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1 1 - Introdução O objeto do presente trabalho é uma análise da produção do espaço da indústria, privilegiando a indústria automobilística brasileira, no contexto de passagem do chamado fordismo para a produção flexível. A atividade produtiva ainda é um fator importante para a explicação da produção e organização do espaço, apesar das aparências do mundo contemporâneo, como bem observou Manuel Castells 1 , em texto da década de 1970: “A produtividade crescente do trabalho, limitada e condicionada na esfera das relações sociais de produção fundadas na exploração do trabalho pelo capital, amplia cada vez mais a esfera da gestão, da circulação e do consumo, em relação à atividade produtiva propriamente dita. Tem-se então a impressão de uma subordinação crescente da lógica produtiva à lógica do consumo na organização do espaço, especialmente nas grandes metrópoles”. O objetivo do trabalho é o de examinar a intrincada rede de relações entre o espaço e as estratégias de produção e reprodução do capital. Estratégias essas que estão sofrendo um processo de transformação. Segundo Claude Manzagol 2 , escrevendo no início dos anos 80: “A reorganização espacial atual é particularmente oriunda das contradições existentes entre relações sociais de produção, desenvolvimento de forças produtivas e orientação da ação dos trabalhadores. É preciso, pois, compreender o encadeamento desses diversos elementos antes 3 de examinar seus reflexos espaciais”. A passagem do fordismo para a produção flexível se situaria nesse contexto citado acima das contradições existentes entre as relações sociais de produção, o desenvolvimento 1 Castells, Manuel. Sociologia del espacio industrial, Ed. Ayuso, p. 15. 2 Manzagol, Claude. Lógica do espaço industrial – São Paulo: DIFEL, 1985, p. 154. 3 No presente trabalho tentarei efetuar a análise sugerida por esse autor simultaneamente, e não antes, como ele sugere, ao encadeamento desses diversos elementos.

Disser Ta Cao Adrian Obote Lho

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Dissertaçao Adriano

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    1 - Introduo

    O objeto do presente trabalho uma anlise da produo do espao da indstria,

    privilegiando a indstria automobilstica brasileira, no contexto de passagem do chamado

    fordismo para a produo flexvel.

    A atividade produtiva ainda um fator importante para a explicao da produo e

    organizao do espao, apesar das aparncias do mundo contemporneo, como bem

    observou Manuel Castells1, em texto da dcada de 1970:

    A produtividade crescente do trabalho, limitada e condicionada na esfera

    das relaes sociais de produo fundadas na explorao do trabalho pelo capital,

    amplia cada vez mais a esfera da gesto, da circulao e do consumo, em relao

    atividade produtiva propriamente dita. Tem-se ento a impresso de uma

    subordinao crescente da lgica produtiva lgica do consumo na organizao do

    espao, especialmente nas grandes metrpoles.

    O objetivo do trabalho o de examinar a intrincada rede de relaes entre o espao e

    as estratgias de produo e reproduo do capital. Estratgias essas que esto sofrendo um

    processo de transformao. Segundo Claude Manzagol2, escrevendo no incio dos anos 80:

    A reorganizao espacial atual particularmente oriunda das contradies

    existentes entre relaes sociais de produo, desenvolvimento de foras produtivas

    e orientao da ao dos trabalhadores. preciso, pois, compreender o

    encadeamento desses diversos elementos antes3 de examinar seus reflexos

    espaciais.

    A passagem do fordismo para a produo flexvel se situaria nesse contexto citado

    acima das contradies existentes entre as relaes sociais de produo, o desenvolvimento

    1 Castells, Manuel. Sociologia del espacio industrial, Ed. Ayuso, p. 15. 2 Manzagol, Claude. Lgica do espao industrial So Paulo: DIFEL, 1985, p. 154. 3 No presente trabalho tentarei efetuar a anlise sugerida por esse autor simultaneamente, e no antes, como ele sugere, ao encadeamento desses diversos elementos.

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    das foras produtivas e a orientao da ao dos trabalhadores, com implicaes e contra-

    aes4 na produo do espao sob o modo de produo capitalista.

    O estudo aqui realizado procurar, ento, estudar a passagem das estratgias de

    acumulao capitalistas (do fordismo produo flexvel) procurando examinar as

    transformaes nas relaes sociais. Essa a proposta de Henri Lefebvre para se evitar o

    que ele chamou de iluso tecnolgica: evitar o estudo da civilizao industrial a partir de

    suas condies estritamente tcnicas e tecnolgicas5.

    O papel da indstria na produo do espao na fase atual do capitalismo colocado

    em questo por algumas anlises que buscam entender as transformaes por que passa o

    modo de produo capitalista, em especial no que diz respeito ao espao urbano. o que

    nos lembra Mark Gottdinier, em artigo datado do final da dcada de 1980:

    Uma recente exploso da literatura na rea de estudos urbanos volta-se

    para a problemtica da reestruturao scio-espacial. Essa formulao mais

    contempornea da questo urbana ultrapassa as divises acadmicas tradicionais e

    inclui contribuies da sociologia urbana, geografia, economia, cincia poltica e

    planejamento regional. Por sua vez, os analistas tm destacado uma srie de fatores

    responsveis por essa reestruturao, incluindo: a desindustrializao e a crise

    global do capital num suposto sistema mundial; as estratgias das multinacionais de

    busca de mo-de-obra, o que, para alguns, chega a configurar uma diviso

    internacional do trabalho; a alta tecnologia e a reorganizao das foras produtivas,

    em conformidade com uma nova etapa do capital; novas relaes de produo,

    seguindo a desintegrao vertical e a intensificao do capital em unidades

    produtivas; um novo regime de acumulao de capital denominado flexvel, que

    vem substituindo o clssico regime fordista de produo em massa6.

    4 As contra-aes com relao s aes do capital originam-se dos contra-poderes exercidos pela classe trabalhadora e por outras foras sociais antagnicas ao capital. Essa idia apresentada por Henri Lefebvre: Lefebvre, Henri, The production of space UK, Cambrige; USA: Blackwell Publishers, 1991, p. 381-83. 5 Lefebvre, Henri. As condies sociais da industrializao, in Industrialisacion et Technocratie Paris, Armand Colin, 1949 (org. por Georges Gurvitch; traduo do artigo feita pela Profa. Margarida Maria de Andrade, mimeo.). 6 Gottdiener, Mark. A teoria da crise e a reestruturao scio-espacial: o caso dos Estados Unidos, in Valladares, Licia & Preteceille, Edmond (coordenadores): Reestruturao urbana: tendncias e desafios - So Paulo: Nobel, 1990, p. 59.

  • 3

    O presente trabalho buscar analisar a produo espacial sob a tica das

    transformaes no modo de produo capitalista considerando no a perda de importncia

    da indstria, mas sim as transformaes citadas pelo autor acima que alterariam a lgica

    da localizao industrial e os efeitos dessa lgica no processo de reestruturao espacial.

    O espao da indstria continuaria tendo uma contribuio importante para a conformao

    do espao, e a sua anlise ainda necessria, pois na indstria contempornea se produz

    grande parte da riqueza (mais-valia) social. Assim, devemos tratar das mudanas que

    ocorrem na indstria e que afetam a localizao desta no territrio, como foi feito no trecho

    abaixo de 1995 por Georges Benko:

    A diminuio do emprego local nas regies de industrializao mais

    antigas e o nascimento de novos mercados locais de trabalho fazem emergir uma

    nova poltica dos lugares. A mudana da lgica industrial, as novas tecnologias e

    as novas condies econmicas reestruturam igualmente a organizao social dos

    novos complexos de produo. Os hbitos e as tradies desenvolvidos nas

    comunidades industriais do perodo anterior j no correspondem s aspiraes

    contemporneas. O estabelecimento das regras, das hierarquias, das relaes

    empregado/empregador, as solues trazidas aos conflitos (polticos e sociais) j no

    so operacionais. Na indstria tradicional, os executivos e os operrios conheceram

    um percurso e uma organizao paralelos (relativamente rgidos)...

    A dinmica da industrializao capitalista depende da capacidade de

    adaptao das empresas s novas condies da produo, o que inclui as mudanas

    das relaes polticas e sociais. Nesta tica, as firmas so levadas a se relocalizar

    para constituir novas relaes de trabalho. Os novos centros de crescimento

    oferecem formidveis oportunidades. A relocalizao pode voltar-se para regies de

    produo j existentes, porm com mais freqncia o redesdobramento dos

    investimentos e dos capitais dirige estes ltimos para os espaos relativamente

    pouco desenvolvidos7.

    Uma primeira abordagem do espao da indstria, chamada de anlise strictu sensu

    do espao industrial, privilegiaria a organizao interna da fbrica. Embora essa organizao

    7 Benko, Georges. Economia, Espao e Globalizao na aurora do sculo XXI So Paulo: HUCITEC, 1995, p. 146-47.

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    esteja se alterando nos ltimos anos, no podemos aqui nos restringir somente anlise

    strictu sensu do espao da indstria, porque o espao industrial no se restringe frao

    territorial ocupada pelas fbricas, mas englobaria uma rede de fluxos visveis (mercadorias)

    e invisveis (capital, informao) centrada nos pontos de apoio formados pelos aparelhos de

    produo e de administrao, assim como as reas que a indstria prospecta para seu

    abastecimento em bens e servios e para o escoamento de seus produtos, e que organiza

    para as suas necessidades de fora de trabalho8. Segundo Castells9, em texto da dcada de

    1970, a organizao do processo de produo, incluindo sua forma espacial, representa uma

    fonte importante para a determinao do conjunto do espao, j que este a base da

    localizao dos empregos e impe os imperativos fundamentais no que concerne ao sistema

    de circulao que se dispe ao redor das grandes metrpoles e as redes urbanas que delas

    dependem. Segundo esse autor:

    No h uma anlise possvel da produo do espao que no integre o

    estudo da produo do espao industrial e dos efeitos deste espao sobre o conjunto

    da estrutura urbana10.

    Assim, a importncia do espao da indstria mais ampla do que pode parecer a

    princpio. Relaciona-se com a urbanizao e a formao das grandes metrpoles, com a

    desterritorializao do campons, com a formao de bairros operrios, com o processo de

    concentrao espacial e com a prpria arrumao do territrio nacional11. O exemplo

    fornecido por Henri Lefebvre na Introduo da obra Do rural ao urbano12 escrita na dcada

    de 1970 ilustrativo da importncia da atividade industrial para a transformao do espao:

    No solo dos Pirineus, no longe da vila natal do autor (ego), surge a Cidade

    Nova. Produto da industrializao e da modernizao, glria da Frana e da

    Repblica, Lecq-Mourenx se ergue, pequena cidade nova, ornada de enigmas mais

    do que de belezas clssicas. Os bulldozeres passam sobre o solo do Texas bearnez

    (como se dizia). A poucos passos da empresa mais moderna da Frana, entre as 8 Manzagol, Claude, op. cit., p.12. 9 Castells, Manuel, op. cit., p.14. 10 Idem. 11 Moreira, Ruy, O paradigma e a ordem, in Revista Cincia Geogrfica, n.13, p. 33-37. 12Lefebvre, Henri, De lo rural a lo urbano Barcelona, Ediciones Pennsula, 1978, p. 11.

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    torres de extrao de petrleo e a fumaa, nasce o que dever tornar-se uma Cidade.

    O que nesse lugar se esboa, e se oferece aos olhos como reflexo, impe outra

    problemtica que a passagem do rural ao urbano. Os problemas se superpem, se

    exasperam: destino de uma terra marcada pela Histria, pelas tradies camponesas,

    pelos prprios camponeses. A industrializao se apodera de regies at ento

    abandonadas. A urbanizao, cuja importncia cresce sem cessar, transforma o que

    existia anteriormente. Nessas torres metlicas que se elevam por cima dos bosques,

    frente s montanhas, h um desafio e uma interrogao. Desafio ao passado,

    interrogao ao futuro. O processo desde o incio no foi uma anulao do texto

    social anterior; algo novo e distinto se anuncia, declara-se, ganha significado: o

    urbano. Vira-se uma pgina.

    Porm, uma ressalva deve ser feita. Mesmo tendo a indstria se apoderado de regies

    - e o processo de industrializao atual continua a se apoderar de regies antes esquecidas

    pelo capital -, no podemos entender que as transformaes sociais que acompanham a

    industrializao sejam obra exclusiva desta ltima, meras conseqncias. Henri Lefebvre

    categrico quanto a este ponto:

    Contra os dogmticos, se pode afirmar que nem a vida cotidiana, nem a

    sociedade urbana constituem uma pura e simples superestrutura, expresso das

    relaes de produo capitalista. Elas so essa superestrutura, mas tambm algo a

    mais e distinto que as instituies e ideologias, apesar de ter alguns traos das

    ideologias e das instituies. O mundo da mercadoria, com sua lgica e sua

    linguagem, se generaliza no quotidiano at o ponto em cada ponto a ele se

    vincula, com suas significaes. Qui pode afirmar-se que no mais do que

    uma ideologia, uma superestrutura, uma instituio ?13.

    A localizao das indstrias no territrio faz parte de um processo mais amplo de

    produo de um espao que no neutro, ele , antes de tudo, projeo de relaes sociais,

    motivo de disputas, de interesses, de luta de classes14. Yves Lacoste15 ilustra bem essa

    13 Lefebvre, Henri, De lo rural a lo urbano Barcelona, Ediciones Pennsula, 1978, p. 10. 14 Mazagol, Claude, op. cit., p. 149. 15 Lacoste, Yves. A Geografia Isso serve em primeiro lugar para fazer a guerra Campinas, SP: Papirus, 1989.

  • 6

    afirmao com o exemplo da indstria da seda em Lyon, onde, na primeira metade do

    sculo XIX, os capitalistas encetaram uma verdadeira estratgia espacial para quebrar a

    fora poltica dos operrios. Esses capitalistas esfacelaram o trabalho da seda, at ento

    concentrado em Lyon, em um grande nmero de operaes tcnicas disseminadas por um

    grande raio, no campo. Assim, os operrios, dispersos, no podiam mais empreender uma

    ao conjunta. Os exemplos dessa prtica so inmeros, o que atesta a afirmao feita de

    que o espao da indstria no neutro.

    Porm, uma vez estruturado o espao, como um resultado objetivo da interao de

    mltiplas determinaes atravs da histria, pode-se dizer que a estrutura espacial no

    passiva, mas ativa, embora sua autonomia seja relativa16 . O espao reage, no caso da

    localizao industrial, com a imobilizao do capital em certos pontos do territrio que j

    possuem um investimento de capital anterior, processo que pode ser chamado de inrcia das

    distribuies industriais17. Segundo Milton Santos:

    Essa inrcia ativa ou dinmica se manifesta de forma polivalente: pela

    atrao que as grandes cidades tm sobre a mo-de-obra potencial, pela atrao do

    capital, pela superabundncia de servios, de infra-estruturas, cuja repartio

    desigual funciona como um elemento mantenedor das tendncias herdadas.18

    Dessa forma, o espao, que um produto, tambm produtivo19.

    A relao entre a indstria e o espao complexa e dinmica. Segundo Castells20, a

    indstria transforma os impedimentos tcnicos de localizao espacial com a mobilizao

    dos recursos atravs dos meios de transporte e comunicao que so cada vez mais potentes;

    por outro lado, o papel crescente da tcnica e da tecnologia torna extremamente dependente

    a indstria de ponta de um meio urbano, tomado como um meio social e foco de inovao.

    Digamos, pois, para simplificar, que h, por um lado, a constituio de

    grandes organizaes econmicas cujos interesses so muito mais amplos e

    16 Santos, Milton, Por uma geografia nova So Paulo: Hucitec, 1996, p.148. 17 Manzagol, Claude, op. cit., p. 69. Ainda sobre o caso da inrcia das distribuies industriais ver Harvey, David, A condio ps-moderna So Paulo: Edies Loyola, 1989, p. 212. 18 Santos, Milton, op. cit., p. 148. 19 Lefebvre, Henri, op. cit., 1991, p. 345. 20 Castells, Manuel, op. cit, p. 17.

  • 7

    diversificados e que devem tomar em considerao elementos exteriores prpria

    esfera produtiva; e, por outro lado, a complexidade do processo de trabalho, sua

    interpenetrao e a criao, necessria para a indstria moderna, de um vasto

    mercado de trabalho na escala da regio metropolitana, outorgam uma importncia

    fundamental ao conjunto do processo de reproduo da fora de trabalho e das

    relaes sociais, inclusive em seu aspecto relacionado com o processo de produo.

    O que equivale a dizer que as unidades de produo (industriais) venham a ser

    sempre interdependentes e algumas vezes subordinadas com relao s unidades de

    reproduo (urbanas)21.

    A relao entre a indstria e o espao tambm influenciada pela dinmica do

    desenvolvimento desigual22, expresso no que concerne ao espao atravs da forma de

    desequilbrios regionais: no somente os tipos de indstria variam segundo as zonas (por

    exemplo, entre as grandes metrpoles e as zonas semi-rurais atrasadas), mas tambm a

    forma de articulao do espao industrial ao sistema urbano ser fundamentalmente

    modificada, com a utilizao controlada da indstria pela cidade, no caso das metrpoles,

    21 Idem, Ibidem. 22 Para Henri Lefebvre, a noo de desenvolvimento desigual estaria presente em germe nas idias de Marx. Segundo ele, a lei do desenvolvimento desigual, formulada por Lnin, seria a grande lei da formao econmico-social, ao reconhecer a presena de sobrevivncias na estrutura capitalista de formaes e estruturas anteriores. Para Lnin, a desigualdade do desenvolvimento econmico e poltico uma lei absoluta do capitalismo. Porm, a lei do desenvolvimento desigual possui uma multiplicidade de sentidos e de aplicaes, no sendo uma lei somente econmica ou social, ela se estende a todos os domnios, e compreende as superestruturas polticas e culturais (Lefebvre, Henri. La pense de Lenine Paris: Bordas, 1957, p. 230, 231, 244, 245, 247).

    Em sentido menos amplo, da forma tambm utilizada por Lnin e por Trotsky, desenvolvimento desigual significa que sociedades, pases, naes, regies desenvolvem-se segundo ritmos diferentes, de tal modo que, em certos casos, os que comeam com uma vantagem sobre os outros podem aumentar essa vantagem, ao passo que, em outros casos, por fora dessas mesmas diferenas de ritmo de desenvolvimento, os que haviam ficado para trs podem alcanar e ultrapassar os que dispunham de vantagem inicial. No capitalismo, principalmente a possibilidade de alcanar os competidores no uso de modernas tcnicas de produo e/ou organizao do trabalho, isto , de obter maior produtividade do trabalho, que determina o ritmo de desenvolvimento das empresas e das regies (Mandel, Ernest, Desenvolvimento desigual, in Bottomore, Tom, Dicionrio do pensamento marxista Jorge Zahar Editor: Rio de Janeiro, 1988, p. 98-99).

    No caso especfico do espao, o desenvolvimento desigual aparece sob a forma da centralizao de valores de uso em certos pontos do territrio, locais privilegiados no que diz respeito ao crescimento econmico e ao emprego. Outros pontos do territrio, esquecidos ou abandonados pelo capital, oferecem condies para o crescimento econmico acelerado (como a disponibilidade de mo-de-obra barata e/ou qualificada, incentivos fiscais, custos de produo mais baixos e uma estrutura material mais adaptada s exigncias de novos paradigmas produtivos). Ou seja, o capital tira vantagem do atraso de reas antes por ele negligenciadas. O exemplo mais clebre dessa dinmica o Vale do Silcio, na Califrnia, EUA, regio de alto crescimento econmico impulsionada por novos setores industriais.

  • 8

    onde o meio urbano se torna fora produtiva; ou com a organizao da cidade seguindo as

    exigncias e o ritmo da indstria nas grandes instalaes industriais das regies

    subdesenvolvidas23. No presente trabalho, o estudo de caso tem por objetivo mostrar alguns

    dos aspectos mais relevantes dessa relao complexa entre o espao e a indstria.

    O espao organizado, por sua vez, no pode jamais ser considerado como uma

    estrutura social que depende unicamente da economia, outras influncias interferem nas

    modificaes da estrutura espacial, sendo que a esfera do poltico possui um papel motor24.

    Como ressalva, porm, um esclarecimento deve ser feito antes de prosseguirmos.

    No h separao entre o econmico e o poltico. Essas duas esferas tambm no se

    confundem. H entre elas uma relao dialtica de dupla determinao25. Segundo Henri

    Lefebvre, as relaes econmicas do modo de produo capitalista baseadas na troca

    fundamentam-se na equalizao do desigual, o que se realiza por um ato de

    constrangimento. Ou seja, o poder e a violncia so inerentes ao ato de troca, ato

    fundamental para o capitalismo. No so extra-econmicos26. Dessa forma, para Lefebvre:

    A coero inerente ao contrato, e a presena do Estado necessria para

    garantir tanto a validade e a execuo dos contratos como a igualdade jurdica das

    partes27.

    Feita a ressalva inicial, podemos passar para a apresentao da relao complexa

    entre o econmico (com destaque no presente trabalho para as transformaes na indstria),

    o poltico (com destaque para o papel do Estado) e o espao (com destaque para o espao da

    indstria).

    David Harvey28 nos alerta para o fato de que o domnio do espao sempre foi um

    aspecto da luta de classes, e que a mobilidade espacial do capital uma das mais eficientes

    23Castells, Manuel, op. cit, p. 27. 24 Santos, Milton, op. cit., p. 147. 25 Essa idia foi retirada da anlise feita por Ethel V. Kosminsky e Margarida Maria de Andrade da obra de Henri Lefebvre, principalmente nos estudos deste com relao ao Estado. Kosminsky, Ethel V. & Andrade, Margarida M., O Estado e as classes sociais, in Martins, Jos de Souza (org.). Henri Lefebvre e o retorno dialtica So Paulo: Editora Hucitec, 1996. 26 Sposito, Marlia Pontes. A produo poltica da sociedade, in Martins, Jos de Souza (org.). Henri Lefebvre e o retorno dialtica So Paulo: Editora Hucitec, 1996. 27 Kosminsky, Ethel V. & Andrade, Margarida M., op. cit, p. 58. 28 Harvey, David, op. cit., p. 212.

  • 9

    armas da burguesia. Modificaes na distribuio espacial dos instrumentos de produo

    ocorrem simultaneamente s mudanas nas estratgias de acumulao do capital,

    influenciando e sendo influenciadas pelas transformaes nas relaes de produo e nas

    relaes entre as foras produtivas. Modificam-se, ento, as relaes entre as foras sociais

    envolvidas, principalmente no que diz respeito relao entre o capital e o trabalho.

    No presente momento histrico do capitalismo um elemento presente tanto na esfera

    do poltico quanto na esfera econmica ganharia peso no processo de produo do espao

    no modo de produo capitalista. Esse elemento o fundo pblico ou antivalor29. Ele teria

    se tornado um componente estrutural da reproduo do capital (sendo decisivo na formao

    da taxa mdia de lucro das grandes empresas) e da fora de trabalho (atravs do salrio

    indireto composto pelos gastos pblicos com sade, educao, moradia, transporte etc. dos

    trabalhadores, gastos que so denominados por Oliveira30 de antimercadorias). A

    necessidade do fundo pblico por parte das grandes empresas tende a crescer com o

    contnuo avano tecnolgico, devido ao fato de que os gastos com pesquisa e

    desenvolvimento de novos produtos e processos tornaram-se extremamente elevados, o que

    extrapolaria a capacidade de financiamento por parte dessas empresas, seja atravs de

    recursos prprios ou captados no mercado financeiro.

    Dessa forma, a disputa por parcelas de fundo pblico demarcaria um outro campo de

    embate entre as foras sociais, no qual as classes sociais assumiriam plenamente sua

    alteridade e reconheceriam a das outras classes. A reproduo ampliada do capital no se

    daria mais somente atravs da produo do valor econmico, mas tambm devido ao jogo

    poltico pelo controle do fundo pblico.

    A implantao das atividades econmicas passa a depender cada vez com maior

    intensidade desse jogo pelo controle do fundo pblico, na medida em que o Estado, atravs

    de concesses fiscais s grandes empresas31 pode interferir ativamente na localizao das

    empresas em seu territrio. O controle das decises de alocao das parcelas do fundo

    29 Oliveira, Francisco, O surgimento do antivalor: capital, fora de trabalho e fundo pblico, Novos Estudos CEBRAP, n. 22, outubro de 1988. 30 Oliveira, Francisco, op. cit., p. 10. 31 O fundo pblico, segundo Francisco de Oliveira (op. cit., p. 14) decisivo na formao da taxa mdia de lucro do setor oligopolista do mercado, o que corresponderia ao setor hegemnico do capital, lugar das transnacionais e das grandes empresas nacionais.

  • 10

    pblico destinadas ao capital passa a ser um componente decisivo na anlise locacional das

    indstrias. Esse controle, segundo Francisco de Oliveira32 consistiria:

    em demarcar, de maneira cada vez mais clara e pertinente, os lugares de

    utilizao e distribuio da riqueza pblica, tornada possvel pelo prprio

    desenvolvimento do capitalismo sob condies de uma forma transformada da luta

    de classes.

    Aos fatores de localizao industrial tradicionais - como a proximidade do mercado

    consumidor, das fontes de matrias-primas e recursos energticos, da oferta de mo-de-obra

    e a existncia de infra-estrutura adequada produo (meios de comunicao e transportes)

    - deve-se somar ento, no somente o fundo pblico, mas o peso de cada classe social no

    controle desse fundo. E a implantao de valores de uso no territrio, uma das formas de se

    produzir o espao da indstria, deixaria de ser comandada exclusivamente pelas

    necessidades do valor econmico33, para levar em considerao tambm os valores de cada

    classe social34, que dialogariam soberanamente em torno da apropriao do fundo pblico e

    sua aplicao espacial. Busca-se, com a introduo do conceito de antivalor, um

    aprofundamento das anlises que privilegiam apenas as relaes entre as esferas do valor (o

    valor de uso e o valor econmico) na dinmica de produo do espao da indstria.

    A sociedade ento produzida politicamente atravs do Estado35. Assim, a

    importncia do Estado, apesar do que afirmado pelos neoliberais, crescente no modo de

    produo capitalista contemporneo. A disputa pelos recursos estatais um importante

    motor das lutas travadas pelas foras sociais, e a orientao desses recursos para a

    32 Oliveira, Francisco, op. cit., p. 28. 33 Smith, Neil, Desenvolvimento Desigual Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988. p. 219. Segundo Neil Smith, a implantao de valores de uso produtivos no territrio seria comandada pelas necessidades do valor econmico, ou seja, pelas necessidades de gerao de lucro para a acumulao do capital. Essa implantao levaria produo de um espao marcado pelo desenvolvimento desigual no territrio, onde alguns pontos seriam privilegiados em detrimento de outros, obedecendo lgica do capital e no da sociedade. 34 Oliveira, Francisco, op. cit., p. 28. Por valores de cada classe social entende-se no presente trabalho como sendo os interesses de cada classe social, em especial no que diz respeito apropriao de parcelas do fundo pblico. Isso no quer dizer que as aspiraes de cada grupo sejam atendidas, mas que a partir do surgimento do antivalor abre-se a possibilidade de cada classe social direcionar os recursos sociais para os seus interesses especficos. Porm, na prxis poltica, as foras sociais mais fortes acabam levando vantagem, confirmando o aforismo de La Fontaine: A razo do mais forte sempre a melhor. 35 Idem, Ibidem, p. 40.

  • 11

    reproduo do capital a bandeira (nem sempre exibida sem disfarces e dissimulaes

    ideolgicas) dos defensores do Estado mnimo, ou enxuto. Dessa forma, hoje em dia,

    luta-se no para enxugar o governo, mas para saber quem que vai us-lo36. Dados

    coletados por Hirst & Thompson37 para pases considerados desenvolvidos mostram o

    aumento do gasto total do governo, enquanto que os gastos destinados previdncia social

    se mantiveram estveis, no perodo compreendido entre 1960 e 1995. A disputa por parcelas

    do fundo pblico um ingrediente cada vez mais importante e complexo na dinmica da

    produo da sociedade (incluindo-se a a produo do espao). Deve-se ter em conta uma

    tendncia para o aumento da politizao das foras sociais. Mas trata-se de uma tendncia.

    O que se buscar na parte posterior do presente trabalho detectar quais so as

    principais mudanas (polticas, sociais, econmicas e espaciais) que ocorrem na passagem

    das estratgias fordistas de reproduo e acumulao do capital para as ligadas produo

    flexvel. E como essa passagem altera os fatores de localizao industrial no territrio e a

    prpria organizao das indstrias. Chega-se ento questo de como o espao da indstria

    se reorganiza a partir das transformaes nas estratgias de reproduo do capital e a partir

    das relaes deste com o Estado, com o trabalho e com o espao. Nesse processo, ter

    destaque o estudo da indstria automobilstica no Brasil.

    A escolha da indstria automobilstica se daria por uma srie de motivos. Segundo

    Thomaz Wood Jr.:

    Poucas como ela espelham to bem os processos de mudana ocorridos neste

    sculo38.

    Incluem-se as empresas automobilsticas, no Brasil, entre as pioneiras do processo de

    reestruturao tecnolgica observado nos ltimos anos39. Adicionalmente, no podemos nos

    esquecer do peso que tal indstria possui no Brasil, seja em termos de valor da produo

    36 Greider, William. O mundo na corda bamba: como entender o crash global So Paulo: Gerao Editorial, 1997. 37 Hirst, Paul & Thompson, Grahame. Globalizao em questo Petrpolis, RJ: Vazes, 1998. 38 Wood Jr., Thomaz. FORDISMO , TOYOTISMO e VOLVISMO: os caminhos da indstria em busca do tempo perdido ; In Revista de Administrao de Empresas, So Paulo, Set. / Out. 1992. 39Oliveira, Francisco. Os direitos do antivalor - Petrpolis, RJ: Vozes, 1998, p. 182.

  • 12

    (correspondente a 10,7% do PIB Industrial do Brasil)40, seja em termos do nmero de

    empregados41, sendo por isso, um dos setores lderes na indstria nacional. Tal setor o

    escolhido tambm por se revelar ainda um dos mais dinmicos em nossa economia,

    desempenhando um papel significativo na esfera da produo, da integrao das cadeias

    produtivas e do emprego42. Complementarmente, dado o peso do setor na economia

    brasileira43, as relaes deste com o Estado tambm se revelam importantssimas, atravs da

    concesso de subsdios, incentivos fiscais, polticas especficas para o setor etc. Finalmente,

    h tambm uma razo poltica de irresistvel apelo analtico: esse setor industrial foi cenrio

    de algumas das lutas mais importantes da classe operria no Brasil contemporneo44. Essa

    importncia econmica, poltica e social no deixa de ter tambm uma importncia muito

    grande no estudo da produo do espao.

    Ou seja, o setor automobilstico brasileiro seria um exemplo paradigmtico das

    recentes transformaes no capitalismo contemporneo, e, dada a sua importncia e

    influncia, tambm um exemplo de como o espao geogrfico produzido e reestruturado a

    partir de tais transformaes.

    Assim, preciso, em um primeiro momento, que se esclarea o que aqui se entende

    por fordismo e por produo flexvel numa perspectiva que privilegie o espao. Em um

    segundo momento, a anlise da indstria brasileira, com destaque para o caso da indstria

    automobilstica, ser realizada, buscando-se, dessa forma, uma melhor compreenso do

    espao da indstria. Um espao que, produto de contradies, no neutro.

    40 Segundo dados da ANFAVEA (site). 41 Segundo os dados de 1998, obtidos na ANFAVE, o nmero de trabalhadores do setor estaria em torno de 83 mil. 42Castro, Nadya Arajo. Trabalho e Organizao Industrial num Contexto de Crise e Reestruturao Produtiva; In So Paulo em Perspectiva, Vol.8, N.1; So Paulo, SEADE. Jan./Mar. 1994, p.117. 43 Segundo Francisco de Oliveira (Oliveira, op. cit.,1998, p. 182), o setor automotivo corresponderia, na atualidade, a uns 5 a 6% do PIB brasileiro. 44Castro, Nadya Arajo. Introduo; In A Mquina e o equilibrista: inovaes na indstria automobilstica brasileira / Nadya Arajo de Castro (org.). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995, p. 12.

  • 13

    2 - O Fordismo

    Caractersticas gerais

    Segundo David Harvey45, a data inicial simblica do fordismo deve por certo ser 1914,

    quando Henry Ford introduziu seu dia de oito horas e cinco dlares como recompensa para

    os trabalhadores da linha automtica de montagem que ele estabelecera no ano anterior em

    Dearbon, Michigan.

    Harvey46, porm, nos chama a ateno para o fato de que o modo como o sistema

    fordista se estabeleceu constitui, com efeito, uma longa e complicada histria que se estende

    por quase meio sculo. Isso dependeu de uma mirade de decises individuais, corporativas,

    institucionais e estatais, muitas delas escolhas polticas feitas ao acaso ou respostas

    improvisadas s tendncias de crise do capitalismo, particularmente em sua manifestao na

    Grande Depresso dos anos 30.

    Em linhas gerais, seria o fordismo uma associao das normas tayloristas47 do trabalho

    com a produo e o consumo de massa, o que levou o modo capitalista de produo a

    regular o valor para muito alm do movimento espontneo do mercado48.

    No presente trabalho, entende-se por fordismo o conjunto de prticas econmicas,

    tcnicas, gerenciais, polticas e sociais que, combinadas, formam uma estratgia especfica

    do capital reproduzir-se de forma ampliada.

    45 Harvey, David, op. cit., p. 121. 46 Idem, p. 122-23. 47 O taylorismo seria, segundo Antonio David Cattani (Cattani, Taylorismo, in Cattani, Antonio David (org.), Trabalho e Tecnologia Dicionrio crtico Petrpolis: Vozes; Porto Alegre: Ed. Universidade, 1997, p. 247), o sistema de organizao do trabalho, especialmente industrial, baseado na separao das funes de concepo e planejamento das funes de execuo, na fragmentao e na especializao das tarefas, no controle de tempos e movimentos e na remunerao por desempenho. Esses princpios de racionalidade produtivista do trabalho foram sistematizados e desenvolvidos pelo engenheiro norte-americano F.W. Taylor (1856-1915). O ncleo desse processo produtivo, que segundo Bvraverman (Braverman, Harry. Trabalho e Capital Monopolista - Rio de Janeiro: Ed. Guanabara Koogan S.A., 1974, p. 103), seria o controle do trabalho pelo capital atravs do controle das decises que so tomadas no curso do trabalho, j havia sido exposto por Marx no Captulo I do Livro I de O Capital, intitulado Processo de Trabalho e Processo de produzir mais valia. Nele, Marx diz: O trabalhador trabalha sob o controle do capitalista, a quem pertence o seu trabalho. O capitalista cuida em que o trabalho se realize de maneira apropriada e em que se apliquem adequadamente os meios de produo, no se desperdiando matria-prima e poupando-se o instrumental de trabalho, de modo que s se gaste deles o que for imprescindvel execuo do trabalho (Marx, Karl. O Capital Livro Primeiro, Volume I Rio de janeiro: Editora Bertrand Brasil S.A ., 1989, p.209). 48 Moreira, Ruy. Op. cit., p. 38.

  • 14

    No que diz respeito escala da firma, o fordismo se constitui em um conjunto de

    prticas gerenciais da produo e consumo. Segundo Sonia M. G. Larangeira49:

    Hoje, o termo tornou-se a maneira usual de se definirem as caractersticas

    daquilo que muitos consideram constituir-se um modelo/tipo de produo, baseado

    em inovaes tcnicas e organizacionais que se articulam tendo em vista a produo

    e o consumo em massa. Nesse sentido, referindo-se ao processo de trabalho

    propriamente dito, o fordismo caracterizar-se-ia como prtica de gesto na qual se

    observa a radical separao entre concepo e execuo, baseando-se esta no

    trabalho fragmentado e simplificado, com ciclos operatrios muito curtos,

    requerendo pouco tempo para formao e treinamento dos trabalhadores. O processo

    de produo fordista fundamenta-se na linha de montagem acoplada esteira

    rolante, que evita o deslocamento dos trabalhadores e mantm um fluxo contnuo e

    progressivo das peas e partes, permitindo a reduo dos tempos mortos, e, portanto,

    da porosidade. O trabalho, nessas condies, torna-se repetitivo, parcelado e

    montono, sendo sua velocidade e ritmo estabelecidos independentemente do

    trabalhador, que o executa atravs de uma rgida disciplina. O trabalhador perde

    suas qualificaes, as quais so incorporadas mquina. Na concepo de Ford, o

    operrio da linha de montagem deveria ser recompensado por esse tipo de trabalho

    atravs de um salrio mais elevado - o famoso five dolars day proposto na fbrica de

    Ford.

    Um primeiro ponto a ser assinalado que o fordismo estaria irremediavelmente ligado

    ao desenvolvimento das foras produtivas visando mxima potencializao da produo

    em massa. No sistema fordista, a potencialidade produtiva do trabalho parcelado levada ao

    limite, com a soluo encontrada por Ford para o problema do abastecimento dos homens

    para a realizao do trabalho parcelado: a esteira. Dessa forma, o trabalho (as peas ou

    componentes necessrios produo) era levado at o operrio e esse no mais necessitaria

    se deslocar pela fbrica para buscar peas ou matrias-primas utilizadas durante o processo

    de trabalho, gastando tempo nesses deslocamentos. Assim, uma importante inovao do

    fordismo com relao ao taylorismo foi a reinveno da correlao manufatureira entre a

    49 Laranjeira, Sonia M. G., Fordismo e Ps-fordismo; in Cattani, Antonio David (org.), Trabalho e Tecnologia Dicionrio crtico Petrpolis: Vozes; Porto Alegre: Ed. Universidade, 1997, p. 89-90.

  • 15

    diviso do trabalho e a produtividade atravs da introduo do que o prprio Ford

    denominou de o servio de transporte50 - todo o mecanismo de levar o trabalho ao

    operrio - o que levou a um considervel aumento da produtividade. Ocorre uma economia

    de tempo para a produo atravs da fixao do trabalhador em postos de trabalho,

    caracterstica espacial marcante no interior da indstria fordista.

    Para Womack (et al.)51, a chave para a produo em massa no residiria apenas na

    linha de montagem contnua. Consistiria tambm na completa e consistente

    intercambiabilidade das peas e na facilidade de ajust-las entre si. Para esse autor, essas

    foram as inovaes na fabricao que teriam tornado a linha de montagem possvel. Ford,

    por sua vez, no se limitou a aperfeioar a pea intercambivel, como tambm aperfeioou o

    operrio intercambivel52. Tais inovaes teriam levado ao extremo o desenvolvimento da

    diviso do trabalho no interior da fbrica, ao possibilitar a padronizao das peas e,

    conseqentemente, aumentar a especializao da mo-de-obra. Assim, cada trabalhador, em

    seu posto de trabalho fixo, realizaria apenas uma tarefa especfica.

    Para Moraes53, esta forma de organizao da produo procura destituir o trabalho de

    qualquer contedo, mantendo ao mesmo tempo a ao manual do trabalhador sobre o objeto

    de trabalho atravs das ferramentas. Sem dvida, uma faanha capitalista, enquanto

    demonstrao de sua capacidade de subordinar o trabalho aos desgnios do capital, mas uma

    faanha questionvel ao nvel da operao mesma do capital, pois, se bem que

    independentize o capital das habilidades dos trabalhadores, no os torna suprfluos, mas os

    exige em grande quantidade, para atuarem como autmatos teis ao lado dos elementos

    inanimados da mquina.

    Ou seja, embora o capital consiga aumentar brutalmente a produtividade do trabalho

    atravs da simplificao e parcelamento deste, no consegue, por outro lado, se tornar

    independente das vicissitudes do processo de trabalho para a viabilidade produtiva e para o

    processo de criao de valor. A resistncia dos trabalhadores s tcnicas cientficas de

    organizao do processo produtivo se manifestaria nas baixas de produtividade observadas

    nas indstrias, no aumento da taxa de peas defeituosas, na falta de cuidados do trabalhador 50 Moraes Neto, Benedito R. Marx, Taylor e Ford: as foras produtivas em discusso So Paulo: Brasiliense, 1989, p. 52. 51 Womack, James P. (et al.). A mquina que mudou o mundo Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 14. 52 Idem, p. 14. 53 Moraes Neto, Benedito R., op. cit, p. 53-54.

  • 16

    com a manuteno do capital fixo, na sabotagem, nas paralisaes, absentesmo, alta

    rotatividade no emprego etc. A falta de identificao do trabalhador com o processo

    produtivo e conseqentemente a intensificao de sua alienao frente ao capital levaram a

    uma retomada das contradies histricas entre o capital e o trabalho.

    Observa-se ao longo do desenvolvimento das estratgias de acumulao fordistas a

    organizao do operariado e o subseqente fortalecimento dos sindicatos de trabalhadores.

    Os trabalhadores tambm souberam tirar proveito das inovaes proporcionadas pelo

    fordismo, sobretudo no que concerne ao acmulo de operrios nas indstrias e a conseqente

    maior facilidade de organizao e mobilizao dos trabalhadores. Tal fato teve como efeito

    o acirramento da contestao do processo de trabalho e dos conflitos entre o capital e o

    trabalho. A relao entre sindicalizao da classe trabalhadora e os processos fordistas de

    produo uma caracterstica importante do perodo fordista. Como nos lembra Harvey54:

    Embora fosse til sob certos aspectos, do ponto de vista do controle do

    trabalho, a diviso entre uma fora de trabalho predominantemente branca,

    masculina e fortemente sindicalizada e o resto tambm tinha seus problemas. Ela

    significava uma rigidez nos mercados de trabalho que dificultava a realocao do

    trabalho de uma linha de produo para a outra. O poder exclusivista dos sindicatos

    fortalecia sua capacidade de resistir perda de habilidades, ao autoritarismo,

    hierarquia e perda de controle no local de trabalho.

    Jorge Mattoso55 nos apresenta ento uma tabela dos nveis de sindicalizao

    alcanados em alguns pases capitalistas centrais em 1970, como forma de demonstrar a

    forte organizao dos trabalhadores no perodo fordista:

    54 Harvey, David, op. cit., p. 132. 55 Mattoso, Jorge Eduardo Levi, op. cit., p. 48.

  • 17

    Tabela 1

    TAXAS DE SINDICALIZAO (a), TOTAL E SETORIAL

    Total I.* C.C.* B.* S.* C.* T.*

    ALEMANHA 33 36 42 15 36 9 65

    EUA 30 41 42 5 18 15 53

    ITLIA 36 40 - - - - -

    FRANA 22 15 - - - - -

    JAPO 35 - - - - - -

    REINO UNIDO 45 52 30 21 46 8 74

    SUCIA 68 84 91 70 59 38 83

    MDIA

    OCDE** 44 53 51 29 45 19 69

    Notas:

    (a) Taxa de sindicalizao = sindicalizados (excluindo-se os desempregados e aposentados)

    dividido pelo nmero de assalariados ocupados.

    I. = Indstria de Transformao;

    C.C. = Construo Civil (pblica e privada);

    B. = Bancos, Seguros, Negcios Imobilirios, e Servios s Empresas;

    S. = Servios coletividade, Servios Sociais e Servios Pessoais;

    C. = Comrcio atacadista e varejista, Restaurantes e Hotis;

    T. = Transportes e Comunicaes.

    ** a taxa de sindicalizao total mdia no-ponderada para 17 pases membros da

    OCDE. As taxas de sindicalizao por setores so mdias no-ponderadas para 14 pases

    membros da OCDE.

    Fonte: OCDE 1991, p. 104-105 e 114-115.

    Observa-se ento, a partir das lutas entre o capital e o trabalho pela repartio da mais-

    valia gerada no perodo fordista, um aumento na segurana no emprego, queda nos nveis de

    desemprego56 e aumentos reais do salrio, seja atravs dos aumentos no salrio direto, seja

    56 O crescimento mais que proporcional do emprego nos servios e na indstria nas primeiras dcadas do ps-guerra, relativamente queda da agricultura, favoreceu uma rpida reduo do desemprego. Os nveis do desemprego haviam se tornado insustentveis desde a crise de 30, apenas diminuindo durante a Segunda Guerra. A partir do final da dcada de 40 e do incio dos anos 50, as taxas de desemprego iniciaram uma tendncia queda, atingindo nveis at ento inimaginados. O desemprego remanescente foi ento caracterizado como de carter friccional e apenas resultante da rotatividade do trabalho e do tempo de busca

  • 18

    atravs do salrio indireto (seguridade social). Tais conquistas dos trabalhadores acarretaram

    um maior padro de consumo por parte da classe trabalhadora. Pode-se dizer que havia

    nesse momento, nos pases em que o fordismo se desenvolveu plenamente, um crculo

    virtuoso de crescimento econmico. As prticas de gesto e produo no interior da fbrica

    possibilitaram a melhor organizao do operariado. E como o todo diferente da soma das

    partes, esses trabalhadores organizados souberam utilizar sua fora para obter algumas

    conquistas scio-econmicas, moldando o fordismo como uma estratgia de acumulao

    mais ampla que a esfera fabril. A idia de Ford de produo em massa e consumo de massa

    s pde se realizar a partir do momento em que uma classe operria forte exigiu uma parcela

    maior da riqueza gerada e a transformou em bens de consumo. As especificidades histricas

    do ps-guerra, principalmente a ameaa comunista, tambm contriburam para que a

    classe que vive do trabalho pudesse extrair maiores conquistas dos representantes do capital

    e do Estado. O poder de barganha da classe trabalhadora tornou possvel tambm uma

    participao maior desta classe na repartio do fundo pblico.

    Atravs de lutas e compromissos travados pelas foras sociais o fordismo se articulou

    como um modo de vida total57 nos pases capitalistas desenvolvidos no ps-guerra.

    As relaes entre o sindicato forte, a grande corporao e o Estado, formaram o

    chamado compromisso do fordismo58 nos locais em que essa estratgia de acumulao

    capitalista se desenvolveu plenamente. Como assinala Harvey59, a expanso fenomenal do

    ps-guerra dependeu de uma srie de compromissos e reposicionamentos por parte dos

    principais atores dos processos de desenvolvimento capitalista. O Estado teve de assumir

    novos (keynesianos) papis e construir novos poderes institucionais; o capital corporativo

    de trabalho. Com a reduo do desemprego foi assegurada a ampliao da segurana no mercado de trabalho (Mattoso, Jorge Eduardo Levi. A desordem do trabalho So Paulo: Scritta, 1995, p. 33). 57 Harvey, op. cit., p. 131. 58 (...) Estamos aqui no domnio das lutas e dos armistcios poltico-sociais, dos compromissos institucionalizados. Os grupos sociais, definidos pelas suas condies de existncia quotidiana - e em particular pelo seu lugar nas relaes econmicas -, no se entregam com efeito a uma luta sem fim. Sejam quais forem as divergncias dos seus interesses e a desigualdade das suas condies, esses grupos constituem, durante largos perodos de tempo, uma comunidade em que as relaes de poder se perpetuam sem grande contestao. Chama-se bloco social a um sistema estvel de relaes de dominao, de alianas e de concesses entre diferentes grupos sociais (dominantes e subordinados); diz-se que um bloco social hegemnico quando faz reconhecer, de modo mais ou menos coercivo, o seu dispositivo como conforme aos interesses da grande maioria de um territrio. (Leborgne, Danile & Lipietz, Alain, Flexibilidade Ofensiva, Flexibilidade Defensiva, in Benko, Georges & Lipietz, Alain (orgs.), As regies ganhadoras Distritos e Redes: os novos paradigmas da geografia econmica Oeiras: CELTA Editora, 1994, p. 226). 59 Harvey, David, op. cit., p. 125.

  • 19

    teve de ajustar as velas em certos aspectos para seguir com mais suavidade a trilha da

    lucratividade segura; e o trabalho organizado teve de assumir novos papis e funes

    relativos ao desempenho nos mercados de trabalho e nos processos de produo. O

    equilbrio de poder, tenso, mas mesmo assim firme, que prevalecia entre o trabalho

    organizado, o grande capital corporativo e o Estado, e que formou a base de poder da

    expanso de ps-guerra, no foi alcanado por acaso - resultou de anos de luta.

    O papel do Estado para a manuteno das altas taxas de crescimento econmico foi,

    portanto, fundamental. A funo reguladora do Estado no que diz respeito aos ciclos

    econmicos um timo exemplo desse papel. Segundo Harvey60:

    O Estado, por sua vez, assumia uma variedade de obrigaes. Na media em

    que a produo de massa, que envolvia pesados investimentos em capital fixo,

    requeria condies de demanda relativamente estveis para ser lucrativa, o Estado se

    esforava para controlar ciclos econmicos com uma combinao apropriada de

    polticas fiscais e monetrias no perodo ps-guerra. Essas polticas eram dirigidas

    para as reas de investimento pblico - em setores como o transporte, os

    equipamentos pblicos etc. - vitais para o crescimento da produo e do consumo de

    massa e que tambm garantiam um emprego relativamente pleno. Os governos

    tambm buscavam fornecer um forte complemento ao salrio social com gastos de

    seguridade social, assistncia mdica, educao, habitao etc. Alm disso, o poder

    estatal era estabelecido direta ou indiretamente sobre os acordos salariais e os

    direitos dos trabalhadores na produo.

    A idia da participao do Estado nas negociaes salariais, como mediador ou como

    ator do jogo, muito importante para que seja caracterizado o compromisso do fordismo.

    certo, porm, que cada governo nacional possua uma forma peculiar de interveno nas

    negociaes, no existindo um padro universal de negociao, j que se apresentavam

    distintas formas de organizao sindical, patronal e do Estado nos vrios pases. David

    Harvey apresenta um quadro muito til para a visualizao das diferenas existentes entre os

    pases capitalistas avanados europeus no que diz respeito ao compromisso fordista,

    60 Harvey, David, op. cit., p. 129.

  • 20

    envolvendo o sindicato de trabalhadores, o Estado e o grande capital, a ttulo de exemplo

    das idias acima colocadas:

    Tabela 2

    A organizao da negociao de salrios em quatro pases, 1950 - 1975

    Frana Gr - Bretanha Itlia Alemanha

    Ocidental

    Sindicalizao baixa alta, colarinho

    azul

    varivel moderada

    Organizao fraca com

    facciosismo

    poltico

    fragmentada

    entre indstrias e

    categorias

    peridica com

    movimentos de

    massa

    estruturada e

    unificada

    Patres divididos entre

    tendncias e

    organizaes

    fraca

    organizao

    coletiva

    rivalidade setor

    privado setor

    pblico

    fortes e

    organizadas

    Estado intervenes

    amplas e

    regulamentao

    do trabalho e dos

    salrios atravs

    de acordos

    tripartites

    negociao

    coletiva

    voluntria com

    normas fixadas

    pelo Estado a

    partir da metade

    dos anos 60

    interveno

    legislativa

    peridica

    dependente da

    luta de classes

    papel muito fraco

    Fonte: Harvey, David, op. cit., p. 130.

    Porm, de forma geral - superando as diferenas encontradas nos diferentes pases

    capitalistas avanados -, o padro de desenvolvimento constitudo no ps-guerra resultou de

    mecanismos institucionais e polticos que, nas precisas condies daquele momento

    histrico, possibilitaram ao desenvolvimento capitalista adquirir um carter virtuoso por

    algumas dcadas. Pela primeira vez em sua histria, o capitalismo nos pases avanados

    combinou, ento, crescimento econmico e pleno emprego; mecanismos de mercado e

    polticas estruturantes com ampliao e diversificao da interveno estatal; economia

    internacionalizada e administrao da demanda agregada; descentralizao das decises

  • 21

    capitalistas e contratao coletiva crescentemente centralizada; elevao da produtividade e

    distribuio de renda61 (distribuio que se deu principalmente atravs do chamado salrio

    indireto, parte do fundo pblico, aplicado em sade, educao, financiamento ao consumo

    etc.). O compromisso fordista possua ento o mrito de atender parte das reivindicaes

    dos trabalhadores, mais no que diz respeito s expectativas de consumo da classe

    trabalhadora, menos no que diz respeito a uma socializao dos meios de produo - o que

    seria um movimento muito mais radical.

    A alta produtividade alcanada pela indstria, o que possibilitou em parte a satisfao

    das demandas da classe trabalhadora no que diz respeito ao consumo de massa, foi tambm

    resultado da maior padronizao de produtos e o barateamento dos custos unitrios de

    produo, atravs das chamadas economias de escala, que privilegiavam as grandes

    unidades produtivas62.

    Giovanni Arrighi63 afirma que a grande inovao das empresas norte-americanas

    baseadas em modelos fordistas de produo foi o que ele chama de internalizao dos

    custos de transao, ou seja, a verticalizao da produo industrial. Para esse autor,

    internalizar num nico campo organizacional atividades e transaes antes executadas por

    unidades empresariais distintas permitiu que as empresas formadas por diferentes unidades e

    dotadas de integrao vertical reduzissem e tornassem mais fceis de calcular os custos de

    transao - isto , os custos associados transferncia de insumos intermedirios, atravs da

    longa cadeia de domnios organizacionais separados que vinculam a produo primria ao

    consumo final.

    A economia assim obtida foi uma economia da velocidade, e no uma economia de

    tamanho. Tal economia de velocidade se dava atravs da padronizao das peas e

    atividades, o que alm de aumentar a velocidade aumentava tambm os volumes

    transacionados (baixando os custos de produo) e proporcionava o aumento de

    produtividade por trabalhador e por mquina. Temos o que na teoria microeconmica se

    denomina de economias de escala. Dessa forma:

    61 Mattoso, Jorge Eduardo Levi, Trabalho sob fogo cruzado, So Paulo em Perspectiva, Volume 8, N. 1; So Paulo, SEADE, Jan./Mar., 1994, p. 14. 62 Boddy, Martin. Reestruturao industrial, ps-fordismo e novos espaos industriais: uma crtica; in Valladares, Licia & Preteceille, Edmond (coordenadores): Reestruturao urbana: tendncias e desafios - So Paulo: Nobel, 1990, p. 45. 63 Arrighi, Giovanni. O longo sculo XX Rio de Janeiro: Contraponto; So Paulo: Editora Unesp, 1996, p. 247.

  • 22

    Havendo internalizado toda uma seqncia de subprocessos de produo e

    de troca, desde a obteno dos insumos primrios at a entrega dos produtos finais,

    esse novo tipo de empresa capitalista ficou em condies de submeter os custos,

    riscos e incertezas da movimentao de mercadorias, atravs dessa seqncia,

    lgica racionalizadora da ao administrativa e do planejamento empresarial a longo

    prazo64.

    A vantagem das grandes corporaes verticalizadas seria mais um incentivo

    econmico concentrao e centralizao do capital. Grandes estabelecimentos

    industriais, verdadeiros complexos produtivos, responsveis pela produo de parte

    considervel das peas utilizadas pelas grandes corporaes na produo de seus produtos

    so o exemplo mais bem acabado da fbrica fordista em sua espacialidade.

    David Harvey65 revela outra caracterstica da grande corporao fordista verticalizada:

    a sua relativa estabilidade a longo prazo, no que se refere aos investimentos, s mudanas

    tecnolgicas e aos nveis de produo. Dessa forma:

    Utilizava-se o grande poder corporativo para assegurar o crescimento

    sustentado de investimentos que aumentassem a produtividade, garantissem o

    crescimento e elevassem o padro de vida enquanto mantinham uma base estvel

    para a realizao de lucros. Isso implicava um compromisso corporativo com

    processos estveis, mas vigorosos de mudana tecnolgica, com um grande

    investimento de capital fixo, melhoria da capacidade administrativa na padronizao

    do produto. A forte centralizao do capital, que vinha sendo uma caracterstica to

    significativa do capitalismo norte-americano desde 1900, permitiu refrear a

    competio intercapitalista numa economia americana todo-poderosa e fazer surgir

    prticas de planejamento e de preos monopolistas e oligopolistas. A administrao

    cientfica de todas as facetas da atividade corporativa (no somente a produo

    como tambm relaes pessoais, treinamento no local de trabalho, marketing,

    64 Idem, p. 248. 65 Harvey, David, op. cit., p. 129.

  • 23

    criao de produtos, estratgia de preos, obsolescncia planejada de equipamentos

    e produtos) tornou-se o marco da racionalidade corporativa burocrtica66.

    Thomaz Wood Jr. associa a forma fordista acima descrita de organizao e produo

    em massa imagem de uma mquina, o que significa:

    Fixar metas e estabelecer formas de atingi-las; organizar tudo de forma

    racional, clara e eficiente; detalhar todas as tarefas e, principalmente, controlar,

    controlar, controlar.67

    O processo de centralizao e concentrao do capital acima mencionado materializa-

    se no espao atravs da concentrao das atividades industriais em alguns pontos do

    territrio. O local privilegiado a cidade, em geral a grande cidade equipada com infra-

    estrutura e mercados eficientes (de mo-de-obra, de capitais, financeiro, de matrias-primas,

    consumidor). Segundo Henri Lefebvre, escrevendo no incio da dcada de 197068:

    Ela [a cidade] torna-se produtiva (meio-de-produo), inicialmente,

    aproximando os elementos da produo uns dos outros. Ela rene todos os mercados

    (inventrio que j fizemos: o mercado dos produtos da agricultura e da indstria os

    mercados locais, regionais nacionais, mundiais - o mercado dos capitais, o do

    trabalho, o do prprio solo, o dos signos e smbolos). A cidade atrai para si tudo o

    que nasce, da natureza e do trabalho, noutros lugares: frutos e objetos, produtos e

    produtores, obras e criaes, atividades e situaes. O que ela cria? Nada. Ela

    centraliza as criaes. E, no entanto, ela cria tudo. Nada existe sem troca, sem

    aproximao, sem proximidade, isto , sem relaes. Ela cria uma situao, a

    situao urbana, onde as coisas diferentes advm umas das outras e no existem

    separadamente, mas segundo as diferenas.

    66 Idem, ibidem. 67 Wood, Jr., Thomaz. Fordismo, Toyotismo e Volvismo: os caminhos da indstria em busca do tempo perdido; Revista de Administrao de Empresas So Paulo: Set./Out. 1992, p. 6. 68 Lefebvre, Henri. A revoluo urbana Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999, p. 110-11.

  • 24

    O espao fordista caracterizado ento pela centralizao do capital e pela

    concentrao das atividades e da populao no territrio. Para Ruy Moreira69:

    O plo de referncia a enorme quantidade de indstrias e populao que a

    tcnica e a ideologia consumista aglomeram nas grandes cidades que ento se

    formam. A, vo se alojar os estabelecimentos dos ramos tpicos da segunda

    revoluo industrial: metal-mecnico, naval, siderrgico, petroqumico, eletro-

    eletrnico, automobilstico. Montam-se os complexos urbano-industriais vinculados

    numa diviso territorial do trabalho de ampla escala s grandes reas mineiras,

    enormes unidades energticas, longas extenses especializadas de produo agrcola

    e uma densa rede de circulao por meio da qual a relao mercantil penetra por

    todos os poros.

    Ou seja, o capital, na escala dos capitais individuais, concentrado em alguns lugares,

    em detrimento de outros. O papel produtivo do espao assim confirmado, e os locais mais

    bem aparelhados atraem as empresas, configurando a inrcia das distribuies industriais.

    Formam-se as chamadas economias externas70 decorrentes da localizao industrial. Essas

    economias seriam definidas como os benefcios coletivos que as empresas auferem em

    funo de sua localizao relativa. A centralidade das grandes cidades ao longo do

    desenvolvimento industrial levou formao de economias de localizao (aquelas que

    resultam da aglomerao de atividades similares ou vinculadas em um espao restrito) e

    economias de urbanizao (aquelas que beneficiam toda a indstria que se instala em uma

    cidade importante, como acesso a infra-estrutura e meios de comunicao e transporte

    adequados, a existncia de mo-de-obra e quadros tcnicos qualificados, uma estrutura de

    reproduo da fora de trabalho e de consumo etc.). O outro lado da moeda seria as

    deseconomias externas, ou seja, os aspectos negativos resultantes da concentrao de

    atividades industriais em um determinado ponto do territrio (como a poluio, a saturao

    da infra-estrutura, o alto custo dos terrenos etc.). A partir dessas deseconomias, um processo

    de desconcentrao das atividades produtivas, impulsionado tambm em parte pelas novas

    69 Moreira, Ruy, op. cit., p.38-9. 70 Manzagol, Claude, op. cit., p. 81-83.

  • 25

    formas de gesto industrial e pelo uso de novas tecnologias, ganhou certo impulso, como se

    ver mais adiante71.

    Por outro lado, observa-se tambm, a internacionalizao, ou mundializao do

    fordismo, sobretudo no perodo relativo segunda metade do sculo XX. Segundo Ruy

    Moreira72, a mundializao do fordismo se deu em trs frentes: a mundializao dos

    processos produtivos, em especial na indstria; a mundializao dos mercados, mas

    nacionalmente organizados; a mundializao da cultura. Para David Harvey73:

    O fordismo do ps-guerra teve muito de questo internacional. O longo

    perodo de expanso do ps-guerra dependia de modo crucial de uma macia

    ampliao dos fluxos de comrcio mundial e de investimento internacional

    Essa mundializao do fordismo ocorreu em uma conjuntura especfica: o poder

    econmico, financeiro e militar dos Estados Unidos. Ainda segundo Harvey74:

    O acordo de Bretton Woods, de 1944, transformou o dlar na moeda-reserva

    mundial e vinculou com firmeza o desenvolvimento econmico do mundo poltica

    fiscal e monetria norte-americana. A Amrica agia como banqueiro do mundo em

    troca de uma abertura dos mercados de capital e de mercadorias ao poder das

    grandes corporaes. Sob essa proteo, o fordismo se disseminou desigualmente,

    medida que cada Estado procurava seu prprio modo de administrao das relaes

    de trabalho, da poltica monetria e fiscal, das estratgias de bem-estar e de

    investimento pblico, limitados internamente apenas pela situao das relaes de

    classe, externamente, somente pela sua posio hierrquica na economia mundial e

    pela taxa de cmbio fixada com base no dlar. Assim, a expanso internacional do

    fordismo ocorreu numa conjuntura particular de regulamentao poltico-econmica

    mundial e uma configurao geopoltica em que os Estados Unidos dominavam por

    meio de uma sistema bem distinto de alianas militares e relaes de poder.

    71 Para maiores detalhes a respeito do conceito desconcentrao industrial e a sua diferena com relao ao conceito de descentralizao industrial, ver Lencioni, Sandra, Reestruturao urbano-industrial no Estado de So Paulo: a regio da metrpole desconcentrada, in Santos, Milton, Souza, Maria Adlia A.de & Silveira, Maria Laura, Territrio: Globalizao e Fragmentao So Paulo: Ed. Hucitec/ANPUR, 1994. 72 Moreira, Ruy, op. cit., p. 40. 73 Harvey, David, op. cit., p. 131. 74Idem, p. 132.

  • 26

    Segundo Eric Hobsbawm75, trs aspectos dessa internacionalizao foram

    particularmente bvios: as empresas transnacionais (muitas vezes conhecidas como

    multinacionais), a nova diviso internacional do trabalho e o aumento de financiamento

    offshore (externo).

    Com relao ao primeiro desses aspectos, as palavras de Stephen Hymer76 so

    pertinentes, ao afirmar que durante a Pax Americana as grandes empresas de todos os pases

    terminaram, cada vez mais, por ter como habitat o mundo.

    Ocorreu uma forte expanso do grande capital em direo s vrias partes do globo.

    As estratgias de acumulao fordistas passam ento a contar com um suporte mundial.

    Porm, os protagonistas da mundializao do fordismo foram as grandes corporaes, que

    agiam de acordo com os interesses de seus locais de origem. Como nos lembra Stephen

    Hymer77, as empresas no seriam verdadeiramente internacionais, mas, de fato, nacionais78.

    O avano das multinacionais causaria, ento, uma relao entre diferentes tipos de pases

    que seria do tipo superior e subordinado, matriz e filial. Nas palavras do mesmo autor:

    Parece que um regime de empresas multinacionais no oferece aos pases

    subdesenvolvidos nem independncia nacional nem igualdade79.

    A expanso espacial das indstrias no significa sua disperso pelo globo, mas a sua

    concentrao nas grandes metrpoles. Como nos lembra Claude Manzagol80, escrevendo no

    incio da dcada de 1980:

    fato constatado, enfim, que a capital (ou a metrpole econmica) de um

    pas serve freqentemente de porta de entrada s empresas estrangeiras. Para o

    75 Hobsbawm, Eric. A Era dos Extremos So Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 272. 76 Hymer, Stephen. Empresas multinacionais: a internacionalizao do capital Rio de Janeiro: Edies Graal, 1983, p. 114. 77 Idem, p. 30. 78 Segundo Eric Hobsbawm (Hobsbawm, Eric, op. cit. p. 274), em 1960, j se estimava que as vendas das duzentas maiores empresas do mundo (no socialista) equivaliam a 17% do PNB do mundo capitalista, e em 1984 dizia-se que equivaliam a 26%. A maioria dessas transnacionais se situavam em Estados substancialmente desenvolvidos. Na verdade, 85% das duzentas grandes tinham sede nos EUA, Japo, Gr-Bretanha e Alemanha, com empresas de onze outros pases formando o resto. 79 Hymer, Stephen, op. cit., p. 57-58. 80 Manzagol, Claude, op. cit., p. 118.

  • 27

    industrial, um nome familiar, uma cidade onde ele faz escala. tambm a

    segurana de potencial econmico e a possibilidade de mobilizar economias

    externas, que revelam aqui uma nova dimenso: uma forma de garantia contra a

    incerteza.

    O outro aspecto da internacionalizao do capital ocorrido no perodo fordista, e

    intimamente relacionado com o aspecto precedente, foi a nova diviso internacional do

    trabalho. Um processo de industrializao - ainda que altamente diversificado - se d no

    chamado Terceiro Mundo, solapando o papel tradicional deste de apenas fornecedor de

    matrias-primas no-industrializadas. Segundo Hobsbawm81:

    Uma nova diviso internacional do trabalho, portanto, comeou a solapar a

    antiga. A empresa alem Volkswagen instalou fbricas na Argentina, Brasil (trs),

    Canad, Equador, Egito, Mxico, Peru, frica do Sul, Iugoslvia - como sempre,

    sobretudo aps meados da dcada de 1960. Novas indstrias do Terceiro Mundo

    abasteciam no apenas os crescentes mercados locais, mas tambm o mercado

    mundial. Podiam fazer isso tanto exportando artigos inteiramente produzidos pela

    indstria local (como os txteis, a maioria dos quais em 1970 tinha emigrado dos

    velhos pases para os em desenvolvimento), quanto tornando-se parte de um

    processo transnacional de manufatura.

    Essa foi a inovao decisiva da Era de Ouro, embora s atingisse plenamente

    a maioridade depois. Isso s poderia ter acontecido graas revoluo no transporte

    e comunicao, que tornou possvel e economicamente factvel dividir a produo

    de um nico artigo entre, digamos, Huston, Cingapura e Tailndia, transportando

    por frete areo o produto parcialmente completo entre esses centros e controlando

    centralmente todo o processo com a moderna tecnologia de informao. Grandes

    fabricantes de produtos eletrnicos comearam a globalizar-se a partir da dcada de

    1960.

    Stephen Hymer82 chama esse processo de incorporao da mo-de-obra de muitos

    pases em uma estrutura produtiva empresarial integrada mundialmente. Mas essa

    81 Hobsbawm, Eric, op. cit., p. 275. 82 Hymer, Stephen, op. cit., p. 96.

  • 28

    integrao no significa igualdade de desenvolvimento econmico e social. O centro do

    sistema mundial capitalista - os pases ricos e industrializados, avanados na tecnologia e

    com grande poder de fogo financeiro e militar - continua com seu papel dominante,

    subordinando a periferia - os pases pobres, com poucos recursos financeiros, baixo nvel

    tecnolgico e de industrializao tardia. A desconcentrao ao nvel produtivo

    acompanhada pela centralizao ao nvel do controle, produo tecnolgica, inovao de

    produto e gerenciamento superior. Assim, segundo Stephen Hymer83:

    Para a empresa multinacional, as fronteiras nacionais esto traadas com

    tinta invisvel. Em uma primeira aproximao, para a empresa internacional as

    cidades so unidades de anlise melhores que os pases.

    A expanso da empresa internacional compreende um duplo movimento. Por

    um lado, difunde o capital e a tecnologia. Por outro, centraliza o controle

    estabelecendo uma rede integrada verticalmente, na qual as diferentes reas se

    especializam em diferentes nveis de atividade.

    Os centros maiores do sistema capitalista, os pases dominantes sob a lgica do

    capital, esto constantemente inovando e expandindo-se, o que revela um intenso processo

    de destruio criativa84 no que se refere aos valores de uso presentes nessas reas. J os

    centros menores, os pases subordinados e pobres, devem permanentemente ajustar-se aos

    movimentos realizados pelos centros maiores, isto , no possuem autonomia para o seu

    desenvolvimento.

    O terceiro aspecto apontado por Hobsbawm da internacionalizao do capital se refere

    ao financiamento externo (offshore). Refora-se assim a expanso do valor econmico pelo

    globo atravs da fluidez do mercado financeiro. Segundo Stephen Hymer85:

    A formao de empresas multinacionais e a criao do mercado internacional

    de capitais deveriam ser vistas como movimentos paralelos ou simbiticos. As

    necessidades de emprstimos a curto prazo e de investimentos por parte da empresa

    83 Idem, p. 79. 84 A aplicao da idia de Nietzsche de destruio criativa produo do espao capitalista foi feita por Harvey, David, op. cit., p. 26. 85 Hymer, Stephen, op. cit., p. 105.

  • 29

    internacional, derivadas das constantes entradas e sadas de dinheiro provenientes de

    todos os pases, as quais nunca se equilibram perfeitamente, estimulou o sistema

    bancrio internacional e contribuiu para integrar os mercados monetrios de curto

    prazo; suas exigncias financeiras a longo prazo e sua excelente capacidade

    creditcia ampliaram a demanda de capital internacional em ttulos e aes. Isto

    constitui um alento para a livre mobilidade internacional do capital.

    O mercado de eurobonds, por exemplo, atrai capitais de todas as partes do

    mundo (uma parcela significativa provm de pases subdesenvolvidos,

    particularmente da riqueza petrolfera do Oriente Mdio e da riqueza blica do

    sudeste asitico), concentra-os em massa organizada e os devolve a seu pas de

    origem por meio das empresas multinacionais e de outros intermedirios. Traz pois,

    o selo do capital internacional e de seus privilgios.

    Tais prticas acabaram levando a uma especializao das atividades de intermediao

    financeira a partir da dcada de 1960, especializao que acabou tendo importantes reflexos

    espaciais. Criam-se as reas offshore, que se prestam particularmente a transaes

    financeiras.

    O termo offshore entrou no vocabulrio pblico civil a certa altura da dcada

    de 1960, para descrever a prtica de registrar a sede legal da empresa num territrio

    fiscal generoso, em geral minsculo, que permitia aos empresrios evitar os

    impostos e outras restries existentes em seu prprio pas. Pois todo Estado ou

    territrio srio, por mais comprometido que estivesse com a liberdade de obter

    lucros, havia estabelecido em meados da dcada de 1960 certos controles e

    restries conduta de negcios legtimos, no interesse de seu povo. Uma

    combinao convenientemente complexa e engenhosa de buracos legais nas leis

    empresariais e trabalhistas dos bondosos miniterritrios - por exemplo, Curaao,

    Ilhas Virgens e Liechtenstein - podia produzir maravilhas no balano da empresa86.

    Porm, essa liberdade irrestrita ao capital acabou gerando srias dificuldades para o

    compromisso fordista, sendo, ento, um importante fator para a sua derrocada nas dcadas

    86 Hobsbawm, Eric, op. cit., p. 272.

  • 30

    de 1970 e 1980. Eric Hobsbawm87 explica o potencial de desequilbrio e instabilidade

    econmica causados pelo surgimento desses mercados de capitais altamente mveis:

    Em dado momento da dcada de 1960, um pouco de engenhosidade

    transformou o velho centro internacional financeiro, a City de Londres, num grande

    centro offshore global, com a inveno da euromoeda, ou seja, sobretudo

    eurodlares. Os dlares depositados em bancos no americanos e no repatriados,

    sobretudo para evitar as restries da legislao bancria americana, tornaram-se um

    instrumento financeiro negocivel. Esses dlares em livre flutuao, acumulando-se

    em grandes quantidades graas aos crescentes investimentos americanos no exterior

    e aos enormes gastos polticos e militares do governo dos EUA, se tornaram a

    fundao de um mercado global, sobretudo de emprstimos a curto prazo, que

    escapava a qualquer controle. Seu crescimento foi sensacional. O mercado de

    euromoeda lquida subiu de cerca de 14 bilhes de dlares em 1964 para

    aproximadamente 160 bilhes de dlares em 1973 e quase 500 bilhes cinco anos

    depois (...). Os EUA foram o primeiro pas a se ver merc dessas vastas e

    multiplicantes enxurradas de capital solto que varriam o globo de moeda em moeda,

    em busca de lucros rpidos. Todos os governos acabaram sendo vtimas disso, pois

    perderam o controle das taxas de cmbio e do volume de dinheiro em circulao no

    mundo.

    Dessa forma, ocorre a quebra do acordo de Bretton Woods a partir da presso exercida

    pela imensa liquidez nos mercados mundiais, o que na prtica, abala o compromisso

    fordista ao nvel internacional. O surgimento de uma economia transnacional criou em

    grande parte os problemas que o capitalismo ir enfrentar a partir da dcada de 197088.

    Durante o perodo de auge do fordismo, ocorreu uma expanso internacional dos

    valores de uso produtivos (filiais de multinacionais, infra-estruturas criadas pelo Estado para

    atender s demandas do grande capital, investimento em moradias populares dentro de uma

    lgica mnima de bem-estar social89 etc.), subordinada a uma gigantesca expanso do valor

    87 Idem, p. 273. 88 Idem, p. 272. 89 Segundo Ruy Moreira (Moreira, Ruy, op. cit., p. 39), o meio urbano foi transformado no perodo fordista atravs da construo das grandes vias de circulao, de conjuntos habitacionais e da constituio de uma vasta periferia, local para onde era empurrada a classe trabalhadora.

  • 31

    econmico (expressa em uma nova diviso do trabalho, na incorporao de novas reas ao

    capital etc.).

    As aes do Estado90 possuem um importante papel na produo do espao e na

    internacionalizao do capital durante o desenvolvimento do chamado fordismo, na medida

    em que criam condies para a expanso do capital em escala mundial. Devemos ter em

    mente, contudo, que a relao entre a produo do espao e o Estado tem de ser vista como

    mutuamente determinante, e no unidirecional. Segundo Milton Santos91:

    As exigncias, quanto ao entorno geogrfico, das grandes empresas transnacionais

    levam as cidades que as acolhem criao de novos espaos (valores de uso) indispensveis

    sua operao, desvalorizando, do mesmo golpe, outros subespaos prematuramente

    envelhecidos.

    Assim, cabe ao Estado parcela significativa no processo de produo do espao, na

    medida em que instala e concentra espacialmente infra-estruturas (valores de uso)

    necessrias para o processo de acumulao dos capitais; oferece benefcios fiscais para a

    instalao de novos investimentos privados em certas regies; ou mesmo investindo

    diretamente em setores produtivos, atravs de empresas estatais, beneficiando certas reas

    em detrimento de outras92. Essa prtica pode se dar em todas as escalas, desde a intra-urbana

    at global, passando pela regional.

    Mas uma ressalva deve ser feita: no so todas as firmas e nem todos os cidados que

    se beneficiam de forma tima das infra-estruturas oferecidas pelo setor pblico; seu acesso

    diversificado. As grandes empresas transnacionais, hegemnicas, seriam as que maior

    proveito tirariam desse fundo pblico, e proporo que as respectivas empresas

    90O Estado intervm no mercado nos nveis local e nacional atravs da operao de medidas fiscais (taxao de propriedade, controle de aluguis, concesses e subsdios), restries legais (uso do solo, cdigos de construo e regulamentaes) e construo direta (de infra-estrutura, construes de casas e prdios pblicos e na renovao urbana). (Goss, Jon, The built environment and social theory: towards an architectural geography, The Professional Geographer, vol. 40, n. 4, 1988, p.396) 91 Santos, Milton, Por uma economia poltica da cidade: o caso de So Paulo So Paulo: Editora Hucitec/EDUC, 1994, p. 129. 92A explorao das atividades econmicas consideradas fundamentais exige (e legitima moral e politicamente) a acumulao de investimentos do tipo econmico e muitas vezes tambm sociais num volume incomparavelmente maior que o destinado ao resto do pas. natural que esses equipamentos atraiam outros tantos, seja na previso das atividades j existentes, seja porque outras atividades j esto instaladas. O pas obrigado a dedicar s zonas que j so ricas uma parte cada vez mais substancial de seus recursos e de seu oramento. (Santos, op. cit., 1978, p.135)

  • 32

    produzirem proporcionalmente mais emprego e mais recursos fiscais, sua fora poltica,

    ainda que baseada na chantagem, tender a crescer93. Outras formas de capital menos

    exigentes tenderiam a se instalar em subespaos menos equipados, onde sua rentabilidade

    seria afetada para baixo.

    O papel do Estado foi tambm muito importante para o desenvolvimento do fordismo,

    tanto como financiador do capital e da reproduo da fora-de-trabalho, quanto elemento

    fundamental para a manuteno da estabilidade econmica (keynesianismo). Tudo isso s

    expensas do fundo pblico, do antivalor. Dessa forma, ocorriam crescentes aumentos da

    produo agregada, da produtividade do trabalho, do consumo e da renda pessoal e nacional.

    Segundo Hobsbawm, o investimento cresceu a uma taxa anual de 4,5% nas 16 economias de

    mercado mais industrializadas94.

    A partir dos anos 70, a Era de Ouro do modo de produo capitalista, marcada pelo

    crculo virtuoso de crescimento econmico, expanso espacial do capital e das relaes

    capitalistas de produo e relativa estabilidade social, d lugar a uma crescente incerteza

    sobre o futuro do sistema capitalista. O ciclo de prosperidade se rompeu...

    A crise do fordismo

    Em linhas gerais, podemos compreender a crise do fordismo como uma das crises do

    modo de produo capitalista. Uma explicao dessa crise, baseada em Hobsbawm95, se

    refere s ondas longas, de cerca de meio sculo de extenso, que caracterizariam a

    trajetria da economia capitalista desde fins do sculo XVIII. Tais ondas so conhecidas em

    geral pelo nome do economista russo Kondratiev. Numa perspectiva longa, a Era de Ouro

    foi mais uma reviravolta ascendente na curva de Kondratiev. Como outras viradas

    ascendentes anteriores foi precedida e seguida por curvas descendentes. A crise do

    capitalismo que se inicia em fins da dcada de 1960 e incio da dcada de 1970 seria, assim,

    a fase descendente do chamado ciclo de Kondratiev, um ciclo inerente ao modo de produo

    capitalista.

    Porm, acredito que seja necessrio um aprofundamento na anlise sobre as causas da

    crise que se abateu sobre o conjunto de estratgias de acumulao capitalista denominadas

    93 Santos, Milton, op. cit., 1994, p. 130. 94 Idem, p. 277. 95 Hobsbawm, Eric, op. cit., p. 263.

  • 33

    aqui de fordismo. E para tanto, trabalharei com duas frentes de anlise. A primeira ligada a

    uma teoria da crise sob o capitalismo em geral; a segunda ligada s causas especficas da

    crise do fordismo.

    Para a elaborao de uma explicao da crise do capitalismo, irei apoiar-me

    basicamente nas idias elaboradas por Marx em O Capital. A idia para a considerao da

    teoria da crise capitalista em Marx veio da considerao de um aspecto importante da Era

    de Ouro assinalado por Hobsbawm: a relao entre o trabalho e o capital empregados na

    produo capitalista.

    Assim, segundo Hobsbawm96:

    As novas tecnologias eram esmagadoramente de capital intensivo e (e a no

    ser por cientistas e tcnicos altamente qualificados) exigiam pouca mo-de-obra e

    at mesmo a substituam. A grande caracterstica da Era de Ouro era precisar cada

    vez mais de macios investimentos e cada vez menos gente, a no ser como

    consumidores. Contudo o mpeto e rapidez do surto econmico eram tais que,

    durante uma gerao, isso no foi bvio.

    O que Hobsbawm revela no trecho citado j havia sido apresentado por Marx como

    sendo o processo de elevao da composio orgnica do capital97 ao longo do tempo, ou

    seja, h uma diminuio do fator subjetivo do processo de trabalho em relao aos seus

    fatores objetivos98. H uma tendncia de aumento crescente do capital constante (meios de

    produo, assim como os objetos de produo) em relao ao capital varivel (a fora de

    trabalho).

    Uma conseqncia imediata dessa tendncia seria a queda na taxa geral de lucro,

    desde que no varie a taxa de mais-valia ou o grau de explorao do trabalho pelo capital99.

    Como se explicaria ento a crise capitalista sob o ponto de vista do aumento da composio

    orgnica do capital?

    96 Idem, p. 262. 97 A composio orgnica do capital determinada pela proporo em que o capital se divide em constante, o valor dos meios de produo, e varivel, o valor da fora de trabalho (Marx, Karl. O Capital, Livro 1, Vol. II So Paulo: Bertrand Brasil, p. 712). 98 Marx, Karl, op. cit., Livro 1, Vol. I, p.723. 99 Idem, Livro 3, Vol. IV, p. 242.

  • 34

    Em primeiro lugar, como o motor da produo capitalista - cuja finalidade nica a

    valorizao do capital - a taxa de lucro, a taxa de acumulao de capital se retarda. O

    modo de produo capitalista cria, assim, limites para si mesmo, com o desenvolvimento das

    foras produtivas, evidenciando suas limitaes e seu carter histrico, transitrio. As

    diferentes tendncias do capital, ora se positivam no espao, umas ao lado das outras, ora no

    tempo, umas aps outras. Assim, segundo Marx100:

    Periodicamente, patenteia-se nas crises o conflito entre os elementos

    antagnicos. As crises no so mais do que solues momentneas e violentas das

    contradies existentes, erupes bruscas que restauram transitoriamente o

    equilbrio desfeito.

    A produo capitalista procura sempre ultrapassar seus limites inerentes, mas

    ultrapassa-os apenas com meios que de novo lhe opem esses mesmos limites, em escalas

    mais potentes. Ou seja, a barreira efetiva da produo capitalista o prprio capital. Assim,

    a teoria da crise capitalista se torna mais palpvel, pois Marx considera a superproduo de

    capital como sendo, na verdade, uma superacumulao de capital, o que desembocaria em

    crises de acumulao. Haveria a superacumulao absoluta, quando um capital adicional no

    produziria maior quantidade de lucro. A resoluo desse tipo de crise se daria atravs de

    formas violentas, agudas, em depreciaes bruscas, brutais, em estagnao e perturbao

    fsica do processo de reproduo e por conseguinte, em decrscimo real da reproduo do

    capital. Por outro lado:

    exato e correto afirmar que a superproduo apenas relativa, e o modo

    capitalista de produo por inteiro modo relativo de produo, com limites que

    no so absolutos (...) No se produz riqueza demais. Mas a riqueza que se produz

    periodicamente demais nas formas antagnicas do capitalismo101.

    De forma geral, ento, a crise que se observa nos anos 70 seria um produto das

    contradies inerentes ao modo capitalista de produo, pois o capital adicional formado no

    100 Idem, p. 286. 101 Idem, Livro 3, Vol. V, p. 295-96.

  • 35

    curso da acumulao atraa, relativamente sua grandeza, cada vez menos trabalhadores.

    Como o capital fruto do trabalho, e se ope a esse mesmo trabalho, acaba por opor-se a si

    prprio. Porm, a partir do momento em que o capital passa a reportar-se apenas a si mesmo

    no processo de gerao do valor, excluindo o trabalho nesse processo- ao transformar o

    trabalho em capital varivel -, surge uma contradio de duas medidas, ou seja, uma

    desmedida no processo de reproduo do capital102. Um nmero decrescente de

    trabalhadores recrutado pelo capital com o desenvolvimento das foras produtivas sob o

    modo de produo capitalista, o que leva crescente desmedida do capital, pois ele passa a

    perder sua referncia de formao do valor. No haveria nada de anormal, sob o ponto de

    vista de uma teoria geral da crise capitalista, com os problemas enfrentados pelo capitalismo

    j no final dos anos 60 e incio dos anos 70. Dessa forma, tais problemas revelariam,

    segundo Giovanni Arrighi103, uma crise sinalizadora do capitalismo, colocando em xeque

    o padro fordista de acumulao de capital que teve seu auge durante as dcadas de 1950 e

    1960.

    Aps tratar da causa mais geral das crescentes dificuldades encontradas pelo capital para

    reproduzir-se no perodo assinalado, a considerao das dificuldades especficas ao fordismo

    se faz ento necessria.

    Em primeiro lugar, observamos que no bojo do prprio fordismo criaram-se condies

    para a intensificao do uso do capital e da mo-de-obra, em detrimento do nmero de

    trabalhadores utilizados no processo produtivo. Assim, sua base de organizao da produo

    acabou por ser descaracterizada de forma irremedivel. E a sua base de consumo de massa

    tambm passa a ser abalada, pois no se criam mais condies para um emprego de massa

    que gere indivduos aptos a consumir - a insegurana e instabilidade no mercado de trabalho

    e o crescente desemprego so bvios freios ao padro de consumo de massa. Assim, o

    fordismo, ao buscar superar suas contradies internas - a mais forte seria a relao trabalho

    X capital, superada a curto prazo pela elevao da composio orgnica do capital - acabou

    por superar-se a si mesmo, ao menos em sua forma clssica.

    102A idia de desm