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DIÁRIO DE BORDO,
Por Fernando Évora e Gonçalo Condeixa
A vida são escadas. Escadas que se sobem – e se descem. Há quem não as queira subir, quem as evite,
quem comodamente procure os elevadores.
A Educação é a vida. É prepararmo-nos para a viagem, ajudarmos o outro a subir as escadas sem se
deslumbrar com as vistas – ou combater o medo da vertigem. É saber que nas escadas um degrau se pode
quebrar e então temos de suster o pé, conservar o equilíbrio, repará-lo.
Entre as escadas há nuvens. Nuvens passageiras, nuvens de conhecimento, nuvens que chocam entre si e
desencadeiam violentas tempestades.
Chegámos a Follonica no projeto “aprender juntos”. Viemos ver como funciona uma escola em Itália.
Viemos subir escadas, olhar o mundo de uma nova perspetiva. Viemos aprender porque sabemos que
estamos sempre a aprender juntos e porque sabemos que só podemos ensinar se aprendermos mais e
mais. Aprender com os nossos alunos e, agora também, com os alunos e colegas italianos. Aprender para
fazer melhor. Que há tanto para aprender!
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Buogiorno, Follonica!
DIÁRIO DE BORDO,
Por Fernando Évora e Gonçalo Condeixa
Follonica, 7 de maio de 2018
Chegámos ao ISIS! Não, não viemos para o Estado Islâmico. O nosso ISIS é o Istituto Statale Istruzione
Superiore em Follonica.
Chegámos eram 7:30 que as aulas aqui começam ao quarto para as oito. O ISIS é um Liceo – como aqui se
chama. Tem alunos a partir dos 14 anos. O último ciclo de estudos em Itália começa no que corresponderá
ao nosso 9º ano e dura cinco anos (os alunos fazem treze anos desde as primeiras letras à entrada da
Universidade). No ISIS de Follonica há as opções de Ciências Humanas, Científico, Ciências Aplicadas e
Linguística, isto no que corresponderá aos nossos “científico-humanísticos”.
Fiquemos com as primeiras impressões:
O edifício da escola é antigo. Muitas salas têm com pouca luz, o betão domina, o mobiliário é obsoleto,
está longe de ser um espaço fisicamente agradável; há aulas de Filosofia dadas nas salas de informática
com dificuldades para o contacto visual.
Outro aspeto que mereceria reparos em Portugal é a ausência de um bufete. Há apenas máquinas com
comida de estilo bimbo. Ideia a não ser copiada.
Os nossos colegas foram muito simpáticos. Assistimos às aulas da manhã. Cinco aulas de uma hora.
Lembrámo-nos quando as aulas ainda não eram de noventa minutos e tivemos saudades (e inveja dos
nossos colegas que só trabalham 18 tempos letivos, nada mais). De um modo geral as turmas são mais
pequenas que as nossas (ai que bom!). Nas aulas a que assistimos houve grande dinamismo – os
professores eram excelentes comunicadores, expressavam-se muito bem (eu, finalmente, percebi a
questão estética em kant – e explicada em italiano). Os alunos pareceram muito empenhados, de um
modo geral bem mais empenhados e participativos do que os nossos – e terá de haver explicação para
isto.
Julgo que entendemos muito razoavelmente as aulas em italiano – é giro falar do Cartasio e do Bacone,
que são o Descartes e o Bacon, de Shakespeare, dos conceitos de inteligência, a arte de aprender a ver em
Klimt, Caravaggio ou Van Gogh. Respirava-se aquele ar entusiasmante do conhecimento, sentia-se a
curiosidade, os alunos não se coibiam de dar a sua opinião, faziam-se pontes com notícias atuais ou filmes
recentes.
Alguma dificuldade existiu no nosso contacto com alguns professores que falam pouco inglês (entre eles
parece dominar o francês e nós os dois somos trapalhões na língua de Voltaire). Mas com os alunos
falámos em inglês. E falámos bastante. Sempre simpáticos e curiosos, trocámos opiniões e os desenhos do
Gonçalo foram um motivo de aproximação e boa disposição.
Acabámos as aulas à uma da tarde e a escola fechou, que aqui não há aulas depois do almoço. São sempre
e apenas de manhã, mas também são ao sábado. Contas feitas acabam por ser mais ou menos as mesmas
que em Portugallo.
Ainda é só o começo.
Amanhã damos mais novidades.
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DIÁRIO DE BORDO,
Por Fernando Évora e Gonçalo Condeixa
Follonica, 8 de maio de 2018
As boas impressões continuam. A capacidade dos alunos para argumentar, expor as
suas ideias, falar fluentemente sobre os diversos assuntos – desde Piaget, Freud,
Rafaello ou Leonardo – causa-nos espanto. Talvez o segredo esteja no paradigma
da avaliação que passamos a explicar em seguida.
A maior parte da avaliação das diversas disciplinas é baseada nas “interrogaziones”.
O termo português mais próximo talvez seja “chamadas orais”. Já assistimos a
várias por aqui. O professor junta três alunos e coloca-lhes questões à vez, fazendo
três ou quatro voltas por todos. São questionários relativamente longos e
profundos (admira-nos como os alunos sabem tanto daquelas matérias) que
podem durar a aula toda (55 minutos). Estes são os principais elementos de
avaliação dos professores e em alguns casos são mesmo os únicos (até em
disciplinas como História ou Filosofia).
Talvez este hábito, que é sistematicamente aplicado desde a primária, desenvolva
nos alunos a sua capacidade, que tanto nos tem espantado, de falar sobre os mais
diversos assuntos.
Perguntamos como são os exames escritos no final dos 13 anos de secundário. A
maioria funciona por tema (lembrem-se que estamos a falar sobretudo de alunos
da área de Humanidades). Os alunos têm um tema vasto, de conhecimentos que
adquiriram ao longo dos cinco anos do “Superior” (entre os 14 e os 19 –
explicaremos depois como está organizado o ciclo de estudos) e elaboram uma
composição sobre esse tema.
Quanto às aulas tendem, na maior parte dos casos, para se transformarem numa
espécie de “brainstorming”.
Amanhã há mais!
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DIÁRIO DE BORDO,
Por Fernando Évora e Gonçalo Condeixa
Follonica, 9 de maio de 2018
Como em todas as escolas existem turmas calmas e ponderadas em que os alunos
intervêm de forma organizada e outras mais caóticas e anárquicas. Contudo ainda
não vimos turmas amorfas em que as intervenções precisem de ser tiradas a saca-
rolhas. E isso não para de nos espantar. Talvez que se deva, como apontámos
antes, a este hábito das chamadas orais e ao estímulo continuado à discussão;
talvez se deva à personalidade expansiva que é uso ligarmos aos italianos; talvez às
duas coisas ou talvez que a educação estimule a maneira de ser do italiano
comunicativo.
As matérias ensinadas são muito curiosas. Hoje, no 5º ano (o ano anterior à
entrada na Universidade, correspondente a um 13º ano) falava-se de alunos com
necessidades educativas especiais, a formulação teórica da sua integração escolar e
a legislação existente. Isto é matéria escolar para os alunos. Numa outra aula,
sobre Leonardo Da Vinci fiquei a perceber – finalmente! – que caminho poderei
seguir para demonstrar aos meus alunos a importância da Gioconda. O Gonçalo
enfim teve o seu momento de felicidade e assistiu a uma aula de desenho técnico,
daquelas com assistente e tudo. É que nesta escola não funciona a opção de artes
no “superior”.
Expliquemos então a organização dos ciclos em Itália:
Há um primeiro ciclo de 5 anos (a materna), um segundo ciclo de 3 anos e um final
de outros cinco (a que chamam o “superior”). A escola que nos recebeu é uma
“superior”, aqui chamada “Liceo”. Neste superior, e além dos cursos técnicos e
profissionais, há as seguintes opções de estudos: científico (que se pode desdobrar
em “ciências aplicadas”), humanístico, clássico (com enfoque no latim e grego),
linguístico (línguas estrangeiras), artístico e musical. Na escola de Follonica existem
as opções de Ciências, Ciências aplicadas, Humanidades e Linguístico (além de
profissionais e técnicos). Quem quiser seguir outras opções terá de ir para Grosseto
(sede do distrito) a 40 quilómetros. Os planos de estudos, contudo, são
abrangentes: todos os alunos, seja de que opção forem, têm História e História da
Arte; os alunos de Humanidades têm Biologia ou Matemática (com menos horas do
que na opção científica)
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Agora uma nota diversa, menos positiva. E tem a ver, novamente, com as
instalações. Desta vez as casas de banho: sem água, sem papel, em mau estado. Os
alunos ficam invejosos quando sabem que nós temos bufetes e uma grande
biblioteca (é mesmo verdade: os alunos italianos leem livros e não sentem
vergonha por isso) e até uma papelaria. Nesta escola não há nada disso (e repetem-
nos que não é a pior). Ficamos a pensar que se houvesse opção de artes talvez que
os espaços pudessem estar melhor arranjados. Sobretudo se houvesse por cá um
Gonçalo.
Amanhã damos mais notícias.
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DIÁRIO DE BORDO,
Por Fernando Évora e Gonçalo Condeixa
Follonica, 10 de maio de 2018
É o nosso penúltimo dia. Começam já as saudades do que há-de vir. É que é bom
estar nestas aulas. Aprendemos, falamos com os alunos. Sentimos que gostam da
nossa presença.
Uma aluna aproxima-se de nós. É do 4º ano de humanidades (o penúltimo ano
escolar). Chama-se Blu e é uma admiradora de Fernando Pessoa. Recita-nos a
autopsicografia de Pessoa “O poeta é um fingidor…”. Diz-nos que há dois anos foi a
Lisboa e visitou a casa de Fernando Pessoa. Que chorou. É bom saber que os nossos
poetas são os nossos melhores embaixadores. Mas que não gosta só de Pessoa.
Fala-nos também de música brasileira, de Chico Buarque e de Caetano e de
Bethânia. Que tenta traduzir para italiano as suas letras.
E isto traz-nos de volta a questão da cultura, a paixão da arte. Em muitas aulas
vimos essa paixão e percebemos que os programas apontam muito para as
referências culturais. Talvez que os programas portugueses o pudessem fazer
melhor. Nos últimos anos, no nosso país, com o argumento que esse conhecimento
que é, reconhecemo-lo, em parte empírico e está facilmente disponível na internet,
abandonou-se – ou, pelo menos, desvalorizou-se – o conhecimento das referências
artísticas e literárias. Temos dúvidas que esse seja um bom caminho.
Hoje o dia foi diferente. Enquanto eu, Fernando Évora, permaneci nas aulas
escolares, o Gonçalo foi convidado para assistir ao dia do “Tiro”. Todos os alunos
do último ano (que corresponderia ao nosso 13º) foram “atirar” aos pratos. Uma
longa sessão de preparação (2 horas) e depois campo de tiro com todo o quinto
ano. Trata-se de uma iniciativa desta escola animada por um professor de
Educação Física que na palestra referiu a tradição italiana na modalidade – várias
medalhas olímpicas. Ainda teve tempo o Gonçalo para assistir ao torneio de
Voleibol.
Eu despedi-me do Andrea Nuti, professor de Ciências Sociais que não tem aulas
amanhã. Um professor que nos perdurará na memória: excelente comunicador,
muito atento, sempre assertivo.
Arrivederci, Andrea. O primeiro dos arrivederci.
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DIÁRIO DE BORDO,
Por Fernando Évora e Gonçalo Condeixa
Follonica, 11 de maio de 2018
Último dia.
Começamos com uma aula de História. A professora pede-me para falar sobre a
História de Portugal. Faço um apanhado muito rápido. Pedem-me que detenha na
questão dos Descobrimentos. Porque, diz um aluno, ao fim e ao cabo foi a viagem
de Vasco da Gama à Índia que levou à crise veneziana. Precisamente. E qual a
razão, perguntam-me, porque não aceitou D. João II a proposta de Cristóvão
Colombo? Debatemos o assunto. Tento-lhe explicar no meu melhor inglês. Depois a
conversa vem parar ao século XX e á ligação entre Mussolini e Salazar. E aproveito
para falar do último rei de Itália – Umberto II – que viveu em Portugal quando em
1946 foi proclamada a República em Itália. E que esse mesmo rei, que era Duque
de Sabóia, visitou uma terra com o mesmo nome perto do local onde vivo. Curioso.
A aula decorre depressa. Talvez depressa demais que este é dia da dolorosa
despedida.
Numa outra aula vimos uma mesa com livros vários, já usados. Pergunto do que se
trata. É um projeto da turma, explica-me a aluna que teve a ideia: os alunos trazem
livros que já leram e que gostavam que os amigos lessem. Luccia mostra-me
orgulhosa o “Billy Elliot”. Entre os livros encontro o “Afirma Pereira” de António
Tabucchi, cuja ação decorre em Portugal nos anos trinta. Conheço a aluna que o
leu. Afinal estamos tão próximos. A literatura aproxima os povos, cada vez me
convenço mais.
O fim aproxima-se. Os alunos rodeiam-nos, querem ver os desenhos do Gonçalo.
Agora que nos estávamos a conhecer melhor vão-se embora. Falam na
possibilidade de fazermos um intercâmbio. Seria bom, sempre nos voltaríamos a
ver. Talvez, dizemos. Vamos pensar no assunto. Falo com a nossa colega Elena,
lançamos as primeiras pedras de visitas entre os nossos alunos.
Os arrivederci, as últimas fotografias. Levamo-nos na memória, gostámos de todos
vós. Como se diz saudade em italiano?
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