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DIREITOS CULTURAIS, CIDADANIA e DEMOCRACIA: reflexões acerca da política
cultural
Patrícia Inês Jablonski1
Ana Lúcia dos Santos2
RESUMO
O objetivo deste trabalho é analisar um modelo de política cultural expresso pela
concepção de cidadania cultural. Paralelamente à análise dessa concepção, podemos
compreender alguns traços marcantes da relação entre Cultura e Política no Brasil, em
particular as concepções que pautaram a atuação do Estado brasileiro no âmbito da
cultura. Interessa-nos, de modo especial, o entendimento da cultura como direito e, nesse
sentido, como objeto de planejamento e deliberação política que deve ser assegurado a
todo cidadão. Para tanto, faz-se necessária uma análise retrospectiva das conquistas dos
direitos civis, políticos e sociais e sua trajetória rumo à cidadania. Nesse percurso,
destacamos os direitos sociais e, dentre eles, o processo de reconhecimento dos direitos
culturais. Assim, acreditamos que com esse percurso teremos abordado alguns elementos
que poderão proporcionar-nos um melhor entendimento da concepção da cidadania
cultural, foco principal deste trabalho. Conforme explicitaremos, não se trata apenas de
um modelo de política cultural, mas, essencialmente, de uma forma de atuação na esfera
da cultura que visa à construção de uma nova cultura política, numa perspectiva
transformadora e democrática. Enfim, busca-se relacionar democracia, cidadania e
direitos culturais, problematizando-os, a fim de refletir sobre as suas interferências
recíprocas, pensando os direitos culturais como roteiro emancipatório.
Palavras-chave: Direitos culturais. Política cultural. Cidadania. Democracia.
INTRODUÇÃO
1 Advogada. Professora Pesquisadora do Instituto Federal Farroupilha, Campus Santa Rosa. Mestre em Direito
pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI, Campus Santo Ângelo/RS.
Especialista em Direito Processual Civil pelo Centro Universitário Internacional – UNINTER. Graduada em
Direito pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI, Campus Santo Ângelo/RS.
E-mail: [email protected]. 2 Advogada. Graduada em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. Pós
graduada em Direito Púbico pela UNIDERP. Mestranda no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu - Mestrado
em Direito da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – Campus Santo Ângelo(RS). E-
mail: [email protected].
2
Relacionar democracia, cidadania e direitos culturais é a pretensão deste artigo, a
partir de um breve resgate da conceituação de direitos culturais. Das intersecções com a
cidadania, diante do pensamento de Luis Alberto Warat, que se relaciona aos direitos
culturais, integrante da categoria dos direitos humanos.
Diante desse quadro pensar no direito de participação na vida cultural, um dos
direitos culturais previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos e do Pacto
Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de forma ampliada, a fim de
construir um embasamento teórico para análise do direito de participação na vida cultural
do povo, que, duma análise prévia, se percebe importantes mudanças de rumo na política
cultural, proposta em termos mais democráticos.
DIREITOS CULTURAIS: BREVES CONSIDERAÇÕES
De acordo com o Art. 27 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e do
Art. 15 do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), estão
incluídos no rol de direitos humanos, os direitos culturais. Este último, junto com o Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos, do mesmo ano, foram elaborados com a intenção
de estabelecer o compromisso dos Estados membros da ONU com a efetiva aplicação dos
direitos humanos.
Com efeito, em um aspecto mais genérico, os direitos culturais, versam, em suma, sobre
a liberdade do indivíduo em participar da vida cultural, seguir ou adotar modos de vida de sua
escolha, exercer suas próprias práticas culturais, beneficiar-se dos avanços científicos e ter
proteção moral e patrimonial ligada às produções artísticas ou científicas de sua autoria.
Nesse sentido, de suma importância trazer à baila para o presente estudo a reprodução
dos artigos específicos sobre os direitos culturais nos instrumentos supracitados:
Artigo 27 da Declaração dos Direitos Humanos: 1. Toda a pessoa tem o direito de
tomar parte livremente na vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar
no progresso científico e nos benefícios que deste resultam. 2. Todos têm direito à
proteção dos interesses morais e materiais ligados a qualquer produção científica,
literária ou artística da sua autoria3.
Artigo 15 do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais:
3 Extraído de: http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001394/139423por.pdf
3
§1. Os Estados-partes no presente Pacto reconhecem a cada indivíduo o direito de:
1.Participar da vida cultural; 2. Desfrutar o progresso científico e suas aplicações;
3.Beneficiar-se da proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de toda a
produção científica, literária ou artística de que seja autor. §2. As medidas que os
Estados-partes no presente Pacto deverão adotar com a finalidade de assegurar o
pleno exercício desse direito incluirão aquelas necessárias à conservação, ao
desenvolvimento e à difusão da ciência e da cultura. §3. Os Estados-partes no
presente Pacto comprometem-se a respeitar a liberdade indispensável à pesquisa
científica e à atividade criadora. §4. Os Estados-partes no presente Pacto reconhecem
os benefícios que derivam do fomento e do desenvolvimento da cooperação e das
relações internacionais no domínio da ciência e da cultura4.
Inicialmente cabe ressaltar que ambos os documentos possuem, intencionalmente, uma
concepção de direitos que são, antes de tudo, entendidos como inerentes a cada indivíduo, sem
distinção de origem cultural. Dessa forma, a Declaração vale, portanto, para qualquer indivíduo
e não para um grupo específico. Portanto, como indica Teixeira Coelho (2011, p. 10) “o direito
cultural é individual quanto a seu sujeito e coletivo em seu objeto”.
Num primeiro aspecto, é necessário entender que, não existe ainda muita clareza acerca
do conceito de direitos culturais, tampouco da sua normatização e aplicação. Para Farida
Shaeed, atual especialista independente no campo dos direitos culturais do Conselho de
Direitos Humanos da ONU,
Os direitos culturais constituem uma área de desafio justamente porque estão ligados
a uma vasta gama de questões que variam da criatividade e expressão artísticas em
diversas formas materiais e não materiais a questões de língua, informação e
comunicação; educação; identidades múltiplas de indivíduos no contexto de
comunidades diversas múltiplas e inconstantes; desenvolvimento de visões de mundo
específicas e a busca de modos específicos de vida; participação na vida cultural,
acesso e contribuição a ela; bem como práticas culturais e acesso ao patrimônio
cultural tangível e intangível. (SHAHEED apud COELHO, 2011b: 20).
Segundo Yvonne Donders (2011, p. 75), “a dificuldade em determinar a abrangência
dos direitos culturais é causada principalmente pela complexidade do conceito de cultura”.
Além disso, outro complicador está no fato dos direitos culturais se aproximarem de outros
direitos humanos que têm a ver com a cultura, por exemplo, o direito das minorias, à educação
ou ainda às liberdades fundamentais, como de pensamento, expressão, autodeterminação,
associação, religião, etc.
4 Extraído de: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0591.htm
4
Logo, muitos pesquisadores defendem a necessidade desta concepção integral dos
direitos culturais, englobando todos os direitos que tenham relação com a cultura, inclusive
como estratégia para incorporá-los como direitos fundamentais.
Dessa forma, incluindo-se os direitos culturais no âmbito de direitos fundamentais,
estaríamos diante de uma categoria mais alta de garantias e, por consequência teríamos a
proteção constitucional por meio de julgamentos especiais (PIETRO DE PEDRO, 2011, p. 45).
De outro lado, alguns autores e, também, o Comitê da ONU dos Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais, entendem que, ao concentrar-se no aprimoramento do conceito do direito
de participar da vida cultural, é possível dar este caráter abrangente aos direitos culturais e
estabelecer a relação do Art. 27 da Declaração dos Direitos Humanos com outros instrumentos
internacionais que também se referem ao direito de participar, em condições de igualdade, de
atividades culturais ou da vida artística e cultural5.
Concordando com o enfoque no direito de participar da vida cultural, é interessante
referir que, se faz necessário o respeito, bem como a proteção da livre decisão de um indivíduo
em exercer ou não o direito de participar e também de eleger com qual vida cultural deseja
associar-se.
Percebemos que participar da vida cultural inclui não só a própria possibilidade de
participação, mas também de ter acesso à vida cultura e de poder contribuir com ela.
Como indica Bernardo de Mata-Machado, que “o direito à participação na vida cultural
pode ser incluído entre os direitos conquistados pelo movimento operário em suas lutas por
mais igualdade” (MATA-MACHADO, 2007, p. 6).
Em seu texto fica evidente a preocupação com a universalização do acesso aos bens
culturais, até então restrito às classes privilegiadas. Além disso, é importante notar as duas
dimensões deste direito, aquela passiva, que envolve a livre fruição e acesso, e a ativa, na qual
se reconhecem os direitos à difusão, criação e participação nas decisões de política cultural.
Para finalizar esse breve tópico, vale retomar sua relação com a diversidade cultural e
sua (não) sobreposição a outros direitos humanos. Nesse sentir, devemos ter consciência de
que as limitações ao direito de participar da vida cultural podem ser necessárias em certas
circunstâncias, em especial no caso de práticas negativas que infringem outros direitos
5 Extraído de: http://www.gddc.pt/direitos-humanos/onu-proteccao-dh/orgaos-onu-dir-econ-soc-culturais-
novo.html
5
humanos. Há necessidade de enfrentar, também, a cultura, como um lócus de injustiças e
conflitos, sobretudo quando relacionada a ideologias ou a identidades nacionais.
Em resumo, compreendemos o direito cultural como o direito de qualquer indivíduo de
participar, passiva e ativamente, em condições de igualdade, e sem qualquer discriminação
prévia, barreira ou censura, da vida cultural de sua escolha, definindo suas próprias
identificações (ou identidades), desde que sua participação não infrinja outros direitos
humanos, nem venha a tolher liberdades fundamentais garantidas a todo ser humano. Portanto,
afirmamos que a partir dos direitos culturais temos garantidos a proteção do patrimônio
cultural, tangível e intangível; um cenário em que bens e serviços culturais, dos mais diversos,
são oferecidos; a liberdade de expressão através de sua língua materna com o devido
reconhecimento na sociedade; a participação em decisões sobre política cultural; o
financiamento para produção e difusão da cultura; além da garantia de direitos morais e
patrimoniais sobre obras de sua autoria.
WARAT E A CIDADANIA
A noção de cidadania, segundo Warat, vai muito além da possibilidade de elegermos
nossos representantes, e sim, da oportunidade que nós mesmos temos em buscar e tomar
decisões, ocupando, dessa forma, o papel principal na “peça teatral da vida” e buscarmos a cura
para “os males estares da alma”, tudo isso pelo exercício pleno da cidadania.
Com efeito, na busca constante da cidadania plena nos deparamos com conceitos e
sentimentos, como ternura, amor, política e ética, resultando, por conseguinte, uma nova
cultura, onde o ser humano apresenta-se além de preocupado com o bem em geral, um ser
independente, destinatário e titular dos direitos inerentes a sua vida.
Nesse aspecto, antes de buscar uma conceituação doutrinária waratiana, importante se
faz trazer à baila, o conceito emprestado pelo dicionário on-line Aurélio, onde tem-se seguinte
definição: “qualidade de cidadão"6, enquanto o conceito de cidadão no mesmo dicionário é
assim descrito: “Na Antiguidade, o que gozava o direito de cidade: cidadão romano. Membro
6 Extraído de: Disponível em: http://www.dicionariodoaurelio.com/Cidadania.html. Acesso em 19.07.2016.
6
de um Estado, considerado do ponto de vista de seus deveres para com a pátria e de seus direitos
políticos”7.
Nesse sentido, percebe-se que o conceito de cidadania apresentado nos dicionários se
mostra muito distante do real significado desta palavra, da mesma maneira ocorre com o
conceito emprestado diariamente em nossas vidas, o qual está além do que se esperado.
A par disso, além da ausência de um verdadeiro conceito de cidadania, não são poucos
os motivos que nos levam a concluir pela inobservância dos mais elementares direitos
derivados desta cidadania que homens e mulher buscam. O atual cenário mundial, cada vez
mais multicultural, cada vez mais global, sem limites e sem fronteiras, parecem desprezar um
membro essencial deste sistema, o ser humano, detentor desta cidadania e, consequentemente
de seus inerentes direitos.
Nesse compasso, Luis Alberto Warat nos brinda com uma pervicaz definição destes
acontecimentos: “O mundo está convertido no lugar dos grandes simulacros onde se
multiplicam ao infinito as frustrações, as dores, onde a violência e o ódio fervem, devagarzinho,
por trás de uma aparência de conformidade” (WARAT, 2004, p. 27).
Em outras palavras, o ser humano, vítima de um sistema que cada vez mais o robotiza,
parece não ter mais sentimentos, revelando, por conseguinte, um ser perdedor. De outro lado,
a sociedade é tida, exclusivamente, como de consumo, satisfazendo todos os sentimentos
apenas com a exaltação do consumo, revelando uma obrigatoriedade geral para ser aceito pelos
outros e, reconhecido como cidadão.
Evidentemente, que referido reconhecimento está longe de ser verdadeiro, revelando-
se superficial, criando indivíduos cidadãos superficiais, em vista dos ditames da nova sociedade
de consumo. De fato, há um reconhecimento superficial e emergencial, no entanto, ao passo
que os indivíduos não detém condições financeiras de praticar o consumo de determinados
produtos regrados pela sociedade em geral, acaba-se verificando o inúmero caso de seres
humanos que perdem a condição de cidadão e, logicamente, passam a não mais dispor dos
“privilégios” da cidadania perpetuada pela sociedade de consumo.
Nesse passo, vive-se em tempos de superficialidades, usufruindo de breves momentos
de cidadania, possuindo direitos fragmentados, não passando de uma imposição falsa de
7 Extraído de: http://www.dicionariodoaurelio.com/Cidadao.html. Acesso em 19.07.2016.
7
valores, mantendo os indivíduos cada vez mais distantes da real situação, representando
pequenas e insignificantes peças de um jogo que se propaga velozmente na imensidão global.
Dessarte, cidadania não é simplesmente consumir, da mesma forma que o exercício da
cidadania não se restringe apenas ao momento do voto.
Nessa linha de pensamento, Luis Alberto Warat revela e amplia nossos horizontes, no
sentido de que o indivíduo estava próximo da real cidadania, mas pelas cegueiras decorrentes
das imposições da sociedade de consumo não percebeu tal situação, ou até se percebeu, não
despertou qualquer interesse ou preocupação pelos rumos que advinha.
Nesse âmbito, a obra waratiana brinda nos com a necessidade da reconstrução da
cidadania, frisando a importância da reconstrução começar pelo “eu”, e vista de que esse “eu”
é o principal responsável pela propagação do conceito de cidadania. Em termos gerais,
inspirados em Hans Kelsen, podemos afirmar que Warat é o criador da “teoria pura da
cidadania”, teoria que nos mostra os caminhos para alcançarmos um devir de cidadania plena.
Para Warat o surrealismo seria uma importante forma de humanizar o ser humano, e
consequentemente verificar uma a cidadania surrealista:
O surrealismo é o único formato com que o homem de hoje conta para compreender
a viagem (transmoderna) de humanização do humano. Para isso, tem-se que procurar
a cidadania surrealista, e descobrir algumas lições dessa busca. A primeira lição de
cidadania surrealista: a vida não é, como diz um deprimente tango argentino, uma
ferida absurda; é algo que devemos amar com fervor, é parte da condição esquecida
do ser humano. A segunda lição surrealista é que a realidade deve sempre ser
construída poeticamente, temos que ter acesso a um real-poético, que una todas as
presenças em um todo complexo, ambíguo, contraditório, fantástico: o natural que
traz sempre uma dimensão imaginária, o real que traz sempre consigo o irreal, o
querido que é também sempre temido, o solene que esconde sempre um pouco de
irreverência. Em uma viagem em que ardem, simultaneamente, o combustível que
nos move, o meio que nos transporta, e os portos seguros a que imaginamos chegar.
A única coisa a que se deve cuidar, para não ser queimada, é a esperança (WARAT,
2004. p. 162-163).
De acordo com essas palavras, o cidadão, além deste cuidado com si próprio, também
deve cuidar do coletivo, protagonizando uma papel no teatro da vida além de um mero
expectador passivo, deixando que o Estado tome para si o monopólio das suas decisões. Nesse
aspecto, ao permitir que instituição ligadas ao Estado tomem decisões em nome dos indivíduos,
estar-se-á delegando o exercício da própria cidadania.
8
Em essência, essa rotina de delegação por muitas vezes é imposta, e há uma aceitação
cada vez maior sem qualquer ressalva. Warat, ao analisar esta questão, refere que: “Em nome
da cidadania hoje se pode dizer qualquer coisa; se transformou em um lugar comum, vazio de
sentido e de valores. A cidadania substancialmente tem a ver com a construção do eu próprio
e a afirmação de seu valor” (WARAT, 2010, p. 108).
Por outro lado, a noção de cidadania, em poucas palavras retiradas da obra de Warat,
pode ser assim sintetizada:
Por aí passa o sentido da palavra cidadania: pelo controle do limite, o que parece
essencialmente antagônico às práticas delegativas da democracia. Por aí começa o
sentido mais amplo de cidadania como uma forma solidária de encontrar-se,
autônomos, frente à lei, de exigir o cuidado público da vida. A cidadania como uma
questão ecológica e de subjetividade: o mundo e o outro como limite que me constitui
autônomo. A cidadania como um reclamo ético-estético-político por uma melhor
qualidade de vida social; a possibilidade de algo mais digno para o conjunto de uma
sociedade (WARAT, 2004, p. 411).
Por fim, e não menos importante, conforme Warat propaga, a cidadania exige de todos
o amor, sentimento que deve, obrigatoriamente, permear toda e qualquer relação. O amor é o
sentimento principal para quem pretende exercer a cidadania. O amor, a fraternidade e a ética
são valores indispensáveis e indissociáveis na construção de uma nova cidadania, uma
cidadania humanista, que nos permita vivermos a vida de uma maneira plena.
A PARTICIPAÇÃO DEMOCRÁTICA NAS POLÍTICAS PÚBLICAS
A palavra democracia deriva do grego demos (povo) e kratos (poder), o que significa
identificar a democracia como o poder do povo (Aieta, 2006, p. 191), ou seja, a democracia
representa um poder que emana do povo, não um poder inerte, mas um poder ativo exercido
pelo povo.
Por isso, “a democracia define-se, não como a criação política da sociedade, mas como
a penetração do maior número de atores sociais individuais e coletivos no campo das decisões”
(Touraine, 1996, p. 41-42), já que tão somente os mecanismos democráticos representativos
não definem a democracia como o poder do povo, mas apenas refletem o poder dos
representantes do povo, sendo de suma importância a participação democrática intensa para a
construção de uma democracia efetivamente emanada do povo.
9
Nesse sentido, Rousseau, em Do Contrato Social, ressalta que o pacto social
estabelecido entre os cidadãos tem igualdade, ou seja, todos os cidadãos devem gozar dos
mesmos direitos, incluindo o direito de participar do processo de tomada de decisão no âmbito
público e, por isso, todo ato de soberania (incluindo a soberania popular) é ato de todos os
cidadãos; nota-se:
Por qualquer ângulo que se remonte ao princípio, chega-se sempre à mesma
conclusão: saber que o pacto social estabelecido entre os cidadãos tem tal igualdade,
que eles se encontram todos nas mesmas condições, e todos devem gozar dos mesmos
direitos. Assim, pela natureza do pacto, todo ato de soberania, isto é, todo ato
autêntico da vontade geral, obriga ou favorece igualmente todos os cidadãos, de modo
que o soberano conhece somente o corpo da nação e não distingue nenhum dos que a
compõem (Rousseau, 2008, p. 51).
Então, para Rousseau, o que é propriamente um ato de soberania?
Não é uma convenção do superior com o inferior, mas uma convenção do corpo com
cada um de seus membros: convenção legítima, porque tem por base o contrato social,
equitativo, porque é comum a todos, útil, porque não pode ter outro objeto senão o
bem geral, e sólido porque tem como garantia a força pública e o poder supremo.
Enquanto os súditos não estão submetidos senão a tais convenções, eles não
obedecem a ninguém, mas apenas à própria vontade; e perguntar até onde se estendem
os respectivos direitos do soberano e dos cidadãos é perguntar até que ponto eles
podem engajar-se consigo mesmos, cada um para todos e todos para cada um
(Rousseau, 2008, p. 51).
Dessa forma, diante do exposto acima, podemos sintetizar a soberania popular como,
um ato comum a todos os cidadãos, um ato de engajamento de cada um para todos e de todos
para cada um, não existindo um ato de soberania isolado, sendo que, a legitimidade deste ato
é, acima de tudo, a participação, a possibilidade de participar do processo de tomada de
decisões quando da execução das políticas públicas.
Na democracia, os cidadãos, embora coletivamente soberanos, também são, como
indivíduos, participantes das contendas que julgam coletivamente. A equidade entre
os cidadãos exige que participem como iguais (Dworkin, 2005, p. 511).
Logo, a tomada de decisões públicas sem participação do cidadão não é democrática.
Conforme já afirmava Aristóteles, “aquele que tem o poder de tomar parte na administração
deliberativa ou judicial de alguma Cidade, dizemos que é cidadão daquela Cidade” (Aristóteles,
10
2010, p. 115), ou seja, faz-se necessário a participação ativa do cidadão no espaço público, sob
pena de não o fazer, estar-se-á propagando uma democracia meramente retórica.
A democracia é, justamente, o fato de que cada cidadão tem um poder de decisão acerca
das políticas públicas, um poder de ação na esfera pública. Hannah Arendt descreve a ação
como requisito da condição humana, pois “quem quer que vivesse unicamente uma vida
privada – o homem que, como o escravo, não podia participar da esfera pública ou que, como
o bárbaro, não se desse ao trabalho de estabelecer tal esfera – não era inteiramente humano”
(Arendt, 1987, p. 48), pelo que a ação no espaço público é condição de possibilidade da
democracia.
Nesse sentido, Bonavides leciona sobre espaço público:
Encerra o conceito de espaço público, a nosso ver, as virtualidades do processo
democrático mais aberto, intenso e profundo a que se possa aspirar, enraizado na
consciência e na ação dos que, com a expansão da imaginação criativa, introduziram
instrumentos novos com que elidir a supremacia da intermediação clássica – a da
chamada representação política – cuja crise é manifesta e cuja decadência é
irremediável (Bonavides, 2003, p. 278).
Nesse ínterim, a participação na decisão acerca das políticas públicas é condição
primeira da existência da sociedade democrática, para que a imagem do povo como detentor
do poder se concretize, o que não ocorre na democracia que elide a participação cidadã nas
políticas públicas, pois democracia sem acesso às decisões não é verdadeiramente democracia,
mas sim um regime que a decisão é verticalizada e imposta.
Cumpre referir que, uma democracia exercida apenas nas eleições torna o povo alienado
e inerte, pois inebriado na névoa de que a representatividade é suficiente para guiar as decisões
das políticas públicas, sendo desnecessária a participação após o pleito eleitoral. Na defesa da
democracia ativa além dos limites da eleição, Sartori sustenta que “a participação eleitoral não
é participação real” (Sartori, 1994, p. 158).
E, continua o referido autor:
Própria e significativamente entendida, participação é um tomar parte pessoalmente,
e um tomar parte desejado, auto-ativado. Ou seja, participação não é um simples
‘fazer parte de’ (um simples envolvimento em alguma ocorrência), e menos ainda um
‘tornado parte de’ involuntário. Participação é movimento próprio e, assim, o exato
inverso de ser posto em movimento (por outra vontade), isto é, o oposto de
mobilização (Sartori, 1994, p. 159).
11
Bonavides ressalta que, a democracia representa mais do que uma forma de governo, e
sim, um direito do povo de administrar-se pela sua própria vontade, vejamos:
Tanto quanto o desenvolvimento, é a democracia, por igual, direito do povo; direito
de reger-se pela sua própria vontade; e, mais do que forma de governo, se converte
sobretudo em pretensão da cidadania à titularidade direta e imediata do poder,
subjetivado juridicamente na consciência social e efetivado, de forma concreta, pelo
cidadão, em nome e em proveito da Sociedade, e não do Estado propriamente dito –
quer o Estado liberal que separa os poderes, quer o Estado social, que monopoliza
competências, atribuições e prerrogativas (Bonavides, 2003, p. 161).
Diante desse cenário, cabe afirmar que a renovação da democracia é necessária, pois
[...] a experiência já tem demonstrado largamente como a pura e simples substituição
dos detentores do poder público é um remédio aleatório, quando não precedida e até
certo ponto determinada por transformações complexas e verdadeiramente estruturais
na vida da sociedade (Holanda, 1995, p. 178).
Não se está querendo dizer que a democracia representativa deva ser derrocada, mas
sim que a participação no acesso às decisões públicas deve ser introduzida na democracia,
porque apenas a manutenção da antiquada democracia representativa, onde as decisões
deliberativas são tomadas apenas por pessoas eleitas para esta finalidade, não será suficiente
para garantir o exercício da democracia que depende, indubitavelmente, da participação ativa
nas políticas públicas.
É preciso reconhecer que a democracia representativa não fornece todas as condições
necessárias à concretização da democracia, pois todos têm o direito de participar na vida
democrática do país, e, especialmente, as decisões acerca das políticas públicas devem ser
tomadas de forma tão aberta e tão próxima do cidadão quanto possível, assegurando assim a
máxima presença do povo no poder e, por consectário, implementando a participação como
elemento fundamental da democracia.
POLÍTICAS PÚBLICAS DE CULTURA: UM ESPEAÇO EM EDIFICAÇÃO
Uma política cultural atualizada deve reconhecer a existência da diversidade de
públicos, com as visões e interesses diferenciados que compõem a contemporaneidade. No caso
brasileiro, temos a premência de reverter o processo de exclusão, da maior parcela do público,
12
das oportunidades de consumo e de criação culturais. Nestor Canclini utiliza o conceito de
hibridização cultural como uma ferramenta para demolir a concepção do mundo da cultura em
três camadas: culta, popular e massiva. O conceito de hibridização abrange diversas mesclas
interculturais, não apenas as raciais, que se costuma encaixar no termo mestiçagem, ou as
preponderantemente religiosas, categorizadas enquanto sincretismos (CANCLINI, 1998, p.14).
Entretanto, tais alterações não ocorreram, tendo sido apenas criado alguns critérios e
normas que permitissem uma melhor distribuição dos recursos, porém ainda muito longe do
nível ideal.
A promoção de políticas de caráter mais universal tem como desafio, segundo Pierre
Bourdieu, a questão de um processo de “desigualdade natural das necessidades culturais”
(Bourdieu e Darbel. 2003, p. 69). Ao analisar a questão do público dos museus de arte em
diferentes cidades da Europa, ele alerta para o fato de que:
[...] se é incontestável que nossa sociedade oferece a todos a possibilidade pura de
tirar proveito das obras expostas no museu, ocorre que somente alguns têm a
possibilidade real de concretizá-la. Considerando que a aspiração à prática cultural
varia como a prática cultural e que a necessidade cultural reduplica à medida que esta
é satisfeita, a falta de prática é acompanhada pela ausência do sentimento dessa
privação. (Bourdieu e Darbel. 2003, p. 69)
O desafio perpetuado está na diversidade das atividades culturais em torno da
sociedade, e com isso, o compartilhamento dessas múltiplas linguagens com esse mesmo
conjunto de sociedade. Segundo Ventura, “o desafio que se impõe é combinar processos
culturais particulares com direitos de cidadania universais” (2005. p. 88).
A ação na área da cultura tem sido frequentemente vista através de uma visão limitada
ao acontecimento episódico, ao evento, inclusive por muitos dos gestores da área pública.
Qualquer processo de gestão requer diretrizes, planejamento, execução e avaliação de
resultados, e com a cultura não ocorre diferente. Um dos grandes desafios da gestão pública da
cultura na avaliação das ações implementadas tem relação com os objetivos e à multiplicidade
de efeitos buscados ou por ele alcançados. As ações públicas têm que demonstrar minimamente
coerência entre o que se diz buscar e as ações postas em prática.
A base de um novo modelo de gestão das demandas de políticas culturais está no
reconhecimento da diversidade cultural dos distintos agentes sociais e na criação de canais de
participação democrática.
13
No Brasil, encontramos, nos diversos níveis de governo, órgãos responsáveis pela
gestão cultural. Em todos eles estão presentes os problemas da carência de recursos. É
fundamental definir as relações que podem e devem ser estabelecidas entre os vários órgãos
públicos de gestão cultural nos níveis federal, estadual e municipal, e destes com outras áreas
governamentais, com as instituições privadas e com a sociedade civil. Existe uma série de
competências legais comuns entre a União, os estados e os municípios, entre as quais podemos
destacar a função de proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico
e cultural, os monumentos, as paisagens naturais e os sítios arqueológicos.
Nesse sentido, há a necessidade de realizar algumas partilhas de tarefas entre os
diversos níveis de governo, evitando duplicidades ou, ao contrário, omissão de ações,
interagindo entre as ações propostas em cada governo.
Em vista disso, podemos concluir que um processo contínuo de democratização cultural
deve estar baseado em uma visão de cultura como força social de interesse coletivo, que não
pode ficar dependente das disposições do mercado. Numa democracia participativa a cultura
deve ser encarada como expressão de cidadania, um dos objetivos de governo deve ser, então,
o da promoção das formas culturais de todos os grupos sociais, segundo as necessidades e
desejos de cada um, procurando incentivar a participação popular no processo de criação
cultural, promovendo modos de autogestão das iniciativas culturais. A cidadania democrática
e cultural contribui para a superação de desigualdades, para o reconhecimento das diferenças
reais existentes entre os sujeitos em suas dimensões social e cultural. Ao valorizar as múltiplas
práticas e demandas culturais, o Estado está permitindo a expressão da diversidade cultural.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Podemos afirmar que hoje uma questão centrais compõem a pauta da política cultural:
a da diversidade cultural.
Nesse sentido, a defesa da diversidade como elemento fundamental para a continuação
da existência das próprias sociedades, deve considerar os vários aspectos da diversidade, não
se contentando, por exemplo, com a mera preservação do variado como na construção de um
enorme museu de “objetos” vivos, destinado ao prazer daqueles que são de fora daquela
comunidade.
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Portanto, há necessidade da promoção da diversidade como lugar de diálogo constante
entre grupos e não como lugar da formação de grupos isolados, utilizando-se desta questão
como bandeira fundamental contra o processo de globalização uniformizadora. Assim, de suma
importância, também o tratamento das manifestações culturais como parte do patrimônio de
um povo, que deve ser protegido frente a ameaças de natureza diversa e que necessita de
políticas que contribuam para a elaboração de formas de ação quando por um motivo qualquer
um grupo, tradição ou manifestação se veja ameaçado de desintegração e/ou desaparição. Bem
como a necessidade da formulação procedimentos que recuperem a capacidade do Estado de
regular, de proteger e fomentar a produção cultural.
Uma questão que apresenta grandes desafios, é transformar esse complexo de ações em
políticas que possam ter alguma garantia de continuidade nas próximas décadas.
Dessa forma, a função da elaboração de políticas públicas na área de cultura deve ser a
de garantir plenas condições de desenvolvimento da mesma. O Estado não deve ser um
produtor de cultura, mas pode e deve ter a função de democratizar as áreas de produção,
distribuição e consumo. Cultura é fator de desenvolvimento.
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