24
253 DO TEXTO BÍBLICO A PORTINARI: UMA LEITURA INTER E INTRAMIDIÁTICA DE A FUGA PARA O EGITO Sigrid Renaux (UNIANDRADE) Introdução O diálogo entre a Literatura e as artes visuais, ou seja, o estudo inte- rartes, já se estabeleceu como um dos grandes e inesgotáveis campos de pesquisa para aprofundarmos nossa reflexão crítica sobre tradução interse- miótica, com o auxílio dos estudos teóricos intermidiáticos. Entre as artes visuais – principalmente pintura, escultura e gravura – essas relações se tornam particularmente instigantes ao lembrarmos como, a partir do cristia- nismo, a vertente maior da arte europeia foi gradualmente sendo dedicada à Igreja; e toda a enorme herança europeia de arte medieval, renascentista e mesmo barroca é principalmente religiosa em sua função, mesmo que não tenha sido produzida para a Igreja (WHELPTON, 1970, p. 51). Seja na arte carolíngia, na escultura e arquitetura românicas, nas catedrais góticas com seus imensos portais e vitrais coloridos, nos afrescos e mosaicos, nas tape- çarias e iluminuras, os temas bíblicos apresentam suas mensagens, convi- vendo assim com temas da mitologia grega e romana que continuavam a atrair os artistas, pois supunha-se que o público conhecesse tanto. A partir dessa perspectiva, o objetivo deste artigo é verificar como o episódio da Fuga da Sagrada Família para o Egito – relatado no Evangelho de São Mateus, cap. II, v. 13-23 e tema frequente na arte cristã desde a Anti- guidade tardia – foi retratado por pintores europeus a partir do século XIII, e, especificamente, por Giotto e Fra Angelico, a fim de poder melhor avaliar o impacto que texto e pinturas tiveram sobre Candido Portinari, entre outros

DO TEXTO BÍBLICO A PORTINARI: UMA LEITURA INTER E ... · O manto amarelo-escuro de José cor que simboliza o sol, amor, constância além de oferecer contraste com a túnica vermelha

  • Upload
    ngohanh

  • View
    212

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

253

DO TEXTO BÍBLICO A PORTINARI: UMA LEITURA INTER E INTRAMIDIÁTICA DE A

FUGA PARA O EGITO

Sigrid Renaux (Uniandrade)

Introdução

O diálogo entre a Literatura e as artes visuais, ou seja, o estudo inte-rartes, já se estabeleceu como um dos grandes e inesgotáveis campos de pesquisa para aprofundarmos nossa reflexão crítica sobre tradução interse-miótica, com o auxílio dos estudos teóricos intermidiáticos. Entre as artes visuais – principalmente pintura, escultura e gravura – essas relações se tornam particularmente instigantes ao lembrarmos como, a partir do cristia-nismo, a vertente maior da arte europeia foi gradualmente sendo dedicada à Igreja; e toda a enorme herança europeia de arte medieval, renascentista e mesmo barroca é principalmente religiosa em sua função, mesmo que não tenha sido produzida para a Igreja (WHELPTON, 1970, p. 51). Seja na arte carolíngia, na escultura e arquitetura românicas, nas catedrais góticas com seus imensos portais e vitrais coloridos, nos afrescos e mosaicos, nas tape-çarias e iluminuras, os temas bíblicos apresentam suas mensagens, convi-vendo assim com temas da mitologia grega e romana que continuavam a atrair os artistas, pois supunha-se que o público conhecesse tanto.

A partir dessa perspectiva, o objetivo deste artigo é verificar como o episódio da Fuga da Sagrada Família para o Egito – relatado no Evangelho de São Mateus, cap. II, v. 13-23 e tema frequente na arte cristã desde a Anti-guidade tardia – foi retratado por pintores europeus a partir do século XIII, e, especificamente, por Giotto e Fra Angelico, a fim de poder melhor avaliar o impacto que texto e pinturas tiveram sobre Candido Portinari, entre outros

254 assim transitam os textos:

artistas brasileiros. Dessa maneira, analisando a transposição intramidiática dessas pinturas renascentistas para as telas, desenhos e afrescos de Por-tinari, obteríamos uma compreensão melhor de como ele absorveu e rein-terpretou o texto bíblico, estabelecendo, simultaneamente, um dialogismo entre o tema bíblico com temas da cultura e da história brasileiras.

O texto bíblico: A fuga para o Egito

O episódio da Fuga para o Egito – no qual José, com sua esposa Maria e seu filho recém-nascido Jesus fogem para o Egito após a Adoração dos Reis Magos, quando ficaram sabendo que o rei Herodes planejava matar todos os recém-nascidos da região – é descrito no Evangelho de São Mateus, primeiro livro do Novo Testamento. Este evangelho sinótico é um relato da vida, ministério, morte e ressurreição de Jesus de Nazaré. O capítulo 2, con-siderado o episódio final da Natividade, é geralmente dividido em quatro seções: A visita dos magos guiados pela Estrela de Belém (Mateus 2:1-12), a Fuga para o Egito (Mateus 2:13-15), o Massacre dos Inocentes (Mateus 2:16-18) e o Retorno do jovem Jesus a Nazaré depois da morte de Herodes (Mateus 2:19-23). Como o episódio do Fuga para o Egito consta em Mateus,

2:13. Depois que eles partiram, apareceu a José um anjo do Senhor, dizendo: “Levanta, toma o menino e sua mãe, e foge para o Egito; permanece lá até que eu te avise, porque Herodes procurará o menino para o matar.2:14.Levantou-se de noite, tomou o menino e sua mãe e retirou-se para o Egito,2:15. onde permaneceu até a morte de Herodes, a fim de se cumprir o que fôra dito pelo Senhor por meio do profeta: ‘Do Egito chamei o Meu filho.’” (BIBLIA, 1967, p. 10)

O tema da Fuga para o Egito tornou-se frequente na arte cristã, valorizado, nas artes visuais, por meio das transposições do texto bíblico para as obras dos grandes mestres da pintura europeia. Como afirma Anne-Marie Christin, “o objetivo da imagem cristã é da mesma ordem que o da imagem retórica: é preciso seduzir e convencer” (2006, p. 84).

255ensaios sobre intermidialidade

Transposições intermidiáticas: do texto bíblico à pintura de Giotto

Iniciamos a transposição pictórica – do texto bíblico, como “texto fonte verbal” (CLÜVER, 2006, p. 140) ao afresco, retábulo ou tela e, portanto, intermidiática – a partir de Giotto (1267-1337), considerado “o fundador de toda a pintura moderna e o pai da Renascença italiana” (CUMMING, 1995, p. 11). A representação da Fuga para o Egito, que se encontra na Capela Arena dos Scrovegni (Figs. 1 e 2) em Pádua, foi pintada entre 1305 e 1306. É uma das cenas mais famosas do ciclo de afrescos sobre a Vida da Virgem e de Cristo, ciclo este que se tornou obra fundamental para compreender a evolução da pintura europeia. Como comenta Cumming, “Todas as pinturas da Capela são afrescos verdadeiros, isto é, pintados diretamente na parede da capela enquanto a argamassa ainda estava úmida, tornando-se assim parte integral do edifício” (1995, p. 10), demonstrando assim igualmente o vínculo profundo estabelecido entre esses afrescos e a religião cristã:

Fig. 1: https://pt.wikipedia.org/wiki/

Fig. 2: www.google.com.br

256 assim transitam os textos:

O afresco (Fig. 3) representa José, Maria e Jesus Menino fugindo para o Egito para evitar a perseguição de Herodes:

Maria, montada numa jumenta, segura o Menino, protetoramente, envolto num lenço amarrado por cima de seus ombros; José lidera o caminho e, sob seu manto, o braço estendido enfatiza o lento caminhar da jumenta; acima, um anjo protege o caminho. As figuras se movimentam numa paisagem árida, com colinas rochosas e apenas algumas árvores rompendo a monotonia do deserto. Deste grupo principal formam parte também um jovem, guiando a jumenta, com a cabeça coroada de

hera e com um cantil ao cinto, junto a José, e outros dois jovens e uma jovem atrás da jumenta.

Essas figuras secundárias, acrescentadas à cena, fazem parte da descrição que aparece no evangelho apócrifo do Pseudo Mateus e, por-tanto, destituído de autoridade canônica: “Três rapazes faziam rota com José, e uma jovem com Maria” (https://pt.wikipedia.org/wiki/ ).

Como o texto de São Mateus menciona o anjo apenas no versículo 13, advertindo José em sonho para partirem para o Egito, a presença dele no afresco ressalta sua contínua proteção à Sagrada Família, acompa-nhando-os em sua travessia pelo deserto. A presença da jumenta, mesmo não estando no texto bíblico, fica subentendida, pois numa viagem de tal alcance era o único meio de transporte possível para Maria e Jesus Menino. Assim, temos de atribuir à imaginação e à criatividade de Giotto todos os detalhes da paisagem, das personagens secundárias e da jumenta. Como confirma Clüver, ao teorizar sobre a transposição intersemiótica, “o sentido atribuído ao texto original, seja ele poema ou pintura, é o resultado de uma interpretação” (2006, p. 117).

257ensaios sobre intermidialidade

Convém lembrar que Giotto – fugindo das imposições da arte bizantina, que obedecia a uma hierarquia rígida: Deus acima de Cristo, Cristo maior que os anjos e estes acima dos santos e, ao fundo, ouro, ornatos e decoração; nada de árvores, montanhas, vida – fez do homem o foco das cenas que pintava, e deu-lhe como ambiente o mundo real, embora moldando este à sua vontade. Assim, em seus quadros, os homens aparecem maiores do que as árvores e quase da mesma altura que as mon-tanhas, pois estas são secundárias, já que o ambiente era criado em função dos personagens (GIOTTO, 1980, p. 20). Cumming corrobora essa afir-mação, em relação ao cenário montanhoso, pois Giotto costumava usar essas formas para criar um “palco” onde seus personagens atuam, refle-tindo assim “o agrupamento das figuras” (1995, p. 11). No caso da Fuga ao Egito, a rocha triangular (que podia representar uma montanha) que se eleva atrás de Maria e Jesus Menino – focos de atenção do quadro – apesar de ter uma função secundária em relação às figuras humanas, tem sua função de “palco” realçada pelo simbolismo inerente à montanha: reino da meditação, como o oposto das planícies da realidade; comunhão com os abençoados; eixo do mundo; contato entre terra e céu, refúgio, liberdade, paz – todos eles relacionados com o tema da pintura.

O senso da percepção do espaço montanhoso, reforçado pela rocha arenosa atrás de Maria, enfatiza assim a centralidade de sua figura com o Menino em relação às outras figuras, como o elemento dominante na cena, além de ela estar também visualmente acima das outras, por estar montada na jumenta. Apenas o anjo, protegendo, do céu, o caminho, está acima dela. Completando a parte frontal do afresco, um chão arenoso, cujas dobras lembram as vestes das figuras e reforçam, pelo formato, con-torno e cromatismo, as montanhas atrás do grupo, criando assim uma harmonia de linhas verticais e oblíquas do plano de fundo com a planície da parte frontal, ainda realçada pelos efeitos de luz e sombra.

Em relação às árvores que se erguem esparsas no cenário monta-nhoso – acrescentando um toque de fertilidade à paisagem, pois podem representar florestas – seus troncos esguios com copas abundantes con-

258 assim transitam os textos:

trastam, nas cores e no formato, com a aridez da cor branca e cinzenta das rochas/montanhas. Simbólicas de vida cósmica, em sua verticalização e conexão com os três mundos; de vida vegetativa, como regeneração per-pétua e imortalidade; de natureza humana; de refúgio, como um dos pri-meiros abrigos do homem; e de sacrifício e redenção, pois na arte cristã a Cruz é muitas vezes representada como árvore viva (VRIES, 1976, p. 473), percebemos como a pertinência dessas associações simbólicas enriquecem o tema do afresco, tanto em relação à mensagem de vida e fertilidade contida nas árvores e de proteção durante a viagem, como antecipando o sacrifício de Jesus na Cruz. Ao teorizar sobre o “texto pic-tórico”, Clüver confirma que “o tamanho da imagem de uma árvore em uma pintura pode ser interpretado simplesmente como indicação do local em um sistema de representação de perspectiva, ou como uma expressão de sua relevância relativa, ou como parte constitutiva de sua relevância simbólica” (2006, p. 118).

Também os gestos e expressões dos rostos das figuras corroboram como as personagens de Giotto eram pintados com vida e sentimentos, enfatizando o realismo da cena e a união do grupo em sua travessia pela região: Maria, de porte ereto, a postura da cabeça sugerindo a resolução com que ela enfrenta a viagem, seus incômodos e riscos; José observando Maria, mesmo caminhando um pouco à frente; o anjo vigiando o grupo; o jovem ao lado de José com olhar indagador, enquanto segura a rédea da jumenta; e as três figuras atrás de Maria que acompanham o grupo apa-rentemente em conversação sobre a Sagrada Família e a viagem.

Por outro lado, este realismo – visível nos drapeados das vestes e na representação do cântaro de vime que José carrega – tem sua função ainda enriquecida pelo simbolismo que impregna as vestes e gestos das personagens. Recoberta por um manto branco – cor relacionada com pureza, santidade, iluminação, vida, paz, simplicidade – a túnica ver-melha de Maria tem seu simbolismo ressaltado por essa cor – associada com amor, purificação, ressurreição – todos significativos em relação à Maria como mãe de Jesus.

259ensaios sobre intermidialidade

O manto amarelo-escuro de José – cor que simboliza o sol, amor, constância – além de oferecer contraste com a túnica vermelha e o manto branco de Maria, realça sua posição como condutor do grupo, com o braço direito estendido à frente indicando o movimento que a cena contém. A gestualidade, segundo Kristeva, “é uma prática e, como tal, o gesto que transmite uma mensagem num quadro é mais do que linguagem – é a ela-boração da mensagem [...]. O gesto pintado ou esculpido não é somente um gesto, integra-se no conjunto decodificado da representação figurada” (KRISTEVA, apud CORTEZ, 2005, p. 305). As auréolas douradas que circundam as cabeças de Maria, de Jesus menino, de José e do anjo, por sua vez, simbolizam, pela cor, o espírito divino e, pelo esplendor, o estado de glória, destacando assim, mais ainda, as cabeças das quatro figuras. A jumenta, simbólica de paz, pobreza, humildade, paciência e coragem, é sempre apresentada favoravelmente na Bíblia: José conduz Maria e Jesus no dorso de uma jumenta ao Egito; antes da Paixão, Cristo faz sua entrada triunfal em Jerusalém sobre uma jumenta (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1973, p. 68, vol. I). Desse modo, seu simbolismo con-firma e enriquece os simbolismos dos outros elementos mencionados: sua cor cinzenta, pela neutralidade, mesclando-se ao fundo com as colinas rochosas, realça a figura de Maria, em vermelho e branco.

O fato de que, em termos mais amplos, os afrescos da Capela Arena representam

uma nova concepção de espaço que conquista as três dimensões do mundo visível, transformando a superfície bidimensional do quadro numa aber-tura para o mundo fantástico das imagens. Significam, ainda, uma nova visão da figura humana, encarada como um corpo presente a mover-se num mundo do qual se apropria. E, finalmente iniciam uma nova utili-zação dos efeitos plásticos das cores passando a expressar as emoções humanas. (ARTE NOS SÉCULOS, 1969, p. 485)

ratifica a importância deles, não só pelo virtuosismo técnico de Giotto mas, principalmente, como sua visão artística expressa “a crença total do artista e seu empenho em fazer o que lhe foi pedido – isto é,

260 assim transitam os textos:

realizar uma obra de arte digna do próprio Deus” (CUMMING, 1995, p. 9), confirmando a inovação da pintura de Giotto como transição da arte gótica para uma concepção humanista do mundo, que atingirá seu apogeu no Renascimento.

Toda essa representação da natureza e da vida – realçada por sutis efeitos de luz e sombra e acrescida ainda de sugestivas cargas simbó-licas –, pelo fato de que irá reaparecer em pinturas de épocas posteriores, torna-se importante para avaliar a extensão do diálogo intramidiático que a pintura de Giotto irá estabelecer com artistas futuros. Assim, mesmo sendo a transposição pictórica de um texto apócrifo, a importância desse afresco é grande pelo seu valor artístico, e irá influenciar a tela de Fra Angelico sobre o mesmo tema, que por sua vez será retomado, num salto de cinco séculos, nas telas de Portinari. E, inversamente, como a moder-nidade de Portinari irá ressaltar a modernidade de Giotto e Fra Angelico.

Transposições intramidiáticas: de Giotto a Fra Angelico

Se Giotto é considerado o pai da Renascença italiana, o domi-nicano Fra Angelico (1387-1455), um dos expoentes da pintura religiosa de todos os tempos, é considerado, com Filippino Lipi, o melhor pintor de Florença da época e um “artista que impregna de um anseio cristão o movimento cultural da Renascença. Na visão luminosa das figuras, na transparência da cor, havia nele um espírito mais religioso do que clássico, mais sacral do que profano” (FRA ANGELICO, 1967, p. 3).

A “Fuga para o Egito” (1450) faz parte de um grande retábulo e de uma série de afrescos que Fra Angelico realizou, num período de dez anos, no Convento de São Marcos (Figs. 4 e 5), em Florença:

261ensaios sobre intermidialidade

Fig.4: <https://pt.wikipedia.org/wiki> Fig.5:<https://pt.wikipedia.org/wiki>/

A sétima cena dessas pinturas executadas para Armadio degli Argenti, feita em têmpera sobre madeira (Fig. 6). Acima da tela encon-tramos o verso (Ecce) Elongavi fugiens et mansi in solitudine (“Eis que me afastei fugindo e permaneci na solidão”, Salmos 54: 8). E, abaixo da tela, o versículo Surge, accipe puerum et matrem et fuge in Egiptum (“Levanta, toma a criança e a mãe e foge para o Egito”. Mateus 2:13) , confirmando, assim, a relação intermidiática entre o texto bíblico e a pintura. Entretanto, essa relação não se limita ao texto bíblico canônico – retratando apenas a Sagrada Família – em contraposição ao texto apócrifo utilizado por Giotto (Fig. 7). Como descendente dos pintores que a precederam, a tela de Fra Angelico também constitui uma transposição intramidiática do afresco de Giotto, pois apresenta semelhanças que vão além da retratação dos perso-nagens centrais, da jumenta e da paisagem, para incluir o uso da técnica, simbolismo, cores, espaço e luz, diferindo apenas em interpretação pessoal:

Fig. 6: <www.wikiwand.com/pt/> Fig. 7: <www.wikiwand.com/pt>/

262 assim transitam os textos:

Como em Giotto, a têmpera de Fra Angelico representa José, Maria e Jesus Menino fugindo para o Egito. Maria, montada numa jumenta, também segura o Menino protetoramente; José, dessa vez, caminha do lado direito de Maria, mas atrás da jumenta, dando assim mais destaque à figura de Maria e do Menino. O movimento da cena vem do caminhar de José, com a perna esquerda à frente, como que acompanhando o trote vagaroso da jumenta. O bordão sustentando o manto sobre o ombro esquerdo, estendido em ângulo oblíquo, também indica movimento. Suas vestes amarelo-ouro remetem ao afresco de Giotto, conservando assim o simbolismo e função dessa cor. A auréola dourada, do mesmo tom que as vestes, é ainda realçada por um gorro negro e, por trás da auréola, um rochedo arredondado como que emoldura sua figura, valorizando-a.

Maria, em Fra Angelico, tem sua túnica vermelha recoberta por um manto azul, em contraposição ao manto branco, em Giotto. A cor azul – relacionada com o céu, eternidade, imensidão e harmonia – tornou-se com o branco a cor de Maria, na mitologia cristã a partir da Idade Média (VRIES, 1976, p. 54-55). A maior diferença está no fato de que, em Giotto, Maria tem a cabeça coberta pelo manto, enquanto que em Fra Angelico seus cabelos louros, como os do Menino Jesus, são realçados pelas auréolas. Um rochedo oblíquo, erguendo-se por detrás de Maria e como que acompa-nhando o caminhar da jumenta, acentua, pelo aclive, a posição protetora de Maria, com a cabeça levemente inclinada à frente encostando no rosto do Menino em seus braços, revelando assim uma ternura própria da pintura da época de Fra Angelico. O Menino Jesus, por sua vez, tem a túnica branca recoberta por um manto vermelho, concentrando, assim, o olhar do espec-tador em sua figura. A jumenta remete, tanto na cor cinzenta, com o focinho branco, como também na postura, à jumenta de Giotto, diferindo apenas no fato de não ter arreios nem ser conduzida por alguém, o que poderia sugerir estar sendo guiada pelo anjo protetor que acompanha – invisível em Fra Angelico, mas visível em Giotto – a Sagrada Família.

Como em Giotto, as figuras se movimentam numa paisagem quase árida, pois apenas algumas árvores rompem a monotonia do deserto. A

263ensaios sobre intermidialidade

região montanhosa, com colinas rochosas, apresenta curvas mais arre-dondadas e suaves que as montanhas em Giotto. As árvores, de troncos esguios e copas de um verde mais forte que em Giotto, realçam, pela ver-ticalidade, o intrincado formato arredondado das colinas. Na parte frontal da pintura, um grupo de árvores, uma palmeira e a vegetação rasteira com flores delicadas, como que acompanhando a rota por onde caminham a jumenta e José, tornam a paisagem menos árida do que a cena em Giotto. A leve subida indica que estão atravessando uma nova colina.

Entretanto, em contraste com Giotto, no qual a cena é iluminada da direita para a esquerda, indicando que os participantes estão cami-nhando em direção à luz, a cena de Fra Angelico é iluminada da esquerda para a direita e os participantes a caminho são iluminados por trás. A perspectiva, bem mais desenvolvida que em Giotto, mostra a paisagem se esvaecendo ao longe, enfatizando a distância que já percorreram, além de acrescentar leveza à cena. Uma casa, quase imperceptível no meio das colinas por ser da mesma tonalidade dourada, sugere que a Sagrada Família encontrou abrigo para descansar à noite.

Por ser exímio desenhista, Fra Angelico também ressalta nessa pintura detalhes inexistentes em Giotto, como a expressão das figuras, a riqueza de detalhes nas vestes, nas formas da jumenta, no cromatismo das colinas banhadas pelo sol da manhã, nas pequenas flores brancas à beira do caminho. Assim, além da aura numinosa que advém da força cromática da tela – em contraposição às cores mais suaves em Giotto – , ternura, graça e prazer na natureza estão presentes em Fra Angelico. Por essa razão, seu “tom profundamente lírico no tratamento de motivos paisagísticos [...]” e o fato de reconhecer “na luminosidade da cor um reflexo da perfeição da natureza, impregnando-a assim de um sentido místico” (FRA ANGELICO, 1967, p. 4) faz com que seu estilo exercesse considerável influência na pintura italiana posterior e, como será visto, como a Fuga para o Egito, em específico, influenciou as telas de Portinari sobre esse tema. Por essa razão, as inúmeras transposições pictóricas da Fuga para o Egito nas épocas que se sucedem à Renascença fogem do objetivo deste trabalho.

264 assim transitam os textos:

Transposições intramidiáticas: de Giotto e Fra Angelico a Portinari

Diversos pintores brasileiros já se debruçaram sobre textos bíblicos e, em específico, sobre A Fuga para o Egito, como tema de suas telas. Basta lembrar, além de Portinari, José Ferraz de Almeida Junior (1881), José Américo Roig (Zeméco) (1961) e Djanira da Motta e Silva (1967).

Quanto a Candido Portinari (1903-1962), mesmo que a miséria seja “o motivo constante” dos quadros mais famosos desse artista “cuja sensibilidade e inteligência lhe permitiram captar e exprimir agudamente a tragédia humana das estradas secas, dos campos estéreis, das favelas tristes” (PORTINARI, 1967, p. 2), a abrangência de seus temas – reli-giosos, líricos, culturais, a fauna e a flora, a história e o povo brasileiros – em quadros, gravuras e murais, vai muito além da vertente de crítica social, mostrando assim sua versatilidade.

O fato de ter conquistado, em 1928, o Prêmio de Viagem à Europa, foi um marco decisivo na trajetória artística do jovem pintor:

Na Europa, o artista vira o que se fazia em pintura de vanguarda. Vira as obras dos renascentistas italianos como Giotto, Masaccio, Piero della Francesca, Paolo Uccello – cujo estilo, tantos séculos depois seria mais moderno que o academicismo. E Portinari soube vê-lo. Saíra do Brasil quase acadêmico, voltaria moderno. (PORTINARI, 1967, p. 4)

Esse contato com os renascentistas italianos, além de ter influen-ciado no estilo de Portinari, também o influenciou a pintar temas bíblicos: entre 1931 e 1960, ele produziu dezesseis obras sobre A Fuga para o Egito, entre desenhos, pinturas, guaches e maquetes: 1931 – desenho aquarela; 1937 – pintura afresco; 1952 – esboço para painel; maquete para painel; pintura guache papel para painel; desenho em papel; tela a óleo para painel da Igreja Bom Jesus da Cana Verde (Batatais, São Paulo); 1953 –desenho; desenho; maquete óleo sobre tela; 1955 – pintura a óleo; desenho grafite com pai de Portinari; pintura com pai de Portinari; desenho crayon colorido; pintura: óleo sobre tela; 1959 – Êxodo; 1960 – pintura.

265ensaios sobre intermidialidade

Após o primeiro desenho a nanquim, bico-de-pena, aquarela e a grafite/papel (1931), que serviu de ilustração para a Revista Bazar (Fig. 8), Portinari produziu uma pintura afresco (1937) (Fig. 9) – inspirada na Fuga para o Egito de Fra Angelico (Fig. 10) – que se encontra no Museu Casa de Portinari:

Fig. 8: <http://www.portinari.org.br>

Fig. 9: <http://www.portinari.org.br>

Fig.10:<http://pt.wikipedia.org/wiki>

266 assim transitam os textos:

Lembrando que Portinari visitou os renascentistas italianos, em 1928, sua obra demonstra a influência de Fra Angelico em termos de tema e técnica. As diferenças surgem em relação ao estilo histórico – da Renascença ao modernismo europeu – e, consequentemente, em relação a espaço e luz, cores e simbolismo, além da interpretação pessoal do artista. Como afirma Irina Rajewski, ao discutir intermidialidade no sentido mais restrito, “qualquer tipologia de práticas intermidiáticas precisa ter uma base histórica”, pois

o critério de historicidade é relevante de várias maneiras: tanto em relação à historicidade de uma configuração intermidiática particular, em relação ao desenvolvimento (técnico) das mídias em questão; em relação às con-cepções historicamente mutantes das artes e mídias [...] ; e, finalmente, em relação à funcionalização das estratégias intermidiáticas de um deter-minado produto de mídia. (RAJEWSKI, 2012, p. 23)

Em relação à paisagem, que se estende em perspectiva, as cores mais sóbrias, em tons mais azulados e lilases do afresco de Portinari – contras-tando com os tons ensolarados da paisagem em Fra Angélico – sugerem uma paisagem mais desolada, o que é enfatizado ainda pelo número menor de árvores, a falta de cor apontando para a aridez da natureza no plano de fundo. Já na parte anterior do quadro permanece a vegetação em tons azu-lados de flores e cactos, como que servindo de moldura para a cor azul dos trajes e dos panos nas cabeças de José e Maria.

Deste modo, o simbolismo da cor azul – como visto em relação a Maria em Fra Angelico – poderia, em relação a José, simbolizar a con-templação divina, expiação, humildade e esperança, todos aplicáveis a ele (VRIES, 1976, p. 54-5). Quanto às auréolas douradas que circundam as cabeças da Sagrada Família em Fra Angelico, apenas a de Maria conserva a mesma cor em Portinari, como o único ponto luminoso da cena, sugerindo ser ela o ponto central. A expressão dos olhos de Maria em Portinari, entretanto, demonstra sua preocupação, em contraste com a expressão mais serena de seus olhos em Fra Angelico. Ao fundo, à

267ensaios sobre intermidialidade

esquerda, vemos, como em Fra Angelico, morros e uma casa, sugerindo que a família já passou por lá.

Entretanto, se o afresco de Portinari (Fig. 9) à primeira vista seria uma transposição intramidiática da pintura a têmpera de Fra Angelico, tanto em termos de tema e técnica, ele retorna mais ao estilo do afresco de Giotto (Fig. 7), não só na amenização das cores, pois a policromia de Fra Angelico foi substituída em Portinari por cores mais sombrias e veladas em tons de azul; não só na simplificação dos traços e dos detalhes de Fra Angelico; mas, principalmente, na expressão dos olhares de Maria e José: Maria, preocupada, fitando a estrada, e José observando Maria, como em Giotto. Essa releitura demonstra que, mesmo a obra sendo uma “cópia com diferença” de Fra Angélico, quase que como uma homenagem ao mestre renascentista, esta transposição intramidiática já apresenta um Por-tinari modernista, lembrando Giotto – “o fundador da pintura moderna” – ao reinterpretar, com sua visão diferenciada de estilo histórico, a cena bíblica de Fra Angelico (Fig. 10). São esses detalhes que nos servirão de apoio para relacionar as futuras versões de Portinari sobre a Fuga para o Egito com outras obras do artista.

Este tema bíblico será retomado em 1952, por ocasião da pintura dos afrescos para a Igreja Bom Jesus da Cana Verde (Figs. 11 e 12), na cidade de Batatais:

Fig.11:<http://arquidioceserp.org.br>/ Fig. 12: <www.tripadvisor.com.br>

268 assim transitam os textos:

É seu maior acervo sacro, entre pinturas e afrescos, exposto nessa Igreja: são 23 obras, incluindo Os Milagres de Nossa Senhora; Via Sacra (14 quadros); Jesus e os Apóstolos; A Sagrada Família; Fuga para o Egito; O Batismo; Martírio de São Sebastião. Desse modo, assim como Giotto fora convidado para pintar o ciclo de afrescos sobre a Vida da Virgem e de Cristo na Capela Arena dos Scrovegni em Pádua, e Fra Angelico para pintar o retábulo e uma série de afrescos no Convento de São Marcos, em Florença, dessa vez é Portinari o convidado.

As cinco obras de Portinari de 1952 sobre o tema apresentam dife-renças importantes em relação à obra de 1937, pois, mesmo que a função retórica básica continue a mesma – retratar a Fuga para o Egito –, ele se “libertou”, em termos, de Giotto e Fra Angelico, pois o diálogo intrami-diático continua, apesar da mudança de estilo. Como ele próprio comenta, numa entrevista, “Apontam mudanças em mim; claro que tenho de mudar; sempre estudando e pesquisando, não posso deixar de apresentar em 1953 um desenvolvimento técnico maior do que em 1920” (PORTINARI, 1953, s/p. Disponível em: <http://almanaque.folha.uol.com.br/ilustrada_16mar 1953.htm>).

Concentrando a análise no painel óleo sobre tela, resultado dos quatro estudos abaixo (Figs. 18-21),

Figs 13, 14, 15, 16. Fonte: <www.portinari.org.br>

percebemos as seguintes diferenças na tela de 1952 (Fig. 17) em relação à tela de 1937 (Fig. 18):

269ensaios sobre intermidialidade

Figs. 17 (1952) e 18 (1937). Fonte: <www.portinari.org.br>

– as figuras de José e de Maria com o Menino sobre a jumenta, na tela de 1952, estão se movendo da direita para a esquerda, recebendo a luz do dia em seus rostos, sugerindo assim um caminhar mais esperançoso, em con-traste com a de 1937, na qual o movimento é da esquerda para a direita e a luz ilumina as figuras por trás, sugerindo mais uma fuga;

– o céu totalmente azul, numa tonalidade mais clara que as vestes de José e Maria, acrescenta uma serenidade à tela, além de concentrar nossa atenção nas figuras da Sagrada Família;

– as cores das vestes retomam o azul das vestes de José e Maria na tela de 1937, mas num tom mais escuro. Portinari ainda acrescenta um manto vermelho a José e um a Maria – que cobre sua cabeça e ombros até a cintura – , enquanto Jesus Menino, em seus braços, veste uma túnica dou-rado-escura, realçando assim, além do contraste visual entre sua figura e a de Maria, o simbolismo religioso da cor: ela remete, para os hebreus, ao poder divino e místico e, para os cristãos, ao espírito divino e à glória da fé triunfante (VRIES, 1976, p. 220). O fato de estar representado em tamanho maior do que o de um recém-nascido, como na tela de 1937, aponta para sua importância como filho de Deus;

– as expressões serenas dos rostos – José e o Menino olhando para Maria, e Maria olhando para o infinito – contrastam também, em sua suave expres-sividade, com a expressão dos rostos da tela de 1937, principalmente em relação a Maria, lembrando, a expressão de seu olhar em Fra Angelico;

270 assim transitam os textos:

– a linguagem das mãos, se comparada com a da tela de 1937, é também altamente expressiva, valorizando assim um traço que irá reaparecer em muitas obras anteriores e posteriores de Portinari: a mão direita do menino, apoiada sobre seu braço esquerdo, parece abençoar Maria, e, for-mando par com a mão direita de Maria, lembra as asas de um anjo; a mão esquerda está em posição análoga à da mão direita de Maria, sugerindo a intimidade entre mãe e Filho. Também as mãos de José são valorizadas, a esquerda repousando sobre a cabeça da jumenta, numa atitude protetora, enquanto a direita segura o cabresto do animal, indicando o caminho, como em Giotto;

– o fato de as auréolas se limitarem a uma fina linha dourada e, portanto, serem mais transparentes do que na tela de 1937, e, mais ainda, em relação a Giotto e Fra Angelico, confere mais leveza à tela. Além de não interferirem com as linhas das montanhas ao fundo, as auréolas destacam a qualidade humana do grupo, o que levará a outras versões do tema em Portinari;

– a figura da jumenta parece ser uma réplica da jumenta em Giotto, apenas em posição contrária, pois até os arreios estão na mesma posição, como também o movimento das pernas: a direita levantada, a esquerda reta.

O que mais chama a atenção, num segundo momento, é que, ao con-templar o plano de fundo – as montanhas piramidais que se estendem até o horizonte –, percebemos que as dobras das vestes de Maria e José estão reproduzidas no desenho dos flancos das montanhas, com suas nuances de branco e cinza. Elas servem, como em Giotto e em Fra Angelico, para emoldurar as figuras de José e de Maria com o Menino, além de sugerir uma identidade visual entre as figuras e a paisagem. O formato dessas montanhas já está presente em outras obras de Portinari, como as linhas das montanhas ao fundo da gravura em água-forte do Braço de Tiradentes (1949) (Fig. 19).

Talvez o traço mais inovador dessa tela seja o solo da paisagem, que, em contraste com a tela de 1937, com a de Fra Angelico e parcial-mente também com a de Giotto, apresenta-se com traços quase cubistas: áreas geometrizadas no primeiro plano, em tons de marrom e rosa – suge-

271ensaios sobre intermidialidade

rindo que a Sagrada Família está se deslocando sobre um terreno em aclive – aos poucos cedendo lugar, no plano de fundo, a um tom rosa mais homogêneo, apontando para a distância pela qual se estende a pai-sagem do deserto. Três pedregulhos amenizam as linhas retas do solo e, simultaneamente, remetem a outras obras de Portinari, como a Família de Retirantes (1944) (Fig. 20), cujo cenário também é um deserto pedregoso com uma montanha ao fundo, aproximando assim as telas, mesmo que em contextos totalmente opostos: a tela de 1952 representa a esperança da Sagrada Família, como “retirantes”, ao fugir de Herodes, enquanto a tela expressionista de 1944 retrata, em cores fortes, nos rostos cansados e corpos esquálidos, a angústia e desalento de uma família de retirantes nordestinos fugindo da seca. Por sua vez o chão róseo e bege, geome-trizado, será retomado na tela “Futebol” (1958) (Fig. 21). Todas essas relações intramidiáticas reforçam a recorrência e, ao mesmo tempo, a transmutação que certos elementos sofrem, na obra do artista:

Figs. 19, 20 e 21: <http://www.portinari.org.br>

Desse modo, percebemos como as cinco obras de 1952 estabele-cem um diálogo intramidiático entre si, com obras anteriores, e também apontam para obras posteriores, pois o tema da Fuga para o Egito continuou a inspirar Portinari.

As cinco pinturas e desenhos de 1955 apresentam novos elementos estilísticos que estabelecem uma relação da Sagrada Família não só com a própria família do pintor, ao Portinari retratar seu pai como São José em duas dessas obras; mas, igualmente, pela semelhança das figuras com as

272 assim transitam os textos:

telas dos retirantes, sugerindo que as transposições inter e intramidiáticas da fuga da Sagrada Família serviram a Portinari como alavanca para transpô--la para atualidade intracultural brasileira – a fuga dos “retirantes” da seca nordestina, à procura de melhores condições de vida em outras regiões do país – e, simultaneamente para um contexto familiar e uma atualidade intercultural: a emigração da família de Portinari da Itália ao Brasil, pois

Pobres eram seus pais, pobre a terra de onde vieram, na região de Vêneto, Itália. Rica de cafezais é a terra que encontram, Brodósqui. [...] Mas a família – pai, mãe, 12 filhos (Cândido era o segundo) – não partilhará da fortuna. Todos terão de trabalhar – e duro. E comportar-se de acordo com os severos padrões morais e religiosos trazidos da província italiana, naqueles primeiros anos do século vinte. (PORTINARI, 1967, p. 2)

Concentrando-nos nas duas obras (Figs. 22 e 23) que retratam o pai de Portinari como São José, ambas apresentam um traço importante na evolução pictórica do tema: em contraposição a obras anteriores, nas quais como que assistíamos à cena da passagem da Sagrada Família em direção ao Egito, movimentando-se da esquerda para a direita, ou vice--versa, as figuras são vistas frontalmente, como se viessem de encontro ao espectador – com apenas José levemente virado à direita, indicando o caminho. Essa mudança de perspectiva sugere a proximidade que essa Fuga para o Egito estabelece com a realidade da Família de Retirantes e com nossa própria realidade – a época em que os pais de Portinari emi-graram – como retirantes – para o Brasil.

Figs. 22 e 23: <http://www.portinari.org.br>

273ensaios sobre intermidialidade

Na pintura a óleo sobre tela (Fig. 23), vemos José, caminhando para a direita, mas olhando protetoramente para Maria e o Menino sen-tados na jumenta conduzida por ele. Sua cabeça reproduz os traços do pai do artista: rosto comprido, enrugado e envelhecido, cabelos curtos, nariz reto e lábios fechados. As pinceladas marcadas acentuam sua túnica geo-metrizada, em tons terra, azuis, verdes, reproduzindo tanto o céu quanto o solo em tons ocre. O rosto de Maria, de olhos fechados, traços delicados e tez clara, como também o rosto do Menino Jesus expressam a confiança que sentem, guiados por José. As auréolas são substituídas por áreas qua-drangulares de um azul mais forte, acentuando, assim, o contorno de suas cabeças contra o céu azul claro. Pelo fato de estarem em consonância com as áreas quadrangulares no solo e nas vestes das figuras, dando harmonia visual à cena, essas pinceladas marcadas confirmam como “a mesma tinta, atribuída a um pormenor insignificante, a um reflexo, a um matiz de fundo, ou a um objeto saliente no assunto do quadro, assume valores diversos” (SOURIAU, 1969, p. 225).

A simplicidade da tela, por sua vez, eliminando quaisquer detalhes da paisagem que lhe conferissem identidade, dá uma dimensão do espaço a percorrer, simultaneamente libertando as figuras de uma contextuali-zação desnecessária. Desse modo, se o vínculo estabelecido com o pai de Portinari torna a cena da Fuga um episódio intercultural atual, além de intracultural, como visto, essa atualidade pode ser ampliada para simbo-lizar o êxodo de pessoas em massa por motivos religiosos, políticos, ou de simples sobrevivência.

O desenho a crayon colorido (Fig. 24) e a pintura a óleo (Fig. 25) evidenciam a atualidade que a Fuga para o Egito continua a repre-sentar para ele.

274 assim transitam os textos:

Figs. 24 e 25: <http://www.portinari.org.br>

Essa atualidade atingirá o ápice na transposição pictórica do texto ao desenho Êxodo (Fig. 26) – o termo se refere não apenas ao segundo livro da Bíblia, em que se narra a fuga dos hebreus do Egito, mas à emi-gração de todo um povo ou saída de pessoas em massa para outro lugar.

Em termos de relevância simbólica, o desenho torna-se emblemático de todos os fugitivos de perseguições religiosas, políticas ou outras, como sempre existiram, continuam e continuarão a exi-stir e das quais nós participamos como testemun-has, diariamente, pelas notícias transmitidas pelos veículos de informação.

Fig. 26: <http://www.portinari.org.br>

Considerações finais

A importância temática da Fuga para o Egito – que inspirou Giotto e Fra Angelico a transpor pictoricamente o episódio bíblico para suas obras – adquiriu, na arte e cultura brasileiras, por meio das recontextuali-zações de Portinari, uma relevância ainda mais contundente: como visto, suas obras sobre este episódio dialogam não apenas entre si, mostrando

275ensaios sobre intermidialidade

sua evolução temática e plástica, mas revelam facetas que dialogam com outras obras suas, estabelecendo, assim, uma dimensão que vai não apenas do inter ao intramidiático mas historicamente do inter ao intracul-tural. Ao tornar a Fuga para o Egito simbólica de todos os seres humanos em fuga da miséria, da fome, de perseguições políticas e religiosas, como também da hostilidade da própria natureza, Portinari nos remete, num contexto mais amplo, à própria história da Humanidade.

Referências

A PINTURA NO BRASIL. São Paulo: Abril S.A. Cultural e Industrial, 1981.

CAPELA ARENA DOS SCROVEGNI (Figs. 1 e 2). Referências de fonte eletrônica. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/ e www.google.com.br>. Acesso em: 20 maio 2016.

CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dictionnaire des symboles. Paris: Seghers, 1974.

CHRISTIN, A.M. “A imagem enformada pela escrita”. In: ARBEX, M. org. Poéticas do visível: ensaios sobre a escrita e a imagem. Belo Horizonte: UFMG, 2006.

CLÜVER, C. Da transposição intersemiótica. In: ARBEX, M. org. Poéticas do visível: ensaios sobre a escrita e a imagem. Belo Horizonte: UFMG, 2006.

CONVENTO DE SÃO MARCOS (Figuras 4 e 5). Referências de fonte eletrônica. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki>. Acesso em: 19 maio 2016.

CORTES, C.Z. Literatura e pintura. In: BONNICI, T.; ZOLIN, L. O. Teoria Literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. Maringá: UEM, 2005.

276 assim transitam os textos:

CUMMING, R. Para entender a arte. São Paulo: Editora Ática, 1998.

FRA ANGELICO. Ed. Victor Civita. Coleção Gênios da pintura. São Paulo: Abril cultural Ltda., 1967.

GIOTTO. Ed. Victor Civita. Coleção Gênios da pintura. São Paulo: Abril cultural Ltda., 1967

PORTINARI. Ed. Victor Civita. Gênios da Pintura. São Paulo: Abril Cultural Ltda., 1967.

______. PORTAL PORTINARI. Referências de fonte eletrônica. Disponível em http://www.portinari.org.br/ .Acesso em: 20 maio 2016.

RAJEWSKI, I. “Intermidialidade, intertextualidade e ‘remediação’: uma perspectiva literária sobre a intermidialidade”. In: DINIZ, T. F. N. (Org.). Intermidialidade e estudos interartes: desafios da arte contemporânea. Belo Horizonte: UFMG, 2012.

SÃO MATEUS. O evangelho de São Mateus. Bíblia, vol. 6. Ed. Victor Civita. São Paulo: Ed. Abril Ltda., 1967. p. 10.

SOURIAU, É. A correspondência das artes: elementos de estética comparada. São Paulo: Editora Cultrix; Edusp, 1969.

VRIES, A.de. Dictionary of symbols and imagery. Amsterdam: North-Holland, 1976.

WHELPTON, B. Art appreciation made simple. London: W. H. Allen, 1970.