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Discurso Alheio

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Cinco Lições de Psicologia Freud

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nakhtlll.dlalogl:mo c c~n'truç5o do sentido / B-;;;-IBr au lorg.) Cauip ina s , SI-'. Editora da UNICAI'vIP.1997

(Coleção Rep. :(ti, 10S)

I l3aUltlll. ~1 ~1. (~1 ~h"oI) ví rkhauovuch, I g9'i1975 . C,íIlC] e r n t e r p re r a ç ãr, 2 LlngUíSIlJC'3 An á l rs e do discurso ~ I r t e r at u r a . Est ét i c aI Rrall. Ilclh II T"ulo

20 CDD 410415

M5-26M-U-I06-5 - 80 I 93

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B17~

ISBN

Indices para catálogo sistcmat ico:

Crítico lit e r arjo

LingüísticaAnálise cio discurso

4 Litcf3lura· Esté t ic a

TRANSMISSÃO DO DISCURSO ALHEIOE FORNJAS DE DIALOGISMO EM VIDAS

SECAS, DE GRACILIANO RAMOS

llO'110

·115801.93

Coleção RepertóriOs

Copyright © by Berh Brait Maria Celina Novaes Marinho=

Projeto GráficoCanulu Ces a ri no Costa

Euunu Ke s t e nbuum

Revisão

Valdir Pereira Comes

Eu.a Limu Mncúri»

A idéia de um discurso que é o tempo todo atravessado peloalheio, que traz no seu interior o outro é um dos principais pontosdo pensamento de Mikhail Bakhtin e o fundamento da sua concep-ção dialógica da linguagem. Concepção que aparece ilustrada deforma paradigmática 110S estudos que Bakhtin faz das formas decitação do discurso e das formas de discurso bi vocal , mostrandocomo tais formas atuam na construção das diferentes vozes sociaisque dialogam em um romance .

No caso da citação, Bakhtin analisa não a estrutura gramaticalde formas como os discursos direto, indireto e inrlireto livre, masparticularmente a dinâmica que se estabelece entre contexto narra-tivo e discurso citado. Dinâmica que se traduz ora na delimitaçãoora na dissolução das fronteiras que.separarn a palavra citada d a-que Ia que cita, construindo, conforme o caso, a solidariedade ou ainterferência, a proximidade ou a distância do narrador em relaçãoao discurso citado (Bakht in, 1988a: 137-96).

Coordenação Eduor i alC'llrmtUI Silviu P Te ixe Ira

Preparação de Originais

l vuna de Alb uque ru u e MG1.elli

Produção Ed it o r ial

.)'(Il/d"1 v'ie iru A!vesEd uor aç ãn Eletrônica

Silvia H P. Ctunp os COllçalve.I

Parte dos recursos uuhzados par a a publicação deste livroé provenienre da CA PES através do Projeto Construção do

Sentido e Aquisição das Línguas. coordenado por Berh Brait

1997Editora da UnicampCaixa Postal 6074

Cidade Universitária - Barão GeraldoCEf' 130~3-970 - Campln:15 SP - Brus il

Fonc/FH (O 19) 788 217-1

• Pós-graduanda do Deparrame nt o de Lingüística da Universidade de SãoPaulo.

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Da mesma forma, Bakhtin procura distinguir, no caso do dis-curso bivocal, de que modo a palavra de outrem é incorporada: seé objeto de representação (caso da.estiliz.ação e da paródia) ou seassume o papel de destinatário a quem se dirige a primeira voz (casoda polêmica). Bakhtin observa ainda que a mistura de vozes numdiscurso pode se dar de modo convergente, como na estil ização. oude modo divergente, como na paródia (Todorov, 1981: 110-1).

Compreender a construção e a função das formas de dialogiza-ção é para 8akhtin o problema central do estudo do romance, "Ienô-meno pluriestilístico, plurilíngüe e pluri vocal" (Bakht in, 1988b:73). Diz ele:

"Para o romancista-proxgdor. o objeto está enredado pelo dis-curso alheio a seu respeito, ele é ressalvado, discutido, diversamenteinterpretado e avaliado, ele é inseparável da sua conscientizaçãosocial plurívoca. Desse mundo posto em questão, o romancista falauma linguagem diversificada e internamente dialogizada" (Bakhtin,1988b: 132).

Adotar a perspectiva bakhti niana na análise de um romancesignifica, portanto, colocar-se diante de questões como estas: Comosão caracterizadas as linguagens de personagens de diferentes gru-pos sociais? Através de que forma de citação essas personagens sãodotadas de voz? Que tipo de acento apreciativo suas palavras rece-bem? Que intersecção com outros discursos suas falas revelam? Deque modo essas vozes atuam na composição do discurso romanesco?

Algumas dessas questões serão retomadas na análise que fare-mos, a partir de agora, da construção das vozes sociais em VidasSecas, de Graciliano Ramos.

Encontramos nesse livro alguns aspectos que o aproximam daconstrução polifônica do romance descrita por Bai<htin. O primeiroaspecto é que a personagem é representada como uma autocons-ciência (Bakhtin, 198 I: 43). Em Vidas Secas, Graciliano faz maisdo que representar a vida subumana dos sertanejos, representa aprópria consciência que essas pessoas têm da situação de miséria edominação em que vivem. O segundo ponto de contato é a repre-sentação do homem no momento de crise e de reviravolta de suaalma (Bakhtin, 1981: 52). O discurso de Fabiano é marcado peladúvida. Ele se questiona o tempo todo sobre sua identidade e suaatuação no mundo. Ligada a essa, uma outra semelhança aparece na

construção do discurso da personagem: é a or ie ntaç..o em relaçãoao discurso do outro e à consciência do outro, orientação que assumea forma de um "discurso com m irada em torno" (B akht. n , ; 981 181)Encontramos esse fenômeno muitas vezes em Vidas Se as. A fala deFabiano parece traze i sempre em seu interior o que os outros dizemou pensam a seu respeita. t o que acontece com relação 3. lingua-gem.

Com um precário domínio da linguagem, Fabiano sente seudiscurso observado e julgado. Nesse contexto, há sempre uma lin-guagem outra sombreando a linguagem que se apresenta primeira.Há sempre o perigo do erro, da contravenção ameaçando o falar. Oolhar de uma outra linguagem censurando o dizer. Essa é a perspec-tiva em que se desenvolve a visão de mundo de Fabiano. A lingua-gem é dos outros, como tudo mais. Faz uso dela como da fazenda:de passagem, de empréstimo, sem se sentir dono. Fabiano sente quea apropriação que faz da linguagem é indevic1a: só os homens têmdireito a ela e ele é só um cabra, um bicho.

O problema da representação da linguagem é outro problemacaro à Bakhtin que aparece em Vidas Secas. Como fala um sujeitoque pouco contato tem com a linguagem? Como representar sua vozsem falsear') Graciliano Ramos optou por representar essa voz atra-vés do discurso indireto livre, forma que permite manter a entoaçãoda personagem, ao mesmo tempo em que deixa a responsabilidadepela construção das frases para o autor.

Analisando o discurso indireto livre, Bakhtin observa que aespecificidade dessa forma está no fato "de o herói e o autor exprimi-rem-se conjuntamente, ele, nos limites de urna mesma e única cons-trução, ouvirem-se ressoar as entoações de du. s voz.es diferentes"(Bakhtin, 1988a: 177). Em Vidas Secas, essas características vãopermitir a articulação de dois pontos de vista: a visão do narr ador,que olha os retirantes a partir de un) contexto mais amplo, comoparte de uma história de exploração; e a visão de Fabiano e de suafamília, circunscrita no pequeno universo de seus afazeres e pro-blemas cotidianos, com quase nenhuma perspectiva além da sobre-vivência diária. Essas duas visões de mundo, definidas no romanceatravés de voz.es, ora se aproximam, ora se afastam; ora são disso-nantes. ora consoriantes.

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A consonância entre a voz do narrador e as vozes das persona-gens, em Vidas Secas, vai se dar geralmente através de uma espéciede sentimcnto de desilusão. Observemos este trecho:

Se pudesse mudar-se, gritaria bem alto que o roubavam.Aporetuernente resignado, sentia um ódio imenso a qual-quer coisa que era ao mesmo tempo a campina seca, opatrão, os soldados e os agentes da prefeitura. Tudo naverdade era contra ele (Ramos, 1974: 139).

Essa última frase pode ser tanto um comentário do narrador,como uma conclusão da personagem diante daquela realidade. Fa-biano sente o peso do inforlú;;"io; ao mesmo tempo, o narrador s~beas razões dessa adversidade.

Um outro trecho que reflete a consonância das duas vozes éeste:

Sinha rena é qLle se explicava como gente da rua. Muitobom LIma criatura ser assim, ter recurso para se dejen-der. Ele não tinha. Se tivesse não viveria naquele estado(Ramos, 1974: 141).

As duas primeiras frases são discurso da personagem, as duasúltimas podem ser de Fabiano, mas também do narrador. Algumasvezes, porém, não há coincidência entre o ponto de vista do nnrradore o da personagem e as duas vozes se distanciam. É o caso, por exem-plo, do final do livro:

E andavam para o Sul, metidos naquele sonho. Uma ci-dade grande, cheia de pessoas fortes. Os meninos emescolas, aprendendo coisas difíceis e necessárias. Elesdois velhinhos, acabando-se como uns cachorros, inú-teis, acabando-se como Baleia. Que iriam fazer? Retar-daram-se temerosos. Chegariam a uma terra desconhe-cida e civilizada, ficariam presos nela. E o sertão conti-nuaria a mandar gente para lá. O ser/lia mandaria paraa cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, SinhaVitória e os dois meninos (Ramos, 1974: 172).

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A primeira frase é do narrador, e já manifesta sua posição: aidéia que os sertanejos tinham da cidade grande era sonho, ilusão,não era a realidade. A segunda, terceira e quarta frases expressam osreceios e esperanças das personagens em relação ao Sul. A quintafrase - uma pergunta: Que iriam fazer? - pode pertencer tanto aocontexto das personagens, transmitindo a idéia de incerteza; comoao do narrador, expressando seu ceticismo com relação à sorte da-queles retirantes. A partir daí predomina a voz do narrador: as espe-ranças eram inúteis. O lugar era outro, mas a situação a mesma - dizo narrador, contcxtualizando-os no vasto universo de retirantes que,cumprindo um ciclo parecido com o descrito no livro, migram paraas grandes cidades. Novamente eles viveriam dominados, sem pers-pectivas, sem escolhas.

Dissemos anteriormente que a apropriação da linguagem porFabiano configura-se como um ato ilícito; em última instância, umroubo. Tendo sua origem num ato censurável, o discurso de Fabianose esconde do julgamento social. Muitas são as passagens do livroque indicam essa característica do discurso de Fabiano. Nestes tre-chos, por exemplo:

Não podia ttizerem voz alta que aquilo era uni furto, masera. (Ramos, 1974: 137) [grifas nossos].Se pudesse mudar-se gritaria bem alto que o roubavam.(Ramos, 1974: 139) [grifas nossos}.Ou ainda, naquela que é uma das principais passagensdo livro:- Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta.(. ..)Olhou em lama, com receio de que, fora os meninos, al-guém tivesse percebido a frase imprudente. Corrigiu-a,murmurando:- Você é U/11 bicho, Fabiano (Ramos, 1974 : 53) ts rifasnossos].

A idéia de uma voz abafada, reprimida, que se manifesta naforma de discurso interior e que só às vezes é colocada para fora,explica, de certa forma, o uso peculiar que Graciliano Ramos faz do

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discurso direto em Vidas Secas e a construção dialogizada do mo-nólogo interior de Fabiano.

O enunciado em discurso direto representa, na maioria dasvezes, uma exteriorização dessa palavra que Fabiano reprime. Écomo se algo das profundezas do seu pensamento viesse à tona. Issonão significa que essa palavra externada seja realmente dita ou ditapara alguém. O que é expresso em discurso direto fica entre umpensar em voz alta e um falar em voz baixa. Isso porque os proces-sos mentais das personagens - transmitidos em discurso indiretolivre - têm seu clímax marcado quase sempre pelo uso do discursodireto. Vejamos alguns exemplos:

Tomavam-lhe o gado quãse de graça e ainda inventavamjuro. Que juro! O que havia era safadera.- Ladro eira (Ramos, 1974: 137)Aquilo nem era facão, não servia para nada. Ora nãoservia'- Quem disse que não servia? (Ramos, 1974: 151)

Assim, em geral, o que aparece em discurso direto constitui-senuma espécie de eco do que já foi transmitido em discurso indiretolivre. Eco não no sentido de pura repetição, mas no de efeito poli-fônico no qual uma segunda voz responde à primeira. Um últimoexemplo desse caso:i

- Conversa. Dinheiro anda num cavalo e ninguém podeviver sem comer. Quem é do chão não se trepa (Ramos,1974: 135).

Se pudesse economizar durante alguns meses levantariaa cabeça. Forjara planos. Tolice, quem é do chão não setrepa (Ramos, 1974: 135).

Essa última frase reaparece logo depois em discurso direto:

Nesse caso, a resposta em discurso direto, numa relação dialó-gica de concordância, chega mesmo a repetir uma das frases do dis-curso mental da personagem, expresso em indireto livre. De novo, é

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como se algo se: destacasse do pensamento de Fabiano. Nesse caso,algo que pode e deve ser assumido. Mais do que uma posição deFabiano, essa frase reflete um discurso amplamente disseminado nomeio social. Fa+iauo não assume a responsabilidade pela frase, pa-rece apenas acolher uma verdade coletiva.

Um outro aspecto da construção polifônica de Vidas Secas é atendência dialógica no discurso interior de Fabiano. Trata-se maisprecisamente de uma polêmica que a personagem mantém consigomesma. Nessa polêmica, Fabiano representa o outro para si mesmo.Fabiano é um homem dividido: entre o Fabiano que quer ser homem,falar alto, reagir, matar o soldado amarelo, entrar para o cangaço, eo Fabiano de fala baixa, que é um cabra, um bicho, que abaixa acabeça e aceita a exploração. Esse diálogo percorre todo o livro.Quando Fabiano exclama em voz alta que é um homem, é a voz desseOutro que parece escapar. Fabiano então se corrige, murmurando,aceitando sua condição: você é um bicho.

Em muitas partes do livro, encontramos a polêmica de Fabia-no com esse Outro que traz dentro de si:

Para que recordar vergonha? Pobre dele. Estava entãodecidido que viveria sempre assim? Cabra safado, mole.Se não fosse tão fraco, teria entrado no cangaço e feitomisérias (Ramos, 1974: 156).

Vemos aí as duas vozes, a de um Fabiano acovardado, que sejustifica assumindo uma posição de auto-comiseração (pobre dele)e a de um Fabiano que quer lutar e que cobra uma atitude (Entãoestava decidido que viveria sempre assim?), condenando aqueleestado de apatia (cabra safado, mole).

Em vários outros momentos do livro, o discurso de Fabianoretoma essa polêmica interna. Vejamos mais um exemplo:

Que remédio? Fabiano, um desgraçado, um cabra, dor-mia na cadeia e agüentava zinco no lombo. Podia rea-gir? Não podia. Um cabra (Ramos, 1974: 159).

Aí Fabiano, justificando sua passividade, parece responder auma acusação do Outro (por que não reage?). Note-se que a acusa-

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tilI ção não aparece explícita nesse momento, está pressuposta porque

já foi enunciada antes, em outras partes do livro,Ainda sobre o desenvolvimento dessa polêmica, daremos um

último exemplo, É quando a voz d~sse Outro aparece nítida, exterio-rizada em discurso direto, na sua manifestação mais longa:

- Fabiano, /11 eu filho, tem coragem, Tem vergonha, Fabi-ano, Mala o soldado amarelo, Os soldados amarelos sãouns desgraçados que precisam morrer. Mata o soldadoamarelo e os que mandam nele (Ramos, 1974: 157),

A voz do Outro, um Fabiano homem, ergue-se para encorajar,para cobrar uma atitude de'S"seFabiano humilhado: "Não er aho-mern, não era nada. Agüentava zinco no lombo e não se vingava"(Ramos, 1974: 157),

É iruec essante notar que essa polêmica se desenvolve no dis-curso interior de Fabiano. Essa polêmica não é dirigida a nenhumaoutra pessoa, a não ser ele mesmo, Por um lado, Fabiano tenta seconvencer de que devia reagir, porque só assim se tornará um ho-mem; por outro lado, contra-argumenta que não pode, pois é só umcabra e deve se submeter.

No entanto, essa polêmica interior de Fabiano reflete umapolêmica exterior: o que Fabiano discute consigo mesmo é se acei-ta ou rejeita a palavra dos outros sobre ele, Afinal quem diz queFabiano não tem direito a nada e que deve se submeter são os ou-tros: o patrão, o soldado amarelo, Na luta pela sobrevivência na vidasocial, Fabiano parece ter incorporado a idéia que fazem dele e issoaparece de forma constante em seu discurso interior:

Para que um pobre da laia dele usar conversa de genterica? (Ramos, 1974: 140)Cambe mb es podiam ter luxo? (Ramos, 1974: 59)

"Cabra" e "bruto" são as palavras alheias mais presentes nodiscurso de Fabiano:

Podia reagir? Não podia, Um cabra (Ramos, 1974: 159)Ele, Fabiano, era aquilo mesmo, 11mbruto (Ramos, 1974:73).

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O mais interessante nessa assimilação do discurso alheio feitapor Fabiano é que, se na maioria das vezes ela parece não ser cons-ciente, em alguns momentos ela é claramente intencional. É o queobservamos neste trecho, em que Fabiano se desculpa com o patrãopor ter manifestado dúvidas sobre suas contas:

Se havia dito palavra à toa, pedia desculpa, Era bruto,não fora ensinado, Atrevimento não tinha, conhecia seulug ar: Um cubra, Ia lá puxar questão com gente rica?Bruto, sim senhor, mas sabia respeitar os homens, Deviaser ignorância da mulher, provavelmente devia ser igno-rância da mulher. Até estranhara as cal/tas dela, Enfim,como não sabia ler (um bruto, sim senhor), acreditaraIla sua velha, Mas pedia desculpa e jurava não cair nou-tra (Ramos, 1974: 136),

Embora isso seja uma conversa com o patrão, esse não inter-vém. Suas possíveis réplicas (Yocê é um bruto, Não conhece o seulugar? Não sabe respeitar os homens? Como sua mulher pode saberde contas, se é também ignorante") estão pressupostas e incorpora-das ao discurso de Fabiano, Bakhtin observa a respeito desse fenô-meno:

(".) Ila auto-consciência do herói penetrou a consciên-cia que o outro tem dele, na auto-enunciação do heróiestá lançada a palavra do outro sobre ele; a consciên-cia do outro e a palavra do outro suscitam fenômenosespecificas que determinam a evolução temática da cons-ciência de si mesmo, as cisões, evasivas, protestos doherói por um lado, e o discurso do herói com intermi-tências acentuais. fraturas sintáticas, repetições, ressal-vas e prolixidade, por outro (Bakhtin, 1981: 182),

Incorporar o discurso do outro é, para Fabiano, uma forma dedissimular o seu, de esconder o que pensa, É também uma forma demanipulação, de tentar fazer com que o outro faça o que ele deseja(no trecho acima, Fabiano pretende não ser despedido), Essa táticade dissimulação usada por Fabiano aparece muito bem ilustrada na

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situação em que. tentando vender um porco. é surpreendido pelocobrador de impostos:

Fabiano fingira-se desentendido: não compreendia na-da. era bruto. Como o outro lhe explicasse que. paravender o porco. devia pagar imposto. tentara convencê-10 que ali não havia porco, havia quartos de porco, pe-daços de carne. O agente se aborrecera, insultara-o, eFabiano se encolhera. Bem, bem. Deus o livrasse de his-tória com o governo. Julgava que podia dispor de seustroços. Não entendia de imposto.

- Um bruto, está perr;:bendo? (Ramos. 1974: 138).

,Note-se que Fabiano reitera a imagem que o outro possivel-

mente tem dele (um bruto) e a usa como argumento de defesa (Nãoentendia de imposto). Não posso ser condenado pelo que não sei -é o que parece dizer o sertanejo. Já que não pode fazer valer seusdireitos porque é considerado ignorante. Fabiano acha que. pelamesma razão. também não devia ser cobrado de nada.

Vendo. porém. que sua argumentação não funciona. Fabianoalega ter desistido da venda do porco. E vai para outra rua tentarvcndê-Io, escondido. Descoberto pelo cobrador. tem que pagar o im-posto e mais uma multa. Fabiano usa O discurso para persuadir ooutro. mas seu empenho é frustrado devido à pouca familiaridadeque tem com o jogo que se estabelece através da linguagem. Nãoconsegue, como pretendia, reverter a palavra alheia em seu bene-fício.

Falando em sintonia com os outros. assumindo o papel que lheatribuíram, Fabiano tenta conservar-se dentro dessa ordem social deque é quase alijado. Ao aceitar a palavra de outrem. Fabiano aceitatambém a autoridade de quem a enuncia. Sabe que dessa forma per-manece dominado. mas sob a proteção do sistema. Continua umbicho. só que domesticado. Um cachorro que tem direito não aosossos. mas a disputá-tos.

No entanto, essa idéia alheia de um ser submisso. de bichodomesticado. conflita com o resto de dignidade que Fabiano temdentro de si. Esse conflito dá origem. como dissemos. à polêmicaque a personagem trava. interiormente. consigo mesma e que revelad

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os últimos resquícios de humanidade no sertanejo. Fahi ano relutaem aceitar essa palavra alheia, porque ela o condena a uma espéciede morte antecipada. Contra isso. Fabiano se debate o tempo todo;tenta a todo custo elar a última palavra sobre si mesmo:

Um homem. Besteira pensar que ia ficar murcho para oresto da vida. Estava acabado? Não estava (Ramos.1974: 152).

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Na análise que fizemos. procuramos mostrar como os diálo-gos sociais ressoam na concepção polifônica ele Vidas Secas. Nessaperspectiva, faremos ainda um último comentário. Graciliano Ra-mos nota, no artigo"O fator econômico no romance brasileiro". queos romancistas brasileiros ternatizarn ora o capitalista. ora o traba-lhador. mas nunca as relações entre as classes (Ramos. 1980: 255).E é justamente esse um dos aspectos abordados em Vidas Secas.Graciliano representa essas relações principalmente através do dis-curso. ou para dizer melhor, mostrando como os discursos dessasclasses se avizinham. se entretocam, se olham e se respondem. É oque tentamos examinar aqui. numa perspectiva bakhtiniana.

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HEFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAKHTIN, Mikhail (Volochinov) (1988a), Marxismo e filosofia dalinguagem. São Paulo, Huciiec, 4" edição,

--, (1988b). "O discurso no romance". ln: Questões de literatu-ra e de estética: a teoria do rOll/ance, São Paulo, Huc itec/ Edi-tora da Uncsp, pp. 71-210,

--, (19l:! I). Problemas da Poética de Dostoiévski. Rio de Janei-ro, Forcnse-Uuiversitária, I~edição brasileira.

RAMOS, Graciliano (1974). Vidas secas. São Paulo, Martins, 32"edição.

--. (1980). "O fator econômico no romance brasileiro". I n: Li-nlias tortas, Rio, São Paulo, Rec ord, 8" edição, pp. 253-9.

TODOROV, T. (1981). Mikhai! Bakhtine, te p rincip e diatogique,Paris, Seuil.

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