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O E S S E N C I A L S O B R E

Albert Camus

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O E S S E N C I A L S O B R E

Albert CamusAntónio Mega Ferreira

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Índice

7 Prólogo

15 A partir do nada

27 O ciclo do absurdo

41 Do exílio à revolta

53 A Argélia perdida

65 «O melhor homem de França»

75 Bibliografia

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Prólogo

O princípio de 1960 caiu num fim de semana.Por isso, as férias de Natal foram um pouco maislongas do que era hábito. Na manhã de domingo,dia 3 de janeiro, o editor Michel Gallimard reco‑lheu, na pequena localidade de Lourmarin, emplena Provença, o seu amigo Albert Camus.Na véspera, a mulher do escritor, Francine, e osdoisfilhostinhamapanhadoocomboionaestaçãodeAvignon;Camuseraparaterseguidocomeles,masacabouporacederàinsistênciadoseueditor,quelhepropunhaumverdadeiroroteirogastronó‑micoaolongodos750quilómetrosqueossepara‑vamdeParis.ComosdoisamigosviajavamJanineGallimardeafilha,Anne,queiafazerdezoitoanos.SeguiamabordodeumFacelVega,queeraocarrodesportivodamoda,cujoúltimomodeloeramaisligeirodecarroçariaeatingiamaioresvelocidades.Michel adorava conduzir depressa; Camus temiaos acidentes de viação.

CamusadquiriraapropriedadeemLourmarinnosúltimosmesesde1958.Olugareraparadisíaco

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(Lourmarin é considerada «uma das mais belasaldeias de França»), a habitação conveniente depreço e confortável. A partir desse momento, acasa na Provença tornou‑se o seu refúgio e a suaconsolação. O clima quente e seco do sul era‑lherecomendadopelosmédicos,jáqueoseuestadodesaúdeseagravaranesseano:atuberculosecrónicatornara‑semaispresenteedificultava‑lheavidaeotrabalho.EmLourmarin,Camusnãosódispunhada solidão de que precisava para escrever comoainda beneficiava de um clima mais próximo dopadrãodonortedeÁfrica,emquenasceraeviveraas primeiras três décadas de vida.

Os viajantes pernoitaram na hospedariaAuChaponFin,emThoissey,umabonne tablequetinha duas estrelas no guia Michelin e se situavaa uns 300 quilómetros de Lourmarin. Contavamchegar a Paris a meio da tarde de dia 4, ainda atempo de uma entrevista que Camus marcarapara as 18horas. Na segunda‑feira, dirigiram‑sepelaestradanacional5atéSens,ondealmoçaramno Hôtel de Paris et de la Poste, outra referênciagastronómicamuitofrequentadaporCamus.Cercadasduasdatarde,partiramparaaúltimajornadaem direção a Paris, cerca de 150 quilómetros. Poralturas de Petit‑Villeblevin, numa reta com visi‑bilidade e quase sem trânsito, Michel Gallimardperdeu subitamente o controlo do automóvel,que foi embater num plátano e, depois, noutro.Camus,queviajavaaoladodocondutor,tevemorteimediata;Michelficouagonizante,vindoamorrerdias depois.

Em pouco mais de vinte anos, o escritor, queem1957recebera,emEstocolmo,oPrémioNobel

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da Literatura, construíra uma obra literária queo tinha tornado célebre em todo o mundo e umareferência incontornável das letras francesas dopós‑guerra. Na realidade, o seu trajeto iniciara‑seainda antes do início da II Guerra Mundial, coma edição de L’envers et l’endroit (O Avesso e oDireito),em1937;easuaobramaisemblemática,L’étranger(OEstrangeiro),forapublicadaem1942;mas só o final do conflito permitiu que a obra deCamus circulasse livremente em toda a Europa1,e foi então que o génio do escritor nascido nosarredores de Constantine, na Argélia, e educadonum bairro operário da periferia de Argel, foi re‑conhecido generalizadamente: doze anos depois,eradistinguidocomoNobel.OpróprioCamusseespantava com a rapidez com que aquele rapazi‑nho pobre descendente de paupérrimos colonosde origem alsaciana e espanhola se transformaranumdosescritoresmaisadmiradosdoseutempo:«Àminhavolta,ninguémsabialer.Imagineoqueisso significa», disse mais tarde a um estudiosoda sua obra.

1 AobradeAlbertCamuscomeçouaserpublicadaemPortugalnofinaldosanos40,encontrando‑sequasetotalmentetradu‑zida (António Quadros, Urbano Tavares Rodrigues, AntónioRamosRosa,LuizaNetoJorgeeRauldeCarvalhoforamalgunsdosseustradutores),emboranumerosostítulos(realmente,amaioria)nãoestejamhojedisponíveisemlivraria.Poressefacto,optámosporutilizar,comalgumasexceçõesdevidamenteassi‑naladas,asreferênciasdasediçõesfrancesas,hojemuitoacessí‑veisporestaremtodasincluídasnacoleçãoFoliodaGallimard,que foi a sua editora em França. Salvo menção em contrário,todasastraduçõessãodoautordestelivro.

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Viera para Paris em 1940, por se ter tornadoindesejável no seu país de nascimento, entãouma colónia francesa. Do meio em que nascera,emergira para o mundo do estudo e das letras.Apaixonou‑seentãopelofutebol(queconsiderariamais tarde a sua grande escola de vida, porque «abolanuncanoschegadosítioqueimaginávamos»),que viria a abandonar por motivos de saúde: aos17 anos, foi‑lhe diagnosticada uma tuberculosequeocondicionariaatéaofimdavida.LicenciadoemfilosofiacomumatesesobreopensamentodePlotino e de Santo Agostinho, tornara‑se notadopelas suas atividades teatrais (adaptação, ence‑nação e representação), primeiro numa pequenacompanhia de Argel, o Théâtre du Travail, depoisnoThéâtredeL’Equipe,ambosdeexistênciafugaz.O teatro seria, aliás, uma paixão constante da suavida. Levara à cena Le temps du mépris, de AndréMalraux (cuja obra admirou sempre), e Revolta nas Astúrias,umacriaçãocoletivaqueevidenciavao alinhamento dos seus autores com as causasligadas aos movimentos operários, rapidamenteproibida pelas autoridades. Militante do PartidoComunista, embora fugazmente («recusar‑me‑eisempre a colocar, entre o homem e a vida, umvolumedoCapital»),Camusdefendera,emartigospara o jornal Alger Républicain, os direitos dosárabes, posicionando‑se decididamente contra osabusosdospieds‑noirs,osdescendentesdosantigoscolonos.Publicara,aindaemArgel,doispequenosvolumesde«ensaios»poéticos(Camusvia‑osmaiscomo tentativas do que como ensaios, no sentidoliterário do termo), L’envers et l’endroit e Noces(Bodas). Mas na capital a sua obra ia conhecer

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uma nova fase: depois do sucesso de crítica deL’étranger, que lhe granjeou a admiração e a ami‑zade de Jean‑Paul Sartre, colaborou ativamenteno jornal clandestino Combat, de que se tornariadiretor logo após a Libertação, publicou O Mito de Sísifo (1942), e, nos anos finais da guerra, viusubiremàcenaaspeçasCalígulaeLe malentendu(O Equívoco).

Quando a guerra terminou, Camus era já umadas figuras de proa do jornalismo e da literaturafrancesa.SimonedeBeauvoir,queoconheceuem1943, considerou, depois de ler L’étranger, que«há muito que nenhum novo autor francês nostocava tão profundamente» (Beauvoir, p. 603).Tornou‑se polémico com uma série de artigos(«Nemvítimasnemcarrascos»)emquesesituavaem aparente equidistância do colonialismo e doterrorismo, ainda que este se reclamasse de umacausa aparentemente justa, a da libertação daArgélia em que tinha nascido. Acreditava numaArgélialivredosistemacolonial,emboraintegradanum espaço federal de língua francesa, que fosseo resultado da colaboração entre a maioria árabeeaminoriadescendentedosantigoscolonos.Paramuitos argelinos, Camus era um estrangeiro nasua própria terra, que se recusava a aceitar umaArgéliaondenãohouvesselugarparaele.PublicouLa peste (1947), romance no qual é possível verumaalegoriadevastadoradonazismo,masfoicomL’homme révolté (1951) que se definiu a sua difícilposiçãocívicaeintelectual,contratodasasformasdeviolência,contratodosostotalitarismos:Sartrerompeu com ele de forma ostensiva e a polémicaentre os dois é um dos mais acesos diálogos de

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ideias que aconteceram nos anos cinquenta emFrança.Camusmanifestaentãooseuapoioatodasas insurreições anticomunistas: a de Berlim, em1953, a de Budapeste, três anos depois. Por outrolado,reafirmaasuaoposiçãoàditadurafranquistae defende os militantes comunistas gregos con‑denados à morte. O paladino da «terceira via»,avesso aos maniqueísmos dominantes, enuncia oprincípiofundamentaldasuaética,queéafideli‑dadeaumdevermoral:«Acreditonajustiça,mas,se fosse preciso, defenderia a minha mãe contraa justiça». Essa intransigência consolidou a ima‑gemdeumasolitáriaausteridade,quenoentantocontrastavacomasuaconstantereivindicaçãododireito à felicidade e à alegria. Ao longo dos anoscinquenta, intensificou o seu trabalho teatral,com adaptações de Calderón, Faulkner, Buzzati,Dostoiewski e publicou La chute (1956) e L’exil et le royaume (1957).

Foiem1957queCamusrecebeuoPrémioNobelda Literatura, que, segundo disse, devia antes tersido atribuído a Malraux. Para muitos dos seuscríticos, o melhor da sua obra ficara para trás;Camusnãoconseguiuevitarodesconfortodesen‑tir que a distinção quase o arrumava no panteãodas velhas glórias, ele, que ainda não chegara aos50anos(tinha44quandorecebeuoprémiodaAca‑demiasueca).Nãoseriabemassim:oapelodasuaobratocavasobretudoosjovens,quenelaviamumespelho das suas dúvidas e perplexidades, do seumal‑estaredasuarevolta.MasCamuspressentiaque a sua escrita devia agora virar‑se para outroshorizontes: como todos os escritores, acreditavaqueomelhoraindaestavaparavir.Autorizaentão

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arepublicaçãodosseusdoisprimeiroslivros,por‑que «há sempre um tempo na vida de um artistaem que ele deve fazer um balanço, aproximar‑sedo seu próprio centro, para depois tentar aí semanter» (Prefácio a L’envers et l’endroit). A umamigodesempre,JeandeMaisonseul,confidencia:«Ainda só escrevi um terço da minha obra. Voucomeçá‑laverdadeiramentecomopróximolivro».Iniciara já a redação de uma narrativa longa, quetrataria da construção de uma vida, a sua, aindaqueficcionada,comosesetratassedadoprimeirohomemsobreaterra:nelatrabalhaintensamenteduranteasfériasdeNatalde1959,emLourmarin.Chamar‑se‑iaLe premier homme. A versão inicial,144 páginas manuscritas para um romance aindaem esboço, foi encontrada no local do acidentedentrodeumapastadecouropreta,ondeestavamtambém o seu passaporte, algumas fotografias defamília e o seu diário. Guardado ciosamente pelafamília, o original só viria a ser publicado em1994, editado pela filha, Catherine. E vale a penaser lido: às vezes, para ir ao princípio, é melhorcomeçar pelo fim.

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A partir do nada

Em 1958, vinte anos depois da sua publicaçãoem Argel, saía em França, na Gallimard, umanova edição do primeiro título de Albert Camus,L’envers et l’endroit. O escritor hesitara muito an‑tes de autorizar esta republicação; dava‑a agora,porque acreditava que «há mais amor verdadeironestaspáginasdesajeitadasdoqueemtodasasquelhesseguiram»,comodiznoextensoprefáciocomquefezantecederoseutextodejuventude(tinha22 anos quando o escreveu). E acrescentava:«É para mim claro que a minha fonte está emL’envers et l’endroit,nessemundodepobrezaedeluzemquevividurantemuitotempoecujarecordaçãomepreservaaindadosdoisperigoscontráriosqueameaçamoartista,oressentimentoeasatisfação».Nessa altura da vida, já laureado com o PrémioNobel,Camussentiatambémqueeraomomentode «reescrever» L’envers et l’endroit, de voltar acolocarnocentrodasuaobraliterária«oadmirávelsilênciodeumamãeeoesforçodeumhomemparareencontrar uma justiça ou um amor que equili‑

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bremessesilêncio».Desde1954quetrabalhavanoprojetodeumromanceaquechamariaLe premier homme. Tudo indica que avançou bastante na suacomposição durante o ano de 1959.

Omanuscritoencontradodentrodapastapretano local do acidente («páginas traçadas ao correrdapena,porvezessempontosnemvírgulas,numaescritarápida,difícildedecifrar,nãotrabalhada»,segundoCatherineCamus),émaisqueumbrouillonemenosqueumaprimeiraversão.Étalvezexces‑sivochamar‑lhe«romanceincompleto»;fiquemo‑‑nos com a expressão «esboço de um romance»,queémaisrigorosa.Sãonumerosasasanotaçõesàmargemquesugeremaditamentos,interpolações,desenvolvimentos;eseécertoquealgumascenasaparecemjárazoavelmenteamadurecidas,muitasoutras surgem como uma espécie de cavalete noqual o escritor não deixaria de pendurar as suastelas pintadas com as cores de uma escrita tensae cintilante. Os numerosos anexos, alguns delesintercaladosentreasfolhasdomanuscrito,apon‑tam para outras direções que Camus planeavadesenvolvermaistarde;asanotaçõesnumcadernode trabalho dedicado à obra recolhem ideias erecordações, muitas das quais ainda não figuramnaversãoquenoschegou.Compreende‑seoescrú‑pulo da família em deixar que olhos estranhosvissem o manuscrito (nem o seu primeiro grandebiógrafo,HerbertR.Lottman,queinvestigouavidado escritor durante os anos 70, lhe teve acesso);masodocumentoacabaporconstituiruminstru‑mento fundamental para compreender o núcleoemocional e humano do pensamento de Camus.Oqueomanuscritonosrevelaéoesqueletodeuma

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ficçãoautobiográfica,naqualonarrador,JacquesCormery, tem 40 anos, quando resolve voltar aoslocais do seu nascimento e da sua pobre infância.Eis o que ele recorda:

«Uma família em que pouco se falava,emquenãoselianemseescrevia,umamãeinfeliz e distraída, quem poderia dar‑lheinformaçõessobreessejovemedesgraçadopai? Ninguém o conhecera, a não ser amãe, que entretanto o tinha esquecido.Disso tinha ele a certeza. E o pai morreradesconhecido nessa terra onde passarafugidiamente, como um desconhecido»(Le premier homme, p. 31).

A ausência do pai, a perda irrecuperável antesque a memória do narrador pudesse fixar algumaimagemsua,éoqueconduztodaaprimeirapartedomanuscrito(«Recherchedupère»),aliás,aúnicarazoavelmente desenvolvida: a abertura, presto, éuma noite de temporal em que a mãe o vai darà luz, em Mondovi, perto da cidade argelina deConstantine,nooutonode1913;opaimorrepoucosmeses depois, chamado a servir uma França dequemalserecordava,emplenabatalhadoMarne.JacquesélevadoparaArgel,ondepassaavivercomamãe,silenciosaporcausadeumaestranhaafasia,e tímida, quem sabe se devido a uma persistentedepressão mascarada. E com a avó prepotente, oirmãomaisvelho,doistios,umdosquais,diminuídopor uma espécie de retardamento, se torna o seuheróideinfância(orelatodascaçadascomÉtienneé uma das mais belas passagens «acabadas» do

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manuscrito).Dali,daqueleambientedepobrezaeiliteracia,Jacquesemergeparaomundodosabere do pensamento: na escola primária, o professorLouis Germain é o seu primeiro guia espiritualnesta forma de ascensão para a luz, não apenasa que o conhecimento permite, mas a concreta,física, sensual, que é a do sol, do mar e do céu deArgel, que descobre ao mesmo tempo. Para ele,comoparasuamãe,comoparaosdescendentesdecolonos que para ali tinham vindo menos de umséculoantes,aFrançaeraentão«umlugarobscuroperdido numa noite indecisa». Ele e os seus con‑discípulosapenasconheciamdomundo«osirocco,apoeira,aschuvadasprodigiosasebreves,aareiadas praias e o mar em chamas a arder ao sol».Edepois,oprofessorGermainconseguequeelesejaaceitenoliceu,comumabolsadeestudo.Orapazdenoveanosdescobreentãoemsioprimeirosinaldeumdéchirementqueoperseguiráavidainteira:

«Em vez da alegria pelo sucesso, umaimensa dor de criança, que lhe retorcia ocoração, como se ele soubesse antecipada‑mente que, através deste sucesso, acabavadeserarrancadoaomundoinocenteecalo‑roso dos pobres, mundo fechado sobre sipróprio como uma ilha na sociedade, masonde a miséria faz as vezes da família e dasolidariedade,paraserlançadonummundodesconhecido…» (p.163).

A recordação deste momento dramático deiniciação ao mundo dos adultos, com tudo o queisso implica de renúncia e de conformação a uma

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disciplina que é alheia aos prazeres da simplici‑dade, conduz o homem de 40 anos, que volta aopaís à procura das suas raízes «obscuras e intrin‑cadas», a uma estupenda elegia por aqueles que,comooseupai,«pertencemàimensamultidãodemortossemnomequefizeramomundoparanelesedesfazeremparasempre».Eassumeapertençaa essa linhagem de desconhecidos:

«E ele, que quisera escapar ao país semnome,àmultidãoeaumafamíliasemnome,emboradentrodelealguém,obstinadamente,nuncativessecessadodereclamaraobscuri‑dadeeoanonimato,faziatambémpartedatribo […], caminhando na noite dos anossobre a terra do olvido, onde cada um eraoprimeirohomem,ondeeleprópriotiveraque se erguer sozinho, sem pai, sem nuncaterconhecidoessesmomentosemqueopaichama o filho, agora que ele já tem idadeparapoderouvir,paralhecontarosegredoda família, ou um antigo sofrimento, ou aexperiênciadasuavida,essesmomentosemque mesmo o ridículo e detestável Polóniose torna subitamente grande ao falar aLaertes, e ele tinha tido dezasseis anos edepois vinte e ninguém lhe tinha falado eeletinhatidoqueaprendersozinho,crescersozinho,àforça,apulso,encontrarsozinhoasuamoraleasuaverdade,anascerenfimcomo homem…» (p. 181).

Aliçãoda«recherche du père»,oseuresultadopalpável, é tornar presente ao filho a solidão

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essencial da sua construção de si, revestindo‑oquasedeumaauradeheroísmo,queéodestinodosquesãocondenadosaviveravidasemoconfortoda fortuna, «da tradição e da religião». Mas essalucidez não implica qualquer forma de autocomi‑seraçãonemanunciaasraízesdarevoltacontraodestinoqueele,esóele,podetraçar.Nestaaltura,a revolta de Camus não tem raiz na injustiça deumdestinohumanoemparticular,ou,mesmo,nasinjustiçassociaisdequesefabricaomundo.Comoadianteveremos,édeoutraordem,filosófica,sesequiser, e ergue‑se contra o absurdo intrínseco davida.PelavozdojovemCipião,Camusdizmesmo,emCaligula(1944)queapobrezaé«umamaneirade contrabalançar a hostilidade do mundo». Háuma espécie de orgulho do órfão nesta assunçãoda pobreza e do anonimato e no reconhecimentode que também ele é «o primeiro homem» e quelhe cabe «criar a sua própria tradição»: «pensapela sua cabeça, julga por si próprio, enquantoos que o rodeiam vivem na orla da humanidade,num universo pré‑verbal e pré‑reflexivo» (AlainFinkielkraut).

A segunda parte do manuscrito («Le fils ou lepremier homme») é bastante mais curta e frag‑mentária:cobre,emtextossemcontinuidade,umapartedavidadeJacquesdesdeaentradanoliceuaté cerca dos 14 anos, período durante o qual oadolescente é pela primeira vez confrontado comodolorosocontrasteentrealiberdadevividapelossentidos despertos e as privações que lhe sãoimpostaspelaavó,obrigando‑oaaceitarempregosde férias para ajudar ao magérrimo sustento dafamílianumerosa:«Emborativesseatéentãovivido

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napobreza,Jacquesdescobrianesseescritório[deagentes marítimos] a vulgaridade e chorava a luzquetinhaperdido».Omanuscritosuspende‑senestanota de «angústia desconhecida» de um ser «semantepassados nem memória», que, como «umalâminasolitáriaesemprevibrantedestinadaaserquebradaporumgolpedefinitivo,umapurapaixãodeviverconfrontadacomumamortetotal,sentiaagoraavida,ajuventude,osseres,escaparem‑lhe,sem ser capaz de os salvar…».

Ooriginal,percebe‑se,deveriaestender‑seporcentenas de páginas, tão minuciosas são as notastomadas por Camus durante a elaboração do ma‑nuscritoquenosdeixou.Umplanodaobra,cons‑tantedosseuscadernosrelativosprovavelmentea1954,previaumromanceemseispartes,dasquaisomanuscritoapenasnosproporcionaasduaspri‑meiras (Carnets III, p. 100). Cada uma das ideiasesboçadasnotextopoderiaviraterumdesenvol‑vimentomaisoumenosprevisível;eofactode,naforma que conhecemos, atingir a centena e meiade páginas com a narrativa dos primeiros catorzeanos de vida de Jacques Cormery deixa entreverumaamplaedemorada«fabricação»,entreaficçãoeoregistomemorialista,daquiloquebempoderiaser o livro da sua vida. A personagem a construir:«O indiferente. Um homem completo. Espíritode envergadura, corpo escorreito e habituado aosprazeres. Recusa‑se a ser amado, por impaciênciae pelo sentimento exato do que é. Doce e bom noilegítimo. Cínico e terrível na virtude» (ibidem).

Comaintensidadeeocompassodeumalonganarrativa, Le premier homme é uma reelaboraçãode alguns temas fundamentais abordados nos

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seus dois primeiros livros, publicados em Argelvinte anos antes. De facto, o importante prefácioàediçãode1958deL’envers et l’endroitprenunciao essencial do manuscrito encontrado junto doseu corpo, em janeiro de 1960: a ínfima pobreza,material e espiritual, do meio social em que cres‑ceu; a infinita riqueza, sensual e anímica, da pai‑sagememquesemoveucomaextremaliberdadedos pobres. «Um avesso sombrio e um direitoluminoso», resume um dos seus mais devotadoscríticos (Onfray, p. 17). O que muda é o tom:ojovemautordos«ensaios»dosanos30éumserávidodevida,cujossentidosreagemaosestímulosexteriores com a energia impulsiva da descobertado mundo, ser em construção que se afirma pelaescrita, assertiva e luminosa—«ânsia e lassidãobrotam assim de uma mesma e suave embriaguezdossentidosedamemória»(Mathias,p.40).Maso homem maduro dos anos 50 é um observadordesencantado, um escritor de poderosos recursosestilísticos,umapersonagemqueencontrouoseulugarnairrepresentávelcomédiadoshomensequeresolvecontar‑setalcomoé:«osolensinou‑mequeaHistórianãoétudo».Oprimeirotalvezpudesseser Jacques Cormery, o que ainda não sabe quemé; o segundo é incontestavelmente Albert Camus,o que já sabe como chegou ali.

L’envers et l’endroit foi dedicado desde a pri‑meira edição a Jean Grenier, que fora professorde Camus na universidade, em Argel, e por esteadotado como seu mentor até ao fim da vida.No segundo dos cinco textos que integram estaprimeira recolha, intitulado «Entre oui et non» eprovavelmente escrito em 1935, Camus abordara

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pelaprimeiravezotemamaiordosilênciodamãe,que plana, como uma sombra intrigante, sobretodaasuaobra.Sentadoàmesadeumcaféárabe,lembra‑se «não de uma felicidade passada, masde um estranho sentimento», o de um rapazinhopobre que entrevê como uma memória presente.Aolonge,talvezoruídodomar:«omundosuspiraem direção a mim num ritmo longo e traz‑mea indiferença e a tranquilidade daquilo que nãomorre». E a circunstância transporta‑o a «essebairro,essacasa»ondeviveunainfância:«háumasolidão na pobreza, mas uma solidão que atribuium preço a cada uma das coisas» (em Le premier homme, pp. 61‑62: «mesmo o supérfluo era pobreporqueosupérfluonuncaerautilizado»).Nomeiodessa solidão gerada pela escassez, ergue‑se afigura damãe, ou o seu«silêncio animal»,porque«a sua vida, os seus interesses, os seus filhos,limitavam‑seaestarali,umapresençademasiadonatural para poder ser sentida». Em meia dúziade páginas, Camus evoca o desaparecimento dopai, a ausência de ternura da mãe («ela nunca otinhaacariciadoporquenãosabiacomo»)e,apesarde tudo, o laço de amor que o liga a essa mulheralheia,aigualdadeperanteamorte,aconsciênciadequetodaa«absurdasimplicidadedomundoserefugiou neste quarto».

ForadessequartodeumbairropobredeArgel,no entanto, o mundo fervilha e chama os sen‑tidos bem despertos do jovem. O segundo livrode Camus, Noces, publicado em 1939, é umaexplosãodevitalidadeedealegria(«háumacertadesenvoltura na alegria que define a verdadeiracivilização») anunciada já num outro texto de

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L’envers et l’endroit («Amour de vivre»), no qualinseriu a sua máxima célebre: «Não há amor pelavida sem desespero de viver», cuja natureza, apa‑rentemente paradoxal, elucidará mais tarde. EmNoces, Camus mergulha plenamente na paisagemonde cresceu, através do portal para a alegriaque é o primeiro texto, «Bodas em Tipasa»:aochegaraTipasa,vastocampoderuínasfenícias,romanas e bizantinas nos arredores a oeste deArgel,hojeclassificadocomopatrimóniomundialpela UNESCO, «entramos num mundo amarelo eazul onde nos acolhe o suspiro odorífero e acreda terra de verão na Argélia». E são as plantas,buganvílias rosa, hibiscos, rosas chá, o mar «semumaruga»eas«pedrasquentes»queoenvolvem:«Vamosaoencontrodoamoredodesejo».Numalinguagem simultaneamente concisa e rigorosa,masadmiravelmentepoética,Camusdescreveessemergulhonoespaçodasantigasruínas,esquecidasda História, nesse esquecimento regressando àNaturezaaquepertencem.Nessacelebraçãosensuale plena (Pierre‑Henri Simon fala de «panteísmosensual» e de «estoicismo elementar»), o jovemescritorpressentequeaquiascoisasbastam‑seasiprópriasequeosdeuses,comsupremaelegância,se retiraram há muito para deixarem os homensgozarlivrementeoprazerdasuaprópriaexaltação:«Aqui compreendo aquilo a que se chama glória:o direito de amar sem limites.»

Este texto inicial dá um tom quase jubilatórioaolivro,umintensoclarãodeluzemtodaaobradeCamus,tãocontrastantecomoensaiodeL’envers et l’endroit dedicado a Praga, cidade que na suaobra simboliza o lugar da angústia e da solidão.

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Em Djemila, «o vento modelava‑me à imagem daardente nudez que me envolvia. E o seu abraçofugidio dava‑me, pedra entre as pedras, a solidãodeumacolunaoudeumaoliveiracontraocéudeverão»;emArgel,«cidadeabertasobreocéucomoumabocaouumaferida»,aplenitudedoqueestádisponívelatodos,«omarnaesquinadecadarua,umcertopesodosol,abelezadaraça»;emItália,onde «a própria tristeza é apenas um comentáriodabeleza»,essa«misturadeasceseedeprazeres,umaressonânciaqueécomumàterraeaohomem,pelaqualohomem,comoaterra,sedefineameiocaminhoentreamisériaeoamor».Nestaspáginasquasefebris,marcadasporumaembriagueznatu‑ralistaquefazlembrarJeanGiono(odeCollinesouNaissance de l’Odyssée,porexemplo),Montherlantou certas páginas de Gide (Les nourritures terres‑tres),enasquais«fotografa»a indizívelbelezadomundo mediterrânico de matriz greco‑latina, seuespaçodereferênciaintelectualeestético,Camusabordapelaprimeiravezotemadopresentecomoabsoluto e da inutilidade de viver na perspetivadeumfuturo que nuncafarámais sentidodo queas coisas têm neste momento. Um comentárioperspicaz à pintura do primeiro Renascimentoitalianoapontaadireçãodoseupensamento:«Qualarazãoparaquequemnadaesperadoamanhãseemocione? Esta impassibilidade e esta grandezado homem sem esperança, este eterno presente,é precisamente aquilo a que teólogos avisadoschamaramoinferno.»Viver,viverintensamenteapregnânciavivadomundo(«omundoébelo,eforadele não há salvação»), exige não ter esperança,porque a esperança é uma forma de adiar para o

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futuro o desafio do presente. Uma cobardia. Umaformaderesignaçãoperanteopresente.E«viverénãoseresignar».Pelocontrário,«énaalegriaqueohomempreparaassuasliçõese,umavezchegadaao seu mais alto ponto de embriaguez, a carnetorna‑se consciente e consagra a sua comunhãocomummistériosagradocujosímboloéosanguenegro».NumartigosobreLa nausée,deJean‑PaulSartre, publicado no jornal Alger républicain emoutubro de 1938, já criticara a ideia de que a vida«é trágica porque é miserável»: a tragédia da vidavem da sua natureza «arrebatadora e magnífica».É forçoso determo‑nos no limiar desta filosofiaelementar,quevaiconhecerrápidodesenvolvimen‑to nos seus livros posteriores: «singular instanteemqueaespiritualidaderepudiaamoral,emquea felicidade nasce da ausência de esperança, emque o espírito encontra a sua razão no corpo.»Sehouvessequelheatribuirumnome,como«nãoestáestabelecidoqueafelicidadesejaindissociáveldootimismo»,chamar‑lhe‑íamosumaformafelizdepessimismo. QuandoNoces foi editado, Camusmetera na gaveta um primeiro romance, La mort heureuse, que só viria a ser publicado em 1971, eestava já a escrever L’étranger.

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O ciclo do absurdo

Albert Camus parece ter tido bastante cedouma noção clara da forma como, quer temática,querformalmente,asuaobrairiadesenvolver‑se.EmboraalgumasdassuaspalavrasemEstocolmo,por ocasião da entrega do Prémio Nobel, sugiramque esse programa comandou desde o início todaa sua escrita («eu tinha um plano preciso quan‑do comecei a minha obra»), é mais crível que avisão de conjunto lhe tenha surgido nos últimosanos da década de 30, quando trabalhava emL’étranger e O Mito de Sísifo (publicados ambos,com cinco meses de intervalo, em 1942) e, umpouco mais tarde, as peças de teatro Calígulae O Equívoco. Numa carta de 1939 a ChristianeGalindo,suaamigaedatilógrafafieldemuitosdosseusmanuscritos,dizque«juntamentecomomeuromanceeomeuensaiosobreoAbsurdo,[Calígula]constitui o primeiro estádio daquilo a que agorajá não tenho medo de chamar a minha obra»(citadaporGrenier,pp.138‑139);numanotade1941referepelaprimeiravez«ostrêsabsurdos»;numa

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entrada dos Carnets, em 1947, «arruma» o escritoe a escrever em cinco grandes áreas: Absurdo,Revolta,Julgamento,OAmor,OSistema,dasquais,sabemo‑lo,apenastevetempoparaabordarastrêsprimeiras. Os títulos acima referidos integram asérie(ouciclo)doAbsurdo.TudoindicaqueCamusos teve em estaleiro a partir de 1939, trabalhandoneles simultaneamente (mas O Equívoco deve tersurgido um pouco mais tarde, porque o episódioquelhedáorigemaparecenarradoemL’étranger).São também os primeiros títulos publicados emFrança, onde viera estabelecer‑se no início daprimavera de 1940.

EmArgel,ficaradesempregadoeeramalquistopelas autoridades. Nas primeiras semanas deguerra o jornal onde trabalhava e que ajudara afundar, Alger républicain, fora proibido, suspeitode inclinações anarquistas. Camus tornara‑se aínotado pelas suas intervenções em defesa daspopulações autóctones. Goraram‑se, por isso,por intervenção administrativa, as tentativas deencontraroutrasaídaprofissional.EmParis,pelocontrário, ofereceram‑lhe um lugar de secretárioderedaçãonodiárioParis‑Soir.Avivernumquartomodesto de hotel, Camus redigiu rapidamente aversão final deL’étranger, dando‑a por terminadaemmaiode1940.Aformafinaldoseutítulomaiscélebre mostra que deixara definitivamente paratrás La mort heureuse, um primeiro romance queescrevera entre 1936 e 1938, ao mesmo tempoque publicava os seus dois livros iniciais, L’envers et l’endroit e Noces. Inclusivamente, repesca deLa mort heureusenomes,situaçõese,até,aspáginasmagníficas do domingo em Argel, que faz figurar

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quase ipsis verbis em L’étranger, o que pareceindiciarque asua primeira tentativaficcional eraconsiderada assunto arrumado e que não tinhaintenção de voltar a ela. La mort heureuse viria aser publicado em 1971, mas a sua leitura é maisinteressantepeloquereveladaevoluçãotemáticae estilística de Camus do que pelas semelhançasque resultam da leitura. La mort heureuse é umafrutuosa«arcadeinéditos»ondeCamusfoibuscarmateriais que viria a utilizar, nem sempre nomesmo sentido, em L’étranger; mas, quaisquerque sejam as suas limitações, é um romance emsi, não um anteprojeto ou primeira versão deL’étranger.

Desdelogo,porqueMersaultnãoéMeursault:oprotagonistadeLa mort heureuseéumaventureiroque aceita o que a vida lhe apresenta, a começarpelaoportunidadedematarZagreuscomummóbilvenal—a felicidade, acredita ele, vir‑lhe‑á com odinheiro. Meursault, pelo contrário, não age pormotivação,nãoacreditaemnadanemcedeanada,eoassassíniodoárabeéapenasumaobrado«acaso»,que serve de pretexto para o seu julgamento pelomundo—a morte é um corolário da vida, a sua«vida absurda». Mas também porque, entre um eo outro, há uma diferença de grau: de zero paraum, porque Meursault, o estrangeiro, renuncia acompreender,a julgarea interagircomomundo.Meursault é, essencialmente, uma personagemneutra, um niilista passivo, enquanto Mersault, oda «morte feliz», é um niilista ativo, que aguardaa morte como última hipótese de alegria, a deumareconciliaçãocomosem‑sentidodasuavida.Ainda, porque a narrativa de La mort heureuse,

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escrita na terceira pessoa, não se furta ao jogopsicológico da personagem, à sequência criativadas suas motivações, enquanto em L’étranger aassunçãodoeunarradortornaaindamaisinsólitaa atonia psicológica de Meursault, porque exigeumarígidadisciplinadeobjetividadeemergindodeumdiscursopornaturezasubjetivo.«Meursaultécomoumolhoqueregistaosfenómenosdomundo,umaconsciênciataciturnaqueserecusaaordenarde acordo com um sentido a sua experiência darealidade», escreve Dominique Rabaté (Diction‑naire Camus, p. 291).

L’étrangeréumanovelacurta,rápida,certeira,assente sobre uma escrita despojada e incisiva.ContaahistóriadeMeursault,umnaturaldeArgel,aquemaconteceumacoisabanal,quevaitornar‑seomotordeumdramacomfimanunciado:amortedamãe.Aprimeirapartedoromancedescreveospassos dados por Meursault na sequência desseacontecimento anotado sem comentário desdea frase inicial da narrativa: «Aujourd’hui maman est morte».Presideaovelório,acompanhadopeloscompanheirosdolardeterceiraidadeondeamãevivia(«estavigíliaincómodatinha‑lhespostorostosde cinza»); segue com o cortejo fúnebre («tudose passou depois com tanta precipitação, certezae naturalidade, que já não me lembro de nada»);enfim,deregressoacasa,«penseiqueiadeitar‑mee dormir durante doze horas». A seguir, como senadanasuavidativessemudado,Meursaultretomaosseushábitosnumasequênciacasual,reencontraMaria Cardona, uma antiga secretária, com quemencetaumarelaçãobreveeintensa,conversacomRaymond, um vizinho de hábitos duvidosos, de

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quem,indiferente,aceitaseramigo,delerecebeumconvite para ir passar um domingo na praia, e aí,excedidopelocalorealucinadopelaintensidadedosol,disparacincotirossobreumárabequeperse‑guiaRaymond.Aprimeiraparteterminacomestegestoinjustificável(e,comoseverá,injustificado),que precipitará os acontecimentos: «Compreendique tinha destruído o equilíbrio do dia, o silênciode uma praia onde tinha sido feliz.»

Nasegundaparte,Meursaultconfronta‑secomamáquinadaJustiça.Confronta‑seé,noentanto,apenas uma forma de expressão: na realidade, oprotagonista‑narradoranota,comsurpresamassemrevolta (se excetuarmos a violenta altercaçãocom o padre que quer convencê‑lo a entregar‑senas mãos de Deus), os formalismos que fazemdeslizar o julgamento do crime cometido paraumaoutra«irregularidade»,queasociedadejulgaainda mais severamente: o seu caráter e os seushábitos, revelados pela «insensibilidade» que ale‑gadamente demonstrou perante a morte da mãe(«acuso este homem de ter enterrado a mãe comumcoraçãodecriminoso»,concluioprocurador).Com curiosidade («mesmo sentado no banco dosréus, é sempre interessante ouvir‑se falar de si»),Meursaultapercebe‑sedequeoseujulgamentoéumaquestãotratadaàmargemdele,umconfrontoentreadvogadosembebidosnateiadosseusargu‑mentos, nos quais o narrador apenas reconheceleves traços da sua situação. E, à medida que oobjeto do julgamento se afasta do facto concretoqueodesencadeou,Meursaultafasta‑sedomundo,ao qual, como reconhece, nunca pertenceu ver‑dadeiramente: quase no final, perante a morte

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inevitável,«pelaprimeiraveznaminhavida,abri‑‑me à terna indiferença do mundo».

Em diversas ocasiões, sobretudo rejeitando aassociaçãodoseulivrocomaobradeKafka,Camusinsistiuemqueassuaspersonagenseram«dema‑siadoquotidianas»:«L’étrangerdescreveanudezdohomemperanteoabsurdo»Oseuromanceresulta,assim, como uma espécie de demonstração da«banalidadedavida»,doseuabsolutosem‑sentido,daradicalimpossibilidadedelheatribuirumprin‑cípio condutor, divino ou propriamente humano.ÉnestesentidoqueL’étrangeraparececomoumademonstraçãoliteráriaefilosófica(Camusinsistiaemqueparafilosofarénecessárioescreverroman‑ces) da existência inexorável daquilo a que o seuautor chama L’absurde: «O absurdo nasce dessaconfrontação entre o apelo humano e o silênciodesrazoáveldomundo.»Oabsurdoéadivergênciaentre o que um homem pede ao mundo—umsentido para a vida—e o que o mundo lhe podedar—uma vida sem sentido.

Como é que esta novela, tão despojada, quasesinóptica, se tornou um tal sucesso ao longo dasúltimas décadas (cinco milhões de exemplaresvendidos, em todo o mundo) é um belo mistérioda literatura. Se a descrição do mundo como umlugarsem‑sentidoeaperplexidademoraldaperso‑nagem Meursault sempre teve (e continua a ter)um impacto seguro na consciência dos jovens,naturalmente desconforme com a dimensão davidanormal,jáasuaemergênciacomoumaespéciede herói negativo tem mais que ver com umacertainocência,semvontadenem(provavelmente)saberparaqualquerformadetransigência,comque

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Camusdotouasuapersonagem.Eaescrita,concisa,clínica, sem falhas, com que Camus tece o seurécitcontribuiparafazerdeL’étrangerumanovelaperfeita, como o Adolphe de Benjamin Constant(que Camus muito admirava) ou como algumasdas Chroniques italiennes de Stendhal (autor quereverenciava). A influência da narrativa norte‑‑americana de entre as duas guerras (The Killers,deHemingway,éumparadigmapossível),sempreassinalada pela crítica, é absorvida e transpostaparaumarealidade«exótica»,adapaisagemnorte‑‑africana, que, mais do que espaço de representa‑çãoescolhidopeloautor,éoseuespaçoessencial,o lugar cósmico de onde tudo procede.

ÉpossívelqueosucessoimediatodeL’étrangertenha também beneficiado da publicação quasesimultâneadosegundovoletdo«ciclodoabsurdo»,o ensaio O Mito de Sísifo (que aqui citaremos natradução de Urbano Tavares Rodrigues). À luz deumpensamentoqueaíserevelaemdiscursodireto,Meursault ganha uma espessura onde ressoam aspreocupações do autor, e autoriza a pensar, comoSartre, no seu célebre artigo de 1943 «Uma expli‑cação de L’étranger» (incluído em Situations — I),que Camus vinha inscrever‑se na linha dos gran‑des moralistas franceses dos séculos xvii e xviii(Sartre aproxima‑o de Voltaire): escritores queobservam a vida e os comportamentos humanosminuciosamente para dessa análise extraíremumaregradevida.Éesseotomdominantedoseuprimeirograndeensaio:O Mito de Sísifoabrecomum axioma («Só há um problema filosófico ver‑dadeiramente sério: é o suicídio») e termina comuma injunção («É preciso imaginar Sísifo feliz»).

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Mas, entre a casa da partida e a casa da chegada,opensamentodeCamusdesdobra‑senumjogodeconfrontaçõesesuperações,todaselaspartindodaquestãoessencial(seráqueavidamereceservivi‑da?), para desembocar na afirmação solar de que,talcomoSísifo,«apróprialutaparaatingirospín‑caros basta para encher um coração de homem».Osentidoeasmodalidadesdessalutadesenvolvê‑‑los‑á mais tarde: será o pensamento da revolta.

Do axioma decorrem algumas perguntas queCamus dilucida com cerrada argumentação, aprimeira das quais (a verificação de que a vida éabsurda conduz necessariamente ao suicídio?) éultrapassada com uma clara afirmação vitalista,que decorre diretamente da posição do autorexpressa nos seus livros anteriores a L’étranger.Rejeitado o «refúgio» (ou a «fuga») na transcen‑dência, que considera inquinar o pensamento doabsurdoemSoerenKierkegaard(mesmoqueestedesemboque numa fé sem Deus aparente) e LéonChestov (que resolve o impasse através da crençanum Deus irracional e absurdo), conclui:

«Resta um mundo em que o homemé único senhor. O que o amarrava era ailusão de outro mundo. O destino do seupensamento já não é renunciar mas res‑saltar em imagens. Joga‑se em mitos, semdúvida—masmitossemoutraprofundidadeque não seja a da dor humana e como elainesgotáveis.Nãoafábuladivinaquediverteecega,masorosto,ogestoeodramaterres‑tres em que se resumem uma difícil sagezae um pensamento sem amanhã.» (p. 144)

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Nestarecusadatranscendência,queoafastadosexistencialistas(voltaremosaestetemanoúltimocapítulo deste livro), nesta estrita imanência queatribui à vida humana e à maneira como ela deveservivida,Camusrevelaadifícilsingularidadedoseupensamento.Avessoàcrençanosdeusescomoà disciplina das ideias feitas, o seu humanismo éuma filosofia de combate forjada num moralismoexaltante e esclarecido, fiel à razão mas assentenuma perceção sensual da vida. O diálogo com ospensadores«doabsurdo»é,noentanto,reveladorda dificuldade que tem em conciliar a sua cons‑ciêncianoturna(racional)domundocomapulsãosolar (sensual) para a liberdade: a consequência«lógica» do absurdo seria o suicídio (e, por isso,ele o afronta desde as primeiras linhas do seuensaio); continuar a viver não é uma comodidadeda existência, mas uma obediência a um sentidoético, o de ser fiel à verdade e à liberdade que seesgotam (ou exaltam) na vida humana.

É aí que se inscreve a glosa do mito homéricode Sísifo, o homem eternamente condenado pelosdeuses a empurrar um rochedo até ao cume damontanha,emborasaibaque,umavezeoutra,elarolará,encostaabaixo,atéàbase.Sísifoéo«heróiabsurdo», submetido a esse «suplício indizívelem que o seu ser se emprega em nada terminar».Interessa a Camus, sobretudo, o lapso de tempoem que Sísifo, tendo verificado como o rochedoteimaemvoltaraopontodepartida,empreendeocaminho de regresso: «Essa hora que é como umarespiração e que regressa com tanta certeza comoa sua desgraça, essa hora é a da sua consciência.»E, ainda: «Sísifo, proletário dos deuses, impotente

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e revoltado, conhece toda a extensão da sua mise‑rávelcondição:énelaqueelepensaduranteasuadescida» Mas «não há sol sem sombra e é precisoconhecer a noite»; assim, «o homem absurdodiz sim e o seu tormento nunca mais cessará».NaconclusãodeCamus,somostodosirmãosdeSísifo.

AomesmotempoquetrabalhavaemL’étrangere O Mito de Sísifo, Camus elaborava a primeiraversão de Calígula, peça em cinco atos, que ficouprontaem1941.Essaprimeiraversão,segundoosespecialistasdaobracamusiana,eralírica,nietzs‑cheana,libertária,resultantedeumaleituraaindamarcada pela fonte clássica em que se inspirara,a narrativa de Suetónio em Os Doze Césares.A que melhor conhecemos, no essencial, veio àluz do dia em 1944 (embora retocada em 1958):é amarga, trágica, sem saída (tradução de Raul deCarvalho):«Oshomensmorremenãosãofelizes»é a descoberta de Calígula, a que o precipita parao exercício de um poder discricionário. Camuscomeçara por encarar a manifestação do poderabsolutoemCalígulacomoumaafirmaçãodamá‑ximaliberdadedohomemqueenfrentaoabsurdoatravés de uma manifestação demiúrgica da suavontade;mas,naversãofinal,oacentotónicomudade posição, porque «não se pode ser livre contraos outros homens». É possível que o decorrer daguerratenhaalertadoCamusparaoanacronismoda sua primeira versão, que apareceria singular‑mente deslocada no tempo e nas circunstânciasaos olhos dos seus contemporâneos. A presençacadavezmaispróximadaarbitrariedadedopodere da tirania podem tê‑lo levado a reconsiderar anatureza da sua personagem, «condenando‑o»

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ao desencanto trágico que propicia o desenlacefatal do último ato.

TalcomoMersaulteMeursault,Calígulaéum«heróiabsurdo»,nestecasoumniilistahiperativoque se situa no topo da pirâmide do poder, e, porisso, tem ao seu dispor meios aos quais os seusdoisantecessoresnãotinhamacesso.Naverdade,é ele quem comanda a ação e esta precipita‑senuma sequência de acontecimentos que têm amorte (a instrumental, dos outros, e a ritual, asua)comofim.Encerradonumaautarciaaquedáas tonalidades de divertimento macabro, Calígulahumilhaemandamatarossenadores,vulgarizaospoetas,encarnaosdeuseseignoraopovo,porquea«utilidadedopoder»édar«assuasoportunidadesaoimpossível».Adquire«adivinaclarividênciadosolitário».Masafelicidade,essa«liberdadeespan‑tosa»deabolirotempoeopassado,desembocanaimpossibilidade de cumprir o seu desígnio, comoconfessa a Cesónia no final do V Ato:

«Oimpossível!Procurei‑onoslimitesdomundo,nosconfinsdemimmesmo.Estendiasminhasmãos,estendoasminhasmãoseé a ti que encontro, sempre a ti diante demim,eeis‑mesemprecheiodeódiodiantede ti. Não escolhi o bom caminho. Nãoconsegui nada. A minha liberdade não é aboa.» (p. 147).

Apeça,estreadaemGenebraemjunhode1945,comencenaçãodeGiorgioStrehler,eapresentadatrêsmeses depois emParis, noThéâtreHébertot,corresponde,nasuaformadefinitiva,aoprograma

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enunciadoporCamusdesdeosanos30,paraoseuThéâtre de l’Equipe: interessavam‑lhe os textosque,àmaneiradatragédiaantiga,revelavam«vio‑lêncianossentimentosecrueldadenaação».MasocaráteralgohíbridodeCalígula,poucoconformecom as regras da tragédia clássica, torna a peçadificilmente classificável: drama ou tragédia? Adefinição mais aproximada talvez se encontrenesta apreciação de Henri Gouhier: «O Calígula de Alexandre Dumas pai é uma tragédia falhada;o de Camus é um drama conseguido.»

Simultaneamente com a publicação em livrodeCalígula,em1944,Camuscompletao«ciclodoAbsurdo» com uma outra peça de teatro, O Equí‑voco, bem mais curta (em três atos), transposiçãodramáticadoepisódiodofilhopródigoassassinado,que, ocorrido realmente na Jugoslávia em 1935,aparecia já em L’étranger sob a forma de umrelato de jornal que Meursault descobriu na celae que lera vezes sem conta. Camus transporta oepisódio para a Checoslováquia, país que visitaracomdesconfortoem1936,depoisdaruturadoseuprimeiro casamento, com Simone Hié. Um emi‑grante de regresso a casa sem se dar a conheceré assassinado pela mãe e pela irmã Marta. Esta,incapaz de suportar as condições em que vive,aspira a viver num país com sol: o seu horror aoambiente ecoa observações similares feitas porCamus em L’envers et l’endroit. A chegada do via‑jante enriquecido dá‑lhe a oportunidade para ocrime:oroubodassuaseconomiasseráocaminhopara alcançar a felicidade (note‑se o paralelismocomasmotivaçõesecomportamentodeMersaultem La mort heureuse). É ela que instiga a mãe e

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executaovisitante.Aqui,porém,ocrime,umavezdescobertaaidentidadedovisitante,nãocompensa:a mãe lança‑se às águas gélidas do rio e a irmãdesaparece. «Estas peças [Calígula e O Equívoco]formam um teatro do impossível», dirá Camusmais tarde. E, valorizando o comportamento deMarta,quenãoseresignaaviverumavidaabsurda(nãoperdoaráaovisitanteasuafaltadesimplici‑dadeeorecursoaodisfarce,cujacríticacolocanabocadeMaria,amulherdofilhopródigo),CamuschegouapensaremincluirO Equívococomoiníciodo «ciclo da Revolta»; acabou, no entanto, pordecidir‑sepelasuaarrumaçãocomoencerramentodo «ciclo do Absurdo».

Mas,pormuitoqueasfronteirasentreAbsurdoeRevoltacontinuemaserliterariamenteindistin‑tas,averdadeéqueO Equívocoéasegundatenta‑tiva (na realidade, foi estreada antes de Calígula)deCamusparacriaruma«tragédiamoderna»:um«tratamentotrágicodeumfait‑divers».Apeçatemas suas fraquezas, como mostram as últimas duascenasdoIIIAto,comumdiálogoalgoforçadoentreairmãeamulherdovisitante,emboraodesenlacesejaumatrouvaille:ocriadovelhoassume,nasuanegativa ao pedido de auxílio de Maria, o papeldeDeusausente.Talvezporisso,acrítica,muitasvezes reticente em relação à obra dramática deCamus, parece ter apreciado mais a inversão dosentido da parábola bíblica que o potencial detragédia que ela encerrava: o triunfo absurdo damentira no jogo social.

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Do exílio à revolta

O«ciclodoAbsurdo»foicompletadoepublicadoentre 1940 e 1944, durante a II Guerra Mundial,numa França ocupada, numa Europa em chamas.Valeu a Camus o entusiasmo de Jean Paulhan e apersistênciadePascalPia,queconheceraemArgelno final dos anos 30 e de quem se tornara amigo;e a intercessão de André Malraux, que lera comentusiasmoosmanuscritosdeL’étrangereO Mito de SísifoerecomendaraosdoistítulosàGallimard.Durante esse período, Camus andou de casa àscostas,primeirodeArgelparaParis,depois,quandoaredaçãodoParis‑Soirfoideslocalizadaparaazonanãoocupadapelosalemães,paraClermont‑Ferrande Lyon, onde se casou com Francine Fabre. Antesdo conflito, o Paris‑Soir era um diário de enormesucesso, que vendia dois milhões de exemplarespor dia; mas as vicissitudes da guerra tornaram asuapublicaçãopraticamenteinviávelemfinaisde1940. Desempregado em Lyon, Camus regressouà Argélia, indo estabelecer‑se em Orão, de ondea família de Francine era natural, e aí viveu

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dejaneirode1941aagostode1942.Denovoatacadopelatuberculosequelheforadiagnosticadaquandotinha17anos,voltouàFrançametropolitana,paraumacuranasmontanhas,pertodeSaint‑Etienne.Foiaíqueaexpansãoalemãparasul,emrespostaao desembarque americano no norte de África, osurpreendeu,nooutonode1942.Francineregres‑sarasemanasantesàArgélia,àprocuradeempregoparaambos;AlbertficouretidoemFrança,sozinho,sem dinheiro, separado da mulher e do seu país.Pior que tudo, encontrava‑se, de um dia para ooutro,emterritórioinimigo,cercadoportodososlados.«Comme des rats!»,escreveu,impotente,noseudiário.Pelaprimeiravez,estavaconscientedequeasuacondiçãoeraadoexilado,enemsequerquando se mudou para Paris, no outono de 1943,essa sensação de estranheza desapareceu.

Foi essa perceção do exílio, intensamentevivida, a experiência da vida em Orão, e a intui‑ção de que o alastrar da mancha escura do Mal,encarnada no nazismo triunfante, era incontro‑lável,queolevaramacomeçaraescreverLa peste,cujaprimeiraideiaanotaranosseusdiários,aindaem 1941. La peste, publicado em 1947, é, de todosos livros editados em vida de Camus, aquele emque mais diretamente se reconhecem traços dasua vivência pessoal. Desde logo, porque a cidadeatingida pela peste é Orão, sobre a qual escreveraumensaiomordazecontundente(«LeMinotaureou la halte d’Oran»), que só viria a ser publicadoem livro em L’été (1953): «a cidade, em si, há queconfessá‑lo,éfeia».Defacto,«comoimaginar,porexemplo, uma cidade sem pombos, sem árvores esem jardins, onde não é possível encontrar nem

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um bater de asas, nem o restolhar de folhas, emsuma, um lugar neutro?». Depois, porque a asso‑ciação da peste à «peste brune» nazi é imediata eirresistível,eaerradicaçãodaepidemiarecordaaeuforiadaLibertação,queestavaaindabemvivanamemóriacoletivaquandoolivrofoipublicado,doisanosdepoisdofinaldaguerra;enfim,porque,emdiversaspersonagens,oobstinadoDoutorRieux,oadmirávelTarrou,ojornalistaRambert,épossívelencontrar o eco, não apenas de circunstâncias dasuavidapessoal,comoaindadealgumasdassuaspreocupaçõesnestaépoca.Mas,sobretudo,porqueLa pesteéumromancesobreaseparaçãoeoexílio,como por diversas vezes sublinha o narrador, quenãoéoutroqueodoutorRieux,comooleitordes‑cobriránasúltimaspáginas.Aexperiênciadacidadefechadacompulsivamenteaoexteriorporcausadaepidemia é a do progressivo isolamento de cadaumdosseushabitantes,separadosdosquelhesãomais próximos, exilados na sua concha de sobre‑vivência, primeiro simulando ignorar a progres‑são da praga, depois fazendo‑se esquecidos dela,por fim resignados a aguardar a sua hora (Rieuxconsiderava que «o hábito do desespero é piorque o próprio desespero»). Contra este ambientededesmoralizaçãoprogressivadacidade,ergue‑sea vontade de um pequeno grupo de homens quese juntam ao doutor Rieux, «porque escolheramdemonstrar que dois e dois são quatro, e não ocontrário»,opondoàdoençaumaresistênciatenaze aparentemente inútil, mas acabando por vencê‑‑la por instinto coletivo de sobrevivência («estahistória diz respeito a todos nós», diz Rambert,quandodecideficarnacidade).Aanalogiacomos

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anosdeguerraeocupaçãoqueaFrançaacabaradeviver não podia ser mais transparente; nem maisclaro o paralelismo com a própria experiência deCamus como exilado solitário, que acabará por seligaràredeclandestinaderesistênciaCombatnosanos finais da guerra.

La pesteapresenta‑secomoumrelatoobjetivodos acontecimentos que vieram perturbar esse«lugar neutro», e de como os homens reagirama eles. Para ajudar a esta caraterização, Camusrecorreu a um artifício propriamente literário, odoscadernosdeTarrou,queonarradordizteremseu poder. Tarrou é o observador desencantadoque anota tudo o que lhe passa pelos olhos, comuma precisão que relativiza o excecional e exaltaa banalidade. O seu perfil é o de um niilista ativo,cuja filosofia assenta na ideia de que «ninguém érealmentecapazdepensarnosoutros,mesmonascircunstâncias mais infelizes». Rieux é o homemde ação que acredita ser possível tratar das almascomeçando pela cura do corpo, e que é capaz demobilizarvontades,apenaspeloseuexemplo,parao combate sem tréguas contra a epidemia. O seuúltimodiálogocomopadrePanelouxresumeosen‑tidodasposiçõesqueCamusnuncadeixoudesus‑tentarnoseuconfrontocomocristianismo:«Nemmesmo Deus será capaz de nos separar.» Rieux eTarrou, atraídos ambos pelo «partido da vítima»,estãodestinados apartilharemumaamizade, queé selada por um insólito banho de mar, pelo qualambosselibertamdopesoesmagadordapestequetudodevoraeselamasuaaliançadeboas‑vontades.

A crónica do doutor Rieux desenrola‑se entremeticulososregistosestatísticosepormenorizadas

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descrições da progressão da doença, anotaçõesclimatéricas e o registo de episódios da vidacorrente: é sobre este magma de fait‑divers queplana a ameaça da morte e a luta pela vida, ou,paracitarostermoscarosaCamus,ainfelicidadee o amor. O resultado é uma narrativa densa,mas de uma alucinante clareza, em que Camusse mostra uma vez mais fiel à tradição clássica:«toda a infelicidade dos homens vem do facto denão usarem uma linguagem clara», diz Tarrou,ecoando o Camus de O Equívoco. O doutor Rieuxconstrói a sua crónica dos anos da peste (Defoe écitado em epígrafe) tomando «deliberadamente opartido da vítima e querendo encontrar‑se comos homens, seus concidadãos, nas únicas certezasque eles têm em comum, o amor, o sofrimentoe o exílio». Mas a experiência do triunfo sobre adoença não o ilude:

«Sabiaoqueestamultidãoeufóricaigno‑rava, que o bacilo da peste não morre nemdesaparece nunca, que pode ficar adorme‑cido durante décadas nos móveis ou entrea roupa, que aguarda pacientemente nosquartos, nas caves, nas malas, nos lenços enapapelada,eque,possivelmente,viriaumdiaemque,parainfelicidadeeensinamentodoshomens,apesteacordariaosseusratose enviá‑los‑ia para morrerem numa cidadefeliz» (in fine).

Estaconclusãoremeteparaumadimensãoevi‑dentementesuperioràdosimplesregistoalegórico,enãoseesgotanareferênciaàmonstruosidadenazi

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nemaoquotidianodaguerra.Narealidade,apesteéumametáforadoMalemtodososseusestadoseencerra uma reticência de fundo a uma leitura deprimeironível,quejulgariaencontrarnoromanceosinaldeumotimismoqueostemposdaLibertaçãopoderiamavalizar.RachelBespaloffnotavajá,numtexto publicado postumamente em 1950, que, emLa peste, «o flagelo designa ora o acontecimento,oraacondição humana,oraopecado, oraa infeli‑cidade»,ouseja,todasaspossibilidadesdeirrupçãodo Mal. Durante um encontro com dominicanos,em 1946, Camus esclareceu a sua posição: «Direique,pessimistaquantoaodestinohumano,souoti‑mistanoqueserefereaohomem.»Eacrescentava,veladamenteparodiandoaapostadePascal:«Eistonão em nome de um humanismo que sempre mepareceulimitado,masemnomedeumaignorânciaqueprocuranãonegarnada.»(citadoporGrenier,p. 189). Embora afirmando a sua confiança nossentimentos propriamente humanos—o amor, aternura,asimpatia,asolidariedade,tudoconceitos«fracos»queabundamemLa peste—,Camusrejei‑tava «os amanhãs que cantam», quer fossem osanunciados pelo cristianismo, quer os que, entãomuitoemvoga,eramprometidospelocomunismo.

Lançadonoprincípiodoverãode1947,La pestetransformou‑senumfulgurantesucessodevendas:emtrêsmeses,cercade100milexemplares.Distin‑guidocomoPrémiodosCríticosealvodecríticasentusiásticas (as mais reticentes só começaram achegar mais tarde), o romance chamou a atençãodo encenador Jean‑Louis Barrault, que propôs aCamus a criação de uma peça com a peste comotema. L’état de siège, estreada em outubro de

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1948 no Théâtre Marigny, esteve longe de ser umsucesso, sobretudo depois do êxito retumbantede La peste. Transportada para a Espanha, a açãoresultavanumadenúnciamuitoclaradostotalita‑rismos, com o de Franco em primeiro lugar. Fielàssuasorigensespanholas,Camusvaimultiplicar,apartirdofimdaguerra,assuasintervençõesemdefesa da República espanhola derrotada e dosrefugiados espanhóis em França.

Abrutalaceleraçãohistóricadessesanos,osdaguerraeosdopós‑guerra,foiorientandoareflexãode Camus em outras direções. Já nos anos finaisdo conflito, exprimira a um correspondente a suavontade de acabar de vez com os absurdos,ao mesmo tempo que, a partir de 1943, começaraatomarnotasparaumensaiodeoutrofôlego,queanalisaria a passagem do absurdo à revolta. Comoescreverá na Introdução a L’homme révolté (1951),livrodedicadoaoseumentorJeanGrenier,«dosen‑timento do absurdo vimos emergir qualquer coisaque o ultrapassa». E, explicitando o programa doseuensaio,dizque«seeralegítimo[então]teremcontaasensibilidadeabsurda,defazerodiagnósticode um mal tal como o encontramos em nós e nosoutros,éimpossível[agora]vernessasensibilidade,e no niilismo que ela pressupõe, mais do que umpontodepartida,umacríticavivida,oequivalente,no plano da existência, da dúvida sistemática.» Asdilacerações éticas e políticas da Libertação, quevivera diretamente através da crise que o levouaabandonaradireçãodojornalCombat,a irresis‑tível ascensão do comunismo na Polónia, HungriaeChecoslováquia,ossobressaltosanticolonialistaseasprimeirasescaramuçasquehaviamdeconduzir

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à independência da Argélia, o conhecimento daatmosfera concentracionária das sociedades esta‑linistas,conhecimentoquesecimentouatravésdasuarelaçãodeamizadecomoex‑comunistaArthurKoestler, condicionaram a reflexão de Camusorientando‑o para uma revisão das premissas doseupensamentosobreasituaçãodohomemmodernoeapulsãodeliberdade:«Naexperiênciaabsurda,osofrimentoéindividual.Apartirdomovimentoderevolta,[osofrimento]adquireaconsciênciadequeécoletivo,éumaaventuradetodos.»ErajáaliçãofinaldeLa peste;seráalinhadepensamentoqueoguiará,deagoraemdiante.Daíocogitocamusiano:«Je me révolte, donc nous sommes.»

O ensaio parte da revisão de algumas das for‑mas históricas da revolta, da «revolta metafísica»àrevoltanasartes,da«negaçãoabsoluta»deSadeà «poesia revoltada» de Lautréamont e Rimbaud,cujo conformismo denuncia, e dos surrealistas,arautosdeuma«impossívelsageza».Maséquandopassaàanáliseda«revoltahistórica»queopensa‑mentodeCamusmelhorsedefineeapenaselheafinanadenúnciadostotalitarismoscontemporâ‑neos, que não podia deixar de lhe valer a violentareação dos comunistas e dos seus compagnons de route: «o socialismo moderno tende a criar umaforma de jesuitismo secular, a transformar todososhomenseminstrumentos».Camusanalisapor‑menorizadamente a evolução do pensamento deMarxeos«desvios»queamáquinarevolucionáriarussa lhe impôs:

«Reencontramos, no termo deste longocaminho, a revolta metafísica, que avança

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desta vez entre o tumulto das armas e daspalavrasdeordem,masesquecidadosseusverdadeirosprincípios,mascarandoassuasnegações com uma escolástica obstinada,virada ainda para o futuro, mas dele sepa‑rada por uma multidão de países a abatere de continentes a dominar. A ação comoprincípioúnico,oreinadodohomemcomoálibi, começou já a escavar o seu campoentrincheirado, no leste da Europa, frentea outros campos entrincheirados» (p. 284).

Econclui:«Marxnuncaimaginouumatãoter‑ríficaapoteose.»Aolongodaterceirapartedoen‑saio,concretiza‑se,assim,aideiaanunciadadequeainquiriçãodeCamuspartedapremissadequeasociedade europeia é a «sociedade do assassínio»,que o mundo em que vive é o da legitimação daextinção em massa, em nome de princípios supe‑riores,remotamenteosdaliberdadeedalibertaçãodohomem:«Ahistóriadarevolta,talcomohojeavivemos, é muito mais a dos filhos de Caim que adosdiscípulosdePrometeu.»Camusconsideraistoinaceitável: a vida continua a ser, para ele, dema‑siado bela e preciosa para que uma determinaçãohumana (política) possa dispor dela.

O episódio de 1905 em que um revolucionáriorusso se recusa a executar um atentado porque,no momento decisivo, se apercebeu de que haviaumacriançaentreosalvosdasuaação terrorista,inspirara‑lhe uma peça, Les justes, que subira àcena em finais de 1949. As personagens servem‑‑lhe como ponto de atração da sua reflexão emL’homme révolté, que se articula em torno da

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antinomialiberdade/justiça:umajustiçaabsolutaexcluiria a liberdade, a liberdade absoluta exclui‑ria a justiça. Ora, a hesitação de Kaliayev, quedesemboca na renúncia a matar, é, para Camus, opontoidealondeseencontramodesejodejustiçae a afirmação da liberdade, «o limite exato ondecomeça e termina a honra dos homens». É estaa inspiração para o esboço de um «pensamentomeridional»,que,emborasemexclusão,contrapõeà hegemonia assumida pelo pensamento nórdico(alemão) durante os séculos xix e xx:

«A história da primeira Internacional,na qual o socialismo alemão luta estrenua‑mente contra o pensamento libertário dosfranceses,dosespanhóisedositalianos,éahistória das lutas entre a ideologia alemã eo espírito mediterrânico. A comuna contrao Estado, a sociedade concreta contra asociedade absolutista, a liberdade razoávelcontra a tirania racional, o individualismoaltruísta contra a colonização das massas,sãoentãoasantinomiasquetraduzem,umavez mais, o longo confronto entre a medi‑da e a desmedida que anima a história doOcidente, desde o mundo antigo» (p. 373).

Camus reconhece que, nos tempos em que elevive,esteconfrontorevestenovasformas,que,noentanto, se reconduzem à dicotomia tradicionalentreaHistóriaeanatureza:«opensamentoauto‑ritário,estimuladoportrêsguerrasepeladestrui‑çãofísicadeumaelitederevoltados,submergiuatradiçãolibertária.».Estetriunfoda«meia‑noite»

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sobre o «meio‑dia», da noite sobre o dia claro, é,noentanto, provisório: «o queressoa emnós,nosconfinsdestalongaaventurarevoltada,nãosãoasfórmulas do otimismo, que para nada nos servemneste extremo de infelicidade, mas as palavras decoragem e inteligência que, junto ao mar, são aprópriaessênciadavirtude.».Eaprofeciaterminacom uma belíssima exortação:

«No meio‑dia do pensamento, a revoltarecusa a divindade para partilhar as lutase o destino comuns. Escolheremos Ítaca, aterrafiel,opensamentoaudaciosoefrugal,aaçãolúcida,agenerosidadedohomemquesabe.Naluz,omundocontinuaaseronossoprimeiro e último amor. Os nossos irmãosrespiramsobomesmocéuquenós,ajustiçaestáviva.Éentãoquenasceaestranhaale‑griaquenosajudaavivereamorrereque,de agora em diante, nos recusamos a adiar.Sobre a terra dolorosa, é ela a embriaguezeterna,opãoamargo,oventoagrestevindodosmares,aantigaeanovaaurora.Comela,aolongodoscombates,havemosderecons‑truiraalmadestetempoeumaEuropaquenão excluirá ninguém» (p. 381).

A publicação em França de L’homme révoltécausouumautênticotumultodeideias.Quasesemexceção, Camus foi atacado por cristãos, surrea‑listas, comunistas e filocomunistas. A quantidadede artigos de resposta às críticas elaborados porCamusnosanosseguintesmostraqueoautorterásidosurpreendidocomavirulênciadasreaçõesao

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seulivro.MasnenhumadaspolémicasteráferidomaisAlbertCamusdoqueaquetevedesustentarcom Sartre (que entretanto se aproximara doscomunistas),equeteriaporconsequênciaaruturadefinitiva entre os dois. O tom sobranceiro, dis‑tanciado, executório de Sartre ainda hoje chocapela cegueira ideológica e crueldade intelectualque revela. A posição de Camus era a mais difícil,porqueasideiasqueexpuseraemL’homme révoltéeramquaseinsólitas,noambienteintelectualquese vivia na Europa do pós‑guerra, especialmenteemFrança.Muitosforamosseusdetratores,pou‑cos os que o defenderam. Emmanuel Berl, quenãopoupouSartre,resumiuaposiçãodospoucoshomensdebem,aquelesaquemCamussedirigia:«A polémica entre eles não me dá nenhuma von‑tade de rir, só posso lamentar aqueles a quem arutura de uma amizade dá vontade de rir. É umagrande infelicidade, e não só para os amigos queela separa» (citado por Grenier, p. 257).

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A Argélia perdida

Nosprimeirosdiasdedezembrode1952,CamuspartiuparaaArgélia,ondeiavisitaramãe,queseencontravadoente,eoirmão.Aocasiãoerapropícia:o escritor estava a viver no meio de uma tempes‑tade desencadeada pela publicação de L’homme révolté e acirrada pela violenta crítica que, comSartre na sombra, Francis Jeanson lhe fizera naspáginas de Les temps modernes. Os seus biógrafosnão poupam na descrição dos estados de almade Camus, apanhado de surpresa pela violênciacomque asua obrafora acolhida: «erguem‑seemmassa os tenebriões», anota, nos Carnets. Apesarda sua combatividade, expressa em numerosostextos polemísticos, alguns deles condenados aficareminéditos,Camuspareceterdadosinaisdese afundar na depressão. Relê incessantementeNietzsche e cita longamente Emerson. É dessaaltura a primeira versão de «Jonas ou l’artiste autravail», novela publicada cinco anos depois emL’exil et le royaume:umartistainteiramentedevo‑tado ao seu trabalho é constantemente assediado

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pelas solicitações do mundo exterior e parececondenado a soçobrar sem conseguir concluir asua obra maior. Nessa primeira versão, Jonas eraum escritor, o que reforçava a componente auto‑biográfica;naversãodefinitiva,torna‑sepintor.Oquesesabe,atéporqueoregistounosseusCarnets,équeCamusatingiraumpontodesaturaçãocomasintrigaseconspiraçõesdoambienteparisiense,paraoqualsemudaradezanosantes:«Aouvir‑menarádio,acho‑meexasperante.Parisfaz‑meassim,apesar de todos os meus esforços.»

Camusera,deorigemedecaráter,umafricanoqueconviviamalcomasagrurasclimáticaseapai‑sagemhumanadocontinente,«anoitedaEuropaeoinvernodosrostos».DezanosdevidanaEuropa,intensaecruel,nãotinhamapagadoneleostraçosoriginários, nem a nostalgia pela Argélia que elesempre considerara sua, em pé de igualdade coma maioria árabe que agora a reclamava. A viagemde dezembro de 1952 ia permitir‑lhe «renovar osvotos» com o seu lugar de origem, porque esseera, afetivamente, a sua pátria. Obstinadamente,enquanto a Argélia resvalava para a violênciaindependentista e Paris se aferrava a uma visãocolonialista ultrapassada, Camus continuava aver na sua terra o lugar de onde uma refundaçãoda civilização mediterrânica podia emergir, porcontraposição ao pensamento europeu, que viadominado pelo legado da filosofia alemã. Nessefinal de ano, volta a Tipasa, que lhe inspirara umdosmelhorestextosdeNoces.Eumsegundotexto(«Regresso a Tipasa»), que fará figurar em L’été,recolhapublicadaem1954,dácontadasheureuses retrouvailles.Éque,emboraocamporomanoesteja

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agora cercado por arame farpado e barreiras deproteção,Camusreencontraoantigoencantodasruínasrecortadascontraumcéumuitoazuleummar infinito:

«Vindo de Chenoua, o longínquo cantodeumgalocelebravasozinhoaglóriafrágildo dia. Do lado das ruínas, até onde a vistaconseguia alcançar, apenas se viam pedrascorroídas e absintos, árvores e colunasperfeitas na transparência do ar cristalino.Parecia que a manhã se suspendera, o solparado por um instante incalculável. Nestaluz,nestesilêncio,anosdefuroredetrevasdiluíam‑selentamente.Euescutavaemmimum ruído quase esquecido, como se o meucoração, imóvel desde há muito, voltassesuavemente a bater.» (pp. 162‑163)

O sentimento de pertença de Camus, o seu«patriotismo», era de raiz sensual, qualquer coisade imanente que o justificava e reconciliava comavida,quelheforadesdesempredifícileadversa.DaíotomdiscretamentecelebratóriodeL’été,queassinalaoregressoliterárioàArgéliadosseusvinteanoseoreencontrocomosmotivosquelhetinhaminspirado as melhores páginas de Les noces (nãoporacaso,osdoistítuloscostumamseracopladosno mesmo volume). À data da publicação, estarecolhaconstituíaaindaumaespéciedeparêntesispurificador, entre os clamores da polémica sobreL’homme révolté e a consciência, cada vez maisclara,dequepoliticamenteaArgéliaseiaperdendodele,porqueacrispaçãomaniqueístaentreovelho

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poder colonial e a violência do independentismoemergente não deixava lugar aos seus apelos auma espécie de comunidade supranacional, quevalorizasse devidamente as culturas autóctones,nelas incluindo a dos brancos argelinos de se‑gunda e terceira geração: «um exemplo que seriararíssimodepopulaçõesdiferentesimbricadasnomesmo território».

Desde 1945 que, numa série de artigos publi‑cados no jornal Combat, Camus vinha advertindopara a iminência trágica que podia resultar dodesenvolvimento da «crise argelina», essencial‑menteeconómicaepolítica.Nesseano,percorrerao território argelino de norte a sul, numa verda‑deira investigação jornalística que privilegiava aobservação em detrimento do preconceito ideo‑lógico: «Neste admirável país que uma primaverainigualável cobre com as suas flores e a sua luz,há neste momento homens a sofrerem de fome ea clamarem por justiça. São sofrimentos que nãopodem deixar‑nos indiferentes, já que tambémos conhecemos.» O efeito combinado da secaprolongada e da exaustão das reservas de trigoapropriadaspelosalemãesduranteaguerratinhamconduzidoapopulaçãoárabeaumasituaçãopró‑ximadaindigência.Camusdenunciavaadiferençade critérios na distribuição das rações de emer‑gência: aos europeus, um décimo da população,era atribuído o dobro do que ficava reservado aosárabes. A razão profunda desta situação residiana obstinada recusa da França metropolitana emreconhecerosdireitosdospovosárabesedeoutrasetniasafricanas;ou,emalternativa,naresistênciadoscolonosbrancosàatribuiçãodanacionalidade

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francesa aos árabes que a desejassem. Camus via,nos contornos da crise, uma oportunidade paraassegurar, no quadro das instituições democrá‑ticas, uma transição que permitisse, sem ruturados laços tradicionais, a coexistência de árabes eargelinos de origem francesa. O elogio do movi‑mentomoderadodeFerhatAbbas,quereivindicavaum Estado argelino onde o parlamento refletisse,numa base paritária, os interesses de árabes ede franceses, denota a sua crença numa soluçãopartilhada que ainda ia a tempo de evitar malespiores. Mas a repressão pôs termo à iniciativa deAbbas e radicalizou o problema: dez anos depois,oconflitocivilseriaocoroláriológicodacegueirae da intransigência da metrópole.

A eclosão da guerra da Argélia, em finais de1954, a repressão subsequente e a passagem àluta armada decidida pela direção da Frente deLibertaçãoNacional(FLN),vãodeixá‑loàbeiradodesespero.Numacartaenviadaaomilitantesocia‑lista árabe Aziz Kessous, e publicada em outubrode1955,diz:«sofrodomaldaArgélia,comooutrossofrem dos pulmões.» E explica: «Aqui estamosnós, acirrados uns contra os outros, dedicados afazermos mal uns aos outros, implacavelmente.Esta ideia é‑me insuportável e envenena todos osdias da minha vida.» Mas, apesar disso, acreditano esforço dos democratas árabes e dos liberaisfranceses para conseguirem construir qualquercoisaqueescapeaesteturbilhãodesangue:«Queroacreditar, com todas as minhas forças, que a pazse há de elevar sobre os nossos campos, sobre asnossas montanhas, sobre as nossas costas, e queentão,enfim,ÁrabeseFranceses,reconciliadosna

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liberdade e na justiça, se esforçarão por esquecero sangue que hoje os separa.»

A sua última tentativa para fazer ouvir umapalavradepacificaçãonomeiodeumatormentadeódiosedeincompreensõesdeu‑sea22dejaneirode 1956 em Argel, no coração de uma «Argéliadespedaçada». Nessa noite, sob o olhar vigilantedoserviço deordem daFLN eperanteos gritos eimpropériosdeativistasdeextrema‑direita,Camusfez ouvir o seu «Apelo para uma trégua civil naArgélia», cuja ressonância, conhecendo‑se hoje odesenlaceposteriordaguerra,encerraacentosqua‑sepatéticos.Camusreconheceuentãoqueosdoispovosqueeleamavaseachavam«abraçadosapenasnum mesmo furor de morte». Por isso, o seu ape‑lo, fora de quaisquer considerações políticas, eratão‑só um gesto de «simples humanidade»: pediaaos dois lados em confronto que entre si aceitas‑sem uma trégua que visava poupar as populaçõescivisàsconsequênciasdoconflitoarmado.Porém,desseapelohumanitáriodeduziaanecessidadedeestender o espírito em que a trégua pudesse vir asercelebradaaumaespéciedediálogoconstrutivo,que admitia ser impossível nesse momento, masquecontinuavaareputarindispensável.Odiscurso,construído num tom angustiado que rondava odesespero, não foi bem acolhido; o apelo que eleveiculava caiu em saco roto e o seu autor foi de‑finitivamente ostracizado por árabes e franceses.Camussóvoltariaaintervirdoisanosdepois,pararesponderindiretamenteaosquelhecensuravamo silêncioa que se votaraperanteo evoluircatas‑tróficodosacontecimentos.Aopublicararecolhados seus principais textos sobre a Argélia, dos

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anos30aoApelode1956(Actuelles III, Chroniques algériennes, 1958),oescritorqueriadizerqueasuaabstenção não era uma forma de aval às políticasargelinas da Quarta República francesa, que nummomento(odeMendès‑France)defendera,masoreconhecimento da inutilidade dos seus esforçosapaziguadores e dos efeitos perversos da suaintervenção: Camus tornara‑se, para argelinos efranceses, um fator de irritação e de divergência,mais que um cauterizador de feridas antigas.Num texto de julho de 1954, Camus reproduziraodiscursoqueumdirigentenacionalistaárabelhefizera, logo a seguir à guerra: «Os nossos pioresinimigos não são os franceses colonialistas. Pelocontrário,sãoosfrancesescomoosenhor.Porque,enquanto os colonialistas nos dão uma imagemrevoltante mas verdadeira da França, você dá‑‑nos uma ideia enganadora, porque conciliatória.Enfraquece‑nos na nossa vontade de lutar. É‑nosmaisnocivoqueosoutros.»Comgrandepenasua,aprofeciatornara‑serealidadeeasuavoz,cercadaportodososlados,tornara‑seumempecilhoparanacionalistas e colonialistas; em Paris, era agoraindesejado (quando não, mesmo, ridicularizado)entreaesquerdabem‑pensante,indefetivelmentepró‑independentista.

A leitura do terceiro volume dos Carnets, quecobre o período entre 1951 e 1959, evidencia bemcomo Camus vai resvalando para uma solidãoque, mais que psicológica, é, sobretudo, de ordemética e moral: «se recusei sempre a mentira (porinapto que fosse para mentir, apesar dos meusesforços), é porque nunca pude aceitar a solidão.Mas agora é preciso aceitar também a solidão.»

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E como, persistente, apesar de todas as deceções,continuaacriarprojetos(deromances,denovelas,de ensaios, de peças de teatro) e a refletir sobrea condição do escritor: «escrever naturalmente.Publicar naturalmente e pagar o preço por tudoisto,naturalmente.»Emesboço,aprimeiraestru‑tura de Le premier homme, e a de algumas dasnovelasqueviráaintegraremL’exil et le royaume,sobretudo «Jonas», que é uma transposição emclave dramática do confronto entre o silêncio docriadoreoruídoinsuportáveldomundo.E,comoumaobsessão,esseprojeto,nuncaconcretizado,deescreverumapeçaquefosseocruzamentodedoismitos literários: o de Don Juan e o de Fausto.«Deagoraemdiante,acriação»,anota,emoutubrode1953.Umanodepois,visitaaHolanda,quelheproporciona um cenário: começa a definir‑se aideia de uma narrativa que tratasse da culpa e daexpiação(temaque,apenasnaaparência,retomaode La mort heureuse, e, sobretudo, de L’étranger).La chute,queerainicialmenteumanovelaa inte‑grar em L’exil et le royaume, ganha rapidamenteautonomiaeocupaocentrodassuaspreocupaçõesliteráriasduranteoanode1955:olivroserápubli‑cado na primavera de 1956. Certas anotações dosCarnets e alguns esclarecimentos de Camus, ementrevistas posteriores à publicação, autorizam ainterpretarLa chute,emprimeirainstância,comoumaarmadearremessocontraa«selvaparisiense»,os existencialistas, os comunistas e todos aquelesque,reconhecendoemboraopecado,«serecusamaconcederoperdão»—«novos‑ricosefariseusdajustiça», essencialmente «desleais», como Sartre.Mas a parábola do anjo caído em desgraça é de

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alcance universal, embora seguramente não nosentidoemquecertacríticacristão julgou:comoumareencenaçãodopecadooriginaledarespetivaexpiação perpétua. Até porque, como EduardoLourençoassinalou,«que[Clamence]tenha‘caído’de um qualquer paraíso ou não, que o ‘pecado’tenhasidoaescadasemtravessasporondedesceu,não lhe [Camus] interessa» (Lourenço, p. 58). Setodaaquedaimplicaumparaísoanterior,eledeveantes ser procurado nas praias de Argel agoraparasempreperdidas,numaespéciedeinocênciaprimordial que alimentava a consciência solar docorpo e a intensa cintilação da alegria. O trajetomoral de Clamence lembra singularmente o dopróprio Camus.

Apesar do enorme sucesso editorial (mais de100 mil exemplares vendidos em seis meses), La chute passa por ser o mais enigmático e ambíguodos textos ficcionais de Camus, nisto aliás coinci‑dindo com as dilacerações íntimas do escritor,nesta fase da sua vida. Quem é Clamence, Jean‑‑Baptiste,umavozinfatigávelpregandonodesertodos homens? E o seu interlocutor, mudo espelhoque partilha, por omissão, as responsabilidadesde Clamence, as suas aspirações, as suas faltas eo seu «crime»? E a perdição de Clamence corres‑ponde a uma punição real ou a uma espécie deautoflagelação exibicionista, que exalta mais doquecorrompeaimagemdoantigoadvogadopari‑siense («sempre rebentei de vaidade»)? «Tudo éverdadeiro ou tudo é falso: o leitor é apanhadonuma vertigem entre estas duas possibilidadesextremas», como assinala Pierre‑Louis Rey. Ado‑tando a estrutura do «monólogo dramático», a

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novela de Camus desbobina, pela voz única deClamence (a presença, meramente virtual, deum interlocutor é sinalizada pelo próprio narra‑dor), um fio narrativo que mistura êxitos sociais(profissionais, sexuais, económicos), vividos numpassado nebuloso, com perplexidades presentes,a «legenda aurea» de um bem‑sucedido e bem‑‑parecidoadvogadodePariscomosórdidoanoni‑mato voluntário de um «juiz‑penitente» entreas quatro paredes de um bar de marinheiros noporto de Amesterdão. Entre as luzes da capitalfrancesaeasbrumasviscosasdacidadedoscanaisque sugerem, à maneira de Dante, os círculos doInferno, o percurso de Clamence vai no sentidode uma expiação que, no entanto, nunca pareceimposta por um sentido universal de justiça, maspela exploração narcísica da sua capacidade de sefazer sofrer—e de fazer sofrer os outros com ele:«Cada homem é testemunha do crime de todosos outros, eis a minha fé e a minha esperança.»Por isso, transforma‑se em «juiz‑penitente», queentende dever confessar a sua miséria de forma apoder julgar a miséria dos outros.2 O que o movenão é o instinto de salvação, mas a afirmação doseu poder de corrupção do mundo: «compreendientão, de tanto escavar na minha memória, quea modéstia me ajudava a brilhar, a humildade avencer e a virtude a oprimir.»

2 O leitor é livre de ver aqui uma não muito velada alusão aosheróisintelectuaisdaqueletempo,comSartreàcabeça,sebemque,neste,ahumildadedapenitênciasejasubstituídapeloritualdaautocríticarevolucionária.

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Clamenceéum«comediantetrágico»(palavrade Camus); a sua confissão sem arrependimento(as consequências do episódio que o faz mudarde vida, cuja descrição é adiada até exatamenteo meio do livro, são para ele mais fortes que oescândalodasuacobardia)é,emtodososregistos(inclusivamenteoirónico),umdiscursoquenãosetransformanecessariamenteemação—La chuteéum«dramaestático»quesóexistenaspalavrasdeClamence:«éprecisoqueaconteçaqualquercoisa,e esta é a explicação da maior parte das açõeshumanas.» O seu estilo resvala frequentementepara o grandiloquente e o retórico e não se dis‑pensa sequer de algumas belas flores de recorteclássico. Sobre a morte: «Mais la terre est obs‑cure, cher ami, le bois épais, opaque le linceuil.»3Por vezes, é como se ouvíssemos a voz de CamusatravésdafanfarronadaomniscientedeClamence,debitada com recurso a máximas e aforismos quepodemosencontrar,quaseipsis verbis,naspáginasdosCarnets.Masnãoéprincipalmentedele,dasuacircunstância,queolivrotrata(ouapenasindire‑tamente), antes da generalização do Mal e da suahegemoniairreversívelsobreomundo.Clamencefala da condição humana. E a condição humana édesesperada.

Seaconsciênciadoabsurdoera,emMeursault,um escândalo e uma injustiça, a consciência daculpa torna‑se, em Clamence, um exercício deresponsabilização coletiva—todos são cúmplices,

3 «Masaterraéobscura,caroamigo,obosqueédenso,opacaéamortalha.»

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ninguéméinocente.Vistomuitasvezescomoumanti‑Meursault,Clamencesóoénamedidaemqueopõeàmáximainocênciaamáximaculpabilidade:mas o impasse é idêntico, porque também ele é«um falso profeta que grita no meio do deserto ese recusa a partir». Talvez Camus se visse assim,isolado nas suas convicções obstinadas e numacerta retidão moral que o distinguia dos outros.Escrito no meio de uma intensa crise psicológicae moral, La chute é ainda um tributo literário aDostoiewski e à sua galeria de seres consumidosna fogueira dos absolutos morais: «Ah, meu caro,para quem está só, sem Deus e sem chefe, o pesodos dias é terrível.»

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«O melhor homem de França»

Poucos dias depois de ter conhecido AlbertCamus,naprimaverade1952,aensaístaamericanade origem alemã Hannah Arendt escrevia, numacartaenviadaaomaridoparaNovaIorque:«[Camus]é,semdúvida,omelhorhomemdeFrança,nomo‑mento atual. Ultrapassa de longe todos os outrosintelectuais.» Arendt seguia desde há muito opercurso do autor de L’étranger: em 1946, numensaio publicado na revista The Nation, apresen‑tara aos leitores americanos os «existencialistas»franceses,comdestaqueparaSartreeCamus;mastiveraocuidadodesublinharqueCamusrejeitavaessaetiqueta(Sartre,apropósito,tambémnegavaqueCamusfosseexistencialista).ArendttemiaquetantoelecomoSartrenãofossemcapazesdeviraultrapassaroniilismo«percetívelnassuasconce‑ções,apesardetodasasafirmaçõesemcontrário».AleituradeL’homme révolté iadar‑lheumaoutraperspetivasobreaobradoseuautor.Comsurpresa,atendendoàsreticênciasquedeixarasuspensasnoseuartigoemThe Nation,HannahArendtdescobria

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umespíritoanimadodomesmosentidodeincon‑dicionalresistênciaaostotalitarismosquealevaraa escrever o seu magistral The Origins of Totali‑tarianism, publicado em 1951, mas não traduzidoem França (de facto, a obra só conheceria versãofrancesanofinaldadécadade70,aomesmotempoquesaíaatraduçãoportuguesa).Camusnãopodiaconhecer,portanto,aobradeArendt,edoencontroentreosdoisnãoficouqualquerregistonospapéispessoais do escritor. Nessa altura, já «o melhorhomem de França» se encontrava sob o fogocruzado dos intelectuais arregimentados, compredominância dos que se alinhavam à esquerda,na esteira ou ao lado do Partido Comunista.Ascoincidênciaseaproximaçõesentreosdoisinte‑lectuaispermitemimaginarqueambosteriamganhoem conhecer‑se melhor: na dura crise de meadosdos anos 50, Camus gostaria de ter sentido a seuladoapresençadaúnicagrandepensadoraquesededicara a estudar e analisar as raízes comuns donazismoedoestalinismo(tesequeelepartilhava,comoutrosargumentos),muitoantesdeKruschevterentreaberto,aindaquefugazmente,ajaneladadesestalinização.

Porque Camus, que uma década antes tinha àsua volta uma corte de admiradores nem sempredesinteressados, tornara‑se agora uma espéciede «pária» da esquerda, um intelectual sem casaideológica nem lugar previsível, um homem sóqueevitavaoscírculosparisiensesondesefaziame desfaziam opiniões, ao sabor das conveniênciaspolíticas do tempo. Antes mesmo de escreverLa chute,oescritorandavaatrabalharnumasériede narrativas curtas («novelas ao estilo francês»)

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a que dera o título (provisório) de Nouvelles de l’exil, mas que acabará por se chamar L’exil et le royaume. A urgência de La chute, talvez desenca‑deada pela (brevíssima) visita a Amesterdão, fezcomquefosseestelivroasairprimeiro.L’exil et le royaumesóconheceualuzdodiaem1957,poucosmesesantesdeaAcademiaSuecadecidiratribuira Camus o Prémio Nobel da Literatura.

Apesar do convencionalismo da narrativa e deuma certa transparência da metáfora, é habitual‑mente«Jonasoul’artisteautravail»,openúltimotexto de L’exil et le royaume, que concita asmaiores atenções críticas. Gilbert Jonas, pintormais por voluntarismo do que por vocação, umavez atingida uma certa notoriedade, vai sendoprogressivamentecercadopelasmúltiplassolicita‑çõesdomundo(família,amigos,discípulos),queoimpedemdecriarnoisolamentoindispensávelaoartista:«eradifícilpintaromundoeoshomens,e,ao mesmo tempo, conviver com eles.» Após umabreve «descida aos infernos» que quase põe emrisco o equilíbrio da sua rotineira vida familiar,Jonasresolveretirar‑separaumcantoelevadodeumadasdivisõesdoapartamento,eaí,apósmuitosdiasdemeditaçãoqueoconsomemeconsomemosseus próximos, acaba por produzir uma tela todapintada de branco, na qual figura a negro apenasuma palavra, de sentido impercetível a olho nu:solitárioousolidário?Acríticaviunestanarrativarelativamente frouxa, bem menos tensa e cons‑truídadoque«Lafemmeadultère»,aprimeiradarecolha, ou «La Pierre qui pousse», a última, umemblema do dilema moral com o qual Camus seconfrontava na altura. A decisão de se afastar da

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vida intelectual parisiense e de viver na provín‑cia, conjugada com o silêncio por que optara, emrelação à guerra da Argélia, encorajaram alguns areconhecerumregistoautobiográficonanarrativadasortedeJonas.Écertoqueoescritorsedebatiaentão com os constrangimentos de um meio en‑volventequeosufocavaeque,queixava‑seelenosCarnets,quasenãolhedeixavaespaçopararespirarartisticamente. É natural que essa circunstânciapessoaltenhainfluídonaconstruçãodanarrativa.Mas o significado pessoal profundo (a existir) doconto talvez deva ser procurado na epígrafe, umacitaçãodoepisódiobíblicoemqueJonasincitaospescadoresdomardaGalileiaadeitarem‑nobordafora,porqueéeleacausadatempestadequerefleteairadeDeus.Nãoexisteconsonânciaóbviaentreacitaçãoeotextode«Jonas»,amenosqueseinter‑preteoseuquadrobrancocomoumadespedidadacriaçãoartística,quandonãomesmodavida.Ora,nadaestavamaislongedasintençõesdeCamusdoqueumaqualquerdesistência,artísticaouvital.Jáacitaçãoparecemaispróximadaquiloqueseriaoseu estado de espírito nesta época: a consciênciade estar a mais e de contribuir para desencadeartempestades mais do que para as apaziguar. Numartigo sobre Hermann Melville (um dos seus au‑toresdereferência),publicadoem1952,Camusjáfalavada«irresistívellógicaqueacabaporcolocarohomemjustoprimeirocontraacriaçãoeocria‑dor,depoiscontraosseussemelhantesecontrasipróprio» (citado por Grenier, p. 307). Talvez istosejaapenasumapartedahistória:homemíntegro,Camustinhaaconsciênciadasuaintegridade,quevertia numa prosa imperativa, definitiva, quase

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executória. Tanto quanto a heterodoxia das suasposições, o tom em que as torna públicas parecepor vezes desproporcionado em relação ao lugarqueocupavanacenacultural(epolítica)francesa.As acusações de arrogância que muitos, mesmopróximos, lhe dirigiram têm raiz nessa espécie deorgulhoquesedeclinana(constante)reivindicaçãodas suas origens humildes, na intransigência dasua visão do mundo, na inclinação para pensarsistematicamente contra a corrente.

L’exil et le royaume foi a última obra ficcionalpublicada em vida de Albert Camus (La mort heureuseeLe premier hommesãopóstumos).Talvezporisso,muitostenderamavernelaumaespéciede«testamentoartístico»doautor,oquenemaidade(tinha44anos)nemascircunstâncias(osCarnetsmostramquetinhaprojetosliteráriosquedariamparaoutravida)autorizam.Àexceçãode«Jonas»,asnovelasdeL’exil et le royaumeaproximam‑se,napaisagem, no enquadramento geográfico, culturale afetivo, de L’envers et l’endroit e de Noces, cujarepublicaçãoautorizariafinalmenteem1958:todoselespreparamomergulhoen arrièredeLe premier homme,quejácomeçaraaescreverporessaaltura.Como diz no prefácio a L’envers et l’endroit,«éparamimclaroqueaminhafonteestá[…]nessemundo de pobreza e de luz em que vivi durantemuitotempoecujarecordaçãomepreservaaindadosdoisperigoscontráriosqueameaçamoartista,o ressentimento e a satisfação.».

Sabe‑seque,maisqueoassédioinevitávelquea distinção ia causar, Camus temeu que o PrémioNobelsignificassequeomelhordasuaobraestavajáparatrás.Tinhaasdúvidasprópriasdocriador,

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porventura agravadas pelo fogo de barragem quea crítica «progressista» e os seus antigos amigosexistencialistas não deixavam esmorecer. Nem oPrémiodeEstocolmoosaplacou.NodiscursoquepronunciouperanteaAcademiasueca,noentanto,o seu desmentido do dilema final de «Jonas» nãopodia ser mais evidente: «A arte não é, a meusolhos, uma satisfação solitária. É um meio paracomover o maior número possível de homensoferecendo‑lhesumaimagemprivilegiadadossofri‑mentos e das alegrias comuns. Obriga, por isso, oartistaanãoseisolar;esubmete‑oàverdademaishumilde e mais universal.» E, logo a seguir:«Oartistaforja‑senestevaivémperpétuoentreelee os outros, a meio caminho da beleza sem a qualnãopodeviveredacomunidadedaqualéincapazdesesubtrair.»Um«vaivémpermanenteentreeleeosoutros».Solitárioesolidário,claro.«Solitárioesolidárionasuacidade»,escreveraem1955,naspáginasdeL’express.PorqueCamusnãoéJonas,anão ser na consciência da sua incomodidade.

A concluir o seu discurso de aceitação doNobel, Camus proclamava a sua confiança notriunfo da vida e da esperança: «alguns dirãoque esta esperança é transportada por um povo,outros que por um homem. Pelo contrário, creioque ela é suscitada, reanimada, sustentada, pormilhões de solitários, cujas ações e obras, todosos dias, negam as fronteiras e as mais grosseirasaparências da História…» Tudo indica que, até aofimimprevisível,Camusviveuasuasolidãocomoumacondiçãonecessáriaparacontinuaraafirmara sua solidariedade essencial com os homens domundo inteiro, em particular com aqueles «que

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sofrem a História». Dissera‑o nas Lettres à un ami allemand,de1945:«Oqueéohomem?Éessaforça que acabará sempre por abalar os tiranos eos deuses.»

A Academia sueca fora sensível aos valoreshumanos da sua obra e do seu percurso cívico.Pode ser, também, que não lhe tenha escapadoa oportunidade de distinguir um dos poucosintelectuais de esquerda que se opunham aberta‑mente às ideologias da moda, em plena guerrafria:oterceiro‑mundismoeocomunismo.Porque,reclamando‑seemboraeatéaofimdeumapulsãolibertária que o aproximava de uma espécie deanarcossindicalismo(sem,noentanto,ofazerres‑valarparaoanarquismo),CamusperceberaqueamaiorameaçaaofuturodoHomemeraatentaçãodo totalitarismo e da violência: a primeira era ocorolário inevitável das revoluções que «fazemaHistória»;asegundaoúltimorefúgiodosexplo‑radosqueasofrem.Erecusava‑se,deacordocomos seus princípios libertários, a encontrar nas«grandesnarrativas»,quesubsumiamoparticularnumuniversaldecátedra,asolução«global»paraquestõesqueassumiamcontornosdiferentescon‑soante as latitudes em que se revelavam. «Camuspropõeumamicrologiapolítica,escreveofilósofoMichelOnfray,nummundohabituadoàsenormesmáquinasideológicaseaosseusdispositivosdou‑trinais monstruosos» (Onfray, p. 416).

Quasequatrodécadasdepoisdasuamorte,em1994, na crítica que publicou na The New York Review of Books quando da saída em França deLe premier homme,oensaístainglêsTonyJudtreco‑nhecia que à França faltava então a «autoridade

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moral» de uma voz como a de Camus. De ondevinha essa autoridade? «Camus sempre se preo‑cupou […] com o risco de perder o contacto, decortar as raízes antes mesmo de as conhecercompletamente.Efoiestaintuição,essencialmentepsicológica,dacondiçãodointelectualsemrotade‑finidaqueajudouadaràéticadoslimitesedares‑ponsabilidadedeCamusasuapeculiarautoridade»(Judt, p. 103). Porém, este reconhecimento, quepassaratantoporumareleituraatentadaobradeCamusquantopelaruínaefetiva(istoé,histórica)dossistemasqueelecondenara,sóchegoumuitosanosdepoisdasuamorte.Écertoqueassuasobrascapitais (L’étranger, La peste, La chute) semprefiguraram nos programas escolares, talvez maispela qualidade luminosa da sua escrita, avessa aexperimentalismosebemancoradanatradiçãodosmoralistasfranceses,doquepelaatratividadedassuas,porvezesenigmáticas,ideias.Oconhecimen‑to do seu trajeto ético e político tinha‑o nimbadode uma aura de intocabilidade, que contrastavasingularmente com as cedências e compromissosduvidosos de muitos dos seus contemporâneos.Em Camus reconhecera‑se, enfim, «uma cons‑ciência,ogostodaverdade,eodorisco»(Mertens,p. 97). A estatura moral do homem público, sempoder constituir modelo para ninguém, porqueele fora um caso único, tornou‑se um referentedeindependênciaedeautonomiadepensamento.Semdiscípulosnemseguidores,entregueapenasauma pequena corte de amigos, a memória da suaobra e do seu percurso sobreviveu aos acidentesda História, dos quais a tragédia argelina não foio menor. Michel Onfray elogia‑lhe a fidelidade a

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valores e pessoas que fizeram parte da sua vidacomo o traço distintivo do seu caráter e da suaobra:«Escolheuafidelidadeaopaimortoeàmãeemudecida, por outras palavras, inscreveu a suareflexãoeasuavidanalutacontraa injustiçaeoexercício do pensamento ao lado dos desfavore‑cidos.» (Onfray, p. 33). No prefácio que antepôs àreedição de L’envers et l’endroit, em 1958, Camusescreve: «Sei, de ciência certa, que a obra de umhomem se reduz a essa longa caminhada parareencontrar,pelosdesvãosdaarte,asduasoutrêsimagenssimplesegrandessobreasquaisocoraçãopela primeira vez se abriu.» Imagens simples: amãe,aterra,aescassez,osol.Umaclaraexaltaçãodo essencial de uma vida, a alegria possível, a suapromessa de felicidade.

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BibliografiaObras de Camus

L’envers et l’endroit [1937], Paris, Folio, Gallimard, 1986.Noces suivi de L’Été[1939,1953],Paris,Folio,Gallimard,1972.L’étranger [1942], Paris, Folio, Gallimard, 1972.O Mito de Sísifo [1942], trad. Urbano Tavares Rodrigues e

Ana de Freitas, Lisboa, Livros do Brasil, s. d.Calígula seguido de O Equívoco [1944], trad. Raul de Car‑

valho, Lisboa, Livros do Brasil, 2002.La peste [1947], Paris, Folio, Gallimard, 1972.La chute [1956], Paris, Folio, Gallimard, 1972.Discours de Suède [1958], Paris, Folio, Gallimard, 1997.La mort heureuse [1971] Paris, Folio, Gallimard, 2009.Le premier homme, Paris, Gallimard, 1994.

Sobre Camus

Beauvoir, Simone de, La force de l’âge [1960], Paris, Lelivre de poche, Gallimard, 1969.

Boone, Danièle, Camus, Paris, Henri Veyrier, 1987.Castex,Pierre‑Georges,Albert Camus etL’Étranger,Paris,

José Corti, 1965.Finkielkraut,Alainet alii,Albert Camus, la pensée révol‑

tée, Philosophie Magazine, hors‑série n.º 17, abril‑maio 2013.Grenier,Roger,Albert Camus, soleil et ombre,Paris,Folio,

Gallimard, 1991.Guérin,Jeanyves(dir.),Dictionnaire Camus,Paris,Robert

Laffont, 2009.Judt, Tony, Reappraisals, Reflections on the Forgotten

Twentieth Century, Londres, William Heinemann, 2008.Lottman, Herbert R., Albert Camus, Paris, Seuil, 1978.Lourenço, Eduardo, Heterodoxia II, Coimbra, Coimbra

Editora, 1967.Mathias,MarcelloDuarte,A Felicidade em Albert Camus

[1975], Lisboa, Dom Quixote, 2013 [3.ª edição, que inclui umaextensa bibliografia passiva de Camus].

Mertens,Pierre,L’Agent double,Bruxelas,EditionsCom‑plexe, 1989.

Onfray, Michel, L’Ordre libertaire, la vie philosophique d’Albert Camus, Paris, Flammarion, 2012.

Simon,Pierre‑Henri,L’homme en procès,Paris,Payot,1967.

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O Essencial sobre

1 Irene Lisboa Paula Morão

2 Antero de Quental Ana Maria A. Martins

3 A Formação da Nacionalidade

Ana Maria A. Martins

4 A Condição Feminina Maria Antónia Palla

5 A Cultura Medieval Portuguesa (Sécs. XI e XIV) Maria Antónia Palla

6 Os Elementos Fundamentais da Cultura

Jorge Dias

7 Josefa d’Óbidos Vítor Serrão

8 Mário de Sá Carneiro Clara Rocha

9 Fernando Pessoa Maria José de Lancastre

10 Gil Vicente Stephen Reckert

11 O Corso e a Pirataria Ana Maria P. Ferreira

12 Os «Bebés-proveta» Clara Pinto Correia

13 Carolina Michaëlis de Vasconcelos Maria Assunção Pinto Correia

14 O Cancro José Conde

15 A Constituição Portuguesa Jorge Miranda

16 O Coração Fernando de Pádua (2.ªedição)

17 Cesário Verde Joel Serrão

18 Alceu e Safo Albano Martins

19 O Romanceiro Tradicional J. David Pinto‑Correia

20 O Tratado de Windsor Luís Adão da Fonseca

21 Os Doze de Inglaterra A. de Magalhães Basto

22 Vitorino Nemésio David‑Mourão Ferreira

23 O Litoral Português Ilídio Alves de Araújo

24 Os Provérbios Medievais Portugueses

José Mattoso

25 A Arquitectura Barroca em Portugal Paulo Varela Gomes

26 Eugénio de Andrade Luís Miguel Nava

27 Nuno Gonçalves Dagoberto Markl

28 Metafísica António Marques

29 Cristóvão Colombo e os Portugueses

Avelino Teixeira da Mota

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30 Jorge de Sena Jorge Fazenda Lourenço

31 Bartolomeu Dias Luís Adão da Fonseca

32 Jaime Cortesão José Manuel Garcia

33 José Saramago Maria Alzira Seixo

34 André Falcão de Resende Américo da Costa Ramalho

35 Drogas e Drogados Aureliano da Fonseca

36 Portugal e a Liberdade dos Mares

Ana Maria Pereira Ferreira

37 A Teoria da Relatividade António Brotas

38 Fernando Lopes Graça Mário Vieira de Carvalho

39 Ramalho Ortigão Maria João L. Ortigão

de Oliveira

40 Fidelino de Figueiredo A. Soares Amora

41 A História das Matemáticas em Portugal

J. Tiago de Oliveira

42 Camilo João Bigotte Chorão

43 Jaime Batalha Reis Maria José Marinho

44 Francisco de Lacerda J. Bettencourt da Câmara

45 A Imprensa em Portugal João L. de Moraes Rocha

46 Raul Brandão A. M. B. Machado Pires

47 Teixeira de Pascoaes Maria das Graças Moreira de Sá

48 A Música Portuguesa para Canto e Piano

José Bettencourt da Câmara

49 Santo António de Lisboa Maria de Lourdes Sirgado

Ganho

50 Tomaz de Figueiredo João Bigotte Chorão

51/ Eça de Queirós52 Carlos Reis

53 Guerra Junqueiro António Cândido Franco

54 José Régio Eugénio Lisboa

55 António Nobre José Carlos Seabra Pereira

56 Almeida Garrett Ofélia Paiva Monteiro

57 A Música Tradicional Portuguesa

José Bettencourt da Câmara

58 Saúl Dias/Júlio Isabel Vaz Ponce de Leão

59 Delfim Santos Maria de Lourdes Sirgado

Ganho

60 Fialho de Almeida António Cândido Franco

61 Sampaio (Bruno) Joaquim Domingues

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62 O Cancioneiro Narrativo Tradicional

Carlos Nogueira

63 Martinho de Mendonça Luís Manuel A. V. Bernardo

64 Oliveira Martins Guilherme d’Oliveira Mar‑

tins

65 O Teatro Luso-Brasileiro Duarte Ivo Cruz

66 Almada Negreiros José‑Augusto França

67 Eduardo Lourenço Miguel Real

68 D. António Ferreira Gomes Arnaldo de Pinho

69 Mouzinho da Silveira A. do Carmo Reis

70 O Teatro Luso-Brasileiro Duarte Ivo Cruz

71 A Literatura de Cordel Portuguesa

Carlos Nogueira

72 Sílvio Lima Carlos Leone

73 Wenceslau de Moraes Ana Paula Laborinho

74 Amadeo de Souza-Cardoso José‑Augusto França

75 Adolfo Casais Monteiro Carlos Leone

76 Jaime Salazar Sampaio Duarte Ivo Cruz

77 Estrangeirados no Século XX

Ana Paula Laborinho

78 Filosofia Política Medieval Paulo Ferreira da Cunha

79 Rafael Bordalo Pinheiro José‑Augusto França

80 D. João da Câmara Luiz Francisco Rebello

81 Francisco de Holanda Maria de Lourdes Sirgado

Ganho

82 Filosofia Política Moderna Paulo Ferreira da Cunha

83 Agostinho da Silva Romana Valente Pinho

84 Filosofia Política da Antiguidade Clássica Paulo Ferreira da Cunha

85 O Romance Histórico Rogério Miguel Puga

86 Filosofia Política Liberal e Social

Paulo Ferreira da Cunha

87 Filosofia Política Romântica

Paulo Ferreira da Cunha

88 Fernando Gil Paulo Tunhas

89 António de Navarro Martim de Gouveia e Sousa

90 Eudoro de Sousa Luís Lóia

91 Bernardim Ribeiro António Cândido Franco

92 Columbano Bordalo Pinheiro

José‑Augusto França

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93 Averróis Catarina Belo

94 António Pedro José‑Augusto França

95 Sottomayor Cardia Carlos Leone

96 Camilo Pessanha Paulo Franchetti

97 António José Brandão AnaPaulaLoureirodeSousa

98 Democracia Carlos Leone

99 A Ópera em Portugal Manuel Ivo Cruz

100 A Filosofia Portuguesa (Séculos XIX e XX)

António Braz Teixeira

101/ O Padre António Vieira102 Aníbal Pinto de Castro

103 A História da Universidade Guilherme Braga da Cruz

104 José Malhoa José‑Augusto França

105 Silvestre Pinheiro Ferreira José Esteves Pereira

106 António Sérgio Carlos Leone

107 Vieira de Almeida Luís Manuel A. V. Bernardo

108 Crítica Literária Portuguesa (até 1940)

Carlos Leone

109 Filosofia Política Contemporânea (1887-1939) Paulo Ferreira da Cunha

110 Filosofia Política Contemporânea (desde 1940) Paulo Ferreira da Cunha

111 O Cancioneiro Infantil e Juvenil de Transmissão Oral

Carlos Nogueira

112 Ritmanálise Rodrigo Sobral Cunha

113 Política de Língua Paulo Feytor Pinto

114 O Tema da Índia no Teatro Português

Duarte Ivo Cruz

115 A I República e a Constituição de 1911

Paulo Ferreira da Cunha

116 O Capital Social Jorge Almeida

117 O Fim do Império Soviético José Milhazes

118 Álvaro Siza Vieira Margarida da Cunha Belém

119 Eduardo Souto Moura Margarida da Cunha Belém

120 William Shakespeare Mário Avelar

121 Cooperativas Rui Namorado

122 Marcel Proust António Mega Ferreira

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O livro o essencial sobrealbert camusé uma edição da

imprensa nacional-casa da moedatem como autor

antónio mega ferreirarevisão de

inês batista (incm)design e capa do atelier

silvadesignerse paginação

incm.Tem o isbn 978-972-27-2251-3

e depósito legal 365 797/13.A edição de 1000 exemplares

acabou de ser impressa no mês de novembrodo ano dois mil e treze.

cód. 1019817

www.incm.ptwww.facebook.com/INCM.Livros

[email protected]

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