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Artigo que problematiza o uso dos romances de cavalaria comodocumento histórico para investigação da Idade Média.
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Revista Histria e Cultura, Franca-SP, v.2, n.3 (Especial), p.414-441, 2013. ISSN: 2238-6270.
DO VERSO PROSA: O POTENCIAL HISTRICO DOS
ROMANCES DE CAVALARIA (SCULOS XII-XIV)
FROM VERSE TO PROSE: THE HISTORICAL
POTENTIAL OF CHIVALRY ROMANCES
(ELEVENTH-FOURTEENTH CENTURIES)
Carolina Gual da SILVA
Cludia Regina BOVO
Flvia AMARAL
Resumo: Nesse artigo pretendemos problematizar o uso dos romances de cavalaria como
documento histrico para investigao da Idade Mdia. Preocupados em refletir sobre o
surgimento desse gnero textual, sua funo e seu potencial de investigao histrica, nos
dedicamos a analisar um conjunto de obras os Romans de Chrtien de Troyes, o Tristo de
Broul e o Romance da Melusina de Jean DArras. Nosso objetivo verificar como elas
veicularam determinadas representaes sociais, cuja finalidade era formalizar uma ao
pedaggica em meio s cortes francesas, onde foram proclamadas.
Palavras-chave: Literatura Histria Idade Mdia.
Abstract: This articles intention is to problematize the use of chivalry romances as historical
documents for the investigation of the Middle Ages. Concerned with understanding the
appearance of this textual genre, its function and historical investigative potential, we have
analyzed a group of works Chrtien de troyess Romans, Brouls Tristan, and Jean dArrass
Melusine Romance. Our goal is to verify how these works portray certain social representations,
whose finality was to formalize a pedagogic action in the French courts where they were
recited.
Keywords: Literature History Middle Ages.
Introduo
Durante o sculo XII, especificamente entre 1151-1200, temos um crescimento
significativo da produo de textos em lngua verncula. Colocam-se por escrito
narrativas, lendas picas e canes que, at ento, eram proclamadas oralmente, em
Mestre em Histria Doutoranda Programa de Ps-graduao em Histria Instituto de Filosofia e
Cincias Humanas UNICAMP Universidade Estadual de Campinas, CEP: 13083-896, Campinas, So Paulo Brasil. Programa Histoire et Civilisation EHESS cole de Hautes tudes en Sciences
Sociales, Paris Frana. E-mail: [email protected]
Doutora em Histria Professora do Departamento de Histria UFTM Universidade Federal do
Tringulo Mineiro, CEP: 38025-180, Uberaba, MG Brasil. E-mail: [email protected]
Doutora em Histria Professora do Departamento de Histria UFVJM Universidade Federal dos
Vales Jequitinhonha e Mucuri, CEP: 39100-000, Diamantina, MG Brasil. E-mail:
Pesquisadoras do Laboratrio de Estudos Medievais LEME.
mailto:[email protected]:[email protected]:[email protected]Pgina | 415
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meio aos crculos cavaleirescos. Essas obras, desvinculadas da produo latina oficial
da Igreja Romana, trouxeram tona representaes da dinmica scio-poltica da
aristocracia laica, baseada nas relaes de poder sobre terras e sobre homens
(GUERREAU, 1980). No florescer dessa literatura em lngua vulgar, uma forma
potica ganhou destaque: o Roman. Essa nova forma potica teve seu aparecimento
atestado entre 1160 e 1170, primeiramente na regio norte da Frana e mais tarde nas
regies inglesas e germnicas. Inicialmente a expresso utilizada para design-la era mis
en roman, ou seja, colocar em romnico, passar do latim para as lnguas vulgares
romnicas como, por exemplo, o francs. Dessa forma, o roman no era uma criao de
todo original, mas uma forma de traduo do latim ou uma adaptao de obras latinas j
conhecidas.
Escritos em lngua vulgar, os romans mantiveram uma estrutura formal e rtmica
bastante heterognea. Os primeiros textos foram escritos em versos, nos quais
encontramos estruturas em octosslabos rimados, sem cortes de estrofe e destinados ao
canto. Os versos escritos em octosslabos conferiam maior fluidez e agilidade ao texto,
o que tornava a proclamao mais dinmica e adaptvel. Segundo Paul Zumthor, para o
trovador da lngua dol, mettre en roman ou por em romance, significava
propriamente glosar em lngua vulgar, clarificar o contedo ao alcance dos ouvintes,
fazer compreender adaptando s circunstncias (ZUMTHOR, 1993, p. 267). Num
mundo onde a fala era o veculo de comunicao fundamental, a autoridade da voz
influenciava a constituio da obra escrita que, por fora do nosso uso corrente, foi
denominada literria. A vocalidade era o principal instrumento de comunicao no
mundo medieval, sendo este trnsito vocal o nico modo possvel de realizao dos
textos. Isso no era diferente para os romans da segunda metade do sculo XII. A
palavra potica, vocalmente transmitida, ritualizada e reescutada favorecia a migrao
de mitos, de temas narrativos, de formas de linguagem, de estilos, afetando as
sensibilidades e as capacidades inventivas das populaes que a escutava. A palavra
viva permanecia uma fonte insubstituvel de informaes.
O trovador surgiu assim como o intrprete, portador da voz potica, era o sujeito
histrico que assumia a funo de propagar estes textos, divertindo as populaes dos
territrios por onde passava. Nmade no corao de um mundo estvel, sua insero
social nos territrios que visitava, muitas vezes, era fragilizada devido a sua no fixao
a uma residncia aristocrtica. A sua incluso dependia da maneira como ele utilizava a
fico para propagar valores da cavalaria, enaltecendo e desqualificando figuras reais
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atravs de metforas ligadas a esta literatura teatralizada. Para a arte do trovador, o
essencial utilizar e dominar a diversidade (FOUCHER, 1998, p. 21), com autoridade
e erudio sobre um auditrio flutuante, que ouviu verses diferentes de outros
trovadores. Apesar de ser um gnero escrito, a maneira teatral como eram narradas as
histrias, j que nos crculos cavaleirescos eram poucos os que sabiam ler, mexia
integralmente com a imaginao do ouvinte. Mesmo a percepo que as pessoas tinham
de si prprias podia ser alterada, pois as histrias falavam de situaes, personagens,
atitudes que eram familiares aos ouvintes.
De acordo com grande parte dos estudiosos da literatura francesa a inspirao
temtica dos Romans recorria a trs correntes essenciais: a influncia antiga, a matria
bret e a influncia meridional. A influncia antiga diz respeito literatura latina,
especialmente as obras de Virglio e Ovdio, cuja densidade psicolgica contribuiu para
o desenvolvimento das narrativas picas como o Romance de Thebas; as lendas brets
se referem, em particular, lenda do Rei Artur, e a mitologia celta oferecia os detalhes
romanescos e fantasiosos que ornamentavam as narrativas. Em sua maioria, os temas
dos romans foram inspirados na Matria da Bretanha, cuja apropriao traz uma
reminiscncia vaga e estilizada da civilizao cltica. Os Romans afirmavam uma
pretenso veracidade por incorporar elementos da realidade narrativa ficcional,
jogando com a interferncia contnua do real e do fictcio. Para psicologia social de
Moscovici, representar significa, a uma vez e ao mesmo tempo, trazer presentes as
coisas ausentes e apresentar coisas de tal modo que satisfaam as condies de uma
coerncia argumentativa, de uma racionalidade e da integridade normativa do grupo
(MOSCOVICI, 2003, p. 216). Portanto, uma representa o uma forma de assimila o
da realidade que no tem nada de natural. Apesar de contarem com elementos ficcionais
como drages, gigantes, feiticeiras, os romances tinham uma forte tendncia reflexo
de valores scio-polticos, promovendo o embate de modelos comportamentais
idealizados pelos grupos aristocrticos da sociedade feudal. Por isto, a anlise deste tipo
de produo literria deve sempre levar em conta o contexto social de sua emergncia e
as finalidades de sua utilizao.
Por serem dirigidos a um grupo social determinado esses textos possuam um
carter didtico, estando repletos de situaes exemplares que visavam o
aprofundamento tico-moral das cortes feudais. Portanto, problematizar o uso dos
romances de cavalaria como documento histrico nos permite investigar o surgimento
desse gnero textual, sua funo e seu potencial para formalizar uma ao pedaggica
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em meio s cortes francesas, onde foram proclamados. Neste trabalho nos dedicaremos
a analisar um conjunto de obras os Romans de Chrtien de Troyes, o Tristo de
Broul e o Romance da Melusina de Jean DArras. O objetivo verificar como elas
veicularam determinadas representaes da dinmica social entre os sculos XII e XIV.
Segundo Georges Duby, a literatura em lngua vulgar teve a funo de promulgar um
cdigo de comportamento cujas prescries visavam limitar na aristocracia militar os
estragos de um descaramento sexual irreprimvel (DUBY, 1990, p. 343-344). Essa
funo pedaggica, implcita aos romans, contribuiu para a difuso e valorizao de
uma viso de mundo prpria da aristocracia laica, o que no a desvinculou da influncia
do cristianismo ou mesmo das prticas ortodoxas das lideranas crists. Os romances
buscavam sua inspirao nos valores da sociedade cavaleiresca ao mesmo tempo em
que ajudavam a mold-los e a reafirm-los: o novo grupo dos cavaleiros se interessa
pela literatura que exalta suas virtudes peculiares e que faz uma propaganda esplndida
de seu mundo seletivo e esforado (GARCIA GUAL, 1990, p. 39).
Os Romans de Chrtien de Troyes
As primeiras obras dedicadas aos cavaleiros de Artur foram escritas no sculo
XII, no formato muito particular dos romans que, mais do que um gnero escrito, dizia
muito sobre a organizao de novas formas de pensar. O autor dessas primeiras obras
sobre os cavaleiros da Tvola Redonda Chrtien de Troyes que, embora seja um dos
poetas mais famosos do sculo XII, nos pouco conhecido pela falta de informaes
sobre sua vida. Chrtien de Troyes tido como o pai do romance. O pouco que sabemos
dele, foi deduzido a partir de suas prprias obras. possvel que tenha sido clrigo pela
grande erudio de seu trabalho. Alm dos romances do ciclo arturiano Erec e Enide,
Cligs, Lancelot, Ivain e Perceval tambm lhe atribudo uma traduo/adaptao de
Ovdio, Philomena, e um romance no arturiano, Guillaume dAngleterre. quase certo
que ele tambm tenha escrito uma verso de Tristo e Isolda, qual ele faz meno no
prlogo de Cliges1, mas que nunca foi encontrada.
Chrtien exerceu suas atividades literrias nas cortes de Marie de Champagne
que lhe props o tema de Lancelot e de Filipe de Flandres incentivador do romance
Perceval (entre 1160 e aproximadamente 1190). No h certeza quanto s datas em que
foram escritas suas obras, mas acredita-se que o romance do Rei Marc e de Isolda, nunca
encontrado, tenha sido escrito entre 1160 e 1170; em seguida viria Erec e Enide,
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possivelmente de 1170; Cligs seria de 1175, Lancelot e Yvain criados entre 1177 e
1181 e, por fim, Perceval, iniciado em 1181 e nunca concludo, provavelmente devido
morte de Chrtien entre 1185 e 1190. As obras so, na sua maioria, concisas, com uma
mdia de 7000 versos octosslabos, exceo de Perceval que, inacabado, j possua
quase 15000 versos. A popularidade de sua obra comprova-se pelo grande nmero de
manuscritos conservados at hoje, alguns deles escritos j no sculo XIV, dois sculos
depois do perodo em que viveu Chrtien.
Trataremos detalhadamente das quatro obras que compem o chamado ciclo
amoroso de Chrtien de Troyes: Erec e Enide, Lancelot, Cligs e Ivain. Esses quatro
romans giram em torno das aventuras cavaleirescas, com forte nfase nas relaes entre
os cavaleiros e as damas. H pequenas variaes na maneira como os temas so tratados,
mas um denominador comum a questo do casamento ou das relaes amorosas entre
homens e mulheres, que se repetem nas quatro obras. Em Erec et Enide, Chrtien analisa
a relao entre esposo e esposa, os conflitos entre ser amante e amigo. Cligs trata do
problema de um casamento no desejado e como solucionar a situao. Em Lancelot o
enfoque o finamour, chamado posteriormente de amor corts, o amor fora do
casamento, entre Lancelot e Guinevere. Yvain fala do surgimento do amor e como ele
pode reviver.
Erec e Enide o cavaleiro apaixonado
Erec e Enide, alm de ser o primeiro romance de Chrtien de Troyes que
chegou at ns, tambm o primeiro testemunho conhecido de um romance arturiano
em lngua romnica2. Dessa forma, podemos dizer que ele se encontra num momento de
transio, ligando a poca romnica poca gtica da literatura na Frana. As diferentes
influncias literrias podem ser encontradas na escrita de Chrtien. Em Erec,
encontramos elementos prximos da cano de gesta, por exemplo, no desenvolvimento
das cenas de combate e no gosto pela enumerao e catalogao, que so procedimentos
caros s epopeias. As influncias do romance antigo, como Enas e Tria, podem ser
percebidas no recurso s descries luxuosas de vestimentas e mobilirios ou de forma
mais direta na descrio do arco de sela do palafrm de Enide que possui a histria de
Enas esculpida em marfim3. H tambm episdios que podem ser ligados mitologia
cltica ou matria bret como o caso da caa ao cervo branco (que na mitologia
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cltica frequentemente um preldio para a entrada no Outro Mundo) e da Alegria da
Corte (liberando um prisioneiro de uma fada nesse Outro Mundo).
A histria do cavaleiro Erec e sua amada Enide pode ser dividida em duas
partes. A primeira parte narra o encontro dos jovens sob circunstncias difceis e explica
o casamento deles. A segunda comea com o fracasso de Erec em conciliar a vida
conjugal e suas obrigaes cavaleirescas, levando-o a aventuras que pem prova no
s seu valor enquanto cavaleiro, mas tambm o amor e fidelidade de sua esposa. Essa
dupla provao extremamente interessante e original. Ao partir em busca de aventuras
para desmentir os rumores da corte de que se tornara covarde, Erec leva consigo sua
esposa Enide. Proibida de dirigir palavra ao marido salvo para respond-lo, Enide deve
decidir se quebra sua promessa de no falar ao marido quando percebe perigos
iminentes que Erec no v. Assim, ele prova seu valor derrotando maus cavaleiros,
viles, salvando prisioneiros e demonstrando todas as caractersticas de um bom
cavaleiro. Enide faz o mesmo ao provar seu amor incondicional e total fidelidade pelo
marido, mesmo quando o cr morto. Ela ajuda Erec nos combates, cuida de seus
ferimentos, recusa os avanos de outros homens, enfim, representa o modelo de esposa
ideal no ambiente das cortes. No final, os dois so coroados rei e rainha pelo prprio
Rei Artur e tudo termina com um enorme banquete e uma grande festa.
Enquanto documento histrico, a maneira como Chrtien de Troyes mostra o
relacionamento entre Erec e Enide pode ajudar-nos a entender melhor as implicaes do
casamento cristo no sculo XII. Enide no tem escolha alguma em relao deciso do
pai de d-la em casamento a um cavaleiro que ela nunca viu e que sequer sabe seu
nome: a sua total disposi o que eu entrego minha bela filha. E tomando-a pelo
pulso, lhe diz: Ei-la, eu a confio a voc (CHRTIEN DE TROYES, 1992, vs. 675-
678). Vemos aqui um momento de impotncia da filha diante do pai. Mas seria mesmo
impotncia? A reao de Enide de algum com ambies que podem ser alcanadas
atravs exatamente deste casamento: A jovem manteve-se quieta, mas estava muito
feliz e pronta a aceit-lo, pois ele era valoroso e corts e ela sabia bem que ele seria rei e
que ela prpria seria honrada, coroada ricamente como rainha (CHRTIEN DE
TROYES, 1992, vs. 684-690).
Assim, tanto o pai de Enide como a prpria observam o casamento como um
negcio. O importante o status social, a riqueza e o prestgio que o casamento com
Erec trar para Enide e para toda a sua famlia. Mais adiante, quando os dois j se
encontram casados, encontramos uma situao instigante. Comeam a surgir boatos na
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corte de que Erec no mais se portava como um cavaleiro devido ao seu amor por
Enide. O senhor no se interessava mais por nada e no cuidava de suas obrigaes.
Estava bbado de amor. Cabe a Enide avisar o marido e, portanto, tambm sofrer as
consequncias por t-lo desacreditado e ouvido os rumores. A represlia do autor a Erec
vai diretamente ao excesso de amor que ele nutre por sua bela esposa. Neste sentido,
somos lembrados das falas de alguns telogos: S o Jernimo diz: Aquele que ama a
sua mulher com demasiado ardor considerado culpado de adultrio.; Pedro
Lombardo, A obra de concebimento permitida no casamento, mas as volpias
maneira das prostitutas s o condenadas; Alain de Lille, O amator veemente de sua
esposa adltero. Chrtien de Troyes, portanto, est totalmente inserido num contexto
em que o casamento parece fazer cada vez mais parte de uma moral religiosa4.
Cligs o anti-Tristo
A datao de Cligs definida por dois fatores. Em primeiro lugar, atravs do
prlogo citado acima no qual ele enumera as obras que escrevera. Como Erec e Enide
o nico dos cinco romances que conhecemos que mencionado, supe-se que Cligs
tenha sido o prximo na trajetria do autor. O segundo elemento que fornece as bases
para que o texto seja localizado por volta de 1175 diz respeito a acontecimentos
polticos da poca e aparente ligao do texto de Chrtien com esses acontecimentos.
Para Charles Mla, as intrigas matrimoniais entre o imperador da Alemanha e de
Constantinopla, presentes em Cligs, refletem as tentativas de aliana de Frederico
Barabarruiva com os Comnenos de Constantinopla diante das disputas entre Imprio e
Papado no sculo XII (MELA, 1994, p.05).
Assim como Erec e Enide, podemos dividir esse romance em duas partes. A
primeira conta a histria de Alexandre, filho do imperador de Constantinopla, e a
segunda a histria de seu filho, Cligs, que vir a herdar o trono. So duas histrias de
amor: a de Alexandre e Soredamors e a de Cligs e Fenice. A primeira trata de um amor
recproco, mas no confessado, que precisa da ajuda da rainha Guinevere para se
concretizar. A segunda, muito mais complexa, mostra um amor proibido. Cligs vai
Alemanha para trazer a noiva de seu tio Alis. Mas Cligs e Fenice se apaixonam e se
veem divididos entre o amor e a fidelidade s suas obrigaes. A semelhana com a
histria de Tristo no passa despercebida. No entanto, Cligs, tido como o anti-
Trist o de Chrtien. Por que este nome? Pois a prpria Fenice, amante de Cligs diz:
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Eu preferiria que me desmembrassem a possibilidade de ns
revivermos o amor de Isolda e Tristo, sobre o qual tantas loucuras
so contadas que tenho vergonha de repetir. Eu no poderia aceitar a
vida que levou Isolda (CHRTIEN DE TROYES, 1994, vs. 3099-
3105).
Fenice se recusa a seguir a vida de uma adltera. Ela no ama seu marido prometido,
no consentiu ao casamento e, portanto no tem nenhuma ligao espiritual com o
noivo. Entretanto, no tem poder para modificar esta situao, mas deseja manter-se
pura. Para isso recorre aos filtros de sua serva Tessala para evitar o coito e, portanto, a
consumao do casamento. Em seguida, Fenice bebe outro filtro que a faz parecer morta
para finalmente fugir com Cligs. No fim o casal descoberto, mas no punido, pois
fica provado que o casamento de Fenice e Alis jamais fora consumado.
Chrtien termina sua histria com o coroamento de Cligs e com um alerta ao
perigo das mulheres:
Ningum jamais desconfiou dela nem reclamou de nada, ela nunca foi
mantida reclusa como o foram em seguida aquelas que a sucederam.
Depois dele no houve imperador que no temesse que sua mulher
soubesse engan-lo bem, quando lhe contavam como Fenice enganou
Alis (CHRTIEN DE TROYES, 1994, vs. 6678-6687).
Como podemos perceber, Chrtien criou uma histria que se passa no Oriente,
mas na realidade, a Grcia do autor a prpria Frana. Tudo recriado para lembrar o
ambiente das cortes do sculo XII, inclusive o comportamento das damas e cavaleiros.
A Bretanha, por sua vez, aparece como o lugar da lenda, atemporal. Ressoa tambm
uma lembrana de Tria. Assim, aparecem novamente as diferentes influncias do autor
num processo que Mla chama de translatio, pois na ordem das histrias transpostas
para o romance (no sentido lingustico e tambm formal), os lugares que aparecem
sucessivamente so Tria, Roma e Bretanha, mas na realidade das culturas a sequncia
se transforma em Grcia, Roma e Frana (MEL, 1994, p. 08).
Lancelot um romance de adultrio
O cavaleiro Lancelot ficou famoso por ser o amante da rainha Guinevere, esposa
do rei Artur. A primeira vez que essa histria foi contada foi entre 1177 e 1181 pelas
mos de Chrtien de Troyes. O tema lhe fora proposto, como o prprio autor nos conta,
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por Maria, condessa de Champanhe: Uma vez que minha dama de Champanhe quer
que eu faa um romance, eu o farei com muito gosto, pois perteno a ela inteiramente
para tudo que se oferea nesse mundo, sem qualquer adulao" (CHRTIEN DE
TROYES, 1992, vs. 1-6). A histria foi recontada e reescrita muitas vezes, conhecendo
uma grande proliferao em prosa que comeou por volta de 1250 e se estendeu at o
sculo XIV.
O Romance trata das provaes pelas quais passam Lancelot e Gauvain a fim de
salvar a Rainha Guinevere, esposa de Artur, que fora raptada por Maleagant, filho do rei
de Gorre. Os dois cavaleiros partem por caminhos diferentes e Lancelot quem
primeiro chega at Guinevere. Os dois passam uma noite de amor juntos e o senescal
Kai quem acusado de adultrio por Maleagant. Lancelot o enfrenta em combate
judicirio na corte de Artur. Maleagant morto e, portanto, a honra da rainha
reafirmada. O amor de Lancelot e Guinevere no descoberto. Lancelot chamado de
Cavaleiro da Charrete, epteto que aparece j no ttulo da obra e demonstra de certa
forma a devoo do amor do cavaleiro. O nome vem do episdio em que Guinevere
ordena que Lancelot suba na charrete da infmia, reservada aos criminosos como forma
de demonstrar sua total devoo amiga, pois: Aquele que ama sabe obedecer e faz
rapidamente e de boa graa. Se ele ama com todo o corao aquilo que agrada sua
amiga (CHRTIEN DE TROYES, 1992, vs. 3798-3800).
Mais uma vez podemos perceber algumas das influncias de Chrtien. A cena do
adultrio, na qual os amantes so quase trados pelas manchas de sangue no lenol (que
so atribudas erroneamente ao senescal) parece dialogar com o romance de Tristo,
com a diferena que Tristo descoberto e Lancelot poupado pelo autor. H tambm
semelhanas com tradies orais galesas. Um texto antigo chamado Vita Gildae, escrito
por Caradoc de Llancarvan anteriormente a 1136 conta a histria de como a rainha
Guennuvar fora capturada pelo cavaleiro Melvas (PNZARU, 2001). Mas seria
Lancelot realmente uma apologia ao adultrio? Ora, mesmo sendo adltero, Lancelot
o heri da histria, tanto que o autor o poupa e seu relacionamento com a rainha no
descoberto. Pelo contrrio, as suspeitas recaem sobre Kai, o senescal do rei que fora
responsvel pela captura da rainha por Maleagant. O autor parece considerar muito mais
grave trair o suserano do que o marido. Mas as duas coisas no so necessariamente
diferentes uma da outra, uma vez que podemos interpretar o casamento como uma
forma de relao vasslica, como diz Joseph Morsel. Ele traa um paralelo entre os
laos de vassalagem e o casamento, no qual o segundo se estabelece como um modelo
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du rapport seigneurial (MORSEL, 2004). Condenar a traio ao senhor tambm
condenar o adultrio.
Dessa forma, podemos dizer que Chrtien, longe de celebrar, critica os
sentimentos que movem os adlteros. Tanto Lancelot quanto Guinevere tem conscincia
de que o amor que sentem um pelo outro errado, da o fato de se esforarem por
manter seus sentimentos escondidos. A rainha chega ao ponto de receber Lancelot com
descaso para disfarar seu amor pelo cavaleiro. Ningum pode saber. Por isso se
encontram clandestinamente, quando todos dormem, e a rainha se desespera diante da
possibilidade de ser descoberta. Assim, o que Chrtien parece nos mostrar que as
relaes extraconjugais eram uma realidade das cortes, uma realidade condenvel, e que
poderia trazer problemas srios para as relaes feudais.
Ivain o cavaleiro ideal
Com Ivain, Chrtien de Troyes mais uma vez explora o tema do cavaleiro que
precisa expiar seus erros atravs de provaes. Assim como Erec, Ivain precisa partir
em busca de aventuras para provar seu valor, mas o faz sozinho. E o autor nos indica
que essa histria no apenas um divertimento passageiro, mas se trata de um
acontecimento que pode levar reflexo:
Os ouvidos so a via e o caminho pelos quais a voz chega ao corao;
E o corao guarda bem no seu fundo a voz que pelo ouvido o
penetra. Portanto, aquele que quiser me compreender, deve me
entregar o corao e os ouvidos; Pois, minha inteno no lhes
propor fantasias, nem fbulas ou mentiras que tantos outros j
contaram, eu contarei aquilo que vi (CHRTIEN DE TROYES, 1990,
vs. 165-174).
De fato, o personagem de Ivain passa por grandes provaes que o levam
selvageria e loucura at que ele possa se redimir e se tornar o cavaleiro ideal. Alm
disso, a histria tem um elemento de metalinguagem uma vez que o jovem cavaleiro
parte em busca de aventura e honra inspirado por uma histria (como se fosse tambm
um roman) contada na corte de Artur por um cavaleiro chamado Calogrenant. Isso
provavelmente aproximava a obra do pblico que se encontrava na mesma posio: em
uma corte ouvindo as histrias do grande cavaleiro.
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Tudo comea quando Ivain derrota um cavaleiro vingativo que atormentava a
todos que chegavam a uma fonte encantada. Em seguida ele se apaixona pela viva e
acaba por casar-se com ela. Deparamo-nos com um perfeito exemplo de prtica feudal:
a herdeira precisa de um cavaleiro para servi-la e esse cavaleiro, por mrito, ganha a
mulher e o feudo. Eles se amam, mas assim como Erec, Ivain precisa provar seu valor
de cavaleiro e parte numa jornada junto com Gawain (BARTHLEMY, 2010, p. 526).
Sua esposa, Laudine, determina que ele regresse no prazo de um ano e quando ele no o
faz, repudia-o publicamente. Seguem ento os martrios de Ivain, sua loucura e
redeno para finalmente conseguir o perdo da esposa e retomar seu lugar ao lado dela.
nesse percurso que Ivain se transforma no modelo de cavaleiro que cumpre
sua funo social segundo o ponto de vista da Igreja. Ele assume o papel de um tipo de
justiceiro, defensor dos desamparados. Um exemplo quando ele vai ao auxlio de uma
jovem para defend-la da irm mais velha que a acusara falsamente de trai o: Ele
viajou toda a semana, segundo as indicaes da jovem que conhecia muito bem o
caminho do local onde ela deixara a deserdada em desespero e doente (CHRTIEN
DE TROYES, 1990, vs. 5813-5818). Outro forte simbolismo da cavalaria medieval
aparece no epteto de Ivain: Cavaleiro do Le o. Ele salva um le o, o animal mais
nobre de todos e smbolo constante da cavalaria, das garras de uma serpente, animal que
representa o pecado segundo a viso religiosa crist. O animal passa a acompanh-lo
fielmente e o caracteriza como um grande cavaleiro corts, impressionante e generoso.
A histria de Ivain inspirou muitas outras que se seguiram, marcadamente a verso de
Hartmann von Aue, Iwein, escrita em alemo antigo por volta de 1203, e uma verso em
ingls antigo, Yvain and Gawain. O mote da loucura do cavaleiro foi retomado
posteriormente em Orlando furiso de Ariosto, escrito em 1516.
Muito foi dito sobre as influncias e fontes que Chrtien de Troyes teria tido na
composio de seus romans. Embora seja quase impossvel determinar de que forma o
autor entrou em contato com as diferentes inspiraes e at que ponto ele se utilizou
delas deliberadamente, podemos claramente afirmar que ele tinha conhecimento das
tradies literrias ou orais das populaes da Bretanha e da Britnia. Como foi dito
acima, embora o termo romans tivesse um sentido original de traduo, a obra de
Chrtien tambm trouxe algo de novo que viria a inspirar gerao aps gerao.
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O Tristo de Broul
O romance de Tristo e Isolda foi por muito tempo fonte de inspirao e modelo
para expresso afetiva do Ocidente. A experincia sentimental transmitida pelo romance
ultrapassou o limiar da lenda para tornar-se um mito, que durante sculos propagou a
fatalidade que circunda o amor-paixo. A popularidade contempornea do romance de
Tristo e Isolda deve-se em boa medida ao processo de divulgao e interiorizao das
vrias verses da lenda oriundas das transcries produzidas a partir da segunda metade
do sculo XII. Temos uma diversidade considervel de narrativas conservadas da Idade
Mdia. So elas: o Tristo de Broul (cerca de 1170); o Tristan de Thomas (cerca de
1175); a Folie Tristan de Berne e a Folie Tristan de Oxford (final do sculo XII); a
cano Chvrefeuille de Marie de France (final do sculo XII); o Tristo alemo de
Eilhart dOberg (final do sculo XII) e o de Gottfried de Estrasburgo (incio do sculo
XIII); O Tristan da Saga Nrdica do rei Haakon da Dinamarca (1226); o Tristan em
prosa (1230) e as verses inglesa (Sir Tristrem) e italiana (Tristano), ambas do final
sculo XIII; o heri Tristo ainda aparece na Demanda del San Graal espanhola, na
Demanda do Santo Graal portuguesa, na Tavola Ritonda italiana, todas compostas no
sculo XIV e, finalmente, na obra a Morte dArthur (sculo XV) do ingls Thomas
Malory.
Desde o final do sculo XIX, quando Joseph Bdier se debruou sobre os
estudos da legenda tristnica, as diferentes narrativas do romance so reunidas em dois
grupos: a verso comum e a verso corts. A primeira seria representada pelas
narrativas de Broul e Eilhart dOberg, que de maneira primitiva e pouco preocupada
com a polidez dos modos corteses, descreveu personagens violentos, sensuais,
vingativos e sem escrpulos. O segundo grupo, ilustrado pelas narrativas de Thomas e
de Gottfried de Estrasburgo, destacou o perfil corts das personagens, focando-se nos
distrbios scio-morais provocados pela ingesto da poo de amor por Tristo e Isolda.
As razes que impulsionam essa diviso sustentam-se principalmente no fato de que a
verso corts parece estar mais focada em apresentar o conceito de amor corts que se
desenvolveu na corte francesa durante o sculo XII, sendo que as narrativas
concentram-se em detalhar a turbulncia emocional sofrida pelos amantes. O grande
contraste entre as duas verses reside nos efeitos dados poo do amor: enquanto na
verso comum a eficcia da poo do amor tem prazo de durao, na verso corts seus
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efeitos so permanentes e devastadores no condicionamento da vontade dos
personagens (FRAPPIER, 1963).
Diferentemente de Joseph Bdier, o estudioso das narrativas francesas do
Romance de Tristo Jean-Charles Payen preferiu conceitu-las de maneira mais precisa:
a verso pica, na qual se destaca o Tristo de Broul e o Tristan de Gottfried de
Estrasburgo; a verso lrica, com o Tristan de Thomas; e uma terceira tradio, a verso
cavaleiresca, na qual se inserem os textos em prosa do Tristo. A verso pica
caracteriza-se pela narrao de grandes acontecimentos, dentro dos quais se destacam os
atos hericos de Tristo e a tica guerreira baseada nos laos de solidariedade e
dependncia ao poder senhorial. As personagens tm pouca densidade psicolgica, mas
h muita exortao ao pblico com o objetivo de estreitar o vnculo entre o autor e o
auditrio. A trama narrativa marcada por quadros excessivamente independentes,
como se alinhavasse diversos contos separados. A verso lrica assim chamada pelo
desenvolvimento dos monlogos afetivos que tratam da cortesia. Nesse tipo de verso
as problemticas feudais do lugar aos dramas psicolgicos da afeio entre homem e
mulher. J a verso cavaleiresca remodela os amores vividos pelos heris e os coloca
como resultado/recompensa de suas aes a servio da sociedade. Essa terceira via
narrativa representaria o ponto de interseco entre as verses picas e lricas,
estabelecendo um equilbrio entre as determinaes do cdigo de disciplinamento
cavaleiresco e os ideais lricos do amor corts.
Apesar das diversas classificaes que podem reunir as vrias narrativas do
Romance de Tristo produzidas durante a Idade Mdia, nos importa destacar que antes
de serem relatos fictcios sobre o amor, so documentos histricos, que trazem tona
representaes especficas das relaes sociais dos ambientes feudais. Enquanto um
discurso ideal que a aristocracia laica criou e divulgou sobre si mesma, essas narrativas
eram sensveis aos cdigos sociais partilhados com o restante da sociedade feudal.
Nesse sentido, optamos por observar mais de perto a vers o pica do Tristo
composta pelo normando Broul: aquele que tem mais em sua memria, do que
outros obreiros do ofcio, pois a viu escrita5. Diferente de outros romans do perodo, o
Tristo de Broul no se limita glorificao de personagens perfeitas, ele explora sua
humanidade, seus vcios e virtudes, suas dvidas e certezas, seus medos e sua coragem.
Seja abordando a valorizao da cavalaria, o matrimnio ou as relaes entre o poder
monrquico e o poder senhorial, Broul tratou, com propriedade, questes relevantes da
experincia histrica laica.
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Provavelmente egresso de algum mosteiro do Norte da Frana, Broul afastou-se
dos muros do monastrio para proclamar lendas e histrias que divertiam as cortes
laicas. Da sua narrativa nos chegou um fragmento com 4.485 versos, sendo que 34 deles
no podem ser decifrados. O manuscrito original do Tristo de Broul encontra-se na
Bibliothque Nationale de Paris, sob o nmero 2171, com 32 flios. Sua primeira
edio foi feita por Ernest Muret no incio do sculo XX. A determinao da origem
geogrfica do manuscrito incerta, mas est muito ligada ao estudo especfico dos
dialetos que compem o fragmento. No caso, a lngua de Broul compreende traos dos
dialetos picardo e normando, mas a sintaxe arcaica como nas canes de gesta
(HOLDEN, 1989). Sua lngua se distingue pouco do dialeto empregado no Nordeste da
Frana. Como seus usos lingsticos podem advir das contribuies de uma vida errante
comum a um trovador, esse manuscrito pode ser originrio de uma zona geogrfica
muito extensa, que se estende do sul da Normandia, alta Bretanha, Anjou e Touraine
(REID, 1964).
Existe uma longa polmica acerca da autoria do Tristo de Broul. Alguns
autores, como Timothy B. W. Reid e Raynaud de Lage (REID, 1964), insistem na
unidade duvidosa do texto, assegurando que so duas partes distintas, compostas em
lugar, tempo e por autores diferentes. A primeira parte do manuscrito compreenderia os
versos 01 a 2752 (incio do fragmento at a restituio da rainha Isolda ao rei Marcos) e
a segunda parte iria do verso 2765 ao 4485 (restituio da rainha at a vingana contra
os bares). No intervalo existente entre a primeira e a segunda parte, especificamente
dos versos 2753 a 2764, haveria uma dificuldade sria em determinar o limite preciso
que destacaria uma parte da outra, pois a rima e o estilo da escrita esto muito
prximos. Fica aqui a primeira dvida sobre a dupla autoria: Se no espao de dez versos
as diferena so to imperceptveis, no seria esta a indicao de que um nico Broul
comps integralmente o texto?
Timothy Reid num exame sistemtico da lngua do fragmento acreditou poder
afirmar a divergncia entre as duas sees, caracterizando a primeira parte por uma
composio mais grosseira das rimas e com o estilo pico mais prximo das canes de
gesta. Numa anlise lingustica a primeira parte apresenta um trao particular que o
comportamento anormal das consoantes dentais t e d, tambm o t presente no final das
palavras constante, enquanto que na segunda parte ele deixa de existir. Na segunda
parte, Reid v rimas evoludas mais prximas ao estilo de escrita dos trovadores da
lngua doc da segunda metade do sculo XII. No entanto, a maioria dos estudiosos do
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Tristo afirma que o manuscrito foi composto por um s Broul (HOLDEN, 1989;
ZUMTHOR, 1993; FRAPPIER, 1963), principalmente porque h um conjunto de
significados relativos ao contedo scio-cultural das personagens que no se modifica
no desenrolar da histria6. Mesmo numa anlise sistemtica da lngua empregada no
fragmento, os pontos comuns entre as duas partes superam as suas diferenas. Segundo
Anthony Holden, no possvel fundamentar sobre a lngua do fragmento a tese da
dupla autoria, porque as oposies so ilusrias.
A datao do manuscrito outro ponto longe de um consenso. Atravs de um
conjunto heterogneo de informaes elementos histricos presentes no manuscrito, o
cruzamento de personagens e localidades com outras fontes a hiptese mais
sustentada que o Tristo de Broul foi composto entre 1160 e 1190. A informao
histrica mais relevante presente no manuscrito de Broul a aluso epidemia que
ocorreu entre os cruzados na sede DAcre no inverno de 1190/91 (BLAKESLEE, 1986).
Entretanto, o estudo de Merritt Blakeslee questionou esse indcio histrico. Para o autor,
quando Ernest Muret fez a edio do manuscrito em 1907, ele corrigiu a expresso mal
dages por dacre, alterando o sentido original do verso. O disfarce e os sintomas de
Tristo descritos na passagem esto mais prximos da lepra do que da epidemia que
afligiu os cruzados em 1190. Alm disso, numa distncia de menos de 100 versos de
onde aparece a expresso mal dages h o emprego de degiez, que significa leproso ou
enfermo, para designar o disfarce de Tristo. Merritt Blakeslee explica que o copista do
manuscrito ao invs de usar o termo degiez, empregou uma abreviao comum a outras
expresses presentes no manuscrito.
Ao longo do fragmento com 4485 versos, Broul expe uma apreenso muito
rica sobre as formas de organizao da sociedade feudal. A forma como representa a
estrutura de parentesco uma delas. No Tristo de Broul, os elos de consanguinidade
so importantes para a valorizao do tema central que o relacionamento amoroso e
adltero entre Tristo e Isolda. Pois, a relao consangunea entre Tristo e o rei Marcos
pretende provocar a perplexidade do espectador diante do amor considerado sem
culpa perante Deus existente entre Isolda, esposa de Marcos e Tristo, sobrinho deste.
A representao que esta literatura faz da linhagem, das relaes de poder e autoridade
dentro da corte parece seguir caminhos divergentes daqueles atestados pela
historiografia do parentesco, uma vez que h valorizao de uma relao adltera em
detrimento dos vnculos de solidariedade entre o rei e seus prximos. O termo parent
o primeiro a ser utilizado para determinar a natureza dos vnculos de parentesco e sua
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importncia no contexto da obra. Ele aparece entre os versos 69 e 73, no espao
narrativo da corte, onde os amantes esto sendo flagrados pelo rei Marcos, que os
espreita sobre o pinheiro: Trist o, seguramente, o rei n o sabe que por ele eu vos amei:
Porque sois da parentela, eu vos tenho afei o (BROUL, 1999, vs. 69-73).
O vocbulo parentela (parant), um substantivo masculino, se reporta a um
grupo de parentes, e no propriamente a uma relao. Se substituirmos o termo pela
palavra grupo, o sentido da passagem parece mais claro e determinante, pois a partir
do grupo de parentesco, que relaes so formadas, sejam elas afetivas ou materiais. No
caso, a relao e a afeio de Tristo e Isolda esto circunscritas ao pertencimento de
Tristo parentela do rei. Nesse dilogo Isolda explica a Tristo a natureza positiva e
sem concupiscncia do sentimento que devota a ele, alicerando-o na existncia de um
vnculo de parentesco entre ele e o rei. Apesar de o narrador nos deixar a par do carter
dissimulado do discurso que Isolda profere para enganar o rei, este no desconfia das
palavras ditas, pois elas descrevem o que se espera de uma relao entre parentes
porque Tristo est inserido na parentela do rei Marcos e desfruta da afeio de sua
esposa. Atentos ao carter condicional da afeio, verificamos que o vocbulo afeio
(chert), um derivado do termo caridade (chiert), reporta-se a uma afeio pura,
despida de malcia ou interesse. Nesse caso, a afei o n o um simples querer bem,
mas um apego sincero proveniente da caridade, conforme nos apresenta seu
correspondente latino: caritas. O termo em lngua dol mantm com seu
correspondente latino parentescos lingusticos, em primeiro lugar pelo significado que
alcana, em segundo por ser aplicado exclusivamente ao ambiente do parentesco. Na
obra, a nica ocorrncia deste termo em meio parentela indica uma acepo complexa
da mesma, uma vez que as relaes determinadas por ela tm uma caracterstica
primordial fundamentada na chert/caritas7.
O termo linhagem (linage) no corrente no Tristo, o que no elimina a
evocao da relao determinante em contextos onde Broul no utiliza a palavra. A
primeira ocorrncia se d entre os versos 123 e 125, no espao da corte sob o efeito da
beberagem de amor, uma folha depois da passagem referente ao vocbulo parentela.
Como salientamos acima, naquela circunstncia Tristo e Isolda encontravam-se
embaixo do pinheiro e sob o olhar atento do rei Marcos. Cientes da situao flagrante,
ambos tentam desviar a ateno do rei do motivo real que os levou quele encontro.
Procuram desvencilhar-se de qualquer ao incriminadora, atacando e desqualificando a
moral dos bares cognominados traidores e bajuladores que os denunciam como
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adlteros. Agora eu vejo bem, que me afastam porque eles n o queriam que consigo
tivesse homem de sua linhagem (BROUL, 1999, vs. 123-125).
O termo linhagem (linage), primeiramente, assinala a noo de grupo, do qual
Tristo faz parte e, pelo que se apresenta, esto excludos os bares, pois eles so
claramente acusados de tentarem afastar do rei o homem de sua linhagem,
reconhecido na pessoa de Tristo. Se eles tambm participassem da linhagem do rei,
no haveria porque o narrador assentar sobre esta qualidade o motivo da perseguio
dos bares. Nesse caso, se o aparecimento do termo estreita, ao invs de dilatar, a noo
de grupo, podemos assinalar a primeira restrio de parentesco definida pela obra.
Apenas Tristo integra a linhagem do rei, e como tambm seu sobrinho, podemos
considerar aqui que o termo linhagem define um grupo de parentesco restrito
consanguinidade.
Tristo enfatiza o desejo dos bares de o manterem longe do rei, atribuindo a
perseguio deles ao fato de pertencer linhagem do rei, o que o colocaria como
sucessor ideal na falta de um herdeiro direto. Entretanto, o problema para os bares est
na infidelidade de Isolda, principalmente, porque a comprovao do adultrio
acarretaria o questionamento da legitimidade sucessria dos herdeiros nascidos da
rainha. Alm disso, a posio de Marcos como rei seria abalada, pois simbolicamente, a
rainha tem papel fundamental como elo de ligao entre o rei e seu reino8 e, ao ceder a
rainha a seu sobrinho, o rei Marcos permite que Tristo se apodere do elo representado
por ela. A comprovao da infidelidade de Tristo tambm prejudicaria a legitimidade
do poder do rei Marcos, pois com a condenao do sobrinho, Marcos, alm de perder o
principal defensor da Cornualha e toda a valentia e popularidade presentes em sua
figura, desqualificaria sua prpria linhagem ao admitir um membro desleal e desonrado
em seu interior.
Broul deixa subentendido que defender o rei do possvel adultrio no a nica
preocupao dos bares, uma vez que, por trs desta defesa despretensiosa, eles
conservam a inteno manipul-lo. Os bares so tambm os primeiros a serem
beneficiados pela ausncia de um herdeiro e pela fragilidade moral do rei e do reino
perante a iminncia do adultrio, pois com todas as atribulaes causadas pelo
desequilbrio moral do rei e de seu sucessor, restam a eles o controle e a administrao
do reino. Na segunda ocorrncia do termo linhagem, no verso 3427, a figura
questionada e perseguida no Tristo, mas a rainha Isolda.
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A rainha se reconciliou com seu senhor, no h segredo: Senhor, l
onde eles se reconciliaram, estavam todos os bares do reino. Tristo
se ofereceu ao duelo judicirio para justificar a rainha, diante do rei,
por lealdade. Mas ningum da corte de Marcos quis pegar as armas.
Senhor, agora fazem o rei Marcos ouvir que ela deve justificar-se. No
h nobre homem, Francs ou Saxo, na corte do rei, de sua linhagem
(BROUL, 1999, vs. 3415-3427).
Embora, no primeiro trecho do Tristo, a palavra linhagem seja atribuda a uma
ligao por linha materna, na passagem seguinte referente linhagem de Isolda o
mesmo no ocorre. A referncia aleatria aos franceses e saxes no confirma nem nega
uma linhagem restrita aos consanguneos. O reconhecimento de uma tendncia agntica
tambm no possvel, j que a fonte somente menciona a origem territorial de Isolda:
Irlanda9. Dessa forma, os resultados alcanados com a primeira ocorrncia da linhagem,
so agora diludos por inmeras possibilidades, que no podem ser confirmadas nem
descartadas. Como para o vocbulo parentela, o termo linhagem no empregado para
incluir outros membros no grupo que define. O aparecimento destes termos determina
apenas uma vinculao clara entre Tristo e o rei Marcos. A linhagem fechada e
consangunea triunfante sucumbe diante dos interesses do grupo extenso, extremamente
ativo neste documento vernculo.
Na obra, temos duas tendncias concorrentes: uma que indica a necessidade do
rei Marcos manter-se unido aos bares, mesmo que isso signifique o afastamento de
Tristo; e a segunda que assinala a clara preferncia do narrador Broul por Tristo.
Mesmo Tristo cometendo um delito grave contra o rei, o narrador permanece partidrio
dele, como se em seu delito houvesse um evidente motivo para a absolvio, enquanto
para os bares a condenao percorre toda a narrativa. O narrador quer anunciar as
dificuldades advindas do exerccio do poder, especialmente, quando estas dificuldades
so geradas por deliberaes incongruentes da figura real, pois o rei se apresenta
incapaz de distinguir quais relaes devem ser privilegiadas e os motivos que
determinam estas eleies. Apresentando uma monarquia combalida frente aos
desmandos dos senhores feudais, uma relao consangunea preterida em favor das
relaes de solidariedade e, finalmente, um modelo de matrimnio nada convencional
s pretenses sacramentais da Igreja, Broul questionou as posturas diante dos
relacionamentos sociais, sobretudo, o comprometimento dedicado a eles. Nessa
perspectiva, o Tristo de Broul nos conduz a inmeras possibilidades de interpretao
histrica, instigando-nos a questionar as condutas que orientam o desenvolvimento da
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vida conjugal do perodo, sua estreita relao com a atividade vasslico-cavaleiresca e
suas implicaes integridade e manuteno das relaes de poder feudal.
O Romance de Melusina
A diversidade de testemunhos documentais abarcados na noo de roman j
pde ser sentida no momento em que o vocbulo comeou a circular, o que demonstra a
complexa rede de sentidos em que estava inserido. Referindo-se inicialmente lngua
do texto, o vocbulo romance, como vimos, no definia propriamente a forma do texto,
que na maior parte das vezes era apresentado em versos. Ao longo dos sculos XIII e
XIV, a forma do texto liberta-se do que do que Paul Zumthor chamou de coer o
vocal imposta pelo verso, promovendo assim a proliferao da prosa narrativa (1993).
Alguns autores comeam a mostrar preocupao com a intuio dos versos,
questionando sua capacidade de representar a verdade. O romance em prosa torna-se
assim uma alternativa na busca por um discurso mais verossmil. Isto no significa que
seus autores vo deixar de utilizar mitos, lendas e histrias fantsticas como base para a
criao de seus romances.
Nesse sentido, nos dedicaremos apresentao de um romance em prosa escrito
no final do sculo XIV para discutir outros aspectos referentes a esse tipo de
documentao. O Roman de Mlusine ou LHistoire des Lusignan nos ajudar a
exemplificar a permeabilidade do gnero romanesco no final da Idade Mdia e suas
inmeras influncias. Utilizando a fluidez do gnero a seu favor, o autor do Romance de
Melusina no se furtou a certas necessidades formais, em especial a referncia s
autoridades para valorizar e legitimar o discurso que pretendia divulgar. O duque Jean
de Berry, conhecido mecenas dos sculos XIV e XV, encomendara a Jean dArras essa
narrativa que deveria contar da forma mais prxima da verdade, a histria da fundao
da fortaleza dos Lusignan que o duque tinha em seu poder. Com esse compromisso, o
autor constri seu romance, que herda uma estrutura j conhecida a unio de uma fada
com um mortal e a transgresso a um interdito, que causa a separao do casal mas
que preenchida com referncias, reflexes e idias de diversos gneros textuais da
Idade Mdia, como as canes de gesta, os Espelhos de Prncipe, os escritos filosficos,
tratados teolgicos, etc.
Aproximadamente dez anos aps Jean dArras ter elaborado o Romance de
Melusina, Coudrette escreveu a pedido de Guillaume lArchevque um romance que
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narrava a mesma histria, a qual o autor optou por colocar em versos. A influncia da
obra de Jean dArras flagrante, seja nas passagens narradas, seja na forma como os
fatos so encadeados. Em verdade, a ancestralidade mtica dos Lusignan j havia sido
evocada em outras obras. No incio do sculo XIV, Pierre Bersuire no Reductorium
morale escreve que a fortaleza dos Lusignan havia sido fundada por uma fada que teria
deixado inmeros descendentes. No entanto, a fada ainda no tinha o nome Melusina e
a histria no tinha a estrutura que lhe seria dada posteriormente. A reside a
importncia do romance de Jean dArras que, alm de dar um nome ancestral, mescla
elementos histricos a uma estrutura mtica na busca de construir uma narrativa o mais
verossmil possvel daquela linhagem. Esse romance se torna a principal fonte tanto
para o romance de Coudrette, quanto para as obras posteriores sobre Melusina e os
Lusignan.
Tanto o Romance de Melusina de Jean dArras, quanto o de Coudrette foram
traduzidos para diversas lnguas ao longo dos sculos XV e XVI: ingls, flamengo,
tcheco e espanhol. O romance de Jean dArras foi o primeiro livro ilustrado impresso
em francs na cidade de Genebra em 1478, tendo conhecido 22 edies entre 1478 e
1597. Em 1520 aparecem dois romances baseados no de Jean dArras: um de ttulo
Romance de Melusina e outro romance de nome Godofredo, o Dentuo. Menes
Melusina, tal como aparecem no romance de dArras, ser o feitas em vrios escritos dos
sculos subseqentes (LADURIE; LE GOFF, 1971). Essa histria tornou-se
amplamente conhecida e a ligao entre Melusina e os Lusignan parece ter sido muito
bem tecida nesses escritos.
O Romance de Melusina, datado de 1392, escrito pelo prprio punho de Jean
dArras jamais foi encontrado. A edi o utilizada neste texto a feita por Jean-Jacques
Vincensini, baseada no manuscrito da Biblioteca do Arsenal, confrontada pelo autor
com todos os outros manuscritos, sendo as variaes devidamente apontadas. O texto
em francs antigo foi reproduzido na ntegra. A estrutura bsica do documento se
compe de 35 episdios, que poderamos dividir em quatro grandes partes: 1 A
origem de Melusina; 2 O encontro de Melusina com Raimundo; 3 A prosperidade
dos Lusignan aps o casamento: nascimento dos filhos, construes de castelos,
conquistas territoriais e ida s Cruzadas; 4 Transgresso do interdito e separao do
casal. O documento ainda ilustrado com 36 desenhos referentes a passagens
diferenciadas da histria que no correspondem necessariamente a cada episdio, o que
significa dizer que em certas situaes existem dois desenhos ou mais que retratam
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passagens do mesmo episdio e que existem episdios sem nenhum desenho que os
ilustrem. O inventrio do duque Jean de Berry comprova o ttulo que recebeu de seus
contemporneos: o prncipe dos biblifilos10
.
Jean dArras, sobre quem se sabe muito pouco, estava a servio desse homem.
Ele teve sua disposio toda a biblioteca de Berry, alm de vrias crnicas as quais ele
chama de autnticas, que teria recebido de Jean de Salisbury. Como Froissart e
Guillaume de Machaut, dArras parece ter estado a servio de importantes senhores da
Frana, at mesmo do rei Carlos VI. Vincensini afirma que ele era conhecido como
mestre na arte de descobrir intrigas e narr-las. Mas o mecenato interferiu enormemente
no s nas condies da escrita, mas tambm no tema, como veremos mais frente. A
patronagem do duque de Berry em relao obra de Jean dArras pode ser comprovada
pela remunerao do escritor11
. Jean de Berry j conhecido mecenas, mantinha Jean
dArras entre as pessoas que estavam a seu servio, como mostra seu livro de contas.
Alm disso, no prlogo do Romance de Melusina, dArras afirma que estava escrevendo
aquela narrativa a pedido de Berry, que queria saber a verdade exata a respeito da
fundao do castelo de Lusignan, tendo, para isso, lhe disponibilizado crnicas
autnticas, pois desejava uma narrativa o mais fiel possvel aos fatos acontecidos. A
relao do autor, que se prope a atender os desejos de seu mecenas da melhor forma
que puder, vai marcar de forma definitiva a narrativa. A estrutura do conto
melusiniano usada para narrar a histria dos Lusignan e a influncia do mecenas ser
sentida ao longo do texto. Um exemplo que vrios episdios do romance se passam
em lugares onde os nobres eram aliados ao duque de Berry.
A estrutura bsica do Romance de Melusina obedece lgica dos contos
melusinianos, textos da Idade Mdia que narram histrias estruturadas da seguinte
forma: um mortal, homem ou mulher, encontra um ser sobrenatural e a ele se une.
Durante o tempo que est junto, o casal goza de uma unio feliz e prspera. Mas sempre
ocorre a separao que na maioria das vezes, causada pela transgresso de um
interdito, geralmente imposto pelo ser sobrenatural antes da unio. Textos como esses
foram produzidos em diferentes locais e pocas, tanto em lngua latina, quanto em
lnguas vernculas, sendo que elementos diversificados so acrescidos estrutura
bsica. Mas alm dessa estrutura bsica, no Romance de Melusina identificamos a
presena de vrios motivos e influncia de diversos estilos literrios. Tal como um
Espelho de Prncipe, o romance de dArras oferece conselhos da vida moral, espiritual,
oposies e embates entre virtudes e vcios, conselhos de governo, e traz esteretipos
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tpicos desses escritos. O discurso de Melusina, na partida de Guido e Uri para o
Oriente, um exemplo:
Meus filhos, eu vos recomendo que onde quer que estiverdes, comeai
o dia assistido ao servio divino, antes de qualquer coisa. Em vossos
projetos implorai a ajuda de vosso criador; servi diligentemente, amai
e temei vosso Deus e vosso criador. Defendei nossa santa me Igreja,
e sedes seus verdadeiros paladinos contra todos os seus inimigos.
Defendei as vivas e os rfos; respeitai todas as senhoras, socorrei
todas as jovens [...]. Prezai os homens de nobre nascimento e buscai
sua companhia. Sede humildes e humanos tanto diante dos grandes
quanto diante dos pequenos (DARRAS, 2003, p. 87-89).
O enorme discurso de onde este trecho foi extrado contm normas para o
comportamento na guerra, nas batalhas e em relao administrao de territrios
conquistados. Vincesini atenta para o fato de que tais exortaes so baseadas naquelas
presentes no Scret des screts, obra do incio do sculo XIV, na qual constam alguns
conselhos para um bom governo. Dentre os muitos exemplos, podemos citar o topos
que estabelece uma relao fundamental entre rei e justia. No seguinte episdio temos
um exemplo de como esse motif foi trabalhado por Jean dArras. O primeiro
empreendimento de Raimundo aps o casamento foi a reconquista de alguns territrios
que pertenceram a seu pai na Bretanha. Ele vai reclamar as terras que, injustamente,
foram dadas a outro homem: Senhor grande e poderoso rei, disse Raimundo, a fama
unnime de nobreza e razo que tem vossa corte em todas as terras, faz dela uma
verdadeira fonte de justia e de direito. Dizem que ningum a que esta corte venha
deixa de receber justia (DARRAS, 2003, p. 238). O rei lhe responde: eu juro por
tudo o que recebi de Deus que farei plena justia, mesmo que contra meu irmo fosse,
caso tivesse um (DARRAS, 2003, p. 238). E Raimundo lhe diz que aquelas palavras
eram sbias j que exatamente para manter a justia e a verdade que a realeza foi
fundada! (DARRAS, 2003, p. 240). A relao entre o rei e a justia era muito comum
nos espelhos de prncipe do final do sculo XIV, sendo um dos esteretipos preferidos
deste gnero. A presena dessa ideia no Romance de Melusina revela sua dimenso
pedaggica, j que a fonte expe idias que deveriam nortear o comportamento e as
aes dos prncipes, como os prprios espelhos faziam.
Outro motivo muito comum em vrios textos medievais o da Roda da Fortuna.
Ela aparece em vrios episdios do romance como, por exemplo, quando Raimundo se
lamenta por ter trado Melusina porque a viu em forma de serpente:
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Fortuna cega, amarga e acerba, tu me levaste da mais alta posio da
tua roda para a mais baixa, para o lugar mais enlameado e sujo de tua
casa, para o lugar onde Jpiter mata a sede dos infelizes, dos
sofredores, dos aflitos, dos desesperados. Deus te amaldioe! Por tua
causa cometi um crime horrvel contra meu querido senhor e tio.
Agora queres que eu pague! Ai de mim! Poupaste-me essa grande
punio e me deste grande autoridade, graas sabedoria e s
qualidades da melhor das melhores, da mais bela das belas, da mais
sbia das sbias. E agora me fazes tudo perder, zarolha imunda,
traidora, invejosa! bem louco quem se fia em teus presentes! Agora
amas, depois odeias; ora constris, ora destris; no h mais certeza
nem estabilidade em ti do que num galo de cata-vento (DARRAS,
2003, p. 664).
Esta referncia Roda da Fortuna uma das mais importantes do Romance de
Melusina, porque foi feita em um momento de lamento, em uma situao na qual
Raimundo se arrepende profundamente de seus atos, embora no assuma total
responsabilidade por eles. So momentos nos quais a Roda da Fortuna tem aspecto
sombrio e traioeiro, aparecendo como determinante da vida humana. Os prprios
moradores do castelo lamentaram a separao do casal, culpando a Fortuna pelo fato:
Prfida Fortuna, como podes ser t o falsa e t o perversa a ponto de separar esses dois
sinceros amantes? (DARRAS, 2003, p. 696). O fato de Raimundo ter visto Melusina
no dia proibido no seno obra da senhora que governa a vida de todos e que est
sempre espreita para punir os que cometem erros, a Fortuna.
O Romance ainda traz elementos literrios das canes de gesta, lais, crnicas,
livros de cavalaria e tratados de moral, possuindo passagens didticas. Contm um
prlogo e um eplogo mais filosficos, que apontam para idias aristotlicas e
discusses teolgicas ao insistir na impossibilidade de se conhecer os desgnios de
Deus. Essas caractersticas fizeram com que o romance fosse considerado no uniforme
e desproporcional, dada a impossibilidade de o enquadrarmos num gnero nico. Por
isso, o Romance de Melusina nico dentre os outros contos melusinianos, pois o
autor, apesar de receber uma estrutura pronta, a preenche de uma forma tal que impede
que seu contedo seja descartado. Vincensini afirma que, ao abrir esse romance n o se
deve esperar entrar em um conto de fadas (2003, p. 24), j que ele mais se parece,
segundo o autor, com uma crnica de pretenses histricas. Como vimos trata-se de um
romance medieval tpico da Baixa Idade Mdia, que incorpora vrios elementos
apontados por Zumthor quando qualifica esse tipo de fonte: Operada por um indivduo
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apenas arranhado pela cultura livresca, a colocao em prosa tem por destinatrio
qualquer pessoa do meio cavaleiresco e nobre (ZUMTHOR, 1993, p. 266).
Caractersticas das crnicas histricas do final da Idade Mdia tambm podem
ser encontradas em nosso Romance, cujo relato estava a servio da memria principesca
tal como vrias crnicas do perodo. Guy Bourd e Herv Martin ao escrever sobre a
concepo e a escrita da histria na Idade Mdia revelam que:
A crnica da Baixa Idade Mdia, sob a forma aparentemente ingnua
do simples relato, onde o freqente uso do passado simples refora a
iluso de um encadeamento automtico dos fatos e dos gestos, pode
veicular uma mensagem ideolgica perfeitamente explcita. Depois do
servio de Deus, preocupao principal dos historigrafos o sculo
XII, impe-se a dos senhores e dos prncipes (BOURD; MARTIN,
S/D, p. 33).
Os duques de Borgonha mantinham historigrafos, cuja misso era por em
forma por maneira de crnica fatos notveis dignos de memria verificados a partir
daqui e que advm e podem muitas vezes advir (BOURD; MARTIN, S/D, p. 34).
Trata-se de uma histria ligada ao poder, compromisso assumido tambm por nosso
autor quando recebe a tarefa de escrever a histria dos Lusignan. Mas, o Romance de
Melusina , sobretudo, um romance de origens assim como outros do sculo XIV: O
Mliador (1365-1380) de Jean Froissart, Ysaye le triste (ap. 1350) e Perceforest
(aproximadamente 1340). Esses testemunhos narram a histria de um personagem que
teria uma ancestralidade na maioria das vezes ligada aos cavaleiros da tvola redonda.
Em relao a eles, a originalidade do Romance de Melusina consiste em no ligar os
Lusignan a uma ancestralidade arturiana.
O principal objetivo desse romance dar a conhecer a histria de uma famlia
poderosa na Frana desde o sculo XI: os Lusignan. Entre a Segunda e a Terceira
Cruzada, no ano de 1186, Guy de Lusignan tornou-se rei de Jerusalm. Aps perder o
trono da Cidade Santa, ele acabou se envolvendo em outros conflitos que culminaram
na sua coroao como rei de Chipre, funo que foi exercida pelos Lusignan at o final
do sculo XV. Na Frana, porm, a famlia havia se extinguido logo no incio do sculo
XIV: em 1308, Felipe, o Belo anexava Coroa o condado de La Marche e a fortaleza
dos Lusignan. O Romance de Melusina ou a Nobre Histria dos Lusignan assume a
responsabilidade, como o seu prprio ttulo indica, de informar como os Lusignan
haviam se tornado uma linhagem poderosa. Esse romance recebe uma presso no
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apenas do mecenato, mas tambm da histria de fato vivida pelos Lusignan. por isso
que DArras ajusta alguns eventos histricos ao romance como a ida dos Lusignan ao
Oriente e o incndio na abadia de Maillezais, provocado por Godofredo de Lusignan.
Isso demonstra mais uma peculiaridade desse romance, que deveria no apenas exaltar
os feitos de uma linhagem cujos descendentes ainda viviam, mas tambm dar a ela uma
ancestral ferica, Melusina, de acordo com uma estrutura herdada dos contos
melusinianos.
Consideraes Finais
Enquanto documento histrico, os romances tanto em verso quanto em prosa
lanam luz sobre diferentes aspectos da sociedade das cortes. Sua originalidade est no
quadro que eles pintam do ideal social da aristocracia francesa entre os sculos XII-
XIV. Apresentando-nos uma vasta representao de temas, que envolvem homens e
mulheres em convivncia com as regras de cortesia e segundo uma moral bastante crist
de defesa dos fracos, valorizao do amor conjugal, fidelidade e honra, esses textos
materializaram no apenas um ideal a ser ensinado, mas tambm deram publicidade ao
seu meio de vida, delimitando os contornos desse grupo social cavaleiresco.
Chrtien de Troyes, por exemplo, no um pensador poltico, mas sua obra nos
mostra um pouco das tenses sociais de seu meio. A moral que ele anuncia e ilustra
tudo menos socialmente inocente. Ela fruto de um lugar e momento histrico
especfico. Broul outro que consegue fazer dos versos de Tristo um meio de
promover a defesa de uma tica cavaleiresca fundada na noo de responsabilidade, que
apesar de ignorar o fortalecimento do parentesco linhagista para o perodo, no deixa de
contestar as deficincias da monarquia na conduo dos interesses do grupo alargado
sobre o qual seu poder se assenta. J o Romance da Melusina de Jean DArras
materializa a evoluo do gnero, no apenas pela adoo da prosa, mas, sobretudo por
incorporar frmulas lingusticas de gneros textuais mais antigos, como as Histrias e
Crnicas, o que o leva a romper definitivamente com a barreira da verossimilhana que
distanciava os primeiros romans em verso do sculo XII dessas narrativas tidas como
expresses mais prximas da realidade.
De certa maneira, do sculo XII ao sculo XIV, na passagem da mtrica bem
medida do verso narrativa ficcional em prosa, os romances assumiram um novo
estatuto: repositrios da memria de grupos aristocrticos. Portanto, de um objeto de
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divertimento ficcional que primava pela promoo e ensino de valores morais, esses
textos se tornaram referncia de identidade social. O questionamento dessa condio de
repositrios da realidade mesmo que panegrica de determinados grupos sociais, s
veio tardiamente, na senda do sculo XVIII.
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Notas
1 No prlogo de Cligs, Chrtien assim escreve: Aquele que tratou de Erec e Enide colocou os
Mandamentos de Ovdio e a Arte do Amor em francs, escreveu A mordida no ombro, o rei Marc e
Isolda, a Loura (CHRTIEN DE TROYES,1994, vs. 2-6). 2 O Tristan, de Broul, foi possivelmente escrito alguns anos antes, mas nessa obra o mundo de Tristo se
situa muito margem do universo da corte de Artur. Ver FRITZ, 1992. 3 O arco de sela era de marfim, entalhado com a histria de como Enas partiu de Tria (CHRTIEN
DE TROYES, 1992, vs. 5330-5332). 4 Para uma anlise mais detalhada dessa nova moral, ver: SILVA, 2008.
5"Broul tem mais em sua memria, Tristo era to nobre e valente para matar toda aquela gente. Assim,
como a histria diz e Broul a viu escrita" (BROUL, 1999, vs. 1786-1790). 6 As caractersticas das personagens no mudam, elas evoluem para um padro desejado desde a primeira
parte, quando supostamente a composio estaria a cargo de outro Broul. Ver DELBOUILLE, 1962, p.
419-435. 7 A caridade est no centro do que divino, portanto sagrado, apresentando-se como uma das
propriedades da perfeio crist. O segundo elemento est no valor vincular da caridade, posto que
implica em uma relao de amor que une Deus e Cristo no seio da Trindade e tambm une Deus e os
homens. Esse valor determinado pelo amor perfeito e gratuito de Deus manifestado atravs da
encarnao do Cristo e do dom continuado do Esprito Santo realizado pelo batismo, o que permite ao
homem amar. No entanto, a caritas ultrapassa a mera reciprocidade do amor entre Deus e os homens. Um
dos fundamentos da definio de caridade para os telogos conceber o amor de Deus inseparvel do
amor ao prximo. Visto que o amor do homem participa da divina caridade que Deus, a caridade
praticada pelo homem tem de ser gratuita e universal. No caso da adaptao feita no Tristo de Broul, a
relao entre o sobrinho do rei e a esposa deste (Tristo e Isolda) e o sentimento que a impulsiona, esto
condicionados ao vnculo que o chefe do grupo (rei Marcos) mantm com as partes referentes. A relao
entre eles s existe a partir do rei e pelo rei. O parente no deve amar por si mesmo, mas pelo senhor da
parentela. Esse apontamento fundamental esclarece um sistema de relaes e afetos que no binrio,
mas circula entre os membros da parentela por intermdio de seu senhor e se encerra no mesmo. Dessa
forma, o rei deveria ser o componente central da coeso do grupo, por ele deveriam passar todas as
relaes e a base moral que as sustentam. 8 Em diversas passagens Isolda aclamada fielmente pelo povo que a exalta como rainha e toma partido a
seu favor, contra o rei e os bares: Ah! Rainha nobre, honrada, em que terra ter mais agradvel filha de
rei que valha teu cora o (BROUL, 1999, vs. 835-837); Toda a gente da cidade, Foram mais de
quatro mil, Entre homens, mulheres e crianas; [...] Por Isolda demonstram grande alegria, Muitos sofrem
para servi-la (BROUL, 1999, vs. 2957-2966).
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9 Rei, tu sabes bem do casamento com a filha do rei da Irlanda (BROUL, 1999, vs. 2556-2557); Ou
reconduzirei a filha do rei Irlanda, onde eu a peguei. Ser rainha de seu pas (BROUL, 1999, vs.
2616-2618). 10
O prncipe Jean (1340-1416) foi duque de Berry e do Auvergne e conde do Poitou. Filho de Jean, o
Bom (1319-1364), irmo de Carlos V (1337-1380) e tio de Carlos VI (1368-1442), participou ativamente
da vida poltica desses trs reinados. Franoise Autrand escreveu uma biografia sobre Jean na qual
desmonta a viso negativa em relao vida pblica do prncipe, mostrando como toda sua vida foi
dedicada aos negcios da Coroa francesa. Ele foi um dos maiores mecenas de sua poca, tendo sido o
comandatrio do Romance de Melusina. Para Autrand todas as obras de arte financiadas por Berry tinham
estreita relao com suas idias polticas que, segundo ela, visavam o estabelecimento do Estado
Moderno na Frana (AUTRAND, 2000). 11
Como lembra Amaury Chauou, Broadhurst afirma que a definio de patronagem passa
necessariamente pela remunerao do escritor. Amaury, apesar de relativizar essa idia, reconhece a
importncia do pagamento para definir a relao entre o comandatrio e o autor do texto. Cf. CHAUOU,
2001.
Artigo recebido em 30/10/2013. Aprovado em 08/12/2013.