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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES
PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU”
AVM FACULDADE INTEGRADA
A BOA-FÉ OBJETIVA NAS RELAÇÕES CONTRATUAIS
Por: Larrane Reder Ferreira
Orientador
Prof. Jean Alves
Rio de Janeiro
2014
DOCUMENTO PROTEGID
O PELA
LEI D
E DIR
EITO AUTORAL
2
UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES
PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU”
AVM FACULDADE INTEGRADA
A BOA-FÉ OBJETIVA NAS RELAÇÕES CONTRATUAIS
Apresentação de monografia à AVM Faculdade
Integrada como requisito parcial para obtenção do
grau de especialista em Direito Privado e Civil.
Por: Larrane Reder Ferreira
3
RESUMO
O presente trabalho tem como principal escopo traçar um breve
panorama sobre o importante princípio da boa-fé e seu emprego cogente nas
relações contratuais.
Verificar-se-á a abordagem histórico-conceitual do princípio em voga,
como forma introdutória e para melhor entendimento do leitor, que a partir daí
analisará as consequências jurídicas, até se chegar ao mundo das relações
contratuais e suas implicações na esfera civil.
4
METODOLOGIA
A metodologia utilizada para a elaboração do presente ensaio foram
pesquisas em livros, artigos, sítios eletrônicos, Código Civil, Código de Defesa
do Consumidor e jurisprudências de diversos Tribunais do Brasil.
5
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 06
CAPÍTULO I - O princípio da boa-fé 07
CAPÍTULO II - Aplicação da boa-fé nas relações contratuais 25
CONCLUSÃO 36
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA 37
6
INTRODUÇÃO
Desde os primórdios tempos onde se iniciaram as relações
comerciais viu-se uma intensa necessidade de uma postura leal e de confiança
entre as partes envolvidas naquela relação.
Os Romanos foram a primeira civilização a positivar, delimitar e
definir como seria a aplicação do princípio da boa-fé nas relações negociais.
Pregavam que entre os contratantes era imperiosa a necessidade de um
comportamento leal e de confiança recíproca entre os contratantes, conduta
esta que deveria existir durante toda a vigência do contrato celebrado.
Com a evolução da sociedade mundial e com a evolução das
práticas comerciais, novos conceitos foram emergindo, ocasionando o
aprofundamento do manejo do princípio da boa-fé, culminando em alocá-lo
como principal princípio a ser utilizado nas relações contratuais.
O trabalho em foco discorrerá sobre os contratos privados e a
importância do princípio da boa-fé e sua consequência no ordenamento
jurídico, considerando o atual Código Civil e o estudo da jurisprudência dos
Tribunais brasileiros.
7
CAPÍTULO I
O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ
Em que pese não estar o princípio da boa-fé previsto
expressamente na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, é
possível encontrá-lo com facilidade no Código Civil e no Código de Defesa do
Consumidor.
1.1 - Histórico
O princípio da boa-fé tem sua positivação mais remota no Direito
Romano, eis que lá as fides tolhiam a utilização de meios que pudesse tornar a
execução do contrato mais difícil ou onerosa. Ou seja, havia uma proibição de
todo e qualquer comportamento doloso em relação à execução do contrato.1
Cumpre elucidar que a expressão fides expressa o ideal de lealdade
em todas as fases do contrato, configurando uma garantia às partes
envolvidas. Conceitualmente, a palavra fides pressupõe saber o que disse,
cumprir o que se diz ou promete.2
Esclareça-se que a fides era invocada ou referida nos atos mais
solenes da vida habitual, como o casamento, tutela, empréstimos, etc. Os
romanos tem na fides o elemento inaugural para o elo para o mundo jurídico.
Posteriormente, a fides ultrapassa sua origem de preceito ético-
religioso e, mantendo a moral como basilar, passa a exprimir idéia de
promessa, ou seja, as pessoas devem se ater ao que dizem. Desta forma,
1 MARTINS, Flávio Alves. A boa-fé objetiva e sua formalização no direito das obrigações brasileiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, 32. 2 Idem. Ibidem, p. 32.
8
evolui-se de fides para bona fides, momento em que o Direito Romano incutiu
a idéia de equidade, renovando, assim, o seu sistema legal.
A fides bona expressa noções de confiança, de correção, de
honestidade e, principalmente, lealdade entre as partes e que à época
norteava o emergente campo das relações contratuais.
Com a finalidade de se solucionar descumprimentos contratuais,
cumprimentos parciais ou mau cumprimento, a jurisprudência romana
constituiu a bonae fidei iudicia como a ação adequada, possibilitando ao juiz
não só declarar a existência e o valor da obrigação, como também examinar o
quão distante manteve-se o réu ou o autor das exigências da fides bona.3
Durante o período romano a boa-fé era tão importante que Cícero se
manifestou dizendo ser ela o fundamento da justiça, isto é, a fidelidade e a
sinceridade das palavras e acordos.4
Na Idade Média, sob forte influência do Direito Canônico, que pregava
que quem não procedesse de maneira cautelosa na relação contratual estaria
pecando, conferiu a boa-fé uma tonalidade ética5.
Não obstante, foi na baixa Idade Média que o princípio do
consensualismo se firmou, com respeito à palavra dada, por interferência do
Direito Canônico, conforme pode ser evidenciado na Decretais de Georgio IX,
de 1243: “Pacta quantumque nuda servantur” (qualquer pacto, mesmo o nu,
deve ser mantido).6
Na Idade Moderna, configurou-se a prevalência da autonomia da
vontade, passando a boa-fé ser considerada subjetiva.
3 MARTINS, Flávio Alves. Op. cit., p. 36. 4Idem. Ibidem, p. 36. 5 Idem. Ibidem, p. 38. 6 Idem. Ibidem, p.39.
9
Desta forma, neste período, a boa-fé passou a ter aplicação restrita,
com aplicação na maioria das vezes em assuntos relacionados aos direitos
reais.
1.2 – A boa-fé no Código Civil de 2002
O Código Civil de 1916 baseou-se nos ideais do Código Napoleônico, na
legislação luso-brasileira anterior e nos ensinamentos da escola alemã dos
pandecistas. Aqui a maior crítica era ao exclusivismo jurídico dominante na
visão positiva do Direito que se contentava com princípios e regras de caráter
empírico, vez que a vida não se limitava a uma sucessão de fatos
desvinculados de valores.
O Código Civil de 2002 veio justamente para afastar esse
individualismo, passando a ser basilar a aplicação da boa-fé. Ou seja, nesta
nova concepção legal, a boa-fé não era um imperativo abstrato, mas sim uma
norma que condiciona e legitima toda a relação jurídica.
1.3 – O Conceito de boa-fé no Código Civil de 2002
É de bom alvitre ressaltar a existência de dupla faceta da boa-fé no
Código Civil de 2002: a objetiva e a subjetiva.
1.3. 1 – Boa-fé subjetiva
A fé subjetiva lastre-se em atitudes psicológicas, isto é, uma decisão de
vontades. Consiste em um estado de espírito, um estado de consciência,
como, por exemplo, o conhecimento ou o desconhecimento de uma situação
fundamentalmente psicológica.
10
No entendimento de Otávio Guimarães, o estado psicológico da boa-fé
subjetiva liga-se a noção de erro:
“Ocorre um êrro, ou uma falsa representação da realidade, e tal
fato determina uma apreciação defeituosa do acontecimento. O
sujeito delibera, contrata e põe-se em relação com outras
pessoas, acreditando que o fato tenha uma certa expressão,
quando realmente é diverso o seu sentido. O êrro, então, gera a
boa-fé, ou o pensamento de não ofender o direito alheio.”7
Geralmente, a subjetividade deriva de uma ignorância do sujeito a
respeito de uma determinada situação, como por exemplo, na hipótese de um
possuidor da boa-fé subjetiva que desconhece o vício que denigre a posse.
Assim, o legislador o protege, não fazendo o mesmo em relação ao possuidor
de má fé.
Sua primeira aparição no ordenamento brasileiro ocorreu no Código
Comercial de 1950 e, posteriormente, com o advento no Código Civil de 1916
a noção de boa-fé pode ser verificada diversas vezes, de forma explícita, mas
sempre sob o prisma psicológico, fundada em erro de fato ou num caso de
ignorância desculpável.
No Código Civil de 2002 encontra-se basicamente alusão a boa-fé
subjetiva em matéria de ordem de direitos reais e casamento putativo.
Vejamos:
“Art. 1.561. Embora anulável ou mesmo nulo, se contraído de
boa-fé por ambos os cônjuges, o casamento, em relação a estes
7 GUIMARÃES, Otávio. A boa-fé no direito civil brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1953, p. 29.
11
como aos filhos, produz todos os efeitos até o dia da sentença
anulatória.
§ 1º Se um dos cônjuges estava de boa-fé ao celebrar o
casamento, os seus efeitos civis só a ele e aos filhos
aproveitarão.
§ 2º Se ambos os cônjuges estavam de má-fé ao celebrar o
casamento, os seus efeitos civis só aos filhos aproveitarão.”
“Art. 1.201. É de boa-fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou
o obstáculo que impede a aquisição da coisa.”
“Art. 1.214. O possuidor de boa-fé tem direito, enquanto ela durar,
aos frutos percebidos.”
“Art. 1.217. O possuidor de boa-fé não responde pela perda ou
deterioração da coisa, a que não der causa.”
“Art. 1.219. O possuidor de boa-fé tem direito à indenização das
benfeitorias necessárias e úteis, bem como, quanto às
voluptuárias, se não lhe forem pagas, a levantá-las, quando o
puder sem detrimento da coisa, e poderá exercer o direito de
retenção pelo valor das benfeitorias necessárias e úteis.”
“Art. 1.242. Adquire também a propriedade do imóvel aquele que,
contínua e incontestadamente, com justo título e boa-fé, o possuir
por dez anos.”
12
Neste esteio, vislumbra-se que na boa-fé subjetiva premente a
necessidade de se fazer uma análise da percepção individual do agente cuja
conduta está sendo analisada, com o escopo de verificar se este acreditava
que tal agir era correto, mesmo que esse não seja o padrão de conduta normal
do homem médio naquela situação.
1.3. 2 – Boa-fé objetiva
O princípio da boa-fé objetiva tem como principal escopo imbutir na
mente dos contratantes a idéia de procederem em todas as fases do contrato
com alinho, de forma que ambas as partes da relação contratual não se vejam
como concorrentes, mas sim, como parceiros.
Trata-se de uma cláusula geral que deve ser rigorosamente cumprida
pelos contratantes, com a finalidade de se harmonizar a relação negocial.
Elucida-se que as cláusulas gerais ou abertas são normas jurídicas
incorporadoras de um princípio ético orientador do juiz na solução do caso
concreto. Elas remetem o intérprete para um padrão de
comportamento/conduta aceito no tempo e no espaço.
Boa-fé objetiva, segundo magistério de Cláudia Lima Marques:
“[...] é cooperação e respeito, é conduta esperada e leal, tutelada
em todas as relações sociais. A proteção da boa-fé e da
confiança despertada formam, conforme Couto e Silva, a base do
13
tráfico jurídico, a base de todas as vinculações jurídicas, o
princípio máximo das relações contratuais.”8
Por sua vez, Ruy Rosado de Aguiar, citado por Renata Domingues
Barbosa Balbino, define-o da seguinte forma:
“Geral de Direito, segundo o qual todos devem comportar-se de
acordo com um padrão ético de confiança e lealdade. Gera
deveres secundários de conduta, que impõe às partes
comportamentos necessários, ainda que não previstos
expressamente nos contratos, que devem ser obedecidos a fim
de permitir a realização das justas expectativas surgidas em
razão da celebração e da execução da avença.”9
Imperioso se aclarar que a boa-fé objetiva possui um aspecto positivo e
negativo. Positivo, por que diz respeito à obrigação de cooperação entre os
contratantes, para que seja cumprido o objeto do negócio jurídico de forma
adequada, por exemplo, as relações de consumo. Negativo, vez que o
contratante tem o dever de agir com lealdade e honestidade, por exemplo,
sujeito que diante do princípio da boa-fé objetiva se vê compelido a agir com
lealdade ao vender o seu veículo automotor que possui vício oculto.
A boa-fé objetiva nada mais é do que um padrão a ser seguido na
relação negocial e é exatamente este o ponto a ser perquirido pelo Código Civil
de 2002.
88 MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao código de defesa do consumidor. Arts. 1º a 74 – Aspectos materiais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 125. 9 BALBINO, Renata Domingues Barbosa. O princípio da boa-fé objetiva no novo Código Civil. Revista do Advogado. São Paulo: Associação dos Advogados de São Paulo, 2002, nº 69, p. 114.
14
Não se trata da mitigação do princípio da autonomia da vontade dos
contratantes, vez que continua a existir, contudo, colidindo com a boa-fé
deixará de aplicada. Em outros termos, havendo desequilíbrio contratual entre
os contratantes, derivado da autonomia da vontade, será aplicado o princípio
da boa-fé objetiva, a fim de equilibrar a relação contratual.
Nas palavras de Flávio Alves Martins, “mesmo que se reconheça serem
os particulares os melhores conhecedores de seus próprios interesses, não se
pode deixar de considerar a importância da imposição de limites a esse
princípio das obrigações, isto é, o da autonomia, que está submetido a uma
revisão crítica, a qual se manifesta na redução do campo de sua aplicação,
embora permaneça como essência do negócio jurídico.”10
O Código de Defesa do Consumidor, Lei 8.078/90, foi o primeiro instituto
brasileiro a positivar expressamente a boa-fé objetiva. Vejamos:
“Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por
objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o
respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus
interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem
como a transparência e harmonia das relações de consumo,
atendidos os seguintes princípios:
[...]
III - harmonização dos interesses dos participantes das relações
de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a
necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de
modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem
econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base
na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e
fornecedores;”
10 MARTINS, Flávio Alves. A boa-fé objetiva e sua formalização no direito das obrigações brasileiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 70.
15
Neste mesmo diploma legal surgiu como cláusula geral:
Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas
contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:
[...]
IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que
coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam
incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade;
No Código Civil de 2002, pela primeira vez na legislação civil brasileira,
a boa-fé objetiva passa a ser aplicada de forma expressa e clara, utilizada como
norma cogente, consoante art. 422:
“Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na
conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de
probidade e boa-fé.”
Na Lei Adjetiva Civil constata-se diversas vezes menção a utilização da
boa-fé objetiva, como nos casos a seguir:
“Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados
conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.”
“Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao
exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu
fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.”
16
O jurista alagoano Paulo Luiz Netto Lôbo, afirma que "a boa-fé objetiva
é regra de conduta dos indivíduos nas relações jurídicas obrigacionais.
Interessam as repercussões de certos comportamentos na confiança que as
pessoas normalmente neles depositam. Confia-se no significado comum,
usual, objetivo da conduta ou comportamento reconhecível no mundo social. A
boa-fé objetiva importa conduta honesta, leal, correta. É a boa-fé de
comportamento".11
Logo, a boa-fé objetiva, empregada nas relações de consumo,
responsabilidade civil e direito contratual, caracteriza-se como uma exigência
de lealdade (modelo objetivo de conduta), sendo possível afirmar que o
objetivo aqui se qualifica como normativa de comportamento leal. A conduta,
segundo a boa-fé objetiva, é entendida como noção sinônima de “honestidade
pública”.
A boa-fé objetiva também é fonte das denominadas obrigações anexas
ou laterais, também denominados deveres anexos. Doutrinariamente é divido
em três grupos: deveres de lealdade e cooperação, deveres de proteção ou
cuidado e deveres de informação ou esclarecimento.
O dever de lealdade e cooperação corresponde a colaboração mútua
entre as partes para que o contrato atinja a sua finalidade.
Já o dever de proteção e cuidado refere-se ao objeto da prestação, mas
a ele não se limita, incidindo também entre os próprios contrates.
11 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Princípios Sociais dos Contratos no Código de Defesa do Consumidor e no Novo Código Civil. In: Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, abril-junho, 2002, v. 42.
17
Por fim, há o dever de esclarecimento e informação que pode ser
invocado ainda que a hipótese não se amolde ao artigo 147 do Código Civil12,
vez que a informação a respeito do objeto da prestação ou da forma como esta
será executada é elemento essencial para que o contratante possa fiscalizar o
cumprimento da avença.
A violação dos deveres anexos configura a quebra positiva do contrato,
ou seja, o chamando “adimplemento ruim”, que é fonte de obrigação, embora
não contamine a validade do contrato.
Como conseqüência da boa-fé objetiva, temos: o venire contra factum
proprium, surrectio, supressio e tu quoque.
O princípio do venire contra factum proprium significa vedação do
comportamento contraditório, baseando-se na regra do pacta sunt servanda.
Pressupõe uma incoerência entre o comportamento atual com o
comportamento anterior do próprio agente. Isto é, trata-se de duas ações
lícitas e sucessivas, uma posterior a outra, que, contudo, se repelem. A título
elucidativo impõe-se a análise de alguns julgados:
“Direito processual civil. Ação renovatória. Prova pericial que já
havia sido deferida e, posteriormente, vem a ser proferida decisão
reconsiderando o pronunciamento anterior e determinando o
prosseguimento do processo sem a produção daquela prova.
Impossibilidade. Violação ao princípio da boa-fé objetiva.
Vedação de comportamento contraditório que alcança todos os
sujeitos do processo, inclusive o Estado-Juiz.
Nemo venire contra factum proprium. Cerceamento de defesa
caracterizado. Anulação da decisão que reconsiderou a produção
12 Art. 147. Nos negócios jurídicos bilaterais, o silêncio intencional de uma das partes a respeito de fato ou qualidade que a outra parte haja ignorado, constitui omissão dolosa, provando-se que sem ela o negócio não se teria celebrado.
18
da prova pericial, a qual deverá ser colhida. Provimento do
recurso“13
“Apelação Cível. Relação de Consumo. Ação de Obrigação de
Fazer com Pedido de Tutela Antecipada. Plano de saúde. Autora
que celebra acordo para quitação da dívida e reativação do plano
de saúde. Descumprimento do acordo pela operadora do plano
de saúde. Cancelamento do plano de saúde. Conduta
Contraditória. Vedação pelo ordenamento
jurídico. Venire Contra Factum Proprium". Responsabilidade
objetiva. Dever de indenizar. Dano moral fixado de acordo com os
Princípios da Razoabilidade e Proporcionalidade. Arguição de
ilegitimidade passiva pela segunda apelante. Preliminar acolhida.
Ausência de comprovação de que a apelante compõe a
administração do referido plano ou fez parte da relação
contratual. Reforma da sentença. Precedentes citados: 0148283-
74.2011.8.19.0001 APELAÇÃO - DES. REGINA LUCIA PASSOS
- Julgamento: 05/12/2013 - VIGÉSIMA QUARTA CÂMARA CÍVEL
CONSUMIDOR - 0184619-43.2012.8.19.0001 - APELAÇÃO DES.
REGINA LUCIA PASSOS - Julgamento: 19/11/2013 VIGÉSIMA
QUARTA CÂMARA CÍVEL CONSUMIDOR. DESPROVIMENTO
DO PRIMEIRO RECURSO E PROVIMENTO DO SEGUNDO.”14
“PROCESSUAL CIVIL. LOCAÇÕES. AÇÃO RENOVATÓRIA.
LOCAÇÃO COMERCIAL. CONAB. IMÓVEL DE EMPRESA
PÚBLICA. LEI N. 8.245/1991. PROIBIÇÃO DO
COMPORTAMENTO CONTRADITÓRIO (NEMO POTEST
13 TJRJ. Processo nº 0025324-02.2014.8.19.0000 - AGRAVO DE INSTRUMENTO – 1ª ementa - DES. ALEXANDRE CAMARA - Julgamento: 18/07/2014 - SEGUNDA CAMARA CIVEL 14 TJRJ. Proc. Nº 0039262-62.2013.8.19.0206 - APELACAO – 1ª ementa - DES. REGINA LUCIA PASSOS - Julgamento: 16/07/2014 - VIGESIMA QUARTA CAMARA CIVEL CONSUMIDOR
19
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM). SUCUMBÊNCIA
RECÍPROCA. INOCORRÊNCIA. ART. 21, PARÁGRAFO ÚNICO,
DO CPC.”15
O supressio ou verwirkung redunda do direito não exercitado durante
certo tempo, sob determinadas circunstâncias e que não pode mais sê-lo, pois,
de outra forma, contraria a boa-fé. Esse instituto indica a possibilidade de se
considerar extinguida uma obrigação contratual, na hipótese em que o não
exercício do direito correspondente, pelo credor, gere no devedor a justa
expectativa de que esse não exercício se prorrogará no tempo.
Exemplificando, abaixo alguns julgados:
“DECISÃO MONOCRÁTICA. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE
PRESTAÇÃO DE CONTAS. PRIMEIRA FASE - AUSÊNCIA DE
INTERESSE DE AGIR - CUMULAÇÃO DE PEDIDO REVISIONAL
- PRESCRIÇÃO TRIENAL -SUPRESSIO - SENTENÇA
MANTIDA. [...] Finalmente, alega a parte apelante que o direito de
exigir contas é abusivo e viola a boa- fé objetiva, sendo
necessária a aplicação da teoria da supressio, porquanto a parte
apelada sempre usufruiu dos serviços postos à sua disposição
sem nunca reclamar e, repentinamente, considera todos os
lançamentos indevidos. Pois bem. A supressio não se caracteriza
pela simples falta de exercer um direito por determinado tempo,
mas sim quando a demora em exercê-lo prejudica a parte
contrária, na medida em que quanto maior o lapso temporal,
maior será o valor a ser restituído. Todavia, ressalte-se que a
inércia do apelado também não permite à instituição financeira
cobrar valores indevidos na relação contratual e o direito do
correntista em ver prestadas as contas, por parte da instituição
15 STJ. REsp 1224007 / RJ – MIN. LUIS FELIPE SALOMÃO – QUARTA TURMA – Julgamento: 24/04/2014.
20
financeira, decorre do direito de informação do consumidor,
conforme TRIBUNAL DE JUSTIÇA Apelação Cível nº 1216180-5
16 Estado do Paraná disposto no art. 6º, III do CPC.”16
Por seu turno, a surrectio ou erwirkung serve para criar um direito em
consequência do continuado comportamento de alguém, ainda que em
contradição do que foi convencionado ou ao ordenamento jurídico. No art. 330
do Código Civil encontra-se a positivação deste instituto.
“Art. 330. O pagamento reiteradamente feito em outro local faz
presumir renúncia do credor relativamente ao previsto no
contrato.”
Quanto ao tema, assim tem se posicionado os Tribunais Brasileiros:
“APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER,
CUMULADA COM PEDIDO INDENIZATÓRIO. NEGATIVA DE
CUSTEIO DE TRATAMENTO DE SAÚDE. - Impugnação à
gratuidade de justiça que deve ser formulada em autos
apartados, conforme entendimento recente do Superior Tribunal
de Justiça. - Ilegitimidade passiva que deve ser afastada, na
espécie, conforme precedentes desta Corte. - Demandante que
não comprovou a efetiva desídia da ré em cumprir a decisão
antecipatória dos efeitos da tutela. Impossibilidade de
condenação da demandada ao pagamento de astreinte. - Parte ré
que já havia autorizado o procedimento realizado pelo autor em
outras oportunidades. - Recusa de atendimento que se configura
violação do principio da boa-fé (surrectio). - Indenização por
16 TJPR. Processo: 1216180-5 (Decisão Monocrática), Des. Luiz Fernando Tomasi Keppen, 16ª Câmara Cível, Julgamento: 18/07/2014.
21
danos morais que se revela adequada e capaz de reparar os
prejuízos causados ao demandante. - Sentença que se mantém,
tal como lançada. NEGATIVA DE SEGUIMENTO AOS
RECURSOS, NA FORMA DO ARTIGO 557, CAPUT, DO CPC.”17
“REGIME DE EXCEÇÃO. APELAÇÃO CÍVEL. SEGURO. PLANO
DE SAÚDE. CONTRATO FIRMADO POR EMPREGADOR.
DEMISSÃO SEM JUSTA CAUSA. MANUTENÇÃO DO PACTO.
ARTIGO 30 DA LEI 9.656/98. SURRECTIO. JUSTA
EXPECTATIVA. BOA-FÉ. REPETIÇÃO DO INDÉBITO. 1. O
objeto principal do seguro saúde é a cobertura do risco
contratado, ou seja, o evento futuro e incerto que poderá gerar o
dever de ressarcir as despesas médicas por parte da seguradora
de saúde. Outro elemento essencial desta espécie contratual é a
boa-fé, na forma do art. 422 do Código Civil, caracterizada pela
lealdade e clareza das informações prestadas pelas partes. 2.Há
perfeita incidência normativa do Código de Defesa do
Consumidor nos contratos atinentes aos planos ou seguros de
saúde, como aquele avençado entre as partes, podendo se definir
como sendo um serviço a cobertura do seguro médico ofertada
pela demandada, consubstanciada no pagamento dos
procedimentos clínicos decorrentes de riscos futuros estipulados
no contrato aos seus clientes, os quais são destinatários finais
deste serviço. Inteligência do art. 35 da Lei 9.656/98. Aliás, sobre
o tema em lume o STJ editou a súmula n. 469, dispondo esta
que: aplica-se o Código de Defesa do Consumidor aos contratos
de plano de saúde. 3.É assegurado ao empregado demitido, sem
justa causa, a manutenção da condição de beneficiário, nos
mesmos moldes de cobertura assistencial de que usufruía
17 TJRJ. Processo nº 0215495-49.2010.8.19.0001 - APELACAO – 1ª ementa - DES. TEREZA C. S. BITTENCOURT SAMPAIO - Julgamento: 12/11/2013 - VIGESIMA SETIMA CAMARA CIVEL
22
durante a vigência do pacto laboral, desde que assuma o
pagamento integral do prêmio. Inteligência do artigo 30 da Lei
9.656/98. 4.A ré deixou transcorrer o dobro do prazo máximo
garantido em lei para manutenção do benefício. Evidentemente
que isso criou uma justa expectativa na parte autora de que
poderia manter o contrato indeterminadamente. Surrectio, dever
anexo da boa-fé. 5.Por fim, como a adesão a outro plano coletivo
decorreu da injusta negativa de manutenção do pacto anterior, a
ré deve ser condenada a restituição dos valores decorrentes da
diferença entre a mensalidade paga na nova contratação e
aquela que seria devida se a autora houvesse permanecido como
beneficiária do contrato rescindido. Dado parcial provimento ao
apelo.”18
A título ilustrativo pode-se invocar a seguinte situação: em uma relação
contratual bilateral onde o devedor pratica um ato fora do que está
estabelecido no contrato, mas é aceito pelo credor, por um determinado lapso
de tempo, faz nascer um direito para o devedor, pelo fenômeno do surrectio, e
faz desaparecer o direito do credor de cobrá-lo fazer o que está estabelecido
no contrato, por causa do supressio. E no mais, tendo o credor aceitado essa
prática sem nunca ter questionado ou notificado o devedor, não poderá
exigir instantaneamente que o devedor volte a cumprir o contrato, pois isso
caracterizaria um venire contra factum proprium, ou seja, estaria adotando uma
postura contraditória.
Por seu turno, tu quoque significa “tu também” e representa as
situações nas quais a parte vem a exigir algo que também foi por ela
descumprido ou negligenciado. Nestes termos, aplica-se nos Tribunais
Brasileiros:
CONSUMIDOR.
23
“RECURSO ESPECIAL. DIREITO CAMBIÁRIO. AÇÃO
DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE TÍTULO DE CRÉDITO.
NOTA PROMISSÓRIA. ASSINATURA ESCANEADA.
DESCABIMENTO. INVOCAÇÃO DO VÍCIO POR QUEM O DEU
CAUSA. OFENSA AO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA.
APLICAÇÃO DA TEORIA DOS ATOS PRÓPRIOS SINTETIZADA
NOS BROCARDOS LATINOS 'TU QUOQUE' E 'VENIRE
CONTRA FACTUM PROPRIUM'. 1. A assinatura de próprio
punho do emitente é requisito de existência e validade de nota
promissória. 2. Possibilidade de criação, mediante lei, de outras
formas de assinatura, conforme ressalva do Brasil à Lei Uniforme
de Genebra. 3. Inexistência de lei dispondo sobre a validade da
assinatura escaneada no Direito brasileiro. 4. Caso concreto,
porém, em que a assinatura irregular escaneada foi aposta pelo
próprio emitente. 5. Vício que não pode ser invocado por quem
lhe deu causa. 6. Aplicação da 'teoria dos atos próprios', como
concreção do princípio da boa-fé objetiva, sintetizada nos
brocardos latinos 'tu quoque' e 'venire contra factum proprium',
segundo a qual ninguém é lícito fazer valer um direito em
contradição com a sua conduta anterior ou posterior interpretada
objetivamente, segundo a lei, os bons costumes e a boa-fé 7.
Doutrina e jurisprudência acerca do tema. 8. RECURSO
ESPECIAL DESPROVIDO.”19
APELAÇÃO CÍVEL - PRELIMINAR - PEDIDO DE
DESENTRANHAMENTO DE ADENDO À CONTESTAÇÃO -
PRECLUSÃO - IRREGULARIDADE INEXISTENTE - SIMPLES
18 TJRS. Apelação Cível Nº 70056798697, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jorge Luiz Lopes do Canto, Julgado em 28/05/2014. 19 STJ. REsp 1192678 / PR – TERCEIRA TURMA – MIN. PAULO DE TARSO SANSEVERINO – Julgamento: 13/11/2014.
24
PETIÇÃO QUE REITERA O TEOR DA CONTESTAÇÃO -
EXPEDIENTE UTILIZADO TAMBÉM PELOS ADVERSÁRIOS -
TU QUOQUE - REJEIÇÃO - MÉRITO - RECONHECIMENTO DE
UNIÃO ESTÁVEL - RELAÇÃO DE CONJUGALIDADE
SIMULTÂNEA - IMPEDIMENTO LEGAL - ARTS. 1.723, § 1º E
1.521, VI, CCB - MANUTENÇÃO DA SENTENÇA DE
IMPROCEDÊNCIA - RECURSO DESPROVIDO.20
Como exemplo, temos a seguinte situação: se a parte "a" descumpre
determinada cláusula bilateral, está legitimando a parte "b" pressupor que tal
cláusula não é essencial ou que seu descumprimento será tolerado. Gerada
expectativa por fato próprio, não ressoa ético aquele que anteriormente não
observou um comportamento exigi-lo de outrem.
20 TJES. Proc. Nº 035060069198 – APELAÇÃO CÍVEL – DES. CATHARINA MARIA NOVAES BARCELLOS – 4ª Câmara Cível - Julgamento: 21/07/2009.
25
CAPÍTULO II
APLICAÇÃO DA BOA-FÉ NAS RELAÇÕES
CONTRATUAIS
Conforme amplamente demonstrado, o princípio da boa-fé deve
estar insculpido, enraizado, presente em todo contrato celebrado, sob pena de
eivá-lo de vícios.
2.1 – Definição de contratos
Contrato, do latim, contractu, significa trato com. É a combinação de
interesses entre pessoas sobre determinado objeto ou serviço.
Trata-se de negócio jurídico bilateral que para a sua validade é
necessário a observância de alguns requisitos, a teor do art. 104 do Código
Civil21.
2.2 – Princípios fundamentais
No direito contratual temos 05 princípios fundamentais.
21 Art. 104. A validade do negócio jurídico requer: I - agente capaz; II - objeto lícito, possível, determinado ou determinável; III - forma prescrita ou não defesa em lei.
26
2.2. 1 – Princípio da autonomia da vontade
De acordo com este princípio as partes podem livremente acordar os
termos do contrato, como melhor lhe convier.
Para Maria Helena Diniz “o principio da autonomia da vontade se funda
na liberdade contratual dos contratantes, consistindo no poder de estipular
livremente, como melhor convier, mediante acordo de vontades, a disciplina de
seus interesses, suscitando efeitos tutelados pela ordem jurídica.”22
2.2. 2 – Princípio do consensualismo
O acordo de duas ou mais pessoas é valido para a formação do
contrato.
2.2. 3 – Princípio da relatividade dos efeitos do negócio jurídico
contratual
As avenças se vinculam somente as partes que nela intervieram, não
aproveitando e nem prejudicando terceiros.
2.2. 4 – Princípio da obrigatoriedade da convenção
As estipulações feitas no contrato devem ser fielmente cumpridas (pacta
sunt servanda), sob pena de execução patrimonial quanto ao inadimplente.
22DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. Teria das Obrigações Contratuais e Extracontratuais. 24˚ ed. São Paulo: Saraiva, 2008. v.3, p. 23.
27
2.2. 5 – Princípio da boa-fé
Na interpretação do contrato deve-se buscar mais a intenção do que o
sentido literal, as partes devem agir com lealdade e confirmação, auxiliando-se
mutuamente tanto na formação quanto na execução do contrato.
2.3 – Fases do contrato e a boa-fé objetiva
Pela detida análise do art. 422 do Código Civil que estabelece que “os
contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como
em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”, verifica-se que o
princípio da boa-fé deve estar presente em todas as fases do contrato,
incluindo a controvertida fase pré-contratual e a pós-contratual.
Nas palavras de Sylvio Capanema de Souza, citado por Eduardo de
Oliveira Gouvêa23:
“O princípio da boa-fé objetiva exige que os contratos tenham
equações econômicas razoavelmente equilibradas. Não que seja
pecado ou crime lucrar no contrato, pois ninguém contrata por
diletantismo ou altruísmo, todos nós contratamos para tirar do
contrato um proveito econômico principalmente numa sociedade
capitalista como a nossa. Só que esse proveito econômico agora
tem um limite da construção da dignidade do homem, da
eliminação da miséria, das injustiças sociais, fazer com que os
contratos não estejam apenas a serviço dos contratantes, mas
também da sociedade, construindo o que se convencionou
chamar o estado do bem-estar.”
23 GOUVÊA, Eduardo de Oliveira. Boa-fé objetiva e responsabilidade civil contratual – principais inovações. Revista Forense. Rio de Janeiro: Forense, 2003, v. 369.
28
Cumpre trazer à baila que doutrinariamente a responsabilidade civil é
classificada em contratual e extracontratual. Contratual, àquela derivada de
uma relação jurídica obrigacional preexistente e extracontratual, também
denominada aquiliana, é aquela em que a obrigação de indenizar é imposta
por preceito geral de direito ou pela lei.
Não obstante, parte da doutrina admite ainda a responsabilidade civil
pré-contratual, também conhecida como culpa in contrahendo ou culpa na
formação dos contratos, assunto este bastante polêmico no mundo jurídico,
vez que corresponde à obrigação de indenizar antes da conclusão do negócio
jurídico, seja pela recusa em contratar, quer seja pelo rompimento das
negociações preliminares.
A polêmica gira justamente em torno da liberdade de contratar das
partes. Ao se iniciar uma negociação não significa a obrigação de se contratar.
Estar-se-ia ferindo o princípio da autonomina da vontade, vez que ao admitir a
existência da responsabilidade pré-contratual significaria dizer que há uma
restrição na liberdade dos contratantes, forçando-os a celebrar determinado
contrato, até mesmo contra a sua própria vontade, com o objetivo de não ser
surpreendido com uma eventual indenização, sob o fundamento de
responsabilidade pré-contratual.
Segundo esta parte da doutrina, haverá abuso na recusa de contratar
quando o motivo ensejador se pautar em motivos como aparência física,
religião, cor, raça, apresentação, classe social, opinião política, etc. A recusa
por si só não acarreta no dever de indenizar, deve haver abuso de direito. Terá
que se fundamentar na intenção de prejudicar aquele com quem não quer
contratar, seja proferindo recusa através de um ato discriminatório; seja
fazendo-a de forma arbitrária, tendo em vista ser o único possuidor de
determinado produto/serviço em uma cidade; seja ainda através qualquer
forma capaz de lesar outrem.
29
Nas palavras de Antônio Chaves24:
“a recusa não oferecerá margem a qualquer reclamação desde
que o seu motivo permaneça no âmbito fechado da consciência
íntima do recusante. Uma vez externado, pode fazer surgir a álea
de uma ação de indenização, não pela recusa de contratar em si
e por si, mas justamente pela ofensa que encerra à honra, à
dignidade, ao brio em que o fato possa implicar.”
No atual panorama contemporâneo, as concepções liberais e
individualistas não mais se aplicam ao direito contratual, conforme já
explanado anteriormente. Ultrapassou-se, por conseguinte, o período que as
negociações preliminares são tidas como meras tentativas de se celebrar um
contrato, sem qualquer força vinculante. Daí emerge também o dever de
indenizar por responsabilidade pré-contratual na fase das negociações
preliminares.
Este dever de indenizar surge a partir do momento que uma parte
interessada em celebrar um contrato com outra vier a criar para esta uma
verdadeira crença que ocorrerá a celebração do contrato, obrigando-a,
inclusive, a realizar gastos para viabilizá-la, e, posteriormente, sem qualquer
justificativa, encerrar as negociações, caberá ao outro a ser ressarcido do real
prejuízo causado.
Impende, para melhor entendimento desta modalidade, tecer breves
considerações acerca das distintas fases de formação do contrato: puntuação,
proposta e aceitação.
24 CHAVES, Antônio. Responsabilidade pré-contratual. 2ª ed. São Paulo: Lejus, 1997, p. 17.
30
A fase da puntuação correspondente às negociações ou tratativas
preliminares. A proposta, ou policitação, compreende a oferta de contratar que
uma parte faz a outra (aqui, aplica-se o art. 427 do Código Civil25). Por seu
turno, a aceitação é a aquiescência de por uma das partes a uma proposta
anteriormente formulada pela outra.
Com base nesse entendimento, esclarecedor é o julgado proferido pelo
Egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, abaixo transcrito:
“Responsabilidade pré-contratual ou culpa in contrahendo. Tendo
havido tratativas sérias referentes à locação de imóvel, rompidas
pela requerida sem justificativa e sem observância dos deveres
anexos decorrentes do princípio da boa-fé objetiva, cabe
indenização. Lições doutrinárias. Apelo provido em parte.”26
Saliente-se, contudo, que se a recusa de uma proposta ocorrer logo
após a sua apresentação, não há que se falar em qualquer tipo de dano que
culmine em indenização. Isto somente ocorrerá quando entre as manifestações
de vontade dos contratantes existir amplo transcurso de tempo.
Vale frisar que mesmo que não haja a conclusão de determinado
contrato, a relação pré-contratual não deixa de produzir seus deveres, pouco
importando se o direito positivo indique ou não qualquer caráter obrigacional à
relação.
Por sua vez, a responsabilidade pós-contratual é aquela existente após
a finalização de determinado contrato, onde as pessoas devem continuar se
comportando seguindo o princípio da boa-fé, sob pena de responsabilização
por perdas e danos. Não quer dizer que a pessoa tenha que sofrer toda a vida
25 Art. 427. A proposta de contrato obriga o proponente, se o contrário não resultar dos termos dela, da natureza do negócio, ou das circunstâncias do caso
31
para preservar a boa-fé objetiva, mas sim, não se utilizar de sua situação
privilegiada para ocasionar dano a outrem, trata-se de um dever lateral de
conduta de lealdade.
Nas palavras de Sílvio Venosa “essa responsabilidade contratual, ou
culpa ‘post factum finitum’, decorre primordialmente do complexo geral de boa-
fé objetiva em torno dos negócios jurídicos. Trata-se de um dever acessório de
conduta dos contratantes, depois do término das relações contratuais, que se
depreende do sentido individualista do contrato imperante até o século
passado e se traduz em um sentido social das relações negociais, como, aliás,
propõe o novo Código Civil.”27
Frise-se ainda que o Código Civil Brasileiro prevê a possibilidade da
existência de defeitos nos negócios jurídicos e, com o escopo de proteger o
contratante de boa-fé aplica sanções que poderão anular ou nulificar o contrato
celebrado, conforme pode ser percebido através da leitura dos artigos 138 a
184 do Código em comento.
Logo, os contratantes são obrigados a guardar nas negociações
preliminares, conclusão do contrato, no transcorrer da execução e na fase pós-
contratual, os princípios da boa-fé e tudo mais que resulte da natureza do
contrato, da lei, dos usos e das exigências da razão e da equidade.
2.4 – Breves considerações sobre defeitos no negócio
jurídico
Os defeitos no negócio jurídico se classificam em:
26 TJRS - 16ª Câmara Cível, AP nº 598209179, j. 19.08.1998. 27 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil. Teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2003, v. 2, p. 484.
32
a) Vícios de consentimento – são aqueles que manifestação
de vontade não é expressa de forma verdadeiramente livre.
Exemplo: erro, dolo, coação, lesão e estado de perigo.
b) Vícios sociais – são aqueles que manifestação de vontade
não tem no fundo a intenção e a boa-fé que se diz ter. Exemplo:
fraude contra credores e simulação.
Imperioso se afiançar que os casos de vício de consentimento e a
fraude contra credores são passíveis de ação anulatória pelo prejudicado, e,
por sua vez, a simulação acarreta na nulidade absoluta do feito (art. 166 do
Código Civil)28.
O erro ou ignorância (art. 138 a 144 CC) consiste em uma falsa noção
da realidade, um engano fático, não há indução intencional da pessoa
interessada. O erro só é considerado causa para anulabilidade se for essencial
ou substancial, nos termos do art. 138 e art. 139 do CPC, podendo ser
perdoado ou escusável (art. 144 CC).
“Art. 138. São anuláveis os negócios jurídicos, quando as
declarações de vontade emanarem de erro substancial que
poderia ser percebido por pessoa de diligência normal, em face
das circunstâncias do negócio.”
28 Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando:
I - celebrado por pessoa absolutamente incapaz;
II - for ilícito, impossível ou indeterminável o seu objeto;
III - o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito;
IV - não revestir a forma prescrita em lei;
V - for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial para a sua validade;
VI - tiver por objetivo fraudar lei imperativa;
VII - a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem cominar sanção.
33
“Art. 139. O erro é substancial quando:
I - interessa à natureza do negócio, ao objeto principal da
declaração, ou a alguma das qualidades a ele essenciais;
II - concerne à identidade ou à qualidade essencial da pessoa a
quem se refira a declaração de vontade, desde que tenha influído
nesta de modo relevante;
III - sendo de direito e não implicando recusa à aplicação da lei,
for o motivo único ou principal do negócio jurídico.”
“Art. 144. O erro não prejudica a validade do negócio jurídico
quando a pessoa, a quem a manifestação de vontade se dirige,
se oferecer para executá-la na conformidade da vontade real do
manifestante.”
No dolo uma pessoa induz a outra em erro com o objetivo de tirar
proveito para si ou para terceiro na realização do negócio jurídico. Sua
previsão legal encontra-se nos arts. 145 a 150 do Código Civil.
A coação é definida como uma pressão de ordem psicológica que se
faz mediante ameaça de mal sério e grave que poderá atingir o agente,
membro da família, pessoa a ele ligada ou ainda ao seu patrimônio forçando-o
a praticar determinado negócio jurídico. A coação pode ser absoluta, que lhe
tolhe totalmente a vontade, desta forma, o negócio jurídico é considerado
inexistente, e coação relativa, que é o vício da vontade propriamente dito,
acarretará a anulabilidade do negócio jurídico. Está positivado nos arts. 151 a
155 do Código Civil.
O estado de perigo configura-se, consoante art. 156 CC, “quando
alguém, premido da necessidade de salvar-se, ou a pessoa de sua família, de
34
grave dano conhecido pela outra parte, assume obrigação excessivamente
onerosa.” Segundo o enunciado nº 148 da III Jornada de Direito Civil realizada
pelo Superior Tribuna de Justiça afirma que ao estado de perigo, previsto no
art. 156 CC, aplica-se por analogia o disposto no §2º do art. 157 do referido
diploma legal29, em outras palavras o negócio jurídico celebrado em estado de
perigo pode convalescer se houver suplemento suficiente ou se houver
redução do proveito alcançado pela parte favorecida.
Por sua vez, a lesão se caracteriza pela obtenção de lucro
desproporcional por se valer uma das partes da inexperiência ou necessidade
econômica da outra; o vício é concomitante à formação do contrato. Este
negócio jurídico por ser, via de regra, anulável, contudo, caso se enquadre ao
disposto no art. 157 §2º do Código Civil, não se decretará a anulação.
Concernente à fraude contra credores, impo-se aclara que trata-se da
prática de negócio jurídico por devedor insolvente ou na iminência de o ser,
que importe em redução de seu patrimônio, com a única finalidade de frustrar o
direito de seus credores ou represente violação da igualdade dos credores
quirografários. Impõe a necessidade de dívida antes da prática do ato negocial,
mesmo que não vencidas. No Código Civil está delineada nos arts. 158 a 165.
A ação para anular atos praticados em fraude contra credores denomina-se
ação pauliana ou revocatória, devendo ser ajuizada em até 4 anos contados a
partir da data de realização do negócio jurídico que se pretende anular.
Por derradeiro, ocorre a simulação quando há uma declaração falsa,
enganosa da vontade, visando aparentar negócio diverso do efetivamente
desejado. Nulifica o negócio jurídico. Sua definição legal consta no art. 167 §1º
do Código Civil30, no entanto, conforme preleciona o art. 170 do Código Civil,
29 Art. 157. § 2o Não se decretará a anulação do negócio, se for oferecido suplemento suficiente, ou se a parte favorecida concordar com a redução do proveito. 30 Art. 167. É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma. § 1o Haverá simulação nos negócios jurídicos quando:
35
se o negócio jurídico nulo possuir requisitos de outro, subsistirá este quando o
fim a que almejavam as partes permitir supor que o teriam querido se
houvessem previsto a nulidade.
I - aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais realmente se conferem, ou transmitem; II - contiverem declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira; III - os instrumentos particulares forem antedatados, ou pós-datados.
36
CONCLUSÃO
O princípio da boa-fé é a base para todo e qualquer negócio jurídico
celebrado, devendo ambas as partes o manejarem em todas as suas fases.
Considerando como norte o Código Civil de 2002 e o Código de
Defesa do Consumidor, o presente trabalho discorreu sobre a origem,
conceituações e consequências da boa-fé, bem como destacou a sua
importância antes, durante e após a celebração de um contrato, inclusive
demonstrando que sem ele pode ensejar a nulidde ou anulabilidade do negócio
jurídico pactuado.
Indubitável, outrossim, se afirmar que, pela detida análise do que ora
se apresenta, os contratos configuram verdadeiras molas propulsoras da
economia de qualquer nação e justamente por esta razão devem ser
regulamentados de forma cuidadosa para que sempre seja utilizada a boa-fé
em sua elaboração.
37
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