inversamente da noção

filosófica que coloca a natureza como necessidade absoluta e como

constitutiva de si mesma. A salvação, dentro da abordagem da

antropologia teológica é o ato mais significativo da transcendência

humana, em que o homem se eleva sobre a própria natureza e se abre à 105 PANNENBERG, W. APT. p.626. 106Cf. Ibid., p.626. 107 Cf. Ibid., p.629. Os tempos míticos bem como na filosofia grega parecem não ter conseguido uma proposta de superação definitiva para a contingência humana, buscaram respostas para os acontecimentos funcionais da vida, mas o dinamismo da história sempre continuou desafiando o homem. Com Jesus Cristo há uma inovação profunda, pois surge uma nova forma de vida para o ser humano. O homem restaura em si a idéia de imagem e semelhança com Deus, aranhada pelo pecado, assumindo assim, uma resposta de libertação plena e definitiva. 108 Cf. Ibid., p.631. Pannnenberg entra para a história da teologia muito conhecido como teólogo da história. Durante seu produzir teológico sempre teve presente este viés como abordagem. Pode ser considerado um marco no seu caminhar teológico, nesta direção, o seu estudo “Revelação como História” (Offenbarung als Geschichte) , onde o autor mostra que é na história que Deus se revela aos homens.

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oferta gratuita de Deus. É pela força da Graça que o homem consegue se

elevar ao mais alto grau de perfeição, chegando à semelhança de Jesus

Cristo. Dessa forma, é na história de Jesus de Nazaré que o homem se

supra-assume e se livra de seus limites, atingindo o seu destino de

imagem e semelhança com Deus. O estado de perfeição que o homem

almeja na teologia cristã vai se realizar para além da história; é na

eternidade que ele atingirá a sua condição de imortal, pela Graça

salvadora de Deus109.

Na tradição cristã, a transcendência se dá na presença do Absoluto

como existência. Em lugar de subida da alma ao Absoluto, como fora

traçado pela metafísica, caracterizando a idéia suprema, temos a descida

do Absoluto como existência110, efetuando na história a resposta

conciliadora ao dilema da existência humana. Ao descer pelo evento real

da Encarnação (acontecido na história), revela-se aqui uma resposta

definitiva aos anseios humanos, acenando para o fim da criação. É no

paradoxo antropológico, em que o homem situado no tempo e no espaço

como sinais de sua contingência, que se abre o horizonte da dialética

finito-infinito. O Verbo encarnado é para a pessoa a revelação de sua

transcendência existencial, e desse modo, o mistério humano se vê

iluminado pela luz do Logos de Deus que se faz história, encarnando-se

nela para elevá-la á categoria de divina111.

109 Cf. Ibid., p.633. Hegel na sua filosofia da história apresenta um homem que se realiza na história, mostrando um Espírito da História que parece ser conceituado de forma diferente do espírito de Deus da tradição cristã; para Schleiermacher tal idéia já é resolvida com a apresentação de Jesus Cristo que institui uma nova vida, “vida total” de uma nova sociedade, já não corrompida pelo pecado. 110 Num contexto, mais filosófico que teológico HENRIQUE C.L. Vaz. Atropologia FilosóficaI, II e III, São Paulo: Loyola. Expõe também com grande profundidade, tal qual Pannenberg, considerando a construção histórica dos conceitos e a elaboração cultural dos mesmos; fazendo uma exposição da antropologia e demonstrando um profundo itinerário da reflexão sobre a temática da transcendência. De forma complexa, porém clara, Lima Vaz recorda desde o alvorecer da filosofia até os dias atuais o evoluir de tal conceito, mostrando que o desfecho da transcendência é o encontro do homem com o Absoluto pela via escatológica cristã. 111 A constituição pastoral do Vat.II Gaudium et Spes, n° 264, apresenta Jesus Cristo como homem novo, através de uma afirmação muito clara e profunda sobre o tema da Encarnação “Na realidade o mistério do homem só se torna claro verdadeiramente no mistério do Verbo encarnado. Com efeito, Adão o primeiro homem era figura daquele que haveria de vir, isto é, de Cristo Senhor. Novo Adão, na mesma revelação do mistério do Pai e de seu amor, Cristo manifesta plenamente o homem ao próprio homem e lhe descobre a sua altíssima vocação. Não é portanto de se admirar que em Cristo estas verdades encontrem sua fonte e atinjam seu ápice. Ele é o homem perfeito, que restituiu aos filhos de Adão a semelhança divina”.

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Por fim, cabe dizer que, na Encarnação, o Filho de Deus traz ao

homem um novo caminho de realização como transcendência. Este

caminho é indicado como lugar da realização plena da vida humana, em

que, pela elevação de sua essência ao seu verdadeiro destino de imagem

e semelhança de Deus, o ser humano é capacitado para participar do

reino de Deus. A realização do reino é o acontecimento da história

humana como tal, sendo caracterizada como história universal de

salvação, em que o homem como sujeito, responde livremente a ela na

sua existência projetando-se para além de seus limites e de sua natureza

e alcançando um estado de perfeição divina, que chega a sua

plenificação na plenitude da história. A história humana não está

condenada ao fracasso e ao acaso contingente da finitude, ao contrário, é

o lugar da realização do ser humano como imagem de Deus. E isso é

possível através de sua abertura a Ele. Este horizonte de abertura

confirma no homem, conforme Pannenberg, a natureza religiosa do

mesmo e a busca da realização plena deste princípio natural. O próximo

capítulo dedicar-se-á mais exclusivamente à temática da abertura

humana e de sua relação com Deus através de Jesus Cristo.

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4 O ser humano como abertura para Deus – uma leitura teológica do ser humano em Pannenberg

Introdução

Depois de ter apresentado no homem alguns princípios que fazem

parte do seu ser pessoa, buscaremos demonstrar como constitutivo

implícito, conforme Pannenberg, a sua dimensão religiosa. Os

fundamentos de um certo modo já foram colocados quando trabalhamos

as noções de indivíduo, de liberdade e de transcendência, pois são

dimensões indispensáveis para compreender o ser humano situado no

mundo moderno.

Os conceitos que antecederam e que estão presentes na

antropologia teológica de Pannenberg, prepararam o solo da antropologia

para agora podermos, numa dimensão teológica, fundamentar a

argumentação de que o homem é essencialmente religioso na

compreensão deste autor. A abertura para Deus é uma marca que o

homem carrega consigo, desde o momento em que ele é chamado à vida.

Aqui será muito importante retomar a idéia da Imago Dei, pois tal tema se

faz primordial não só para a antropologia, mas também para demonstrar

no pensamento de Pannenberg, os fundamentos que sustentam a

afirmação de que o homem traz na sua essência a dimensão religiosa.

Depois de trabalharmos o tema da imago Dei , faz-se necessário

mostrar, mesmo que brevemente, a busca de validade para o discurso

antropológico religioso num contexto de modernidade. A afirmação do

homem como ser religioso por natureza é esclarecedora na antropologia

teológica de Pannenberg e nos coloca no cerne da problemática

abordada nesse estudo. Isto será exposto pelas sub-temáticas:

realização da confiança como possibilidade de abertura; a identificação do

homem com sua dimensão religiosa e, por fim, a verdadeira liberdade que

o ser humano somente encontra em Jesus Cristo. A realização plena do

homem se dá no amor de Deus revelado historicamente na Encarnação

do Verbo.

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4.1 A abordagem bíblica e outras abordagens do tema da imagem e semelhança de Deus no decorrer da história cristã

Neste primeiro momento buscaremos retomar a idéia da Imago Dei

no sentido bíblico, bem como no acontecer da história do cristianismo.

Sinalizaremos para as abordagens mais significativas do tema da imagem

e semelhança de Deus no processar da história, sempre tendo como fonte

o pensamento de Pannenberg.

No seu tratado teológico da criação, o autor deixa perceptível,

através do seu uso dos autores sagrados e de outros autores, que Deus

cria o homem por um ato de sua livre vontade. Ato revelador em que Deus

na sua plena liberdade se manifesta na criação humana. O convite

afirmativo do Texto do Gênesis "Façamos o homem a nossa imagem e

semelhança”112, traz no seu resultado um ser humano destinado à

experiência da liberdade. Desse modo, a pessoa, criatura e filha de Deus,

se torna sujeita, marcada por uma consciência e por uma vontade livre.

Ao tratar do homem como Imagem de Deus, Pannenberg lembra

que é seguro dizer que o homem está muito atrás do animal em força e

em segurança do instinto; e não tem a faculdade dos impulsos inatos.

Assim sendo, o homem recém-nascido, comparado com os animais, é a

criatura mais desamparada da natureza113. Mesmo que na sua natureza

haja tais deficiências na espécie, há princípios específicos do ser humano

que o singulariza na cadeia de espécies, como a razão e a liberdade114. O

homem no uso de sua razão e de sua liberdade, diferentemente do

instinto animal, possui uma direção vital que, conforme Pannenberg, foi

dada por Deus. Ele não abandonou o homem ao seu estado de

desorientação, mas lhe permitiu ir autoaperfeiçoando-se. Nisto consiste

exatamente o ser homem em conformidade com o ser imagem e

semelhança de Deus.

Juntamente com a fundamentação bíblica, Pannenberg apresenta

um longo e profundo caminho realizado no decorrer da história, buscando

112 Bíblia Tradução Ecumênica. São Paulo: Loyola e Paulinas, Gn 1,26. 113 PANNENBERG, W. APT. p. 53 et. seq. 114 Cf. Ibid., p.54.

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compreender a temática do homem como imagem e semelhança de

Deus. Para demonstrar o que distingue o ser humano e o define como

imago Dei, Pannenberg traça, através da antropologia moderna, alguns

pontos que ajudam a enxergar a pessoa humana no que propriamente ela

se revela na sua existência.

- Ele mostra que assim como os instintos guiam os animais, a

imagem de Deus guia o homem. Tanto o instinto como a imagem de

Deus têm a função de imprimir na vida da criatura uma direção.

- A imagem e semelhança de Deus vai se realizando no homem

durante a sua vida, portanto a dimensão religiosa do homem está

intimamente interagindo no ser pessoa do homem, ela fazendo parte da

sua vida.

- Também reforça que Características como humanismo, razão e

religião são dados que se desenvolvem no homem, através da sua

trajetória educativa e cultural. Disso resultam três fatores importantes na

compreensão do homem:

I Tradição e instrução, correspondendo a tudo aquilo que o

indivíduo recebe de outros, visto que ninguém se constitui homem

sozinho, a transmissão se dá diante do todo que circunda a pessoa.

II Duas forças orgânicas presentes na existência humana: a razão

e a experiência, nas quais o homem vai se autoconstruindo como ser

humano.

III Pela providência de Deus o homem sai do espaço do acaso e

entra na compreensão de necessidade, esta governada pelo poder de

uma causa absoluta que é Deus. Na experiência que o homem vivencia,

ele já visualiza uma meta que está proposta para ele. Deus tem uma

intenção para o gênero humano na terra, sendo deste modo seu destino

de caráter divino. No espaço da cultura humana, na história, no

ensinamento e na tradição; bem como no uso da razão e da experiência,

em tudo há a atuação da providência divina para a meta a que se destina

o homem: ser imagem e semelhança de Deus115.

115 Cf. Ibid., p. 55 et. seq. Nestas páginas, Pannenberg problematiza a questão do homem como imagem e semelhança de Deus com vários autores como Herder, Irineu de Lyon, E. Brunner, K. Barth e outros.

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A doutrina teológica da criação afirma que no seu estado original o

homem havia sido criado à perfeita imagem e semelhança de Deus, e no

entanto, ele perdeu esse estado original devido a sua queda e ao

pecado116. Para os escolásticos da Idade Média, mesmo que pelo pecado

o homem perca sua iustitia originalis como Graça suplementaria,

perdendo a justiça original não perde a imago Dei, pois esta faz parte de

sua natureza. Pannenberg ainda traz a abordagem de Irineu de Lyon

sobre o relato vétero testamentário de (Gn 1,26), que mostra uma

distinção entre Imagem de Deus e semelhança de Deus. Irineu faz a

analise morfológica do termo zelem de mut, que para ele, designam

coisas distintas117. Ele entendia a semelhança como um grau superior à

imagem.

Também a escolástica latina medieval distinguia imagem e

semelhança, preservando assim, a continuidade da posição defendida por

Irineu.

Diferente é a visão da Reforma, separando-se da posição defendida

pela escolástica latina. A imago Dei não é só para ela o fundamento da

comunidade efetiva com Deus (iustitia originalis), mas a identifica com a

justiça do primeiro homem. O pecado não é só a perda da semelhança,

mas também da imagem de Deus118.

É na afirmação do resto formal da imago Dei que o homem

continua sendo homem apesar do pecado, e é neste resto, que abre

espaço para a revelação de Deus.

Já para os católicos e para a concepção medieval, a idéia da imago

Dei se diferencia dos reformadores, pois para estes, a imago Dei consiste

na relação efetiva com Deus e para aqueles, o suposto da imago Dei é a

116 Cf. Ibid., p.58. 117 Cf.Ibid., p.59. Pannenberg mostra pela obra de G.von Rad: El libro Del Gênesis, Salamanca, 1988, que o termo imagem se aclara diante da adição da noção de semelhança, ele em simples sentido de que a imagem em questão deve conformar-se com o arquétipo, ou seja, deve ser semelhante. 118 Cf. Ibid., p. 60. Pannenberg ainda lembra que também na Fórmula da Concórdia se iguala a justiça original do homem, ou seja, sua relação atual com Deus, com seu ser imagem e semelhança de Deus. Além da distinção entre escolástica latina e Reforma no que se refere à imagem e semelhança de Deus, Pannenberg evidencia a polêmica contemporânea criada entre K. Barth e Emil Brunner, refletindo se com o pecado o homem perdeu por completo a imago Dei ou se permaneceu um resto.

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propriedade estrutural formal da essência do homem119. O que aparece,

porém, é que para as concepções de ambas confissões, como lembra

Pannenberg, coincidem em que a imagem de Deus no homem existiu no

começo da história da humanidade: na perfeição do estado original do

primeiro homem antes de pecar. A idéia de uma imago Dei em devir,

como é pensada por Herder, se diferencia nitidamente das tradições das

confissões citadas acima120.

Pannenberg usa a idéia moderna de processo de humanização,

entendida como auto-aperfeiçoamento e comum a toda humanidade,

podendo colocá-la em conexão com a noção dinâmica, ainda que nem

sempre esta idéia venha unida com o conceito de imago et similitudo

Dei121.

É num cenário de modernidade que Pannenberg usa o conceito de

auto-aperfeiçoamento moral do homem, termo já usado por Leibniz122,

para indicar que as coisas por sua atividade alcançam um grau maior de

perfeição, sendo que os espíritos são as substâncias mais perfectíveis.

Ele afirma que a noção de auto-aperfeiçoamento não se sustenta

somente a partir da realidade humana, ou seja, não tem como retirar a

totalidade do ser humano somente dele mesmo como queria I. Kant 123. O

homem constrói sua identidade e seu aperfeiçoamento dentro de uma

cultura, adquirindo através da tradição e do conhecimento novas

experiências. E mais, realiza verdadeiramente sua vocação humana

quando a noção de imago Dei o direciona naturalmente como disposição

à providência divina; isso se faz imprescindível para a formação do ser

humano como tal. Sua disposição para a imago Dei é realizada somente

119 Cf. Ibid., p. 61 et. seq. 120 Cf. Ibid., p.62. O autor acentua as posições de Marsílio Ficino que afirma na encarnação o cumprimento perfeito do destino religioso do homem e Pico della Mirandola, este mostra que em Jesus Cristo se dá a restauração do homem e se realiza a perfeita criação do homem. 121 Cf. Ibid., p. 63. Pannenberg, no seu fazer teológico, se propõe com grande empenho em dialogar de forma profunda e crítica com a modernidade. Ele usa de maneira incisiva categorias cientificas sólidas e profundas das ciências modernas. É significativo reforçar que a idéia de auto-aperfeiçoamento caracteriza-se um princípio presente na atualidade secularizada para se falar do potencial humano como natureza. De certo modo, tal auto – aperfeiçoamento, como faz questão de pontuar Pannenberg, na modernidade assume o lugar da idéia de imagem e semelhança de Deus da tradição judaico-cristã. 122 Cf. Ibid., p.64. 123 Cf. Ibid., p.65.

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pela ação de Deus mesmo na vida do homem124. Não há como separar a

realização do destino humano da providência divina, mas nesta realização

há de considerar sempre a participação ativa do homem.

A teologia evangélica, partindo de estudos atuais da antropologia

teológica, faz uma nova leitura da narração javista da criação e da queda

de Adão. A imago Dei não é descrita como perfeição original que se

perdeu pela queda de Adão, mas é tratada como destino por realizar do

homem. Também, nesta mesma linha, afirmava Kant quando dizia que “o

homem foi criado bom. Isso não pode significar mais do que foi criado

para o bem e a disposição original do homem é boa”125. O homem tem

um fim que é bom. Pela sua potencialidade e disposição se torna

possível o cumprimento de seu destino de formar-se no conhecimento, no

amor à verdade, ao bom e ao belo, e elevar isto à regra imutável de toda

sua atividade. Todas estas realidades são percebidas pelo homem em

maior incomensurabilidade na divindade. Quanto mais alto seja o

conceito, mais alto também se faz o destino do homem no seu ideal de

virtude, de justiça e eternidade. O homem se vê destinado a tais

grandezas e busca se aproximar delas126.

A teologia dialética do século passado, voltou a recorrer às

afirmações da Reforma sobre a perda da imago Dei devido ao pecado, e

recolocou a doutrina do estado original. Pannenberg mostra que E.

Brunner censurava Schleirmacher e seus seguidores por terem

abandonado a intuição cristã fundamental sobre a origem do homem e tê-

la substituído pelo evolucionismo idealista de forte impostação naturalista.

Mesmo que não se fale de origem como começo empírico, mas sim, da

compreensão de um estado atual do homem e de uma origem dele na

vontade de Deus; ainda que atribua ao homem uma condição de pecador,

124 Em Herder, como comenta Pannenberg, a idéia de imago Dei foi secularizada, superando assim, a visão moral da imago Dei, e deste modo, elevou o homem ao sobrenatural e à condição da Graça, contrariando a visão iluminista de homem . Aqui o homem depende da ação da Graça de Deus. 125 PANNENBERG, W. APT. p. 66. 126 Cf. Ibid., p. 66. Ao propor que o homem foi criado bom, como faz Kant, isso quer dizer, que ele foi criado para o bem e a disposição original do homem é boa. O destino do homem não é um destino prometéico, marcado pela eterna fatalidade da repetição e do fracasso, mas é um destino que o projeta num horizonte cada vez mais amplo, onde ele vai caminhando rumo à realização do seu ser imagem e semelhança de Deus.

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ele só pode ser compreendido, como lembra Pannenberg, a partir da

imagem de Deus como princípio original e como aquele que vive

paradoxalmente também em oposição a ela, trazendo em si mesmo um

princípio de contradição127.

No desenvolver da temática da Imago Dei, Pannenberg pergunta se

é possível uma defesa sólida da doutrina dogmática acerca do estado

original de Adão, se não, no sentido de início histórico da humanidade –

de origem com base no divino, há como afirmar a perda da perfeição

original.

Para o teólogo aqui estudado, quando se fala de estado original de

perfeição do homem, perdido pelo pecado, só é sustentável, caso

possamos afirmar tal estado também como a origem da história da

humanidade. Quando aborda a idéia de perda deve admitir ter possuído

tal estado de perfeição como estado que anteceda a essa perda, havendo

de admitir a questão de ter havido ou não esse estado. Algumas

afirmações desse tipo não são muito harmonizadas com as investigações

das ciências naturais e intentam salvar fórmulas teológicas tradicionais

muito rebuscadas, como quando se fala de uma origem a-histórica.

Pannenberg faz ver que o ponto de partida do regresso à idéia do estado

original se encontra na experiência do ser homem como um dever.

Assim, o homem singular é homem universal, ou seja, é o gênero128.

A temática do estado original de queda que se atribui ao homem

como gênero só pode ser compreendida no universo mítico do pensar e

não é adequada à experiência histórica que o homem tem de si mesmo e

de seu mundo, que aponta para o homem como realização futura de seu

destino. Tal futuro, se manifesta a cada um na sua experiência de existir

como homem. E a própria experiência de limites e fracassos apontada na

identidade original do homem é fator que abre ao homem a compreensão

de que a fé na autorealização, quando construída por ele mesmo, não é

possível. Ele só consegue alcançar sua realização elevando-se acima do

127 Cf. Ibid., p.68. 128 Cf. Ibid., p.70.

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que ele é; abrindo-se ao mundo e aos outros. Por estes meios Deus atua

na vida do homem129.

A experiência de fraqueza que o ser humano vivencia na sua

existência e a sua infidelidade para com o próprio destino é realmente

decisiva para lançar fundamento de sua credibilidade em algo maior que

ele. Aqui entra o papel da fé na vida do ser humano. O homem que não é

idêntico consigo mesmo, não pode tão pouco construir por si mesmo sua

identidade. Ele, por si só, não alcança o fim para o qual foi destinado,

mesmo que ele tome parte desse processo e que participe junto com

outros que também estejam nesta direção do agir humano; é Deus que

atua e o fim do homem não é outro senão a comunhão com ele130.

Como mostra Pannenberg, a maior parte dos teólogos do século XX

defenderam a imago Dei como destino do homem. A imagem de Deus é,

assim, um constitutivo antropológico do homem que nem perdeu e nem se

pode perder, pois ela compõe sua própria natureza. Entre os muitos

teólogos que debatem tal problemática, Pannenberg cita K. Barth que

considera a imago Dei como princípio que marca o destino do homem,

destino para o qual o homem caminha; destino este que é aliança do

homem com Deus. Para Barth, isso não pode ser perdido, pois é

realidade que o homem não possui como coisa; a imago Dei é desígnio

de Deus ao criar o homem, ela é a palavra e a promessa suscitadas ao

criar o homem e não pode perder-se e nem estar submetida à destruição

alguma, seja total ou parcial131. Tal dado transcende a existência humana

e pontua, de certa maneira, o mistério da criação.

Pannenberg reforça a imago Dei como aquilo que desempenha a

função de mostrar o caráter de inacabada da humanidade do homem. O

destino para o homem não pode ser pensado na vida que já se faz real.

A imago Dei permite ao homem pensar o fim da realização de sua

essência e constitui ao mesmo tempo a situação da qual ele parte.

Mesmo considerando que o homem seja marcado por imperfeições, ele

está em condições de superá-las, através de sua abertura ao mundo e às 129 Cf. Ibid., p. 71. Pannenberg trata de forma ampla o tema do mito e sua compreensão dentro do cristianismo. 130 Cf. Ibid., p. 72. 131 Cf. Ibid., p. 70 et. seq.

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coisas de fora dele. É diante da transcendência do homem sobre si

mesmo, que ele toma consciência de sua subjetividade e também toma

consciência do seu destino de excentricidade e apropriação do mundo,

bem como de sua abertura para Deus132. Quando se afirma no homem a

capacidade de orientação até o fora de si, verifica-se que ele transcende

à sua subjetividade e vai até outros objetos que compõem o seu mundo,

ou seja, o fora de si. Esta excentricidade do homem o faz tomar

consciência da alteridade dos objetos ou da alteridade do seu

semelhante. O homem, ao transcender, percebe o mundo em sua volta, e

ao perceber o mundo, percebe também os objetos como realidades

determinadas, isso já faz com que tais objetos sejam superados, dado

que a determinação de um objeto singular só é apreensível em um

horizonte de sentido infinito. Quando o homem supera um determinado

objeto ele está indo além do finito. Esta abertura que o homem tem para o

mundo e sua capacidade de objetividade em relação com os objetos do

mundo traz um sentido implícito profundamente religioso. A experiência

que o homem faz do mundo é o caminho para a experiência que ele faz

de si mesmo133. A busca que o homem faz de si nos objetos do mundo

confirma não apenas a busca do objeto em si mesmo, mas revela algo

mais que é a construção de sentido para sua vida e esse sentido está no

caminho para o qual ele se destina.

Ele só pode ascender completamente a si mesmo em referência a

Deus. Como já afirmado antes, por natureza o homem se revela um ser

religioso e busca constantemente um sentido mais profundo para sua

vida; ele se abre ao transcendente através de suas experiências no 132 Cf. Ibid., p. 82. Se para Herder, como recorda Pannenberg, é no processo do devir da subjetividade que o homem descobre seu destino à imago Dei. Em Scheler, assim como em Plessner, dois autores estudados de forma profunda por Pannenberg, é pensada a própria estrutura essencial do homem como espaço que já implica a problemática religiosa. Deste modo, a realidade divina pertence tão constitutivamente à essência do homem como a essência de si mesmo e a consciência do mundo. A religião não se agrega secundariamente ao comportamento aberto ao mundo, ao contrário, junto e no mesmo instante que ele se afirma como centro fora e mais além do mundo. 133 Cf. Ibid., p. 89 et. seq. O tema sujeito e objeto, tão solidamente abordado na filosofia moderna e consequentemente em Pannenberg significou o desencadear de um novo horizonte paradigmático para o fazer científico. Houve um deslocamento na forma conceitual para definir a relação do homem com o mundo e com ele mesmo. Este novo horizonte adquire grande robustez nos pensamentos de Kant e de Hegel. Estes dois pensadores marcam a modernidade oferecendo obras de grande magnitude como Fenomenologia do Espírito (Hegel) e Critica da Razão pura (Kant) entre muitas outras.

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mundo. No momento em que o ser humano não consegue fazer este

caminho de transcendência dos objetos do mundo e de si mesmo para

com isso chegar ao seu ser sujeito como imago Dei, ele pode criar para si

uma outra confiança fundamental que lhe dê suporte à sua vida. Se essa

confiança não for a sua fé definitiva em Deus, podem ser outros ídolos

que irão preencher o sentido mais profundo do seu existir134.

Antes de encerrar, cabe dizer que para Pannenberg a Imago Dei é

um constitutivo humano doado a ele desde sua origem, mas é também o

que, o homem no uso correto de sua liberdade e de sua vontade, vai

respondendo ao seu destino no mundo. Assim, a realização da imagem e

semelhança de Deus no homem, é por um lado, o processo que

acontece na história humana, como resposta ao projeto de Deus; por

outro, é dom, é Graça oferecida ao homem por Deus. Aqui pode-se

afirmar que a realização do homem como imagem e semelhança de Deus

já se inicia na história, no mundo, como veremos no tema seguinte e se

completará na plenitude dos tempos na escatologia.

4.1.1 A imagem e semelhança de Deus e o mundo

Como preâmbulo deste tópico, convém dizer que toda experiência

humana é mediada e a experiência religiosa também se faz desta forma.

O mundo é o lugar para o homem se descobrir como imagem e

semelhança de Deus. Nesse sentido, ele já vive sua realização como

imagem e semelhança de Deus na sua história vivenciada no mundo. É

na experiência da vida que ele vai se descobrindo no seu destino como

Imago Dei, e esta experiência emerge como realidade quando o Filho de

Deus se encarna na história humana. Desse modo, Jesus é o modelo

perfeito do que o homem deve ser. Pannenberg, recorrendo aos escritos

paulinos, diz: ele é o novo Adão, o homem perfeito. Aqui vamos indicar

algumas implicações do tema imagem e semelhança de Deus no homem

134 Cf. Ibid., . p. 90.

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82

e sua relação com o mundo e sinalizaremos como essa idéia foi

compreendida na história humana.

O autor lembra que a expressão imago et similitudo Dei foi usada

com o sentido geral de destino do homem à comunidade com Deus. Já a

igreja na antiguidade e na Idade Média buscava a semelhança de Deus

pelo que faz o seu conteúdo em relação da alma espiritual do homem com

Ele. Na Reforma, a semelhança estava unida entre a vontade do primeiro

homem no estado de justiça original e a vontade de Deus. O que

predomina hoje na exegese, diz Pannenberg, é que o relato bíblico da

criação liga semelhança com Deus e o destino do homem de dominar a

terra135. Mesmo sem impor esta correlação, ela se faz imediata como

seqüela da declaração de ser o homem imagem e semelhança de

Deus136. O conteúdo de tal afirmação poderia estar ligado à relação do

parecido com Deus na configuração do homem. A idéia de domínio é

muito presente em Israel quando se liga a imagem e semelhança com a

idéia de filiação divina, como distinção que caracteriza a posição do rei.

Por isso , o Antigo Testamento se referia a todos os homens como reis da

criação. O documento sacerdotal atribui, assim, ao homem o posto de rei

que governa o mundo criado.

No Novo Testamento o homem no seu destino deve ser a imagem e

semelhança de Deus na figura de Jesus Cristo. Cristo é o exemplo do que

se coloca no mundo como servidor e aquele que o quiser imitar seja

também um servidor.

Hoje o mundo apresenta dificuldades para relacionar a idéia de

imagem e semelhança de Deus com a palavra dominar. Pannenberg

pergunta se há uma conexão objetiva e demonstrável entre estas

realidades. Na resposta confirma haver um nexo entre relação com Deus

e domínio crescente do homem sobre as condições naturais de sua

existência. É através de sua autotranscendência excêntrica que o homem

atinge um amplo horizonte de sentido que abarca todas as coisas finitas.

Esta capacidade do homem de apreender o objeto singular, podendo

determiná-los, é o que o distingue dos demais. Pela atividade da razão,

135 Cf. Ibid., p.93 et. seq. 136 Cf. Ibid., p.93.

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83

o homem consegue conceber o singular a partir do universal,

procedimento esse que se converteu no fundamento do seu transcender

o imediatamente dado, desenvolvendo assim sua capacidade de

dominar os objetos do mundo natural137.

Mais recentemente tem havido reprovações à tradição judaico-cristã

por ter preconizado a idéia do destino do homem de dominar a terra. Em

tempos passados essa relação foi mais positivamente ressaltada; falava-

se da fé cristã como inimiga ou alheia ao espírito da ciência e da técnica

moderna138. Pannenberg mostra que também teólogos questionam a

supremacia dada ao homem sobre a natureza e reivindicam uma

revalorização de toda criação. Mesmo que tais posturas possam fazer um

movimento de ressacralização da natureza, são posturas que estão muito

próximas da apresentada pela fé bíblica na criação, apontando para o

verdadeiro sentido da missão de domínio dada por Deus ao homem de

explorar a terra. O poder sobre a natureza que é dado ao homem,

segundo o relato sacerdotal da criação, deve revelar o poder mesmo do

criador sobre a criação. Não é uma patente para explorar a natureza

egoisticamente.

Foi a partir do século XVIII, quando o homem moderno se desvincula

do Deus criador bíblico, que ele passou a dominar e explorar a natureza

desenfreadamente. No que se refere a essa situação, segundo

Pannenberg acusar a cristandade ocidental de tal responsabilidade não

parece justo. Foi na emancipação do homem moderno da revelação

bíblica, que ele usou o seu encargo bíblico em um sentimento de uso da

natureza de forma caprichosa e desregrada139.

O modelo perfeito de relação com a natureza e com o mundo para

os cristãos é Jesus Cristo. Todo homem deve ter em si a imagem de

Jesus Cristo como a imagem do segundo Adão e, conseqüentemente, ir

concretizando em si o que é seu verdadeiro destino – ser imago et

similitudo Dei. Ao assumir em si a imagem de Deus, vem ao homem o

imperativo de respeitar e honrar a dignidade humana, imperativo que se

137 Cf. Ibid., p. 95. 138 Cf. Ibid., p. 96. 139 Cf. Ibid., p.97.

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84

reduz em última instância, ao feito de que o indivíduo humano se acha

como referência, mais além de sua realidade, que se faz presente ante os

olhos. O homem é destinado a um horizonte que permanece aberto e, por

isso mesmo, voltado para Deus. A imago Dei, que a Bíblia atribui ao

homem como destino, revela a sua profunda dignidade e fundamenta a

não violabilidade do mesmo, como constata o Gênesis: sua vida deve ser

respeitada( Gn 9,6)140.

O Novo Testamento apresenta a plenitude da dignidade humana na

figura de Jesus Cristo. Já o cristianismo primitivo afirma a tese de que o

homem só ascende a seu destino autêntico na história de Jesus e em

conformidade com ele. Com isso, um acontecimento histórico particular

adquire valor universal para o homem141. Na fala de Paulo, verifica-se que

em Jesus Cristo o homem assume a figura do segundo Adão, o Adão

celeste, (Cor.15,47-49). Em Jesus Cristo, o homem, marcado não só pelo

pecado e pela morte, mas também pela imago Dei, participa de um

horizonte que supera toda finitude e, na Graça salvadora revelada na

ressurreição de Jesus Cristo; este homem participa do infinito divino e se

torna o homem novo e imortal. A ressurreição de Jesus Cristo e sua

exaltação apresentam ao homem escatológico a sua real participação na

imagem e semelhança com Deus ( 2 Cor. 4,4)142.

Por fim, vale reproduzir literalmente as palavras de Pannenberg para

falar do destino humano no mundo:

“O destino do homem a ser imagem e semelhança de Deus e a dominar, como senhor, sobre a criação. Em efeito, o sentido positivo de domínio – que não é mera opressão – é a realização da unidade e da paz. O destino do homem a ser imagem e semelhança de Deus se cumpriria então na reconciliação do mundo, graças à aparição do Messias. E, com efeito, o Novo Testamento chama a Cristo de imagem realizada de Deus (2 Cor. 4,4)”143.

140 Cf. Ibid., p.301. 141 Cf. Ibid., p.626. 142 Há na modernidade muitas reflexões que problematizam o destino do ser humano e também falam de sua abertura para o divino. Mesmo falando dessa abertura para Deus, muitas correntes antropológicas da modernidade preferem afirmar a realização do homem somente no contingente da história; não enxergando a dimensão de infinito e de sagrado presente na história. Esta visão deixa a história carente de escatologia e de transcendência, explicando a crise moderna da metafísica. Ao voltarmos o olhar para o agir ético de Kant ou o Estado de Hegel e a dialética da História de Marx podemos ver uma carência da idéia do destino do homem como imago Dei no sentido bíblico cristão. Pannenberg faz um longo caminho pela história e pela antropologia teológica para demonstrar no situar histórico do homem a revelação de Deus. 143 Cf. Ibid., p.670.

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85

Conseqüentemente, a realização histórico-salvífica da imago et

similitudo Dei do homem em Jesus Cristo se apresenta como um dos

dados mais profundos da nossa fé. É em Jesus que o ser humano chega

à sua plenitude de perfeição e à sua salvação. Pannenberg demonstra

uma correspondência do homem imago Dei, com a vida Trinitária de

Deus. Esta correspondência encontra sua efetivação na comunidade

humana: na comunidade do Reino de Deus, cujo Messias é Jesus Cristo,

o servo, como afirma Lucas, (Lc. 22,28). Neste Reino proposto por Jesus

não comporta domínio de uns sobre outros, todos devem construir uma

verdadeira comunidade fraterna unida pelo amor de Deus nos doado em

Cristo.

Finalmente vale afirmar que somente na descoberta da dimensão

religiosa e, na experiência da mesma, pela Graça da fé, é que o homem

consegue se lançar no caminho da sua realização como participante do

reino. Ao continuar nossa investigação faremos o esforço em demonstrar

algumas características que marcam a dimensão religiosa da pessoa

humana para Pannenberg.

4. 2 O homem religioso na antropologia de W. Pannenberg

4.2.1

A validade da dimensão religiosa

De início, já se pode afirmar que debater a validade da dimensão

religiosa para a sociedade moderna pode parecer uma realidade

deslocada e absurda. Uma vez que vivemos em uma sociedade, como

recorda Pannenberg, secularizada, nessa sociedade a religião parece

não ter grande peso na vida das pessoas. Diante de tal cenário, resta à

religião e aos valores religiosos do ser humano serem defendidos como

valores epistemológicos ou ao contrário, relegados ao descaso e ao

desdenho alheio. Neste primeiro momento vamos aludir brevemente a

esta questão como preliminar para, logo depois, entrarmos em outras

questões desta temática.

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86

A dimensão religiosa do ser humano constitui fator fundamental de

sua compreensão como pessoa. Em todas as culturas, no decorrer de

séculos, o homem no seu ser pessoa recorre à religião como busca de

respostas para os anseios mais profundos de sua vida. A sacralização da

vida, como experiência religiosa, abre no homem o espaço para o

sagrado e ele se inclina na direção do transcendente, do divino. Deus

entra na vida do homem no momento em que ele se compreende como

ser consciente de si mesmo, e nesta compreensão ele se vê marcado por

fragilidades e limites144. É na indigência de sua vida, bem como na

experiência fatal do destino como finitude que o homem não se conforma

com tal situação e se lança para algo além; assim, o homem descobre em

si algo que é maior, algo que ultrapassa o limite do espaço e do tempo,

ele descobre Deus.

A dimensão religiosa, apresentada por Pannenberg, é algo que

constitui a essencialidade do homem. Ela é um fio de esperança que

perpassa a história humana e o eleva acima de todas a s suas fraquezas

e misérias.

Ao apresentar o homem como ser religioso faz-se importante

lembrar que Pannenberg afirma, através das teorias de Schleiermacher,

que a religião se livra da independência da base da piedade privada e

funda uma validez antropológica universal para si. Ela reivindica para si,

um lugar específico no espírito humano, que não é reduzido nem à moral

nem à metafísica. Não só o cristianismo busca o estatuto de validade para

a dimensão religiosa do homem no antropológico, mas também os que

tentam impugnar a fé cristã usam argumentos antropológicos como L.

Feuerbach, Nietszche e Freud, e seus seguidores que vão afirmar que a

religião não é mais que um produto da fantasia e expressão da

autoalienação do homem145.

144 As fragilidades não são causa da dimensão religiosa do ser humano. Ele não procura a Deus como um paliativo para suas fragilidades. É também diante da realidade de fraquezas e deficiências que o homem busca a superação das mesmas, não aceitando a sua condição de finitude e de debilidades. A superação dos limites humanos na sua existência, para Pannenberg, acontecerá em Deus. O estado de imperfeição também ajuda a direcionar o homem para Deus, um ser perfeito não careceria de um Deus. Pannenberg, , como cristão, que antes da fragilidade e do pecado, a Graça de Deus já se faz presente na vida do ser humano. 145 Cf. Ibid., p. 19 et. seq.

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87

O desafio para a compreensão da dimensão religiosa do homem é

buscar afirmar, através da teologia cristã, análises antropológicas, sem

encerrar a teologia em um antropocentrismo e, não caindo em tal perigo,

a teologia deve refletir sobre a importância fundamental que tem a

antropologia e todo pensamento moderno para afirmar os enunciados

religiosos, sem aliar-se à crítica ateísta, que reduz a religião e a teologia à

pura antropologia146. Neste sentido, cabe lembrar que é diante da idéia de

afastar a teologia do antropológico, em que fundamenta a grande crítica

que Pannenberg apresenta a K. Barth, definindo sua posição de

subjetivismo teológico147. Em Pannenberg, não há como falar de teologia

e de religião sem falar juntamente do homem e de sua situação na

história. A teologia busca empregar de forma teológica os fenômenos do

ser homem, pois religião e humanidade estão vinculadas estreitamente e,

sem dúvida, já se encontra no homem predisposição à razão ao

humanismo e à religião148.

Pannenberg evidencia, já no contexto da natureza humana e nos

fenômenos cotidianos da vida, o acontecer da problemática religiosa; tal

problemática se faz presente na estrutura essencial da forma de vida

humana . Os conceitos religiosos e teológicos não são externos aos

fenômenos naturais, mas se manifestam através destes fenômenos.

Como afirmado anteriormente, a religião não se agrega secundariamente

ao comportamento aberto ao mundo, mas se faz presente no homem,

quando este tem que afirmar algo que justifique seu centro fora mais além

do mundo149. Para se lançar para além desse mundo, numa atitude

transcendente, o homem carece de experimentar as realidades finitas,

assim ele as ultrapassa e consegue chegar ao infinito, ao divino. Desse

modo, ele constrói a sua existência excêntrica e sua identidade pela

experiência do mundo externo através da relação com os outros. Ele

carece de se formar na razão, na humanidade e na religião – e isto ele

146 Cf. Ibid., p. 21. 147 Cf. Ibid., p. 21. 148 Cf. Ibid., p. 56. 149 Cf. Ibid., p. 82.

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88

realiza mediante a experiência que faz de mundo e, sobretudo, na relação

com os outros homens150.

Finalmente, cabe dizer que a experiência religiosa, em Pannenberg,

é essencialmente humana, pois é na história humana que tal experiência

se revela; daí o título atribuído a este autor de teólogo da história. Mesmo

que o ser humano ainda não tenha atingido a plenitude da experiência de

Deus, ela já se faz fato consumado, realizado em Jesus Cristo. Cristo é a

revelação total, plena do Pai. Ele é o protótipo do que o homem deve ser

como realização. Em Jesus Cristo o homem religioso já vislumbra o seu

destino realizado, e espera essa realização com toda sua confiança,

posto que a confiança é um elemento indispensável para o homem de fé.

Aprofundaremos o tema da confiança como atributo do ser religioso do

homem, porque somente por ela o homem efetiva o seu potencial para a

excentricidade.

4.2.2 Confiança e abertura – características do ser religioso do homem

Pelo que já foi abordado até aqui, vimos que a antropologia de

Pannenberg compreende a dimensão religiosa como marca essencial do

homem. É essa dimensão que o coloca como abertura, porque em sua

excentricidade lança-se de forma confiante a experimentar o mundo como

experiência de si mesmo. Da experiência de abertura como práxis

humana emerge a sua dimensão religiosa; a fé aparece como um extra

se. Assim, a estrutura da fé do homem é essencialmente marcada pela

atitude de confiança e de abertura. Quando se crê abandona-se ao que

se crê sem nenhuma reserva151. É exatamente no momento em que no

indivíduo comporta um lugar para o outro que se pode enxergar nele

traços religiosos. A excentricidade constitui uma maneira de o homem,

através do outro, chegar a si mesmo. Deste modo, o outro da fé, marca a

experiência de confiança fundamental do indivíduo na sua experiência

religiosa. Na antropologia de Pannenberg, é a partir do contexto da

150 Cf. Ibid., p. 87. 151 Cf. Ibid., p. 88 et. seq.

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89

vivência das realidades finitas que o homem chega ao infinito152. Quando

o ser humano se abre de forma confiante, buscando respostas para o

problema de si mesmo, a partir dos objetos e das relações com o mundo,

ele certifica-se de que o problema de seu destino, como problema de si,

vai mais além do mundo, e desse modo procura os fundamentos que

sustentam a vida do mundo e a de si próprio; portanto, esse problema

passa a ser um problema divino que ultrapassa o existencial natural.

A dimensão de confiança já é apresentada como questão

originalmente colocada, haja visto que na criança ela é elaborada na

relação com a mãe que, por sua vez, faz o papel de mediadora do mundo

da vida153. É no lugar simbólico da família, que a criança elabora a

chamada confiança básica154, indispensável para a estruturação da

identidade da pessoa. O rompimento com o primeiro espaço, no qual se

elabora tal confiança, exige nova orientação para conservar na criança a

confiança adquirida, por ser um estágio mais além da limitada confiança

humana. Neste momento, a educação na dimensão religiosa assume

uma função imprescindível na vida da pessoa 155.

O tema da confiança no desenvolvimento da criança bem como o da

abertura, revelam que o problema de Deus está inalienavelmente unido

ao homem e, em Pannenberg, não se trata de uma necessidade artificial;

ao contrário, é dada com a natureza do homem, a qual ele não pode

subtrair sem produzir substitutivos156. A confiança que o homem

desenvolve na experiência religiosa é a busca da instância capaz de

amparar e alentar o indivíduo diante de si mesmo, no desejo de alcançar 152 Cf. ibid., p. 90 et. seq . Esta também é a posição de S. Kierkegaard. Para ele o homem que se percebe como finito enquanto parte e momento da realização de uma totalidade infinita se compraz na finitude, porque a vê como uma etapa de algo maior, cujo sentido é o infinito. Pannenberg parece distinguir no momento em que coloca grande acento à pessoa como sujeito de liberdade,como singularidade. 153 Cf. Ibid., p. 282. 154 Cf. Ibid., p.282. “ En la vinculación simbiótica con la madre se origina el fenómeno de la llamada confianza básica (basic trust), que ha sido introducido en la discusión en torno a la identidad por E. H. Erikson. La tesis de que esta confianza de amplio radio es el fundamento permanente de toda la evolución posterior de la personalidad”. 155 Cf. Ibid., p. 282. É em conformidade com o desenvolvimento da confiança básica na criança em relação à mãe que tal criança vai definir a sua forma de se relacionar com o mundo e com a religião. Quando não se supera o infantilismo e a insegurança, tais dados serão características da forma de relacionamento também com Deus. Deste modo, dependendo da má elaboração da confiança básica a pessoa poderá ter uma relação com Deus marcada por atitudes narcísicas e neuroses religiosas, descaracterizando uma relação verdadeira e profunda com a religião. 156 Cf. Ibid., p. 91.

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90

a sua totalidade. A salvação que se espera de Deus se refere ao alcance

total, ao todo intacto da vida.

O que confirma o ato de confiança do homem é o fato de que aquele

a quem se confia deve haver feito palpáveis garantias de confiança, pois

do contrário, a confiança não seria possível. A confiança, presente no

homem como esperança última e incondicionada, é elaborada no coração

deste homem a partir da sua fé e da sua esperança e por meio dessa

elaboração ele descobre um Deus ou alguns ídolos. Neste sentido, a

afirmação de Lutero se faz pertinente: “Aquele a quem tu inclinas e

abandonas teu coração, esse é propriamente teu Deus”157. O homem, na

autêntica abertura de seu ser demonstrará antes de tudo, uma atitude de

confiança absoluta no Deus infinito, estando tal abertura em conformidade

com a própria destinação do homem a uma fé no Deus infinito, o que

supera toda situação e circunstância limitadora158.

Por último, ainda cabe afirmar que, para Pannenberg é somente no

momento escatológico que acontecerá a plena realização da confiança

religiosa do homem. O seu tratado escatológico mostra que será neste

momento a realização da experiência de plenitude e da totalidade da

confiança humana. O homem, renovado em Jesus Cristo, participará da

filiação divina já revelada na Encarnação. É em tal momento que o

homem experimenta em sua vida a sua liberdade radical, abrindo-se de

forma confiante aos desejos mais profundos de sua existência. Ele, agora

livre de todas as amarras, consegue dar uma resposta autêntica ao seu

destino e ao seu desejo de infinito. As atitudes de abertura e de confiança

fazem parte da experiência humana que caminha em direção a um futuro

de plena realização. O homem se move em direção a sua realização

plena. Esta, mesmo que já experimentada em Jesus Cristo, ainda não se

157 PANNENBERG, W. EhcP. p. 54 et. seq. Pannenberg demonstra que o homem religioso pode buscar substituir a confiança pela segurança, isso é explicado pelo fato de que tal homem entende o infinito no finito, no limitado de sua vida. A pessoa prefere não arriscar para além do seu espaço de domínio. 158 Pannenberg pontua que o dom de Deus ao homem, capacitando-o para o domínio pleno das coisas finitas e para a administração do mundo, se usado em nome do próprio homem, tal homem pode cair escravo da tirania, usando as coisas para justificar-se a si mesmo. Quando a pessoa assume como o fim a si mesmo, o mundo entra numa desordem e a confiança é instalada no próprio homem, não mais em alguém de fora dele, ou seja, Deus.

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faz plenamente presente na existência do homem, ela será só plena no

eschaton. Assim, todo interesse humano se concentra no futuro159.

A escatologia de Pannenberg é fundamentada na ressurreição de

Jesus Cristo. É em Jesus que o homem encontra a sua verdadeira

esperança. Quando a pessoa se abre de forma confiante a Deus, através

da experiência de fé, surge a possibilidade verdadeira de sua realização

como desejo de eternidade. Aqui a religião é confirmada como dado

essencial do homem e como resposta decisiva para as inquietações

humanas que vão além da mera historicidade, porém tais inquietações

estão situadas numa visão do homem como ser aberto ao infinito e a

Deus.

Ao tratar a dimensão religiosa como um dado antropológico, faz-se

importante empenharmo-nos no aprofundamento de alguns elementos

que caracterizam a pessoa na sua identidade de indivíduo marcado pelo

religioso, bem como nas implicações desta dimensão no existir da pessoa

abordada por Pannenberg.

4.2.3 A pessoa como identidade religiosa

Nesta parte, esforçaremos para mostrar a noção de pessoa e de

identidade na antropologia de Pannenberg. Como se trata de conceitos

amplamente debatidos tanto na teologia quanto em outras ciências,

tentaremos apenas apresentar de forma breve alguns elementos

presentes na antropologia pannenberguiana que ajudam a entendê-los no

contexto da dimensão teológica deste autor.

Ao estudar o ser humano em todas as épocas e civilizações, o

homem busca responder à necessidade de preencher o seu vazio interior

que possui como ser espiritual. Ele deseja obter respostas para questões

que não se resolvem de uma forma racional e, assim, diante de tal

procura, o homem elabora uma identidade religiosa, construindo para si

símbolos e ritos. Ele deseja adentrar no mundo do mistério inefável que

159 PANNENBERG, W. APT. p. 63 et. seq.

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transcende a ele mesmo. Pannenberg compreende que o homem já é

marcado em sua natureza pela dimensão religiosa, que não está como

um penduricalho colocado no homem, ao contrário, ela faz parte do ser

pessoa que só se realiza de forma integral quando se coloca na condição

de abertura ao mundo e a Deus. Para chegar a tal objetivo de realização,

a dimensão religiosa do homem é indispensável na totalidade da

elaboração da pessoa no seu ser individual, ou seja, como identidade do

indivíduo.

Pannenberg introduz o tema da dimensão religiosa no homem,

tratando da questão da unidade do eu com o si mesmo. Ele demonstra

tal unidade como caminho para a constituição da identidade do próprio

indivíduo como personalidade, uma vez que é na busca de integração da

pessoa consigo mesma que haverá abertura para sua interação social. A

pessoa procura na sua identidade identificar-se com a sociedade e

assumir o seu papel como indivíduo160. Fica claro que a identidade do

indivíduo acontece numa totalidade de experiências que este indivíduo

realiza como a do próprio corpo, do nome, da sexualidade, da experiência

de grupo, da história e da vida, fatores indispensáveis para a identidade

pessoal do indivíduo. Nesse processo, o homem busca lutar com a

necessidade de definir a si mesmo161. Ao perseguir sua identidade

pessoal, o ser humano se vê como ser de carência, mas o mesmo

identifica em si a referência de totalidade. Tal totalidade de si mesmo,

sobrepassa infinitamente a limitação de instantes da vida, fazendo a

pessoa162 ser sua totalidade, a qual transcende a fragmentação de sua

realidade atual.

160 Cf. ibid., p.279. 161 Cf. Ibid., p.280. Como foi dito em outro momento deste trabalho, o tema da confiança é para a elaboração da identidade da pessoa marca decisiva para a formação da personalidade, e esta, é inicialmente estabelecida na relação da criança com sua mãe; à medida que a criança cresce e se torna independente surgem outras disposições para conservar e ampliar a confiança básica, abrindo assim o horizonte para a educação religiosa da pessoa. 162 O termo pessoa foi introduzido na linguagem filosófica pelo estoicismo popular, para designar os papéis representados pelo homem na vida. Do sentido de papel é que afirma-se pessoa também como relação. Tal conceito também obteve uma forte influencia da definição de Boécio que é caracterizado como individualidade racional. Esta definição substitui a idéia antiga da palavra (papel, máscara e rosto). Já na Idade Média, tal termo vai à direção de uma compreensão relacional da pessoa, relacionando o com os princípios da doutrina Trinitária. É da base da definição de Boécio, da pessoa como individualidade racional, que faz a filosofia idealista afirmar a pessoa como constituída pela autoconsciência. No sentido trinitário, o conceito de pessoa foi útil para

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93

A unidade e a totalidade da pessoa não se acham reunidas num

único momento, mas estão distendidas pela vida da pessoa. A totalidade

é algo que tem de ser produzido, havendo que transcender a sua própria

mudança no tempo. Pode-se dizer que a totalidade da pessoa é o seu

vínculo consigo mesma, superando o seu distender no tempo163. A

antropologia teológica cristã, diferentemente do pensamento de alguns

filósofos da modernidade, aponta para o destino da pessoa como

totalidade a ser realizada em Deus. Como já afirmado é em Jesus Cristo,

o segundo Adão, que a pessoa encontra a sua plena realização. Se

alguns filósofos, como lembra Pannenberg, pensam o homem com um

destino trágico na morte, a confiança da pessoa em Deus, traçada

simbolicamente na experiência antropológica da fé e experimentada na

vivência religiosa, possibilita ao indivíduo como identidade, no uso de sua

liberdade, alcançar a sua plenitude como pessoa. Na teologia cristã a

referência para atingir tal destino é Jesus Cristo. Este é o modelo mais

perfeito do ser pessoa.

Ainda cabe dizer que no pensamento de Pannenberg a dimensão

religiosa como um constitutivo antropológico é indispensável para a

elaboração da identidade do indivíduo, sendo, portanto, essencial à

natureza humana. É no cenário antropológico, em que o ser humano se

instala como pessoa em construção, através das experiências de limites e

de superação, que o homem forma a sua personalidade, solidifica a sua

confiança e se abre ao religioso como desejo de infinito. A procura

antropológica de um sentido religioso para a vida humana, através da fé

e da experiência de Deus é, conforme o desenvolvimento do tema neste

autor, uma resposta do homem ao projeto mais original que caracteriza a expressar as relações entre Deus e Cristo e entre ambos e o Espírito Santo; Gerando também mal-entendidos e heresias. Assim no Cristianismo surgem as grandes disputas Trinitárias que caracterizaram os primeiros séculos da vida da Igreja, chegando até o Concílio de Nicéia. O termo hipóstasis busca solucionar o problema da noção de pessoa como máscara. E sobre a idéia de pessoa como relação baseada em Aristóteles, ( onde aparece o caráter acidental) muitos padres da Igreja ( Agostinho ,Boécio) negaram a pessoa como relação, insistindo na sua substancialidade. Tomás de Aquino mostra a pessoa como relação e como substância. A partir de Descartes enfraquece a idéia de substância, mas mantém-se o princípio de pessoa como relação. Em Hegel que o conceito de pessoa vai estar relacionado com a idéia de consciência. Pessoa é o sujeito autoconsciente, assim ela se volta para o sentido da individualidade se referindo ao si mesmo do indivíduo. Cf. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia Verbete Pessoa. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 163 Cf. Ibid., p. 295.

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sua vida: o destino de ser imagem e semelhança de Deus. A experiência

religiosa não permite ao homem somente ficar instalado nos valores

antropológicos efêmeros, transitórios, marcados pela fatalidade da morte

como foi anunciado por muitos pensadores da modernidade, mas projeta

o homem para além do tempo e o insere na eternidade, onde o Deus de

Jesus Cristo se revela como salvação e como amor.

Por fim, o homem religioso descobre em si, como dom de Deus, o

tesouro oculto e sagrado do seu ser pessoa, ele se percebe como ser

que não se aceita como finitude; e ao não se aceitar como limitado pelo

finito, ele se lança na busca do infinito, na busca do inacessível. E neste

peregrinar na própria experiência, o homem encontra a realização ideal

de seus sonhos e desejos que se revelam como realidade. O futuro do

homem já é um presente, onde homem e Deus se unem em perfeita

harmonia. Em tal experiência o homem encontra-se libertado plenamente

de seus limites na Graça salvadora de Deus, oferecida a ele por Jesus

Cristo, como abordaremos a seguir.

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5 A salvação como esperança escatológica realização plena do homem

Introdução

Quando o apóstolo dos gentios afirma que se Cristo não ressuscitou

então a nossa pregação é vazia e vazia também nossa fé” ( I Cor.

15,14s), ele coloca nesta afirmação o pressuposto fundamental da fé

cristã na ressurreição de Jesus. Na antropologia teológica de Pannenberg

a idéia de realização do reino de Deus, como cumprimento da salvação

escatológica e da esperança cristã se faz muito presente em sua obra.

Para Pannenberg, é possível afirmar que a realização do homem como

imagem e semelhança de Deus se dará somente na experiência da

ressurreição definitiva. É no eschaton que o homem se realizará

plenamente e o fundamento dessa realização é Jesus Cristo.

Aqui trabalharemos o tema da salvação como realização plena da

experiência de Deus no homem. Pannenberg mostra que o homem

espera a realização de seu destino e, pela experiência humana situada

no mundo, ele se percebe como natureza, destinado a Deus.

É no sentido de desejo de realização humana como esperança que

se pode falar do reino de Deus como esperança cristã e das promessas

da parte de Deus já feitas a nossos pais na fé. O reino representa o

revelar pleno da Criação e esta plenitude se dará na escatologia164. É

Deus quem promete, e deste modo, a esperança escatológica se apóia

em Deus. A reflexão antropológica em escatologia pode se reconhecer

com uma função limitada, pois tal realidade depende de Deus e não do

ser humano165. A antropologia constitui apenas um terreno sobre o qual

164 PANNENBERG, W. Teologia Sistemática 3. p.553 et. seq. Além de todos os debates presentes em Pannenberg para dirimir as dúvidas emergentes diante das distintas formulações sobre o tema da escatologia no que se refere à vida após a morte, o foco de sua abordagem está voltado para relacionar a escatologia com a realização do reino de Deus, bem como, com a realização da pessoa humana na sua totalidade, pela salvação escatológica que acontece, através da comunhão, entre a comunidade dos crentes e Jesus. Ao voltarmos a citar este volume da teologia sistemática de Pannenberg, recorreremos ao modo abreviado TS3, mais nome do autor e número de pagina. 165 Cf. Ibid., p. 567.

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se pode argumentar sobre uma esperança escatológica cristã com

abordagem universalista, mas não está no poder humano satisfazer tal

esperança, senão somente em Deus.

Para Pannenberg, a mais importante contribuição que a teologia

contemporânea ofereceu em vista de uma motivação e interpretação

antropológica dos enunciados escatológicos foi apresentada por Karl

Rahner. Para este o que é fundamental para a escatologia é, de um lado,

o caráter oculto do futuro cumprimento escatológico de outro a

relacionalidade do homem, como ser histórico, a este futuro166.

Pannenberg afirma, através de K. Rahner, a dimensão escatológica como

condição de inteireza do homem como salvação, a escatologia como

escatologia universal e individual, sendo sempre o homem indivíduo e ser

que existe na comunidade167.

Quando se fala de futuro, como certeza diante de um presente que

se apresenta ao homem de forma ainda fragmentada, a solução para tal

dificuldade é a pessoa de Jesus Cristo, pois nela já se faz presente ao

homem a certeza do futuro salvífico e da realização humana; certeza que

já é realidade legível em Jesus Cristo168. Em Jesus toda humanidade se

vê realizada no seu desejo e necessidade de salvação.

5.1 Libertados plenamente no Deus de Jesus Cristo

Neste momento é de grande importância estudarmos o tema da

liberdade na compreensão cristã, já que esta se caracteriza, para

Pannenberg como a forma mais verdadeira de vivenciar a plena

liberdade. Sem negar todo alcance que a filosofia atinge na modernidade

ao aprofundar o tema liberdade, ainda não se pode considerá-lo

suficiente. O pleno sentido da liberdade humana para o homem, será

166 Cf. Ibid., p. 569. Pannenberg apresenta no uso das idéias de Rahner a afirmação que o futuro de salvação que espera o homem é o cumprimento do homem na sua totalidade, mas que tal conteúdo no presente ainda é marcado por uma misteriosidade, no presente tal futuro só pode ser captado de forma fragmentada pelo ser humano. É somente pela consciência escatológica que o homem visualiza a possível totalidade de tal futuro. 167 Cf. Ibid., p. 569. 168 Cf. Ibid., p. 570.

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alcançado somente dentro do princípio cristão de liberdade, em que a

liberdade é libertada no amor de Deus encarnado no Filho Jesus Cristo.

Se mais no início do estudo trabalhamos a liberdade mais voltada

para a antropologia filosófica, aqui a abordaremos como realização cristã

do ser humano e do seu fundamento em Jesus. Apresentaremos uma

breve exposição do tema da liberdade plena alcançada em Jesus Cristo

e, logo em seguida, ainda nesta temática, colocaremos alguns

fundamentos bíblicos desta abordagem presentes no pensamento de

Pannenberg. Nos longos debates que Pannenberg realiza com vários autores

sobre o tema liberdade, fica evidente em seu posicionamento que o

sujeito humano só realiza o seu destino de liberdade quando busca

fundamentá-lo em Deus169. Ao afirmar que o destino do homem é o

caminho da felicidade e do bem, não se deve esquecer que o homem, no

exercício de sua liberdade, está sujeito a se contradizer na sua escolha e

pode escolher equivocadamente, isso devido aos enganos e equívocos

que constituem as inconsistências humanas. O homem, no exercício de

sua liberdade de escolha, não tem ainda a plena clareza do que deseja e

do que busca como existência170. Com as dificuldades que o homem vive

diante do uso de sua liberdade ele chega a perguntar se o destino que a

ele se apresenta é a servidão e não a verdadeira liberdade. Mas a

resposta é o homem buscar novo fundamento para a própria identidade e,

no duro caminho da vida, construir a sua existência e as suas escolhas,

fundamentando-as nos valores mais profundos da mesma. O que fica

claro no pensamento de Pannenberg é que o homem usará corretamente

sua liberdade no momento em que ele se colocar no caminho que se

169 Sobre o destino do homem na obra de Pannenberg fica evidente a contribuição do pensamento de Martin Heidegger, sobretudo na sua obra o ser e o tempo, onde Heidegger aponta para elementos muito significativos da vida humana. Talvez o mais importante do diálogo de Pannenberg com este autor é o desfecho que o primeiro dá para o ser humano, uma vez que o segundo parece sugerir que o ser humano é um ser para a morte, enquanto Pannenberg vê o ser humano como Imagem de Deus e como abertura para Ele. 170 Pannenberg cita Paulo aos Romanos: “ Pois eu me comprazo na lei de Deus, enquanto homem interior, mas em meus membros descubro outra lei que combate contra a lei que a minha inteligência ratifica; ela faz de mim o prisioneiro da lei do pecado que está nos meus membros” ( Rm. 7,22ss.). Aqui se faz pertinente também citar Romanos 7,19 onde Paulo reforça essa idéia apresentada por Pannenberg quando o apóstolo diz: “eu faço o mal que não quero e deixo de fazer o bem que quero”.

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destina a Deus. Deste modo, a liberdade humana não se realiza por

completo como iniciativa somente do homem como ser finito, mas ela é

também dom e graça da parte de Deus.

A solução da dificuldade vivida pelo homem na tensão existencial

finito e infinito é efetuada na experiência da fé. A fé não aparece como

possibilidade aberta para o homem, mesmo diante de sua liberdade, mas

é uma possibilidade que se abre, da parte de Deus, ao homem171.

Pannenberg elabora sua reflexão sobre a natureza humana e mostra que

existe uma essência natural boa no ser humano. O homem experimenta

no exercício da vontade livre o dilema constante entre centralidade e

excentricidade. Quando a pessoa se abre, lançando-se para fora de si,

ela verifica que há uma verdadeira desproporção vital na sua existência:

um ser que é finito, mas que se vê voltado para um destino infinito172.

Neste momento a pessoa inicia, pela confiança, uma experiência de algo

que é maior e que vai além de sua finitude. O homem livremente se abre

diante do mistério e se descobre religioso.

O tema da liberdade é ainda um tema que proporciona dificuldades

para chegar a um consenso formal sobre ele, mas para a teologia já se

confirma a importância da liberdade ao se tratar do ser humano e da sua

relação com Deus. Pannenberg mostra em sua obra que, desde os

padres antignósticos, há uma preocupação em unir a noção de liberdade

171 Sem desconsiderar os prolongados debates sobre o tema pecado e liberdade elucidados longamente em célebres obras, como De Gratia et Libero Arbitrio Liber Unus, de Agostinho ou Summa Theologiae, Summa contra Gentiles de Thomas de Aquino e outras lembradas por Pannenberg. É relevante recordar, que tal temática vai chegar ao seu mais alto desenvolvimento na filosofia moderna iluminista, onde, junto com tal debate, surge também de forma mais aguda os debates sobre o homem como subjetividade, fundando um espaço para a antropologia que cada vez mais se volta para a experiência humana como contingência, relegando assim o Absoluto e o Transcendente do humano para um segundo plano ou para o acaso. Neste aspecto Pannenberg confronta-se com alguns filósofos que também participam deste cenário, mas ele não se fecha no próprio homem e na subjetividade. O exercício da liberdade como autoconsciência é força que possibilita intrinsecamente o homem a dirigir se para Deus. 172PANNENBERG,W. APT, p. 131. Pannenberg lembra que P. Ricouer, em sua obra o Homem Falível, mostra o conflito vivido pelo ser humano entre finito e infinito, relacionando com isso também a idéia de falibilidade bem como o exercício da liberdade como responsabilidade no agir do homem. Cabe ainda lembrar que no artigo já citado: Fundamentação Cristológica de uma Antropologia Cristã, Pannenberg afirma que o conceito de liberdade de escolha, que a teologia cristã introduziu e desenvolveu nas discussões com a gnose, serviu para inocentar o Criador da origem do mal no mundo, apontando para a liberdade de escolha de Lúcifer e do primeiro homem (cf. PANNENBERG,W. Fundamentação Cristológica de uma Antropologia Cristã, Concilium 1973/6 Nº. X. p.743s).

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e de responsabilidade, pois do contrário, ficaria difícil de dar ao homem ou

elogios ou castigos173.

Ainda se faz necessário dizer que a obtenção da liberdade total do

homem somente pode ser experimentada na sua abertura para Deus. O

autor insiste que é se abrindo a Jesus Cristo, numa resposta positiva à

Graça, que o homem é verdadeiramente libertado. É pelo sim dado a

Deus, na fé em Jesus que o homem encontra sua salvação como

libertação plena e total. Nesta compreensão, a liberdade não é uma

conquista pessoal, ela, sim é dom e Graça oferecidos aos homens.174 É

Jesus Cristo que se oferece ao ser humano como liberdade total, sendo

somente nele que se dá a Graça da verdadeira liberdade. Esta idéia de

Jesus Cristo como aquele que vem libertar o homem plenamente é muito

presente nos textos bíblicos, sobretudo nos textos paulinos, em que tal

compreensão se faz bastante acentuada. Neste sentido torna-se

importante apresentar alguns traços que caracterizam o tema liberdade no

contexto bíblico-cristão, uma vez que tal abordagem se mostra muito

presente na antropologia teológica de Pannenberg.

5.1.1 A noção bíblico-cristã do tema liberdade

Quando se fala do homem como experiência de Deus a idéia de

revelação marca indispensavelmente o enunciado precedente. De

imediato, se pode perguntar: de qual forma Deus se revela ao homem?

Para os cristãos, uma das vias de revelação é através da Palavra. A

antropologia de Pannenberg está profundamente marcada pela presença

da Palavra. Desse modo, para compreender o homem religioso neste

autor, se faz necessário recorrer a tal recurso. Aqui trabalharemos a

noção bíblico-cristã do tema liberdade.

173 Cf.Ibid., p.138. 174 A abordagem do tema liberdade dentro de uma ótica cristã se faz bastante diversa da abordagem tratada na obra de J. P. Sartre. L`Étre et lê Néant, na qual a liberdade é tematizada exaustivamente, porém o autor prefere sacrificar a idéia de Deus em prol da liberdade. Neste sentido ele fecha os olhos para o destino do homem como esperança futura e definitiva, como foi exposto na antropologia teológica de Pannenberg. Para este a plenificação da liberdade humana se dá em Deus.

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Ao situar a liberdade humana na perspectiva da dimensão bíblico-

cristã, o autor faz entender que liberdade e essência humana se mostram

idênticas. Assim, liberdade é o ser si mesmo do homem175 na sua

realidade. Sobre a temática que aborda a liberdade do homem na Bíblia,

também deve se falar, que além de uma liberdade real, há uma liberdade

formal, na qual o ser humano tem capacidade de escolher entre o bem e

o mal e, portanto, de formular, na sua existência, a noção de consciência

e de vontade. É no horizonte da liberdade formal que o ser humano

consegue sua autotranscendência. O autotranscender do homem no uso

da sua liberdade, na verdade, não é conquista livre de todos os

condicionamentos, é Graça de Deus. Principalmente no Novo

Testamento, a liberdade não é vista como algo próprio do homem, mas

ela é efeito da presença salvadora de Cristo e de seu Espírito (Jn,

36,2)176.

Se, na problemática especificamente antropológica, Pannenberg não

explicita tão amplamente o tema da obediência em relação à liberdade,

isso se torna mais visível no seu tratado cristológico, em que Jesus, como

novo Adão, liberta o velho Adão exatamente na obediência ao plano do

Pai, assumindo assim, a sua missão de anunciar o reino de Deus no

mundo. Por este ângulo de compreensão, a liberdade toma um caráter

novo e passa a ser compreendida pelo cristão, também como serviço.

Sendo assim, a liberdade não perde a sua fundamentação ontológica e

teorética com base na razão e na consciência, porém ela adquire uma

dimensão também de abertura e compromisso. Aceitando a mensagem

de Cristo e seu projeto, o homem se torna verdadeiramente livre.

Pannenberg usa o texto Paulino para afirmar que somos libertados “em

virtude da libertação realizada em Jesus Cristo” (Rm 3, 24). Assim, ser

libertado na liberdade oferecida por Jesus Cristo é, pois, atingir a

plenitude da liberdade humana. Aos Gálatas, Paulo lembra que “na

plenitude dos tempos Deus enviou o seu Filho, nascido de mulher e

sujeito à lei, para pagar a alforria daqueles que estão sujeitos à lei, para

que nos seja dado ser filhos adotivos” Gl 4,4) e, mais adiante o mesmo

175 Cf. Ibid., p. 139. 176 Cf. Ibid., p.139.

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apóstolo diz: “É para sermos verdadeiramente livres que Cristo nos

libertou” (Gl 5,1)177. A libertação que Jesus oferece ao ser humano é

fundada na obediência ao Pai e na sua unidade com Deus para a

realização do projeto de implantação do Reino. Aqui, a liberdade de Jesus

não se dá numa reivindicação de um “Livre arbítrio” para se decidir diante

de Deus Pai, mas consiste na sua unidade com Deus178.

Antes da plenitude dos tempos e da chegada definitiva do Reino, o

homem ainda vive sua liberdade limitada pela lei e pelas fraquezas; não

se entregando a essa realidade, a da liberdade contingente deste mundo,

o homem carrega consigo a esperança da liberdade plena sustentada na

fé cristã e no horizonte escatológico do seu desejo de infinito. Deste modo

a libertação plena é uma esperança futura, porém já se faz presente na

vida do cristão, conseqüentemente libertado pela experiência da fé179.

A liberdade, no sentido cristão, é a comunhão com Jesus e a

participação na sua filiação junto do Pai. Ser co-participante na filiação é

ao mesmo tempo ter responsabilidade na instauração do reino de Deus,

que é a missão de Jesus. A liberdade verdadeira permite ao homem, na

crise diante de si e diante de Deus, superar essa crise e se deixar

reconciliar com Deus. Mesmo com o peso da angústia existencial, que

marca a trajetória humana, o homem que escolhe a resposta cristã para o

uso de sua liberdade vive sua vocação criatural e experimenta a sua

verdadeira liberdade de filho de Deus, assumindo uma identidade

autentica como indivíduo. Compreendida assim, a liberdade não é

somente a liberdade da formulação conceitual filosófica como

determinação da vontade, mas é também fruto da Graça, é dom do

Espírito, que não liberta os homens unicamente da sua fixação no próprio

ego, nem eleva, sobretudo, além de sua finitude, mas lhes tornam

177 Bíblia Tradução Ecumênica. São Paulo: Loyola e Paulinas, Gálatas 4,4; 5,1. 178 PANNENBERG, W. Fundamentos de Cristologia. Salamanca: Sígueme, 1974, p.434 et. seq. 179 PANNENBERG, W. TS3. Brescia: Queriniana, 1996. A partir da p. 102ss. O autor aborda a relação liberdade, lei e direito, dialogando exaustivamente com Hegel, Kant, e F. Schleiermacher. Em tal problemática é possível evidenciar a dificuldade de confirmar uma liberdade plena no universo do conceito. Kant busca o formular dentro de uma compreensão proposta como reino de uma vontade livre universal, Hegel a transfere pra o espaço do Estado. Pannenberg aproxima-se de Scheleiermacher quando este trabalha com o conceito dentro da visão cristã, onde a liberdade total e plena só seria possível em Deus. O que fica bastante claro nas páginas que seguem tal debate é que a plenitude do Reino, numa perspectiva cristã tem sua realização na realização escatológica.

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permanentemente livres e os fazem participantes da filiação de Jesus

Cristo ( Rm 8,13ss)180.

A liberdade cristã em Pannenberg é o recebimento do dom oferecido

por Deus ao homem. É pela abertura, como escuta ao convite feito por

Deus ao homem na história, que favorece a este, superar a situação de

pecado e de fechamento, projetando-o dessa forma para além de seu

horizonte de fechamento numa atitude de excentricidade. Neste

processo, a liberdade se faz liberta do egoísmo e da servidão, colocando

o homem diante de uma missão, a missão de ser sinal do amor de Deus

entre os homens. Assim sendo, liberdade é também abertura para a

vivência do amor fraterno181.

Como conclusão, pode-se dizer que a liberdade humana é uma

grande conquista no decorrer da história da cultura. Não teria como falar

do ser humano se retirássemos dele o princípio de liberdade; logo, esta

se faz intrínseca a ele. Por um lado, a liberdade, ao mesmo tempo em que

é um princípio universal, formulado e fundamentado na razão formal,

tornando-se assim um princípio necessário e, para muitos, absoluto, por

outro lado, ela ainda é uma realidade incompleta e, a cada dia o homem

deseja mais e mais liberdade. Desse modo, no processo das reflexões

sobre o tema liberdade há de se pontuar, que a sua plenitude conceitual

ainda não se concilia com sua dimensão empírica.

Pannenberg, marcado pela modernidade, pontua como é

imprescindível a liberdade humana. Para ele esta se torna plena e

absoluta somente em Deus, através de Jesus Cristo. Assim, o cristão que

responde com sua fé ao amor de Deus é um homem verdadeiramente

liberto. Para complementar o sentido desta afirmação antecedente é que

abordaremos no próximo tema a figura de Jesus Cristo como o que vem

revelar Deus e nos indicar o caminho da plenitude humana.

180Cf. Ibid., p.135ss, p.149 et. seq. 181 A partir da pagina 196 da sua obra APT ( Antropologia na Perspectiva Teológica), Pannenberg trabalha longamente o tema do ser humano e a sua relação com o mundo e a sociedade. Em tal abordagem pode-se confirmar a importância do amor e do serviço para a compreensão da identidade e da liberdade do homem. Também na compreensão do tema amor fraterno cabe indicar a obra de Mário de França Miranda. A Salvação de Jesus Cristo – A doutrina da Graça. São Paulo: Loyola. p.125-149.

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5.2 Jesus Cristo como revelação de Deus no Homem

5.2.1

Jesus Cristo protótipo de homem na antropologia teológica cristã

Foi possível anteriormente pensar o homem como aquele que por

natureza é portador da dimensão religiosa. O religioso constitui elemento

essencial do homem na sua realidade como ser. A dimensão religiosa,

conforme Pannenberg, eleva o homem até o seu destino mais autêntico e

original, o de ser imagem e semelhança de Deus. Aqui podemos dizer que

todo nosso esforço em situar o homem diante dele mesmo, em suas

dimensões espírito-corpo, bem como na sua relação com o mundo e com

os outros não foi com uma finalidade meramente antropológica. Mesmo

considerando a indispensabilidade da antropologia para enxergar o

homem e situá-lo no mundo, a preocupação desta abordagem em

Pannenberg tem um fundamento que está localizado não na pura

antropologia, mas numa antropologia que adquire o status de teológica.

Nesse sentido o que foi realizado até este momento na abordagem

antropológica e filosófica do estudo tinha apenas uma finalidade: pelo

antropológico do homem chegar ao teológico deste mesmo homem.

O aprofundamento antropológico que o homem faz na busca

intensa de si como totalidade, faz com que ele não seja um ser fechado

em si mesmo, mas ao contrário, que se abra numa atitude de amor e

gratuidade ao mundo, ao outro e a Deus – cumprindo assim seu destino

mais essencial.

O destino do homem é Deus, e Pannenberg deixa isso muito

evidente em sua antropologia teológica. Ao assumir em sua reflexão tal

propósito, a sua antropologia se eleva à teologia, e o homem, nas suas

características antropológicas, alcança a condição de homem religioso e

atinge a sacralidade, o divino. Nesta parte do trabalho faz-se necessário

mostrar que em Pannenberg o modelo perfeito de homem para o ser

humano é Jesus Cristo; Jesus é também aquele que representa a

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superação dos limites e das fragilidades humanas. Deste modo, é em

Jesus Cristo que o homem se eleva ao seu destino final e alcança a sua

plenitude , já presente na criação pelo traço divino deixado no homem

pela imago Dei.

No momento em que Pannenberg apresenta Jesus Cristo como

modelo para o homem, fica afirmada aí a posição antropológica deste

autor que, como um profundo teólogo sistemático cristão, não haveria de

confirmar outra realidade senão esta: A salvação do homem está em

Jesus Cristo. Mas não uma salvação fora da história e alienada do

mundo, ao contrário, ela se dá na história e no homem situado no aqui da

experiência. Não se pode esquecer de afirmar que o Filho se faz homem,

se encarna para elevar o homem à condição divina. A antropologia

adquire um caráter cristológico e a cristologia parte do homem revelado

em Cristo Jesus.

Nos longos estudos e debates cristológicos182 sempre esteve

presente a esta temática qual o caminho a ser seguido na cristologia. Ao

definir o caminho, se definia também o tipo de abordagem cristológica,

bem como as implicações na antropologia cristã. Pannenberg faz

presente uma reflexão que apresenta Jesus Cristo como Filho de Deus,

relacionando esta filiação com a sua missão no mundo (Gl 4,4 Rm 8,3).

Assim, a fé cristológica nasce da proclamação de que Jesus é o Cristo de

Deus183. Desse modo, é no homem Jesus que se autorevela o Filho

preexistente de Deus. O Filho é revelado pela mediação humana no

concreto da história. Ao afirmar Jesus Cristo, como modelo do homem

novo, Pannenberg pontua a dimensão escatológica desta afirmação e

este homem novo vem contrapor ao Adão, primeiro homem. Mais que tal

contraposição, os cristãos começaram a ver neste homem novo o homem

182 Não entraremos aqui em tais debates cristológicos acontecidos no decorrer da história, pois isto fugiria da finalidade específica desta abordagem. Aqui cabe apenas mencionar o longo caminho bíblico-dogmático realizado com o intuito de chegar a uma síntese na compreensão de Jesus Cristo. Polarizando toda a dialética cristológica, quase sempre se fizeram presentes os que defendiam uma cristologia descendente e outros que optavam por uma cristologia ascendente, havendo ainda aqueles que buscaram uma articulação mais harmoniosa entre as duas Cristologias. Pannenberg não menospreza nenhuma das duas, mas fica evidente na sua posição que ele caminha para uma opção de fundamento histórico, e portanto, com traços mais característicos de uma cristologia ascendente. 183 SANTANA, Marcos Antônio de. Op. Cit. p. 135.

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escatológico, revelado em Jesus Cristo como destino de perfeição do

homem, como pensava o apóstolo Paulo184.

Com o acontecimento da Encarnação do Filho, se cumpre a ordem

de salvação (economia) prevista para o ser humano desde a origem e que

encontra seu aperfeiçoamento em Jesus Cristo. Se o homem, como ser

finito, não conseguiu a perfeição do início ao fim, sendo incapaz de entrar

imediatamente na perfeita comunhão com Deus, então Deus enviou o

Logos para que libertasse o homem do domínio da morte e de suas

debilidades, permitindo-lhe conseguir tal perfeição ao conduzí-lo à

perfeita comunhão com Deus185. Em Jesus Cristo, o homem é

transformado na verdadeira e plena imagem do homem novo , o celeste.

Pannenberg traz à evidência, em conformidade com o apóstolo

Paulo, a idéia de uma humanidade que se renova na obediência, morte e

ressurreição de Jesus. A cristologia paulina apresenta Jesus como novo

Adão, cristologia esta que influirá de maneira profunda também na

teologia patrística. Para Paulo, os homens igualmente marcados pelo

pecado e pela morte superam tais realidades pelo batismo e pela fé186.

Conforme os textos paulinos, se pela culpa de um só homem todos foram

condenados ao pecado, agora no novo homem, por um só homem, todos

foram libertados do pecado e da morte.

A presença do homem novo, como portador da salvação para o

homem decaído, é revelada na pessoa de Jesus Cristo que entra na

natureza humana para libertá-la de suas fraquezas. Ele aparece como

salvador, e assim, a teologia do Novo Testamento revela Jesus obediente

até a morte para a salvação de todos. Jesus pregava e anunciava

conforme a sua missão187.

Pannenberg não esquece de dizer que, embora tentasse individuar a

divindade de Jesus na sua característica específica de homem celeste, a

cristologia antiga conheceu e evidenciou também uma outra singularidade

que conota a natureza humana de Jesus enquanto tal, no seu diferenciar-

se do Logos e de todos os outros seres humanos, devido a sua 184 PANNENBERG, W. TS2, p. 339. 185 Cf. Ibid., p. 340. 186 Cf. Ibid., p. 347. 187 Cf. Ibid., p. 348.

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impecabilidade. Nesta direção foi a afirmação cristológica do concílio de

Calcedônia188: o Filho de Deus, encarnando-se, é em tudo igual a nós,

menos no pecado. A teologia da Igreja antiga buscou tal fundamento na

perfeição moral de Jesus e na firmeza de sua união com Deus. A única

qualidade que caracteriza o ser humano de Jesus na sua especificidade

derivaria assim, de seu ser-por-si individual, idéia que influirá em certas

interpretações modernas da santidade de Jesus189.

Pannenberg, ao elaborar a sua reflexão cristológica na idéia

sotereológica do novo Adão, ele tem presente o princípio da nova

humanidade, humanidade que Jesus se faz autor pela perfeita unidade

com o Pai e pelo sim a sua missão de implantar o reino de Deus no

mundo. Jesus se faz obediente a Deus e solidário com toda humanidade

(cf. 2Cor. 5,21). Por sua morte e ressurreição, ele se transforma em

protótipo de uma nova humanidade. Todos os homens, isto quer dizer

que, doravante, todos os homens deverão se renovar à sua imagem –

que é a imagem de Deus (cf. 2 Cor. 3,18), participando de sua

existência190. Conforme se lê, a carta aos Hebreus afirma a humanidade

de Jesus semelhante aos demais homens em tudo, exceto no pecado (cf.

Hb. 4,15).

A constatação de (Hebreus 4,15) tornou-se uma constante na

teologia a partir de Irineu e Tertuliano. Irineu afirmava o não cometimento

de pecado por parte de Jesus, sem com isso afirmar que Jesus tenha tido

uma natureza distinta da nossa. Tertuliano também atestava que Jesus

assumira a carne pecadora, sem cometer pecado. Ele é um homem sem

pecado devido à sua comunhão com Deus. Com tais afirmações, Irineu e

Tertuliano vão ao encontro do pensamento Paulino, quando Paulo afirma

188 O Concílio de Calcedônia afirmou a perfeita humanidade e a perfeita divindade de Jesus, onde se fazem presentes as duas naturezas inconfusas e imutáveis; indivisas e inseparáveis. Calcedônia foi uma forma de buscar um consenso entre Oriente e Ocidente. (cf. Theodor Schneider (org.). Manual de Dogmática, Vol. I. Cristologia, p. 219-400. São Paulo: Vozes, 2002.) 189 O itinerário da abordagem histórico- dogmática, onde buscava definir a divindade e a humanidade de Jesus, verificando-se as grandes polêmicas e dificuldades que persistiram durante longos séculos. Vários modelos foram formulados até chegar a afirmação de Calcedônia. Vale citar o modelo de Apolinário de Laodicéia ( logos –sarx) como também o Logos- anthropos e suas versões em Antioquia e Alexandria até chegar a conclusão da Unidade de Deus Filho e ser humano, Jesus Cristo. A fórmula de Calcedônia hoje constitui fundamento para a cristologia de todas as igrejas cristãs. 190SANTANA, Marcos Antônio de. Op. Cit. p.274.

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que Cristo se fez um de nós, assumindo a carne de pecado,

permanecendo contudo sem pecado, libertando-nos do seu jugo (cf. Rm.

8,3)191.

O que fica evidente é que a peculiaridade do Redentor residia na

consciência que Ele tinha da presença de Deus em sua pessoa e essa

presença é motivo da ausência de pecado. Tal consciência é aqui

colocada como substitutivo da divindade; Jesus é visto como o Redentor;

fundador de uma comunidade de redimidos e os indivíduos, ao serem

incorporados a tal comunhão, se libertam do pecado e participam de uma

nova sociedade que é denominada de Reino de Deus192. A comunidade

do reino de Deus é considerada uma nova etapa da evolução da

humanidade. Esta nova realidade, trazida por Cristo, no âmbito da vida

humana, é vista como uma nova criação, nova existência humana mais

perfeita, levando a criação humana à sua consumação e à sua plenitude.

Em Jesus, tal consumação acontece no cumprimento livre de sua

missão. Diante das tentações que Jesus enfrenta, como se pode ler nos

sinóticos, há uma inclinação de confirmar a missão que lhe foi confiada

por seu Pai com as expectativas de Israel, esquivando-se da proposta de

Deus. O peso da tentação como abandono do caminho disposto por Deus

ou o desespero diante dele fica evidente em sua oração no Horto das

Oliveiras (cf. Mc. 14,35s; Mt. 26,39; Lc. 22,40-44) e também na cruz com

sua súplica ao Pai193. Deste modo a fidelidade de Jesus à sua missão

pressupõe sua liberdade. Ela acontece no momento em que Ele não

recusa uma resposta positiva à sua missão mantendo-se fiel a esta. Pode-

se dizer que o drama vivido por Jesus não é solucionado em nenhuma

instância humana, é somente no conteúdo de sua mensagem salvífica

assumido na sua missão, missão esta que provém de Deus e constitui a

sua liberdade. É pela autoridade de Deus à qual Jesus recorria em sua

mensagem e atuação que seu drama será solucionado194. A solução se

191 Cf. Ibid., p. 274 et. seq. 192 Cf. Ibid. , p. 276. 193 Cf. Ibid., p.280. 194 Cf. Ibid., p.280. Da existência humana pode-se também afirmar tal drama que se faz tão presente na vida. Nas perguntas mais profundas e determinantes para seu destino, o homem ainda se vê desarvorado. Isso se dá principalmente quando o homem se envereda na busca de falsas liberdades, não vislumbrando a verdadeira liberdade que ancora na legitima união com Deus. A

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dá diante da ressurreição, e esta passa a não ser uma experiência

pessoal de Jesus, mas acontecimento que atinge a todos os homens.

Jesus é o representante de toda a humanidade diante de Deus, e tal fato

demonstra que Ele realizou em sua vida a determinação específica do ser

humano como tal. Na ressurreição, Ele garante aos demais homens a

comunhão com Deus. A cristologia moderna compreende que Jesus é o

homem autêntico em sua abertura para Deus, na sua total confiança no

futuro, na sua responsabilidade filial em relação ao mundo e à

solidariedade com os outros195.

Por fim, Pannenberg constata que é mediante a ressurreição, que

Jesus significa o cumprimento das promessas proféticas escatológicas do

povo de Israel, levando a termo os anseios mais profundos de toda a

humanidade. Este futuro escatológico representa o revelar do autêntico

ser humano dos tempos passados, sendo este, transformado num homem

novo, novo Adão. Paulo aos Romanos nos alerta que “a esperança não

engana, pois o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo

Espírito Santo que nos foi dado” (cf. Rm. 5,5s.). Por este amor de Deus,

manifestado na ressurreição de Jesus Cristo, todos passam a ter acesso

à vida nova que surgiu no evento da ressurreição de Jesus. É neste

sentido de vida nova para o homem que comporta falar também de

reconciliação. Jesus reconcilia a humanidade com o Pai; por Jesus Cristo,

Deus renova a sua aliança com o homem e novamente o introduz no

caminho da salvação; o homem se vê reconciliado com Deus como

trataremos na próxima abordagem.

5.2.2 O Verbo se encarna e o homem se reconcilia com Deus na pessoa de Jesus Cristo

filosofia existencialista, muitas vezes mergulhada no mais fundo abismo da vida humana buscou encontrar respostas para a angústia e o desespero humano, mas acabou reduzindo as suas respostas no próprio homem. Aqui vale a frase de Agostinho citada por Miguel de Unamuno “procurar-te-ei, Senhor, invocando-te, e invocar-te-ei crendo em ti. Invoca-te, Senhor minha fé, a fé que me deste, que me inspiraste com a humanidade de teu Filho, pelo mistério de teu pregador”. Esta confiança é o que possibilita também aos demais homens achar ao modelo de Jesus Cristo, respostas para suas vidas (cf. Miguel de Unamuno. Do sentimento trágico da vida – nos homens e nos povos. São Paulo: Martins Fontes, 1996. 195 Cf. Ibid., p. 281.

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A afirmação joanina que o verbo era a verdadeira luz que ilumina

todos os homens pode nos colocar de encontro ao que Pannenberg

trabalha quando mostra a Encarnação de Jesus na história. Jesus

participa da comunidade humana para revelar a ela o caminho do Reino

de Deus. A missão de Jesus é reconciliar a humanidade com Deus,

libertando-a de todas as amarras e pecados. Em Jesus o homem é

portador da Graça e do amor de Deus. O Verbo de Deus se faz homem

para elevar o homem à Graça de Deus, reconciliando-o definitivamente.

Conforme a tradição judaico-cristã o homem é criado a imagem e

semelhança de Deus, mas devido à queda, o pecado da desobediência,

há um rompimento da relação homem-Deus. Como oferta amorosa de

Deus, o Verbo que se encarna na história humana assume a missão de

reconciliar o homem com Deus. E na Encarnação, bem como no

cumprimento de sua missão Ele é para os cristãos o novo Adão. Jesus é

o mediador definitivo na relação do homem com Deus.

Quando Jesus assume a história humana, esta ultrapassa os

próprios limites e se eleva à história divina. O homem, na sua história, se

vê reconciliado com Deus e espera a plenitude da história como plenitude

da realização humana.

Com Jesus Cristo a esperança de Israel é modificada

profundamente e adquire um caráter universal. Agora Jesus é o homem

novo e escatológico, a figura definitiva de homem, aquele que responde

às intenções de Deus, intenções que já se faziam presentes desde a

origem humana na criação. Como já foi afirmado antes, Jesus é o homem

novo enquanto se mostra obediente a Deus na sua paixão e morte (Rm.

5,19). Pela ressurreição de entre os mortos Ele é o homem definitivo,

transfigurado e plenificado pelo Espírito196.

A filiação divina de Jesus, estendida aos cristãos, como está

apresentada em Paulo ( Rm. 8,16; Gl. 4,5s), não representa uma

novidade absoluta, já que estava presente na fé do povo de Israel. A 196 PANNENBERG, W. TS2. p.359. Pannenberg, ao refletir a problemática cristológica, propõe uma superação para as dificuldades, apontando não a Encarnação como ponto de partida para explicar o humano e o divino em Jesus, mas a história concreta, assim tempo e eternidade não são vistos de forma dualista, numa relação de exclusão, mas sim como inclusão. A Encarnação de Deus em Jesus Cristo aparece como uma intenção que havia em Deus desde a eternidade. Contudo só se chega a tal verdade pelo acontecimento temporal de caráter definitivo.

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novidade é que ela vem do dom do Espírito e da comunhão com Jesus

Cristo o Filho de Deus. O Espírito da filiação de Jesus se dá ao homem

como revelação na Encarnação do Filho numa figura humana; a missão

de Jesus assume um itinerário histórico. Pannenberg trabalha com a idéia

de que é impossível dissociar a pessoa de seu caminho histórico, pois

somente na história da pessoa é que se desenvolve a identidade como

personalidade, é na totalidade da existência que definirá os indivíduos

dos quais se reconta a história.197

A autodistinção de Jesus do Pai, ao assumir a sua condição de

criatura, afirma o fundamento da própria possibilidade e realidade de cada

existência criada. O homem pode, por Jesus Cristo, superar através da

própria autonomia as dificuldades e limites e realizar a sua vocação,

elevando-se além das fragilidades presentes na vida que constituem uma

situação de escravidão e alcançar a verdadeira libertação198.

A vinda do Filho, na Encarnação de Jesus e a sua missão,

assumindo o seu ser homem, implica por si só uma referência a todos os

seres humanos. Pannenberg mostra através do quarto evangelho: Deus

enviou seu Filho ao mundo para salvá-lo (Jo.3,17; 6,38s). Desse modo, a

missão de Jesus tem seu fim: a humanidade, libertá-la do pecado e da

morte e reconciliá-la com Deus199. Mesmo que as expectativas sobre

Jesus junto do seu povo, não se realizassem como esperavam, Ele não

foi o libertador político desejado por eles. Pode-se dizer que Ele propõe

uma libertação, que propicia ao homem a verdadeira comunhão com

Deus. Jesus no seu confronto com a lei judaica, mostra que ela deve-se

libertar do partidarismo, abrindo-se a todos os homens. Pela sua morte e

ressurreição, ele deixa de ser o Messias só dos hebreus, e passa a sê-lo

197 Cf. Ibid., p.363. Para Pannenberg a fundamentação da unidade de Jesus com Deus está na força retrospectiva de sua ressurreição, aí se faz compreensível o caráter oculto durante a vida terrena de Jesus e se dá, portanto, espaço à genuína humanidade de sua existência. 198 Cf. Ibid., p. 364. 199 Pela teologia paulina, Pannenberg traz à tona a idéia de filiação divina de Jesus, associando-a com a confirmação de fé na sua messianidade. Os enunciados da primeira experiência cristã caracterizam a figura do homem escatológico não somente ao restrito mundo da fé hebraica, mas adquire um alcance universalizante.

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de toda humanidade. Jesus quer unir a Deus os homens, segundo a

imagem do homem novo, do homem escatológico200.

Por fim, cabe dizer que Jesus revela no presente o que o homem

será no futuro, Ele, ressuscitado dos mortos, representa o futuro

escatológico do ser humano, revelando-se como o “já” teológico, como

esperança realizada para o homem que “ainda não” experimenta em

plenitude a própria salvação. Jesus já é o protótipo da realização humana,

antecedendo-nos como mediador e reconciliando-nos com Deus. É neste

sentido que podemos afirmar, através da teologia, que a nossa salvação

está em Jesus, que Ele nos liberta e nos dá novamente a qualidade de

filhos de Deus. A ação de Deus na história pela Encarnação abre à

humanidade um horizonte de esperança e de futuro. Esta esperança

futura marca o caminho do homem como fim definitivo, e tal fim, acontece

no tempo escatológico, momento de plena realização do ser humano em

Deus.

5.3 A plenitude do homem na revelação do amor de Deus

Para terminar este estudo antropológico, faz-se imprescindível o

tema da experiência humana do amor de Deus. No meio de vários

aspectos abordados por Pannenberg na sua escatologia, acreditamos que

o tema do amor tem substância suficiente para encerrar tal estudo. Assim,

junto com Pannenberg, pode-se afirmar que o destino final do homem é o

amor de Deus.

O desejo mais profundo que marca o caminho do ser humano é a

superação de seus limites e fragilidades. Numa história marcada por

misérias, dor e angústias, o homem busca para seu coração a felicidade e

a paz201.

200 Cf. Ibid., p. 366 et. seq. Faz-se importante lembrar que Pannenberg atribui em sua obra um respeitável lugar à escatologia. Na sua antropologia, mesmo que não tenhamos nos dedicado à ela devidamente, ela aponta para o desfecho definitivo e decisivo para o homem. É no eschaton que ao homem será revelado a plenitude de seu ser. 201 O documento VATICANO II na Constituição Pastoral Gaudium et Spes lembra que, marcados por uma situação tão complexa, muitos dos nossos contemporâneos são impedidos de discernir verdadeiramente os valores perenes (...) assim, inquietos, eles se interrogam, num misto

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O autor, ao tratar o tema do amor de Deus na criação não fecha os

olhos para a questão do mal que se faz presente no mundo. Este

problema é tratado desde o tempo dos padres da Igreja antiga. A teologia

cristã respondeu a tal dificuldade e suas conseqüências referindo-se à

liberdade a que Deus quis dotar as criaturas superioras, isto é, os anjos e

os seres humanos202. O mal e suas conseqüências são resultado da

autonomia que a criatura goza, mesmo que tal autonomia seja traço

imprescindível de uma existência criatural ao lado do ser eterno de Deus.

No caso da pessoa humana verifica-se a capacidade de escolher entre as

diversas possibilidades de querer e de agir, tal capacidade, que é

qualificada como liberdade, é condição necessária, mas não ainda

suficiente para a verdadeira liberdade, a liberdade de filhos de Deus ( Rm.

8,21)203. Neste sentido, a capacidade de escolher entre as diversas

possibilidades indica uma forma elevada de autonomia da criatura, mas

ao mesmo tempo, lembra Pannenberg, é extremamente frágil, pois muito

facilmente na prática pode levar a pessoa a perder a autonomia, que

Deus doou a este ao criá-lo , uma vez que se faz escravo dos poderes do

pecado e da morte204.

O acontecimento escatológico não anula a autonomia atribuída à

criatura, ela se mantém respeitada e tal circunstância é que permite a

realização da verdadeira liberdade humana, assim como é nela que se

fundamenta o caráter de reciprocidade que caracteriza a glorificação

escatológica. A plenificação da vida humana, como eternidade, só se faz

possível devido a sua existência no tempo que já é a antecipação da

eternidade e com a Encarnação de Jesus, sua mensagem e sua atividade

inaugura por definitivo o futuro salvífico do reino. Pannenberg expõe que

de esperança e de angústia, sobre a evolução atual do mundo. Este curso não só desafia os homens, mesmo força-os a uma resposta. É ainda no número 21 que o documento afirma “Só Deus dá uma resposta plena e totalmente certa ao problema do homem”. 202 PANNENBERG, W. TS3. p. 670. 203 Cf. Ibid., p. 70. A obra A Salvação de Jesus Cristo de Mario de França Miranda, aborda com rara beleza e de forma profunda, o tema da liberdade no sentido cristão, sinalizando assim, para a verdadeira libertação da liberdade e esta se dá na verdadeira vivência da experiência do amor como ágape- amor fraterno. 204 Cf. Ibid., p.670. Mesmo que o tema do pecado e da morte marcam um grande percurso no tratado da graça, em Pannenberg, nós aqui não realizamos o caminho feito por ele, já que tal temática merece um estudo específico; aqui contentaremos em indicar que este tema é amplamente abordado na teologia Sistemática de W. Pannenberg.

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também pelo batismo os cristãos se unem a Jesus Cristo e à sua

ressurreição205. Aqui se trata de uma participação sem limite e sem

barreira na vida eterna de Deus. Não uma participação limitada, mas já

marcada pela presença criadora do Espírito divino.

Pannenberg continua a reflexão mostrando que o antecipar do futuro

escatológico de um Deus eterno, que faz questão de entrar no tempo e na

história humana, é como que um temporalizar-se do amor divino. Mesmo

não renunciando à própria eternidade, o amor de Deus produz o tempo,

age nele e se faz presente no tempo. É no tempo da criatura que se inicia

o futuro de Deus e sua comunhão com ele206.

Para Pannenberg, já na criação, no ato criador, Deus exprime seu

amor ao mundo, dando vida às criaturas e participando a todo tempo dela.

Ele reforça que a expressão por excelência do amor de Deus se dá na

sua atividade conciliadora, que faz irromper no mundo o reino futuro. E o

culminar do amor de Deus ao mundo se dá com o envio de seu Filho,

pelo acontecimento da Encarnação, em que ele mesmo se faz presente

no meio dos homens, através de Jesus. Pela Encarnação Deus insere o

ser humano como participante da relação filial de Jesus com o Pai. Ao

homem é permitido participar do futuro de salvação e da certeza do amor

salvífico como Dom permanente do Espírito Santo207.

Pannenberg conclui sua escatologia dizendo que a economia

divina de salvação exprime o futuro de Deus que se antecipa em função

da salvação das criaturas na manifestação de seu amor. Assim, as

criaturas são por Deus incluídas na vida trinitária e o amor de Deus,

revelado na economia da salvação é a pulsação do amor trinitário,

compreendido no mundo inteiro pelas criaturas.

205 Cf. Ibid., p. 672. 206 Cf. Ibid., p. 672. 207 Cf. Ibid., p. 672.

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6 Conclusão

O que pretendemos neste momento do trabalho é somente sinalizar

para alguns pontos que, com certeza, foram marcantes no decorrer deste

estudo. De início, podemos considerar que a antropologia de W.

Pannenberg é uma antropologia de grande alcance e profundidade, pois

busca seus fundamentos nas bases mais sólidas do conhecimento

ocidental. Pannenberg é um autor que dialoga amplamente com a filosofia

do ocidente, partindo da clássica, passa pela escolástica até chegar à

moderna, e além disso, com muita facilidade, ainda abre diálogo com

outras ciências da modernidade.

Um ponto forte do estudo foi buscar perceber no pensamento do

autor um diálogo aberto e científico com a modernidade, não um diálogo

qualquer, mas um diálogo religioso-teológico. Nesse sentido, todo

empenho no desenvolvimento de uma antropologia sólida e bem

fundamentada em bases científicas, mostra ter somente uma finalidade

em Pannenberg: chegar à resposta mais clara possível que o homem se

destina para Deus, como origem, como abertura na história e, como fim

na escatologia. Assim, a antropologia adquire um atributo novo, ela abre

em seu universo uma perspectiva teológica, buscando responder às

questões que a pura antropologia filosófica pode não estar preocupada.

Puxar o homem para o centro da criação é um dado evidente na

abordagem antropológica de Pannenberg. Para ele, o homem é o senhor

da criação, não como dominador ou explorador desordenado do mundo e

das coisas, mas porque ele traz em si a imago dei. Sendo imagem de

Deus, o perfil de ser humano traçado por Pannenberg, assume uma tarefa

muito mais ampla e profunda: a de contribuir para que a vontade de Deus

aconteça no mundo. O homem, quando carrega em si a imagem e

semelhança de Deus, deve ser visto como uma totalidade composta das

dimensões corpo e espírito, sem nenhuma espécie de dicotomia, mas

como uma totalidade integral. Somente situado nesta idéia de totalidade é

que o homem, de fato, assumirá a sua realidade de sujeito livre e

consciente de sua individualidade.

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Outro dado a ser considerado no pensamento de Pannenberg é o

tema da liberdade, para o qual ele dedica longas páginas e, não menos

longos debates sobre tal temática. Se para muitos modernos a relação

homem e Deus pode ser marcada pelo empobrecimento da liberdade

humana208, para ele quando o homem se descobre como liberdade é que

ele também se descobre como necessitado de algo mais; de algo que

está além de si mesmo. Nessa percepção de si, como alguém marcado

por uma liberdade que não se restringe ao universo racional e filosófico,

pois senão ela se faz insuficiente, o homem se lança para um horizonte

que está mais além e se projeta como transcendência para a vivência da

liberdade como abertura. Tal abertura, coloca o ser humano em sintonia

com o Absoluto, já que ele toma consciência de que é um ser para a

liberdade. A plenificação da liberdade só é possível no momento em que

este se vê marcado pela graça amorosa de Deus. Nesse sentido, pode-se

falar como o apóstolo Paulo “ somos libertados em virtude da libertação

oferecida por Jesus Cristo” (Rm 3, 24). Conseqüentemente, a liberdade,

no sentido cristão, é caracterizada pela comunhão com Jesus e com a

participação na sua filiação junto do Pai. Vale retomar aqui o apóstolo dos

gentios que diz “ na plenitude dos tempos Deus enviou o seu Filho,

nascido de mulher e sujeito à lei, para pagar a alforria daqueles que estão

sujeitos à lei, para que nos seja dado ser filhos adotivos” (Gl 4, 4). Desse

modo, a liberdade verdadeira permite ao homem superar a crise diante de

si e diante de Deus e se deixar reconciliar com Deus. Compreendida

assim, a liberdade, como já dito, é fruto da graça, é dom do Espírito

tornando o ser humano plenamente livre; ela o faz participante da filiação

de Jesus Cristo, porque somos filhos no Filho.

Como já mencionado, não é possível pensar a realidade humana

sem levar em consideração o ser humano na sua totalidade como pessoa

e nessa totalidade a transcendência como ato do espírito. O homem é um

ser aberto, incompleto, isso vale dizer que ele busca sempre mais e mais.

208 Aqui vale lembrar o episódio do asno de Buridan, que diante de duas vasilhas de feno não saberia escolher qual delas lhe pareceria mais apetitosa. Este episódio foi relacionado com a liberdade humana em relação a Deus por alguns filósofos modernos, dizendo que Deus teria que indicar ao homem o caminho para a sua vida já que ele não tem em si mesmo a liberdade para escolhê-lo.

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116

Ao caracterizar a sua antropologia com fortes traços transcendentais,

Pannenberg compreende o ser humano como alguém que é

impulsionado por uma força que o projeta para um lugar indescritível. Este

lugar, que não tem nome, pois nenhum nome seria suficiente para defini-

lo é o que o homem deseja como infinito inexprimível, tal lugar porém, se

faz presente no homem como dado do espírito. Assim, transcendência e

espírito, na dinâmica humana, lançam a pessoa em direção ao sagrado,

ao divino. Somente no entendimento da pessoa como espírito,

consciência e transcendência, é que se pode falar de um homem como

abertura para Deus na antropologia de Pannenberg. É na compreensão

que o homem adquire de si, sustentada nos substantivos indicados acima,

que tal homem pode ser considerado como alguém que deseja o

absoluto e se abre para ele. O ser humano supera o mundo que o rodeia

e os limites da cultura, abrindo espaço para um lugar que se instala mais

além do horizonte dos fatos concretos, ele entra numa realidade que é

mais que humana. Aqui surge um complemento, definido como

sobrenatural, que não está no concreto da história, mas é dado, é força

da Graça, oferta gratuita de Deus. É pela Graça, que o homem é

possibilitado de se elevar ao mais alto grau de perfeição, chegando à

semelhança de Jesus Cristo. Na história de Jesus de Nazaré o homem se

supra-assume e se livra de seus limites, atingindo seu destino de imagem

e semelhança com Deus.

Todo o empenho teórico e científico de Pannenberg, é para situar a

antropologia em um lugar teológico. No esforço da elaboração e

fundamentação científica, o autor busca demonstrar no homem a

dimensão religiosa como constitutivo natural. É na elaboração da sua

realidade como espírito, consciência, transcendência e liberdade que

Pannenberg consegue fazer a passagem da pura antropologia para a

Antropologia teológica, ou melhor, ele formula uma leitura da

antropologia numa ótica diferenciada. Nesse contexto, a história humana

já é em si uma história teológica, em que Deus se faz presente nela. A

antropologia se instaura no seu lugar ideal que é buscar as respostas

mais fundamentais e profundas para a existência humana.

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Para alcançar o lugar religioso do homem, Pannenberg faz uma

leitura da história e da cultura, realidades em que o homem está situado.

Não há como buscar uma resposta para o anseio religioso da pessoa,

sem fundamentá-la na história e na cultura; por tal motivo, o autor constrói

um longo caminho histórico e cultural para, a partir deste lugar onde se

encontra instalado, construir as respostas antropológicas para a sua

reflexão teológica. Pode-se dizer, sem grande dificuldade, que o homem

pannenberguiano é por natureza religioso e já traz em si tal realidade

desde sua origem na criação. Uma afirmação constante em sua

antropologia teológica é o homem ser criado a imagem e semelhança de

Deus. Tal afirmação já pré-estabelece no ser humano um lugar especial

no mundo e na natureza, uma vez que ele se constitui, na cadeia das

espécies, como uma singularidade, marcado pela razão e pela liberdade.

No uso da razão e da liberdade, diferentemente do instinto animal, o

homem possui uma direção vital, doada por Deus, ele já visualiza uma

meta que está posta para ele, de tal modo a realizar em si o ser imagem e

semelhança de Deus. É plausível dizer que a imago Dei, como traço

característico da natureza humana permite ao homem pensar o fim da

realização de sua essência. Mesmo que o homem, como criatura, seja

marcado por imperfeições, ele se vê em condições de superá-las através

de sua abertura ao mundo e às coisas de fora dele. É nesta abertura ao

mundo e ao fora de si que o homem se encontra como consciência e

como abertura a Deus. Nesse caminho, o homem busca um sentido mais

profundo para sua vida; ele se abre ao transcendente e ao sagrado. O

homem se vê como religioso, e se vendo assim, deposita a sua confiança

no absoluto, em Deus. Não há como negar que, para Pannenberg, a

experiência religiosa é essencialmente humana. É na história do homem

que tal experiência se revela. Mesmo que no mundo a experiência

humana ainda não tenha atingido sua plenitude como experiência

religiosa ou experiência de Deus, ela já se faz fato consumado, realizado

na pessoa de Jesus Cristo. Jesus é o protótipo do que o homem deverá

ser como realização. Nele o homem religioso já vislumbra o seu destino a

ser realizado, e espera essa realização com toda sua confiança.

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A realidade humana, na sua identidade se descobre como abertura

que, é um traço fundamental de sua realidade como consciência. Nesse

processo, o homem se conhece como alguém que é possuidor de uma

missão específica. Ele se descobre como alguém destinado a algo muito

maior, destinado a Deus. Em Jesus Cristo o homem se percebe como

participante da filiação divina e da missão de Jesus. Como Jesus foi

obediente ao Pai, cada pessoa também deve participar dessa obediência

e do cumprimento de sua missão no anúncio do reino de Deus. Jesus

como Encarnação é a revelação da grande esperança humana. No amor

do Pai manifestado em Jesus, o homem se vê libertado em sua liberdade

e se encontra renovado na sua história. Agora, já se faz presente no

homem, como revelação, o que ele será no futuro. Com a ressurreição de

Jesus dos mortos surge ao homem um horizonte escatológico,

apresentado como uma possibilidade real. Desta forma, a esperança

humana já vislumbra a sua plena realização que será cumprida

plenamente na eternidade.

Antes de encerar estas considerações conclusivas, cabe retomar o

já mencionado acima, o escatológico. Pannenberg não deixa dúvida,

como teólogo cristão coloca um grande acento na escatologia como

esperança final para a história humana. A sua antropologia teológica

valoriza profundamente a história humana e toda cultura, propiciando ao

ser humano experimentar a história como abertura para o transcendente e

como esperança. Sua antropologia apresenta o homem num mundo

marcado pela esperança. O homem é um ser que deseja se realizar

plenamente; e, por ser imagem de Deus, não se contenta com os puros

fatos da cultura e da história, conseqüentemente, numa atitude profunda

e impulsionada pelas forças do espírito, da consciência e da liberdade, se

eleva até ao mais alto de sua esperança. Em Jesus Cristo esta esperança

é caracterizada como reino de Deus, salvação, eschaton. A realização

definitiva do ser humano, como cumprimento da salvação escatológica e

como esperança que se dará na ressurreição definitiva.

No momento escatológico, o homem encontrará alívio para suas

angústias e misérias, alcançando a felicidade e a paz. Será o momento

em que o ser humano experimentará de forma plena o amor de Deus já

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demonstrado a ele desde a criação. No ato revelador de Deus ao

homem, o homem se verá também revelado a si mesmo. E no encontro

criatura e criador, a palavra-chave para a entrada neste mistério definitivo

de Deus será amor. Como registrou o quarto evangelho: Deus é amor.

Sobre a escatologia, ainda vale dizer: caso a antropologia seja

esvaziada da esperança mais profunda que marca a essência humana,

ela passa a não ser antropologia, na verdade se torna nada. Se o homem

retirar a dimensão religiosa da sua realidade como homem, ele deixa de

ser homem, esvaziando a sua história por completo, pois o sentido último

da história humana está nele como Graça, como dom doado por Deus e

sem esse sentido, a história está fadada ao fracasso e ao vazio. A

resposta mais profunda e mais ousada para a antropologia, como ciência,

não é ela mesma no seu status científico; a ciência serve somente de

apoio para o ser humano se lançar para uma atitude que está muito além;

para assim, ele adentrar numa experiência onde a antropologia se faz

pequena para explicar. O homem participa da experiência do sagrado, da

experiência de Deus.

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