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DOSSIÊ GENI II COLÓQUIO
NIETZSCHE VERDADE: APARÊNCIA,
ERRO E ENGANO
Caras (os) leitoras (es),
É com grande satisfação que o GENi: Grupo de Estudos Nietzsche – UECE, em parceria com
o Apoena – Grupo de Estudos Schopenhauer-Nietzsche, publica em dossiê pela Revista Lampejo os
textos apresentados durante o II Colóquio Nietzsche, realizado entre 10 e 13 de dezembro de 2019,
no Centro de Humanidades da Universidade Estadual do Ceará (UECE).
Com quase três anos em atividade e cadastrado no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq,
o GENi: Grupo de Estudos Nietzsche – UECE busca fomentar os estudos, as pesquisas e a divulgação
do pensamento de Friedrich W. Nietzsche, em âmbito local, regional e nacional. Contando
inicialmente com a participação de membros do corpo docente e discente da UECE, o grupo se
expandiu e passou a congregar professores e pesquisadores de diversas instituições, mantendo
vínculo de cooperação com outros grupos de pesquisa e universidades do país, como a UERJ, UFC,
UFMG, UFOP, UFPA, UFRJ, UnB e UNIRIO.
Por meio dos colóquios organizados anualmente, o GENi promove o intercâmbio entre
pesquisadores dedicados à filosofia de Nietzsche e às suas influências, recepções e desdobramentos
na contemporaneidade. Em sua segunda edição, o evento buscou congregar pesquisas em torno do
tema “verdade: aparência, erro e engano”. Tratou-se, mais especificamente, de retomar o debate
sobre um dos pontos fulcrais da filosofia nietzscheana, qual seja: a crítica à noção de Verdade que
alicerça a construção de sentido do pensamento metafísico, calcada na oposição irredutível em
relação à aparência (no plano ontológico), ao erro (no plano epistêmico) e ao engano (no plano
moral). A consecução de um novo método – o filosofar histórico-genealógico – bem como o
desenvolvimento de seus conceitos centrais – particularmente, a doutrina da vontade de poder
[Wille zur Macht] – permitem o descerrar de uma mirada que, muito longe de conduzir ao relativismo
rasteiro que reverbera em noções como a de "pós-verdade" – e sentimos na pele o quanto tais
noções podem ser perniciosas –, apresenta uma gradação de nuances na qual a verdade se mostra
como um erro ou engano mais duradouro, mais bem sedimentado, cuja origem se perde no
esquecimento.
Com maior ou menor aproximação, os textos aqui apresentados buscam apresentar, com
diferentes perspectivas, aspectos dessa temática que é um dos fulcros do pensamento
nietzscheano.
Aproveitamos a oportunidade para, em nome do GENi, agradecer aos editores da Revista
Lampejo – Leonel, Luana e William – pela atenção e solicitude com que se dispuseram a receber,
editar e publicar esse dossiê. E da mesma forma, a todos os professores e pesquisadores que, muito
gentilmente, dispuseram-se a preparar e enviar os textos que o tornaram possível, mesmo em um
momento tão crítico – social, existencial e politicamente tão desafiador – como esse pelo qual
passamos. A eles, então, passamos a palavra.
Boa leitura a todos!
GENi: Grupo de Estudos Nietzsche – UECE.
A intransponibilidade da verdade e a necessidade da mentira em uma perspectiva nietzschiana, pp. 414-433
Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274 414
A INTRANSPONIBILIDADE DA VERDADE E A
NECESSIDADE DA MENTIRA EM UMA
PERSPECTIVA NIETZSCHEANA
Roberto Barros1
RESUMO: Em consonância com o ambiente filosófico e científico de seu tempo, Friedrich Nietzsche se afasta das considerações tradicionais acerca das noções verdade e mentira, para então reconsiderá-las em uma nova perspectiva que associa pressupostos científicos, mas também considerações críticas a respeito desses saberes. A argumentação aqui desenvolvida busca evidenciar aspectos estruturantes desta perspectiva, para então apontar os seus traços propositivos. PALAVRAS – CHAVE: verdade; mentira; perspectividade; complexidade. ABSTRACT: In tune with the philosophical and scientific environment of his time, Friedrich Nietzsche moves away from traditional considerations about the notions of truth and lie, to reconsider them in a new perspective that associates scientific assumptions, but also critical considerations about this knowledge. The argument developed here seeks to highlight structuring aspects of this perspective, in order to show its propositional features. KEYWORDS: truth; lie; perspective; complexity.
1 Roberto de Almeida Pereira de Barros é Doutor em Filosofia pela em filosofia pela Technische Universität Berlin, com pós-doutorado Universidade de Hildesheim, e Professor Adjunto da Faculdade de Filosofia e do PPGFIL da Universidade Federal do Pará (UFPA).
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Parece útil iniciar a abordagem do tema aqui proposto com uma delimitação teórica mínima
dos conceitos centrais que serão mobilizados a seguir. Nesta argumentação e em consonância com
a filosofia de Nietzsche, os termos verdade e mentira não são tomados em sentido ontológico, ou
seja, eles são mencionados como noções metafisicamente deflacionadas e, como se verá a seguir,
como noções cujas significações necessitam ser interpretadas e contextualizadas a partir de
pressupostos específicos. Partindo destes aspectos e para além das questões epistemológicas e
relativas a critérios científicos de confirmação experimental, eu gostaria de argumentar no sentido
de que é possível, segundo perspectiva defendida por Nietzsche, considerá-las primeiramente como
padrões mentais intransponíveis às formas humanas de consideração e que a percepção desta
característica pode consistir no ponto de partida que torna possível superar as ilações lógicas
intuitivas a respeito delas – aspecto que eu compreendo como uma das grandes contribuições de
Nietzsche para a filosofia – e com isso conceber critérios para que parâmetros como verdade -
falsidade possam ser mobilizados sem pressuposições metafísicas2.
Por conseguinte, um segundo ponto não menos importante aqui pressuposto é o de que na
filosofia de Nietzsche a crítica da tentativa de conferir conteúdo ontológico para aquilo que ele
compreende como categorias mentais e linguísticas não resulta em um relativismo perspectivístico,
mas, antes, em uma compreensão do caráter incontornável da perspectividade e na indicação de
que é necessário considerá-la em todas as conjecturas humanas3. Por fim, como terceiro e último
ponto, que estes traços constituem pressupostos de sustentação dos experimentos especulativos
que buscam ultrapassar as convenções intuitivas mais elementares com respeito à efetividade, que
Nietzsche empreende em sua filosofia.
Isso pressuposto, é então primordial ressaltar que tais posicionamentos não resultam na
filosofia de Nietzsche em uma negação de possibilidade do conhecimento, mas, antes, na
constatação de que conhecimento é, em última análise, uma construção humana sempre delimitada
por critérios de validação relativos a estabilidades cognitivas sem conteúdo efetivo pleno. Dito de
outro modo, na filosofia de Nietzsche podemos encontrar uma sofisticada reflexão acerca de nossas
2 Clark, Maudemarie. Nietzsche Truth and Philosophy. New York: Cambridge University Press, 1990, p. 31. 3 Dellinger, Jakob. Nietzsche als kritiker und Denker der Transformation. Em Heit/Thorgeisdorttir (Org.). Berlin/New York: Walter de Gruyter, 2016, p. 50.
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formas de construção de representações de mundo, dos pressupostos das conjecturas4 com respeito
a estas e acerca das possibilidades de validação daquilo que é construído por meio de ambas5.
Indicados estes pontos, a argumentação a seguir se organiza em três momentos. (1)
Primeiramente, em uma consideração acerca da assimilação de pressupostos naturalistas por
Nietzsche6, indicando com isso a sua grande sintonia com a crítica desta tendência já efetuada pela
filosofia alemã que o antecedeu7. Em seguida (2), tratarei da reverberação em sua filosofia da crítica
da dicotomia mente-corpo presente na filosofia de Schopenhauer, buscando mostrar a centralidade
desta para a deflação ontológica das noções verdade-mentira (exatidão - erro). Como último ponto
(3), eu gostaria de indicar como a interpretação estrutural da perspectividade humana em Nietzsche
o direciona a um experimento de pensamento fortemente influenciado pela liberdade formal que
ele interpreta como potencial na arte, mas que também implica a indicação da necessidade de
ultrapassamento das limitações perspectivísticas mais simplificadoras ou reducionistas, aspecto que
o coloca em grande sintonia com determinados direcionamentos do debate epistemológico
contemporâneo.
1. A recepção do naturalismo em Nietzsche.
Parte-se aqui do pressuposto de que Nietzsche aceita o posicionamento histórico da ciência
moderna, que implica um embate crítico desta com a metafísica e com o idealismo, mas ressaltando
que o autor leva a cabo uma consideração crítica da própria ciência8, mobilizando para isso
posicionamentos provenientes dela mesma e tendo em vista a formulação de um novo tipo de
investigação filosófica. É neste sentido que se pretende aqui corroborar o ponto de vista segundo o
qual a compreensão da recepção do naturalismo por Nietzsche se revela como central para a
compreensão da sua reflexão sobre a ciência, decisivamente no que se refere à intransponibilidade
do seu procedimento metodológico. Neste sentido, autores e fontes que exerceram influências
diretas sobre Nietzsche com respeito às ciências são muitas, mas nomes como Arthur
4 As referências à obra de Nietzsche serão feitas a partir da Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA) in 15 Bände. G. Colli e M. Montinari (Org). Munchen, de Gruyter/DTV, 1980. Referências a partir de edições em português serão indicadas. Esta referência: Nietzsche, F. A gaia ciência (FW/GC) § 374, KSA 3, p. 627. 5 Ou, como argumenta Doyle, “his intention to describe their condition of possibility”. Cf. Doyle, Tsarina. Nietzsche Ephistemology and Methaphysics – The World in Wiew. Edinburg: Edinburg University Press, 1009, p. 32. 6 Kaulbach, Friedrich. Philosophie des Perspektivismus. Tübingen: J.C.B Mohr, 1990, p. 304. 7 Nietzsche, F. FW/GC § 357, KSA 3, p. 598. 8 LEITER, Brian. “O naturalismo de Nietzsche reconsiderado”. Cadernos Nietzsche 29, 2011, p. 86.
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Schopenhauer, Friedrich Albert Lange e Rugero Joseph Boscovich não podem deixar de serem
mencionados e a eles será necessário retornar mais à frente.
A reflexão de Nietzsche tendo em vista uma certa adesão ao naturalismo científico é
confirmada em várias passagens de sua correspondência, nos fragmentos póstumos e nas obras
publicadas9. Essa adesão é evidenciada no aforismo inicial de Humano, demasiadamente humano,
significativamente intitulado: “Química dos conceitos e sensações” (Empfindungen), e indica uma
temática central dos textos da primeira metade da década de 80: a da relação entre formas de
percepção e as construções conceituais humanas. Fazendo inicialmente uma crítica à milenar fixidez
por ele interpretada nos problemas filosóficos e nas soluções especulativas formuladas para eles
pela filosofia, Nietzsche indica a assimilação de pressupostos e resultados científicos no seu
filosofar, indicado então como histórico e indissociável da ciência natural e que ele então anuncia
como “o mais novo (allerjüngste) de todos os métodos filosóficos”10. Trata-se, portanto, de um
posicionamento novo – mesmo que se compreenda em seu delineamento inicial traços não
inauditos na filosofia alemã que o antecedeu. Este novo direcionamento pode ser melhor
compreendido a partir da indicação do afastamento do filósofo da filosofia metafísica e dos
“excessos habituais das concepções populares ou metafísicas”; ou ainda, do “erro da razão” (Irrthum
der Vernunft) de suas formulações. A linha argumentativa desta nova perspectiva se diferencia das
anteriormente formuladas pela tradição filosófica porque indica tanto a falibilidade da razão, quanto
a atuação de afetos e impulsos sobre ela, tais como o egoísmo e o interesse, passíveis de
compreensão devido à “ascensão (Höhe) atual das ciências particulares”. São elas que permitem que
se fale de uma “química de representações (Vorstellungen) e sensações morais, religiosas, estéticas”,
capaz de evidenciar que as “mais soberbas cores” possam ter advindo de “substâncias (Stoffen)
desprezadas”, aspectos, que para serem assimilados, demandariam quase desumanização
(Entmenscht)11, dado o seu grau de assimilação. Dos argumentos contidos neste aforismo, podem
ser indicados em alguns aspectos centrais que devem ser considerados para que se compreenda a
nova relação de Nietzsche com a ciência: a) problematizações metafísicas são resultantes de nossas
simplificações intuitivas12, decorrentes de nossos processos cognitivos e cuja proveniência é
orgânica; b) Esta percepção indica que nossas representações são resultantes de formas
9 NIETZSCHE, F. Ecce Homo (EH/EH), Humano, demasiado humano (MA I/HH I), KSA 6, § 3, p. 634. 10 NIETZSCHE, F. MA I/HH I, KSA 2, § 1, p. 23. 11 NIETZSCHE, F. MA I/HH I, KSA 2, § 1, p. 24. 12 NIETZSCHE, F. MA I/HH I, KSA 2, § 2, p. 25.
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perspectivistas que constituem nossa forma de consideração13 e cuja proveniência não é racional; e
por fim, c) que para ultrapassá-las, é necessário um experimentalismo interpretativo não norteado
pelas concepções habituais, que deve resultar em um procedimento metodológico não intuitivo14.
Para se compreender o pano de fundo desses posicionamentos, é vantajoso considerar que
na segunda metade do século XIX o horizonte da ciência ocidental passava por profundas mudanças,
decisivamente no que se refere à perda de hegemonia do modelo mecanicista e do surgimento de
ciências independentes de sua matriz interpretativa, como foi o caso da biologia e mesmo de setores
da física como a termodinâmica. Essa mudança foi acompanhada com atento interesse por
Nietzsche, decisivamente a partir do contato com a física matemática do croata Rugero Joseph
Boscovich, por meio de quem Nietzsche obteve, no início da década de 7015, contato com
formulações relativas a uma consideração da matéria afastada da noção de átomo pleno (Erfüllte
Atome), que pressupunha uma interpretação cinética dos átomos e da constituição do mundo, e que
implicava uma física não mais dependente de adequação a padrões sensórios16. Um padrão
semelhante pode ser encontrado no naturalismo biológico de Nietzsche, que em uma concepção
não mecânica da vida, busca refutar noções intuitivas relativas a esta, decisivamente no que toca ao
impulso de conservação (Erhaltungstriebe). Estes pressupostos são centrais para que se entenda
tanto o perspectivismo filosófico de matriz kantiana que Nietzsche formula17 – todavia
naturalizado18 – e que busca problematizar os processos de transformação interpretativa pautados
em conceitos e percepções, dos quais se originam as nossas representações de mundo19. Neste
sentido, Nietzsche, em sintonia com o seu tempo, tende a naturalizar a atividade cognitiva humana,
compreendendo-a como resultado de processos orgânicos que se manifestam determinantemente
nos domínios cognitivo e psicológico. Esse aspecto já pode ser exemplarmente vislumbrado no
ensaio não publicado: “Sobre a verdade e a mentira em sentido extramoral”, no qual linguagem e
padrões mentais e linguísticos são considerados em uma perspectiva naturalista:
13 DELLINGER, Jakob. 2016, p. 52. 14 Como é o caso em Nietzsche da consideração genealógica. 15 O empréstimo junto a biblioteca da universidade da Basiléia de obras de três autores, Boscovich, African Alexandrovich Spir e Johann Carl F. Zöllner em 28.03.1873, pode ser visto como um indicador bastante significativo dos desdobramentos subsequentes da filosofia de Nietzsche com respeito a sua consideração da ciência. Nestes três autores ele encontrou respectivamente, o conceito de força, a crítica neokantiana do tempo e uma epistemologia atomística, que sem dúvida estão presentes na filosofia nietzscheana. Cf. Whitlock, Greg, Investigation in Time Atomism and eternal recurrence. Pennsylvania: Journal of Nietzsche Studies. 20, 2000, p. 36. 16 BARROS, Roberto. 2018. “Perspectivismo e interpretação na filosofia nietzschiana”. Cadernos Nietzsche, 39, vol. 1, 2018, p. 70. 17 ANDERSON, 1999, p. 50. 18 STIEGLER, Barbara. Nietzsche et la Biologie. Paris: PUF, 2001, p. 22. 19 HELLER, Peter. Von den ersten und letzten Dinge. Berlin\New York: Walter de Gruyter, 1978, p. 5.
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Tudo aquilo que sobreleva o homem ao animal depende dessa capacidade de volatilizar as metáforas intuitivas num esquema, de dissolver uma imagem num conceito, portanto; no âmbito daqueles esquemas, torna-se possível algo que nunca poderia ser alcançado sob a égide das primeiras impressões intuitivas: erigir uma ordenação piramidal segundo castas e gradações, criar um novo mundo de leis, privilégios, subordinações, delimitações, que agora faz frente ao outro mundo intuitivo das primeiras impressões como o mais consolidado universal conhecido, humano e, em virtude disso, como o mundo regulador e imperativo.20
Para Nietzsche, essa interpretação parece ser sólida o suficiente para compreender os
pressupostos a partir dos quais toda a tradição filosófica racionalista até a ciência21 se baseou.
Todavia, não se trata – e esse aspecto da crítica é decisivo – de uma negação da existência de
regularidades naturais22, mas da crítica do pressuposto segundo o qual a compreensão imediata
dessas regularidades estaria limitada pelas estruturas intuitivas de cognição humana. A significativa
presença desta problemática em suas considerações referentes ao conhecimento até em suas
últimas anotações é um traço que confirma a intensidade de como Nietzsche esteve inserido e
acompanhou o debate filosófico-científico do seu tempo, decisivamente no que tange à questão dos
limites da demonstração experimental intuitiva. É bem verdade que essa problemática já se
encontrava formulada na filosofia alemã desde Kant e que, de forma diferenciada, foi objeto de
reflexão de filósofos alemães, pelos idealistas e até Schopenhauer. Deixando à parte as
considerações de Nietzsche sobre a decisiva, mas ainda primária, crítica do aparato humano de
conhecimento e da criação da estabilidade do ser efetuada por Parmênides23 – que segundo ele viria
a ser assimilada pelos grandes filósofos gregos posteriores – um primeiro contato com a questão do
reducionismo interpretativo da intuição mais associado à ciência moderna se deu por meio da
metafísica imanentista de Schopenhauer e da crítica desse aos limites (Grenze) da percepção da
coisa em si indicados por Kant, que o autor de O mundo como vontade e representação buscou
ultrapassar por meio precisamente da valorização da percepção intuitivo-corpórea24.
Posteriormente, norteado por interesses mais específicos, Nietzsche se afastou de Schopenhauer,
a partir de seu contato com a obra de Friedrich Albert Lange, que o possibilitou analisar o problema
em um enfoque ainda mais científico.
A importância desse contato pode ser claramente percebida em Humano, demasiadamente
humano, exemplarmente na crítica das dicotomias metafísicas de “verdadeiro” e “falso”, “coisa em
20 NIETZSCHE, F. Sobre a verdade e a mentira no sentido extramoral (WL/VM). Trad. Fernando de M. Barros. São Paulo: Hedra, 2007, p. 38. 21 NIETZSCHE, F. WL/VM, II, KSA 1, p. 46. 22 COX, Chistoph. Nietzsche, naturalism and interpretation. California: California Press, 1999, p. 55. 23 NIETZSCHE, F. A filosofia na época trágica dos gregos (PHG/FT), X, KSA 1, p. 843. 24 SCHOPENHAUER, Arthur. Die Welt als Wille und Vorstellung (WWV/MVR) § 18, p. 152.
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si” e “fenômeno”, tendo em pressuposição uma interpretação naturalista das formas humanas de
representação. Contudo, alguns aspectos com respeito a este ponto específico precisam ser mais
claramente indicados. 1. Primeiramente, a compreensão em Nietzsche de que o estabelecimento
destas diferenciações pode ser fisiopsicologicamente interpretado, e de que por meio deste
expediente seria possível esclarecer inteiramente (Vollständig) a proveniência da religião, da arte e
da moral25, uma via que, segundo ele, poderia também tornar clara a proveniência dos pressupostos
metafísicos. 2. A partir disso, Nietzsche afirma que as noções de veracidade e falsidade não se
baseiam em nenhum pressuposto efetivo, mas na necessidade orgânica espelhada em função
psíquica evidenciável nos sonhos, nos quais “continua a exercita-se essa mais vetusta parte da
humanidade, que é a base a partir da qual a alta racionalidade se desenvolveu e se desenvolve ainda
em cada homem”26. 3. Devido às ciências, as pressuposições metafísicas podem então ser
compreendidas como “errôneas concepções fundantes” (irrthümlichen Grundauffassungen) e partes
da “histór ia da proveniência do pensar ” (Entstehungsgeschichte des Denkens ), e por
isso sem nenhuma justificativa efetiva para suas pretensões de verdade27.
Nietzsche, com efeito, refere-se, ainda no primeiro volume de Humano, demasiadamente
humano, a “pequenas verdades não evidentes (unscheinbaren)”, “encontradas “com método
rigoroso” e as diferencia dos erros, “oriundos de tempos e homens metafísicos e artísticos”28. Para
ele, o seu tempo metodologicamente se afastou de um mero conectar de formas e de símbolos e
mesmo da ocupação séria com o simbólico, posicionamento antevisto por ele como “dístico de uma
cultura inferior”, em um tempo que “bem diferentemente ajuíza sobre o que é eminentemente
sensível (sinnlich)”29. Neste novo momento, com os novos pressupostos que ele busca agregar à
filosofia, é elaborada uma pretensão ampliada de justificação por referencialidade30 – para além da
forma tradicional ele já conhecia na filologia31, em sua pretensão de “simplesmente compreender o
que o texto quer dizer e não farejar, pressupor, um duplo sentido”32. Ao problematizar a própria
noção de interpretação, especulando com a hipótese de que o homem faz uso de uma estrutura
25 NIETZSCHE, F. MA I/HH I, § 10, KSA 2, p. 30. 26 NIETZSCHE, F. MA I/HH I, § 13, KSA 2, p. 33. 27 NIETZSCHE, F. MA I/HH I, § 16, KSA 2, p. 37. 28 NIETZSCHE, F. MA I/HH I, § 3, KSA 2, p. 26. 29 NIETZSCHE, F. MA I/HH I, KSA 2, § 3, p. 26. 30 CLARK, M. (1999, p, 35) se refere a uma “teoria da coerência” em Nietzsche, em compatibilidade com o princípio de equivalência em uma perspectiva anti-fundacionalista (anti-foundationalist), portanto distanciado de um realismo metafísico e com uma putativa rejeição da teoria da correspondência. 31 WOTLING, Patrick. Nietzsche e o problema da civilização. São Paulo: Barcarolla, 2013, p. 82. 32 NIETZSCHE, F. MA I/HH I, § 8, KSA 2, p 29.
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interpretativa particular e intuitivamente identificável, Nietzsche interpreta os próprios
pressupostos de neutralidade e de objetividade33, buscando evidenciá-las como resultado da
necessidade humana de formatar o mundo de acordo com suas formas pragmáticas de avaliação,
“pois vemos todas as coisas por intermédio cabeça humana e não podemos cortar essa cabeça”34.
Se inicialmente para ele este consiste no fator que tornou “valiosas, pavorosas, prazerosas as
suposições metafísicas” – os piores métodos cognitivos35 – ele busca superá-las por meio da sua
compreensão pautada em pressupostos científicos, entendidos por ele como modelos
representacionais outros36.
É a assimilação do naturalismo e da matriz biológica de interpretação, que leva Nietzsche a
se afastar da perspectividade da filosofia crítica e de sua diferenciação entre coisa em si e fenômeno,
que também compromete para Nietzsche a validade científica da filosofia de Schopenhauer37.
Decisivamente no que se refere à naturalização biológica do aparato cognitivo humano e de sua
estrutura representacional, esta, segundo ele, pode ser observada de forma privilegiada na
estruturação sintática das línguas ocidentais, decisivamente fundadas nas concepções de sujeito das
ações causais e temporalmente compreensíveis, nos pressupostos de qualidades substantivas e de
seus atributos. Neste caso, a filologia novamente lhe serve de auxílio, enquanto instrumento de
compreensão de que na linguagem as funções simbólico-representativas são também valorativas,
pois na linguagem “o homem estabeleceu um mundo próprio, ao lado do outro, um lugar onde ele
considerou firme o bastante para, a partir dele, tirar dos eixos o mundo restante e se tornar seu
senhor”38. Mas a compreensão deste “erro monstruoso” não resulta em Nietzsche, como já
mencionado, na inclinação a indicar a inexistência ou a impossibilidade do conhecimento, mas na
necessidade de compreender os padrões linguísticos enquanto decorrentes de padrões intuitivos
elementares39, indicando-os como presentes nas formas de humanas de consideração da
efetividade e, a partir disso, propor a superação deles enquanto meios seguros que investigação da
efetividade. Isso, não no sentido de pretender negá-los ou suprimi-los – o que para ele nem mesmo
é factível – mas do efetivo dimensionamento de seus fatores não racionais e da influência destes na
33 NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal (JGB/BM), § 207, KSA 5, p. 135. 34 NIETZSCHE, F. MA I/HH I, § 9, KSA 2, p 29. 35 NIETZSCHE, F. MA I/HH I, § 9, KSA 2, p 29. 36 NIETZSCHE, F. MA I/HH I, § 21, KSA 2, p. 42. 37 HELLER, P. 1978, p. 9. 38 NIETZSCHE, F. MA I/HH I, § 11, p. 31. 39 Em um fragmento póstumo da primavera-verão de 1883 Nietzsche escreve: “As morais como linguagem sígnica (Zeichensprache) dos afetos. O afetos mesmo como linguagem sígnica das funções orgânicas” (NIETZSCHE, F. KSA 10, p. 261).
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atividade intelectiva humana, diferenciando seus pressupostos e padrões da pretensão de descrição
da efetividade. É com esta finalidade que ele, pautado em uma perspectiva científica, pressupõe a
superação da diferenciação entre mente e corpo40 e conjectura o abandono das noções de
interioridade e de exterioridade do mundo41 enquanto sinônimos da estagnante diferenciação
metafísica entre essência e aparência. Isso, pautado por um forte sentido de justificação do
conhecimento distanciado de interpretações pautadas em convicções intuitivas.
Argumentar, como já o fizera enfaticamente Schopenhauer, contra o pressuposto de uma
independência do pensamento com respeito ao corpo42, busca indicar que demandas orgânicas
podem ser vistas como base de padrões intuitivos do pensamento e da linguagem, o que Nietzsche
denomina de convicções (Überzeugungen) e as associa à construção ilusória de uma noção de
verdade absoluta43, ou mesmo à fé sem existência efetiva demonstrável. Desse modo, a afirmação
“o homem das convicções não é o do pensamento científico”44, evidencia como a noção de
convicção é usada como algo oposto ao conhecimento na filosofia de Nietzsche. É a compreensão
da convicção enquanto fator natural insuperável das formas humanas de compreensão45 que o faz
negar que ela possa vir a ter alguma pretensão de verdade, ou mesmo de poder ser um pressuposto
de investigação.
Neste sentido, atentar para a significação do aspecto contraintuitivo do conhecimento
científico defendido por Nietzsche evidencia um aspecto central à compreensão da noção de
conhecimento concebida por ele. Na sua filosofia, a referencialidade que deve justificar o
conhecimento não é pensada enquanto conformidade de uma interpretação com padrões ou dados
elementares de percepções intuitivas, mas do demonstrar aspectos constitutivos da efetividade,
que de forma alguma devem estar subordinados, seja a um sujeito interpretante, seja a seus padrões
lógicos mais elementares, tais como a identidade, causalidades diretas e dicotomias absolutas. Para
ele, o conhecimento não é e não pode ser limitado à capacidade representativa de um sujeito
racional, do mesmo modo que os limites representacionais deste não podem ser tomados como
limites cognoscitivos46, pois estes são vistos primeiramente como resultados de um processo
40 STIEGLER, B. 2001, p. 17. 41 NIETZSCHE, F. MA I/HH I, § 15, KSA 2, p. 35. 42 SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre a vontade na natureza. Porto Alegre: L&PM, 2013 p. 100. 43 NIETZSCHE, F. MA I/HH I, § 630, KSA 2, p. 356. 44 NIETZSCHE, F. MA I/HH I, § 630, KSA 2, p. 356. 45 NIETZSCHE, F. JG/BM § 231, KSA6, p. 170. 46 MARQUES, António. A filosofia perspectivista de Nietzsche. São Paulo: Discurso editorial; Ijuí: Editora UNIJUÍ, 2003, p. 109.
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biológico-volitivo de superação da inquietação causada pelo que nos é estranho, inabitual, duvidoso,
pelo instinto do medo 47. É a partir destes pressupostos que concepções metafísicas podem ser
criticadas em suas pretensões de verdade e modelos não intuitivos de interpretação podem ser
priorizados, pois são denunciadas, em confrontação com as demonstrações científicas, como
pautadas em pressupostos não efetivos e decorrentes de padrões mentais reducionistas.
Mas se Nietzsche chega a estas posições a partir do positivismo científico com base
referencial, pois “a verdadeira ciência”, consiste na “imitação da natureza em conceitos”48, por outro
lado ele também busca apartar-se da pretensão de que em algum momento um conhecimento
último possa ser alcançado49. A sua ideia de conhecimento está muito mais associada a capacidades
experimentais do pensamento, o que pressupõe uma confrontação histórica com o idealismo, com
a metafísica, mas também com o reducionismo materialista, em favor de uma atitude interpretativa
e não constitutiva50.
A grande segurança das ciências naturais, em relação à psicologia e à crítica dos elementos da consciência – ciências não naturais, poderíamos poder dizer –, reside justamente no fato de tomarem o estranho por objeto: enquanto é quase contraditório e absurdo querer tomar por objeto o não estranho51.
Por fim, a recepção crítica do naturalismo científico em Nietzsche possui decisivo fator
operativo no contexto de sua crítica da metafísica e de ampliação das possibilidades interpretativas
de um real que se revela cada vez mais complexo.
2. A superação da dicotomia mente x corpo e suas implicações cognitivas
Em uma passagem do aforismo 117 de Aurora, intitulado “Na prisão”, Nietzsche afirma: “Os
hábitos dos nossos sentidos nos envolvem na mentira e na trapaça das percepções (Empfindungen):
estas, novamente, são os alicerces de todos os nossos juízos e ‘conhecimentos’ (“Erkenntnisse”) –
Não há de forma alguma uma fuga, caminhos escorregadios ou secretos para o mundo efetivo”52. O
uso da noção de conhecimento entre aspas, está relacionado ao fato de que Nietzsche também não
faz uso dela com pretensão de significado substantivo, mas como algo existente, contudo, enquanto
representação resultante e imiscuída de processos interpretativos dependentes de nossa
constituição orgânica pensada como base do processo psíquico de representação de
47 NIETZSCHE, F. FW/GC § 355, KSA 3, p. 594. 48 NIETZSCHE, F. MA I/HH I, § 38, KSA 2, p. 61. 49 NIETZSCHE, F. MA I/HH I, § 256, KSA 2, p. 212. 50 MARQUES, A. 2003, p. 111. 51 NIETZSCHE, F. FW/GC § 355, KSA 3, p. 594. 52 NIETZSCHE, F. Aurora (M/A) § 117, KSA 3, p. 110.
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interpretações53. Para ele, isso implica uma ligação indissolúvel entre corpo e pensamento e,
portanto, a necessidade de problematizar uma morfologia das estruturas intuitivas de pensamento,
o que pressupõe a conformação do intelecto às necessidades orgânicas, cuja finalidade seria a
deflação substancial tanto da efetividade quanto do conhecimento.
Em uma perspectiva evolucionista54 e contrária ao racionalismo idealista, Nietzsche, ciente
das pesquisas científicas de seu tempo neste domínio55, assimila a posição schopenhaueriana e une,
em uma relação de subordinação, o intelecto ao corpo. Enquanto Schopenhauer pensava o intelecto
como instrumento do corpo e este como manifestação da vontade enquanto princípio primordial56,
Nietzsche interpreta este pressuposto como reducionista e postula uma estruturação do
pensamento a partir de necessidades orgânicas basilares, verticalmente conflitantes entre si e
responsáveis intelectivamente pela fixação de pressupostos redutores, tais como identidades,
regularidades constantes e relações causais diretas. Estes pressupostos, compreendidos por ele
como intransponíveis e como elementos constitutivos da forma humana de compreensão, de nossa
estética humanização do mundo57, expressariam, por sua vez, necessidades orgânicas de
estabilidade em um mundo dinâmico, mas sem possuírem aspecto algum que as possa tornar
“verdadeiras”. Muito pelo contrário, eles são erros (Irrthümer) produzidos pelo intelecto tendo em
vista a manutenção da espécie, e que só podem ser tomados como verdadeiros enquanto
“proposições de fé” 58.
Isso o afasta da hipótese racionalista de interpretar o intelecto como uma faculdade
direcionada ao conhecimento e a interpretar as conclusões racionais (Vernunftschluss) como
53 Tornando, por exemplo, o conhecido (bekannt) como reconhecido (erkannt). Cf. NIETZSCHE, F. FW/GC § 355, p. 594. 54 O contato de Nietzsche com a concepção evolucionista pode ser indicado a partir de seu interesse pelas obras de Friedrich Albert Lange (STACK, George. Lange and Nietzsche. Berlin/New York: Walter de Gruyter, 1983, p. 156), Caspari, Carl von Nägeli, mas ela é diretamente mencionada na carta enviada a Paul Gersdorff, em 1868, na qual o filósofo indica a sua crucial orientação conjunta com os empreendimentos científicos de Darwin (KGB 1/2, p. 257). Além disso, podem ser mencionadas a leitura de trabalhos de Edward von Hartmann rejeitando o naturalismo filosófico acerca do princípio orgânico da natureza, além dos escritos de Oscar Schmidt, zoologista, darwinista, além de Karl Semper, cujo volume de Die natürlichen Existenzbedingungen der Thiere, com várias marcações, está no acervo de Nietzsche hoje localizado em Weimar. John Richardson é um dos que defendem a posição de que apesar das críticas a Darwin, Nietzsche assimilou inúmeros aspectos de sua teoria (2004, p. 21). Gregory Moore afirma: “And yet there can be no question that Nietzsche adopts a broadly evolutionist perspective: he believes in the mutability of organic forms; he sees morality, art and consciousness not as uniquely human endowments with their origin in a transcendental realm, but as products of the evolutionary process itself” (MOORE, Gregory. Nietzsche Biology and Metaphor. Edinburg: Cambridge University Press, 2002. p. 21). 55 Como as de Ernest Mach, Gustav Fechner e Friedrich Lange. Cf. GORI, Pietro. A caminho de uma filosofia sem alma. Uma abordagem sobre a crítica da subjetividade em Nietzsche. Cadernos Nietzsche, vol. 38, n.2, 2017, p. 16. 56 SCHOPENHAUER, A. Die Welt als Wille und Vorstellung. WWV I/MV I § 27, p. 215. 57 BRUSOTTI, Marco. Die Leidenschaft der Erkenntnis. Berlin\New York: Walter de Gruyter, 1997, p. 424. 58 NIETZSCHE, F. FW/GC § 110, KSA 3, p. 469.
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atitudes instintivas59. A consciência, “o último e derradeiro desenvolvimento do orgânico”60, seria a
expressão dos mesmos impulsos que dominam o corpo, projetando suas necessidades vitais
abstratamente em pressupostos estáveis, todavia inexistentes, porém úteis à vida, pois para
Nietzsche, as ancestrais humanidade e animalidade ainda continuam inventando, amando, odiando
e raciocinando no interior do homem61.
Apenas devido a um uso simplório de noções intuitivas e da essencialização dos seus
pressupostos foi possível tanto o estabelecimento das noções de sujeito e de conhecimento62, como
das dicotomias de verdadeiro - falso, certo - errado, essência - aparência63 enquanto noções reais e,
a partir disso, a essencialização do aparente mais intuitivo64. Mas em Nietzsche estas dicotomias
dizem muito mais sobre uma necessidade disciplinar da mente, sobre a “universalidade e
obrigatoriedade de uma crença”, de um julgamento não caprichoso, de uma “lei da concordância”,
do que de coisas efetivas, que não se deixam adequar aos pressupostos como verdade e falsidade,
mas que são submetidas a eles apenas devido a sua utilidade. Nietzsche se refere à verdade
substantiva enquanto algo posterior e resultante destas convicções, como resultante dos “erros
fundamentais há muito incorporados”65, pois, para ele a assimilação e a justificação valorativa de
formas intuitivas de “verdadeiro” e “falso” deram-se prioritariamente tendo em vista a “condição de
vida” que possibilitavam e não como “autênticas categorias do ser”66.
Neste sentido, a sua revalorização do corpo deve ser considerada como uma alternativa à
contraposição das pretensões morais camufladas de pretensões epistemológicas, que ele identifica
no discurso metafísico, mas também na ciência. Ela é um dos componentes centrais de sua
mobilização e rejeição por meio de uma perspectiva fisiopsicológica de uma ideia finalista ou
incondicionada de verdade. É ela que o faz afirmar que mesmo a metafísica imanente de
Schopenhauer manteve em muitos aspectos a mesma estrutura intuitiva da metafísica tradicional,
como a interpretação unitária da vontade, o pressuposto do conhecimento a partir da relação sujeito
- objeto, muito embora Schopenhauer para ele viesse a efetivar a vitória do conceito de veracidade
59 NIETZSCHE, F. M/A § 358, KSA 3, p 241. 60 NIETZSCHE, F. FW/GC § 11, KSA 3, p. 382. 61 NIETZSCHE, F. FW/GC § 54, KSA 3, p. 417. 62 NIETZSCHE, F. M/A § 116, KSA 3, p. 109. 63 NIETZSCHE, F. FW/GC § 54, KSA 3, p. 417. 64 NIETZSCHE, F. FW/GC § 58, KSA 3, p. 422. 65 NIETZSCHE, F. FW/GC § 110, KSA 3, p. 469. 66 MARQUES, A. 2003, p. 134
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sobre a moralidade cristã, decisivamente ao solapar os pressupostos teleológicos67 e de liberdade.
Ao conceber a razão como submetida à vontade e inseparavelmente ligada ao corpo68,
Schopenhauer mobiliza para Nietzsche indicadores importantes das fragilidades da concepção
idealista do pressuposto da autonomia da consciência em sua pretensão gnosiológica, do mesmo
modo que de pressupostos da própria epistemologia, tais como neutralidade e exatidão. É a
reconsideração da relação entre mente e corpo feita por Schopenhauer que possibilita a Nietzsche,
apesar das discordâncias, identificar um padrão de consideração responsável pela estagnação da
teoria do conhecimento filosófica, por sua submissão à positividade científica69 e pela manutenção
de pressupostos como o do “conhecimento desinteressado”.
A naturalização da racionalidade possibilita Nietzsche inferir que “o homem objetivo é
efetivamente um espelho: habituado, ante tudo que quer compreender, a se submeter sem um
outro desejo que não o da existência do conhecimento como ‘afigurar’” (Abspiegeln)70. Com isso,
Nietzsche pretende rever a interpretação do homem como “medida segura das coisas”71 e, portanto,
deflacionar as pretensões ontológicas oriundas de seus padrões mentais e representativos. É isso
que o possibilita a falar de verdades não eternas e de conhecimentos perspectivísticos, assim como
de criativos pluralismos interpretativos enquanto proposta metodológica de superar as convicções
metafísicas e morais que estagnam investigações efetivas72.
3. A estrutura da perspectividade e as potencialidades da arte
Se as teorias da representação de Kant e de Schopenhauer são os pontos de partida para a
formulação da teoria nietzscheana da perspectividade, é o naturalismo das ciências e a influência do
proto-neokantiano Friedrich Albert Lange que levam Nietzsche a naturalizá-la e, por conseguinte,
reconsiderar os seus limites a partir de novas bases – sobre bases fisiopsicológicas que, no que se
refere às ciências, afere à psicologia naturalizada a via para problemas fundamentais73. É ela que nos
desvela “esse mundo simplif icado , plenamente artificial, poetizado, falsificado”74 que a
67 NIETZSCHE, F. MA I/HH I, § 2, KSA 2, p. 25. 68 SCHOPENHAUER, A. WWV/MVR § 24, p. 182. 69 NIETZSCHE, F. JGB/BM § 204, KSA 5, p. 131. 70 NIETZSCHE, F. JGB/BM § 207, KSA 5, p. 135. 71 NIETZSCHE, F. MA I/HH I, § 2, KSA 2, p. 25. 72 Um tema referente a esta questão, mas que não pode ser tratado aqui, é o de que para Nietzsche não há na busca pelo conhecimento nenhuma conexão entre este e uma causalidade positiva. Na sua filosofia, a busca pelo conhecimento implica uma potencialidade trágica, de eventual necessidade de aceitação de que o conhecimento pode até mesmo ser destrutivo. 73 GIACOIA, Oswaldo. Nietzsche como psicólogo. São Leopoldo\RS: Editora UNISINUS, 2001, p. 29. 74 NIETZSCHE, F. JGB/BM § 24, KSA 5, p. 45.
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racionalidade produz, mas que, todavia, existe independente dela. Existe não unicamente como o
“real” fabricado intuitivamente pelo intelecto, mas como algo além, que apenas uma superação das
formas dogmáticas de consideração75 pode nos franquear a possibilidade de perscrutar. Este
questionamento acerca da artificialidade do mundo percebido e concebido pela constituição
humana é um aspecto central da noção de perspectividade intelectiva defendida por Nietzsche, e
que pressupõe que o intelecto cria um “real” a partir de percepções e impulsos, admitindo até
mesmo o pensar como “apenas um comportamento deste impulso com outro”76 e, assim, uma
atividade não norteada pela racionalidade, mas pela necessidade de falsificação77. O “desejo
intelectual da verdade” na contemporaneidade, entendido como estágio subsequente ao “impulso
à verdade”, acaba, todavia, por revelar não a existência, mas a fragilidade deste “real”, a partir da
constatação de sua indemonstrabilidade.
Sendo a perspectividade insuperável78, pois os impulsos, de igual modo, não podem ser
suprimidos, Nietzsche propõe experimentos perspectivistas a partir da indicação de uma
“consciência de método” (Gewissen der Methode )79 atinente à identificação da “moral do método”
(Moral der Methode) de seu tempo, a qual, segundo ele, implica “levar ao limite extremo (até mesmo
ao contrassenso [Unsinn], com a permissão de dizê-lo)” uma forma de causalidade80, antes de se
cogitar outros experimentos causais tendo em vistas a formulação de teses. Mas qual seria este
limite? Eu gostaria de defender aqui a interpretação de que ele é a efetividade pensada de forma
não determinista, porém como existente e como algo outro das formas com que nós a pensamos81.
Nietzsche, por conseguinte, não é um cético com respeito ao conhecimento. Ele não busca negar a
sua possibilidade, mas apartar desta noção interpretações intuitivas simplórias e essencialistas,
confrontando-as à “descrição do espírito objetivo”82. Esta é a sua forma de combater as qualidades
soníferas e entorpecedoras do ceticismo, redimensionando a relação interpretativa do intelecto
com respeito ao existente por meio de um apelo a experimentos interpretativos pautados em
75 MARTON, Scarlett. Das forças cósmicas aos valores humanos. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 170. 76 NIETZSCHE, F. JGB/BM § 36, KSA 5, p. 54. 77 Pois “a ‘razão’ é a causa originária (Ursache) de nossa falsificação dos dados sensíveis”. NIETZSCHE, F. Crepúsculo dos ídolos (GD/CI), “A razão na filosofia” § 2, KSA 6, p. 76. 78 DELLINGER, Jakob. 2012, p. 141. 79 NIETZSCHE, F. JGB/BM § 36, KSA 5, p. 54. 80 O que Leiter nomeia de “essencialismo causal” sem pretensão ontológica. Cf, LEITER, B. 2011, 104. 81 NIETZSCHE, F. MA II/HH II, “O andarilho e sua sombra” (AS), § 205, KSA 6, p. 642. 82 NIETZSCHE, F. JGB/BM § 208, p. 138.
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critérios referenciáveis, todavia negando-lhes a possibilidade de virem a consistir em critérios
definitivos83.
Senso da verdade – Eu elogio todo ceticismo ao qual me é permitido responder: “tentemos isso!” Mas que eu não mais ouça falar de todas as coisas e questões, que não permitam o experimento. Este é o limite do “senso de verdade” (Wahrheitssinnes): pois ali a coragem perdeu seu direito”84.
É deste modo que a hipótese da Wille zur Macht pode ser formulada. Como uma teoria
hipoteticamente proposta85, a partir do pressuposto da intransponível estruturação causal de nossa
forma de compreensão adequada ao mundo86, de modo que nós a podemos nele confirmar, todavia,
por intermédio de nossas formas limitadas de percepção, fundadas na paridade da atuação de
nossos desejos e paixões com a efetividade entendida “como uma forma primitiva de mundo dos
afetos, no qual tudo permanece ligado em uma poderosa unidade, que então se ramifica e configura
(ausgestaltet)”87. O limite causal dessa aproximação formata antecipadamente o experimento
também causal utilizado, mas esta característica não significa a determinação final desse, pois é
necessário previamente reconhecida, enquanto “mandamento (geboten) da consciência do
método (Gewissen der Methoden)” e mediante o pressuposto de “não tomar outras formas de
causalidade até que a tentativa se baste com uma; até que ela seja levada a sua mais ampla fronteira
(Grenze)”88 e cuja refutação precisa ser feita adequada a estes padrões e não por convicções ou
moralismos. A partir dela é possível formular uma hipótese, tal como a de que “o mundo visto do
seu interior, indicado e determinado no seu “caráter inteligível”, seria propriamente vontade de
poder e nada mais além”89. Esta poderia ser indicada como a “vontade fundamental do espírito”,
como “algo mandatário” (befehlerische Etwas), que quer internamente ser senhor e sentir-se senhor
de seu entorno e tem a vontade de tornar a multiplicidade simplicidade para uma conectiva,
vinculante, dependente de domínio (herrchsüchtigen) e efetiva vontade dominante, cujas
83 “Velho: Então você quer ser o mestre da desconfiança com relação à verdade? Pirro: Da desconfiança tal como ela nunca existiu no mundo, da desconfiança de tudo e todos. É a única via para a verdade”. Nietzsche, F. MA II/HH II/AS § 213, p. 646. 84 NIETZSCHE, F. FW/GC § 51, KSA 3, p. 415/6. 85 TONGEREN, Paul van. A moral da crítica de Nietzsche à moral – Estudos sobre “Para além de bem e mal”. Curitiba: Ed. Champagnat, 2012, p. 213. 86 KAULBACH, F. 1990, p. 256. 87 NIETZSCHE, F. JGB/BM § 36, KSA 5, p. 54-55. 88 NIETZSCHE, F. JGB/BM § 36, KSA 5, p. 55. 89 NIETZSCHE, F. JGB/BM § 36, KSA 5, p. 55.
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“necessidades e faculdades são as mesmas que os fisiólogos indicam para tudo que vive, cresce e se
multiplica”90.
Em Nietzsche, o perspectivismo busca também chamar a atenção para todos os impulsos e
interesses que norteiam toda interpretação, seja sob o ponto de vista orgânico, seja sob o ponto de
vista moral, pois para ele não existe moral sem perspectividade valorativa. Isto é proposto em favor
de uma atitude que denota a percepção de que “nada que ocorre no mundo é divino, ou mesmo
acontece segundo uma medida humana racional, misericordiosa ou justa”, que sabe “que o mundo
que vivemos é não divino (ungöttlich), imoral, ‘inumano’ (unmenschlich)”91, assim como que “por um
tempo demasiado longo nós refletimos falsa e mentirosamente – segundo nossos desejos e
vontades de veneração – ou seja, segundo nossas necessidades”92. Essa compreensão deve levar
a uma corajosa postura investigativa com respeito ao mundo, para além da coerência do
pensamento humano tido por consciente93.
Mesmo compreendendo que uma análise do intelecto humano revela que este “não pode
deixar de ver a si mesmo sob suas formas perspectivas e apenas nelas”94, o pressuposto da
inteligibilidade imanente parece fornecer para Nietzsche um parâmetro para ultrapassar a
tendência intuitiva da referencialidade positivista e, nesse sentido, fatores que a colocam em acordo
crítico com a epistemologia de seu tempo95. Neste ponto, a influência de Rugero Boscovich é
importante para se compreender os pressupostos de sua concepção de perspectividade. É a partir
da física matemática do croata que o filósofo alemão vê um ponto sólido para a crítica do atomismo
materialista, por conseguinte, da crença na “substância”, na “matéria”, no átomo e no “atomismo da
alma”96, constituindo com isso “o maior triunfo sobre os sentidos que até então se obteve na terra”97.
A física matemática de Boscovich pode ser fortemente cogitada como presente enquanto pano de
fundo de novas versões e refinamentos desta hipótese98 e nas propostas de consideração de uma
90 NIETZSCHE, F. JGB/BM § 230, KSA 5, p. p. 167. 91 NIETZSCHE, F. FW/GC § 346, KSA 3, p. 580 92 NIETZSCHE, F. FW/GC § 346, KSA 3, p. 580. 93 NIETZSCHE, F. FW/GC § 335, p. 563. 94 NIETZSCHE, F. FW/GC § 374, p. 627. Ou ainda, segundo um “notwendiger“ ou “Bewusstseinperspektivismus” (KSA 13, 14 [186], 373). 95 MARQUES, A. 2003, p. 142. 96 Pois o átomo, assim como a coisa em si, pode ser mesmo compreendido como resultado de uma “psicologia rudimentar”. NIETZSCHE, F. Crepúsculo dos ídolos (GD/CI), “Os quatro grandes erros” § 3, KSA 6, p. 91. 97 NIETZSCHE, F. JGB/BM § 12, KSA 5, p. 26. 98 Como parecem significar as anotações do fragmento NF/FP 14 [122], KSA 13, p. 302: “Para a teoria do conhecimento: simplesmente empírica: Não existe nem ‘espírito’, nem razão, nem pensamento, nem consciência, alma, vontade, verdade: tudo ficções, que são inúteis. Isso não diz respeito a ‘sujeito e objeto’, porém, a uma determinada espécie animal, que sob uma conhecida certeza relativa, propaga antes de tudo a regularidade de suas percepções (da forma que ela capitalizar experiência)...
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“alma mortal”, como “pluralidade do sujeito” e “como estrutura social de impulsos e afetos”, que
podem então requerer “direito de cidadania na ciência”99, como “invenção” e, quem sabe,
“descoberta” da psicologia. É, por conseguinte, a intepretação perspectivista também da física que
leva Nietzsche a afirmar que mesmo ela não deve ser entendida como uma explicação, mas uma
interpretação do mundo, noção aquela a ser superada, tão logo ela se afaste da limitação da física
sensória.
É neste ponto que à ciência pode ser proposto atentar para as potencialidades interpretativas
da arte, desta “necessidade de transformação em plenitude (Vollkommenheit)”100. Não no sentido
de se tornar ela mesma arte, mas de compreender as possibilidades dos experimentos
perspectivísticos desta e de sua potencial independência com respeito ao dogmatismo101. Mesmo
entendendo claramente não serem as perspectivas representacionais de ambas passiveis de
unificação, Nietzsche propõe uma ciência experimental que, dentro dos seus parâmetros
metodológicos102 – a arte também possui estilos e formalismos103 – faça experimentos
interpretativos como forma de representar dimensões da efetividade que se deixam evidenciar
pelos parâmetros perspectivísticos, mas os compreendendo sempre como relativos104.
Disso decorre um segundo desdobramento. O da fruição, gerada pelo experimento criativo,
que deve funcionar como forma de superar a fixidez ascética da metafísica. Este experimento não
pressupõe uma falsificação do mundo, mas uma alternativa para superar os sentimentos
desestabilizadores da compreensão intuitiva deste causados pela ciência105, afirmando o
O conhecimento trabalha como ferramenta do poder. Então lhe está à mão, crescer com cada aumento de poder. Sentido do conhecimento significa aqui, como em ‘bom’ ou ‘belo’, tomar o conceito rígida e precisamente como antropocêntrico (anthropocentrisch) e biológico. De modo que para que uma espécie determinada se mantenha – e cresça no seu poder – ela necessita conceber tanta previsibilidade e permanência em sua concepção de realidade, que com isso se possa construir um esquema de seu comportamento. A utilidade da experiência - não alguma necessidade abstrato-teórica (abstrakttheoretisches Bedürfniß) - de não ser enganado é o motivo por detrás do desenvolvimento dos órgãos do conhecimento (Erkenntnißorgane)... Eles se desenvolvem de tal forma, que a sua observação é suficiente para nós manter (erhalten). O conceito mecânico de movimento é precisamente uma tradução do procedimento em linguagem sígnica da original da linguagem ótica e tato (Übersetzung des Original-Vorgangs in die Zeichensprache von Auge und Getast). O conceito ‘átomo’, a diferenciação entre uma ‘permanência’ da força impulsiva e ela mesma uma linguagem sígnica do nosso mundo lógico-psíquico. Não está no nosso agrado, alterar os nossos meios de expressão. É possível entender em que sentido eles são simplesmente semiótica. A exigência de uma forma adequada de expressão é sem sentido (unsinnig). Está na essência de uma linguagem, de uma forma de expressão, expressar apenas uma relação. O conceito ‘verdade’ é um contra senso (Widersinnig). A totalidade do reino de ‘verdade’ e ‘falsidade’ refere-se a relações entre seres (Wesen), não entre ‘em si’... Contra senso: Não há nenhum ‘ser em si’, as relações constituem primeiramente seres, quanto menos existe ‘conhecimento em si’”. 99 NIETZSCHE, F. JGB/BM § 12, KSA 5, p. 27. 100 NIETZSCHE, F. Crepúsculo dos ídolos (GD/CI), “incursões de um extemporâneo” § 9, KSA 6, p. 117. 101 KAULBACH. F. 1990, p. 307. 102 Pois a contemporaneidade mostra a “vitória do método científico sobre a ciência”. NIETZSCHE , F. NF/FP, KSA 13, 15 [51], p. 442. 103 NIETZSCHE, F. NF/FP, 11 [3], KSA 13, p. 9. 104 NIETZSCHE, F. NF/FP, 2 [74], KSA 12, p. 154. 105 NIETZSCHE, F. FW/GC § 107, KSA 3, p. 464.
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experimentalismo interpretativo do pensamento, seu aspecto criador, como superior ao desejo de
segurança motivadores de reducionismos. Neste sentido ele está de acordo com o pensamento da
Wille zur Macht, que pressupõe a expansão e não a conservação106 como impulso elementar do
vivente107. A criação e o desafio da exploração devem suplantar o medo do desconhecido e,
portanto, a dissonância cognitiva antropogênica da “verdade”, em favor de uma atividade infinita e
sem nenhuma garantia teleológica positiva108. Se na primeira metade dos anos 70 é a experiência
estética que deve salvar o homem do conhecimento do terror causado pela nova percepção da
ausência de sentido do existente e do engano logocêntrico, nos últimos anos de produção
intelectual ela se torna para Nietzsche até mesmo um instrumento de compreensão da própria
ciência109. É ela que, tendo superado as dicotomias “verdadeiro - falso”, “aparência - essência”110,
deve explicitar o traço estético-criativo mesmo na assustadora aventura da busca pelo
conhecimento. A arte, enquanto “maior estimulante da vida, embriaguez vital, vontade de viver”,
pode desempenhar esta função, ao confrontar os limites perspectivísticos estabelecidos testando e
buscando novas formas de compreensão e apresentação111. Ao indicar as possibilidades
interpretativas que o infinito experimento representacional que a arte evidencia, Nietzsche a
compreende como contraposto à fixidez dogmática e isso é utilizado por ele como forma de
afastamento e crítica da moral fundacionista e dicotômica. Esse traço direciona o seu filosofar para
um experimentalismo perspectivista de pensamento sem centralismos e não doutrinal.
Mas penso que hoje pelo menos estamos distantes da risível imodéstia de decretar, a partir
de nosso ângulo, que somente dele é permitido ter perspectivas. Mais que isso, o mundo
tornou-se novamente “infinito” para nós: na medida em que não podemos rejeitar a
possibilidade de que ele en c err e e m s i i n f in it as in ter pr eta ç õ es . Mais uma vez
acomete o grande calafrio – mas quem teria imediatamente desejo de divinizar novamente
es s e mundo monstruoso e desconhecido à maneira antiga? E então a adorar o
desconhecido como “O desconhecido”? Ah, são tantas possibilidades não di v in as
(ungöttliche) de interpretação desse desconhecido, demasiada diabrura, estupidez, loucura
de interpretação – mesmo a nossa própria, humana, demasiadamente humana, que nós
conhecemos... (FW/GC § 374, p. 674)
106 NIETZSCHE, F. M/A, § 106, 93. 107 FREZZATTI, Nietzsche contra Darwin. Ijuí: Unijuí. 2001, p. 65. 108 NIETZSCHE, F. NF/FP, 15 [8], KSA 13, p. 408/9. 109 NIETZSCHE, F. NF/FP, 6 [11], KSA 12, p. 237. 110 RICHARDSON, John. Nietzsche´s new Darwinism. New York: Oxford University Press, 2004, p. 224. 111 STEGMAIER, W. As linhas fundamentais do pensamento de Nietzsche. São Paulo: Vozes, 2013, p. 231.
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A trama ficcional: para além da “mentira sagrada”, pp. 434-448
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A TRAMA FICCIONAL: PARA ALÉM DA
“MENTIRA SAGRADA” Miguel Angel de Barrenechea1
RESUMO: A proposta deste artigo2 é a de refletir sobre a perspectiva nietzschiana do conhecimento, cujos conceitos principais, como “sujeito”, “objeto”, “coisa”, “matéria”, “átomo”, etc. são apenas construtos antropomórficos para agir no mundo. Essas noções não podem ser consideradas como “conhecimento absoluto”, “objetivo” ou “incondicionado”. São apenas ferramentas vitais, empregadas por um animal inteligente, para sobreviver às contingências da existência. Perante essas noções há duas perspectivas possíveis: há homens que aceitam o caráter ficcional do conhecimento, entendendo-o como uma “mentira artista” e outros seres humanos que acreditam piamente nas suas ficções, tentando impô-las de qualquer forma, como se fossem uma “mentira sagrada”. PALAVRAS CHAVE: Nietzsche; trama ficcional; conhecimento; conceitos; mentira sagrada. ABSTRACT: of knowledge, The purpose of this article is to reflect on Nietzsche’s perspective of knowledge, whose main concepts such as “subject”, “object”, “thing”, “matter”, “atom” etc. are just anthropomorphic constructs to act in the world. These notions should not be considered as an “absolute knowledge”,
1 Doutor pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com pós-doutorados em Filosofia pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professor Titular da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). 2 Esta é uma versão modificada do trabalho que apresentei no II Colóquio Nietzsche, organizado pelo Grupo de Estudos Nietzsche (GENi) – na Universidade Estadual do Ceará (UECE), em Fortaleza, em dezembro de 2019. Nela apresento minhas reflexões mais recentes sobre a problemática da mentira e da verdade, do conhecimento e da configuração da linguagem, conforme a ótica de Nietzsche. Retomo também, sob outros vieses, algumas das reflexões sobre a problemática do sujeito, da substância e da causalidade, que já abordei no meu livro “Nietzsche e a liberdade” (2000, 2. ed. 2008), particularmente no capítulo II. Agradeço as importantes contribuições de alguns colegas, como Olímpio Pimenta, Gustavo Costa, Ruy de Carvalho, William Mattioli e outros, pois graças as suas observações, no debate posterior à palestra, consegui aprimorar algumas teses desenvolvidas neste artigo.
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“objective” or “unconditional”. They are only vital tools, employed by an intelligent animal, to survive the contingencies of existence. Before these notions, there are two possible perspectives: there are men who accept the fictional character of knowledge, understanding it as an “artist lie” and other human beings who strongly believe in their fictions, trying to impose them, in every way, as if it were a “sacred lie”. KEY WORDS: Nietzsche; fictional plot; knowledge; concepts; sacred lie.
1 Introdução: os animais inteligentes – suas fábulas e teias
Seguindo o ritmo de sua proposta filosófica de interpretar o mundo de forma aforística e com
uma linguagem imagística, totalmente diversa da tradição filosófica ocidental, Nietzsche apresenta
em um texto de juventude, de 1873, publicado postumamente – Sobre verdade e mentira no sentido
extramoral3 – uma bela e instigante fábula sobre a possível origem do conhecimento e de toda
interpretação da realidade, realizada pelos “animais inteligentes”, os homens.
Ele escolhe fazer isso por meio de um relato, uma narração, para aludir à possível origem do
conhecimento. Essa escolha é deliberada a partir do perspectivismo, de uma postura que se assume,
desde o início, como ficcional, como tentativa de olhar para um mundo em fluxo e construir uma
narrativa4; tentativa de testemunhar uma visão peculiar, humana, singular desse turbilhão caótico
de forças que nos envolve, que somos nós mesmos. Daí ele começar a narrativa sustentando que
alguém poderia inventar uma fábula semelhante sobre o intelecto humano dentro da natureza. O
filósofo reivindica, desde o início de suas reflexões, que todo pensamento que criamos é apenas
nossa visão, nossa perspectiva. Nosso olhar “humano, demasiadamente humano”.
Nesse relato do jovem Nietzsche fica claro também o caráter animal e humano de toda
produção de conhecimento. Ele coloca neste importante opúsculo o antropomorfismo e, por
3 NIETZSCHE, F. W. Sobre verdade e mentira no sentido extramoral (WL/VM). Trad. esp. Luis Valdés e Teresa Orduña, Madrid: Tecnhos, 1996. 4 Quero destacar a relevância da interpretação de Olímpio Pimenta em “A invenção da verdade” (1999), grande amigo e antigo colega da UFOP, que desenvolve importantes reflexões e esclarecimentos sobre o uso da narrativa, do relato, da ficção em geral, como ferramenta essencial no discurso filosófico nietzschiano. Sobre o perspectivismo existe uma longa tradição hermenêutica entre os comentadores nietzschianos. Destaco entre essa ampla tradição o conhecido trabalho do filósofo português Antônio Marques, Sujeito e perspectivismo (Lisboa: Dom Quixote, 1989). Além disso, gostaria de frisar a relevância das observações de um trabalho pouco conhecido, mas que contribuiu muito para a elaboração deste artigo, da filósofa brasileira Silvia Rocha, “Os abismos da suspeita: Nietzsche e o perspectivismo” (2003).
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conseguinte, o vínculo de todo conhecer com as condições vitais desse animal singular. Pela sua
capacidade de criar fantasias, esse animal é um phantastiche Tier, animal fantástico.5
O relato em questão é uma narrativa deliciosa, com alusões a diversos animais: mosca,
abelha, aranha, tigre, serpente, gusano e outros. Privilegia-se a descrição do trabalho da aranha e
da abelha na sua forma de construir um mundo próprio, de tecer suas formas de operar na realidade.
E nesse bestiário, o homem é apenas um bicho entre os outros, que trata de lidar de maneira mais
eficiente no mundo. Carente de garras, dentes afiados, pele grossa etc., ele irá construir uma teia
singular, uma trama para sobreviver: o conhecimento, os conceitos são meios vitais, instrumentos
orgânicos para interpretar e se proteger perante o mundo. Daí que o saber humano carece de
qualquer conotação transcendente, objetiva ou absoluta nessa perspectiva.
Há uma imagem que será marcante na obra do filósofo alemão: a teia de aranha. Assim como
a aranha, construímos uma teia de conceitos; uma teia firme, sólida, permanente, que responda às
nossas necessidades vitais. Curiosamente, esse construto vital tem uma força e uma persistência
que nos faz cativos desses fios conceituais que criamos. Não vemos que estamos na nossa teia. A
nossa teia é nossa forma de ver o mundo. Acreditamos que, para além desses fios, não há realidade,
fluxo... Nada. A nossa teia é o nosso mundo e se constitui no “único mundo”, no “mundo verdadeiro”.
Enxergar nos fios dessa madeixa antropomórfica seria lidar com o vácuo, com o abismo sem rede,
seria poder tentar olhar para além da rede.
Nietzsche mostra, desde Sobre verdade e mentira no sentido extramoral, que os homens
podem adotar duas atitudes perante a sua teia de conceitos. Alguns seres humanos suspeitam que
modelam imagens, metáforas, formas de olhar, miragens, ilusões oriundas da nossa teia que são
criadores de ficções. Esses homens aceitam que sua visão de mundo é uma “mentira artista”, uma
ilusão para transitar no devir; trata-se de uma atitude vital leve, que reconhece que viver é ficcionar,
daí conviver com as ficções dos que enxergam de forma diferente; outros, pelo contrário, acreditam
piamente na trama das suas noções, às quais atribuem “objetividade”, “verdade” e até
“incontestabilidade”, forjando o que podemos denominar como uma “mentira sagrada”:
incontestável, fundamental, fundamentada e, por que não: fundamentalista. Esses homens, que no
5 Na questão da condição animal e corporal do homem é importante o livro de Vanessa Lemm, Nietzsche’s animal philosophy (Nova York: Fordham University Press, 2009), que analisa a animalidade como característica essencial no ser humano, segundo a ótica nietzschiana, questionando as visões idealistas que deturpam o valor do corpo, dos afetos, dos instintos e de tudo aquilo que é visceral no bicho homem. Também sobre essa questão são relevantes as considerações de Stiegler (Nietzsche et la biologie. Paris: PUF, 2001; Nietzsche et la chair: Dionysos, Ariane, Le Christ. Paris: PUF, 2005) e Marton (“Da biologia à física: vontade de potência e eterno retorno do mesmo. Nietzsche e as ciências da natureza”. In: BARRENECHEA, Miguel Angel de et al. (orgs.). Nietzsche e as ciências. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2011, p. 114-138).
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decurso do pensar ocidental postularam morais, religiões, metafísicas, sustentam uma perspectiva
“incontornável”. Não querem deixar que os outros cultivem ou desenvolvam outras ficções, outras
perspectivas. Na leitura nietzschiana, moralistas, religiosos, metafísicos e outros fanáticos e
apaixonados pela verdade (pela sua verdade) tentaram impor a sangue e fogo sua crença. Os
fanáticos das “mentiras sagradas” não aceitam que eles cultuam apenas mentiras e ficções, e de
forma mais corrosiva questionam, criticam e até perseguem aos que sustentam outras mentiras. No
relato nietzschiano, será possível perceber que há duas atitudes ficcionais: os que valorizam a
mentira artista, que convivem com as diferenças e até valorizam as interpretações outras; já os que
acreditam na mentira sagrada, muitas vezes, são intolerantes com perspectivas diferentes das
suas6. Eis um problema vital. Há bichos humanos que tentam subjugar os outros com suas crenças e
ficções. Animais quiméricos que desejam instaurar violentamente suas mentiras. Neste texto, quero
mostrar como Nietzsche aborda o aspecto mais saudável – não mais verdadeiro – daqueles que
valorizam a mentira artista; ao tempo em que, por outro lado, denuncia a característica mórbida,
doentia, daqueles que se autoerigem – sejam religiosos, metafísicos, moralistas, políticos etc. –
detentores e defensores das verdadeiras doutrinas, da verdadeira fé. Tentarei mostrar como a
tolerância e convivência com pensares outros é sadio, pensares absolutizantes e intolerantes são
uma doença, longamente padecida no pensar ocidental e que, nos nossos dias, adoece a
humanidade por outros vieses.7
2 Barão de Munchausen: a antropomorfização e teologização do discurso
Além do texto de juventude, ao qual aludi acima, em outras etapas de sua obra, Nietzsche
pretende desvendar os pressupostos morais, religiosos e metafísicos que operam na linguagem. A
linguagem, nas suas principais noções – sujeito, objeto, substância, coisa, causa-efeito etc. –
possuiria uma preconcepção metafísica que condicionaria a compreensão do devir, incluindo a ação
humana. Nietzsche denuncia o aspecto mistificador das palavras, quando as caracteriza como
6 Blondel (“As aspas de Nietzsche: filologia e genealogia”. In: MARTON, Scarlett (org.). Nietzsche hoje? Trad. Milton Nascimento. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 110-139) apresenta uma importante distinção entre duas atitudes perante o conhecimento: há “mentiras artistas” e “mentiras sagradas”; perspectivas que diferem totalmente na interpretação do devir vital. Seguiremos, nessa questão, a distinção estabelecida pelo teórico francês. 7 Sobre a questão da saúde e da doença, relevante no pensamento nietzschiano, que permite avaliar todos os construtos da cultura a partir de critérios vitais, há uma longa tradição interpretativa. Destaco apenas alguns comentadores que foram importantes na elaboração deste artigo: Barrenechea (Nietzsche e o corpo. 2. ed. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2017), Dias (Nietzsche: vida como obra de arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011), Ferraz (Homo deletabilis: corpo, percepção, esquecimento do século XIX ao XXI. Rio de Janeiro: Garamond, 2010; “Nietzsche e a cultura somática contemporânea”. In: BARRENECHEA, M. A. de et al. (orgs.). Nietzsche e as ciências. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2011. p. 86-96), Montebello (Vie et maladie chez Nietzsche. Paris: PUF, 2001a; Nietzsche: la volonté de puissance. Paris: PUF, 2001b) e Blondel (Nietzsche, le corps et la culture. Paris: PUF, 1985).
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“fetichismo”, “atavismo”, “mitologia”8. O mundo, entendido como um conjunto de substâncias
ligadas por relações de causa e efeito se converte em uma pluralidade de agentes, “o mundo tornou-
se [...] uma multiplicidade de agentes e um agente (um ‘Sujeito’) colocou-se por debaixo de todo e
qualquer acontecimento”9. As noções de substância e causalidade, explicativas do denominado
mundo externo, serão modeladas seguindo a imagem do sujeito que age conforme a sua vontade.
A antropomorfização do discurso terá como corolário o que se pode denominar de “teologização”
do discurso, pois a imagem do homem será introduzida em todas as coisas como a de uma espécie
de minidivindade que atua segundo a sua própria finalidade, como um espírito autônomo e
soberano, causa de si: “O erro do espírito como causa, confundido com a realidade! E convertido em
medida da realidade! E denominado Deus”10. A linguagem torna-se a atividade na qual se
materializa a vaidade do homem, que se julga medida e causa universal. O sujeito que acredita ser
produtor das ações, que se considera livre e responsável por todos os seus atos, procede como o
Barão Munchausen. Trata-se de uma arrogância e autoengano do Barão, assim como dos crentes
numa verdade absoluta, que não enxerga a teia de noções, que ele mesmo construiu, quando “tenta
arrancar-se do pântano do nada em direção à existência”11.
Estamos presos à nossa própria imagem, que, previamente, espalhamos pelo mundo; só
encontramos nos acontecimentos o que já tínhamos depositado neles. Nietzsche retoma a metáfora
da teia de aranha para caracterizar o antropomorfismo da linguagem, pois os conceitos que
empregamos para “capturar” – para interpretar – os “entes” são somente aqueles que ficam na nossa
“rede”:
Não procedemos de maneira muito diferente da aranha, quando tece a teia para caçar e sugar as presas. [...] Nós, conhecedores, pretendemos exatamente o mesmo ao deitarmos a mão a sóis e átomos, como que fixando e determinando. Fazemos assim um rodeio que nos reconduz a nós mesmos, às nossas necessidades12.
A “teia de aranha” – nosso instrumental linguístico-conceitual –, embora seja um meio vital
que facilita a dominação e manipulação dos “entes”, também é o nosso limite. O tecido dos
conceitos serve aos fins práticos, mas age, ao mesmo tempo, como fronteira, fora da qual já não
enxergamos nada. Nosso instrumento de dominação da “realidade” se transforma,
8 NIETZSCHE, F. W. Crepúsculo dos ídolos (GD/CI). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 2006, “A razão na filosofia” §5. 9 GD/CI, “Os quatro grandes erros” §3. 10 Ibidem. 11 NIETZSCHE, F. W. Além do bem e do mal (JGB/BM). Trad. Paulo César de Souza. 2a ed. São Paulo: Cia. das Letras, 2004, §21. 12 Fragmento póstumo (NF/FP) 15 [9] (1881). NIETZSCHE, F. W. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA). Org. Giorgio Colli e Mazzimo Montinari. Berlin, New York, Munique: Gruyter & Co., 1967-77, vol. 9, p. 636-7.
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paradoxalmente, em uma prisão intransponível, pois: “não há escapatória, não há trilhas ou atalhos
para o mundo real! Estamos em nossa teia, nós, aranhas, e, o que quer que nela apanhemos, não
podemos apanhar senão justamente o que se deixa apanhar em nossa teia”13. O sujeito é o fio
condutor dessa rede que, no seu desenvolvimento concêntrico, espalha por todas as partes a
imagem humana. Todos os conceitos do mundo “externo” seguem a dinâmica dessa textura de
ficções subjetivas. “Operamos somente com coisas que não existem, com linhas, superfícies,
átomos, tempos divisíveis – como pode ser possível a explicação, se primeiro tornamos tudo
imagem, nossa imagem!”14. A ciência, “com suas supostas noções ‘objetivas’”, “não é mais do que
humanização mais fiel possível das coisas: aprendemos a descrever-nos sempre com mais rigor,
quando descrevemos as coisas e a sua sucessão”15.
Todo enunciado gramatical possuiria, necessariamente, uma visão transcendente implícita.
Essa hipótese é apresentada em O crepúsculo dos ídolos: “Eu temo que não venhamos a nos ver livres
de Deus porque ainda acreditamos na gramática”16. A gramática estaria, basicamente, ligada à
teologia. Toda linguagem, na tradição ocidental, remeteria a um sujeito; sujeito que, por sua vez,
remete a um sujeito absoluto. Há um processo conceitual pelo qual o sujeito gramatical é
humanizado e, posteriormente, divinizado: considerado como medida e fundamento, causa sui de
toda a realidade.
O sujeito da gramática passa a ser considerado um sujeito humanizado que produz ações e
é responsável pelos acontecimentos; será entendido como um espírito, dotado de características
pessoais, capaz de intenções deliberadas, que o leva a agir. A noção de sujeito é hipostasiada,
“espiritualizada” e convertida em protagonista da realidade. Todo acontecimento será
compreendido como um ato humano ou, pelo menos, de feição humanizada. Essa antropologização
da linguagem elimina de nossa esfera de inteleção todo aquilo que não seja produzido por pessoas,
“como por períodos enormes o homem acreditou somente em pessoas (e não em matérias, forças,
coisas etc. [...]”17. Essa compreensão antropomórfica não reconhece que os atos possam ser o
resultado de forças, vínculos mecânicos ou simplesmente aconteçam por acaso. Não, sempre
haverá um autor que responde pela ocorrência das ações, “sob a sedução da linguagem (e dos erros
fundamentais da razão que nela se petrificam), a qual entende ou mal entende que todo atuar é
13 NIETZSCHE, F. W. Aurora (M/A). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 2004, §117. 14 FW/GC. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 2004, §112. 15 Ibidem. 16 GD/CI, “A razão na filosofia” §5. 17 FW/GC §127.
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determinado por um atuante, um ‘sujeito’ [...]”18. Inclusive, nos acontecimentos do denominado
mundo inanimado – não haveria mundo inanimado para a compreensão antropomórfica – também
existiriam sujeitos interagindo. Isso fica claro no conhecido exemplo da Genealogia da moral do
corisco, entendido como agente produtor do clarão: “O povo distingue o corisco do clarão, tomando
este como ação, operação de um sujeito de nome corisco”19. Em resumo, o sujeito da gramática –
convertido em um ser humanizado e substancial – leva a antropomorfizar qualquer conceituação do
mundo.
3 Genealogia da trama conceitual: impulsos vitais e conceitos
É importante indagar as razões vitais que geraram as categorias “objetivas”, aprofundar a
formação de conceitos como identidade, substância ou coisa. Tais noções nascem da imperiosa
necessidade de sobrevivência, que leva a ignorar as diferenças nos acontecimentos, subsumindo
“seres” similares num conceito comum. Cria-se, assim, a igualdade e a permanência, embora ambas
as noções nada digam do devir: “Conhecimento é a falsificação do heterogêneo e do inumerável,
convertendo-o em idêntico, análogo e numerável”20. A ficção do conhecimento servirá para que nos
orientemos no mundo, para lidar com muitas circunstâncias da vida. No devir só há confronto de
forças, mas nós criamos as “igualdades”, as “coisas”, para dominar uma “quantidade colossal de
fatos”.
Não existem “coisas”, “igualdades” ou qualquer tipo de “entidades” estáveis. Porém, como o
homem não pode lidar com o desconhecido, necessita prever e calcular o que vai acontecer. Se ele
não tiver uma explicação prévia, uma interpretação dos acontecimentos – uma ficção qualquer – se
sentirá paralisado pelo medo. Nietzsche outorga grande importância a esse sentimento perante o
desconhecido, considerando-o a origem de todo conhecimento. Como precisamos habitar um
mundo previsível, almejamos encontrar algo corriqueiro até nos acontecimentos inesperados. Em
toda situação pretendemos detectar algo regular e idêntico, rejeitando e temendo o que parece
pouco usual e incerto:
[...] nossa necessidade de conhecer não é justamente essa necessidade do conhecido, a vontade de, em meio a tudo o que é estranho, inabitual, duvidoso, descobrir algo que não
18 NIETZSCHE, F. W. Genealogia da moral (GM/GM). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 1998, I, 13. 19 Ibidem. 20 NF/FP 34 [252] (1885), KSA 11, p. 506.
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mais nos inquiete? Não seria o instinto do medo que nos faz conhecer? E o júbilo dos que conhecem não seria precisamente o júbilo do sentimento de segurança reconquistado21?
Nietzsche afirma que o medo gera todas as categorias lógicas com que interpretamos o
devir, assinalando também o impulso específico que age na presença do desconhecido: o instinto
causal. Tal instinto nos leva a procurar uma explicação qualquer, uma causa qualquer, perante
acontecimentos novos. O homem experimenta um sentimento de poder quando logra subsumir
circunstâncias estranhas nas categorias já conhecidas; tranquiliza-se, pois consegue o domínio
daquilo que aparentava fugir da sua esfera de compreensão: “o impulso causal está assim
condicionado e provocado pelo sentimento de medo. Se houver alguma possibilidade, o ‘por quê?’
não deve tanto entregar a causa em virtude dela mesma, mas entregar sim um tipo de causa. Uma
causa que aquiete, que liberte e que torne mais leve”22.
Uma série de impulsos ilógicos – medo, instinto causal, sentimento de poder – determina o
processo de subsunção com que explicamos os fatos novos. As categorias de igualdade e substância
nascem “certamente do ilógico, cujo domínio deve ter sido enorme no princípio”23. Em épocas
longínquas, o homem enfrentava perigos extremos, a sua vida e a sua alimentação estavam
permanentemente ameaçadas. Era necessário detectar, com urgência, os alimentos adequados e
distinguir quais eram os animais perigosos. Para tais objetivos, era imprescindível estabelecer logo
a categoria de igualdade, ignorando a diferença entre os acontecimentos.
Quem, por exemplo, não soubesse distinguir com bastante frequência o “igual”, no tocante à alimentação ou aos animais que lhe eram hostis, isto é, quem subsumisse muito lentamente, fosse demasiado cauteloso na subsunção, tinha menos probabilidades de sobrevivência do que aquele que logo descobrisse igualdade em tudo o que era semelhante. Mas a tendência predominante de tratar o que é semelhante como igual – uma tendência ilógica, pois nada é realmente igual – foi o que criou o funcionamento para a lógica24.
As categorias que nos permitem dominar os “fatos” respondem apenas a necessidades vitais
e impulsos ilógicos; longe de serem universais próprias das “coisas em si mesmas”, representam
ferramentas úteis para a sobrevivência. Criamos seres substanciais para prever consequências
desagradáveis, afirmamos identidades para garantir a nossa alimentação e nossa defesa. Por
exemplo, perante diversos animais gera-se a noção de “animal perigoso” ou “animal inimigo”.
Mesmo que no devir não haja “animais idênticos”, o conceito de “animal perigoso” nos serve para
antever os prováveis efeitos negativos que diversos “agentes” poderiam provocar. A ficção da
21 FW/GC §355. 22 GD/CI, “Os quatro grandes erros”, §5. 23 FW/GC §111. 24 Ibidem.
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“coisa” é um instrumento útil para se transitar calmamente no mundo e para garantir a
sobrevivência. Na natureza não há nada fixo, tudo flui, tudo se transforma segundo a dinâmica de
impulsos múltiplos e instáveis. A substância externa é a invenção que elimina as incertezas e
aumenta nossa segurança, ajudando a expansão de nossas forças vitais.
Após essas reflexões sobre o conhecimento e a linguagem, a própria noção de “causa
espiritual” – que gera o conceito de “causalidade entre coisas” – mostra que é totalmente
questionável... Tampouco há um “eu”, “sujeito” ou qualquer entidade subjetiva, livre e responsável,
da produção de ações, trata-se de simples fábulas.
E o que dizer do Eu! Ele se tornou uma fábula, uma ficção, um jogo de palavras: ele parou absolutamente de pensar, de sentir e de querer! O que se segue daí? Não há de modo algum nenhuma causa espiritual! Toda a pretensa evidência empírica inventada para isso foi para o inferno25.
Nietzsche afirma que não existem nem causam nem efeitos, pois não há entes operantes na
natureza. A noção de causa-efeito se apoia na de agente ou autor, baseada, por sua vez, na de
substrato ou substância externa.26 Mas esta última noção é gerada pela crença em um substrato
subjetivo, um sujeito que atua – uma “causa espiritual”. Trata-se de um circuito ficcional, pois não
há entidades objetivas nem subjetivas e, por conseguinte, não há causas nem efeitos no mundo. Em
outras palavras, não há permanências de nenhum tipo no jogo de forças do devir.
4 Causalidade da vontade de potência e a linguagem
Se abandonarmos os conceitos de “sujeito” e de “objeto”, abandonaremos também a ideia de “substância”, e, por conseguinte, também as suas diferentes modificações, como, por exemplo, a “matéria”, o “espírito” e outros “seres hipotéticos”, a “eternidade e inalterabilidade da substância” etc. Ficamos livres da materialidade27.
O fragmento póstumo citado pode ser considerado como uma adequada síntese da
indagação que realizei neste trabalho, no qual discuti as questões da trama dos conceitos, e seu uso
principalmente por aqueles que os consideram verdadeiros, objetivos, incondicionados. Mostrei que
as noções que aludem à conduta humana provêm de uma compreensão moral, religiosa e metafísica
do mundo. A linguagem opera, desde as suas enunciações básicas, com um matiz antropomórfico
que é transferido a todos os seus conceitos. A crítica da linguagem desvenda esse universo ficcional
25 GD/CI, “Os quatro grandes erros”, §3 26 Reboul (1974, p. 22) oferece uma adequada síntese desse circuito ficcional, ao afirmar que “projetamos a identidade que atribuímos ao nosso eu, projeção que se traduz na ilusão de que há coisas permanentes, além das mudanças, coisas verdadeiras além das aparências. Pouco importa que a substância se chame matéria, átomo ou alma; ela nunca mais é do que um erro que facilita a ação.” 27 NF/FP 9 [91] (1887), KSA 12, p. 384.
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denunciando a sua absoluta vacuidade. Aprofundar os procedimentos da linguagem é descobrir um
mundo fantástico, povoado de “fábulas” e “fogos fátuos”.
Nietzsche afirma que “ficamos livres da materialidade”. Essa conclusão é formulada
enigmaticamente: por que o pensador alemão sustenta que ficamos livres da materialidade? Qual
seria o significado opressor da materialidade? Nesse caso, a noção de materialidade sintetiza todas
as fantasias que modelam o denominado “mundo externo”. Se não existem sujeitos, não há
espíritos, tampouco há substâncias e, por conseguinte, toda e qualquer consistência fica eliminada.
A materialidade – entendida como noção síntese do mundo exterior – é suprimida conjuntamente
com a interioridade. A conclusão radical é de que não existem entes operantes: não há vontade, fins,
leis nem regularidades no devir. Mas por que essas conclusões representariam uma libertação? A
conduta humana foi manipulada, direcionada pelas concepções morais, religiosas e metafísicas. Na
sua estratégia normativa era preciso que o homem fosse considerado um “ser”, um “sujeito” livre e
responsável, possuidor de uma vontade autônoma, capaz de causar fatos. No tripé conceitual
sujeito-substância-causalidade, encontra-se o motivo de toda e qualquer atribuição de
responsabilidade. Só um sujeito livre e responsável poderia agir sobre o mundo – sobre as
substâncias – e sobre os seus semelhantes. Toda imputação moral nasce dessa compreensão da
dinâmica dos atos. Mas, com a contestação do conceito de materialidade – também com a de sujeito
e de toda alusão a uma suposta “interioridade” –, a noção de culpa mostra-se como uma simples
fantasia: “Culpa. – Embora os mais perspicazes juízes das bruxas, e até as bruxas mesmas,
estivessem convencidos da culpa de bruxaria, essa culpa não existia. O mesmo acontece com toda
culpa”28.
Culpabilidade, imputabilidade, vontade livre, agente responsável, entre outros, são
interpretações morais que possuem tanta validade quanto atribuição de feitiçaria a atos que
julgamos desconhecidos. Após questionar essas interpretações, seguem-se diversas consequências
práticas que libertam o homem das pressões normativas. Ao contestarmos o tecido das noções
antropomórficas, já não podemos afirmar que há responsáveis, culpados ou punidos,
restabelecendo-se a inocência do devir. A interpretação da moral, da religião e da metafísica, a
mentira sagrada, era apenas um instrumento de opressão: os homens eram considerados livres no
intuito de pagar alguma insuficiência supostamente instalada no devir. Essa visão normativa pode
ser considerada um “erro”, pois não há mais nada a pagar, todos os atos são inocentes, frutos da
28 FW/GC §250.
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“necessidade do acaso”: “Sim, talvez não haja mais do que um único reino: talvez não haja vontade
nem causas finais; e nós apenas as imaginamos. As mãos de ferro da necessidade que agitam os
dados do acaso seguem indefinidamente seu jogo”29.
No final da abordagem nietzschiana sobre o tecido dos conceitos criados pelo animal
homem, surge uma nova ótica. As explicações normativas da moral, da religião e da metafísica
cedem passagem a uma compreensão diferente do devir, a uma compreensão perspectivista, a uma
visão que opta deliberadamente por uma compreensão ficcional desse devir. Outras perspectivas se
abrirão ao retomar a reflexão sobre os âmbitos “externo” e “interno”. O mundo já não poderá mais
ser considerado um gigantesco âmbito de sujeitos, coisas e causas, mas como o permanente e
instável jogo de forças do vir a ser. Na ótica nietzschiana, o devir é gerido apenas pelo dinamismo
da vontade de potência. A vontade de potência é um mar de forças, em constante contradição, em
permanente confronto, perfilando indistintamente todas as configurações de forças do mundo, seja
a aranha, a pedra, o vegetal ou o homem. Não há exceção no circuito dos acontecimentos: tudo está
submetido às configurações de forças que lutam permanentemente por impor o seu interesse, que
desenham sem cessar o caleidoscópio da realidade. Cada momento apresenta um novo encontro de
impulsos, cada instante traz o diferente: uma nova constelação de forças se faz e logo se desfaz...
No conhecido fragmento póstumo de junho-julho de 1885 encontra-se a mais clara síntese desse
mundo em permanente transformação:
E sabeis sequer o que é para mim “o mundo”? Devo mostrá-lo em meu espelho? Este mundo: uma monstruosidade de força, sem início, sem fim, uma firme, brônzea grandeza de força, que não se torna maior, nem menor, que não se consome, mas apenas se transmuta [...], mas antes como força por toda parte, como jogos de forças e ondas de forças, ao mesmo tempo um e múltiplo. [...] Esse mundo é vontade de potência e nada além disso! E vós próprios sois essa vontade de potência – e nada além disso30!
5 Considerações finais: a mentira artista, a tolerância e inocência do devir
O mundo como vontade de potência é jogo e luta de forças: nada mais do que um fluxo de
impulsos em contínuo confronto. Só podemos reconhecer algo assim como a causalidade da
vontade de potência, perspectiva em que o conceito de causalidade ganha um novo significado,
adquire um sentido sui generis: não se trata de relações entre “entidades” – denominadas internas
ou externas –, mas de uma luta entre forças. Não há legalidade, estabilidade, permanência ou
regularidade nos infinitos matizes do movimento vital. A “causalidade da vontade de potência”
29 M/A §130. 30 NF/FP 38 [12] (1885), KSA 11, p. 610-1.
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surgiria na luta fugaz entre vontades-força que, a cada momento, adquirem mais ou menos potência.
Cada instante revela uma determinada relação dessa disputa dinâmica: há um grupo de impulsos
que domina e outro que é dominado. É importante frisar que o grupo de forças dominante não é
causa do grupo de forças dominado, já que os impulsos, mesmo dominados, continuam atuando e
exercendo o seu poder, isto é, não são efeitos das vontades antecedentes. Todo acontecimento é
produto de uma constelação de forças em que todas agem – umas “mandam”, outras “obedecem”
–, nenhuma renuncia ao seu poder, todas continuam tentando vencer nesse confronto dinâmico. O
esquema causal tradicional, ao contrário, assinala que um fato A é causa de um fato B, quer dizer, o
primeiro é o agente ou autor e o segundo é o efeito, mero paciente da ação. Na perspectiva
nietzschiana, podemos assinalar que somente há forças que interagem e a luta se mantém após cada
confronto. Cada instante do devir não é apenas produto das forças vencedoras, mas o resultado da
totalidade beligerante. Assim, podemos questionar o recorte conceitual que distingue causas e
efeitos, agentes e pacientes. Todas as forças são operantes: algumas adquirem potência, outras
perdem potência, mas nenhuma é apenas consequência da ação das outras. As forças vencidas, num
outro instante, serão as vencedoras; tudo se transforma em um incessante jogo vital: “se tomarmos
aquilo que atua no tempo, ele será diferente em cada momento ínfimo de tempo. O que quer dizer:
o tempo é a prova da absoluta não permanência da força”31.
A moral, a religião e a metafísica pretendem imputar as ações a um sujeito, desejam sempre
denunciar o responsável por um determinado acontecimento. Pretendem descobrir esse sujeito, livre
e responsável, que teria causado voluntariamente a ação. Outra compreensão do devir permite
eliminar essas fábulas sobre a compreensão dos atos. Noções como liberdade, imputabilidade,
responsabilidade são apenas ficções operativas, instrumentos para melhor dominar os homens,
para torná-los culpados e castigá-los.
No final desta análise, é possível indagar sobre os denominados “atos externos” e os
chamados “atos humanos”. Sobre os últimos podemos perguntar: quem age, quando dizemos que
o homem age? A resposta das concepções normativas já foi amplamente debatida: o homem age
quando opera segundo sua própria vontade. A crítica dos conceitos da tradição ocidental mostra
uma perspectiva diferente. O homem que atua não é um espírito, mas um corpo impulsionado por
uma multiplicidade de forças orgânicas. Essa ação pode ser interpretada a partir de um novo
parâmetro: a criação segundo a dinâmica da vontade de potência. O homem que age não é um
31 NF/FP 26 [12] (1873), KSA 11, p. 576.
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“sujeito autônomo”, mas um corpo que avalia, em consonância com o movimento das forças vitais.
A perspectiva crítica sobre as noções da tradição levou ao questionamento da compreensão moral,
religiosa e metafísica do devir, permitindo sustentar outra postura totalmente diferente: é possível
pensar o devir a partir de uma perspectiva extramoral. A moral sempre interpreta o mundo e o
homem com objetivos normativos e punitivos. Uma vez que foram questionados conceitos basilares
do pensar ocidental, que sustenta a “mentira sagrada” surge uma concepção não metafísica que
interpreta o humano e o mundo, numa perspectiva extramoral, segundo a dinâmica da vontade de
potência. Abandona-se a fala do “espírito”, dos “sujeitos”, das “substâncias”, das “causas e efeitos”,
abre-se a escuta para a fala do corpo e da terra.
É como se, nós, aranhas, com nossa teia, em um súbito momento, enxergássemos a trama
de nossa forma de compreensão de mundo. É como se num súbito e extremado esforço
enxergássemos a trama invisível das nossas vidas. Traçada milímetro por milímetro, com perfeitas
réguas de poliuretano, em gabinetes elegantes, com ar refrigerado, com ternos bem traçados, por
senhores sérios, moralistas, ainda religiosos e crentes em convicções imutáveis. Já não somente
comandados por religiosos, ascetas, metafísicos, sacerdotes ou iluminados cultores de outros
mundos. Já nesta pós-pós-modernidade, os atuais propagandistas da fé verdadeira, também
impõem doutrina ontológica através de outros acólitos, de fieis incondicionais. Nesta era, tão crítica
como a que Nietzsche viveu e descreveu, que denominou pessimista e niilista, lidamos ainda com
teias pesadas, dolorosas, impostas.
A mentira sagrada retoma outras formas e proíbe, cancela, regula aqueles que ousam pensar
através da mentira artista. Pretende-se restaurar, outra vez, e mais outra, a sacra visão, a única visão
válida para todos em todo tempo e lugar.
Na fábula de Nietzsche, de “Verdade e mentira”, os seres humanos, esses animais
fantásticos, persistem em habitar e impor crenças milenares. Contudo, sempre é possível, naquele
instante súbito e supremo, ver fios soltos em toda a teia. Fios soltos, resquícios, dobras, saídas das
teias. Estupor e abismo de enxergar qualquer trama na qual estejamos. Olhar de artista, sobrevoo
de águia, sobre os animais presos e cativos. Nesse instante, perante aqueles que acreditam que nos
aprisionam, surge o riso louco de Zaratustra. Nunca existiu decreto, imposição que cancele, de
forma definitiva, os olhares outros.
Hermeneutas dos abismos e infernos contemporâneos, a resposta, a resistência, é enxergar
a trama, transitar nela e habitá-la se for preciso. Contudo, ao habitar a teia, e ver meandros e
filigranas, continua-se criando, tecendo relatos outros. Em momentos em que as teias apertam, é
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importante não desistir, narrar, testemunhar. Olhar artista que não se curva a nenhuma visão
sagrada.
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UMA TEORIA EXTRAMORAL DA
VERDADE? Evaldo Sampaio1
RESUMO: A recente proliferação das “fake news” e dos chamados “fatos alternativos” são alguns dos principais sintomas da era da “pós-verdade”, isto é, um momento em que parece haver uma desvalorização e declínio da noção mesma de verdade. Trata-se aqui de investigar uma possível origem dessa conjuntura a partir de um de seus supostos profetas, a saber, Friedrich Nietzsche. Em primeiro lugar, pretendo, aliado a Leo Strauss, mostrar que a relativismo pós-moderno que instituiu a era da pós-verdade é uma das faces do movimento historicista que se desenvolveu a partir do século XIX. Em segundo lugar, pretendo sugerir que Nietzsche, não obstante considere o “sentido histórico” fundamental para o filósofo, nem por isso abandona a busca pela verdade, mas sim a interroga por uma via específica de investigação, no caso, o plano extramoral. Por não colocar em questão primordialmente a concepção ontoepistemológica de verdade e sim o problema do seu valor, Nietzsche, embora um crítico do “dogmatismo”, não seria um mais apóstolo do relativismo pós-moderno. Se for assim, então podemos retomar a sua filosofia como uma das alternativas para se enfrentar o niilismo pós-moderno por uma reavaliação do valor mesmo da busca pela verdade. PALAVRAS-CHAVE: Verdade; pós-verdade; historicismo; Strauss, L.; Nietzsche, F. ABSTRACT: The actual dissemination of the fake news and the so-called “alternative facts” are some of the main symptoms of the post-truth era, that is, the moment in which it seems to be a devaluation and decay of the very notion of truth. This essay aims to investigate a possible origin of this movement with direct reference to one of its alleged prophets: Friedrich Nietzsche. First, based on Leo Strauss’s ideas, it is intended to show that the post-modern relativism which is related to the post-truth era is a variation of the historicism which has been developed since the 19th century. Secondly, I will argue that Nietzsche, despite the fact he has adopted the “historical meaning” as a
1 Professor Associado I da Universidade de Brasília, Programa de Pós-graduação em Metafísica (PPGm/UnB) e Departamento de Filosofia.
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fundamental aspect to the philosophical investigations, does not abandon the search for the truth. On the contrary, his goal it is to interrogate our evaluation of the truth by an “extramoral” approach. As Nietzsche does not inquire primarily the ontoepistemological conception of truth but its value, he is not a sponsor of the post-modern relativism. If this hypothesis is correct, then it is possible to return to Nietzsche’s philosophy as an alternative to the nihilistic consequences of the post-modern thinking and with him to elaborate a revaluation of the philosophical search for the truth. KEYWORDS: Truth; post-truth era; historicism; Strauss, L.; Nietzsche, F.
O declínio verdade?
Já há bastante tempo nos voltamos para a “verdade”, o “erro”, a “aparência” e o “engano” na
esperança de melhor entendermos a certeza, as fontes e os limites do que podemos conhecer. Mais
recentemente, a agenda pública vem sendo ocupada por conceitos como “pós-verdade”, “fake
news” e “fatos alternativos”. Com isso, precisamos agora deixar a zona de conforto de nossas teorias
do conhecimento para lidarmos com uma incômoda e ainda desarticulada teoria do
desconhecimento.
Tal fenômeno envolve a disseminação de notícias deturpadas ou inautênticas em plataformas
como o Twitter e o Whatsapp, a pseudociência de terraplanistas e daqueles que rejeitam os efeitos
nocivos das mudanças climáticas, as narrativas falaciosas propagadas por revisionistas do
holocausto ou outros regimes ditatoriais, os perfis dissimulados no Facebook criados por trolls, bem
como os seguidores e likes fictícios. Esse cenário levou Michiko Kakutani, crítica literária ganhadora
do prêmio Pulitzer, a examinar, tomando a administração do presidente Donald Trump enquanto a
personificação de um estado de coisas degenerado, “como o descaso pelos fatos, a substituição da
razão pela emoção e a corrosão da linguagem estão diminuindo o valor da verdade”2. Isso porque o
atual presidente dos Estados Unidos “ataca rotineiramente a imprensa, o sistema de justiça, as
agências de inteligência, o sistema eleitoral, os funcionários públicos” e, ao fazê-lo, “mente de
forma tão prolífica e com tamanha velocidade que o The Washington Post calculou que ele fez 2.140
alegações falsas ou enganosas no seu primeiro ano de governo — uma média de quase 5,9 por dia”3.
2 KAKUTANI, M., 2018, p. 10. 3 KAKUTANI, M., 2018, p. 12.
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No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro, que se declara admirador do colega norte-americano,
segue à risca a combinação de ataques a diversos setores da sociedade amparado em notícias
inverídicas, ao ponto do jornal A Folha de São Paulo ter criado o “bolsonômetro”, ferramenta que
verifica as declarações do chefe de Estado brasileiro. Mais recentemente, diante da pandemia do
Sars-CoV-2, o presidente não apenas contrariou os avisos da OMS quanto à periculosidade do vírus,
qualificando-o até como uma “gripezinha” num pronunciamento à nação4, como prescreveu o uso
da Cloroquina para o tratamento dos doentes, inicialmente sem qualquer comprovação científica e
depois contra esta. Além disso, quando ultrapassamos as mil mortes confirmadas diariamente, o
Ministério da Saúde restringiu as informações sobre os óbitos5, o que levou à criação de um
consórcio entre diversos veículos de imprensa para que a população tivesse acesso aos registros das
secretarias estaduais de saúde. No entanto, a inabalável aprovação do governo até aqui por algo em
torno de 37% do eleitorado6 sugere que mais de 1/3 dos brasileiros aprovam ou não se incomodam
com tais condutas.
Assim, a questão mais geral que pretendo investigar é como, no plano histórico-conceptual,
articulou-se esta recente desvalorização e declínio do valor da verdade. Michiko Kakutani sugere
que
o relativismo está em ascensão desde o início das guerras culturais, na década de 1960. Naquela época, ele foi abraçado pela Nova Esquerda, ansiosa para expor os preconceitos do pensamento ocidental, burguês e primordialmente masculino; e por acadêmicos que pregavam o evangelho do Pós-modernismo, que argumentava que não existem verdades universais, apenas pequenas verdades pessoais — percepções moldadas pelas forças sociais e culturais de um indivíduo. Desde então, o discurso relativista tem sido usurpado pela direita populista, incluindo os criacionistas e os negacionistas climáticos, que insistem que suas teorias sejam ensinadas junto com as teorias “baseadas na ciência”7.
No início dos anos 1950, Hanna Arendt, em As Origens do Totalitarismo, já nos prevenia que
“o súdito ideal do governo totalitário não é o nazista convicto nem o comunista convicto, mas aquele
para quem já não existe a diferença entre o fato e a ficção (isto é, a realidade da experiência) e a
diferença entre o verdadeiro e o falso (isto é, os critérios do pensamento)”8. Um pouco antes, numa
conferência proferida originalmente em 1946, intitulada A Crise Humana, Albert Camus nos alertava
4 A íntegra do citado pronunciamento pode ser lida em https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/03/24/leia-o-pronunciamento-do-presidente-jair-bolsonaro-na-integra.htm (acessado em 17/08/2020). 5 Cf. https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/06/06/apos-reduzir-boletim-governo-bolsonaro-retira-dados-acumulados-da-covid-19-de-site-oficial.ghtml (acessado em 17/08/2020). 6 Cf. http://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2020/08/1988832-aprovacao-a-bolsonaro-cresce-e-e-a-mais-alta-desde-inicio-de-mandato.shtml (acessado em 17/08/2020). 7 KAKUTANI, M., 2018, p.17. 8 ARENDT, H., 1998, p. 525.
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que “os homens de minha geração foram entregues durante anos a um tentação dupla: pensarem
que nada é verdadeiro ou pensarem que apenas a rendição à fatalidade da história é verdadeira”9.
A minha primeira hipótese é de que o relativismo pós-moderno, tanto progressista quanto
conservador, seria uma sequela do movimento historicista que adquiriu seus contornos na segunda
metade do século XIX. A “consciência histórica” teria assim fornecido as premissas que culminaram
no pós-modernismo dos anos 1960 e, por conseguinte, com a sua variante obscurantista na era da
pós-verdade. Para testar tal conjectura, tomo como caso exemplar um filósofo de berlinda, o qual
viveu num momento de transição dessa nova maneira de pensarmos a história: Friedrich Nietzsche.
Em sua Segunda consideração intempestiva, dedicada justamente às “vantagens e
inconvenientes da história para a vida”, Nietzsche examina um sentimento que o atormentara, a
suspeita de que a “cultura histórica” que “o mundo tem podido observar, nomeadamente na
Alemanha, já há duas gerações”, aparece-lhe “como um mal, como uma deficiência, como uma
carência”, de modo que “todos nós sofremos de uma febre histórica decoradora e que, pelo menos,
deveríamos reconhecer que padecemos dessa doença”10. Por outro lado, como o próprio Nietzsche
desaprova a falta de “sentido histórico” dos filósofos, bem como opõe a um projeto de
fundamentação da moral uma investigação “genealógica”, seus leitores com frequência o entendem
como alguém que rejeita a verdade por valores estéticos e cuja filosofia é uma forma radical de
historicismo para a qual “não há fatos, apenas interpretações”. O Nietzsche relativista tanto se
tornou um dos heróis do pós-modernismo quanto um alvo comum de vários pensadores - tais como
aqueles que publicaram a polêmica coletânea Por que não somos nietzschianos11.
Diante disso, proponho apresentar, mesmo que em linhas gerais, o historicismo e como a
Nietzsche foi atribuída uma posição de destaque nesse movimento. Depois, tento mostrar que a
faceta mais relevante das reflexões de Nietzsche sobre a verdade se volta antes para uma
reavaliação dos valores que nos levam a buscá-la e do que para as discussões sobre a sua pertinência
ontoepistemológica – como é o caso nas concepções relativistas. Por fim, contra aqueles que
aplaudem ou rejeitam o Nietzsche relativista e pós-moderno, tentarei mostrar que ele mantém a
procura da verdade como imprescindível para o filósofo, o que nos permite também perfilá-lo nas
trincheiras dos que agora enfrentam as falácias da “pós-verdade”.
9 Cf. https://www.franceculture.fr/emissions/fictions-theatre-et-cie/la-crise-de-lhomme-dalbert-camus-1946. 10 CI, prefácio. 11 Cf. BOYER et al, 1993.
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Natureza e convenção x natureza e história12
O historicismo ou a “consciência histórica” é comumente caracterizado como a descoberta de
que todo o pensamento é fundamentalmente relacionado ao seu próprio tempo e não pode assim
transcendê-lo13. Com isso não se quer dizer apenas que as ideias são temporalmente situadas,
porém que elas seriam determinadas pelas crenças de uma comunidade num dado período. Se todas
as ideias são redutíveis às opiniões de nossa comunidade num momento em particular, então as
noções de verdadeiro e de falso ou de bem e de mal são relativas a estas crenças ou opiniões. Por
conseguinte, não se poderia obter qualquer conhecimento objetivo do verdadeiro e do falso ou do
bem e do mal.
Leo Strauss (1889-1973) foi um dos principais intérpretes do historicismo enquanto
movimento filosófico e político. Em Direito Natural e História, ele tenta mostrar que a “consciência
histórica” não consiste na descoberta de que a verdade e os valores podem mudar com o tempo,
mas numa nova - e equivocada – visão de mundo envolvida nessa mudança. A reconstrução
detalhada dos argumentos de Strauss nos levaria longe demais. Por isso, vou me ater aqui ao que
lhe é essencial.
Como o historicismo é um traço da mentalidade moderna, a adequada compreensão de sua
gênese requer um contraste com o pensamento antigo. O que se depreende de obras como o
Teeteto de Platão e A Constituição de Atenas de Aristóteles é que os antigos estavam a par da
diversidade de opiniões sobre o que é o verdadeiro e o falso, o bem e o mal. Os diferentes pontos
de vista sobre o que é verdadeiro ou bom não eram para eles um obstáculo para a interrogação de
se há ou não um conhecimento da verdade e do bem, porém justamente aquilo que estimulou a
investigação acerca da existência da verdade ou do bem em si mesmos14.
Tal investigação teria sido inicialmente orientada pela distinção pré-filosófica (a) entre o que
se ouviu dizer ou fora visto por outros e aquilo que se viu ou ouviu diretamente e (b) pela separação
entre as coisas que são feitas pelo homem e as que não são feitas pelo homem. Diante dessa
bifurcação, avaliou-se como inferior aquilo que somente se ouviu dizer e é produzido pelo homem e
12 A presente seção adapta trechos previamente publicados em meu “Niilismo e política em Leo Strauss” (2012). 13 BLOOM, 1987, p. 40. 14 DHN, p. 12.
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como superior aquilo que não foi feito pelo homem e poderia ser visto ou ouvido diretamente por
qualquer um15. A Filosofia substitui então a autoridade do ancestral por algo que é “anterior” à
qualquer tradição. O que é por natureza se torna o “padrão” de todas as coisas e a tarefa da Filosofia
seria enfim desocultar racionalmente as coisas primeiras para além da variedade de nossas opiniões sobre
elas16. Com isso, firma-se a disjunção entre o que é por natureza e o que é por convenção. A convenção
foi descrita como aquilo que oculta a natureza – e que se mostra tão eficiente nisso que aquilo que
não foi feito pelo homem e por ele pode ser experimentado diretamente por vezes nos parece
apenas um costume17.
Por isso, apesar de suas divergências doutrinais, os antigos estavam de acordo quanto à
distinção entre o que é por natureza e o que é por convenção. No âmbito da Filosofia política clássica
havia aqueles que, contra os platônicos e os peripatéticos, consideravam que não havia ideias
universais e imutáveis sobre o justo e o bem. Para estes “convencionalistas” as noções do que é justo
ou injusto seriam fruto do consenso e pertenceriam ao campo das opiniões, do que pode mudar de
acordo com as circunstâncias particulares. Justamente por serem originadas de regras sociais
arbitrárias, elas seriam inferiores aquilo que é por natureza. Eles concordavam assim que havia uma
separação entre natureza e convenção e quanto a superioridade daquilo que é por natureza18.
Diferente desse convencionalismo clássico, a perspectiva histórica rejeita que a natureza seja
“anterior” à qualquer tradição, bem como a norma de todas as coisas. Como estamos a par daquilo
que não foi feito pelo homem apenas pelas ideias de um determinado período, seguir-se-ia que não
poderíamos compreender as coisas sem referência a uma certa maneira de representá-las. Como as
ideias que articulamos podem mudar de uma comunidade para outra e sobretudo numa mesma
comunidade em momentos distintos, o privilégio não é das coisas mesmas – existam ou não -,
porém do modo pelo qual as representamos.
Tampouco se pode confundir a consciência história com o ceticismo, seja antigo ou
moderno19. O ceticismo afirma que não há a verdade ou que devemos suspender nosso juízo dado
que todas as afirmação são incertas. Tal negação ou suspensão de juízo se justifica por uma
investigação racional cuja validade independeria de qualquer circunstância particular. Mas o
15 DHN, p.75-77. 16 DHN, p. 80. 17 DHN, p. 79. 18 DNH, p. 13. 19 DHN, p. 20-21.
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historicismo entende que a própria noção de racionalidade é redutível a um ou outro esquema
conceptual gestado socialmente. Assim, não apenas os conteúdos, mas a própria estrutura dos
raciocínios seria historicamente determinada pelas crenças de uma comunidade.
Se o sentido histórico se distingue do convencionalismo clássico ao rejeitar a diferença
entre natureza e convenção e contradiz o ceticismo porque não admite a universalidade da razão,
qual seria a sua origem? A hipótese de Strauss é de que o historicismo apareceu no século XIX como
uma “reação à Revolução francesa e às doutrinas do direito natural” a ela relacionadas20. Por direito
natural entenda-se a ideia de que o cultivo da razão permite que se obtenha um conhecimento
universal do verdadeiro e do falso, do bem e do mal. Os revolucionários eram contra todas as
formas de universalidade e de transcendência e, por isso, defendiam que aquilo que é por natureza
é estritamente individual21.
Os criadores da escola histórica acentuaram essa posição ao concluírem que mesmo uma
justiça ou bem individuais ainda permaneciam vinculados ao que está além do aqui e do agora.
Afinal, a afirmação de que o justo e o bem são individuais é, ela mesma, universal. A rejeição da
ideia de que o justo e o bem são sempre individuais resultou numa supressão até ali inaudita de
todas as formas de supramundanidade e transcendência22. O historicismo não se confunde então
com a história e constitui assim uma determinada concepção e valoração dos acontecimentos cujo
passo decisivo não foi “a descoberta da diversidade local e temporal das ideias de justiça”, mas a
crença na superioridade do local e do temporal sobre o universal23. Esta superioridade não é um fato,
porém uma proposição metafísica ou, como sugeriu Nietzsche, talvez o sintoma de uma doença da
qual até há pouco sequer estávamos cientes de que padecíamos.
Disso surge o primeiro movimento da escola histórica, denominado por Strauss de “teórico”,
que procurava obter uma objetividade restrita e momentânea pela pressuposta existência de “um
espírito popular” submetido às “leis gerais da evolução histórica”24. A ideia era que, se não é
possível se conhecer a verdade e o bem em todas as épocas e locais, pelo menos poderíamos obtê-
los quanto a esta época e este local. Quando o historicismo se associa a uma tendência do
positivismo que desmerecia a teologia e a metafísica defendendo que o único conhecimento
20 DHN, p. 15. 21 DHN, p. 15. 22 DHN, p. 16. 23 DHN, p. 16. 24 DHN, p. 17.
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autêntico viria da pesquisa empírica, estes pressupostos transempíricos também foram
abandonados. Dada a supressão de qualquer forma da racionalidade que não fosse uma
generalização de comportamentos individuais, não restavam mais quaisquer padrões objetivos.
Por isso, os historicistas mais argutos admitiram a sua incapacidade para deduzir e generalizar
normas ainda que restritas a um certo momento e local25.
Curiosamente, essa limitação do sentido histórico não foi entendida como um fracasso
teórico e sim como o reconhecimento inaudito de uma condição intrínseca do humano. Esse
segundo movimento é designado como um historicismo “radical” ou “existencialista” e Strauss o
personifica em Nietzsche26 e sobretudo em seus “sucessores” – dos quais Heidegger seria o ponto
culminante. A tese fundamental do historicismo existencialista é de que “toda compreensão e
todo conhecimento, por mais limitado e científico que possa ser, pressupõe um enquadramento
de referência”. Este enquadramento de referência denota uma perspectiva, “um horizonte, uma
visão englobante sem a qual não é possível conhecer”. Essa visão englobante, por ser a base de todo
e qualquer raciocínio, “não pode ser validada por um raciocínio”. Como há uma infinidade de
perspectivas tão (i)legítimas quanto as outras, não podemos escolher entre elas por qualquer
orientação racional. Dessa maneira, o historicismo radical ou existencialista, “ao negar o
significado, se não a existência, de normas universais, destruiu a única base sólida de todos os
esforços sérios para transcender o atual”27.
O primeiro momento do historicismo denuncia a relatividade de nossas ideias e valores. O
segundo momento vai além e defende a relatividade de quaisquer esquemas conceptuais pelos
quais articulemos nossas ideias e valores. Daí que a crítica aos preconceitos do pensamento
ocidental, burguês e primordialmente masculino difundida pelo pós-modernismo a partir das
guerras culturais da década de 1960, a despeito da pertinência de suas demandas, ancorou-se
justamente na recusa entre o que é fato e o que é ficção, o que é verdadeiro e o que é falso. A
direita populista, cujos antepassados perderam a disputa com o iluminismo, deu-se conta em
seguida que a própria crítica ao pensamento ocidental, burguês e masculino também seria um
ponto de vista social, relativo. Por conseguinte, o conflito agora não se daria mais no âmbito na
25 DHN, p. 18. 26 Para fazer jus à sutileza das leituras de Strauss, convém indicar que, posteriormente, ele reconheceu uma ambiguidade na orientação filosófica de Nietzsche. Por um lado, a abordagem genealógica e a crítica à falta de sentido histórico dos filósofos apontaria para o citado historicismo radical ou existencialista. Por outro, a doutrina da vontade de poder indicaria um Nietzsche metafísico para o qual ainda valeria a busca pela verdade e objetividade do conhecimento (ver STRAUSS, 2013). No que se segue, tento mostrar que essas não são nem as únicas nem a melhor opção para compreender a posição de Nietzsche. 27 DHN, p. 25-26.
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ordem das razões, mas no da opinião. O ambiente privilegiado para tais disputas não seriam as
pesquisas e periódicos científicos, porém os perfis das redes sociais. A desvalorização e
consequente declínio da verdade foi adotada pelos diferentes espectros ideológicos e disto se
estabeleceu a “era da pós-verdade”, um período no qual, com boa consciência, o apelo às
emoções e motivações dos indivíduos se sobrepõe à coerência e à argumentação.
“A máscara do esclarecimento” ou o problema do valor da verdade
As interpretações sobre a questão da verdade em Nietzsche se articulam sobretudo no plano
ontoepistemológico, isto é, disputam se ele considera que há ou não a verdade e se podemos
conhecê-la. Por um lado, a maioria da recepção crítica lhe atribui uma teoria da falsificação, “a tese
de que a nossa experiência do mundo é, de algum modo, errônea ou distorcida”28. Por outro lado,
há eventualmente os que nele identificam, por exemplo, um realismo empirista29.
No entanto, se é justificado nos interrogarmos acerca destes traços ontoepistemológicos,
quando nos atemos às passagens mais importantes em que ele discute o tópico, nota-se que seu
interesse se direciona preponderantemente para o problema do valor da verdade, para o seu âmbito
moral ou, segundo seu vocabulário específico, “extramoral”.
No prefácio de Além do Bem e do Mal, zomba-se dos filósofos que até ali tentaram alcançar a
verdade por “sublimes e absolutas” combinações lógicas com pretensões “supraterrenas”. Em tais
sistemas de pensamento, toma-se por “verdadeiro” aquilo que é incondicionado, que existe em si
mesmo, independente de qualquer perspectiva. Assim, os dogmáticos procuram em uma esfera
conceptual e transcendente por um “bem em si” e por um “puro espírito”30. Uma vez assumida tal
incomensurabilidade entre o que é verdadeiro e aquilo que podemos vivenciar, não surpreende
então que as doutrinas se mostraram incapazes de apreender aquilo que, quando muito, cabe-lhes
apenas imaginar. Tais pretensões foram inequivocamente abaladas pela filosofia crítica de Kant31,
da qual se pressupõe nesta passagem o itinerário e inclusive o sentido de “dogmático”.
28 RICCARDI (2014, p. 132). 29 Cf. CLARK (1990); LEITER (2002). 30 BM, prefácio. 31 Sobre a influência de Kant, especialmente na filosofia alemã, veja BM §11.
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Diante disso, Nietzsche não propõe mais uma estratégia de como definir a verdade ou como
garantir a objetividade do conhecimento, porém se interroga o que teria conduzido a filosofia
dogmática em tal busca. Em alguns escritos, como no inconcluso ensaio Sobre a verdade e a mentira
no sentido extramoral, examinou-se a hipótese de que tais doutrinas poderiam ter sido originadas de
“alguma superstição popular de um tempo imemorial, [...] talvez de algum jogo de palavras, alguma
sedução por parte da gramática, ou temerária generalização de fatos muito estreitos, muito
pessoais, demasiados humanos”32. Daí que, para entender a “desajeitada insistência com que até
agora [os filósofos dogmáticos] se aproximaram da verdade”33, ele, inicialmente, indagou-se pela
gênese da vontade que os conduz.
Contudo, num segundo e decisivo movimento, Nietzsche passa a inquirir algo que lhe pareceu
ainda mais fundamental: qual o valor dessa vontade de verdade? Isso significa questionar por que
queremos a verdade e “por que não, de preferência, a inverdade? Ou a incerteza? Ou mesmo à
ignorância?”34. Que tal desconfiança seja desconcertante e até insólita, já que parece óbvio que se
“deve” querer a verdade, seja para “não se deixar enganar” ou para “não enganar” ninguém35,
reforça a suspeita de que este “problema não tenha sido jamais colocado” e assim “pela primeira vez
vislumbrado, percebido, arriscado”36.
Como não se trata de uma investigação sobre alguma teoria ou o conceito mesmo de verdade
e sim acerca do valor que atribuímos à nossa vontade pela verdade, entende-se porque, num sentido
peculiar, a “Psicologia” substitui a Metafísica como a “filosofia primeira”37. Pelo menos desde
Humano, demasiado humano, as “observações psicológicas” são para Nietzsche “a ciência que
indaga a origem e a história dos chamados sentimentos morais”38, ou, mais precisamente, “a história
dos sentimentos pelos quais tornamos alguém responsável por seus atos”39. Convém lembrar que o
termo “Psicologia” não designava então uma área de pesquisa acadêmica já estabelecida, mas
diversas iniciativas mais ou menos aparentadas entre si. Que a Psicologia para Nietzsche tenha
como objeto justamente os sentimentos de valor confirma que ele adota para si um estudo da alma
32 BM, prefácio. 33 BM, prefácio. 34 BM §1. 35 GC §344. 36 BM §1. 37 BM §23. 38 HH, §37 39 HH §39.
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que herda a disposição de “mestres das sentenças” como La Rochefoucauld e outros “moralistas”40
cujos escritos lhe parecem engendrar uma arte da dissecação e composição das motivações que
permeiam as ações dos tipos humanos - e não de um ou outro sujeito em particular41.
Uma vez que a investigação dos juízos ou “prejuízos” morais remete à vontade e aos
sentimentos pelos quais atribuímos responsabilidade aos agentes, compreende-se que estes sejam
um aspecto do estudo da alma. Mas por que lhe seriam um acesso privilegiado? No que diz respeito
ao exame dos “preconceitos dos filósofos”, os juízos da lógica “não são os mais profundos e mais
fundamentais a que pode descer a nossa ousadia”, pois “a confiança na razão, com que se sustenta
ou cai a validez desses juízos, é, sendo confiança, um fenômeno moral”42. Assim, convém a hipótese
de que “por trás de toda lógica e sua aparente soberania de movimentos existem valorações, ou,
falando mais claramente, exigências fisiológicas para a preservação de uma determinada espécie de
vida”43.
Por que Nietzsche considera que nossos raciocínios e inferências seriam um sintoma
inconsciente de “exigências fisiológicas”? Desde a I Consideração Intempestiva ele se interessa pela
maneira de tratar os sentimentos morais desenvolvidas por autores influenciados pela teoria da
evolução de Darwin44. Uma das maneiras de contestar estes “psicólogos ingleses” é justamente
mostrar que, por vezes, eles não são coerentes com os princípios do evolucionismo biológico, pois,
dada a ideia de seleção natural, segue-se não apenas que houve uma mudança no aspecto físico do
homem, mas que “mesmo a faculdade de cognição veio a ser”45. Por conseguinte, a maneira como
40 Cf. HH §35: “Por que não se leem mais os grandes mestres da sentença psicológica? – pois, sem qualquer exagero: o homem culto que tenha lido La Rochefoucauld e seus pares em espírito e arte é coisa rara na Europa”. E, num aforismo intitulado “livros europeus” [HH II, AS §214], Nietzsche revela que “ao ler Montaigne, La Rochefoucauld, La Bruyère, Fontenelle (sobretudo o Dialogue des morts), Vauvenargues, Chamfort, estamos mais próximos da Antiguidade do que com qualquer grupo de seis autores de outros povos. Através desses seis, o espírito dos últimos séculos da idade antiga ressuscitou – juntos eles formam um elo importante na grande, contínua cadeia da Renascença. Seus livros se erguem acima das variações de gosto nacional e do colorido filosófico, em que agora todo livro habitualmente reluz e tem de reluzir, para tornar-se famoso: eles contêm mais pensamentos reais do que todos os livros dos filósofos alemães reunidos: pensamentos do tipo que gera pensamentos [...]. Mas, para dizer com claríssimo louvor: eles seriam, tendo escrito em grego, entendidos também pelos gregos. O quanto Platão poderia entender dos escritos de nossos melhores pensadores alemães, Goethe e Schopenhauer, e.g., sem falar da repulsa que seu modo de escrever nele despertaria. [...] Por outro lado, que luminosidade e elegante precisão naqueles franceses! Até os gregos de mais fino ouvido aprovariam essa arte, e uma coisa eles teriam que admirar e venerar, a espirituosidade francesa da expressão: algo assim eles amavam bastante, sem aí serem particularmente fortes”. 41 HH §35. 42 A, prefácio §4. 43 BM §3. 44 Estes pensadores foram posteriormente reunidos sob a égide de “darwinismo social”. Por sua vez, Nietzsche tinha em mente sobretudo o livre-pensador David Strauss (alvo da referida CI I) e Paul Rée (discutido tanto em HH quanto na GM), ambos mais diretamente influenciados pela linha de pesquisa entrevista em A expressão das moções nos homens e nos animais (2009 [1872] ), no qual Darwin defende que algumas de nossas expressões e condutas são resquícios herdados de antepassados primitivos e inaugura assim o estudo dos aspectos biológicos do comportamento 45 HH §2.
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pensamos e sentimos remete a um desenvolvimento de instintos e condutas primitivas. Por isso,
confessa Nietzsche, “não importa se contemplo os homens com olhar bom ou ruim, sempre os vejo
ocupados numa só tarefa, todos e cada um em particular: fazendo o que ajuda à conservação da
espécie”46.
Se por um lado Nietzsche denuncia a incoerência dos psicólogos ingleses para com os
princípios do pressuposto evolucionismo biológico, por outro ele também sugere que este não é
suficiente para entender a gênese de nossos juízos morais. Isto porque as próprias teses sobre a
origem de nossos sentimentos morais também precisam ser submetidas a um “sentido histórico”,
de modo que os genealogistas da moral precisam levar em consideração que as categorias pelas
quais conduzem as suas investigações também vieram-a-ser. Por um refinamento de sua inquirição
psicológica, Nietzsche adota assim uma acepção mais sutil da “moral” como “a teoria das relações
de dominação sob as quais se origina o fenômeno vida”47. Por tal protocolo se examina a busca pela
verdade pelo estudo da vontade que a conduz, a mencionada “vontade de verdade”, a qual, por se
sobrepor a outras vontades que também procuram prevalecer quanto às nossas ações e afetos, pode
ser caracterizada fundamentalmente como uma vontade de poder. Por isso, a própria Psicologia se
torna uma “morfologia e a teoria da evolução da vontade de poder”48, isto é, da “vontade de vida”49,
um procedimento até ali inaudito e que justifica a Nietzsche eventual e provocativamente se
denominar “o primeiro psicólogo”50. Tal âmbito, justamente aquele que procura a gênese das
“relações de dominação” naquilo que há de não-intencional em nossos atos é denominado por
Nietzsche de extramoral51.
Por não estar em litígio – a não ser secundariamente – com a verdade ou falsidade das
proposições e sim com o valor e indiscutibilidade dessas, O psicólogo recorre, seja quanto a si ou aos
outros, a argumentos que se direcionam não às próprias coisas (ad rem) e sim àqueles que as
enunciam (ad hominem). Como bem destaca Robert Solomon, o argumento ad hominem é uma
técnica retórica costumeiramente reconhecida como uma falácia por consistir numa tentativa de
refutar uma proposição por um ataque aos motivos ou emoções de quem a profere. No entanto,
Solomon comenta acertadamente que Nietzsche não emprega tais raciocínios para desmentir
46 GC §1. 47 BM §19. 48 BM §24. 49 GC §349, GM, prefácio §3. 50 EH, “Por que escrevo livros tão bons” §5; “Por que sou um destino” §6. 51 BM §32.
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doutrinas, mas para indeterminá-las ou desmerecê-las ao expor algumas das condutas patéticas ou
mórbidas que as motivaram. Afinal, o que poderia ser mais devastador contra as pretensões
edificantes dos dogmáticos do que uma argumentação que denuncia a pequenez ou vilania de seus
objetivos a despeito da correção de suas provas?52.
Por tal fio condutor é que se deve entender a proposta de que “é tempo, finalmente, de
substituir a pergunta [ontoepistemológica] kantiana ‘como são possíveis juízos sintéticos a priori,
por uma outra pergunta: ‘por que é necessária a crença em tais juízos?’”. Tal substituição conduz à
suspeita de que a crença na verdade ou falsidade de tais juízos se deve a valorações ou exigências
fisiológicas “para o fim da conservação de seres como nós”53. Nesse nível mais sutil de investigação,
“a falsidade de um juízo não chega a constituir [...] uma objeção contra ele”, pois a questão aqui é
“em que medida ele promove ou conserva a vida, conserva ou até mesmo cultiva a espécie”54. Assim,
não se trata sequer de uma suspensão do plano veritativo das proposições, porém de sua análise por
outro campo de inquirição que interroga o valor que atribuímos à verdade ou falsidade das
sentenças.
O que se mostra em tal dispositivo é o vínculo indissociável entre o pensador e o pensado,
o filósofo e a filosofia, julgando-se que a qualidade ou valor de uma ideia depende em grande parte
do tipo de pessoa e de seus afetos. Em abstrato, pode-se diferenciar entre quem propõe e o que é
proposto. Contudo, fazê-lo implica perder de vista o que torna a tese pertinente para quem a profere
e, com isso, o próprio valor do que é proferido. Não se trata aqui do indivíduo empírico e sim de um
conjunto de aspectos, propriedades e relações, ou seja, de tomar uma personalidade como uma
lente de aumento para tornar visíveis suas condições vitais55, encontrando na revelação de seus
motivos, intenções e circunstâncias, o solo no qual a planta cresceu e proliferou56. Assim Nietzsche
espera cultivar um “olhar cada vez mais agudo para a difícil e insidiosa inferência regressiva [...] que
vai da obra ao autor, do ato ao agente, do ideal àquele que dele necessita, de todo modo de pensar
e valorar à necessidade que por trás comanda”57.
Altera-se assim a relação entre o filósofo e a verdade. O propósito de tal reorientação é
elaborar uma crítica dos valores pela qual “o próprio valor destes valores deverá ser colocado em
52 SOLOMON (1996, p. 181-182). 53 BM §11. 54 BM §4. 55 EH, “Por que sou tão sábio” §7. 56 GM, prefácio §3. 57 GC §370.
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questão”58. Para tanto, examinam-se os juízos como signos que permitem perscrutar as disposições
afetivas que lhes adornam. Isso porque “o julgamento moral nunca deve ser tomado ao pé da letra
[i.e., como verdadeiro ou falso], pois assim ele constitui apenas um contrassenso”. Já como
“semiótica [Semiotik] é inestimável”, porquanto “revela, ao menos para os que sabem [decifrá-lo],
as mais valiosas realidades das culturas e interiores que não sabiam o bastante para
‘compreenderem’ a si próprias”59. Nietzsche propõe uma decisiva subversão pela qual cabe
investigar a moral como “uma linguagem figurada dos afetos” [Zeichensprache der Affecte]60, um
sintoma ou “sintomatologia” [Symptomatologie]61.
Por tal registro sintomatológico é que convém desfazer os equívocos quanto à noção de
“interpretação” e mesmo de “perspectiva”. A famosa passagem “não há fatos, apenas
interpretações” foi incluída originalmente num livro nem organizado nem editado pelo próprio
Nietzsche, o controverso A Vontade de Poder62. Portanto, diferente das seções ou aforismos das
obras por ele publicadas ou preparadas para publicação, esta passagem não está articulada com
outras seções ou numa progressão temática autorizada. Sendo assim, precisamos lê-la como um
fragmento isolado, o que, por si, favorece ambiguidades e imprecisões. Aliás, a sentença sequer é
normalmente citada em sua frase por inteiro, a qual diz “contra o positivismo, que fica no fenômeno
‘só há fatos’, eu diria: não, justamente não há fatos, só interpretações”. Por conseguinte, trata-se de
uma proposição polêmica, inicialmente contra aqueles que entendem dogmaticamente que os fatos
seriam um “em si”, algo que se poderia verificar direta e imediatamente. O que Nietzsche tenta
mostrar ali é que as asserções sobre estados de coisas no mundo não possuem um único significado
ou algum sentido oculto, “mas sim inúmeros significados”63.
Isso se justifica, novamente com referência à filosofia crítica de Kant, pela própria maneira
como conhecemos algo, a qual se faz a partir de nossa cognição e não por alguma intuição
intelectual. Num passo adiante quanto à ontoeistemologia kantiana, Nietzsche então emenda que
àquilo que percebemos podemos em hipótese acrescentar ou alterar camadas de significação - e
isso seria propriamente o “perspectivismo”. No entanto, contra quem infira disso que “tudo é
subjetivo”, Nietzsche contesta que mesmo esta ideia já é também uma “interpretação”, ou seja, uma
58 GM, prólogo §6. 59 CI, VII §1. 60 BM §187. 61 CI, VII §1. 62 VP §481. 63 VP §481.
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dentre outras maneiras de se dar significado aos fenômenos64. Se é assim, tanto os positivistas que
defendem que só há fatos como os relativistas para quem tudo é subjetivo estão igualmemente
equivocados. Portanto, a sentença “não há fatos, apenas interpretações” pertence a um argumento
que contesta tanto o objetivismo dogmático quanto o subjetivismo (de um relativista pós-moderno,
diríamos hoje).
Se articularmos esta seção com a obra publicada ou preparada para publicação por
Nietzsche, entendemos que tais teses e a noção de interpretação ali pressuposta se amparam numa
implícita filosofia da linguagem. Ao comentar a aparente dificuldade dos leitores para a
compreensão de seus textos, Nietzsche diz que a assimilação de um aforismo não se esgota quando
este é “bem cunhado e moldado”65, isto é, quando se lhe estabelece apenas a referência. Após isso,
tem-se início a sua “interpretação”, ou seja, o estudo de outras camadas de sentido que perfazem o
plano de conteúdo de uma sentença. Tal proposta pode ser generalizada para a maneira como se
devem ler as demais filosofias e é por isso que os “gestos e as entrelinhas dos filósofos” revelam que
“o pensamento consciente de um filósofo é secretamente guiado e colocado em certas trilhas por
seus instintos”66. Desse modo, ao âmbito proposicional convém um exame de outros planos do
conteúdo, os quais pertencem ao campo da “interpretação”.
O que Nietzsche está a dizer, portanto, não é que uma proposição como “isto é uma
cadeira” ou “esta é minha mão” possam, quanto à sua referência num dado contexto, referir a
diferentes objetos. O que ele tenta mostrar é que apenas a referência não esgota o significado do
que é dito, que há outros estratos tão ou mais decisivos para o sentido quanto a referência, isto é,
“uma diversidade de perspectivas e interpretações afetivas”67. Ao apontar para uma cadeira, posso
ter em mente indicar, por cortesia, onde alguém deve se sentar. Ao indicar que esta é a minha mão
posso querer mostrar que não há como duvidar de sua existência. Em ambos os casos, o “objeto” é
apenas parte do que deve ser interpretado. Por isso, ao reformular a noção de “objetividade”,
Nietzsche propõe que esta se obtém não por um referência imediata e em si, porém por “quanto
mais afetos permitimos falar sobre uma coisa, quanto mais olhos, diferentes olhos, soubermos
64 VP §481. 65 GM, prefácio §8. 66 BM §4. 67 BM, III §12.
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utilizar para essa coisa, tanto mais completo será o nosso ‘conceito’ dela, nossa ‘objetividade’”68
sobre um estado de coisas.
Tanto pela maneira de formular o problema da verdade enquanto uma questão sobre o
valor desta quanto pelo modo de argumentação para levar adiante a sua investigação, vê-se que
Nietzsche não descuida de pensar sobre o verdadeiro e o falso, mas busca uma maneira de lhes
examinar que não recaia na mencionada imperícia e mesmo ingenuidade dos dogmáticos. Por isso,
ao esboçar o perfil para os “filósofos do futuro”, parece-lhe claro que estes continuarão a busca pela
verdade. No entanto, de um modo bastante distinto de como esta fora até aqui conduzida69.
Se a ingenuidade dos dogmáticos é ignorar a sua vontade pela verdade, para não se recair
na mesma armadilha cabe também examinar a vontade que conduz os antidogmáticos em tal
exame. Assim, após o escrutínio dos preconceitos dos filósofos dogmáticos, Nietzsche se volta para
os prejuízos de si e de seus confrades “antimetafísicos”, “contra-idealistas”, “espíritos livres” e
demais pensadores que se consideram adversários do dogmatismo70. O que a observação
psicológica de seus próprios impulsos lhe revela é que a crítica ontoepistemológica à verdade, pela
qual os “céticos” e “anticristãos” se sentem distantes do dogmatismo é um sintoma do mesma ideal
que persiste neste, o “ideal ascético”. Por isso,
Esse ideal é também o seu ideal, eles mesmos são o rebento mais espiritualizado desse ideal, sua mais avançada falange de guerreiros e batedores, sua mais insidiosa delicada e inapreensível forma de sedução – se jamais fui um decifrador de enigmas, quero sê-lo com esta afirmação!... Esses estão longe de serem espíritos livre: eles creem ainda na verdade”71
O problema extramoral do valor do valor da verdade permite então escancarar essa
hierarquia de valores comum que subjaz a concepções ontoepistemológicas bastante diferentes. O
itinerário seria que, movida pelo ideal ascético, “a veracidade cristã tirou uma conclusão após a
outra” e assim “tira enfim sua mais forte conclusão, aquela contra si mesma”, o que ocorre “quando
coloca a questão: ‘que significa toda vontade de verdade’?”72. Daí que o escrutínio psicológico da
vontade de poder que conduz aos dogmáticos e também aos antidogmáticos revela que, até ali,
tanto os adoradores quanto os detratores da verdade são facetas do mesmo ideal ascético. Como a
68 BM, III §12. 69 BM §43. 70 GM, III §24. 71 GM, III §24. 72 GM, III §27.
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crítica da vontade de verdade é uma instância privilegiada para se identificar as formas mais
dissimuladas do ideal ascético, esta constitui não apenas mais um dentre outros objetos de
investigação, mas a tarefa mesma do filósofo tal como Nietzsche o entende73.
O que Nietzsche se interroga ao auscultar o valor da vontade de verdade é o que mantém o
“tremendo poder do ideal ascético, do ideal sacerdotal, embora o mesmo seja o ideal nocivo par
excellence, uma vontade de fim, um ideal de décadence”74. A resposta é que, até ali, isto é, nestes
dois milênios da influência cristã no ocidente, este foi o único ideal, que “faltava um contraideal”75.
O ambicioso projeto de reavaliação de todos os valores, anunciado já na Genealogia da moral76,
consiste justamente na elaboração desse contraideial, dessa outra hierarquia de valores.
No que diz respeito à crítica do valor da verdade, o movimento de reavaliação não consiste
em se desmerecer a busca pela verdade, pois, como dito, a Filosofia não pode prescindir desta, mas
sim que a vontade que impulsiona tal disposição não seja dominada pelo ideal ascético. Neste nível
extramoral, como dito, o que move o genealogista não é investigar a verdade ou falsidade de uma
proposição, mas sim o valor que a verdade ou a falsidade de uma proposição quanto à vida. Por
vezes, aquilo que o sujeito acredita interessa ao psicólogo não por corresponder à realidade, mas
como um sintoma da estrutura valorativa pela qual o sujeito se relaciona com um determinado
estado de coisas. Isto não quer dizer que a verdade ou falsidade do que o sujeito acredita é
irrelevante, apenas que não cabe ali inquirir pela veracidade da crença e sim pelos afetos que nela
persistem. Nestes casos, mesmo que a crença seja evidentemente falsa, o que convém à observação
psicológica é dali interpretar quais os valores que apegam o indivíduo a uma ilusão – e não a ilusão
propriamente dita. Por isso, o que diferencia o “filósofo do futuro” entrevisto por Nietzsche não é o
menosprezo pela verdade, mas uma atitude e orientação existencial alheia ao ideal ascético. A
filosofia de Nietzsche não se propõe enfim uma desvalorização da verdade, porém a sua reavaliação.
Nietzsche e a pós-verdade
Uma das principais dificuldades para se interpretar as estratégias metodológicas e pretensões
da filosofia de Nietzsche é se compreender qual o patamar fundamental no qual estas se articulam.
O que tentei mostrar aqui, a partir da discussão sobre a crítica do valor da verdade, é que este
patamar não é o ontoepistemológico e sim o “extramoral”. A principal diferença entre estes é que,
73 GM, III §24. 74 EH, “Genealogia da moral”. Para um estudo em pormenor da noção de “decadência” e sua centralidade para a filosofia de Nietzsche, veja meu Por que somos decadentes? Afirmação e negação da vida segundo Nietzsche (2013). 75 EH, “Genealogia da moral”. 76 GM §27.
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enquanto o primeiro se volta para a verdade ou falsidade das proposições (ou mesmo para a
possibilidade de se estabelecer tais juízos), o segundo se indaga sobre o valor ou vontade que conduz
a elaboração de uma dada concepção ontoepistemológica. Nesse sentido, é fundamental não
confundir um estudo sobre o que é a verdade com outro que se indaga sobre o valor desta. Aqueles
que perfilam Nietzsche como um profeta do relativismo pós-moderno ignoram que ele jamais
abdicou da busca pela verdade, mas, “supondo-se que a verdade seja uma mulher”, dedicou-se, a
partir das tentativas frustradas do dogmáticos, a perscrutar meios mais refinados e próprios para se
“conquistar uma dama”77.
Sem dúvida a aquisição de uma teoria da verdade apropriada é relevante. No entanto, esta
não o é pela disposição decadente e malsã que até aqui nos conduziu em tal empreita. Por
conseguinte, podemos talvez identificar a recente desvalorização e declínio do valor da verdade,
tanto em pós-modernistas de esquerda quanto de direita, como mais uma das facetas deste ideal
ascético para o qual o pensamento de Nietzsche se propõe um autêntico contraideal.
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77 BM, prefácio.
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DA VERDADE AO PERSPECTIVISMO: UMA
ABORDAGEM NIETZSCHIANA
APLICADA À FILOSOFIA DA CIÊNCIA
Bruno Camilo de Oliveira1
RESUMO: O objetivo deste artigo é apresentar os pressupostos da crítica de Nietzsche à noção de “verdade” que permitem considerar o seu “perspectivismo” uma excelente alternativa crítica e epistemológica para a filosofia da ciência. Realiza-se, para tanto, uma interpretação das expressões nietzschianas “tragédia”, “saber trágico”, “vida”, “perspectivismo” e “verdade”. Nietzsche parece estar convencido de que a crença na noção de “verdade” não pode ser condizente com a crença na “vida”, uma vez que a “vida” é também “tragédia”, não podendo, por isso, ser reduzida a um conceito. Por outro lado, a noção de “verdade”, encontrada na ciência natural, busca consolidar um conceito sobre a realidade, o que anula a pluralidade de perspectivas sobre a vida. Assim, uma analogia entre esse aspecto por trás do perspectivismo de Nietzsche e a construção do conhecimento científico permite considerar que a construção do saber científico precisa desconsiderar a noção de verdade e considerar todas as perspectivas individuais dos cientistas – a ciência não deve buscar verdades, mas metáforas ou perspectivas sobre a “vida” –, o que permite
1 Possui graduação em Filosofia (bacharelado) pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2010), graduação em Filosofia (licenciatura) pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2012), mestrado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2012) e doutorado em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará (2018). Atualmente é professor adjunto, nível 1, da Universidade Federal do Semiárido. E-mail para contato: [email protected].
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mostrar uma excelente contribuição de Nietzsche para os debates sobre a noção de verdade na filosofia da ciência. PALAVRAS-CHAVE: Perspectivismo. Verdade. Conhecimento científico. Saber trágico. Vida. ABSTRACT: The aim of this article is to present the assumptions of Nietzsche's critique of the notion of “truth” that allow to consider his “perspectivism” an excellent critical and epistemological alternative to philosophy of science. It takes place, therefore, an interpretation of the Nietzschean expressions “tragedy”, “tragic knowledge”, “life”, “perspectivism” and “truth”. Nietzsche seems to be convinced that the belief in the notion of “truth” cannot be consistent with “life”, since “life” is also “tragedy” and therefore cannot be reduced to a concept. On the other hand, the notion of “truth” found in natural science seeks to consolidate a concept about reality, which nullifies the plurality of perspectives on life. Thus, an analogy between this aspect behind Nietzsche's perspectivism and the construction of scientific knowledge allows us to consider that the construction of scientific knowledge needs to disregard the notion of truth and to consider all the individual perspectives of scientists – science must not seek truths but metaphors or perspectives on “life” – which allows to show an excellent contribution of Nietzsche to the debates about the notion of truth in the philosophy of science. KEYWORDS: Perspectivism. Truth. Scientific knowledge. Tragic knowledge. Life.
1 INTRODUÇÃO
Os filósofos da ciência dificilmente mencionam Nietzsche em seus debates em torno da
concepção da verdade e da construção do conhecimento sobre a realidade objetiva. Eles bem que
poderiam se interessar mais pelo pensamento nietzschiano! Este artigo pretende ressaltar a
relevância do pensamento de Nietzsche para a filosofia da ciência, no que diz respeito aos temas da
verdade e da construção do conhecimento sobre o mundo, a partir de uma interpretação do
significado das expressões nietzschianas “verdade”, “tragédia”, “saber trágico”, “vida” e
“perspectivismo”.
No que diz respeito aos debates em torno dos temas da concepção tradicional da verdade
como correspondência aos fatos e da construção do conhecimento científico sobre o mundo
objetivo, o pensamento de Nietzsche pode ser considerado relevante para esses temas, pelo menos,
por três motivos: pela crítica que ele estabelece ao conceito e, em especial, à concepção tradicional
da verdade adotada pela comunidade científica; pela apresentação do “saber trágico” como uma
espécie de conhecimento sobre a realidade objetiva; e pelo significado da expressão
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“perspectivismo” em seu pensamento, sobretudo a maneira como essa expressão parece sugerir
uma visão pluralista sobre a construção do conhecimento objetivo. Esses três motivos serão
abordados nas seções seguintes, tendo em vista os debates recentes da filosofia da ciência. Não
obstante, é importante considerar que podem haver outros motivos relevantes da obra de Nietzsche
para a filosofia da ciência, além dos três mencionados anteriormente. Aqui, optou-se por estudar
apenas três das possíveis contribuições de Nietzsche, com a expectativa de que futuros trabalhos
possam ressaltar outras contribuições relevantes do pensamento nietzschiano para os debates
recentes da filosofia da ciência.
Para dar início ao desenvolvimento do conteúdo aqui proposto, cabe à seção seguinte
estudar as críticas de Nietzsche ao conceito e à concepção tradicional da verdade para esclarecer o
porquê que a crença do pensamento científico-filosófico-ocidental no conceito e na verdade não
pode ser condizente com uma crença na “vida” que, por ser “trágica”, não pode ser reduzida,
segundo Nietzsche, a um conceito. A mesma seção também aborda o tema do “saber trágico”, na
expectativa de poder mostrar a sua relação com a crítica da “verdade” e como Nietzsche o considera
uma espécie de conhecimento capaz de representar a “vida”. A terceira seção é totalmente dedicada
ao significado da expressão “perspectivismo” no pensamento de Nietzsche, de modo a tentar
elucidar o motivo que faz do “perspectivismo” uma excelente alternativa epistemológica para a
ciência, sobretudo no que diz respeito à possibilidade de uma teoria pluralista sobre as várias
perspectivas que devem constituir o conhecimento objetivo sobre o mundo. Por último, nas
considerações finais, pretende-se apresentar uma síntese dos argumentos elencados nas seções
anteriores de modo que seja possível visualizar as contribuições do pensamento de Nietzsche para
a filosofia da ciência e os subsídios para uma crítica à epistemologia contemporânea.
2 A CRISE DA VERDADE E O SABER TRÁGICO COMO PERSPECTIVA DA VIDA
Se consideradas subáreas da filosofia como a epistemologia e a filosofia da ciência, subáreas
que tratam sobre os temas da convenção, noção e função da verdade do conhecimento científico,
nota-se que Nietzsche apresentou estudos relevantes para os debates nessas subáreas, uma vez que
sua obra filosófica tenha como objetivo, entre outros, refletir sobre a verdade e a possibilidade do
conhecimento científico. Uma reflexão que pode ser compreendida a partir da interpretação das
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expressões nietzschianas “aforismo”2, “metáfora”3, “poesia”4 e “música”5. Parece soar estranho que
expressões como “aforismo”, “metáfora”, “poesia” e “música” possam ser relevantes para algum
estudo de interesse da epistemologia ou da filosofia da ciência. Veja-se a seguir o sentido de tais
expressões no pensamento nietzschiano, de modo a ficar clara a contribuição da filosofia
nietzschiana para os debates da epistemologia e da filosofia da ciência acerca da verdade e do
conhecimento científico.
O aforismo é um gênero textual caracterizado pela escrita de breves sentenças capazes de
comunicar um pensamento ou uma ação. Humano, demasiado humano, por exemplo, é uma obra
nietzschiana escrita por aforismos. Contudo, em Nietzsche, além de um elemento textual o aforismo
possui também um significado epistemológico: Nietzsche está convencido de que não deve haver
uma busca por um ideal de conhecimento verdadeiro e sim uma busca por interpretações ou metáforas
sobre a realidade. “Nada possuímos senão metáforas das coisas”, escreve Nietzsche, “que não
correspondem, em absoluto, às essencialidades originais”,6 sendo a “verdade” nada mais que
Um exército móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, numa palavra, uma soma de relações humanas que foram realçadas poética e retoricamente, transpostas e adornadas, e que, após uma longa utilização, parecem a um povo consolidadas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões das quais se esqueceu que elas assim o são, metáforas que se tornaram desgastadas e sem força sensível, moedas que perderam seu troquel e
agora são levadas em conta apenas como metal, e não mais como moedas.7 Parece ser evidente que o “impulso à formação de metáforas”8 é interpretado por Nietzsche
como o esforço máximo da humanidade para a elaboração de conhecimento sobre a realidade
objetiva. Para ele os humanos estão “profundamente imersos em ilusões e imagens oníricas”, pois
a visão humana “desliza apenas ao redor da superfície das coisas e vê ‘formas’, sua sensação não
leva à verdade em nenhum lugar, mas antes se satisfaz em receber estímulos e tocar, por assim
dizer, um teclado sobre o dorso das coisas”.9 Por isso o aforismo é valorizado por Nietzsche
enquanto um recurso epistemológico, isto é, o máximo que os seres humanos podem realizar no que
diz respeito a construção de qualquer forma de conhecimento é construir aforismos. A verdade é
2 (NIETZSCHE, 2007a, p. 14). 3 (NIETZSCHE, 2007b, pp. 36-37). 4 (NIETZSCHE, 1996, p. 70). 5 (NIETZSCHE, 1996, pp. 96-97). 6 (NIETZSCHE, 2007b, pp. 33-34). 7 (NIETZSCHE, 2007b, pp. 36-37). 8 (NIETZSCHE, 2007b, p. 46). 9 (NIETZSCHE, 2007b, p. 28).
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figurativa, composta por inúmeras metáforas delimitadas arbitrariamente, sem preferências
unilaterais. Assim, escreve Nietzsche que
A ‘coisa em si’ (ela seria precisamente a pura verdade sem quaisquer consequências) também é, para o criador da linguagem, algo totalmente inapreensível e pelo qual nem de longe vale a pena esforçar-se. Ele designa apenas as relações das coisas com os homens e, para expressá-las, serve-se da ajuda das mais ousadas metáforas. De antemão, um estimulo nervoso transposto em uma imagem! Primeira metáfora. A imagem, por seu turno, remodelada num som! Segunda metáfora.10
Diferentemente da noção da verdade como correspondência aos fatos, comumente adotada
pela tradição científica,11 no que diz respeito à capacidade de descrição da realidade, uma metáfora
não tem a pretensão de ser universal nem de ser o único significado de representatividade objetiva
válido. É importante notar que uma metáfora, no sentido nietzschiano, não se trata de uma
descrição fiel e acabada sobre a realidade, mas de uma aproximação da realidade, um ponto de vista,
uma interpretação particular e distinta de outras apenas por se tratar de uma perspectiva diferente
sobre um mesmo objeto. A metáfora é em si um modo específico de enxergar a realidade, próprio
de cada sujeito. Não obstante, uma metáfora juntamente com outras metáforas formará uma
interpretação mais completa da realidade, na medida em que o conjunto de várias metáforas é
capaz de considerar não um, mas vários pontos de vista.
Uma metáfora é capaz de descrever a realidade objetiva, mas não da maneira como se supõe
ocorrer com as verdades científicas, pois para Nietzsche o impulso à criação de metáforas é diferente
do impulso à criação de uma verdade. O impulso para as metáforas não vem de uma imposição social
ou de uma convenção que deve ser aceita por todos os membros de uma determinada comunidade,
tampouco vem de uma necessidade ou obrigação da sociedade para aceitar determinadas imagens
usuais, de dizer a verdade, de ser moral, etc., da obrigação de mentir segundo uma convenção
sólida, isto é, de “mentir em rebanho num estilo a todos obrigatório”.12 O impulso para a metáfora
vem da constatação trágica de que são os seres humanos que constroem os conceitos para significar
a realidade objetiva, não que os seres humanos são capazes de identificar ou descrever conceitos
que existem na própria realidade. Nesse sentido, para Nietzsche, a verdade é uma mentira que
10 (NIETZSCHE, 2007b, pp. 31-32). 11 As defesas mais influentes para a tradição científica no século XX da noção correspondentista da verdade remontam, inicialmente,
aos trabalhos de Russell (2005) e do primeiro Wittgenstein (1968) e, posteriormente, aos trabalhos dos positivistas lógicos e daqueles que defendem a concepção semântica da verdade, como Carnap (1936) e Tarski (1944), respectivamente. No entanto, desde a metade do século XX que a noção correspondentista vem sendo gradativamente abandona pela tradição científica, sobretudo a partir de trabalhos como Quine (2011) e Putnam (1998).
12 (NIETZSCHE, 2007b, p. 37).
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liquefaz a metáfora intuitiva em uma convenção social, portanto dissolve uma imagem em um
conceito. Se por um lado a metáfora intuitiva é individual e única, sem necessidade do padrão, por
outro a verdade ostenta uma regularidade rígida e lógica. Assim cada sociedade terá sobre si uma
exigência de verdade conforme o padrão vigente. O defensor de verdade toma a si por medida de
todas as coisas, mas acredita existir objetos puros diante de si. Esquece que o que produz são
metáforas intuitivas, e as confunde com as coisas mesmas.
Para Nietzsche, os conceitos são abstrações do mundo que apenas tangenciam algumas
particularidades da vida. A vida é indeterminada porque é plural e descontínua – tudo está
relacionado entre si e em constante movimento. A representação teórica da vida deve, portanto,
possuir um caráter totalmente diferente dos conceitos estáticos e cristalizados divulgados pela
tradição correspondista e racionalista da ciência. Na realidade, segundo Nietzsche, diferentemente
do que acredita a tradição científica, os conceitos são aproximações teóricas da realidade
construídas pelo sujeito para entender o mundo. O conceito não é uma entidade objetiva e real que
pode ser apropriada pelo sujeito, mas o resultado da potencialidade do sujeito em descrever
determinado aspecto da realidade. Por isso, é uma maneira “miserável”,13 escreve Nietzsche, de
comunicar a realidade, uma vez que não traduz ou comunica toda a complexidade da vida. Mas o
impulso para a construção de uma metáfora é diferente, pois vem de uma constatação trágica de
que a vida é tão plural que nunca poderia ser reduzida a um conceito, sendo o máximo que se pode
fazer em relação a uma representação da vida é construir metáforas. Segundo Nietzsche, somente
o “saber trágico” poderia constituir uma imagem suficiente de conhecimento sobre a vida, pois
somente a tragédia é capaz de representar o conjunto de possibilidades – desacordo, desmedida,
desarmonia, temor, dilaceramento, dualidade e crueldade – que constitui a vida.
Tais perspectivas de Nietzsche sobre as noções de verdade e conceito são condizentes com
a escolha do “aforismo” como um gênero textual comum em seus escritos. Pois, não é o interesse
de Nietzsche apresentar definições ou conceitos cristalizados sobre a realidade. Ele parece querer
fazer de sua escrita um exemplo de sua filosofia da arte da interpretação, como uma pintura artística,
uma imagem, capaz de reconhecer a presença de outras formas de metáforas. É o que se vê, por
exemplo, no Prólogo da Genealogia da moral, quando ele alerta que
Se este livro resultar incompreensível para alguém, ou dissonante aos seus ouvidos, a culpa, quero crer, não será necessariamente minha. Ele é bastante claro, supondo-se – e eu suponho – que se tenha lido minhas obras anteriores, com alguma aplicação na leitura: elas
13 (NIETZSCHE, 1999a, p. 256).
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realmente não são fáceis. [...] Em outros casos, a forma aforística traz dificuldade: isto porque atualmente não lhe é dada suficiente importância.14
O que um ser humano produz é uma imagem individual sobre a realidade, que pode ser
diferente da imagem realizada por outro. Essa imagem ou metáfora é também uma interpretação.
Não há necessidade de hierarquização das várias interpretações. Ocorre o reconhecimento mútuo:
a existência de uma não anula a existência de uma outra. O que Nietzsche chama de “interpretação”
significa a tentativa de atribuir validade objetiva aos conceitos teóricos, sendo sempre parcial e
fragmentária uma vez que surge de perspectivas individuais. Não se pode interpretar qualquer
aspecto da realidade como se pudesse existir uma interpretação mais verdadeira do que outras, uma
vez que qualquer interpretação sobre a realidade é uma imagem incompleta. Assim, não se pode
querer que uma interpretação se torne um padrão ou um valor universal. O aforismo seria a única
forma de poder comunicar qualquer conhecimento sobre a realidade, pois trata-se de uma
interpretação que não pretende ser universalizada.
Bem cunhado e moldado, um aforismo não foi ainda “decifrado”, ao ser apenas lido: deve ter início, então, a sua interpretação, para a qual se requer uma arte da interpretação. Na terceira dissertação deste livro, ofereço um exemplo do que aqui denomino “interpretação”: a dissertação é procedida por um aforismo, do qual ela constitui o comentário. É certo que, a praticar desse modo a leitura como arte, faz-se preciso algo que precisamente em nossos dias está bem esquecido – e que exigirá tempo, até que minhas obras sejam “legíveis” –, para o qual é imprescindível ser quase uma vaca, e não um “homem moderno”: o ruminar...15
Nietzsche fez de sua escrita exatamente o reflexo de sua filosofia do conhecimento. Não só
os aforismos, mas o recurso às reticências, bastante comum em seus escritos, parece querer
estimular o leitor para que ele mesmo possa completar o restante da frase, criando uma conclusão
própria ou resolvendo por nenhuma – é o “ruminar”. Um outro exemplo são as palavras entre aspas,
que oferecem condições para que o leitor possa pôr em dúvida o significado comum e familiar de
algumas palavras. Algo parecido também ocorre com as interrogações, exclamações e outros meios
bastante evidentes em sua obra. É preciso certa astúcia do leitor para perceber tais momentos.
“Todos eles”, escreve Mueller-Lauter, “devem levar o leitor a se deter no pensamento, devem
produzir uma ‘inibição interior’, que dá ocasião ao ‘ruminar’ de seus pensamentos”.16
Se for considerado um estudo sobre a perspectiva nietzschiana do conhecimento pode-se
dizer que para Nietzsche o conhecimento é construído pela arte de interpretar uma determinada
14 (NIETZSCHE, 2007a, p. 14, grifo do autor). 15 (NIETZSCHE, 2007a, pp. 14-15, grifo do autor). 16 (MUELLER-LAUTER, 1994, não paginado).
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coisa, por aforismos, como ocorre com o “poema” e a “música”. Pois, o interprete é aquele que
considera o conhecimento objetivo como uma espécie de sintoma e por isso se comunica por meio
de aforismos. O artista, pelo poema ou música, é capaz de considerar e criar perspectivas diferentes.
Essa deve ser uma capacidade do filósofo do conhecimento. Por isso, o filósofo do conhecimento,
assim como o cientista, deveria se comunicar como um poeta, um artista figurador do mundo. Ora,
é exatamente dessa forma que Nietzsche se comunica com os seus leitores. Isso pode ser notado,
por exemplo, no seguinte poema:
Os tiranos do espírito. – Mas nenhuma planta evita a luz; no fundo, aqueles filósofos buscavam somente um sol mais claro, o mito para eles não era puro, não era luminoso o bastante. Encontravam essa luz em seu conhecimento, naquilo que cada um deles denominava sua “verdade”. Mas naquele tempo o conhecimento tinha um esplendor ainda maior; era jovem ainda e ainda sabia pouco de todas as dificuldades e perigos de suas sendas; ainda podia esperar chegar com um único salto ao centro de todo ser e de lá resolver o enigma do mundo.17
O poema é um recurso importante para o filósofo do conhecimento, assim como para o
cientista e outros que estiverem preocupados em construir algum conhecimento sobre a realidade
porque a poética se caracteriza pela indeterminação de um conceito puro, único e universal. No
poema – assim como na música, no culto teatral, etc. – o artista deve ser livre para interpretar algo,
criando uma imagem figurativa.
Com esse conhecimento se introduz uma cultura que me atrevo a denominar trágica: cuja característica mais importante é que, para o lugar da ciência como alvo supremo, se empurra a sabedoria, a qual, não iludida pelos sedutores desvios das ciências, volta-se com olhar fixo para a imagem conjunta do mundo, e com um sentimento simpático de amor procura aprender nela o eterno sofrimento como sofrimento próprio.18
Para Nietzsche, interpretar a vida exige poesia para construir imagens intuitivas sobre a vida.
No entanto, nem sempre a criatividade e a liberdade encontrada entre os artistas estão presentes
entre os filósofos do conhecimento. Isto ocorre, nas palavras de Nietzsche, devido ao “instinto de
rebanho” que impõe costumes, padrões, imposições sociais e convenções capazes de coibir a atitude
artística do cientista ou do filósofo sobre a realidade objetiva.
Uma característica importante da tragédia é que ela encena a vida como ela realmente é.
Para Nietzsche, a “metáfora” da “vida” é a “tragédia”. Por isso ele elogia o pensamento dos pré-
socráticos, porque é um pensamento que não nega a “vida”, isto é, entre os pré-socráticos haveria a
17 (NIETZSCHE, 1999b, p. 88, grifo do autor). 18 (NIETZSCHE, 1996 p. 111).
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possibilidade trágica, de uma unidade entre o pensamento e a vida, de um eterno retorno entre a
vida e o pensamento: a vida estimula o pensamento e o pensamento afirma a vida. Mas, a tradição
racionalista e ocidental, segundo Nietzsche, teria sido responsável pela gradativa negação dessa
característica, até o ponto em que passou a “julgar”19 a vida.
O julgamento da vida é diferente da representação da vida. Com a representação pode-se
constituir uma imagem mais completa de como a vida é: trágica. Com o julgamento a criatividade
artística pode ser inibida, negando-a com base na crença em limites e proibições, refutando-a com
base em valores transcendentais, considerados ascéticos e pretensiosamente superiores, capazes
de condenar a vida. Assim, em lugar do pensador artista, ativo e criativo, isto é, crítico de todos os
valores vigentes e criador de novos valores, surge o pensador metafísico e pessimista.
“Quem sofre não tem ainda nenhum direito ao pessimismo!”, foi daquela vez que conduzi comigo uma demorada e paciente campanha contra a anticientífica propensão fundamental de todo pessimismo romântico, a inflar, a interpretar experiências pessoais isoladas como juízos universais, e mesmo como condenações do universo... em suma, daquela vez virei meu olhar no avesso.20
O julgamento da vida é a negação do eterno retorno, afirma Nietzsche. Tal negação surge
com Sócrates, quando estabeleceu a separação hierárquica entre repouso e movimento, essência e
aparência, permanente e perecível, inteligível e sensível. Com Sócrates, segundo Nietzsche, surge a
metafísica, capaz de limitar e julgar a vida, segundo valores como Verdade e Divino. Com Sócrates
teria surgido a tradição da razão, cujo papel seria oferecer prescrições hierárquicas sobre a
construção do conhecimento e possibilitar o surgimento do homem teórico, em oposição a todo o
saber místico que caracterizava a tradição da época da tragédia.
Para Nietzsche a tragédia grega é o saber místico sobre a unidade da vida e da morte,
portanto um tipo de saber capaz de contemplar a totalidade. Sócrates teria considerado a arte
trágica irracional, não necessária para a construção do conhecimento, pois ela poderia desviar o
rumo desejável para a construção do conhecimento sobre a realidade.
Nietzsche parece estar convencido de que as prescrições teóricas, de compreensão e
justificação, que caracterizam grande parte do pensamento científico ocidental – a metafísica, o
positivismo, o racionalismo, o pensamento lógico, etc. – não são capazes de explicar o mundo em
sua totalidade trágica. São prescrições que devem ser combatidas e substituídas pela arte trágica,
para perder o seu status dogmático e inverossímil e para possibilitar o esclarecimento sobre
19 (NIETZSCHE, 1999c, p. 107). 20 (NIETZSCHE, 1999c, p. 107, grifo do autor).
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perspectivas mais completas da realidade. Sua tese é a de que a arte é indispensável para uma
construção de imagem sobre o mundo: para Nietzsche, “arte e poesia trágica tornam-se as chaves
que destrancam a essência do mundo”21 porque permitem acessar o conhecimento trágico (total)
do mundo e da vida. A arte é entendida por Nietzsche como uma “modalidade do saber”, mais
importante, inclusive, do que a própria ciência e o racionalismo para o esclarecimento de questões
sobre a realidade, uma vez que está mais próxima da vida do que o racionalismo característico para
a construção do conhecimento científico. Somente a própria vida é capaz de superar a arte, uma vez
que Nietzsche entende a vida como uma forma suprema de arte, pois a vida é uma eterna
transformação – criação e destruição permanente. Por isso, escreve Nietzsche, é preciso “ver a
ciência com a óptica do artista, mas a arte, com a da vida...”.22
3 O PERSPECTIVISMO EM NIETZSCHE
Nas artes visuais, o termo “perspectiva” é definido como um método gráfico em que o artista
é “capaz de desenhar um objeto de modo que ele pareça sólido e não plano como a superfície do
papel no qual ele é desenhado”.23 Nietzsche utiliza o termo “perspectivismo”, e termos relativos
como “perspectivístico”, desde seus primeiros escritos em um sentido diferente.24
Nas publicações realizadas entre os anos 1880-1888 houve uma significativa mudança no uso
das várias formas do termo “Perspektive”, dessa vez em um sentido propriamente ligado aos
possíveis pontos de vista sobre os aspectos da vida – perspectiva no sentido de uma estética da vida.
Uma rara passagem da fase inicial dos seus escritos que atribui significado ao termo no sentido de
uma estética da vida, pode ser encontrada em O nascimento da tragédia quando ele escreve que
Por trás de semelhante modo de pensar e valorar, o qual tem de ser adverso à arte, enquanto ela for de alguma maneira autêntica, sentia eu também desde sempre a hostilidade à vida, a rancorosa, vingativa contra a própria vida: pois toda a vida repousa sobre a aparência, a arte, a ilusão, a óptica, a necessidade do perspectivístico e do erro.25
21 (FINK, 2003, p. 9, tradução nossa). 22 (NIETZSCHE, 1996, p. 15, grifo do autor). 23 (NORLING, 1999, p. 3, tradução nossa). 24 É importante mencionar que o termo “Perspektive” e outros termos relativos como “Perspektivisch” e “Perspektivismus” podem ser
encontrados nos escritos de Nietzsche desde as suas primeiras publicações entre 1872 e 1875, mas o uso desses termos nessas primeiras publicações permaneceu, em geral, até o início da década de 1880, mais ligado à “perspectiva” no sentido da percepção dimensional dos objetos sólidos do que no sentido de um ponto de vista particular sobre algum aspecto da vida. Para mais detalhes sobre o uso de Nietzsche do termo “Perspektive” e suas variações ver Small (2001, pp. 57-58) e Dellinger (2009, pp. 266-267).
25 (NIETZSCHE, 1996, p. 19, grifo do autor).
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Este pode ser considerado um dos raros trechos das obras iniciais em que Nietzsche utiliza o
termo “perspectivístico” em referência a ideia de uma estética da vida, isto é, a ideia de que a vida,
assim como os valores, somente pode ser significada por completo se for considerada a capacidade
plural da criatividade inerente a cada ponto de vista ou perspectiva, cada uma a seu próprio modo,
como na arte. Somente a partir dos escritos da década de 1880 é que o termo é mais comumente
utilizado nesse sentido. Como em um trecho de Humano, demasiado humano, obra em que a
primeira parte foi inicialmente publicada em 1878 e cuja versão final foi publicada em 1886, e que
apresenta a ideia de que somente o “perspectivístico” pode ser considerado um parâmetro para
decidir juízos de valor.
“Devias tornar-te senhor sobre ti, senhor também sobre tuas próprias virtudes. Antes eram elas teus senhores; mas só podem ser teus instrumentos ao lado de outros instrumentos. Devias obter poder sobre teus prós e contras e aprender a entendê-los, a desprendê-los e tornar a prendê-los conforme teus fins superiores. Devias aprender a conceber o perspectivístico de toda estimulativa de valor – o deslocamento, distorção e teleologia aparente dos horizontes e de tudo aquilo que pertence ao perspectivístico; e também a parte de estupidez referente a valores opostos e a toda a penitência intelectual com que se faz pagar todo pró, todo contra. Devias aprender a conceber a injustiça necessária de todo pró e contra, a injustiça como indissociável da vida, a vida mesma como condicionada pelo perspectivístico e sua injustiça. Devias, antes de tudo, ver com teus olhos onde a injustiça é sempre a maior de todas: ou seja, ali onde a vida está desenvolvida ao mínimo, mais estreito, mais carente, mais incipiente, e no entanto não pode impedir-se de se tomar como fim e medida das coisas e por amor de sua conservação destroçar secreta e mesquinha e incessantemente o superior, maior, mais rico, e, pô-lo em questão: devias ver com teus olhos o problema da ordenação hierárquica, e como potência e direito e envergadura das perspectivas crescem juntos em altura. Devias...” – basta, o espírito livre sabe doravante a que “tu deves” ele obedeceu, e também o que ele agora pode, o que somente agora lhe – é permitido...26
Também em outros trechos desse período, dessa vez da obra A gaia ciência, publicada em
1882, no parágrafo 354 Nietzsche escreve:
O homem inventor de signos é ao mesmo tempo o homem que é sempre mais agudamente consciente de si mesmo; é apenas como um animal social que o homem aprendeu a se tornar consciente de si mesmo [...] Fundamentalmente nossas ações são de maneira incomparável totalmente pessoais, únicas e absolutamente individuais – não há dúvidas sobre isso; mas tão logo nós as traduzimos na consciência, elas não parecem mais sê-lo... Isto é propriamente o fenomenalismo e perspectivismo assim como eu o entendo: a natureza da consciência animal envolve a noção de que o mundo do qual podemos nos tornar conscientes é apenas um mundo superficial e simbólico, um mundo generalizado e vulgarizado; – que tudo que se torna consciente se torna apenas ralo, escasso, relativamente estúpido, – uma generalização, um símbolo, uma característica do rebanho; que com a evolução da consciência, sempre existe associada uma grande perversão radical, falsificação,
26 (NIETZSCHE, 1999b, pp. 67-68, grifo do autor).
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superficialização e generalização. Finalmente, a crescente consciência é um perigo, e quem vive entre os europeus mais conscientes sabe até que é uma doença.27
E no parágrafo 374 ele escreve:
Saber quão longe o caráter da perspectiva da existência se estende, ou se a existência tem algum outro caráter, se uma existência sem explicação, sem “sentido”, não se torna apenas “absurdo”, se, por outro lado, toda existência não é essencialmente interpretativa – essas questões, como é certo e apropriado, não podem ser determinadas, mesmo pela análise mais diligente e severamente consciente e autoexame do intelecto, porque nesta análise o intelecto humano não pode evitar se ver de outra forma do que se ver sob suas próprias perspectivas, e somente nelas. Nós não podemos ver ao virar da esquina: é uma curiosidade sem esperança querer conhecer que outros modos de intelecto e de perspectiva poderiam existir: por exemplo, se algum tipo de ser poderia perceber o tempo para trás, ou alternadamente para frente e para trás (pelo qual outra direção da vida e outra concepção de causa e efeito seriam dadas). Mas eu acho que nós estamos hoje pelo menos longe da ridícula imodéstia de decretar a partir do nosso recanto que só pode existir perspectivas legítimas desse recanto. O mundo, pelo contrário, tornou-se mais uma vez “infinito” para nós: até agora nós não podemos lhe recusar a possibilidade de que ele contém infinitas interpretações. Mais uma vez o grande horror nos apreende: – mas quem desejaria imediatamente divinizar mais uma vez esse monstro de um mundo desconhecido à moda antiga? E talvez adorar a coisa desconhecida como o “deus desconhecido” no futuro? Ai! Existem muitas possibilidades ímpias de interpretação compreendidas neste desconhecido, de interpretá-lo com o demônio, com a estupidez ou com a loucura – como nossa própria maneira humana, demasiada interpretação humana, que conhecemos...28
Nesses parágrafos Nietzsche realiza uma analogia entre a “perspectiva” no sentido das artes
visuais e o “perspectivismo” no sentido de uma estética da vida. Ele utiliza o termo “perspectivismo”
para criticar uma espécie de superposição de perspectivas ou visões criadas pelos indivíduos sobre o
mundo objetivo, em que uma determinada perspectiva do pensamento pode se sobrepor em
relação às outras perspectivas. Contudo, para Nietzsche não deve haver uma perspectiva destacada
capaz de explicar o mundo objetivo, mas várias perspectivas ou metáforas que podem explicar as
características do mundo. Ele está preocupado com o parâmetro da perspectiva clássica, em que
uma determinada perspectiva do indivíduo ou de grupos apresenta-se como único eixo central e
norteador da realidade objetiva. Ele rejeita a perspectiva racionalista clássica da ciência e da
metafísica devido a isso.
Nietzsche também realiza uma reflexão sobre a defesa exagerada de uma perspectiva, para
expor sua própria visão sobre o “Ser” e o “conhecimento”, refutando fervorosamente a
supervalorização e preponderância da perspectiva socrática e platônica que, segundo ele, dominou
toda a tradição intelectual do ocidente. É importante destacar que o perspectivismo em Nietzsche
27 (NIETZSCHE, 1924, pp. 298-299, grifo do autor, tradução nossa). 28 (NIETZSCHE, 1924, pp. 340-341, grifo do autor, tradução nossa).
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considera integralmente todas as capacidades sensíveis do corpo, não somente as capacidades
intelectuais da mente. Assim, pode-se dizer que Nietzsche tenta superar a predominância da
perspectiva realista em que conhecer é se apropriar da verdade do mundo objetivo tal como ele é.29
Ele também refuta a predominância do idealismo, isto é, a defesa exacerbada da perspectiva de que
a existência do mundo objetivo é dependente de uma mente que o pense.30 Não há, pois, na
perspectiva nietzschiana, um caráter determinado, uno, imóvel, etc., mas uma concepção de “Ser”
heraclitiana, na qual a vida é um processo constituído por várias forças que se relacionam. Não
existe, portanto, uma “fórmula” ou padrão capaz de descrever toda a pluralidade da vida.31 Isso é o
que garante um aspecto de perspectiva que cada potência pode realizar.
No que diz respeito ao caráter prescritivo e epistemológico, que caracteriza boa parte das
teorias do conhecimento, Nietzsche não pretende afirmar ele próprio um tipo de teoria do
conhecimento, como um “perspectivismo epistemológico”. Aparentemente sua meta ao utilizar o
termo “Perspektivismus” não foi prescrever tipos e aplicabilidades do conhecimento racional, mas
problematizar a supervalorização da metafísica, da ontologia, do racionalismo, etc. Poderia dizer
também que sua perspectiva epistemológica seria centrada no sujeito, que por motivos históricos
possui certa inclinação em valorizar uma perspectiva específica. Neste sentido, para Nietzsche uma
perspectiva é apenas uma força entre tantas outras que existem na vida, por isso que as faculdades
epistemológicas não podem se desprender da relação entre as individualidades. Cada
individualidade tem sua participação na construção de um conhecimento sobre a vida. Portanto, se
possível fosse reduzir a perspectiva epistemológica de Nietzsche a uma descrição, poderia ser dito
que sua perspectiva está muito próxima de um pluralismo epistemológico.32 Pois, “a medida do
29 (NIETZSCHE, 1996, p. 91-96). 30 (NIETZSCHE, 2003, p. 21). 31 (NIETZSCHE, 1968, p. 335, tradução nossa). 32 O pluralismo epistemológico, também conhecido como pluralismo metodológico ou ainda pluralismo teórico, é uma perspectiva
epistemológica cujos adeptos dizem que qualquer conhecimento sobre o mundo deve admitir, por contraste, várias concepções distintas para que o conhecimento possa representar de maneira mais completa o mundo. Um dos adeptos dessa perspectiva é Feyerabend, quando escreve “que um cientista que deseja maximizar o conteúdo empírico das concepções que sustenta e compreendê-las tão claramente quanto lhe seja possível deve, portanto, introduzir outras concepções, ou seja, precisa adotar uma metodologia pluralista [...] Concebido dessa maneira o conhecimento não é uma série de teorias autoconsistentes que converge para uma concepção ideal; não é uma aproximação gradual à verdade. É, antes, um sempre crescente oceano de alternativas mutuamente incompatíveis, no qual cada teoria, cada conto de fadas e cada mito que faz parte da coleção força os outros a uma articulação maior, todos contribuindo, mediante esse processo de competição, para o desenvolvimento de nossa consciência. Nada jamais é estabelecido, nenhuma concepção pode jamais ser omitida de uma explicação abrangente” (FEYERABEND, 2011, p. 46, grifo do autor). Dessa forma, cada momento da história da ciência é igualmente importante se for considerado o aumento no conhecimento humano, porque alguém se contrapôs a uma regra ou padrão estabelecido. Desejar que o conhecimento científico produza padrões e conceitos fechados é entender mal como o conhecimento científico se desenvolve. É importante ressaltar que o ato de defender uma perspectiva pluralista sobre o conhecimento não significa apresentar a defesa de um padrão no sentido de uma teoria cristalizada sobre o conhecimento. Aqui, acredita-se em poder estabelecer a analogia da perspectiva pluralista com a perspectiva de Nietzsche sobre o conhecimento na medida em que ambas parecem sugerir uma rejeição à chamada tese da
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desejo de conhecimento depende da medida em que a vontade de poder cresce em uma espécie:
uma espécie apreende uma certa quantidade de realidade para se tornar mestre dela, para
pressioná-la a seu serviço”.33
A filosofia do conhecimento de Nietzsche deve considerar tanto a parte ontológica de uma
perspectiva, a perspectiva da vida, quanto a outra gnosiológica, a perspectiva do conhecimento, pois
a construção do conhecimento deve considerar a interpretação trágica da vida. Conhecer é construir
realidades por meio da interpretação, em uma interação com a vida. Trata-se do “perspectivismo
necessário em virtude do qual todo centro de força – e não apenas o homem – constrói todo o resto
do mundo a partir de seu próprio ponto de vista, isto é, mede, sente, forma, de acordo com sua
própria força”.34 Significa dizer que todo conhecedor é de certa maneira artista quando constrói
modelos de interpretação da realidade. Toda forma de saber é capaz de construir um aspecto da
realidade, inclusive o racionalismo socrático que Nietzsche tanto critica. Pois, o que Nietzsche critica
não é a perspectiva socrática em si, mas a supervalorização exacerbada e hierárquica dessa
perspectiva em relação às demais, ou seja, o que Nietzsche rejeita é a defesa exacerbada de uma
perspectiva sobre a realidade em detrimento de outras perspectivas. Quando uma perspectiva sobre
a realidade busca o domínio de uma visão sobre a realidade e desconsidera a importância de outras
visões sobre a realidade, ela se torna fechada à crítica e ao conflito com outras. Assim, o pluralismo
de interpretações sobre a realidade não pode ser estimulado, mas negado. Com tal caráter de
domínio e estabelecimento de uma ordem de pensamento e ação, o humano passou a ter uma
vontade irresistível ao conhecimento e a dominação, ou seja, à “verdade”.
No mundo ocidental a tradição científico-filosófica difunde a ideia de que o conhecimento
não pode ser entendido como corpo, plástico. Isso nada mais é que “a tradução da vontade de
potência/poder manifesta em seu aspecto decadente, doentio, fraco”.35 Para Nietzsche, o corpo é a
perspectiva da vida, isto é, espírito, espaço, tempo – tudo é corpo. O saber trágico e dionisíaco pode
criar uma realidade condizente com a finitude do ser humano e com sua “experiência estética de
mundo, uma experiência única e singular, como é a vida de cada vivente”.36
Assim, ao que parece, o perspectivismo de Nietzsche não se trata de uma substituição do
conhecimento cientifico-filosófico-ocidental pelo conhecimento trágico, como se fosse a proposta
estabilidade ou da invariância semântica, sustentada pelos positivistas e pela ciência tradicionalista, de que as teorias científicas apresentam uma linguagem neutra, conceitual e capaz de ser universalizada.
33 (NIETZSCHE, 1968, p. 267, tradução nossa). 34 (NIETZSCHE, 1968, p. 339, tradução nossa). 35 (MARINS, 2008, p. 137). 36 (MARINS, 2008, p. 137).
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de Nietzsche estabelecer uma tradição ou uma outra teoria sobre o conhecimento. Mas, da
aceitação da condição “finita, limitada, sensível do homem em sua criadora singularidade, com uma
‘alegria dionisíaca’ do participar da vida em toda sua tragicidade originária”.37
O saber trágico representa a perspectiva geral, que considera o pluralismo de interpretações
sobre a vida e a realidade. O perspectivismo não busca uma imagem de conhecimento fechada e
cristalizada. A sua perspectiva é a vida. Significa que é o sujeito que se compreende como parte da
pluralidade da vida. Ele considera a unidade da pluralidade, por isso não se separa do objeto. O saber
trágico é, em certo sentido, a estética do mundo objetivo.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O “perspectivismo” de Nietzsche bem que poderia ser mais levado em consideração pelos
debates contemporâneos da filosofia da ciência, sobretudo aqueles que se ocupam com os temas
da imposição de padrões à comunidade científica e da noção de verdade. Pois, o “perspectivismo” é
uma forma de “saber trágico”, que melhor representa a “vida”, capaz de ser aplicado, por analogia,
ao processo de desenvolvimento do conhecimento científico. Além disso, em Nietzsche a noção de
“verdade” deixa de ser compatível com a noção de “vida”. Portanto, expressões nietzschianas como
“tragédia”, “saber trágico”, “vida” e “perspectivismo” podem, nesse sentido, ser úteis para a filosofia
da ciência. Se para Nietzsche a “vida” é também “tragédia” – desacordo, desarmonia, temor,
dilaceramento, dualidade e crueldade – não podendo, por isso, ser reduzida a um conceito, então
em sua perspectiva o impulso à “verdade” tem como finalidade uma consolidação de um conceito
sobre a realidade, o que anula a pluralidade de interpretações ou perspectivas, pluralidade
necessária, segundo Nietzsche, para haver qualquer conhecimento sobre a vida. Assim, uma
analogia entre o perspectivismo de Nietzsche e a construção do conhecimento científico permite
considerar que a construção do saber científico precisa desconsiderar a noção de “verdade” e
considerar todas as perspectivas individuais dos cientistas – a ciência não deve buscar verdades, mas
metáforas ou perspectivas sobre a “vida”. Essa contribuição de Nietzsche aos debates recentes em
filosofia da ciência apresenta a ideia de que a noção de “verdade” deixa de ser compatível com a
noção de “vida”, de maneira que a construção do conhecimento científico, que melhor representa a
“vida”, possa ser melhor desenvolvida pelo perspectivismo.
37 (MARINS, 2008, p. 138).
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Não se trata de desconsiderar completamente o empirismo. Pois o empirismo é capaz de
oferecer intuições fundamentais para a ciência natural. No entanto, quando o empirismo é colado à
noção de verdade como correspondência aos fatos sugere-se um problema, ao considerar uma
percepção empírica um conceito científico e não uma perspectiva científica. A legitimidade da
experiência sensorial deve ser considerada, assim como as múltiplas perspectivas devem ser
consideradas para explicar o surgimento de teorias e métodos por meios experimentais.
Caso os filósofos da ciência desconsiderem a pluralidade de percepções científicas sobre um
mesmo determinado aspecto da realidade eles mesmos tornarão incompreensíveis a própria
confiabilidade científica, uma vez que é com base na comparação e no conflito de perspectivas que
as teorias científicas se desenvolvem. Anularão, ainda, qualquer refutação ou crítica e quaisquer
procedimentos de investigação científica porque a história mostra que a ciência é, essencialmente,
uma história de conflitos. Todos os atores da ciência buscam se prevenir contra as percepções
errôneas que porventura apareçam e tal prevenção pressupõe uma consideração dos testes
experimentais, mas também do conflito com outras teorias, percepções, métodos e interesses. Caso
contrário, o pensamento científico estaria fadado ao dogmatismo, a mera reprodução do mesmo,
não ao conhecimento genuinamente crítico e mutável.
Levando em consideração a refutação de uma autoridade ou exclusividade de qualquer
tradição de pesquisa, uma vez que a supervalorização das tradições de pesquisa racionalistas e
empiristas propostas pela ciência tradicionalista necessitem ser totalmente rejeitadas, é preciso
oferecer alguma alternativa epistemológica à ciência, uma alternativa epistemológica capaz de
considerar a diversidade de tradições de pesquisa sem discriminação partidária. Assim, parece ser o
perspectivismo – enquanto uma forma de pluralismo científico – uma excelente alternativa
epistemológica para substituir a supervalorização de tradições de pesquisa em detrimento de outras
– de qualquer tradição de pesquisa científica – e coibir o tradicionalismo capaz de supervalorizar um
ideal em detrimento de outro. Pois, a ciência parece ser constituída de uma pluralidade de tradições
de pesquisa.
Assim, destaca-se a grande relevância do pensamento de Nietzsche para a filosofia da
ciência, conforme a sua noção de perspectivismo: não há desenvolvimento do conhecimento
científico dirigidos por uma única regra teórica ou uma única metodologia, mas várias. Nietzsche
parece estar convencido de que a epistemologia sendo operada por regras fixas e universais, de
modo a sugerir um padrão, seria um contrassenso, uma vez que qualquer representação completa
sobre o que é a vida necessariamente precisa considerar a pluralidade de perspectivas ou pontos de
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vista sobre a vida. E a necessidade de contrapor perspectivas é exatamente o que permite o
desenvolvimento do conhecimento pelo conflito. Nesse sentido, a preponderância do racionalismo
científico frente a outras perspectivas é, segundo ele, injustificável.
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HISTORICISMO
MODERNO E FILOSOFIA DA HISTÓRIA:
INTERPRETAÇÕES DE JOVEM NIETZSCHE
Nara Lívia Timbó de Oliveira1
RESUMO: O historicismo moderno, que tem como marca a filosofia da história hegeliana, pensa a história como eterno desenvolvimento da razão e da Providência, sem possibilidade de algo fora do âmbito histórico. Segundo Nietzsche, o modo de pensar a história acaba justificando a própria época como resultado do processo universal, invertendo a origem do verdadeiro conhecimento. Para o filósofo, o saber verdadeiro não se encontra no progresso da história, mas é gestado na própria vida criadora. O método histórico cataloga todos os acontecimentos, dando a entender que tudo o que é possível já foi realizado e põe como conhecimento verdadeiro da vida dos homens. O problema, na visão nietzschiana, é que não há qualquer validade num saber que paralisa a vida humana. PALAVRAS-CHAVE: Historicismo. Filosofia da História. Modernidade. MODERN HISTORICISM AND HISTORY’S PHILOSOPHY: YOUNG NIETZSCHE'S INTERPRETATIONS ABSTRACT: Modern historicism, that is marked by the philosophy of Hegelian history, thinks of history as an eternal development of reason and the Providence, without the possibility of anything outside the historical scope. According to Nietzsche, the way of thinking about history ends up justifying the time itself as a result of the universal process, inverting the origin of the true
1 Bacharel em Filosofia pela UECE – Universidade Estadual do Ceará. Email: [email protected].
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knowledge. For the philosopher, true knowledge is not found in history’s progression, but is born in the creative life itself. The historical method catalogs all events, implying that everything that is possible has already been accomplished and puts it as true knowledge of the lives of men. The problem, in the Nietzschean view, is that there is no validity to a knowledge that paralyzes human life. KEYWORDS: Historicism. Philosophy of History. Modernity.
Introdução à modernidade: historicismo e filosofia da história
Segundo Abbagnano (2007), o historicismo pode ser compreendido por três linhas de
pensamentos diferentes, sendo o absoluto aquele que caracteriza a modernidade. Ela possui como
base a “crença fundamental numa filosofia da história que tivesse por finalidade a explicação do
processo histórico, suas vicissitudes e seu devir, como algo que obedece a uma lei universal” (LIMA,
2011, p. 27). No historicismo absoluto, expresso na filosofia da história hegeliana, a realidade é
compreendida na sua relação com o desenvolvimento da razão. De acordo com Hegel, tal
desenvolvimento caracteriza a ciência filosófica, que contém em si todas as ciências, pois “o todo da
filosofia constitui, pois, verdadeiramente uma ciência; mas ela pode ser vista também como um
todo de muitas ciências particulares” (HEGEL, 1995, p. 56). Nesse sentido, não há nenhum
conhecimento fora do âmbito da ciência filosófica.
Segundo Hegel, “o que é racional é real e o que é real é racional [...]. Com efeito, o racional,
que é sinônimo da Ideia, adquire, ao entrar com a sua realidade na existência exterior, uma riqueza
infinita de formas, de aparências e de manifestações” (HEGEL, 1997, p. XXXVI). Tais manifestações
da racionalidade são as ciências não-filosóficas, como a história. As ciências contidas na filosofia se
desenvolvem de forma recíproca com a razão, de modo que seus momentos coincidem e
direcionam-se ao mesmo fim. Na história, tal realização é expressa no processo de tomada de
consciência da liberdade (HEGEL, 2008, p. 25). Tal processo é regido pelo princípio lógico-racional
que, na história, toma caráter de Providência:
Vale dizer, que o mundo não foi abandonado ao acaso e a causas externas aleatórias, mas que é regido por uma Providência [...]. Então, a verdade que uma Providência divina preside os acontecimentos universais equivale ao princípio citado, pois a Providência divina é a sabedoria que, com um poder infinito, concretiza os seus objetivos, isto é, o objetivo absoluto e racional do mundo: a razão é o pensar livre e determinante de si mesmo (1999 apud LIMA, 2011, p. 32).
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Segundo a visão historicista hegeliana, todos os acontecimentos históricos não são frutos da
aleatoriedade do devir, mas da necessidade do princípio da Providência. A vida dos povos é
interpretada de acordo com esse princípio e seu desenvolvimento necessário. A realização da
história, nesse sentido, é compreendida segundo os graus de consciência da liberdade, tal como
afirma Hegel:
A verdade e o destino das ideias concretas dos espíritos dos povos residem na ideia concreta que é a universalidade absoluta. Esse é o Espírito do mundo. Em volta do seu trono, os povos são os agentes da sua realização, testemunhas e ornamentos do seu esplendor. Como espírito, é ele o movimento da atividade em que a si mesmo se conhece absolutamente, se liberta da forma da natureza imediata, se reintegra em si mesmo, e, deste modo, os princípios das encarnações desta consciência de si no decurso da sua libertação, que são impérios históricos, são quatro (HEGEL, 1997, p. 312).
Nesse processo de desenvolvimento do princípio da Providência e da razão na história, que
tem sua divisão de momentos segundo a sucessão dos quatro impérios históricos, a liberdade é
compreendida como elemento central. Os impérios históricos são momentos onde os povos tomam
cada vez mais consciência da sua libertação, pois, para Hegel, todos os homens são livres (HEGEL,
2008, p. 25), mas nem em todos os momentos da história houve consciência dessa liberdade. Em
certos períodos da história, ela foi compreendida como algo abstraído da maioria dos homens.
Somente no império germânico a liberdade foi tomada conscientemente como universal, pois “só
as nações germânicas, no cristianismo, tomaram consciência de que o homem é livre como homem,
que a liberdade do espírito constitui a sua natureza mais intrínseca” (HEGEL, 2008, p. 24).
O fim da história, marcado pelo alcançar da autoconsciência e da liberdade absoluta, é
entendida sob diversos aspectos da vida prática, tais como o Estado, com a consolidação do império
germânico, e a religião, com a consolidação do cristianismo. Estes aspectos são, apesar de distintos,
compreendidos como um mesmo fim, pois “na história universal tudo convergiu para esse objetivo
final; todos os sacrifícios no amplo altar da Terra, através dos tempos, foram feitos para esse
objetivo final” (HEGEL, 2008, p. 25). Para que a história tenha alcançado tal nível de
desenvolvimento, as eras anteriores são necessárias e interdependentes, visto que é por meio da
atividade humana que se produz a liberdade no mundo (HEGEL, 2008, p. 26). Os homens, ao longo
das eras, agiram de modo a tomarem consciência de sua liberdade. De acordo com o filósofo, a
liberdade é instaurada por uma organização que visa o coletivo. Acerca disso, Lima comenta:
Segundo ele, Estado é uma cultura ou civilização organizada em torno da liberdade. Liberdade não no sentido de uma licença individual, mas de uma organização permeada pela coletividade. Assim para ele, a história seria impossível sem a existência de um Estado organizado (HEGEL, 1999, p. 39). Nessa concepção, o Estado seria a comprovação do sucesso na história comprovada pelo avanço do direito e da justiça na Modernidade. Assim,
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a história universal seria determinada por uma ideia que através do tempo se realiza de forma necessária, objetiva e progressiva. Seu escopo seria o próprio fim da história. Esse processo teria uma racionalidade cedida pela Providência (LIMA, 2011, p. 28).
Nesse sentido, é possível afirmar que a filosofia da história hegeliana é caracterizada pela
crença no progresso histórico, sob regência da Providência, que tem como fim a liberdade universal.
A vida dos povos nessa perspectiva histórica é compreendida como momentos de concreção da
liberdade, que reenviam ao regimento das instituições do Estado, do cristianismo e das vontades
humanas. A Germânia, por ser aquele que alcançou a universalidade, é, no julgar do filósofo, o mais
justo dos Estados e por isso cabe ao império germânico o papel de tribunal de toda a história dos
povos (HEGEL, 1997, p. 307). O homem livre, segundo Hegel, é aquele que não sente pressionado ao
agir de acordo com as imposições estatais, pois tudo que ele almeja fazer enquadra-se nas leis e
necessidades do Estado.
O pensamento nietzschiano acerca do historicismo segue uma via oposta ao historicismo
hegeliano. Nietzsche pensa a história como acontecimentos sem fim em si. Além disso, não cabe ao
presente o julgamento do passado, visto que não há nenhum processo que fundamente que o grau
de justiça atual é mais elevado que o de eras passadas. A crítica nietzschiana sobre o historicismo e
a filosofia da história hegeliana fundamenta-se no argumento de que não há progresso na história.
Essa noção, associada ao cristianismo possui valores que, segundo Nietzsche, limitam a vida
humana, tornando os indivíduos passivos ao presente.
Schopenhauer como influência na perspectiva histórica nietzscheana
Desde seu primeiro escrito, Fatum e história, Nietzsche identifica o cristianismo e a ciência da
história como elemento paralisante da vida humana, pois estes incutem nos homens costumes e
preconceitos que não possibilitam a livre interpretação dos acontecimentos históricos. O
historicismo vigente na modernidade, que tem maior expressão na filosofia da história de Hegel,
reenvia ao problema da via única de interpretação dos acontecimentos históricos, onde estes são
compreendidos segundo o princípio da Providência.
Consideramos que a Segunda Consideração Extemporânea não é a primeira crítica genuína ao
historicismo, mas é onde tal crítica adquire maior profundidade. Em Fatum e História, tal crítica é
expressa pelos apontamentos acerca do cristianismo e da ciência histórica. Na Segunda
Consideração, ela é aprofundada nas análises que o filósofo realiza sobre a cultura da modernidade,
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marcada pela filosofia hegeliana. Daí Nietzsche não desvincular a crítica ao seu tempo com a crítica
ao pensamento de Hegel. Acerca da crítica nietzschiana a tal pensamento, Lima reforça o alerta de
Gérard Lebrun:
É de fundamental importância considerarmos as palavras de Gerard Lebrun com relação à crítica nietzschiana ao hegelianismo. Segundo ele, a Segunda Intempestiva não apresenta uma interpretação detalhada da filosofia de Hegel. Nela podemos encontrar o esboço de uma compreensão original realizada por Nietzsche acerca da história hegeliana. Na verdade, “é através da polêmica anti-hegeliana de Schopenhauer que Nietzsche aprende a conhecer Hegel, certamente a aspiração cristã da filosofia dialética não poderia impressioná-lo” (LIMA, 2011, p. 32).
Nesse sentido, a crítica que Nietzsche realiza acerca do historicismo e da filosofia da história
hegeliana não é isenta de influências, sendo uma delas de Arthur Schopenhauer. A recusa do filósofo
à concepção positivista da ciência implica em uma noção particular de história, que diverge
radicalmente do historicismo absoluto de Hegel. Para Schopenhauer, a ciência moderna, com seu
método sistemático com fundamento em princípios racionais, acreditou conceber seus resultados
como explicação completa acerca do real. O filósofo critica todas as ciências porque, em sua
compreensão, não é possível a elas alcançar a essência do existente e, nesse sentido, as ciências
trazem apenas a ilusão de atingir uma compreensão completa do todo. Acerca disto, Schopenhauer
afirma:
Toda ciência no sentido próprio do termo, compreendida como conhecimento sistemático guiado pelo fio condutor do princípio da razão, nunca alcança um alvo final, nem pode fornecer uma explicação completa e suficiente, porque jamais toca a essência mais íntima do mundo, jamais vai além da representação (SCHOPENHAUER, 2015, p. 33).
A compreensão do conceito de razão de Schopenhauer é inconciliável com a de Hegel, que a
pensa como estrutura ontológica do real. Ramos comenta que “para Schopenhauer, a razão é a
faculdade de formar conceitos e constitui a segunda forma do princípio de razão, aquela que rege as
representações abstratas” (RAMOS, 2008, p. 30). A forma que a racionalidade é entendida por
Hegel, segundo Schopenhauer, conduz à ilusão, pois uma faculdade não pode conduzir ao real em
seu sentido mais abrangente.
Ao que se refere ao tratamento científico da história, Schopenhauer também tem uma
posição distinta daquela de sua época. O filósofo afirma que “a história, tomada em sentido estrito,
é sem dúvida um saber, mas não uma ciência” (SCHOPENHAUER, 2015, p. 74), pois sua
universalidade não corresponde a um princípio, mas a uma “visão panorâmica dos principais
períodos, dos quais, porém, não se podem deduzir eventos particulares” (SCHOPENHAUER, 2015,
p. 74). A história, nesse sentido, não pode ter caráter científico, pois ela “conhece apenas o
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particular, o indivíduo e não o universal. Os universais que ela constrói – períodos, épocas, mudanças
de governo etc. – são meramente subjetivos” (RAMOS, 2008, p. 39-40).
Historicismo hegeliano como limitador da vida
A influência schopenhaueriana à crítica que Nietzsche realiza ao historicismo e à filosofia da
história de Hegel nos parece clara, pois ambas são fundamentadas na crítica à ciência moderna, que
acredita atingir o conhecimento do real ao proceder de acordo com um princípio racional, e na
impossibilidade de a história conter em si a universalidade. Acerca disto, Nietzsche afirma:
Em outras ciências, a universalidade é o mais importante, uma vez que ela contém em si as leis: se a frase por nós mencionada valesse como uma lei, então se teria de recrutar que o trabalho historiográfico desapareceria; pois o que sobra de verdade na frase, com a retirada do resto obscuro e indissolúvel, sobre o qual falamos, é algo conhecido e trivial; pois ocorre a todos na pequena esfera da experiência. Por isso, o incômodo de povos inteiros e anos de trabalho exaustivo nada significaram, nas ciências naturais, senão o acúmulo de experimento atrás de experimento (NIETZSCHE, 2014, p. 92).
Nietzsche compreende que a visão hegeliana da história se trata de um esforço de encaixar
cada acontecimento histórico num todo. Esse esforço, segundo o filósofo, é ilusório, na medida em
que a história não possui caráter universal, não deriva de qualquer princípio e seus acontecimentos
não são frutos de uma necessidade. Segundo Schopenhauer e Nietzsche, a universalidade é algo
posto à história, e não inerente a ela, tal como defende Hegel. O percurso da história é construído
pelo devir e, portanto, não segue princípios e não contém em si quaisquer leis. Não é intrínseco à
história qualquer relação de causa e efeito, nem finalidade e, portanto, não há como conduzi-la a
liberdade.
Como vimos, Hegel põe que “o Estado se confirma a partir da consciência coletiva de
liberdade” (LIMA, 2012, p. 31) e, nesse sentido, o império germânico é o mais livre, pois alcançou a
liberdade em graus tão elevados que conseguiu consolidar um Estado. Nietzsche rejeita tal
perspectiva, na medida que ele não identifica liberdade no Estado. Acerca disto, Lima comenta:
Destarte, a crítica de Nietzsche ao hegelianismo parte justamente de sua atribuição a uma finalidade absoluta para a história do mundo. Em seus fragmentos póstumos, bem como ao longo de toda sua trajetória filosófico-literária, Nietzsche deixa bem claro que seria um absurdo falar de um fim para a história universal, uma vez que não somos senhores do mundo e não sabemos nada sobre o acaso. As ideias de Estado, povo e processo universal tal como preconizava Hegel, transgridem a responsabilidade do indivíduo de criar e fazer valer sua vontade de vida, uma vez que depositam suas forças na perspectiva de tais Instituições. O Estado tira do homem a crença e a convicção de que ele é mais importante do que os meios que asseguram a sua existência, de forma que o deixa cada vez mais dependente (LIMA, 2012, p. 32).
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Nesse sentido, Nietzsche rejeita a filosofia hegeliana, na medida em que ela põe a
autoconscientização da liberdade como dependente da consolidação do Estado germânico cristão.
Tal consolidação é resultado da ação humana ao longo de quatro eras, onde estas veem pensadas
cronologicamente como necessárias para a finalidade da história. Como comenta Karl Jaspers, a
noção nietzschiana de era não corresponde a períodos históricos em ordem cronológica, mas à
apreciação valorativa (JASPERS, 2016, p. 327). Essa apreciação diz respeito às possibilidades de
criação de vida. Nietzsche identifica apenas um período histórico onde há apreciação valorativa: a
era grega. Acerca disto, Jaspers comenta:
Por mais que sentenças ocasionais sobre fenômenos da Renaissance, dos primórdios germânicos, do Império Romano apresentem uma ligação semelhante, elas são sempre instantâneas e prescindem de uma exposição mais ampla; essa exposição de toda a sua vida passa a identificação originária de possibilidades próprias com as possibilidades gregas (JASPERS, 2016, p. 327).
Para Nietzsche, a noção de quatro eras da filosofia da história hegeliana é equivocada, pois
somente a era grega trouxe possibilidades à vida dos homens. A visão de quatro eras, sendo a última
a germânica, traz consigo limitações das possibilidades de vida, pois traz consigo a ideia de que o
tempo presente é necessariamente o mais erudito e justo por ter, em sua cultura, toda a antiguidade
da história. Além disto, o historicismo hegeliano põe o homem em uma situação na qual parece que
não há possibilidades de se fazer algo novo, pois, com o fim da história, tudo já foi realizado. Acerca
disto, Nietzsche comenta:
Chamou-se essa história hegeliana da marcha de Deus sobre a Terra; um Deus, por sua vez, que é criado pela história. Mas esse Deus se tornou, no interior da cabeça hegeliana, transparente e compreensível, superando todos os estádios dialéticos possível de seu devir, até sua autorrevelação: de sorte que, para Hegel, o ápice e o fim último do processo universal coincidem em sua própria existência berlinense. Aliás, ele deveria dizer que todas as coisas que viriam depois dele deveriam ser avaliadas como uma coda musical do rondó da história universal, ou, de forma mais apropriada, como supérfluas. Isso ele não disse: ele plantou nas gerações por ele fomentadas a admiração pelo “poder da história”, que envolve praticamente todo instante na admiração nua do desfecho e conduz à idolatria do factual (NIETZSCHE, 2014, p. 114).
Nesse sentido, o desenvolvimento da história identifica-se com a consolidação do
cristianismo, pois tanto em sua filosofia quanto no pensamento cristão, alcançar a Providência
significa ter o conhecimento em seu sentido mais amplo e elevado. A realização da história, segundo
pensamento hegeliano, significa chegar à Providência, o que garante aos homens modernos o
conhecimento absoluto. Esse conhecimento, para Hegel, torna os germânicos mais justos e capazes
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de julgar o passado. Nietzsche entende que tal compreensão justifica a busca exacerbada pelo
conhecimento objetivo da história, além de se tratar de “delírio [que] torna os homens ou a sua
época, a cada dia, piores, ou seja – nesse caso, injustos” (NIETZSCHE, 2014, p. 85), pois o
conhecimento objetivo não dá ao homem nenhuma virtude da justiça. Para o filósofo, o julgamento
feito pelo homem moderno é injusto, pois ele avalia os acontecimentos de acordo com a ideia de
que “escrever de acordo com sua época significa ser justo” (NIETZSCHE, 2014, p. 89). Sobre isto,
Nietzsche afirma:
Esses historiadores ingênuos chamam de “objetividade” medir as opiniões e os fatos passados a partir das opiniões difundidas no momento; aqui eles encontram o cânone de toda verdade: seu trabalho é ajustar o passado à trivialidade atual [...]. Não poderia mesmo subjazer, no sentido mais elevado da palavra objetividade, uma ilusão? (NIETZSCHE, 2014, p. 89)
Nesse sentido, a perspectiva historicista da modernidade vinculada ao cristianismo é
limitadora da vida humana. O conhecimento objetivo da história não traz liberdade, tal como
pensava Hegel, mas traz a ilusão de ser livre e justo ao analisar o passado a modo de adequá-lo aos
parâmetros do presente. Nietzsche, desde Fatum e história, descreve de que modo a relação que os
homens têm com a história os tornam limitados em pensamentos e ações, além de introduzir uma
mentalidade conformista com o seu tempo. Na Segunda Consideração, o filósofo expõe o
entrelaçamento entre essa relação e a filosofia da história de Hegel. O pensamento hegeliano se
apresenta como justificativa da relação doentia entre os homens e a história. Acerca disto, Nietzsche
coloca:
Acredito que não houve, neste século, nenhum abalo ou mudança perigosa na cultura alemã que não se tenha tornado algo mais perigoso através do efeito, descomunal e até hoje influente, desta filosofia, da filosofia hegeliana. Na verdade, paralisante e mortificante é a crença de ser um rebento tardio de sua época: mas ela deve parecer terrível e destrutiva quando um dia essa crença, através de uma guinada atrevida, idolatra esse rebento como o verdadeiro sentido e fim de todos os acontecimentos anteriores, quando sua miséria erudita é igualada à consumação da história universal. Essa forma de consideração acostumou os alemães a falar sobre o “processo universal” e a justificar sua própria época como o resultado necessário do processo universal (NIETZSCHE, 2014, p. 113).
Portanto, os problemas do homem moderno apontados por Nietzsche, em seu primeiro
escrito, ganham, na Segunda Extemporânea, um diagnóstico mais profundo, pois o sentido histórico
da modernidade encontra-se justificada na ideia de processo universal hegeliano. Nietzsche, assim
como Schopenhauer, critica essa perspectiva diante da história por ser uma visão cientificista. O
caráter científico não cabe à história, pois ela não é regida por nenhum princípio e a universalidade
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não a pertence de modo intrínseco. Nesse sentido, a história não tem em si qualquer universalidade
ou finalidade.
Nos parece que o filósofo interpreta a modernidade como um período iludido, pois tudo que
a caracteriza não passa de ilusão do conhecimento, da liberdade e da justiça. Para Nietzsche, a
filosofia hegeliana acentua a doença histórica da modernidade. Nessa enfermidade, os homens
buscam excessivamente o conhecimento dos acontecimentos históricos e apropriam-se desses
eventos como característicos de sua personalidade.
REFERÊNCIAS:
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio. São Paulo: Loyola, 1995. ______. Filosofia da História. Brasília: Editora Universitária de Brasília, 2008. ______. Princípios da filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1997. JASPERS, Karl. Introdução à filosofia de Friedrich Nietzsche. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2016. LIMA, Márcio José Silva. Nietzsche e a crítica ao historicismo: uma análise a partir da relação entre história e vida na segunda consideração intempestiva. 2012. 89 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Filosofia, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2012. NIETZSCHE, Friedrich. Fatum e História. In: SOBRINHO, Noéli Correia de Melo (org.). Escritos sobre história. São Paulo: Edições Loyola, 2005. ______. II Consideração Intempestiva sobre a utilidade e os inconvenientes da História para a vida. In: SOBRINHO, Noéli Correia de Melo (org.). Escritos sobre história. São Paulo: Edições Loyola, 2005. ______. Sobre a utilidade e a desvantagem da história para a vida. São Paulo: Hedra, 2014. RAMOS, Flamarion Caldeira. A “miragem” do absoluto – Sobre a contraposição de Schopenhauer a Hegel: Crítica, Especulação e Filosofia da Religião. 2008. 252 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Filosofia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008. SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação, 1º tomo. São Paulo: Editora Unesp, 2015.
Nietzsche e Wittgenstein: o atomismo lógico e a impossibilidade de universalização, pp. 495-511
Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274 495
NIETZSCHE E WITTGENSTEIN: O
ATOMISMO LÓGICO E A IMPOSSIBILIDADE DE
UNIVERSALIZAÇÃO Leandro Maciel de Lira1
Mayara Rocha de Sousa2
RESUMO: O presente artigo tem por finalidade apresentar o tema da Linguagem em dois grandes filósofos: Friedrich Nietzsche (1844 - 1900) e Ludwig Wittgenstein (1889 - 1951), explicando como cada um desenvolveu sua percepção da Linguagem na Filosofia. Sabendo que a Linguagem é uma temática de bastante realce em diversas áreas do conhecimento, na Filosofia ela ganhou destaque especificamente no final do século XIX, para início do Século XX. Wittgenstein, mesmo não sendo o primeiro a tematizá-la, teve grande relevância no ingresso da Linguagem na Filosofia, no que tange a sua filosofia inicial, isto é, inserida em seu Tractatus Logico-Philosophicus. O Jovem Wittgenstein defendia a linguagem enquanto representação do mundo; ou seja, que cada sentença corresponde a um fato do mundo, por meio de um isomorfismo lógico. Já no que tange a Nietzsche, uma vez inserido em uma filosofia da diferença, ele se propõe filosofar a golpes de martelo, como uma rejeição à proposta filosófica de universalização. Por ser uma metáfora, segundo Nietzsche, a Linguagem não pode abarcar universais e exaurir em conceitos os objetos do mundo. PALAVRAS-CHAVE: Linguagem. Nietzsche. Wittgenstein.
1 Mestrando em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará – UFC. E-mail: [email protected]. 2 Mestranda em Filosofia pela Universidade Federal Do Ceará – UFC. E-mail: [email protected].
Nietzsche e Wittgenstein: o atomismo lógico e a impossibilidade de universalização, pp. 495-511
Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274 496
NIETZSCHE AND WITTGENSTEIN: LOGICAL ATOMISM AND THE IMPOSSIBILITY OF UNIVERSALIZATION ABSTRACT: The goal of this article is to present Language in the point of view of two great philosophers: Friedrich Nietzsche (1844 – 1900) and Ludwig Wittgenstein (1889 – 1951), explaining how each of them developed their own perception of Language in philosophy. Knowing that Language is the most important theme on many knowledge areas, in philosophy, Language was specifically highlighted at the end of the XIX Century, to the beginning of the XX Century. Although not being the first one to thematize it, Wittgenstein had a big relevance on the admission of Language in Philosophy, in reference of its initial philosophy, that is inserted on his Tractatus Logico-Philosophicus, The Young Wittgenstein indorsed language as world representation; in other words, that means that each sentence corresponds to a world fact through means of a logical isomorphism. In regards to Nietzsche, that can be inserted on a philosophy of difference, he proposes a hammer philosophy that rejects the proposal of philosophical universalization. For being a metaphor, according to Nietzsche, Language can not cover universal and exhaust in concepts the objects of the world. KEYWORDS: Language. Nietzsche. Wittgenstein.
1 O percurso da linguagem na filosofia
A linguagem3 tem uma função primordial nos problemas filosóficos, principalmente nas
discussões do século XX, que tem, a partir da linguagem, uma nova possibilidade de crítica à
metafísica, como bem defende o positivismo lógico. A problemática da linguagem no final do século
XIX e início do século XX tende a se encontrar no centro das questões linguísticas e lógicas, e a
mesma envolve questões sobre proposições, significados e, principalmente como ocorre o
funcionamento da linguagem e sua relação com o mundo.
Para Penco (2006, p. 22-23), “O ponto de partida para uma nova atenção aos equívocos da
linguagem comum se encontra em Gottlob Frege, que - como Aristóteles - vê na lógica um
instrumento útil para esclarecer confusões conceituais”. Gottlob Frege4 (1848-1925) foi um dos
3 Para mais informações acerca da importância da linguagem para a filosofia ver: HACKING, Ian. Porque a linguagem interessa a filosofia? São Paulo: Editora da UNESP, 1999. 4Frege tinha como intuito principal proporcionar uma fundamentação para a aritmética, apoiando-se na lógica. Ele considerava que as palavras desenlaçadas não possuíam significação, a elas só poderia ser atribuída significação se as mesmas estivessem em uma proposição. Para Frege, pois, é a sentença que se caracteriza como a unidade mínima linguística. Ou seja, as palavras seriam o suporte, ou melhor, o alicerce para a construção das sentenças, assim, uma palavra só adquiriria sentido no contexto de uma proposição. O autor, ao tentar fundamentar a aritmética, foi levado a se debruçar sobre novas discussões, relacionadas às expressões linguísticas. Ele percebeu que havia problemas relacionados à insuficiência expressiva da linguagem, ou seja, a mesma se mostrava incapaz de atender as expectativas que estavam postas, principalmente quando se lidava com questões complexas. Para mais informações acerca do projeto analítico da linguagem produzido por Frege ver: FREGE, Gottlob. Conceitografia: uma linguagem formular do
Nietzsche e Wittgenstein: o atomismo lógico e a impossibilidade de universalização, pp. 495-511
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grandes autores que trabalhou a filosofia da linguagem com um grande aparato lógico, até porque
o mesmo dedicou sua vida à matemática e à lógica, porém, mesmo que indiretamente, forneceu
suas contribuições à filosofia da linguagem.
Mesmo que essa temática tenha ganhado vida com Frege, essas reflexões já surgiram muito
antes, na antiguidade, mais especificamente com Platão, em suas obras Crátilo, Teeteto e o Sofista.
Segundo Manfredo Oliveira (1996, p. 58), Frege se deu ao trabalho de refazer o diálogo tradicional
do ocidente (que remonta a Platão) entre filosofia e matemática nos tempos modernos […]. Sendo
assim, é bem nítido que a problemática da linguagem na modernidade reflete perspectivas que
surgiram desde a antiguidade, e a novidade se encontra no modo de (re)pensar5 a linguagem na
modernidade.
Iniciaremos com Wittgenstein, que já se insere em uma tradição analítica da linguagem,
tendo em sua filosofia uma ampliação e apropriação de determinadas teses que o antecederam,
como as de Gottlob Frege e Bertrand Russell, que foram seus antecessores filosóficos e figuras
cruciais para o desenvolvimento das teses que vão sustentar seu trabalho. Posteriormente, iremos
tratar da filosofia de Nietzsche, que se coloca, como diria Vattimo, numa filosofia da diferença, ao
invés de abraçar o idêntico como centro do pensamento filosófico. Nessa perspectiva, Nietzsche
propõe uma filosofia do martelo como rejeição à proposta filosófica de universalização
empreendida pela filosofia.
Nietzsche, por sua vez, através da filologia e da profunda crítica a esta, abraça o campo da
linguagem de forma profunda e não sistemática. Pondo os dedos nas feridas da má interpretação
do mundo, Nietzsche dispara contra tudo o que é tido como certo na linguagem e rasga as escaras
desse campo (NIETZSCHE, 2007, p. 25), revelando uma linguagem fictícia, em vez de factual
(NIETZSCHE, 2007, p. 27) e uma estrutura metafórica do mundo, no lugar de um real conhecimento
dos objetos (NIETZSCHE, 2007, p. 32), conforme pretenderam os filósofos ao longo de toda a
história da filosofia.
pensamento puro decalcada sobre a da aritmética. Introdução, Tradução e Notas de Paulo Alcoforado, Alessandro Duarte e Guilherme Wyllie. Rio de Janeiro: PPGFIL-UFRRJ, 2018. 5 (Re)pensar a linguagem, porque a mesma já foi tratada anteriormente, por outro viés. A diferenciação se daria porque a filosofia analítica tem uma maneira de pensar e fazer filosofia fundamentada na Linguagem, ou seja, essa deixa de ser um instrumento de comunicação e passa a ser a própria constituidora do real. Diferentemente, pois, do modo como a história da filosofia a tratara, ela encara como problema a natureza da linguagem, como bem coloca Paulo Roberto Margutti: “Ao adotar a análise das expressões como tarefa básica da filosofia, os pensadores contemporâneos que adotam o método analítico produzem uma nova guinada nos rumos do pensamento ocidental, desta vez de caráter lingüístico, porque substituem a pergunta cartesiana sobre o conhecimento por uma outra, relativa à linguagem.” (MARGUTTI PINTO, 2002, p. 02). O nome é Filosofia Analítica pois, como bem acentua Paulo Margutti em seu artigo O método Analítico em Filosofia (São Paulo: 2002), analítico no sentido de decomposição, e de fazer análise. E quando vem a ser trabalhado em filosofia é articulado com a análise das expressões linguísticas, trazendo a linguagem como centro do problema.
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No que tange aos universais, percebendo e acusando a insalubridade da linguagem, ao
tratar das coisas do mundo, Nietzsche denota em seus escritos uma filosofia combativa que nega a
possibilidade de conhecimento desses universais (NIETZSCHE, 2012, p. 223), por estarem eles na
esteira da criação arbitrária dos termos da linguagem, passando longe da evidenciação lógica da
realidade finita, eterna e agônica que é o mundo. Assim, a consciência humana “ocasiona que o
mundo de que podemos nos tornar conscientes seja só o mundo generalizado e vulgarizado”
(NIETZSCHE, 2012, p. 223). Nessa proposta os universais decairiam de um estatuto lógico
importante para algo acusado por Nietzsche (2012, p. 223) como “raso, ralo, relativamente tolo,
geral, signo, marca de rebanho, corrupção, falsificação e generalização” de tudo o que é
sumariamente singular e individual.
2 Wittgenstein e a linguagem enquanto espelho do mundo
Wittgenstein, sendo um dos grandes autores do século XX, contribuiu significativamente
para os avanços filosóficos de seu século, mais especificamente com sua concepção pictórica da
linguagem. Em sua única obra publicada em vida, o Tractatus Logico-Philosophicus, ele vai afirmar
logo em seu prefácio (2008, p. 131) que: “O livro trata dos problemas filosóficos e mostra – creio eu
– que a formulação desses problemas repousa sobre o mau entendimento da lógica de nossa
linguagem”. Para o jovem Wittgenstein não existem problemas filosóficos genuínos, isto é, os
problemas filosóficos se resumem apenas ao problema da má compreensão de nossa linguagem.
A partir disso, se fizermos uma leitura do Tractatus priorizando a perspectiva lógica6, que é
a ideia aceitável – ao menos na maioria – por boa parte dos críticos, concluiremos que sua temática
principal (se é que se pode chamar assim7) é a Linguagem. O esquema conceitual do Tractatus é
bastante amplo, tratando de diversas temáticas que acabam por se modificar ao avançar dos
aforismos do texto.
O autor do Tractatus defende uma linguagem enquanto representação/espelho do mundo,
isto é, ele expõe a sua teoria da figuração afirmando que existe uma conexão entre a linguagem e o
6 Essa perspectiva é defendida por boa parte dos críticos, e um exemplo claro foi Bertrand Russell, o qual, ao introduzir o Tractatus, atentou-se apenas para a dimensão lógica-semântica exposta na obra. Porém, há quem defenda que a partir da “economia interna do Tractatus e da própria vida e convicções de Wittgenstein quando escreveu seu primeiro livro, a dimensão ética ali parece ser a mais fundamental” (CONDÉ, 2004, p. 75). 7 Conforme salienta Donald Peterson em sua obra Wittgenstein’s Early Philosophy (1990, p. 06): “However the Tractatus does not in this sense have a centre: it does not have a main argument, a primary premise, or a principal conclusion”. Isto é, a obra de Wittgenstein não contém um centro argumentativo principal.
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mundo, permitindo que os enunciados de nossa linguagem possam espelhar os objetos no mundo.
Para tanto, o Jovem Wittgenstein defende que a Lógica é o ponto chave para que haja esse
entrelaçamento entre linguagem e mundo. A lógica se estabelece (no sentido de que desde Frege a
lógica tomou o centro das discussões filosóficas, ou seja, tudo tem que ser regido por uma dimensão
lógica) no centro do fundamento, embora, não só a lógica, mas a semântica e a ontologia.
Wittgenstein partirá da premissa de que há uma lógica que permite que a linguagem seja
capaz de espelhar a realidade, isto é, uma forma lógica correspondendo a um princípio ontológico
que subjaz o mundo e a linguagem. Além de ser um pressuposto radical, esta forma lógica será o
fundamento do argumento de Wittgenstein, no qual ele deixa bem expresso no Tractatus:
O que a figuração deve ter em comum com a realidade para poder afigurá-la à sua maneira – correta ou falsamente – é a sua forma de afiguração. (Tractatus, 2.17) O que toda figuração, qualquer que seja sua forma, deve ter em comum com a realidade para poder de algum modo – correta ou falsamente – afigurá-la é a forma lógica, isto é, a forma da realidade. (Tractatus, 2.18).
Assim sendo, fica claro a importância da forma lógica, que consiste na condição de
expressividade do mundo. Todavia, essa forma lógica não é cognoscível no âmbito de nossas
percepções, pois nosso modo de apreendê-la não é através de nossa capacidade cognoscível, visto
que esta é pertencente à categoria dos fatos, enquanto aquela, tratada por Wittgenstein, é categoria
pertencente às coisas8.
Acerca dos fatos, os mesmos são de extrema importância para uma figuração do mundo,
eles compõem a ontologia9 que está inserida no Tractatus. Já no início de seu Tractatus, Wittgenstein
afirma:
O mundo é tudo o que é o caso (Tractatus, 1.0) O mundo é a totalidade dos fatos, não das coisas (Tractatus, 1.1).
Os aforismos de abertura da obra já estabelecem a função dos Fatos em relação ao mundo,
ou seja, os Fatos (em sua totalidade) são o próprio mundo, porém, de um modo complexo. Perceba
que complexo aqui diz respeito aos fatos como captamos através de nossa capacidade cognoscível,
isto é, da forma como eles se apresentam no próprio mundo. Como citado acima, o mundo é
composto por fatos, e por serem todos os fatos. Os fatos complexos são, segundo Hans-Johann
Glock (1996, p. 158) “[...] o que torna verdadeiras as proposições, quando assim elas são”. Levando
8 Como bem acentua Wolfgang Stegmuller, A Filosofia Contemporânea (1977, p. 404), “esse campo de percepção divide-se em fatos mais simples. E as coisas singulares e atributos só aparecem como elementos nos fatos mais simples”. 9 Cabe-nos ressaltar que a ontologia tractatiana consiste em uma ontologia atomística, ao ponto que o complexo vai remontar a algo simples no final de sua decomposição.
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em consideração essa ontologia atomística, as proposições complexas estão no topo da estrutura.
Estando no ponto mais alto, significa que os fatos complexos são decomponíveis, e a partir dessa
decomposição notamos do que são constituídos, neste caso, do nosso segundo grupo de análise, os
fatos atômicos.
Por fato atômico entende-se uma união articulada de objetos, que vai designar a
possibilidade de ocorrência de algo. Um fato atômico10 constitui uma combinação única de objetos,
ou seja, é quando esses, articuladamente entre si, se unem e formam um fato atômico. Como fica
expresso no Tractatus:
Num estado de coisas os objetos se concatenam, como elos de uma corrente (Tractatus, 2.03). Num estado de coisas os objetos estão uns para os outros de uma determinada maneira (Tractatus, 2.031). A maneira como os objetos se vinculam no estado de coisas é a estrutura do estado de coisas.(Tractatus, 2.032). Os estados de coisas são independentes uns dos outros (Tractatus, 2.061).
Observando a importância dos estágios anteriores, chegamos à substância do mundo, isto
é, a unidade indecomponível a qual Wittgenstein assume no plano ontológico para tornar possível
seu projeto: os objetos. Os objetos são caracterizados como unidades mínimas do mundo ou, como
acentua Peterson (1990, p. 16), “constituintes básicos do mundo”. O autor austríaco vai definir os
objetos do seguinte modo:
O objeto é simples (Tractatus, 2.02) Os objetos constituem a substancia do mundo. Por isso não podem ser compostos (Tractatus, 2.021).
Desde o início de seus trabalhos, Wittgenstein dá ênfase à noção de objeto, pois os mesmos
são o fundamento para que haja a possibilidade da representação, ou seja, “[...] o objeto tractatiano,
enquanto categoria lógica, constitui-se no fundamento que fornece as condições de possibilidade
para se estruturar a realidade [...]” (CONDÉ, 1998, p. 70).
Podemos dizer que os objetos têm como características a imutabilidade e a
indestrutibilidade, que são indispensáveis para haver mudanças no mundo (pelos diferentes
rearranjos que fazem entre si), mas também para permitir a constituição de tudo o que existe. Toda
mudança que possa ocorrer na realidade é derivada do arranjo e da separação de objetos.
10 Cabe ressaltar que se faz necessário haver uma distinção entre fatos atômicos positivos e fatos atômicos negativos. Os positivos fazem menção ao que realmente ocorre; já os negativos não, mesmo que logicamente possíveis eles são inexistentes no plano factual.
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Já do que diz respeito à semântica presente em seu trabalho, Wittgenstein acreditava que
os nomes, tais como os objetos (para a ontologia), constituem os elementos mínimos (da
semântica). São indecomponíveis e indestrutíveis, características essas necessárias para que haja
uma construção de todas as nossas proposições. Os sinais primitivos da semântica são definidos por
Wittgenstein do seguinte modo:
Chamo esses elementos de sinais simples (Tractatus, 3.201). Os sinais simples empregados na proposição chamam-se nomes (Tractatus, 3.202). O nome significa o objeto. O objeto é seu significado (A é o mesmo que A) (Tractatus, 3.203). O nome substitui, na proposição, o objeto (Tractatus, 3.22).
Desse modo, o nome está na proposição para substituir o objeto, e se equipara ao elemento
mínimo do mundo (Tractatus, 3.22/3.26). O nome é o que vai ser capaz de espelhar o objeto no
campo semântico e, por se tratar de um sinal simples e primitivo, o mesmo não incorre em
decomposição.
Wittgenstein só admitiria sentido aos nomes simples a partir do momento que estivessem
inseridos em uma proposição11, ele defende que o fato de o nome não estar articulado em uma
proposição e não poder exprimir algo de verdadeiro ou falso é o que o faz não ser dotado de sentido.
A articulação de nomes entre si constituirá o que chamamos de proposições elementares,
e no que cabe a elas, as mesmas são formadas pela união articulada de nomes, isto é, de unidades
mínimas sem sentido no campo semântico. A noção de proposição, no pensamento do Jovem
Wittgenstein, carece ser distinguida (tal qual a noção de fato) em duas categorias: 1) Proposições
Complexas (que será a temática a ser tratada posteriormente); e 2) Proposições elementares (que
são o objeto de discussão desta etapa).
No processo de união articulada dos nomes – os sinais primitivos –, no campo semântico,
há também a ocorrência de mudanças no sistema. Uma dessas mudanças seria o fato do nome
poder representar algo no mundo, embora o nome tenha saído de um campo significativo onde ele
não apresente sentido. Como bem nos coloca Wittgenstein “Só a proposição tem sentido; é só no
contexto da proposição que um nome tem significado” (Tractatus, 3.3).
Uma proposição elementar é o tipo básico de proposição, mesmo em se tratando de um
tipo simples, a mesma pode ser decomposta em sinais menores que, como já foi estabelecido, são
11 Como bem aponta nos Cadernos de 1914-1918 (2004, p. 18-19): “O nome não é uma imagem do nomeado!”, “Como pode uma palavra ser verdadeira ou falsa? Em todo caso, não pode exprimir um pensamento que concorda ou não com a realidade. Este tem de ser articulado!”), “uma palavra não pode ser verdadeira ou falsa, no sentido de que não pode concordar com a realidade, ou com o contrário”.
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os nomes. As proposições elementares, tal como os estados de coisas atômicos (que são as
categorias do mundo às quais elas irão corresponder), devem carregar a característica de
representar algo possível. Não cabe às proposições fazer menção a algo que já exista, porém, é a sua
função deter apenas a possibilidade de referir-se a algo que possa existir (ou que possa não existir
faticamente).
As proposições elementares, que, por sua vez, são as unidades mínimas com sentido na
linguagem, como já foi exposto anteriormente, são o ponto de conexão para a representação, e para
a formação das proposições complexas. Mas o que seriam as proposições complexas? Essas, pode-
se dizer, são as proposições nas quais se faz menção aos fatos complexos da ontologia atomística, e
mais, são as proposições compostas pela união articulada de proposições elementares. Isto é, como
nos escreve Wittgenstein nos Cadernos 1914-1916 (2004, p. 63): “A proposição é a medida do
mundo”.
Para o jovem Wittgenstein, as proposições elementares12 têm a necessidade de poder
referir, isto é, têm uma necessidade lógica, tendo em vista que tem de haver um ponto final na
análise das proposições complexas. Elas também são independentes umas das outras, pois, caso
não fossem, não iriam compor a unidade última com sentido, seriam apenas mais uma articulação
de proposições complexas.
Cada etapa, anunciada anteriormente, tem um papel crucial para a compatibilidade entre
linguagem e mundo. Ambos os polos: semântica e ontologia têm a mesma estrutura, e a mesma
quantidade de elementos para que seja possível a representação. Enquanto um objeto no mundo
está para um signo primitivo na linguagem, há um fato atômico correspondendo a uma proposição
elementar. Sendo assim, como foi expresso no início deste trabalho, iremos responder a questão
que procrastinamos: Como a linguagem corresponde ao mundo?
Wittgenstein vai dizer que
A proposição constrói um mundo com a ajuda de uma armação lógica, e por isso pode-se muito bem ver na proposição como está, se ela for verdadeira, tudo que seja lógico. Pode-se tirar conclusões de uma proposição falsa (Tractatus, 4.023).
O autor do Tractatus vai dizer que a proposição é um modelo da realidade (Tractatus, 4.01),
ou seja, uma representação (claro que não pode ser idêntica ao próprio mundo, porque se fosse tal
12Segundo Glock (1996, p. 292): “Essa exigência foi alimentada pela ideia de que as proposições moleculares são funções de verdade de proposições elementares, o que pressupõe que, em uma tabela de verdade, a cada proposição elementar se possa associar um valor de verdade independentemente dos valores atribuídos às demais proposições elementares”.
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e qual seria o próprio mundo, e não uma representação deste). A proposição fará um paralelismo,
no polo ontológico, com os fatos.
Wittgenstein, além de nos informar que a proposição é um modelo da realidade (Tractatus,
4.01), incluiu outra afirmação no mesmo aforismo que diz: “A proposição é o modelo da realidade
tal como a pensamos”. Isto é, o ato de pensar está relacionado com o sentido da proposição em
relação ao mundo. Ou melhor, como coloca Werner Spaniol (1989, p. 42): “é o nosso pensamento
que dá vida ao signo proposicional, tal como se apresenta na escrita ou na fala”13.
Como se percebe acima, ambos contêm a mesma quantidade de elementos em cada polo,
cada elemento da linguagem corresponde a outro no mundo. Mas onde se encontra a forma lógica
estabelecida por Wittgenstein como chave para o espelhamento?14 Como bem colocou Fernando
Baptista em sua obra O Tractatus e a Teoria Pura do Direito, para que a linguagem represente o
mundo requer que se utilize da forma lógica, que representa a chave capaz de fazer com que um
represente o outro, isto é, o andaime lógico é o que vai proporcionar à linguagem representar o
mundo, pois a mesma subjaz o mundo e a linguagem.
3 A linguagem como metáfora e ficção em Nietzsche
A discussão filosófica acerca do campo da linguagem não é novidade na história da filosofia,
especialmente porque desde os gregos antigos foi feita uma profunda reflexão sobre a possibilidade
de alcance da linguagem em relação aos objetos do mundo. Desde Parmênides, levantando a
questão da definição do ser e da possibilidade de suas explicitações ou desvelamentos, até os
sofistas, com a questão do discurso e do relativismo nele impregnado, uma revoada de reflexões
sobre a linguagem pôde ser constatada.
Mais tarde, já em Platão, há uma séria preocupação em saber o que a linguagem expõe ou
esconde quando se refere a algo. Na Idade Média, Agostinho trata dessa discussão com uma
entonação pedagógica e essencialista. O nominalismo e o realismo, enquanto correntes de
pensamento medievais, abordam a possibilidade de extensão da linguagem e a sua efetivação no
pensamento e no objeto. Posteriormente, na Modernidade, racionalistas, empiristas,
contratualistas e o criticismo, ao investigar questões como a possibilidade e origem do
13 Wittgenstein também vai acentuar no Tractatus que “O signo proposicional, empregado e pensado, é o pensamento” (Tractatus, 3.5). 14 Wittgenstein vai perceber o mundo da seguinte forma: “Concebe o mundo como a totalidade dos fatos, não de coisas, o Tractatus sustenta o isomorfismo entre o mundo e a linguagem, que resulta na teoria da afiguração, onde os fatos e suas representações proposicionais identificam-se como manifestação da mesma forma lógica (BAPTISTA, 2004, p. 84).
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conhecimento e da sociedade, também detiveram grande parte do seu tempo dedicando-se a
analisar o impacto e a importância que teria a linguagem para a formação dos campos supracitados.
Em relação à contemporaneidade, pomos em evidência o pensamento nietzschiano acerca
da linguagem. Longe de enciclopedismo ou de exíguos tratados sobre o tema, Nietzsche faz toda
uma análise do modo de viver no ocidente e denuncia uma filosofia da decadência e da fraqueza,
cuja base se assenta sobre os ensinamentos do cristianismo, sobre a produção artística de emoções
comedidas na Alemanha, como também em grande parte da Europa de sua época, e sobre um
demasiado frenesi da filosofia na busca de um conhecimento permanente, uma verdade universal e
uma linguagem generalizadamente fidedigna, arrogando a exatidão através da conformidade com
o mundo externo ao indivíduo.
Aquela audácia ligada ao conhecer e sentir, que se acomoda sobre os olhos e sentidos dos homens qual uma névoa ofuscante, ilude-os quanto ao valor da existência, na medida em que traz em si a mais envaidecedora das apreciações valorativas sobre o próprio conhecer. Seu efeito mais universal é engano – todavia, os efeitos particulares também trazem consigo algo do mesmo caráter (NIETZSCHE, 2007, p. 27).
Filólogo por formação, Nietzsche adentra os meandros das discussões acerca da linguagem,
impelido pela onda de valorização que atingia a área em questão nessa época (séc. XIX). Estando
professor da Basileia (1869 - 1879), levantou questões fundamentais acerca da moral, da verdade, e,
na sua extensa produção acadêmica, fomentou discussões importantes sobre a linguagem pela
necessidade de elaboração da sua obra sobre verdade e mentira no sentido extramoral, muito
embora, devido à sua estilística plural de escrita (aforismos, ditirambos), sempre o tema da
linguagem apareça de forma não sistemática.
A questão central, além da origem, é, para o filósofo, compreender os limites e as
possibilidades aos quais a linguagem se sujeita, a fim de dizer algo acerca do que está para além ou
aquém do indivíduo. Até que ponto, por exemplo, um termo, uma expressão, uma palavra ou um
signo são capazes de direcionar o intelecto humano na rota da compreensão, interpretação e
mesmo do conhecimento? De que trata uma palavra? Seria uma referência material? Seria um
conteúdo formal puro? A descrição dos nomes seria intuitiva ou meramente arbitrária? Como pode
ter surgido aquilo que denominamos linguagem?
Escrevendo para além de um nominalismo ou realismo, Nietzsche se propõe investigar e
sacudir os fundamentos do que era compreendido como linguagem ou como convicção acerca dos
signos e significados em seu contexto. Ao assegurar que a linguagem, através da palavra e da
comunicação, não é capaz de dizer nada sobre as coisas, em seu escopo mais individual possível, o
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filósofo da Basiléia está denotando que só é possível a palavra e a linguagem como um meio de
conservação da espécie, tornando-se gregária, pelo fato de dirimir o indivíduo em prol do grupo.
[...] E mais até: como ficam aquelas convenções da linguagem? São talvez produtos do conhecimento, do sentido de verdade: as designações e as coisas se recobrem? Então a linguagem é a expressão adequada de todas as realidades? Somente por esquecimento pode o homem chegar a imaginar que detém uma verdade no grau ora mencionado (NIETZSCHE, 2007, p. 30).
O homem, inventor de signos (NIETZSCHE, 2012), está impulsionado de forma abrupta a se
comunicar para poder lançar mão de um mapeamento do mundo e dos que estão à sua volta. Uma
necessidade unicamente comunitária velada pelo arbítrio imemorial dos primeiros homens que
precisaram se agrupar. Em ‘sobre verdade e mentira no sentido extramoral’, Nietzsche cava mais
fundo em busca dessa questão e expõe um certo esquecimento dessa necessidade que o homem
tem de criar a linguagem por falta de defesas estruturais do seu próprio corpo (garras, presas
afiadas, esqueleto forte).
Rememorando a máxima latina de que a palavra seria mero flatus vocis15, o pensador em
questão lembra que a inadequação da palavra se dá ao passo que o indivíduo arbitrariamente
desembainha uma determinação de nomes a partir da relação que ele próprio tem com as coisas,
utilizando metáforas como muletas para o pseudoconhecimento do mundo e a isso denominando
linguagem.
Ele (o indivíduo) designa apenas relações das coisas com os homens e, para expressá-las se serve da ajuda das mais ousadas metáforas. De antemão um estímulo nervoso transposto em uma imagem! Primeira metáfora. A imagem, por seu turno, remodelada em um som! Segunda metáfora (NIETZSCHE, 2007, p. 32).
Externa ao mundo, antinatural e, por conseguinte, artificial, a linguagem é um artífice, um
engenho tal que, servindo à comunicação e à manutenção do rebanho, o próprio indivíduo se vê
engendrado em meio a forças titânicas, a partir das quais pensa ter controle, e por meio de leis,
decorrentes da linguagem mesma, pensa descrever, prescrever e dominar o formato das forças
agônicas do âmbito da natureza.
Isso se dá, segundo o autor, pelo fato de o próprio sujeito ter se esquecido do quanto a
linguagem é pura criação arbitrária e, portanto, em vistas da realidade do mundo, a linguagem é
externa a ele, alcançando, no máximo, um patamar de ficção. Assim, temos que...
A natureza acomodou o homem em flagrantes ilusões. Eis seu elemento próprio. Ele vê formas e, em vez de verdades, sente estímulos. Sonha e imagina para si homens divinos como sendo a natureza. O homem tornou-se acidentalmente um ser que conhece, por meio da
15 Do lat.: sopro de voz.
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união não intencional de duplas qualidades. Algum dia ele desaparecerá e nada terá acontecido (NIETZSCHE, 2007, p. 73).
Essa tentativa de superação da natureza se dá primariamente pela dominação do espaço
através da linguagem. A vida no rebanho depende disso. Assim, toda exposição contra o discurso da
identidade e da similaridade ilusórias é tida como inconsequente e inverídica. A linguagem, na sua
natureza fictícia e metafórica, semeia confiança no rebanho e a crença convicta de que tudo o que
se diz sobre o mundo, disposto em leis, termo, signos e significados, é perfeitamente factível e
comprovável através dos sentidos, da razão e da intuição.
4 Da impossibilidade de universalização
A filosofia proposta por Nietzsche se coloca como uma filosofia da diferença. Nessa
composição, todas as tentativas de universalização e nivelamento de conceitos se tornam, segundo
o filósofo em questão, uma mera disposição e imposição da linguagem às coisas, de modo que, por
esse caminho, quando se esclarece um conceito ou quando se descobre e se afirma a evidência de
generalidade em relação ao conhecimento do que quer que seja, aí sim está se afirmando a forma
metafórica e externa da linguagem, dos termos, dos símbolos em relação ao que está disposto no
mundo.
Acreditamos saber algo acerca das próprias coisas, quando falamos de árvores, cores, neve e flores, mas, com isso, nada possuímos senão metáforas das coisas, que não correspondem, em absoluto, às essencialidades originais (NIETZSCHE, 2007, p. 33).
Nesse espectro, discorrer sobre a filosofia da diferença significa explanar sobre o quanto a
linguagem é insuficiente para falar das coisas do mundo e o quanto ela passa distante das
particularidades e da pluralidade que o real carrega consigo.
Combatendo a tradição filosófica, que sempre pretendeu manter a abrangência do discurso
e a retórica mais universalmente válida possível, Nietzsche se põe a filosofar com o martelo, noutras
palavras, ele se propõe a derrubar todos os ídolos construídos pelo próprio ser humano em torno
dos universais, desconstruir a pretensão de universalização da filosofia dita clássica e afirmar como
característica da investigação filosófica o perspectivismo e o pluralismo, sem desconsiderar a
radicalidade e o critério na lida com os temas e debates filosóficos. Somente por meio de uma
composição agônica, ou seja, por meio do embate da pluralidade de pensamento e do
perspectivismo em relação às infinitas possibilidades de discursos é que se pode filosofar de forma
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séria, deixando de lado o dogmatismo, o relativismo e principalmente a metafísica, sendo que esta
última talvez esteja já imbricada em todo modo de discussão e operacionalização do fazer filosofia
no ocidente. Com isso, a metafísica, que passou a dar o tom essencialista/substancialista ao discurso
filosófico, começa agora a minguar ou mesmo a desaparecer ante a perspectiva de uma realidade
plural e inominável. Disso também decorre a perda de todas as garantias de segurança em relação
à séria busca de um conhecimento que pretenda a validade ou mesmo verdade universal.
Se, na Idade Média, o nominalismo chegou a afirmar a impossibilidade de os nomes estarem
essencialmente agregados às coisas, agora, a partir do perspectivismo e do pluralismo do discurso e
da escrita nietzschianas, alcançar os universais seria mais uma tarefa inglória e sem ventura a que o
homem se proporia apenas para desfrutar de uma pretensa segurança e da vaidade de um
conhecimento externo aos particulares e supramundano. A essa altura é preciso reconhecer, sem
pesar, a finitude e a pequenez humanas e com isso compreender, sob o consolo do amor-fati, que a
tragicidade da existência humana está em tentar conhecer o que é universal e sempre se deparar
com metáforas, metonímias e antropomorfismos.
Poderemos ainda, em especial, sobre a formação dos conceitos: toda palavra torna-se de imediato um conceito, à medida que não deve servir, a título de recordação, para a vivência primordial completamente singular e individualizada à qual deve seu surgimento, senão que, ao mesmo tempo, deve coadunar-se a inumeráveis casos, mais ou menos semelhantes, isto é, nunca iguais quando tomados à risca, a casos nitidamente desiguais, portanto. Todo conceito surge pela igualação do não-igual (NIETZSCHE, 2007, p. 35).
Assim, o xeque-mate de Nietzsche em relação aos universais se dá à medida de que se
deflaciona a metafísica, fazendo uma profunda crítica às possíveis causas fundantes e últimas de
todas as coisas. Nesse ponto, abaladas as condições de fundamentação do real, aplica-se o
dinamismo em que todas as coisas passam a ser e deixam de ser, sem uma necessidade ontológica
que os intersecte. Com a derrocada da metafísica, com a convicção de que a verdade e a linguagem
por primeiro sejam imposição das quais o homem se gaba de ter encontrado a própria criação, a
universalização passa a ser sinal de uma filosofia fraca, da qual se valem os pensadores, no intento
de tornar igual o que não é passível de igualação.
5 Conclusão
A empreitada da filosofia pela busca de verdades últimas e definitivas, tanto quanto pela
necessidade de generalização do que é singular veio, segundo a filosofia nietzschiana, a criar densas
nuvens que impedem enxergar o que é simples e trivial: a verdade é uma vontade potencializada
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pela busca de segurança intelectiva e pelo medo do nada, assim como a universalização da diferença
e da pluralidade é uma necessidade de convencimento de que seja possível ao intelecto humano
perscrutar os mais íntimos recônditos da alma caótica e dinâmica da natureza. Toda essa busca, ora
expressa, seria o “instante mais soberbo, mas ainda assim, apenas um instante, o qual brevemente
será esquecido” (NIETZSCHE, 2007, p. 25).
Com isso, tem-se como argumento a convicção de que a própria natureza não é um substrato
externo e imutável (NIETZSCHE, 2013, p. 20). Não possuindo a natureza sua substancialidade
permanente, as coisas que dela são aprendidas e empreendidas também não o seriam. Assim, não
se conformando com o dinamismo e as intempéries do real e querendo ir de encontro à corrente
irascível e volitiva de si e do mundo, o homem é capaz de criar artífices para tentar mascarar ou
dissimular essa estrutura agônica que é o mundo, realidade na qual o homem está imerso e por mais
que tente não pode conhecê-la nem a fundo nem por completo. Nesse espectro a façanha limitada,
e mais ainda, limitadora, tanto do conhecimento, como da verdade, ou dos universais toma forma a
partir de metáforas e antropomorfismos a que o homem se apega no intuito de arrogar a si o
conhecimento formal e geral das coisas.
Assim, a filosofia de Nietzsche aparece como um arrefecimento dessa necessidade de
verdade e desse frenesi na busca pelo que é universal e, consequentemente, negador da diferença.
A artimanha da produção linguística, por mais elaborada que seja, se depara com tudo o que externo
e passa distante do conhecimento do mundo, uma vez que não consegue e não pode dizer, de forma
eficaz e definitiva, uma palavra ou termo sequer que possa vir a exaurir a definição das coisas e do
próprio ser humano.
Metáforas, antropomorfismos, metonímias ou quaisquer outras figuras de linguagem, não
podem aparecer, em estrito, nem como mera aproximação acerca do que se diz sobre as coisas. Isso
ocorre porque o homem cria um mundo paralelo do qual pode ser senhor e explorar a natureza
fictícia daquilo que ele próprio criou e considerou como algo efetivo e nominável (NIETZSCHE, 2005,
p. 20).
Toda essa filosofia do martelo surge como uma necessidade de dizer o óbvio, necessidade
essa que lembra ao homem a tragicidade da realidade na qual ele mesmo está imerso, e tudo isso
sem uma fuga pitoresca para paisagens que o inspirem segurança conceitual ou descanso sobre o
campo acautelado da verdade e da confiança paralela de uma propriedade universal. Que glória
haveria de ter em encontrar aquilo que o homem mesmo criou e esqueceu-se de onde o tinha
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deixado? Que louros envolveriam a sua coroa na descoberta de uma imposição feita por ele próprio?
De certo, nenhuma.
Nessa exposição é mais do que válida uma tentativa expor a intersecção e ao mesmo tempo
o distanciamento entre Wittgenstein e Nietzsche. Em ambos os autores há pontos
consideravelmente importantes sobre asserções no desenvolvimento, na eficiência e no alcance da
linguagem em relação ao mundo.
Entre os possíveis pontos concordes, apresentamos a crítica ao essencialismo metafísico
presente na linguagem e na filosofia como um todo, desde a antiguidade. Nietzsche critica a
pretensão de o indivíduo conseguir exaurir o ser das coisas pela linguagem, quando na verdade, nem
o consegue tangenciar (MARTON, 2008, p. 187). Wittgenstein, por sua vez, apresenta uma
metafísica mais magra, resguardada não em universalizações inconsequentes, mas na análise lógica
e atomística dos termos que compõem a linguagem, especialmente no Tractatus.
Ambos os pensadores também se aproximam primeiro pelo fato de não terem entrado na
filosofia de modo convencional. Nietzsche a partir da filologia e Wittgenstein a partir da analítica,
puderam de forma séria e criteriosa traçar uma crítica direta e objetiva contra os grandes sistemas
filosóficos vigentes até então. Outra semelhança, que vai além da estilística desenvolvida em
aforismos, é a compreensão do quão importante é o critério para as investigações científicas e
principalmente para a filosofia (MARCONDES, 2008, p. 311).
Por fim, como exposição da diferença entre ambos, vem-nos logo de sobressalto a noção da
linguagem como espelho do mundo. Nietzsche declina de tal proposta, enquanto Wittgenstein a
abraça tenazmente ao elaborar o seu Tratactus. Para um, a linguagem não só é insuficiente, quanto
imprópria para nominar ou determinar o que quer que seja. Para o outro, a linguagem, enquanto
espelho, é capaz de abarcar, ainda que não universalmente nem irrestritamente, um grande número
de coisas que ocorrem no mundo.
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O problema da verdade no jovem Nietzsche: percepção e correspondência na crítica de Maudemarie Clark, pp. 512-523
Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274 512
O PROBLEMA DA VERDADE NO JOVEM
NIETZSCHE: PERCEPÇÃO E
CORRESPONDÊNCIA NA CRÍTICA DE
MAUDEMARIE CLARK Edilson Miranda Junior1
RESUMO: O objetivo deste trabalho é demonstrar a interpretação de Maudemarie Clark sobre o jovem Nietzsche a respeito do escrito Verdade e Mentira no Sentido Extramoral, segundo a qual o motivo das dificuldades atinentes ao conhecimento da verdade estão relacionados a uma teoria representacional da percepção, com influência de Schopenhauer, e uma teoria da correspondência metafísica da verdade; motivo pelo qual a autora conclui que Nietzsche não tem sucesso em destruir o conceito de verdade como correspondência, haja vista que ele necessita desse conceito para dar sentido ao seu próprio texto e evitar que ele se torne autodestrutivo.
PALAVRAS-CHAVE: Verdade. Linguagem. Metáfora. ABSTRACT: This paper intends to demonstrate Maudemarie Clark’s interpretation about the young Nietzsche in the text True an Lie in a Non-moral Sense, according to which the reason for the difficulties relevant for the knowledge about the truth are related to a representational theory of perception, with influence of Schopenhauer, and a metaphysical correspondence theory of truth;
1 Mestre em Filosofia pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFPA.
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reason for what the author concludes that Nietzsche had no success in destruct the concept of truth as correspondence, considering that he needs this concept for give sense to you own text an avoid that it becomes auto destructive. KEYWORDS: Truth. Language. Metaphor.
Introdução
Maudemarie Clark é uma autora pouco conhecida no Brasil, provavelmente porque apenas
um de seus dois livros publicados está traduzido para o português2. Na obra não traduzida, Nietzsche
on Truth and Philosophy, de 1991, ela faz uma leitura diferenciada a respeito do tema “verdade” em
Nietzsche, abordando o desenvolvimento dessa ideia em todas as fases do pensador alemão. Neste
artigo, importa a interpretação que a mesma faz do Nietzsche jovem, precisamente o escritor de
Verdade e Mentira no Sentido Extramoral, no capítulo 3 do livro. O ponto mais distintivo na leitura de
Clark, que marca sua importância, é que ela consegue identificar a influência de Schopenhauer no
texto de 1873, interpretação não tão pacífica.
Verdade e Mentira conduz o leitor a um inadiável questionamento metatextual. A crítica à
linguagem que se perfaz no decorrer do ensaio inacabado não deixa de incidir sobre si mesma, num
jogo, como diz De Man (1979), autodestrutivo, pois questiona a capacidade da linguagem de
expressar a “verdade literal”, sem conseguir apresentar nenhum outro meio que, por assim dizer,
substitua esse meio de comunicação. Tal fato não diminui a força do texto, pois apresentar um
problema e não resolvê-lo ainda carrega consigo o mérito de pelo menos ter-se olhado na direção
certa, mesmo que em divagações.
Nietzsche (2008) dedica aproximadamente três quartos de seu texto à discussão sobre a
linguagem, no que se fundamenta a leitura de que o problema da verdade se assenta nas
dificuldades de conexão entre linguagem e realidade. Essa é a visão mais tradicional, mas não a
única, conforme veremos a seguir.
1 Sobre uma teoria representacional da percepção
Clark (1991) defende que a concepção de Nietzsche sobre a verdade em Verdade e Mentira
deriva de uma teoria representacional da percepção e de uma teoria da correspondência metafísica
2 The Soul of Nietzsche’s Beyond Good and Evil (A Alma de Nietzsche: Uma Nova e Provocativa Leitura de Para Além do Bem e do Mal, na tradução da editora Cultrix)
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da verdade e não de uma discussão a respeito da linguagem3, embora, como se sabe, Nietzsche
rejeite as duas teorias mais tarde, essencialmente com o perspectivismo.
Ela começa o argumento explicando que a definição do pensador alemão para “mentira” é a
mesma de “ilusão”. Mentira no sentido comum não tem o mesmo sentido que Nietzsche usa.
Quando usamos a expressão “mentira”, estamos diante de certa consciência da falsidade. Na
concepção nietzschiana, “mentira” significa simplesmente “falsa asserção”, não se tendo
consciência ou simplesmente não compreendendo tal falsidade, o que significa, conforme as
inconsistências que ele explana, que tudo aquilo que chamamos de verdade é mentira. Ao dizer que
o que entendemos por verdadeiro é falso, Nietzsche não consegue escapar de uma posição
aparentemente absurda: se afirmo que toda verdade é falsa, como defender meus próprios
argumentos?
Logicamente, uma crença não pode ser verdadeira e falsa – não ao mesmo tempo, não nas
mesmas circunstâncias, etc. Sendo assim, se afirmo, por exemplo, que “está chovendo” e o fato está
de acordo com a asserção, então a negativa da mesma é falsa. Dizer, no entanto, que a asserção e
sua negação são falsas é tornar o pensamento impossível. Em primeiro plano, Nietzsche encontra a
explicação utilizando o argumento da arbitrariedade da linguagem, utilizado por Gerber e Hartmann
e, posteriormente, retomado por Derrida. Evidentemente, a conclusão do pensador alemão sobre
as verdades serem ilusórias se sustenta nesse argumento.
Clark julga fraca, a princípio, a argumentação nietzschiana:
Mas como o fato de que nós podemos usar diferentes palavras para falar a mesma coisa mostra que o que nós falamos é falso? Esta é uma inferência muito fraca, que nenhum filósofo de maior grandeza desde Descartes poderia aceitar4 (CLARK , 1991, p. 67).
A autora explica que, para tornar plausível a argumentação nietzschiana, é preciso
compreender que “verdade e ilusão” se diferem, significativamente, quando se trata da questão das
convenções da linguagem. Algo é verdadeiro se está de acordo com as convenções; caso contrário,
é falso. Nessa concepção, Nietzsche reconhece a distinção entre a verdade e a falsidade; outrossim,
aceita a possibilidade de que algumas de nossas crenças sejam verdadeiras. Ele não nega, portanto,
3 “Nietzsche does not base his denial of truth in TL on an insight concerning language. Instead, he bases his substantive claim about language (that it is metaphorical) and his denial of truth on the same traditional philosophical doctrines: a representational theory of perception and the metaphysical correspondence theory of truth” (CLARK, 1991, p. 77). 4 “But how does the fact that we might use different words to say the same thing show that what we say is not true? This is a very weak inference, which no major philosopher since Descartes would accept”.
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a existência de verdades; apenas rejeita uma determinada teoria da verdade, a saber, a teoria da
verdade enquanto correspondência.
Clark (1991) considera fraca a argumentação nietzschiana porque, ao afirmar que as
verdades são ilusões, não fica claro se Nietzsche está usando ou não as convenções da linguagem
que ele mesmo critica. Sua crítica torna impossível qualquer tipo de linguagem, uma vez que toda
verdade sempre vai violar as convenções da linguagem. Assim sendo, mesmo a afirmação, em
qualquer linguagem, que “as verdades são ilusões” se torna uma afirmação falsa.
A mesma crítica é apresentada por Derrida (1978) quando mostra o problema circular dos
chamados destruidores da metafísica. Segundo o pensador francês, toda crítica seja à metafísica,
seja à linguagem, precisa passar por uma autocrítica. As ideias, diz ele, não são átomos indiferentes
à história: não tem nenhum sentido “abandonar os conceitos da metafísica para abalar a metafísica;
não dispomos de nenhuma linguagem - de nenhuma sintaxe e de nenhum léxico - que seja estranho
a essa história” (DERRIDA, 1978, p. 233).
Assim, Nietzsche não consegue explicar como podemos entender a verdade sem sugerir a
existência de alguma coisa à qual a verdade corresponde. Isto é visível quando ele defende que o
“mentiroso serve-se das designações válidas, as palavras, para fazer o imaginário surgir como
efetivo” (NIETZSCHE, 2008, p. 29), como por exemplo, para aparecer rico quando na verdade é
pobre, então a pessoa “sincera” usará as palavras para fazer o real aparecer como real, ou seja, para
trazer uma informação que corresponda à realidade. Tal percepção, na verdade, atesta contra a
construção da correspondência baseada no mero uso apropriado das palavras. Clark explica a
questão com exemplos:
Suponhamos que, surpreendida pelo que eu acredito ser uma chuva, eu digo “its’s raining” para um grupo de anglófonos. Meu enunciado está de acordo com as convenções aceitas pelos meus ouvintes. Isto pode, mesmo assim, falhar em corresponder à realidade – por exemplo, se a água que eu vejo na verdade vier de um irrigador de grama. Nietzsche pode responder que este erro de correspondência se deve a não mais que a falha em usar as palavras apropriadas convencionalmente para a situação em questão. Mas sua defesa admite, com efeito que a correspondência depende de dois diferentes fatores: o que as convenções são e como o mundo é [...]. Na realidade, obediência às convenções aceitas não é necessária para falar-se a verdade. Mudar a situação acima [...], como se eu falasse em alemão em vez de falar inglês [...]. Não importa o que eu fale em alemão, eu falharei em respeitar às convenções linguísticas esperadas por meus ouvintes. Mas se eu falar “es regnet”, eu digo algo falso. Se eu digo em vez disso “es regnet nicht”, eu digo a verdade [...] Assim, a verdade de um enunciado ou inscrição depende de dois fatores: o que ele significa e como o mundo é [...]5 (CLARK, 1991, p. 69).
5 Tradução livre, grifos nossos. “Suppose that, surprised by what I believe to be a sudden rain shower, I say "it's raining" to a group of Anglophones. My utterance conforms to the conventions accepted by my listeners. It may nevertheless fail to correspond to reality - e.g., if the water I see actually comes from a lawn sprinkler. Nietzsche might respond that this failure of correspondence amounts to
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Consequentemente, o conhecimento das convenções linguísticas é de grande auxílio na
compreensão do sentido de um enunciado, mas é pouco necessário ou insuficiente para conhecer
as verdades que pretendemos; os caracteres arbitrários dessas convenções são uma trivialidade que
não é importante para quem busca a verdade.
É possível também defender que a argumentação de Nietzsche contra a verdade se baseia
na essência metafórica ou figurativa da linguagem. O pensador alemão defendia que a metáfora
nunca é literalmente verdadeira. Consequentemente, acreditar que a linguagem é sempre
metafórica significa negar peremptoriamente que ela possa alcançar qualquer verdade. Quanto a
isto, comenta Clark (1991), mesmo que se possa aceitar que toda metáfora é a expressão de uma
falsidade, é difícil dizer que Nietzsche realmente defendia que toda linguagem é metafórica.
Existe uma razão específica, diz a autora, para negar que toda linguagem é metafórica: a
criação e a interpretação das metáforas parecem ambas dependentes da habilidade de usar a
linguagem não metaforicamente. Quando usamos um enunciado metaforicamente, a exemplo,
“cortando o argumento como uma lâmina de barbear enferrujada”, só o podemos fazer porque
sabemos o uso literal da expressão. Sabemos que um argumento não pode ser cortado fisicamente,
eis que não ocupa lugar no espaço; o emissor do enunciado sabe que o mesmo é “falso”, assim com
o receptor, e este também sabe que mesmo o emissor não tem como acreditar que a mesma é
verdadeira. No entanto, ambos conhecem o uso literal da expressão; só assim podem compreender
que se trata de um enunciado figurativo. Dessa forma, é correto inferir que só é possível o uso
metafórico da linguagem quando se conhece o uso literal da mesma.
Clark (1991) defende que Nietzsche não baseia a negação da verdade em sua percepção
sobre a linguagem. Em vez disso, diz a autora, ele baseia sua própria visão de linguagem metafórica
e, além disso, sua negação da verdade em duas doutrinas filosóficas tradicionais: uma teoria
representacional da percepção e a teoria da correspondência metafísica da verdade. Ela começa
analisando as seguintes passagens:
no more than a failure to use the conventionally appropriate words for the situation in question. But this defense admits, in effect, that correspondence depends on two different factors: what the conventions are, and what the world is like. We cannot plausibly regard obedience to convention as sufficient for truth-telling unless we build correspondence to reality into the idea of such obedience, which then becomes equivalent to using the correct words for the way the world actually is. In fact, obedience to the accepted conventions is not even necessary for truth-telling. Change the situation above [...] so that I start speaking German instead of English [...]. No matter what I say in German, I fail to abide by the linguistic conventions my listenersexpect me to follow. But if I say "es regnet," I say something false. If (having spotted the lawn sprinkler perhaps) I say instead "esregnet nicht," I tell the truth, [...] Thus the truth of an utterance or inscription depends on two factors: what it means, and what the world is like [...]”.
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A coisa em si (ela seria precisamente a pura verdade, sem quaisquer correspondências) também é, para o criador da linguagem, algo totalmente inapreensível e pelo qual nem de longe vale a pena esforça-se. Ele designa apenas as relações das coisas com os homens e, para expressá-las, serve-se da ajuda das mais ousadas metáforas! De antemão, um estímulo nervoso transposto em uma imagem! Primeira metáfora. A imagem, por seu turno, remodelada em som! Segunda metáfora. (NIETZSCHE, 2008, p. 32) Acreditamos saber algo acerca das próprias coisas [den dingen selbst], quando falamos de árvores, cores, neve e flores, mas, como isso, nada possuímos senão metáforas de coisas, que não correspondem, em absoluto, às essencialidades originais [die den ursprunglichen wesenheiten ganz und gar nicht entsprechen]. Tal como o som sob a forma de figuras de areia, assim se destaca o enigmático “x” da coisa em si, uma vez como estímulo nervoso, em seguida como imagem, e, por fim, como som. De qualquer modo, o surgimento da linguagem não procede, pois, logicamente, sendo que o inteiro material no qual e como qual o homem da verdade, o pesquisador, o filósofo, mais tarde trabalha e edifica tem sua origem, senão em alguma nebulosa cucolândia, em todo caso não na essência das coisas [Wesen der Dinge] (NIETZSCHE, 2008, p. 34-35).
Segundo a interpretação de Clark (1991), a preocupação de Nietzsche nessas passagens é
com a percepção sensível e não com a linguagem. Ele insiste que a percepção nos dá apenas
metáforas das coisas. Tal afirmação é, no mínimo, estranha. Se a metáfora é um uso particular da
linguagem, uma percepção não pode ser metafórica. É possível, diz a autora, que Nietzsche tenha
usado a expressão “metáfora” metaforicamente, para chamar a atenção do leitor para certas
similaridades entre a percepção e o uso metafórico da linguagem. Em todo caso, não se pode
concluir, continua, que a passagem sugere que Nietzsche defenda que nossa percepção nos
apresenta identidade onde há apenas similaridade - conforme sua definição de metáfora.
Os nossos enunciados falham em corresponder às coisas em si mesmas, e é por isso que eles
são metafóricos. Usar a linguagem metaforicamente é dizer alguma coisa que falha em
corresponder à atual natureza de um objeto, mas que, mesmo assim, comunica como tal objeto
aparece para o indivíduo na sua imaginação. Nietzsche parece enxergar semelhança entre a
percepção e o discurso metafórico, na medida em que a percepção nos dá apenas a aparência, não
as coisas em si mesmas. Tal semelhança também é expressa pelo pensador alemão em relação à
metáfora e os outros usos da linguagem, sugerindo que toda linguagem é metafórica. É
precisamente neste ponto que, argumenta Clark (1991), a afirmação dessa totalidade depende da
interpretação do que Nietzsche quis dizer nessa passagem sobre a percepção.
Segundo a autora, tal noção de “percepção” carrega uma forte influência da filosofia de
Schopenhauer. De fato, em O Mundo Como Vontade e Representação, este afirma que nós não
“conhecemos o sol e a terra, mas somente o olho que vê o sol e a mão que sente a terra”, na medida
em que os objetos que vemos e sentimos são “somente representações, isto é, apenas em referência
a alguma outra coisa, nomeada, que ela representa” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 43). O filósofo
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explica que o Véu de Maia que cobre nossa mente apenas nos permite conhecer os fenômenos
transitórios, mas em momento algum temos como conhecer a coisa-em-si. Vivemos a realidade
num ser-para-a-morte, uma condição humana angustiante na qual somos confrontados com o
mundo sempre perecível. Assim, o mundo se apresenta ao sujeito cognoscente meramente como
representação — temos do mundo somente uma imagem criada na relação de nossos órgãos
sensórios com a realidade. Segundo ele, o entendimento constrói os objetos com a matéria das
sensações; a sensação é subjetiva e não pode conter nada de objetivo. No entanto, a sensação se
torna percepção intuitiva objetiva, uma transformação que ocorre quando o entendimento aplica a
lei da causalidade, lei a priori, à sensação.
É possível perceber, diz Clark (1991), que a classificação do objeto de percepção como
metáfora se baseia fundamentalmente na teoria representacional schopenhauriana. A afirmação de
que, acreditando conhecer as coisas por elas mesmas, possuirmos apenas metáforas baseadas na
nossa própria percepção, significa, claramente, que possuímos apenas representações do mundo,
tal qual defendia Schopenhauer. Nietzsche enfatiza o tempo todo a origem antropológica do
conhecimento:
Apenas aquilo que nós lhes acrescentamos se torna efetivamente conhecido para nós, a saber, o tempo, o espaço e, portanto, as relações de sucessão e os números. Mas, tudo o que há de maravilhoso, que precisamente nos assombra nas leis da natureza, que exige nosso esclarecimento e que poderia conduzir-nos à desconfiança frente ao idealismo, assenta-se única e exclusivamente no rigor matemático, bem como na inviolabilidade das representações de tempo e de espaço. Estas, no entanto, são produzidas em nós a partir de nós, com aquela necessidade com a qual a aranha tece sua teia (NIETZSCHE, 2008, p. 45).
A compreensão de Schopenhauer (2005) sobre o mundo se aproxima da de Berkeley (1989),
segundo a qual o mundo não pode existir independentemente da consciência, conforme este
defende em seu Tratado sobre os Princípios Gerais do Entendimento Humano:
Todos concordarão que nem os pensamentos, nem as paixões, nem as ideias formadas pela imaginação existem sem o espírito; e não parece menos evidente que as várias sensações ou ideias impressas nos sentidos, ligadas ou combinadas de qualquer modo (isto é, sejam quais forem os objetos que compõem), só podem existir em um espírito que as perceba. [...] Entre os homens prevalece a opinião singular de que as casas, montanhas, rios, todos os objetos sensíveis tem uma existência natural ou real, distinta da sua perceptibilidade pelo espírito. Mas, por mais segura aquiescência que este princípio tenha tido no mundo, quem tiver coragem de discuti-lo compreenderá, se não me engano, que envolve manifesta contradição. Pois que são os objetos mencionados senão coisas percebidas pelos sentidos? (BERKELEY, 1989, p. 14).
Ao sentir as coisas, inferirmos que há um mundo fora de nós aplicando o princípio da
causalidade às sensações, preenchendo nossa representação a priori do espaço com as coisas que
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sentimos. Para Schopenhauer (2005), porém, o princípio da causalidade não nos permite inferir a
existência do mundo externo, que existe apenas como representação.
Nietzsche (2008) aparentemente discorda dessa perspectiva. Quando afirma que
“Acreditamos saber algo acerca das próprias coisas, quando falamos de árvores, cores, neve e
flores”, ele não está negando a existência de um mundo fora da consciência, apenas está negando a
possibilidade de acessá-lo. Em todo caso, na medida em que Nietzsche assume que não podemos
alcançar o mundo em si mesmo, mas apenas a sua aparência, ele consegue concluir que toda a nossa
linguagem só pode referir-se a essas aparências. O próximo passo para a argumentação nietzschiana
é explicar porque a linguagem não consegue alcançar as coisas em si mesmas.
De acordo com Clark (1991), é preciso fazer uma diferença fundamental, marcada em
Verdade e Mentira, entre as “coisas mesmas” (things themselves / den Dingen selbst) e as “coisas em
si mesmas” (things-in-themselves / des Ding en sich). No primeiro caso, trata-se de considerar o
mundo como tendo existência independente da percepção ou representação. No segundo caso, se
trata do mundo considerado em si mesmo, ou seja, como possuindo natureza ou qualidades
apartadas do ser humano, independentes da cognição ou interesse humanos. Afirmar a existência
da “coisa em si” kantiana significa dizer que, a partir de nosso conceito de verdade, a natureza real
do mundo pode ser muito diferente daquela que aceitaríamos em nossos padrões mais razoáveis.
Por outro lado, pensar as “coisas mesmas” é uma maneira de afirmar que o mundo existe fora da
consciência, negando-se a assertiva berkeleyana. Os dois conceitos, diz Clark (1991) são
independentes, não havendo necessidade de aceitar a ideia de coisa em si kantiana pela mera
aceitação da existência de um mundo independente.
Aparentemente, em Verdade e Mentira, Nietzsche rejeita o idealismo subjetivo. Ele aceita a
existência das coisas mesmas e a as identifica com as coisas em si mesmas. Porém, ele não o faz por
uma necessidade ontológica: ele é forçado a fazê-lo por negar nosso acesso linguístico ou perceptivo
às coisas mesmas; dessa forma, elas podem ser definidas apenas como um “enigmático ‘x’”,
permanecendo ocultas de nós. Em poucas linhas:
Podemos resumir o argumento de Nietzsche tanto para o caráter metafórico da linguagem quanto para o caráter ilusório da verdade nos passos seguintes. Em primeiro lugar, a teoria representacional da percepção de Schopenhauer: não percebemos coisas extramentais, mas apenas representações construídas pela imaginação humana a partir de estímulos nervosos. Em segundo lugar, a inferência de que não podemos falar sobre coisas extramentais, mas apenas sobre nossas representações delas. Terceiro, a inferência de que,
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como não podemos dizer nada sobre o que são essas coisas, nossas expressões linguísticas certamente não podem corresponder ao que são em si mesmas (CLARK, 1991, p.83).6
É possível concluir, diz a autora, que Nietzsche não rejeita a concepção de verdade como
correspondência, haja vista que sua negação da verdade claramente depende dessa concepção. A
vantagem dessa interpretação é que a crítica nietzschiana à possibilidade da verdade pode ser
apresentada sem que seja necessário rejeitar a lógica ou mesmo o senso comum. Outra vantagem
é entender a ênfase que o filósofo dá à linguagem no decorrer da explanação, sem nos forçar a
atribuir a ele uma posição simplista.
Se o mundo só nos é acessível mediante nossas percepções e se essas não dão conta de nos
fazer entender a verdade, então fazemos uso, no processo de construção do conhecimento, de
faculdades (ou verdades) a priori no intelecto, que por sua vez, também não nos dão informações
sobre a realidade. Nietzsche entende que o intelecto, na medida em que faz uso da linguagem para
construir conceitos, só pode oferecer uma verdade tautológica, não oferecendo, também, qualquer
acesso às coisas em si mesmas.
2 sobre uma teoria da correspondência metafísica da verdade
A respeito da teoria da correspondência metafísica da verdade, sua admissão fica clara a partir
do momento em que Nietzsche nega que a linguagem possa alcançar a verdade por sua falta de
correspondência com a coisa-em-si, bem como quando ele critica o que chama de “verdade
antropomórfica”. Em ambos os casos, ele assume a existência de uma realidade independente da
existência humana. Clark (1991) explica que, conquanto Nietzsche se torne mais tarde neokantiano,
negando a existência de uma coisa em si, em Verdade e Mentira a sua posição é essencialmente
kantiana no tratamento da verdade e das nossas capacidades e interesses cognitivos.
A verdade enquanto correspondência à coisa em si se iguala à ideia de uma verdade pura à
parte de consequências, denominação que significa uma verdade que não depende de nossos
interesses práticos. Considerando o intelecto uma ferramenta de evolução, e compreendendo que
todas as nossas estruturas mentais, sejam psicológicas, lógicas, epistemológicas, são mecanismos
de sobrevivência, é possível concluir, com Clark (1991), que os nossos interesses práticos estão
6 “We can sum up Nietzsche's argument for both the metaphorical character of language and the illusory character of truth in the following steps. First, Schopenhauer's representational theory of perception: we do not perceive extramental things, but only representations constructed by the human imagination from nerve stimuli. Second, the inference that we cannot talk about extramental things, but only about our representations of them. Third, the inference that since we cannot therefore say anything about what such things are, our linguistic expressions certainly cannot correspond to what they are in themselves”.
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diretamente relacionados aos nossos interesses cognitivos, o que reforça a tese nietzschiana da
verdade antropomórfica.
Nietzsche (2008) coloca em paralelo a ciência e a arte quanto ao tratamento que cada qual
dá ao intelecto. Segundo ele, a ciência o trata como um escravo, agrilhoando-o àquelas verdades
antropomórficas que, como tais, respondem simplesmente aos nossos interesses práticos. A arte,
ao contrário, liberta o intelecto, pois ele pode divagar sem a necessidade de construir as ditas
verdades. Com a ciência, o intelecto é usado como escravo para a construção de verdades
metafóricas, irreais. É somente através da arte que ele pode se ver livre dessas amarras, pois com
ela ele pode divagar sem a responsabilidade da coerência e do sentido, pode fluir
irresponsavelmente com a justificativa de estar vivendo a fantasia. A escravidão do intelecto, para
Nietzsche, se dá quando ele é obrigado a produzir conhecimento; quando é obrigado a produzir a
verdade. Nietzsche compreende que a realidade à qual a verdade “pura” corresponde é
independente das nossas capacidades ou interesses cognitivos, portanto fora do alcance da ciência.
Com essa interpretação, entende-se que o pensador alemão conclui que as verdades são ilusões não
porque ele entende a verdade como correspondência para com a realidade, mas porque ele acredita
que a realidade à qual a verdade corresponde é completamente independente de nossas
capacidades e interesses cognitivos. Clark (1991) explica que esse realismo metafísico é justamente
o que Nietzsche vai refutar em seus escritos de maturidade.
A influência do representacionismo schopenhauriano nas conclusões de Verdade e Mentira
permitem compreender que Nietzsche identifica a realidade com a coisa-em-si. Isto, no entanto,
não é suficiente para compreender o porquê da insistência do filósofo de que a verdade requer a
correspondência com essa realidade. Por que, questiona Clark (1991) ele não se contenta com a
verdade enquanto correspondência com o fenômeno?
Nietzsche trata as “verdades a priori” com certo desprezo, eis que considera as mesmas
simples construções antropomórficas desconectadas da realidade, sendo mera tautologia, sem
valor absoluto (não-relativo); o conhecimento baseado nelas é aquele objeto prosaico que
encontramos tendo nós mesmos o escondido. Tal questão demonstra também de forma clara,
segundo a comentadora, a tese da presença da ideia de correspondência metafísica em Verdade e
Mentira.
Como consequência, é possível interpretar a expressão “verdades são ilusões” como a crença
de que as verdades não possuem valor absoluto, quando se trata das “verdades” que não possuem
conexão com as coisas em si. No entanto, Nietzsche (2008) conclui que as verdades são ilusões não
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porque elas não se correspondem com a realidade, mas porque a realidade à qual a verdade deve
corresponder deve ser completamente independente dos seres humanos.
Considerações finais
Em que pese a sobriedade e profundidade das considerações de Maudemarie Clark, alguns
pontos merecem ser discutidos.
A argumentação da autora tem o intento de “salvar” o texto nietzschiano de 1873, tentando
demonstrar sua coerência interna, ação que outros críticos não fizeram. A crítica apresentada por
Derrida (1995) e De Man (1979), acusando-o de autodestrutivo, é contundente e bem arrazoada, na
medida em que se considera válida a hipótese da linguagem ser, para o jovem Nietzsche, de todo
metafórica.
Derrida (1995), contudo, justifica essa “autodestruição” explicando que a linguagem e a
verdade, tal qual a metafísica, são o tipo de tema que só pode ser criticado fazendo-se uma espécie
de implosão, atacando-o de dentro para fora. Diferentemente, a saída encontrada por De Man
(1979) foi considerar que o texto nietzschiano oscila entre Filosofia e Literatura, carregando critérios
de verdade com base até certo ponto artísticos, o que daria liberdade para Nietzsche nas suas
imprecisões.
Clark (1979) foca na influência de Schopenhauer e Kant no texto, a despeito da maior parte
do mesmo tratar do tema linguagem. Considera ela que a linguagem não pode ser em todo
metafórica. Conforme já exposto, o principal argumento apresentado para isso é que seria
necessário o acesso à literalidade da correspondência linguística para se reconhecer a metáfora.
É interessante notar que tal argumentação não está baseada em algum trecho do texto de
Nietzsche, mas em uma interpretação lógica daquilo que “parece” que o filósofo acredita, conforme
se vê nas palavras da autora: “Mas uma razão mais específica existe para negar que toda
linguagem pode ser metafórica. A criação e a interpretação das metáforas parecem
dependentes da habilidade de usar a linguagem não metaforicamente” (CLARK. 1991, p. 69-
70)7. Desse modo, o argumento mais importante apresentado por Clark é somente uma alegação de
algo que seria razoável supor que ele pensava.
Teria este detalhe o potencial para destruir sua argumentação como um todo? Seria ele uma
fraqueza considerável? Certamente não. Se a aposta da autora estiver certa, o restante da
7 “But a more specific reason exists for denying that all language could be metaphorical. Both the creation and the interpretationof metaphors seem dependent on the ability to use language nonmetaphorically”.
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argumentação se encaixa adequadamente. De certa forma, se tratando de um texto inacabado e
que sequer foi publicado, não é absurdo tentar preencher lacunas da maneira que mais fizer sentido.
O mesmo fez Derrida (1995) e De Man (1979), apresentando, como citado en passant, hipóteses mais
diretas.
Clark (1991) afirma que, se o intento de Nietzsche era mostrar que a verdade enquanto
correspondência é uma perspectiva a ser superada, o filósofo falha terrivelmente. Ele não consegue
encontrar algo para colocar no conceito que tenta destruir, e acaba usando a própria
correspondência metafísica no texto.
É até possível, talvez, destruir conceitos sem colocar algo no lugar, mas não se pode fazer
isso com o conceito de verdade, dada sua posição estratégica na própria investigação.
Ao final, a verdade sobre as lacunas deixadas por Nietzsche depende de interpretação
contextual. O mérito da crítica de Clark (1991), apesar de sua leitura parecer, de certo modo, forçada,
é conseguir demonstrar que o texto de 1873, mesmo estando inacabado e apresentando ideias que
o filósofo discorda mais tarde, possui uma coerência interna atrelada às influências que ele tinha no
momento em que o produziu. Se visto dessa forma, o texto Verdade e Mentira no Sentido Extramoral
acaba demonstrando, profética, involuntariamente e na prática, que a verdade é, afinal,
interpretação.
REFERÊNCIAS:
BERKELEY, G. Tratado sobre os Princípios do Conhecimento Humano. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural,1989.
CLARK, Maudemarie. Nietzsche on Truth and Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 1991.
DE MAN, Paul. Allegories of Reading - Figural Language in Rousseau, Nietzsche, RiIke, and Proust. New Haven and London: Yale University Press, 1979.
DERRIDA, J. A. Estrutura, o Jogo e o Signo no Discurso das Ciências Humanas. In: ______. A Escritura e a Diferença. São Paulo: Perspectiva, 1995.
NIETZSCHE, F. Sobre Verdade e Mentira. Tradução de Fernando de Moraes Barros. São Paulo: Hedra, 2008.
NIETZSCHE, F. Verdade e Mentira no Sentido Extramoral. In: LEBRUN. Gerard (org). Nietzsche: Obras incompletas. São Paulo: Editora 34, 2014.
SCHOPENHAUER. A. O Mundo Como Vontade e Representação. São Paulo: Unesp, 2005.
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A FILOSOFIA RENITENTE AO DESTINO NOS PENSAMENTOS DE
GIACOMO LEOPARDI: CONTRAPONTO À INTERPRETAÇÃO
NIETZSCHIANA SOBRE O PESSIMISMO LEOPARDIANO
Taís da Silva Brasil1
RESUMO: O presente artigo objetiva defender a presença de uma filosofia “renitente ao destino” em Giacomo Leopardi (1798-1837), ou seja, a existência de um pensamento não resignado. Defende-se que o pessimismo leopardiano “não permite sucumbir”, como diria Walter Benjamin, e é um claro “posicionamento diante da marcha natural do mundo”, contrário a uma interpretação que desconsidera a atenção ao tempo presente na obra de Leopardi. A interpretação de Nietzsche do pessimismo de Leopardi o associa à decadência fisiológica, à fraqueza e ao cansaço. No entanto,
1 Graduada em Licenciatura em Filosofia pela UECE. Mestre em Filosofia pela UFO. Doutoranda em Filosofia na Universidade de São Paulo-USP (Pesquisa realizada com apoio financeiro da Capes). E-mail: [email protected].
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conclui-se, em contraponto a esta interpretação, que Leopardi deseja enfrentar os limites da civilização moderna com base em certa compreensão sobre ela na obra Pensamentos, fazendo frente às “consequências perigosas” do século XIX. PALAVRAS-CHAVE: pessimismo – crítica do presente – Modernidade
LA FILOSOFIA RENITENTE AL FATO NEI PENSIERI DI GIACOMO LEOPARDI: CONTRAPPUNTO
ALL’INTERPRETAZIONE NIETZSCHEANA DEL PESSIMISMO DI LEOPARDI.
ASTRATTO: Questo articolo obietiva difendere la presenza della filosofia “renitente al fato” in Giacomo Leopardi (1798-1837), cioè l’esistenza di un pensiero non rassegnato. Si sostiene che il pessimismo di Leopardi “non permettere soccombere” como direbbe Walter Benjamin ed è un chiaro “posizionamento di fronte alla marcia naturale del mondo”, contrariamente a un’interpretazione che non tiene conto dell’atenzione al tempo presente nell’opera di Leopardi. L’interpretazione di Nietzsche del pessimismo di Leopardi lo associa a decadenza fisiologica, a debolezza e la stanchezza. Tuttavia, si è concluso, in contrasto con questa interpretazione, che Leopardi desidera affrontare i limiti della civiltà moderna con base su comprensione di essa nel’opera Pensieri, affrontando le “conseguenze pericolose” del ottocento. PAROLE CHIAVE: pessimismo – critica del presente - Modernità
Sabe-se que Nietzsche conheceu Leopardi através de Schopenhauer, principalmente os
escritos em prosa, daí ele aproximar o pensamento de Leopardi ao de Schopenhauer de forma
precipitada, desconsiderando que Schopenhauer conheceu Leopardi de modo insuficiente.2 No
entanto, as primeiras menções feitas a Leopardi são elogiosas, visto que afirmam que Leopardi “é o
ideal moderno de filólogo; os filólogos alemães não sabem fazer nada [...]”3 e que “[...] Goethe e
Leopardi aparecem para nós como os últimos grandes epígonos dos filólogos-poetas italianos.”4
Isso porque lhe parece que Leopardi se distancia da filologia moderna, a qual demasiado
acadêmica e como dita por ele relacionada tão somente à erudição, incapaz de reinvenção do
passado como também de invenção. Daí ele utilizar o termo filólogo-poeta em contraposição ao
2 OTTO, Walter. Leopardi e Nietzsche. In: NIETZSCHE, Friedrich, GALIMBERTI, Cesare (Org.). Intorno a Leopardi. Genova: Il Melangolo, 1992. pp. 156-157. “Ma Schopenhauer conosceva Leopardi in modo insufficiente.” 3 NIETZSCHE, Friedrich, GALIMBERTI, Cesare (Org.). Intorno a Leopardi. Genova: Il Melangolo, 1992. p. 51. “Leopardi è l’idelae moderno di filologo; i filologi tedeschi non sanno fare nulla [...].” 4 NIETZSCHE, Friedrich, GALIMBERTI, Cesare (Org.). Intorno a Leopardi. p. 57. “[...] Goethe e Leopardi ci appaiono come gli ultimi grandi epigoni dei filologi-poeti italiani.”
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filólogo-erudito.5 O fazer filológico está comprometido com a interpretação, a tradução, a análise e
o conhecimento da antiguidade, porém também está comprometido com aquilo que todo esse
conhecimento suscita, ou seja, o próprio fazer poético. Gianni Scalia, no posfácio à antologia italiana
que reúne textos de Nietzsche nos quais ele cita Leopardi, especifica essa diferença entre as posturas
filológicas:
Leopardi pertence à herança, que com Goethe assoma e conclui, dos “filólogos-poetas, para os quais a filologia (segundo Nietzsche, ‘decaído’ aquele nexo entre pesquisa e vida, na era historicista do “excesso de história”) não é uma disciplina especializada e institucional, mas uma educação interior, colóquio com os clássicos, com o espírito dos “grandes mortos”, “mestres de leitura”. [...] resta Leopardi que experimenta plenamente o valor da tradição clássica e, portanto, da filologia, como um nó “atual” de estilo, beleza, conhecimento, “grandeza de espírito”, exortação virtuosa.6
Desse modo, é possível estabelecer onde se dá o começo da relação entre Leopardi e
Nietzsche. A valorização da grandeza dos antigos e a forma de estabelecer uma relação com eles
aproximam os dois pensadores. O “excesso de memória” presente nos estudos filológicos impede a
reinvenção do passado e a invenção de algo no presente, ou seja, o diálogo vivo com o passado que
não condena o presente à imitação, e por isso Nietzsche vai atribuir um papel ao esquecimento no
processo do conhecimento, como devedor de Leopardi, que meio século antes já havia refletido
sobre o tema. Há, portanto, uma contraposição à visão historicista, a qual pretende empilhar
memórias. Na segunda Consideração Extemporânea, intitulada Sobre a utilidade e o dano da história
para a vida7, de 1874, Nietzsche afirma que uma possibilidade de felicidade se encontra num modo
de vida ahistórico, pertencente aos animais. A consciência contínua do devir, ou mesmo a prisão ao
passado perturba “a paz de um momento posterior.”8 Ele continua afirmando que é “impossível
viver sem o esquecimento” e que “Para cada ação é preciso esquecimento: como para a vida de cada
ser orgânico é preciso não somente a luz, mas também escuridão.”9 Assim como aparece em uma
5 NIETZSCHE, Friedrich, GALIMBERTI, Cesare (Org.). Intorno a Leopardi. p. 53. 6 SCALIA, Gianni. Pensatori Risoluti. In: NIETZSCHE, Friedrich, GALIMBERTI, Cesare (Org.). Intorno a Leopardi. p. 186. “Leopardi appartiene all’eredità, che con Goethe assoma e conclude, dei “filologi-poeti”, per cui la filologia (secondo Nietzsche ‘decaduta’, quale nesso di ricerca e di vita, nell’epoca storicistica dell’“eccesso di storia”) non è una disciplina specialista e istituzionale ma educazione interiore, colloquio con i classici, con lo spirito dei “grandi morti”, ‘maestri di lettura’. [...] resta che Leopardi sperimenta per intero il valore della tradizione classica e dunque della filologia, come nodo ‘attuale’ di stile, belleza, sapere, “grandezza d’animo”, esortazione virtuosa.” 7 NIETZSCHE, Friedrich, GALIMBERTI, Cesare (Org.). Intorno a Leopardi. pp. 31-47. 8 NIETZSCHE, Friedrich, GALIMBERTI, Cesare (Org.). Intorno a Leopardi. p. 31 “É un miracolo: l’istante, eccolo presente, eccolo già sparito, prima un niente, dopo un niente, torna tuttavia ancora come spettro, turbando la pace di un istante posteriore” É um milagre: o instante, presente, eis que já se foi, antes de um nada, depois de um nada, no entanto, volta ainda como fantasma, perturbando a paz de um instante posterior. 9 NIETZSCHE, Friedrich, GALIMBERTI, Cesare (Org.). Intorno a Leopardi. p. 35. “Per ogni agire ci vuole oblio: come per la vita di ogni essere organico ci vuole non soltanto luce, ma anche oscurità”
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passagem de Leopardi no Zibaldone já em 1824 a seguinte afirmação sobre o prazer: “[...] um
abandono, um descuido, uma negligência, uma espécie de esquecimento de tudo.”10 Dito isso,
podemos ver uma reflexão já feita por Leopardi cinquenta anos antes diluída no pensamento de
Nietzsche.
Um segundo aspecto da aproximação de Nietzsche com Leopardi aparece na sua
admiração pela poesia que contém pensamento. Por ele não especificar ou aprofundar as
características desse pensamento, o elogio à atividade filológica se sobrepõe a qualquer valorização
ou mesmo reconhecimento de débito em relação ao pensamento de Leopardi. Quanto a esse
aspecto, afirma Emanuele Severino:
Schopenhauer, Wagner, Nietzsche sabem que se encontram diante de um gênio. Mas quando Nietzsche, que tem uma influência decisiva na cultura contemporânea, escreve que Leopardi é o maior prosador do século, ou “o filólogo ideal”, contribui de modo determinante para esconder a grandeza filosófica – da qual Nietzsche é profundamente devedor.11
Ainda assim, Nietzsche traz Leopardi como um pensador que apresenta um ponto de
vista supra-histórico, no sentido de trazer uma visão da história diferente e capaz de remediar o
otimismo e o desejo ardente do futuro, no qual estaria presente a beleza da vida. A tal ponto de vista
historicista, se opõe a visão de que uma época não deve ser conhecida apenas no sentido do que ela
significa no processo histórico ou por qual etapa a define, mas considera o efeito na criação que o
conhecimento dos espíritos potentes12 e dos acontecimentos fortes pode engendrar no presente.
Assim, Nietzsche destaca a singularidade dos acontecimentos e dos grandes espíritos, eternizando-
os, que podem exercer um papel importante no presente, algo que não é permitido pela lógica da
continuidade, na qual uma época se sobrepõe a outra.
Remetemos a uma passagem dos Pensamentos, na qual Leopardi afirma a força dos
grandes espíritos na criação presente, no despertar do sentimento, no entanto considerando a
resposta negativa dada pelo mundo em relação a esse reconhecimento:
Para com os grandes homens, mormente para com aqueles em que arde a extraordinária virilidade, o mundo é como uma mulher. Não somente os admira, mas os ama: porque
10 LEOPARDI, Giacomo. Zibaldone. 4. ed. Roma: Newton e Compton editori, 2016. p. 867. (4074) “[...] un abbandono una non curanza una negligenza una specie di dimenticanza d’ogni cosa.” 11 SEVERINO, Emanuele. Il nulla e la poesia. Alla fine dell’età della tecnica: Leopardi. 3. ed. Milano: BUR Rizzoli, 2010. p. 5. “Schopenhauer, Wagner, Nietzsche sanno di trovarsi di fronte a un genio. Ma quando Nietzsche, che ha un’influenza decisiva nella cultura contemporanea, scrive che Leopardi è il maggior prosatore del secolo, o «il filologo ideale», contribuisce in modo determinante a nasconderne la grandezza filosofica – della quale Nietzsche è profondamente debitore.” Além dessa passagem no prefácio, fica latente por todo o texto de Severino aquilo que aparece em Nietzsche e que meio século antes Leopardi já trazia como reflexão. 12 NIETZSCHE, Friedrich, GALIMBERTI, Cesare (Org.). Intorno a Leopardi. p. 43.
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aquela sua força o apaixona. Não raras vezes, como com as mulheres, o amor que se lhes dedica é tanto maior por conta e na proporção do desprezo que mostram, dos maus tratamentos que dão e do temor que inspiram aos homens. Assim, Napoleão foi adorado pela França, e, por assim dizer, tornou-se objeto de culto por parte dos soldados, que ele chamou carne de canhão e tratou como tal. Assim, tantos comandantes que fizeram tal juízo e uso dos homens foram caríssimos a seus exércitos, quando vivos, e hoje, na História, encantam os leitores. Nesse tipo de homem, também agrada, e não pouco, uma espécie de brutalidade e extravagância [...] Portanto, Aquiles é inteiramente digno de amor, ao passo que a bondade de Enéias e de Godofredo, como sua sabedoria e a de Ulisses geram quase ódio.13
Nesse sentido, Nietzsche afirma que Leopardi assume a postura de um pessimismo
supra-histórico. Admirável para ele no sentido de demonstrar uma outra relação com o passado,
porém condenável sabedoria diante da necessidade de se ter uma esperança no futuro14. Nietzsche
se opõe citando os versos do poema A si mesmo de Leopardi, não por acaso, escolhe um poema no
qual Leopardi se apresenta mais desesperado: “Teus impulsos, nem digna é de suspiros/ A terra.
Nojo e tédio/ É a vida, nada mais, e lama é o mundo./ Repousa”15, pretendendo indicar um
pessimismo paralisante no poeta italiano e aproximando-o de Schopenhauer.
Desse modo, em contraponto a essa interpretação, é possível apresentar a crítica
histórico-política exposta por Leopardi nos Pensamentos, a qual demonstra a crítica do presente do
autor, não considerada por Nietzsche16. Na obra Pensamentos está presente a crítica da
modernidade, valendo-se da observação daquilo que compromete os princípios morais de uma
sociedade.
O modo de fazer a crítica demonstra uma experiência amarga, mas não resignada, pois
demonstrada de forma irônica. Leopardi transmite amargura em seu texto não por uma infundada
insatisfação, mas por ser impossível não transmitir, por fazer parte das conclusões da própria
experiência vivida. A amargura aparece como revolucionária para Benjamin, como ele afirma na sua
resenha17 sobre os Pensamentos, pois é resistência, é busca de compreensão da realidade que se
vive. Desse modo, Benjamin diz:
13 LEOPARDI, Giacomo. Pensamentos. In: LEOPARDI, Giacomo. Poesia e Prosa, trad. br. Affonso Félix de Souza, Alexei Bueno et al. Rio de Janeiro: Aguilar, 1996. p. 500. 14 NIETZSCHE, Friedrich, GALIMBERTI, Cesare (Org.). Intorno a Leopardi. p. 47. 15 LEOPARDI, Giacomo. Cantos. In: LEOPARDI, Giacomo. Poesia e Prosa, trad. br. Affonso Félix de Souza, Alexei Bueno et al. Rio de Janeiro: Aguilar, 1996. p. 268. 16 Cf. OTTO, Walter. Leopardi e Nietzsche. p. 156. Segundo Walter Otto, Nietzsche não conheceu a meditação crítica de Leopardi, principalmente dos escritos como Zibaldone e o Discurso de um italiano sobre a poesia Romântica. O primeiro publicado entre 1898 e 1900 e o segundo publicado em 1906. 17 BENJAMIN, Walter. Giacomo Leopardi: Pensamentos, trad. Tereza Callado. [online] Disponível em: http://www.gewebe.com.br/pdf/cad03/giacomo.pdf Acesso em: 11/09/2019. “[...] sua produção em prosa, plena de tomadas satíricas e amargura revolucionária.”
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[...] impor justiça ao pior mundo não é coisa de heroísmo, mas de resistência, perspicácia, sutileza e curiosidade. É esse experimento mortal com a matéria explosiva mundo que faz o “Pensieri” tão arrebatador. Ele é um oráculo manuseável, uma arte de sabedoria do mundo para os rebeldes. Seu moralismo cru, dilacerante, não está mais próximo de ninguém do que do espanhol Gracian. Apenas o que Leopardi arrancou de Recanati e Florença não tem a serenidade e a plenitude que Gracian deve à vida na corte.18
Há em Leopardi uma descrença na modernidade como destruidora das relações de
submissão, principalmente pela característica moderna da ferocidade mercantil, da preocupação
com o comércio, com o dinheiro e com o desejo de conquistar. Por isso ele afirma que no século XIX
é como se o dinheiro fosse, em essência, o homem19, pois é a única matéria que os homens
concordam, mesmo que discordem em todas as outras opiniões. Como se fosse suficiente para
tornar estáveis as virtudes e os bons costumes, o apoio da indústria e a vida financeira segura. No
entanto, afirma Leopardi:
[...] em companhia da indústria, a pobreza de espírito, a frieza, o egoísmo, a avareza, a hipocrisia e a ferocidade mercantil, todas as qualidades e todas as paixões mais perversivas e mais indignas do homem civilizado entram em vigor e multiplicam-se infinitamente; mas as virtudes se esperam20.
A conquista de poder sobre o outro engendra a luta de todos contra um e de um contra
todos, ela consiste na busca de abater o outro para tê-lo aos seus pés, e aquele que está sendo
abatido precisa manter a cabeça erguida de modo a se defender.
Assim, não escapou a Leopardi a diversidade de questões que surgem com o novo modo
de ser moderno. A moral, como ciência do bem viver, ao se dispor de modo convencional é
puramente especulativa, distante das ações, da prática humana e mais especulativa se distante da
política, pois a prática depende também das instituições e do modo de regular-se da nação. Por isso
Leopardi afirma: “Falais de moral quando quereis um povo mal governado: a moral é um dito, e a
política é um fato: a vida doméstica, a sociedade privada, qualquer coisa humana toma a sua forma
pela natureza geral do estado público de um povo.”21
Para provar a distância da relação dos juízos morais com as ações seja dos indivíduos ou
em escala nacional, Leopardi exemplifica com o caso da escravização dos negros africanos22. De
antemão ele afirma que no século XIX há uma concepção ética sobre a relação entre negros e
18 Cf. BENJAMIN, Walter. Giacomo Leopardi: Pensamentos, trad. Tereza Callado. 19 LEOPARDI, Giacomo. Pensamentos. p. 489. 20 LEOPARDI, Giacomo. Pensamentos. p. 489. 21 LEOPARDI, Giacomo. Zibaldone. p. 147. “Parlate di morale quanto volete a un popolo mal governato: la morale è un detto, e la politica un fatto: la vita domestica, la società privata, qualunque cosa umana prende la sua forma dalla natura generale dello stato pubblico di un popolo.” 22 LEOPARDI, Giacomo. Pensamentos. p. 496.
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brancos a qual afirma que apesar de raças e origens diferentes são parelhos quanto aos direitos
humanos. Já no século XVI, quando a concepção afirmava que negros e brancos tinham uma raiz
comum, mas quanto aos direitos, por natureza e pela vontade divina os negros eram infinitamente
inferiores. No entanto nem a concepção que afirma que há uma raiz comum entre negros e brancos,
nem a concepção moderna de igualdade de direitos impediu a dominação, como bem diz Leopardi:
“em ambos os séculos os negros foram comprados e vendidos, como obrigados a trabalharem em
cativeiro sob açoite23”.
Nesse sentido demonstra-se a fragilidade deste século em resolver as questões humanas
mais urgentes, pois se prioriza a criação moral de forma especulativa e não se olha para as ações24.
Portanto, é importante que a ciência moral ou mesmo a política não se separe da ciência humana25,
do conhecimento das coisas e ações humanas para operar alguma transformação, ir além dos fatos
e poder trazer algum ensinamento e conhecimento.
A preocupação com as questões políticas de seu tempo é notável em Leopardi, daí
Walter Binni afirmar o que ele foi capaz de realizar:
[...] diagnóstico obstinado e agudíssimo das bases mesmas da direção cultural do próprio tempo e das atitudes práticas e políticas das posições reacionárias ou liberais em embate entre elas (no crescente atrito entre Restauração e o movimento nacional-liberal e constitucional depois do fracasso substancial dos movimentos europeus e italianos de ’30-31’), mas no fim convergentes no entender de Leopardi – em um nível mais profundo – em relação às vias ideológicas equivocadas[...]26
Por conseguinte, o que vem à tona nesta passagem é a negação de Leopardi em relação
aos ideias liberais, bem como em relação àqueles da Restauração que eram substancialmente
reacionários. Mas também os ideais liberais revestidos de otimismo eram prejudiciais para a
humanidade. Tal compreensão faz Leopardi escrever em 1835 um poema intitulado Palinódia ao
23 LEOPARDI, Giacomo. Pensamentos. pp. 496-497. 24 Cf. MONTAIGNE, Michel de. SCREECH, M. A. (org.). Os ensaios: uma seleção. Trad. Rosa Freire Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 511. Importante notar uma proximidade desta discussão com o pensamento de Montaigne, autor do qual Leopardi foi um leitor. Montaigne ao discutir sobre a fragilidade das leis no julgamento e regulação das ações humanas diz: “O que ganharam nossos legisladores em distinguir 100 mil categorias e fatos específicos e a eles ligar 100 mil leis? Esse número não tem a menor relação com a diversidade infinita das ações humanas. A multiplicação de nossas invenções não conseguirá igualar a diversidade dos exemplos. Somem-se a isso mais cem vezes e ainda assim não será possível que entre os acontecimentos futuros haja só um que, em todo esse grande número de milhares de acontecimentos selecionados e repertoriados, possa se juntar e emparelhar com outro tão exatamente que não reste entre eles a menor particularidade e diferença e que não requeira um julgamento específico. Há pouca relação entre nossas ações, que estão em perpétua mutação, e as leis fixas e imóveis.” 25 LEOPARDI, Giacomo. Pensamentos. p. 492. 26 BINNI, Walter. La protesta di Leopardi. Firenze: Sansoni, 1973. p.152. “[...] diagnosi spietata e acutissima delle basi stesse della direzione culturale del proprio tempo e degli atteggiamenti pratici e politici delle posizioni reazionarie o liberali in urto fra loro (nel crescente attrito fra Restaurazione e movimento nazional-liberale e costituzionale dopo il fallimento sostanziale dei moti europei ed italiani del ’30-31’), ma alla fine per Leopardi convergenti – ad un livello più profondo – in vie ideologiche sbagliate[...]”.
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Marquês Gino Capponi, o qual demonstra o mais reprovável objetivo desses ideais, ou seja, enganar
a humanidade e enfraquecê-la culturalmente e politicamente. Nesse sentido, afirma Leopardi:
Divina solução acharam os gênios Excelsos do meu tempo: não podendo Fazer feliz pessoa alguma, o homem Esquecendo, se deram a procurar Uma geral felicidade, e aquela Achada facilmente, eles muitos Tristes e todos míseros, fizeram Um povo alegre: e tal portento, ainda Nos pamphlets, nas revistas, nas gazetas Não proclamando, o vulgo em massa admira.27
Também as promessas do século sempre foram observadas com muito cuidado por
Leopardi, recorrendo sempre à experiência para compreender o mundo e acessar a sua realidade.
Segundo Benjamin, como podemos observar ainda na resenha sobre os Pensamentos de Leopardi:
“Às vezes a espada escapou ao jovem Leopardi, mas ele resistiu na sua armadura. Nessa blindagem
se reflete, para ele, o mundo, desfigurado e dourado: intelligence-cuirasse (inteligência-couraça)28”.
Ele resistiu com as forças que tinha ao mundo que se apresentava "desfigurado e dourado” pelas
promessas do século. Mesmo sem a espada para combater a marcha do mundo moderno, resistiu
na própria compreensão desse mundo.
Diante do exposto, é possível aproximar o pessimismo de Leopardi de uma crítica do
presente e não de uma condição fisiológica em decorrência de males do corpo. Contrapondo o que
Nietzsche interpretou, ao afirmar sobre o pessimismo de Leopardi, como “fraqueza, cansaço e
decadência da raça.”29 Associando Leopardi ao conjunto do que ele chama de “pessimistas
modernos decadentes”30, como se tal pessimismo fosse expressão de uma “decadência
fisiológica.”31
Desse modo, ao apresentar a crítica do presente de 1835 dos Pensamentos, imanente ao
contexto histórico e não reduzida a um sentido cósmico, expomos que o pessimismo de Leopardi se
aproxima mais da posição que Nietzsche supõe como a sua, como descreve nos Fragmentos
Póstumos entre 1888-1889:
27 LEOPARDI, Giacomo. Cantos. p. 283. 28 BENJAMIN, Walter. Giacomo Leopardi: Pensamentos, trad. Tereza Callado. 29 NIETZSCHE, Friedrich, GALIMBERTI, Cesare (Org.). Intorno a Leopardi. p. 109. “debolezza, la stanchezza, la decadenza ella razza.” 30 NIETZSCHE, Friedrich, GALIMBERTI, Cesare (Org.). Intorno a Leopardi. p. 111. 31 NIETZSCHE, Friedrich, GALIMBERTI, Cesare (Org.). Intorno a Leopardi. p. 111.
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Aquilo que distingue Nietzsche: a espontaneidade de sua visão psicológica, uma vertiginosa amplitude de olhar, de experiência interior, de intuição, de revelação, uma vontade de coerência, a intrepidez diante da dureza e das consequências perigosas32.
Também aproxima ambos, o espírito poético, que em Nietzsche existe prescindindo da
composição poética propriamente dita, mas está presente nas obras filosóficas.33 Nietzsche foi,
junto a Pietro Giordani34, um dos únicos autores a considerar a obra de Leopardi sem separar poesia
e filosofia. Postura daquele, que para Antonio Prete, busca “o pensamento da poesia e o tecido
imaginativo da filosofia.”35 Para Prete, a história da crítica leopardiana impede a aproximação entre
imaginação e teoria, língua e pensamento, estrutura simbólica e análise e entre poesia e filosofia.36
No entanto, mesmo com tal contribuição para essa abordagem de Leopardi, o último
Nietzsche, na interpretação aqui apontada, não compreendeu a dimensão viva do pessimismo de
Leopardi, principalmente a noção de verdade ligada a esse pessimismo, pois foi a partir de uma
compreensão da realidade moderna que Leopardi assumiu uma postura pessimista e também um
ideal de verdade diferente daquele dos modernos. Para ele, uma verdade onipotente e puramente
racional não protege nossas raízes materiais, pois elimina a imaginação e as ilusões da compreensão
viva do mundo. Portanto, tal verdade, impõe uma compreensão unilateral. Como podemos
observar, Nietzsche também se contrapõe a essa premissa, ao afirmar o que é prioridade na
verdade:
Como se vê, neste livro, o pessimismo, de fato, para falar mais claramente, o niilismo, é considerado a <<verdade>>, mas a verdade não é considerada como um supremo critério de valor e ainda menos como suprema potência. O desejo de aparência, de ilusão, de engano, de transformação e mudança é considerado aqui mais profundo e original, mais <<metafísico>> do que o desejo de verdade, de realidade, de ser – e também este último é, ele mesmo, somente uma forma de desejo de ilusão. Da mesma forma, o prazer é considerado mais original que a dor: a dor é condicionada como uma mera consequência do desejo de prazer (do desejo de transformar, crescer, moldar e, portanto, avassalador, de oposição, de guerra, enfim, de destruição). Concebe-se um altíssimo estado de afirmação da existência, cuja a mesma dor, toda espécie de dor é incluída eternamente como meio de fortalecimento: o estado trágico- dionisíaco37.
32 NIETZSCHE, Friedrich. Frammentti Postumi: 1888-1889. 2. ed. Milano: Adelphi Edizioni, 1986. p. 21. “Ciò che distingue Nietzsche: la spontaneità della sua visione psicologica, una vertiginosa ampiezza di sguardo, di esperienza interiore, di intuizione, di rivelazione, una volontà di coerenza, L’intrepidezza di fronte alla durezza e alle conseguenze pericolose.” 33 OTTO, Walter. Nietzsche e Leopardi. p. 156. 34 Cf. LEOPARDI, Giacomo. Proemio (Pietro Giordani) In: Leopardi: Prose, Milano: Istituto editoriale italiano, vol. XXI, S/D. p. 375. No proêmio ao terceiro volume da obra de Leopardi, Pietro Giordani aproxima o poeta do filósofo, bem como do filólogo ao afirmar que Leopardi foi: “sumo filólogo, sumo poeta e sumo filósofo”. 35 PRETE, Antonio. Il pensiero poetante: Saggio su Leopardi. 3. ed. Milano: Feltrinelli, 1997. p. 65. “il pensiero della poesia e il tessuto immaginativo della filosofia.” 36 PRETE, Antonio. Il pensiero poetante: Saggio su Leopardi. pp. 65-66. 37 NIETZSCHE, Friedrich. Frammentti Postumi: 1888-1889. p. 20. “Come si vede, in questo libro il pessimismo anzi, a parlare più chiaro, il nichilismo, è ritenuto essere la «verità››; ma la verità non è considerata come un supremo criterio di valore e ancor meno come suprema potenza. La volontà di parvenza, di illusione, di inganno, di divenire e mutare è considerata qui più profonda e originale, più
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O pessimismo Leopardiano, em um sentido histórico é oriundo da compreensão do
mundo moderno, e, em sentido cósmico, oriundo da compreensão de que o nada é ontológico. O
nada é verdadeiro e tudo é nada, e daí também a presença inevitável da infelicidade quando do
conhecimento desse nada. A negação da possibilidade de felicidade em Leopardi, não é uma
renúncia absoluta ao mundo, pois não se equivale à negação de tudo que foi construído pelo
pensamento e pelos ideais.38 Daí a valorização dos antigos, como também das ilusões, não no
sentido negativo dado pela racionalidade, como aquilo que se opõe à clareza e distinção, mas no
sentido daquilo que faz parte da estrutura humana e nos permite construir ideais. A única realidade
está nas nossas ilusões, fantasias e enganos, pois são elas que impulsionam tudo que é nobre no
nosso pensamento sobre as coisas e nas nossas ações.
Ao conhecermos o nada no qual estamos imersos, nos resta valorizar apenas aquilo que
é grande, daí o pessimismo, em vez de traduzir-se em renúncia, buscar o que há de mais valoroso
sempre, não contentando-se nem com as promessas otimistas do século XIX nem com os limites
que a própria natureza nos impõe, ao nos condenar ao devir. Em Leopardi não há também o ímpeto
dionisíaco de abraçar a vida também na dor, que para Walter Otto “gerou o novo mito no entusiasmo
de uma eternidade esplendorosa”39, ou um niilismo ativo. Há a “capacidade de nomear o mal” e “a
firmeza em aceitar [...] o próprio e comum destino”40, “afrontá-lo e suportá-lo com maturidade.”41
Para Scalia a grandeza do último Leopardi e a sua resistência não se encontra na expressão sublime
da dor42, mas na capacidade de não manter “nem a cabeça ereta da presunção, nem a cabeça
inclinada da resignação.”43
Leopardi, no poema A Giesta ou a flor do deserto, demonstra tal resistência, a flor que
habita em meio ao nada, à aridez e à destruição, consegue afirmar e alegrar-se de algo, que não está
relacionado à própria dor oriunda da destruição, porém, por meio de uma sabedoria desesperada,
«metafisica›› della volontà di verità, di realtà, di essere - e anche quest'ultima è, essa stessa, solo una forma della volontà di illusione. Del pari, il piacere è considerato più originario del dolore*: il dolore è condizionato come una mera conseguenza della volontà di piacere (della volontà di divenire, crescere, plasmare e quindi di sopraff`azione, di opposizione, di guerra, insomma di distruzione). Si concepisce un altissimo stato di affermazione dell'esistenza, in cui lo stesso dolore, ogni specie di dolore è incluso eternamente come mezzo di potenziamento: lo stato tragico-dionisiaco.” 38 OTTO, Walter. Nietzsche e Leopardi. p. 161. 39 OTTO, Walter. Nietzsche e Leopardi. p. 177. “ha generato il nuovo mito nell’entusiasmo di una eternità splendente.” 40 SCALIA, Gianni. Pensatori Risoluti. p. 196. 41 SCALIA, Gianni. Pensatori Risoluti. p. 196. 42 SCALIA, Gianni. Pensatori Risoluti. p. 197. 43 SCALIA, Gianni. Pensatori Risoluti. p. 197. “nè il capo eretto dellla presunzione, nè il capo piegato della rassegnazione.”
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firma o seu canto44. Ela não se alegra da destruição, mas de poder nomeá-la, no canto conhece a
morte, não se crê imortal, ela é, por isso, menos débil e dá “um perfume que consola o deserto.”45
REFERÊNCIAS:
BENJAMIN, Walter. Giacomo Leopardi: Pensamentos, trad. Tereza Callado. [online] Disponível em: http://www.gewebe.com.br/pdf/cad03/giacomo.pdf Acesso em: 11/09/2019.
BINNI, Walter. La protesta di Leopardi. Firenze: Sansoni, 1973.
LEOPARDI, Giacomo. Cantos. In: LEOPARDI, Giacomo. Poesia e Prosa, trad. br. Affonso Félix de Souza, Alexei Bueno et al. Rio de Janeiro: Aguilar, 1996.
______. Pensamentos. In: LEOPARDI, Giacomo. Poesia e Prosa, trad. br. Affonso Félix de Souza, Alexei Bueno et al. Rio de Janeiro: Aguilar, 1996.
______. Zibaldone. 4. ed. Roma: Newton e Compton editori, 2016.
LOPARDI, Giacomo. Proemio (Pietro Giordani) In: Leopardi: Prose, Milano: Istituto editoriale italiano, vol. XXI, S/D.
MONTAIGNE, Michel de. SCREECH, M. A. (org.). Os ensaios: uma seleção. Trad. Rosa Freire Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
NIETZSCHE, Friedrich. Frammentti Postumi: 1888-1889. 2. ed. Milano: Adelphi Edizioni, 1986.
______, GALIMBERTI, Cesare (Org.). Intorno a Leopardi. Genova: Il Melangolo, 1992.
OTTO, Walter. Leopardi e Nietzsche. In: NIETZSCHE, Friedrich, GALIMBERTI, Cesare (Org.). Intorno a Leopardi. Genova: Il Melangolo, 1992.
PRETE, Antonio. Il pensiero poetante: Saggio su Leopardi. 3. ed. Milano: Feltrinelli, 1997.
SCALIA, Gianni. Pensatori Risoluti. In: NIETZSCHE, Friedrich, GALIMBERTI, Cesare (Org.). Intorno a Leopardi. Genova: Il Melangolo, 1992.
SEVERINO, Emanuele. Il nulla e la poesia. Alla fine dell’età della tecnica: Leopardi. 3. ed. Milano: BUR Rizzoli, 2010.
44 Cf. SEVERINO, Emanuele. Il nulla e la poesia. Alla fine dell’età della tecnica: Leopardi. p. 234. “Essa non dice «sì» al deserto, non gioisce del nulla, non è «il piacere dell’annientamento», a differenza del superuomo di Nietzsche. Il superuomo gioisce dell’annientamento, perché egli è l’eternità stessa del divenire: l’eternità del divenire gioisce dell’annientamento di ciò che essa deve bruciare per essere fiamma eterna. La ginestra, invece, è contenta del deserto, perché il deserto è ciò che essa canta – e che nel canto è sentito come origine e luogo della scontentezza” “Essa não diz "sim" ao deserto, não se alegra com o nada, não é "o prazer da aniquilação", ao contrário do super-homem de Nietzsche. O super-homem se alegra na aniquilação, porque ele é a eternidade do devir: a eternidade do devir se alegra na aniquilação do que deve queimar para ser chama eterna. A Giesta, por outro lado, está contente com o deserto, porque o deserto é o que canta - e que no canto é sentido como a origem e o lugar do descontentamento.” 45 LEOPARDI, Giacomo. Cantos. p. 289.
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NIETZSCHE E A DANÇA: O CORPO
COMO OBRA DE ARTE Raquel Rodrigues Rocha1
Para minhas irmãs de dança
RESUMO: O texto aborda a temática da dança no pensamento nietzschiano a partir das obras: O nascimento da tragédia e Assim falou Zaratustra. A intenção é apontar como é possível pensar a dança e o corpo como elementos da constituição da vida como obra de arte. Percebe-se que na relação estabelecida entre a dança e a filosofia de Nietzsche, a leveza da dança permite ao homem livrar-se do peso dos valores morais da sociedade e dessa forma, transformar a vida a partir da arte. A fruição estética provocada pela dança transporta o homem para um retorno ao uno primordial -- um estado de encontro com a natureza, intenso e infinito -- onde encontra-se a força artística delineada pelo filósofo, a partir da qual pensaremos o corpo como expressão da vida obra de arte. Na estética estabelecida pelo apolíneo e o dionisíaco, bem como na metáfora da dança a superação do homem se dá no movimento de transvaloração dos valores e do peso da existência guiados pelo corpo que se lança na cadência da dança. PALAVRAS-CHAVE: Dionisíaco; Apolíneo; Dança; Corpo; Arte.
ABSTRATC: The text approaches the theme of dance in Nietzchean thougth from the Works: The birth oh tragedy and Thus spoke Zarathustra. The intention is to point out how it is possible to think of dance and the body as elements os the constitution of life as a work ok art. It can be seen that in the relationshio established between Nietzsche´s dance and philosophy, the lightness of the dance allows man to free himself from the weigth of society´s moral values and in this way, being able to transorm life based on art. The aesthetic fruition caused by the dance that transports man to a return to the primordial one – a state of encouter with nature, intense and infinite – where the artistic force delineated by philosopher is found, from which we will think of the body as expression life work of art. In the aesthetics established by the Apollonian and the Dionysian, as well as in the dance
1 Doutora em Filosofia (UFRJ). Pesquisadora do Núcleo de Filosofia Francesa Contemporânea (NuFFC –UFRJ). E-mail: [email protected].
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mataphor, the overcoming of man occurs in the movement of values and weight of existence guided by the body that is launched in the dance cadence. KEYWORDS: Dionysian; Apollonian; Dance; Body; Art.
É necessário que uma causa sentimental, uma causa do coração se torne causa formal para que a obra de arte tenha a variedade do verbo, a vida cambiante da luz. (Bachelard)
“ Só como fenômeno estético, a existência e o mundo aparecem eternamente justificados”.
É com essa passagem escrita por Nietzsche em O nascimento da tragédia que estabelecemos o
ponto de partida e, talvez, de chegada do presente texto. Nossa intenção é apresentar a relação
entre o pensamento nietzschiano acerca da concepção de vida como obra de arte, apontando a
dança como expressão do corpo enquanto impulso artístico da natureza, uma vontade de potência,
um devir arte. Em Nietzsche, o espírito dançarino com sua leveza e liberdade conduz o homem em
sua jornada justificando a sua existência como fenômeno estético do corpo dançante. A dança
perpassa a construção do pensamento nietzschiano desde seus primeiros escritos, quando a dança
é usada para exemplificar o espírito dionisíaco, até a fase em que, para o autor, já não se interessam
as expressões artísticas que não dialoguem com a dança. “(...) somente o espírito dançarino e leve
pode abrir caminho para o caminho que conduz ao além-do-homem”. (Santiago Guervos, 2003, p.
84)
De início, é válido destacar que não se trata de uma análise fechada e aprofundada do
pensamento nietzschiano a respeito da arte da dança como forma de vida, porém uma proposta
de caráter ensaístico acerca da dança e do corpo como obra de arte. Trata-se mais de uma dança
de improviso coordenado2 entre as palavras e o pensamento, tomando a filosofia de Nietzsche
como norte teórico.3 Mais especificamente, utilizamos as concepções de dionisíaco, apolíneo
presentes n´O nascimento da tragédia, bem como a metáfora da dança presente em Assim Falou
2 O improviso coordenado faz referência a modalidade de dança Americam Tribal Style, presente no Tribal Style Bellydance criado pela bailarina Carolena Nericcio. 3 O presente texto resulta de algumas inquietudes filosófico-artísticas na tentativa de conciliação entre a dançarina e a filósofa que coabitam no corpo da autora.
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Zaratustra, para pensar a relação entre corpo e dança na construção de uma vida obra de arte a
partir da metáfora da superação do homem e da relação destruição-criação entre o apolíneo e o
dionisíaco.
Em Nietzsche, a questão “O que é a arte? ” vai de encontro à indagação pelo sentido próprio
da vida, e é na sua resposta que a vida justifica-se enquanto fenômeno estético.4 Pensando na vida
enquanto fenômeno estético vislumbramos a dança como expressão da natureza, uma potência
emocional que, através dos corpos dionisíacamente embriagados, conduz à força do ato de criação
da vida como obra de arte. É no movimento de expressão e criação da vida que a arte que deixa de
ser metáfora para tornar-se possibilidade, modo de existência. Nesse contexto, cabe então
indagar: Em qual ponto o homem deixa de ser artista e torna-se obra de arte? Quando a dança (a
arte) deixa de ser uma metáfora da vida e torna-se possibilidade de criação de si mesmo? São essas
questões que tentaremos responder. O primeiro passo aqui é compreender que existem níveis
interpretativos da dança em Nietzsche, a saber: o nível do pensamento que nos apresenta a dança
como alegoria, metáfora que guia o homem para superação de si mesmo; o nível da constituição
de uma estética dionisíaca, da liberdade e leveza de dançar a vida; e, por fim, o nível da dança como
expressão artística por excelência (presente em Zaratustra).5
Nossa hipótese inicial é que a dança deixa de ser uma metáfora da vida para transformar a
vida em obra de arte no momento em que ela, a dança, é tomada pela embriaguez dionisíaca,
quando o impulso artístico da natureza é mais forte que a presença apolínea. Em suma, é quando
o fruir da arte transborda pelo corpo que o homem, diluindo-se em sua dança, torna-se parte da
natureza, parte de um uno primordial, celebrando a vida livre das contradições da existência, um
devir que faz o homem “tornar-se o que é”, tal como destaca Rosa Dias: “ A essa ação dionisíaca,
Nietzsche dá o nome da arte de ‘Como tornar-se o que é’ ( Wie man wird, was man ist).” (2001, p.
98). Nesse sentido, ao sair do campo da metáfora, o homem, o filósofo que dança, se deixa
embriagar tomado pelo impulso da natureza, torna-se obra de arte.
A metáfora da dança
Ao relacionar a vida com a arte, Nietzsche lança mão da imagem metafórica do homem que
dança como uma saída para suportar a própria existência. Para o filósofo, a arte emprega na vida
4 Ver aqui DIAS, 2011, p, 85. 5 Ver aqui SANTIAGO GUERVOS, 2003 In: Cadernos Nietsche.
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o caráter de suportável, fuga da realidade via metafísica, o caminho pelo qual o ser humano
encontra o suporte para encarar a vida. É a força artística que transforma as imagens, as formas,
os sons, os movimentos em um modo de vida “vivível”, isto é, a arte oferece a possibilidade de
existência. Sem ela – a arte – o homem pode apenas sobreviver à vida, sem qualquer chance de
existência6. Como o Nietzsche destaca:
Vivemos, seguramente, graças ao caráter superficial de nosso intelecto, numa ilusão perpétua: necessitamos, para viver da arte a cada instante. Nossa visão nos prende às formas. Mas se somos nós próprios aqueles que educamos essa visão, vemos também reinar em nós mesmos uma força artista. (Nietzsche, 2007b, p. 27)
Em Assim falou Zaratustra, Nietzsche aponta a dança como um auxílio para reflexão
filosófica. O encontro de Zaratustra com a dança acontece na imagem da bailarina ao saltar e
desafiar a gravidade. Ao girar em seu próprio eixo tal como um redemoinho, a bailarina expressa
uma superação da gravidade, superação da própria condição física. Tal superação pode ser
compreendida como uma superação da consciência, pois ao comparar o giro da bailarina a roda que
gira por si mesma, Zaratustra diz: “uma roda a girar por si mesma, um primeiro movimento, um
sagrado dizer - sim” (Nietzsche, 1997, p. 102). Há, no rodopio da dança, uma ação que vai além da
própria mecânica do movimento, uma pulsão entre a consciência e o deixar-se levar da bailarina
onde a superação acontece. Ao girar, ainda que o movimento seja executado de forma consciente,
com a física e a técnica como suporte para o giro, a bailarina não racionaliza por completo a sua ação,
ela se deixa levar por essa pulsão que a alavanca no ar. O ato girar contém em si o ato da força
artística, é nesta força onde notamos o impulso que move o ser dançante num movimento de
arrebatamento que transcende a própria condição física. Numa comparação com as danças
ritualísticas, podemos afirmar que esse impulso de arrebatamento provocado pela dança, esse
largar-se da razão de si e da consciência é o próprio estado de transe provocado na e a partir da
dança.
Essa força de criação arrebatadora, segundo Nietzsche, conduz o homem na superação da
física e da consciência, ela é a dimensão da própria existência afirmada na beleza da superação pela
arte. Para o autor, a bailarina que gira sem cair e sem parar, representa o homem que está no
movimento constante de superação de si mesmo. Como afirma, Maria Rodrigues,
Com efeito, trata-se de uma experiência de superação. O giro possibilita a condição para a consciência aérea. Esta experiência, faz com que o bailarino gire ligeiro sob seus pés, ou, apenas sob um dos pés. Ele vai ter que vencer a peso do seu próprio corpo. Este corpo será
6 O termo existência aqui refere-se o sentido de transformar a vida em uma estilística da existência, um modo de vida que é criado pelo próprio homem e que lhe dá o sentido de vida em todos os seus aspectos.
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sustentado na medida em que ele dá o impulso necessário, no momento exato da superação pelo peso da gravidade. (2016, p, 13)
Deste modo, dança e filosofia são análogas na medida em que dão ao homem o suporte, a
força, a vontade de potência para que assim como a bailarina que gira leve sem cair, o homem supere
a si mesmo e superando a si mesmo, ele possa afirmar sua existência. Em linhas gerais, é essa
superação de si como um posicionamento de vida, afirmação de si mesmo, o que o move Zaratustra
em sua descida da montanha. Pois, tomado pelo brilho do sol que representa a luz e a sabedoria,
Zaratustra pretende levar um presente aos homens, anunciar a morte de Deus e a necessidade de
superação do próprio homem para tornar-se super-homem, responsável por uma própria existência
em toda sua potência. “Quero ensinar aos homens o sentido do seu ser: que é o super-homem, o
raio que rebenta da negra nuvem chamada homem. ” (Nietzsche, 1997, p.44)
Podemos interpretar que o contato de Zaratustra com a imagem do corpo que dança em
movimento de superação abre um horizonte de perspectiva acerca da vida em sua mais profunda
necessidade de afirmação imanente no mundo. Imbuído da vontade de ensinar aos homens o
sentido de ser, Zaratustra desce a montanha para sua jornada de superação e encontro com os
homens. Em sua caminhada pelos povoados, Zaratustra entra em contato com os seres humanos
em suas mais variadas versões e na medida que encontra os personagens/homens que cruzam seu
caminho, ele profere seu discurso, isto é, o projeto do homem que supera a si mesmo, um super-
homem (Übermensch) capaz de afirmar a si mesmo, justificando a sua existência por si mesmo. É
importante ressaltar aqui que essa caminhada representa a história do ocidente contada e marcada
pela tradição cristã e metafísico-filosófica. Ao narrar a caminhada e transformação do homem na
busca por superação após a morte de Deus, Nietzsche tece toda uma crítica à tradição do
pensamento em um movimento de ruptura com a metafísica e a filosofia.
O caminho das metamorfoses do espírito do homem, pelo qual Zaratustra nos guia, é
fundamental para que possamos interpretar a relação entre a transformação-superação do homem
e o próprio percurso de constituição da dança como arte que garante a existência. Pois, assim como
o corpo da bailarina e sua dança estão em constante processo de aprendizagem e superação, a
experiência das três metamorfoses em Zaratustra apresenta o homem como um projeto inacabado
de natureza mutável. A metamorfose é o caminho para superação constante do homem, ela é o
meio para ele tornar-se super-homem, transcender, tal como faz a bailarina em seu processo de
rodopiar em seu próprio eixo sem sair. A transformação do homem, acontece, portanto, no percurso
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da vida, ela – a vida - é o salto que o homem precisa dar para dentro de si mesmo na busca de sua
transcendência, da plenitude da vida e repetição da história.
Em linhas gerais, podemos destacar que o caminho da transformação do homem, a
transformação do espírito, é um caminho doloroso. Pela dor é possível haver a criação, a
transmutação da dor em algo novo e belo, este belo é a própria vida moldada no e pelo homem que
busca constituir a si mesmo diante da morte de Deus. Nietzsche aponta em Zaratustra a jornada da
transformação que permite aos homens tornarem-se superiores, através de seu profeta. Ele nos fala
sobre 3 metamorfoses e a forma “como o espírito se torna camelo e o camelo, leão e o leão, por fim,
criança”, (Idem, p.51). Essas transformações acontecem na passagem pela desertificação no mundo
após a morte de Deus. As 3 metamorfoses do espírito simbolizam a dor da transformação gerada
pela insurgência do novo.
O espírito do camelo é o primeiro encontrado por Zaratustra, ele simboliza o espírito que
trabalha pesado, obedece às ordens como orientação de vida. Nessa fase do camelo, o homem que
trabalha pesado, suporta grandes fardos, é resiliente, se deixa tomar pelas dificuldades que a
realidade lhe apresente. É assim que o camelo representa o fardo, o peso que o espirito carrega no
começo de sua travessia pelo deserto, o camelo é o espírito que tudo suporta. O espírito do leão,
mais forte que o camelo, quer libertar-se desse fardo de tudo suportar, ele quer ser o dono de si, livre
das amarras de um senhor. O leão simboliza a força do “eu quero” e, embora não crie novos valores,
ele oferece a liberdade para que haja a criação. Essa criação vem com a transformação no espírito
da criança. A terceira metáfora é o novo homem, renascido e pronto para uma nova vida, ela
simboliza a inocência do recomeço, o esquecimento, início de um novo ciclo, a força da criação,
impulso, a vontade de potência. A criança é a mais poderosa de todas as metamorfoses, o espírito
infantil é livre, forte e criativo, compreende o amor pela vida, diz sim para existência e brinca com
ela de forma espontânea, é o movimento dos seres pela sua vontade. É o espírito metamorfoseado
em criança que ama, brinca e que dança a própria vontade de potência da vida sem peso algum. A
criança é o salto do homem para dentro de si mesmo, é o rodopio livre da bailarina, é a superação
do homem.
É na superação que está o presente de Zaratustra para os homens. Cheio da luz da sabedoria,
Zaratustra oferece aos homens a possibilidade da transformação do seu modo de ser, modo este
que se dá na superação de si. Superação que não deve ser compreendida como um movimento
externo, mas sim num salto de interiorização na busca por uma transcendência, um
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transbordamento, uma vida que é vivida nela mesma, num eterno retorno enquanto tempo que não
tem começo e nem fim, que é circular e dá ao homem a noção de vida enquanto acontecimento
único em que cada momento deve ser vivido em sua intensidade. Numa relação de semelhança
entre o homem e a bailarina, o salto para dentro de si e o rodopio dançante, homem e bailarina
transcendem a mera sobrevivência, afirmam seu ponto existente, o homem como super-homem, a
bailarina como corpo-vida que se faz obra de arte. É aqui que o homem, artista de si, torna-se autor
de sua própria existência, é a vida a sua principal obra de arte.
Portanto, na relação entre Nietzsche e a dança como expressão da liberdade, criatividade e
movimento de superação, a dança foge do senso comum, transforma o que é normativo em um
movimento de destruição, criação e constante transformação da vida, do corpo obra de arte. “A
vida, interpretada como algo em constante mutação, encontra na dança sua metáfora plena de
fluência imprevisível, leveza incorporada, graça transfiguradora e criatividade lúdica” (Mello, 2012,
p.79).
Apolíneo e dionisíaco.
A transformação do artista em obra de arte acontece na superação do caminho da
metamorfose apresentado em Zaratustra, no qual o filósofo relaciona o homem que dança ao
filósofo. Essa superação pode ser melhor compreendida a partir da relação hora antagônica, hora
conciliadora entre o apolíneo e o dionisíaco apresentada sob o ponto de vista da tragédia grega. É
aqui, no seio da tragédia, onde a vida e arte são compreendidas a partir do que Nietzsche chama de
“impulso da natureza”, é nesse impulso que as força da arte se desdobra/redobra sob duas
perspectivas antagônicas e complementares: o apolíneo e o dionisíaco. Impulso esse que pode ser
compreendido na poesia de Isabela Barakat7:
“ Eu vou dançar a impermanência
O ritmo, rismos que a vida mede...
... Eu vou dançar a inconstante
Métrica
O pulso irregular e
7 Isabela Barakt é artista, dançarina do ventre contemporânea, professora, pesquisadora, produtora e poetisa.
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Assimético....
... Eu vou dançar as teias
Que esquinam nos
Encontros
A trama dos diálogos
Entre fios...
Eu vou dançar a beleza e a raiva
Da certeza do que não há
O certo...
... Eu vou dançar o percurso
Da bacia aos extremos
Do macro a nenhum
Movimento
A música do silente
movimento”.
Em O nascimento da tragédia, compreendemos que a música, junto a dança, é considerada o
elemento fundamental da arte como meio de restituição da vida. Elas dão ao homem grego a
capacidade de transcendência e suporte para que a vida seja possível de ser vivida. Essa união
música-dança, segundo Nietzsche, acontece no teatro, é na arte teatral que é possível experienciar
a forma pela qual a arte une a música dionisíaca ao aparato técnico apolíneo. O teatro é a expressão
artística que conduz os homens e ao mesmo tempo controla a explosão dionisíaca, pois todo o seu
aparato de cenário, formação do coro, sua estrutura arquitetônica, tudo é previamente pensado e
contribui para conduzir as emoções, regular o impulso natural da arte dionisíaca. Para o homem
grego, como aponta Nietzsche, a arte servia de meio pelo qual seria possível “refrear” o impulso pelo
conhecimento. Ela, com sua potência de criação, põe o conhecimento à serviço da vida e não a vida
à serviço do conhecimento, é o remédio para o conhecimento. O homem grego, por meio de arte,
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afirma sua vida como potência criadora, que só é possível a partir da ilusão e da representação da
arte.
Como nasce a arte? Como remédio para o conhecimento. A vida só é possível através das ilusões artísticas. A existência empírica condicionada pelas representações. A quem é necessária essa representação artística? Se o uno primordial precisa de aparência, seu ser é, então, a contradição. A aparência, o devir, o prazer. (Nietzsche apud Burnnet, Henry. 2012, p. 21. NT, 18; KSA 7, p. 1988)
É pensando na arte como o jogo de forças, que se opõem e se complementam, entre Dionísio
e Apolo, que Nietzsche põe diante de nós o processo de transformação da vida em obra arte. O que
o autor nos apresenta, ante a relação de forças da arte, é como o sofrimento provocado na
destruição da tragédia traz consigo a ideia de uma arte que totaliza a vida, unindo-a em todos os
seus aspectos. Uma arte-existência que, entregando-se à embriaguez dionisíaca, conecta o homem
ao uno primordial, ao lugar no qual destituído de sua individualidade, o homem dissolve-se na
natureza, torna-se universal, infinito, homem-natureza, sem distinção entre um e outro. Nesta
perspectiva, podemos compreender como a arte trágica é posta a serviço da vida, pois, é ela o
impulso da natureza que transforma o trágico no sublime, “traz de volta o grego sofredor, conforta-
o, proporciona-lhe a possibilidade de transformar o horrível em sublime. (...) A arte em favor da vida
- eis a chave do pensamento de Nietzsche. A arte transfigura o ser existente, mas só a tragédia
exprime a crença na eternidade da vida” (Dias, 2011, p.94).
Grosso modo, podemos compreender a relação feita entre a arte apolínea e dionisíaca como
a relação estabelecida entre a ordem, a técnica e o fruir emocional. O sonho e a embriaguez, em que
a projeção de imagens, a imaginação figurativa, a arte da pintura, escultura e poesia representam a
arte apolínea; e, o caos, a embriagues, o deixar-se levar pela vontade representam a arte dionisíaca.
A força de Apolo é a força da conservação, ordenação, da lei, ela revolve o homem no princípio da
individuação. Já a música, a dança, despertam uma potência emocional que representa um
abandonar-se ao sentimento próprio da embriaguez da arte dionisíaca, o êxtase, o que Nietzsche
chama de “impulso artístico da natureza”, com o qual é possível alcançar o uno primordial.
Nesse sentido, enquanto Apolo organiza o mundo tirando-o do caos original, ordenando as
forças da natureza, criando regras para dominá-las, Dionísio traz à tona tudo aquilo que escapa à
ordenação apolínea, a explosão de uma vontade de potência que transborda o impulso emocional,
destrói a ordem apolínea e, no êxtase de seu movimento, deixa vir à superfície o desejo de tornar-se
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infinito, ser absorvido pela unidade originária, isto é, pela natureza, pelo universal. Como destaca
Rosa Dias:
Sob o mundo das aparências, das formas, da beleza, da justa medida, está o espaço de Dionísio – o nome grego para o êxtase. Dionísio é o deus do caos, da desmesura, da deformidade, da noite criadora do som, é o deus da música, mãe de todas as artes. Nascido da fome e da dor, perseguido, dilacerado pelos deuses hostis, Dionísio renasce a cada primavera e aí cria e espalha alegria. (Idem, p. 87)
É importante ressaltarmos que a arte é possível a partir do confronto e da conciliação entre
Apolo e Dionísio, técnica e emoção. É a técnica, a ordem apolínea que permite a criação, a
imaginação, ela é o impulso para que haja o fruir dionisíaco da emoção. Assim sendo, Nietzsche
apresenta a arte que surge de Apolo como legitimadora da existência do homem grego, existência
que ao se deixar esquecer de si pela embriaguez de Dionísio, conhece o absurdo da existência. É
nesse absurdo que o homem grego, o artista grego encontra uma forma de afirmar a sua existência
de modo mais duradouro: na transformação do trágico, do sofrimento da aniquilação em algo
sublime que torna a existência suportável, restaurando a vida em sua eterna vontade. “Somente a
partir do espírito da música, entendemos a alegria diante do aniquilamento do indivíduo”
(Nietzsche, 2007 a, p. 16). A música reproduz o que seria o uno primordial, o estado de natureza que
traz um consolo metafísico.
Sob tal perspectiva, compreendemos a arte dionisíaca como a via através da qual é possível
tirar o homem do sofrimento ante a dissolução da metafísica, permitindo-o tornar-se quem ele é,
transforma-se de artista em obra de arte de si mesmo. Em outras palavras, livre das amarras
metafísicas e do sofrimento da existência, o homem tomado pela possibilidade de ver a si mesmo e
o mundo a partir do filtro da arte pode, então, tornar-se quem ele é a partir do deixa-se levar do seu
corpo tomado pelo impulso dionisíaco. É aqui que reside a ideia de uma estética da existência, uma
afirmação da vida por meio do corpo que se faz arte. É o corpo que, lançado no sopro da embriaguez,
permite-se um fruir artístico da dança como expressão de si mesmo por completo, em união com
consigo mesmo e a natureza primordial. É no fruir do corpo em estado de dança que se dá o encontro
da arte enquanto meio pelo qual o homem pode ser como é, afirmar-se e criar a si mesmo como obra
de arte, onde há a superação da metáfora, o consolo da ruptura com a metafísica. Dançando, o
homem grego, tal como o espírito da criança, diz sim à vida.
Na arte, principalmente na música e na dança, vemos o corpo que abriga a luta antagônica
e a conciliação entre a criação e a regra apolínea, entre o intempestivo e o êxtase dionisíaco, no
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movimento guiado pela música, irrompe no corpo a embriagues na qual o homem torna-se parte do
infinito, diluído no fluir leve do corpo que transformar-se em vento, água, poeira, natureza primeira
e última que traz em si a beleza de ser ela mesma a potência criadora da vida livre. Como afirma
Nietzsche na segunda parte de Humano demasiado humano, parágrafo 74: Contra a arte das obras
de arte: “A arte deve, sobretudo e principalmente, embelezar a vida, ou seja, tornar a nós mesmos
suportáveis e, se possível, agradáveis para os outros”. Este embelezar a vida não é, para Nietzsche,
algo do ponto de vista do uso dos artifícios cosméticos e ou cirúrgicos para esconder uma realidade
sem graça, trata-se de tornar a vida bela a partir da arte, sair do lugar confortável de criatura e
tornar-se criador, artista da própria existência, afirmar a vida em toda sua natureza e vontade de
potência.
Podemos então afirmar: é se deixando levar pela embriaguez dionisíaca que o corpo obra de
arte transborda em um movimento de natureza selvagem sem começo e sem fim, rodopia e
exclama: "Deixa eu dançar pro meu corpo ficar odara8”! Por fim, pedindo licença poética ao próprio
Nietzsche em sua nota sobre o espetáculo Carmina, finalizamos com a alegre e potente constatação
que ao deixar-se levar pelo impulso dionisíaco é possível sentir: “ há uma deusa, e ela dança em
mim”.
REFERÊNCIAS:
BACHELARD, Gaston. Imaginação e matéria, in: A água e os sonhos. Traduzido por António de
Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2013.
BURNETT, Henry. Para ler o nascimento da tragédia de Nietzsche. São Paulo, SP: Loyola, 2012.
DIAS, Rosa. Nietzsche, vida como obra de arte. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 2011.
MELLO, Ivan Maia de. O corpo criador, dançarino-poeta da própria existência. In: Revista Trágica:
estudos sobre Nietzsche. 1º semestre de 2012 – Vol. 5, nº 1.
8 Trecho da canção Odara, composta por Caetano Veloso. Aqui também cabe mencionar o significado da palavra Odara, oriunda do Iorubá e pode ser traduzida como lindo, belo. Tomando tanto a canção de Caetano numa livre interpretação como o sentido da palavra em Iorubá: dançar tem o sentido de tornar o corpo e, consequentemente, a vida em algo belo.
Nietzsche e a dança: o corpo como obra de arte, pp. 535-546
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NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo:
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---------------. O livro do filosofo. São Paulo, SP: Ed. Escala, 2007b.
---------------. Assim falou Zaratustra. Rio de Janeiro, RJ: Civilização brasileira, 1997.
--------------. Humano demasiado humano. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2000.
RODRIGUES, Maria Norma Duarte. A metáfora da dança em Nietzsche. Faculdade São Bento: São
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SANTIAGO GUERVÓS, Luiz Henrique de. Nos limites da linguagem; Nietzsche a expressão vital da
dança. In: Cadernos Nietzsche, 2003, nº14.
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O GÊNIO METAFÍSICO NO PENSAMENTO DO
JOVEM NIETZSCHE David Rogério Costa de Lima1
RESUMO: Nosso objeto, no presente artigo, será apresentar a figura do gênio, sob a dupla faceta do filósofo-artista, como transfigurador da physis, legislador e criador de novos valores. Primeiramente em O nascimento da tragédia, ressaltando, principalmente, os seguintes aspectos: 1) o movimento criador do mundo como um ato de criação artística; 2) os impulsos artísticos, apolíneo e dionisíaco, encontrados no âmbito da natureza; 3) o gênio como um medium, através do qual realiza-se a união do homem com a Natureza; 4) a arte trágica como reconciliadora do impulsos apolíneo e dionisíaco. Posteriormente, nas Considerações extemporâneas, abordaremos a atividade do gênio, principalmente como: 1) transfiguradora da physis, eliminando a distinção entre cultura, arte e vida, apresentado a unidade de estilo artístico de um povo; 2) criadora e legisladora de novos valores. Com isso, procuraremos demonstrar como o gênio é, neste momento do pensamento de Nietzsche, o principal agente da justificação estética da existência.
PALAVRAS-CHAVE: Gênio. Arte. Cultura. Tragédia. ABSTRACT: Our object, in this article, will be to present the figure of the genius, under the double facet of the philosopher-artist, as a transfigurator of physis, legislator and creator of new values. Firstly, in The birth of tragedy, emphasizing, mainly, the following aspects: 1) the creative movement of the world as an act of artistic creation; 2) the artistic impulses, apollonian and dionysian, found in the realm of nature; 3) genius as a medium, through which the union of man and Nature takes place; 4) tragic art as a reconciler of the apollonian and dionysian impulses. Later, in the Untimely meditations, we will approach the genius' activity, mainly as: 1) transfiguration of physis, eliminating
1 Mestre em filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Integrante do GENi - Grupo de Estudos Nietzsche da UECE. Email: [email protected].
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the distinction between culture, art and life, presenting the unity of a people's artistic style; 2) creator and legislator of new values. Thereby, we will try to demonstrate how genius is, at this moment in Nietzsche's thought, the main agent of the aesthetic justification of existence. KEYWORDS: Genius. Art. Culture. Tragedy.
INTRODUÇÃO
Abordaremos, como temática central, a problemática do gênio no chamado período de
juventude do pensamento de Nietzsche, a ele correspondem O nascimento da tragédia e as quatro
Considerações extemporâneas. Este momento do pensamento de Nietzsche, também conhecido
como metafísica de artista, apresenta a figura do gênio sob a dupla faceta do artista-filósofo. Em
ambos os momentos o gênio aparece como uma espécie de transfigurador da physis e unificador do
homem com a Natureza. Em O nascimento da tragédia, Nietzsche apresenta os impulsos artísticos
(apolíneo e dionisíaco) no âmbito da própria Natureza, buscando encarar assim, segundo ele
próprio, pela primeira vez, a arte sob a ótica da vida. Nessa obra, o gênio aparece como o mediador
da união do homem com o Uno-primordial.
Nas Considerações extemporâneas, o nosso autor apresenta seu conceito de cultura como
unidade de estilo artístico através de todas as manifestações de vida de um povo, em contraposição
ao que ele chamava de caos estilístico da modernidade. Nietzsche, nesse momento, aponta para a
necessidade da formação [Bildung] do gênio. O gênio seria aquele, portanto, que emanado e
formado no seio de um povo, unifica cultura e vida e hierarquiza os instintos de um povo,
desenvolvendo sua unidade de estilo, e elevando esse povo a um novo patamar de cultura. Com isso,
procuraremos demonstrar como o gênio aparece nesse primeiro pensamento de Nietzsche, ligado
a um projeto artístico, cultural e pedagógico, no qual o gênio deve assumir o papel de criador e
legislador de valores, eliminando a contradição entre arte, cultura e vida, e realizando a justificação
estética da existência.
O pessimismo grego e sua superação através da aparência; o apolíneo Nietzsche nos apresenta, em O Nascimento da tragédia, uma abordagem do povo grego
como um povo com forte aptidão para o sofrimento e pessimista em seu âmago. Sob toda a
grandeza e a beleza que resplandecem em todo o mundo grego, em sua chamada
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serenojovialidade2, está a popular sabedoria do sátiro Sileno, que segundo o conto popular, quando
capturado e indagado pelo rei Midas qual dentre todas as coisas era a mais preferível, depois de
muita reluta finalmente responde: “Estirpe miserável e efêmera, filhos do acaso e do tormento! [...]
O melhor de tudo é para ti inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser. Depois disso,
porém, o melhor para ti é logo morrer” (GT/NT3, § 3, p.33). Somente a partir desse terror perante a
existência foi possível ao grego a criação do mundo apolíneo, para encobrir o abismo de sofrimento
e pessimismo em que se encontrava o grego cria o mundo onírico dos deuses do Olimpo: “O grego
conheceu e sentiu os temores e horrores do existir: para que lhe fosse possível de algum modo viver,
teve de colocar ali, entre ele e a vida, a resplendente criação dos deuses olímpicos” (GT/NT, § 3 p.33).
Desse modo, o povo grego transfigura o mundo a sua volta em um mundo desejável e cheio de
sentindo, realizando assim a justificação da existência através da aparência, isso é o que Nietzsche
chama de arte apolínea.
Roberto Machado, em sua obra Nietzsche e a verdade, trata assim o assunto: “Por que os
gregos criaram os deuses olímpicos ou a arte apolínea? Para tornar a vida possível ou desejável,
dando ao mundo uma superabundância de vida. A criação da arte apolínea, que tem na epopeia
homérica sua mais importante realização, é a expressão de uma necessidade” (MACHADO, 2017
p.24-25). O chamado mundo apolíneo surgiu então, da absoluta necessidade que os gregos sentiram
em superar aquele aniquilador estado anímico em que se encontravam. O mundo apolíneo é o
mundo da beleza, a beleza para o grego não existe naturalmente, ela deve ser criada: “O mundo
grego da beleza é o mundo da ‘bela aparência’; a beleza é uma aparência” (MACHADO, 2017, p.26).
Tornar o mundo belo é o mesmo, para o grego, do que tornar o mundo divino, sem, entretanto, fazer
aquela dissociação entre o bem e o mal, verdadeiro e falso, dessa forma os deuses gregos são
capazes de cometer atos bons ou maus, de mentir ou enganar, sem com isso perder seu status de
divindades: “Os deuses do olímpicos não foram criados como uma maneira de escapar do mundo
em nome de um além-mundo, nem ditam um comportamento religioso baseado na ascese, na
espiritualidade, no dever: são a expressão de uma religião da vida [...] que diviniza tudo o que existe”
2 A recusa de Nietzsche em pensar o mundo grego a partir da noção de serenojovialidade [griechische Heiterkeit], deve-se ao fato de
essa noção apontar para a origem unicamente apolínea do mundo grego. Roberto Machado afirma que Nietzsche nutria apreço pelos estudos clássicos da antiguidade grega, mas: “isso não significa que Nietzsche aceite os dados iniciais do problema, isto é, a caracterização da Grécia pela serenidade, como se os gregos tivessem sido exclusiva ou essencialmente apolíneos. Criticando os pensadores que tiveram essa visão do problema, Nietzsche relacionará a serenidade com um aspecto mais profundo da Grécia: o dionisíaco. Se, então, ele critica o que pensadores como Winckelmann e Goethe disseram da serenidade grega, é por considerar que a Grécia só pode ser pensada a partir do fundo asiático do dionisíaco, que não teria sido levado em conta por eles” (MACHADO, 2006, p.242).
3 Abreviatura para Die Geburt der Tragödie / O Nascimento da tragédia.
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(MACHADO, p.25-26). A aparência é, portanto, avaliada sempre positivamente por Nietzsche ao
longo de toda a sua obra, e com especial ênfase em seus primeiros escritos. Machado, na obra citada,
lembra-nos do caráter de necessidade que Nietzsche imputa à aparência. O Uno-primordial, termo
que Nietzsche utilizava para designar o Ser verdadeiro (o equivalente ao que Schopenhauer
chamava de Vontade), por viver em constante dor e contradição consigo mesmo acaba por
fragmentar-se, criando assim o mundo fenomênico: “Uma força vinda dele mesmo obriga-o a
fragmentar-se, a multiplicar-se em seres finitos, a fixar-se em imagens e a produzir o mundo das
formas individuais, da realidade fenomênica” (DIAS, 2011, p.88). O mundo fenomênico por ainda
conter as dores dessa fragmentação, busca reproduzir o processo original, porém agora através do
processo estético da criação das belas formas. Como Machado bem ressalta: “O mundo apolíneo da
beleza é o mundo da individuação (do indivíduo, do Estado, do patriotismo), da consciência de si. A
individualidade, a consciência, é uma aparência, uma representação do uno originário. Através do
principium individuationis se produz a transfiguração da realidade que caracteriza a arte: é isso que
constitui o processo artístico originário” (MACHADO, 2017, p.28). É justamente esse desejo pela
aparência, essa necessidade de transfiguração artística, que permite ao grego resistir ao seu
profundo pessimismo, à sabedoria de Sileno.
O salto no abismo do dionisíaco; o apolíneo e o dionisíaco na arte trágica O mundo apolíneo, da aparência, do sonho é, no entanto, somente um véu – o véu de Maia
– com o qual o grego encobria toda aquela realidade que lhe parecia insuportável. Aquele instinto
aniquilador, porém, que descansa por baixo do manto apolíneo não poderia mais permanecer
ignorado. Ao entrar em contato com os rituais bárbaros oriundos do Oriente em festejo ao deus
Dioniso, com toda a sua exuberância, êxtase, orgias e embriaguez, todo aquele turbilhão de dor,
sofrimento e contradição retorna ao âmago da alma do povo grego. O grego sentiu então o risco de
ver todas as suas edificações caírem por terra4. No estado dionisíaco o principium individuationis é
rompido, o homem festeja sua união com o Ser primordial: “As festas de Dioniso não firmam apenas
4 Nietzsche utiliza o elemento apolíneo sempre como uma forma de expressar os elementos conscientes e éticos de uma civilização,
em oposição ao elemento bárbaro dionisíaco que está em seu fundamento. Como Young salienta: “Nietzsche uses ‘Apollonian’ in this sense in, for example, all those contexts in which he wishes to speak of the ethical and social consequences of various modes of consciousness and which the Apollonian is opposed to the barbaric as the fundamental civilization-forming force” [Nietzsche usa "apolíneo" nesse sentido, por exemplo, em todos os contextos em que ele deseja falar das conseqüências éticas e sociais de vários modos de consciência e que o apolíneo se opõe ao bárbaro como força fundamental de formação da civilização] (YOUNG, 1992, p.32; tradução nossa).
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as ligações entre os homens, elas também reconciliam homem e natureza” (DW/VDM5, § 1, p.8). Com
isso o homem não reconhece mais as construções do mundo apolíneo: indivíduo, família, cidade,
pátria: “o êxtase dionisíaco produz, enquanto dura, um efeito letárgico que dissipa tudo o que foi
vivido no passado: é uma negação do indivíduo, da consciência, do Estado, da civilização, da
história” (MACHADO, 2017, p.32).
Importante apontar para o status de obra de arte que Nietzsche confere ao homem nesse
estado dionisíaco: “o homem não é mais artista, tornou-se obra de arte, caminha tão extasiado e
elevado como vira em sonhos os deuses caminharem” (DW/VDM, § 1, p.9). Rosa Dias, em sua obra
Nietzsche, vida como obra de arte, ressalta essa questão:
Com a morte ou aniquilação das individualidades, o homem retorna ao estado natural, reconcilia-se com a natureza. Essa reunificação gera um prazer supremo, um êxtase delicioso que ascende desde o íntimo de seu ser e mesmo da natureza, ressoando em “gritos de espanto” e “gemidos nostálgicos”. Com cantos e danças, esse ser entusiasmado, possuído por Dioniso, manifesta seu júbilo. Dá voz e vez à natureza. Voz e movimento que não se acrescentam a ela como algo artificial, mas parecem vir de seu âmago. Assim, cantando e dançando, manifesta-se o homem como membro de uma comunidade superior: “Ele não é mais artista, tornou-se obra de arte” (DIAS, 2011, p.89).
Depois desse momento de prazer ilimitado, de sentir-se unificado à natureza, ao retornar à
sua existência individual, novamente o grego se defronta com abismo da existência, seu absurdo e
falta de sentido: “A visão da essência eterna e imutável das coisas faz com que ele desista de agir e
construir uma civilização. A civilização, que é um mundo aparente, fenomenal, é revelada como
impostura pela natureza, pelo núcleo eterno das coisas, pela verdade dionisíaca” (MACHADO, 2017,
p.33). É preciso, portanto, que o grego novamente transfigure essa realidade incômoda, e mais uma
vez será o elemento apolíneo que virá em socorro do povo grego. O grego envolve o furor dionisíaco
com a lucidez apolínea dando-lhe limite e ordem: “É o momento em que Apolo vem em socorro do
artista, distinguindo-o, envolvendo-o no véu da ilusão, salvando-o do desejo de perder-se na
vontade e de aniquilar-se no devir dionisíaco” (DIAS, 2011, p.91). Dominar o caos em si, essa foi a
grande tarefa do povo grego, e o seu grande êxito está em conseguir conciliar apolíneo e dionisíaco
no âmbito da obra de arte:
A característica da nova estratégia é integrar, e não mais reprimir, o elemento dionisíaco, transformando o próprio sentimento de desgosto causado pelo horror e pelo absurdo da existência em representação capaz de tornar a vida possível. Mérito ainda de Apolo, mérito do deus do sonho e da beleza, porque mérito da arte. Se dessa vez Apolo salva o mundo helênico atraindo a verdade dionisíaca para o mundo da bela aparência é porque transforma um fenômeno natural em fenômeno artístico. E, se essa transformação do dionisíaco puro, bárbaro e oriental em arte salva a civilização grega, é porque integra a experiência dionisíaca
5 Abreviatura para Die Dionysische Weltanschauung / A Visão dionisíaca do mundo.
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ao mundo helênico, aliviando-a de sua força destruidora, de seu “elemento irracional”, espiritualizando-a (MACHADO, 2017, p.34).
Dessa vez será a lucidez o elemento apolíneo a se introduzir no dionisíaco, o que dá ao estado
dionisíaco o caráter de jogo, o homem no estado dionisíaco não se deixa mais destruir pelos seus
excessos, mas joga com a união de lucidez e embriaguez: “Assim, o servidor de Dioniso precisa estar
embriagado e ao mesmo tempo ficar à espreita atrás de si, como observador. O caráter artístico
dionisíaco não se mostra na alternância de lucidez e embriaguez, mas sim em sua conjugação”
(DW/VDM, § 1, p.10).
Somente na arte trágica foi possível ao grego conciliar o apolíneo e o dionisíaco, a aparência
e a essência. A tragédia possibilitou ao povo grego desfrutar por alguns instantes das sensações
dionisíacas sem correr o risco de sucumbir aos seus perigos: “A tragédia proporciona ao grego a
possibilidade de experimentar o dionisíaco e voltar para o dia a dia, sem a visão pessimista da vida”
(DIAS, 2011, p.93-94). Para Machado, mais do que a união entre apolíneo e dionisíaco, a arte trágica
representa a vitória do dionisíaco sobre o apolíneo. O dilaceramento do herói trágico, que remete
sempre aos dilaceramentos de Dioniso, não deve ser sentido com tristeza, mas com alegria, com seu
aniquilamento o mundo fenomênico é negado, o principium individuationis é rompido e é festeja
mais uma vez a união do homem com o Uno-primordial: “A alegria que proporciona a tragédia é o
sentimento de que o limite da individualidade será abolido e a unidade originária, restaurada”
(MACHADO, 2017, p.39).
Enquanto a arte apolínea procurava encobrir os terrores da existência com a criação onírica
do mundo fenomênico, a arte trágica demonstra que o verdadeiro prazer de existir está, na verdade,
na negação do mundo fenomênico e no mergulho no abismo dionisíaco e na afirmação de sua
existência contraditória repleta de dor e de sofrimento. Seu grande triunfo é pois a transfiguração
do sofrimento em prazer: “A arte trágica demonstra, assim, uma notável capacidade alquímica de
transmudar o estado de náusea, ‘estado negador da vontade’, em afirmação, de modo que esse
horror possa ser experimentado não como um horror mas como algo sublime, e esse absurdo possa
ser vivenciado não como absurdo, mas como cômico” (DIAS, 2011, p.96). Não é a intenção de
Nietzsche, no entanto, negar o apolíneo, como afirma Machado:
Eis a estranha “consolação” que proporciona a tragédia: a certeza de que existe um prazer superior a que se acede pela ruína e pelo aniquilamento do herói, da individualidade e da consciência; pela destruição dos valores apolíneos. O que poderia dar a impressão de uma negação da aparência em nome da essência. Isso porém seria um equívoco, na medida em que a negação dos valores apolíneos só pode ser realizada em forma de representação, de imagem, de ilusão, isto é, apolineamente. Se o dionisíaco puro é aniquilador da vida, se só a arte torna possível uma experiência dionisíaca, não pode haver o dionisíaco sem o apolíneo.
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A visão trágica do mundo, tal como Nietzsche a interpreta nesse momento, é um equilíbrio entre a ilusão e a verdade, entre a aparência e a essência: único modo de superar a radical oposição metafísica de valores. (MACHADO, 2017, p.40-1).
Essa união entre o apolíneo e o dionisíaco que dá origem à tragédia, no entanto, não deve
ser entendida como uma síntese entre os dois elementos, mas como a realização de uma obra a
partir da tensão, da contraposição que há entre os dois. Percebemos, então, o caráter agonístico da
arte trágica: “A obra de arte trágica é expressão dessa contradição que se passa no cerne do mundo
sem se resolver jamais e que é o próprio trágico. O trágico é a contradição. O trágico é o agon. O
trágico é a guerra” (MOTA, 2008, p.87). A tensão, a contradição entre o apolíneo e o dionisíaco é
utilizada para a criação de uma obra de arte transfiguradora. É apenas nesse sentido que podemos
falar em superação da simples oposição entre os dois elementos artísticos.
O gênio e a justificação estética da existência
A figura do gênio aparece, nesse momento do pensamento de Nietzsche, como um médium,
através do qual o Uno-primordial celebra sua redenção na aparência. O artista não é aqui
propriamente o criador da obra de arte, mas: “na medida em que o sujeito é um artista, ele já está
liberto de sua vontade individual e tornou-se, por assim dizer um médium através do qual o único
Sujeito verdadeiramente existente celebra sua redenção na aparência” (GT/NT, § 5, p.44). Este
processo de unificação do Homem com a natureza está intimamente ligado ao processo de criação
da lírica grega, que, para Nietzsche, não pode ser dissociada da criação musical. A lírica grega é
essencialmente cantada. Ao cantar sua poesia, o poeta lírico, que já abdicou de sua subjetividade no
processo dionisíaco, não exprime mais suas dores, sofrimentos e contradições, mas a dor,
sofrimento e contradição do Uno-primordial: “Ele se fez primeiro, enquanto artista dionisíaco,
totalmente um só com o Uno-primordial, com sua dor e contradição, e produz a réplica desse Uno-
primordial em forma de música [...]” (GT/NT, § 5, p.45).
Enquanto o artista plástico e o poeta épico encontram-se ainda intimamente ligados à
contemplação do mundo através de imagens, o poeta lírico, o músico dionisíaco, liberto de toda a
representação através de imagens, confunde-se, torna-se idêntico à dor primordial, um eco da
mesma: “O gênio lírico sente brotar, da mística auto-alienação e estado de unidade, um mundo de
imagens e símiles, que tem coloração, causalidade e velocidade completamente diversas do mundo
do artista plástico e do épico” (GT/NT, § 5, p.42).
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Chegamos aqui a um ponto de suma importância do pensamento de Nietzsche deste período
e que permeará também todo o seu pensamento futuro, aquele relativo à compreensão de que
somente como fenômeno estético a existência pode ser justificada. É importante frisar que o próprio
processo que origina o mundo já é artístico, cabendo a nós, como meras individuações, apenas
participar deste processo:
[...] toda a comédia da arte não é absolutamente representada por nossa causa, para a nossa melhoria e educação, tampouco que somos os efetivos criadores desse mundo da arte: mas devemos sim, por nós mesmos, aceitar que já somos, para o verdadeiro criador desse mundo, imagens e projeções artísticas, e que nossa suprema dignidade temo-la no nosso significado de obras de arte – pois só como fenômeno estético podem a existência e o mundo justificar-se eternamente [...] (GT/NT, § 5, p.44).
Encontrar na própria natureza os domínios da arte, apresentar nossa vida toda e todo o
mundo a nossa volta como um fruto da obra de arte primordial, está aí a grande aspiração de
Nietzsche em seus primeiros escritos. E o gênio toma lugar importantíssimo em todo esse processo,
pois somente com sua atividade, atuando como um médium, o homem deixa de representar o papel
unicamente passivo e passa também a atuar no processo artístico, unindo-se ao grande artista
criador do mundo6, o Uno-primordial, tornando-se assim ao mesmo tempo, criador e obra de arte:
Portanto, todo o nosso saber artístico é no fundo inteiramente ilusório, porque nós, como sabedores, não formamos uma só e idêntica coisa com aquele ser que, na qualidade de único criador e espectador dessa comédia da arte, prepara para si mesmo um eterno desfrute. Somente na medida em que o gênio, no ato da procriação artística, se funde com o artista primordial do mundo, é que ele sabe algo a respeito da perene essência da arte; pois naquele estado assemelha-se, miraculosamente, à estranha imagem do conto de fadas, que é capaz de revirar os olhos e contemplar-se a si mesma; agora ele é ao mesmo tempo sujeito e objeto, ao mesmo tempo poeta, ator e espectador” (GT/NT, § 5, p.44-45).
Nietzsche nos trouxe, portanto, grande novidade ao nos apresentar o pessimismo grego que
jazia por baixo de toda a bela construção apolínea, tão exemplarmente expresso pela sabedoria de
Sileno. É contra esse pessimismo que o povo grego ergueu todo o mundo de beleza dos deuses do
Olimpo. Ao entrar, no entanto, em contato com os ritos bárbaros dos povos orientais, o grego viu
novamente aquele pessimismo tomar conta de sua alma, era o perigo que representava Dioniso.
Contra esse risco, mais uma vez o grego recorre ao deus Apolo e ao seu poder de transfigurar tudo
em bela aparência. Da união entre Apolo e Dioniso, nasce o mais belo fruto da arte grega, a tragédia.
A arte trágica proporcionou ao grego experimentar as sensações perigosas dionisíacas sem o risco
6 É importante frisar aqui o caráter estético que Nietzsche aplica à sua ontologia ao afirmar que a própria geração da aparência é uma
projeção artística, o processo artístico originário. Anna Hartmann Cavalcanti, em sua obra Símbolo e alegoria, a gênese da concepção de linguagem em Nietzsche, ainda comenta que: “O filósofo indica, desse modo, não apenas o caráter essencialmente estético de sua ontologia, mas o caráter ativo da produção da aparência [...] A eterna dor procura sua libertação não em um estado de repouso e quietude, mas no prazer e na criação ativa de formas e de aparência” (CAVALCANTI, 2009, p.189). Por isso, compreendemos que ontologia e estética não podem ser compreendidas distintamente em Nietzsche.
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de sucumbir a elas. Superar a oposição entre Apolo e Dioniso é superar a oposição entre essência e
aparência, entre interior e exterior, é encontrar uma forma de entrar em união com o Uno-
primordial, sem colocar em risco todos os constructos de uma cultura e uma civilização, esse é o
grande achado do povo grego para o qual Nietzsche quer nos chamar atenção. O papel do gênio,
neste momento, é agir como um mediador dessa união do homem com o Uno-primordial, através
dele, o homem pode recriar o movimento artístico original, tornando-se assim, ele mesmo, também
obra de arte e realizando a tão desejada justificação estética da existência.
Modernidade e caos estilístico
O século XIX trouxe muitas inovações no campo da ciência, da política e da economia. A
filosofia em voga, segundo Nietzsche, colocava o Estado como o fim último da humanidade.
Exaltavam-se cada vez mais as ciências particulares, reflexo da divisão do trabalho, em detrimento
da visão de totalidade, que somente a filosofia é capaz de oferecer. Com o enfraquecimento da
Igreja, que mantinha sob controle as forças antagônicas, pelo advento da Reforma, e o
fortalecimento dos proprietários e militares, os homens entraram desenfreadamente em conflito
uns com os outros, fazendo transparecer toda sua covardia, seu egoísmo, em suma, sua
animalidade. Nos meios acadêmicos reinava o espírito jornalístico, que orientava a uma
pseudoerudição e uma inconsequente liberdade aos estudantes. O cenário encontrado por
Nietzsche nos estabelecimentos de ensino era também decadente e totalmente avesso a uma
educação voltada para uma verdadeira cultura e para o nascimento do gênio. A cultura e a educação
estavam entregues às mãos do Estado e dos comerciantes, que por sua vez, buscavam ampliá-la ao
máximo, os comerciantes para obter o máximo de lucro, e o Estado, para fortalecer-se colocando-a
sob seu julgo.
O mundo, naquele momento, via-se governado por ideias vãs e dogmas religiosos como
“progresso”, “Estado moderno”, “cultura geral”, caráter “nacional”, etc. Tudo isso é, para Nietzsche,
carregado de tom antinatural e sinal de barbárie da época “cheia de noções tão excêntricas e
necessidades tão quiméricas [...]” (UB/CoEx - III7, § 7, p.238). Tão distante da simplicidade com que o
gênio, assim como os antigos, apresenta imprimido em si, o objetivo da natureza. Nietzsche tinha
um nome para o homem conformado com seu tempo e com a cultura de seu tempo: “de fato, todo
7 Abreviatura para Unzeitgemäβe Betrachtungen III: Schopenhauer als Erzieher / Terceira consideração extemporânea: Schopenhauer
como Educador.
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aquele que pensa como pensa a opinião pública vendou os próprios olhos e tapou os próprios
ouvidos... essa espécie de homens, quero chamá-la por seu próprio nome: são os filisteus da cultura”
(UB/CoEx – I8 § 2, p.35). O filisteu da cultura é ainda aquele: “que é incapaz de criar, limitando-se a
imitar ou consumir, submetendo a cultura às leis que regem as relações comerciais” (BORGES, 2004
p.27). O filisteu da cultura, por sua vez, ao usurpar o lugar de mestre da cultura na Universidade, com
sua educação decadente e antinatural, tornou-se o grande opositor do nascimento do gênio.
Reinava em toda a “atmosfera cultural alemã” aquilo que Nietzsche chamava de “caos estilístico da
modernidade”: “O alemão acumula em torno de si as formas, as cores, os produtos e as curiosidades
de todos os tempos e de todos os climas e cria assim essa carnavalesca confusão que seus
intelectuais se encarregam em seguida de estudar e definir como “a essência do moderno”,
enquanto que ele próprio permanece tranquilamente sentado no meio desse tumulto de todos os
estilos (UB/CoEx – I § 1, p.30).
Cultura como unidade de estilo artístico; a cultura como aperfeiçoamento da natureza e o nascimento do gênio como objetivo da cultura
Nietzsche, contrapondo-se a esse caos estilístico, apresenta seu conceito de cultura
verdadeira na primeira das suas Considerações extemporâneas: David Strauss, Sectário e Escritor,
definindo-a como “a unidade do estilo artístico através de todas as manifestações da vida de um
povo” (UB/CoEx - I, § 1, p.29). Mas não é o fato de ter adquirido muito conhecimento que constitui
uma verdadeira cultura, pelo contrário, muitas vezes, para Nietzsche, isso pode resultar até mesmo
na barbárie de um povo. A verdadeira cultura é algo inseparável da vida, e nasce justamente da
necessidade vital de um povo: “ Uma cultura autêntica pressupõe a fusão da vida e da cultura, a partir
da necessidade vital de um povo e do desenvolvimento, na ‘justa proporção’, de todos os seus
instintos e dons, de modo que frutifiquem em ações e obras e criem, no estilo da obra de arte, uma
unidade viva” (DIAS, 1991, p.87).
A cultura do filisteu apresenta uma unidade unicamente negativa: “naquilo que recusa ela
constitui um sistema coerente” (KOFMAN, 1985, p.86). Passa-se a entender por cultura nada mais
do que a exclusão e a negação de toda forma artística, de tudo o que exige um verdadeiro estilo, e
desse sistema de negações acaba-se por obter um conjunto coerente. Nietzsche poderia até mesmo
8 Abreviatura para Unzeitgemäβe Betrachtungen I: David Strauss: Der Bekenner und der Schrifisteller / Primeira consideração
extemporânea: David Strauss, Sectário e Escritor.
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concordar em entender esse sistema coerente de “unidade de estilo artístico”, com a condição de
que se entenda, nesse caso, “estilo” por “barbárie”: “um sistema de não-cultura, ao qual se poderia
até mesmo reconhecer certa ‘unidade de estilo’, se fizesse sentido aplicar o termo ‘estilo’ à barbárie”
(UB/CoEx – I, § 2, p.39).
A ideia de “saltos” na natureza, como pregavam algumas doutrinas filosóficas de sua época,
não é uma ideia da qual nosso autor fosse um adepto, no entanto, aqui ele se permite falar também
de uma espécie de “salto”, mas, segundo ele, um “salto de alegria”, que é aquele que a natureza dá
ao alcançar seu objetivo supremo, que é o engendramento dos três tipos superiores de homem:
filósofo, artista e santo. Com eles a natureza se transfigura e se eleva, alcançando um novo nível de
beleza e de compreensão sobre si. A natureza, portanto, tem necessidade do filósofo e do artista
para um fim puramente metafísico, ou seja, para alcançar um nível mais elevado de conhecimento
sobre si mesma. Do outro lado, ela também tem necessidade do santo, em que acontece a total
dissolução do eu na natureza, onde nada mais é sentido como individual, mas em completa unidade
com o mundo, portanto, é justamente no santo “a quem o jogo do devir não alcança jamais esta
humanização final e suprema à qual toda a natureza aspira e conspira para se livrar de si mesma”
(UB/CoEx- III, § 5, p.211). Entretanto, Nietzsche não considerava o santo, ao contrário do artista e do
filósofo, uma natureza criadora. Nesse sentimento nostálgico de encontrar-se em unidade com o
ser, o santo acaba tornando-se embotado e endurecido moral e intelectualmente, ele então deseja
a aniquilação de si mesmo e de sua vontade. Ele deixa de ser fecundo, e acaba se tornando inútil e
nocivo para o âmbito da cultura. Por isso Nietzsche considerava a aspiração à santidade um dos
maiores perigos aos quais as naturezas geniais, como a de Schopenhauer, estariam expostas.
Citando Goethe, Nietzsche lembra que, independente do que pensem ou falem sobre seu
objetivo último, os homens acabam sempre o perseguindo por um “impulso obscuro”. Apesar de
reconhecer o valor dessa frase, Nietzsche afirma ser necessário, ao identificar como o objetivo
último da cultura, o nascimento do gênio, substituir esse “impulso obscuro” por uma vontade
consciente. É preciso evitar que esse “impulso obscuro” seja manuseado e levado para outros
caminhos que não o nascimento do gênio, tornando assim a cultura uma mera serva, o que para
Nietzsche é justamente o que acontece: “e as potências que em nossos dias mais trabalham para a
cultura alimentam precisamente os pensamentos dissimulados e não conduzem para ela segundo
uma ótica pura e desinteressada” (UB/CoEx – III § 6, p.216). Essas forças ou potências que incentivam
(de modo interessado) a cultura são também o que Nietzsche nomeia de “egoísmos” e ele enumera
quatro deles. Em primeiro lugar, Nietzsche ressalta o egoísmo dos negociantes, que encaravam a
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cultura unicamente como uma forma de gerar lucro e felicidade, eles então, gostariam de expandir
a cultura o máximo possível. Em seguida, o egoísmo do Estado, que também deseja a expansão da
cultura à medida que isso lhe forneça servidores para seguir as suas ordens, em outras palavras, o
Estado incentiva a cultura para mantê-la sob seu controle. Há ainda o incentivo da cultura por parte
daqueles que, por não possuírem beleza em si mesmos, desejam preencher essa falta consumindo
cultura, e acreditando assim chegarem à bela forma. E por último, a cultura é incentivada pela
ciência e por seus servidores, ou seja, o erudito.
Quando se analisa com mais cuidado a natureza, segundo Nietzsche, não é difícil perceber o
seu caráter desregrado. Ela emprega mal seus meios e aplica métodos equivocados, em geral,
comete inúmeros erros antes de um acerto. Quando ela se ocupa do gênio também não é diferente,
pois aqueles que, de fato, cumprem a missão que a natureza deseja (dá um significado para a
existência), realmente, são um número bem reduzido: “o comportamento da natureza tem toda
uma aparência de desperdício, porém, não o desperdício de uma exuberância criminosa, mas o da
inexperiência [...]” (UB/CoEx - III , § 7, p.235). Pode-se dizer que a natureza possui um péssimo, ou
mesmo nenhum “sentido prático”, ela é “uma má economista”, e pode chegar mesmo a se destruir
algum dia. A natureza busca engendrar o gênio sem se preocupar com sua recepção; e menos ainda
com a capacidade que o resto terá de entendê-lo. Muitas vezes, ele é então condenado a vagar
solitário a vida inteira. Para Nietzsche, os grandes gênios, como Schopenhauer, sofreram pelos dois
lados da moeda: primeiro pela total indiferença de seus contemporâneos, e, em seguida, pela
insensibilidade e incapacidade dos primeiros que o leram e se pronunciaram sobre ele. A completa,
ou quase completa incompreensão sobre o gênio vem a testemunhar, novamente, sobre a
inexperiência da natureza ao criar o filósofo e também o artista. Mesmo quando há sucesso em seu
engendramento, ele nunca consegue atingir senão um número muito reduzido de pessoas. Sobre o
filósofo e o artista, Nietzsche lembra: “eles só afetam poucas pessoas, quando deveriam afetar a
todas e mesmo estas poucas pessoas não são afetadas pela força que o filósofo e o artista deram a
seu projétil” (UB/CoEx - III, § 7, p.235).
A natureza busca engendrar os exemplares superiores de homem, filósofo, artista e santo,
porém, não sabe recorrer aos meios mais eficazes para atingir tal objetivo. É preciso, pois, buscar
corrigir essa falta de sentido prático da natureza. O homem deve voltar-se com sua atividade
consciente contra essas forças inconscientes que o levam cegamente, recusando a ser somente uma
marionete manipulada pelas circunstâncias: “Levar a sério a tarefa da cultura é pois recusar ser
transformado, com a ajuda de uma disciplina exterior que visa colocar-nos no mesmo passo dos
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outros, num animal, num animal de rebanho” (KOFMAN, 1985, p.89). O objetivo da cultura deve ser,
portanto, auxiliar, aperfeiçoar a natureza, não como um mecanismo exterior, mas unida a ela,
transfigurando-a, dando a ela unidade e estilo: “A ‘verdadeira cultura’ é portanto, ela também, um
suplemento da natureza: não um acréscimo artificial, uma potência autônoma em aparência, mas
um complemento natural. Aperfeiçoa a natureza, faz dela uma obra de arte acabada” (KOFMAN,
1985, p.93).
Cultura, arte e vida como unidade
Deparamo-nos aqui, mais uma vez, com a arte no âmbito da natureza. A cultura deve imitar
a natureza, duplicando-a, cobrindo-a com um véu, desse modo, a cultura pode ser entendida como
uma “arte de simulacro” (KOFMAN, 1985 p.90). O que vem a testemunhar a diferença entre
verdadeira e falsa cultura é pois justamente o “embelezamento”; é no estilo da obra de arte que se
pode alcançar a unidade cultura-arte-vida: “A verdadeira cultura é pois inseparável de uma arte do
embelezamento: é estilização artística [...] Um estilo é artístico quando sua unidade não é a de uma
soma nem a de relações lógicas, mas a da justa proporção no interior do desenvolvimento, uma
multiplicidade natural” (KOFMAN, 1985, p.90-91). Nesse sentido, é dever do filósofo-artista
desenvolver uma “arte da dissimulação”, encobrindo tudo o que há de feio e medíocre em seu
tempo, e como que desenhar uma nova realidade, mais bela, formosa e cheia de sentido:
O filósofo-artista, que deve julgar sobre o valor da existência, só pode ser justo em relação a ela com a condição de mentir: de dissimular as feiuras de sua época recobrindo-as com uma camada de pintura, de aumentar inversamente o valor de tal ou tal detalhe. Deve considerar como um quadro, em seu conjunto, sem deter-se nas cores particulares nem na matéria com a qual o quadro é pintado. Por esta razão opõe-se ao homem de ciência, homem antiartístico por excelência, perdido nos detalhes, nos fatos, “honesto” por incapacidade de dissimular e de dar sentido e beleza à existência (KOFMAN, 1985, p.90).
É preciso portanto “dar estilo” à natureza, encontrar a unidade de estilo eliminando a
contradição entre interior e exterior, essência e aparência, em outras palavras, todas as oposições
fictícias engendradas no seio de um cultura falsa: “uma unidade só pode ser viva se não se dividir
entre um dentro e um fora, uma forma e um conteúdo, se a fissura entre o dentro e o fora
desaparecer sob os golpes do martelo da necessidade” (KOFMAN, 1985, p.92). É necessário também
hierarquizar os instintos de modo que eles ajam e se desenvolvam em harmonia e não em
detrimento um do outro, como nas palavras de Kofman: “Dar um estilo, é hierarquizar uma
pluralidade, acabar com a anarquia natural que, se não fosse imediatamente disciplinada, seria o
mesmo que a morte” (KOFMAN, 1985, p.92). Pode-se entender aqui que a própria oposição entre
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cultura e natureza é eliminada com a ideia de unidade de estilo. Não se trata mais também de opor
cultura à barbárie: “[...] como se se tratasse de uma oposição entre barbárie e belo estilo; o povo a
que se prescreve uma cultura deve ser, em toda efetividade, apenas uma unidade viva e não se dividir
penosamente em interior e exterior, entre conteúdo e forma” (UB/CoEx - II9, § 4, p.69). Este é,
portanto, o critério de distinção entre verdadeira e falsa cultura, a cultura que ordena e embeleza e
a cultura que denigre e que torna decadente:
Há decadência em toda parte onde houver mistura disparatada, riqueza desordenada, não dominada, incoerência, caos labiríntico e emaranhado; gosto pelo infinito, pelo imenso, pelo desmedido, pelo detalhe, gosto histórico. Estilo bárbaro, moderno, europeu por excelência, alemão. Em toda parte onde reina um gosto único, gosto pela perfeição, pela medida, reina o gosto nobre que é também o melhor. Estamos então diante de um estilo artístico, vivo. Romano. Manifesta-se aí uma energia capaz de irradiar para todos os lados e de propagar a vida (KOFMAN, 1985, p.96).
As forças que emanam do seio de um povo devem ser submetidas a um querer único. É
somente com a atividade do gênio que se tornar possível sobrepujar o caos estilístico da
modernidade, a mistura grosseira de todos os estilos e todos os gostos, apresentando a unidade do
estilo artístico de um povo, unindo cultura, arte e vida. Com isso, entende-se que a tarefa da cultura,
com a atividade consciente do gênio, é unir-se em complemento à natureza como uma physis
transfigurada, apresentando uma realidade no estilo da obra de arte, ou seja, dar estilo à natureza.
Esse estilizar a natureza é, decerto, uma forma de dissimulação, algo que encobre os aspectos mais
horrendos de uma realidade que devem ignorados ou substituídos pelas figuras agora elaboradas
pela atividade transfiguradora e libertadora do gênio. Dar um estilo à natureza é, além de embelezá-
la, ordená-la, dando-lhe hierarquia à pluralidade de instintos que antes organizavam-se
anarquicamente, que é o que pode haver de mais danoso para uma cultura. É somente então, no
seio uma cultura ordenada, hierarquizada pela atividade do gênio, que se pode eliminar as
contradições que emanam de uma cultura falsa, a distinção entre interior e exterior, entre essência
e aparência, e, por fim, a própria distinção entre cultura e vida.
A formação [Bildung] do gênio Já pudemos verificar como nos primeiros escritos de Nietzsche o gênio aparece, expresso na
figura do filósofo-artista, como o transfigurador da physis. Ou seja, como aquele que, age como juiz
da vida e legislador de valores enquanto filósofo, assim como que age como criador da vida e de
9 Abreviatura para Unzeitgemäβe Betrachtungen II: Vom Nutzen und Nuchteil der Histoire für das Leben / Segunda consideração
extemporânea: Da utilidade e desvantagem da história para a vida.
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valores enquanto artista. A natureza, portanto, tem necessidade do gênio para um fim puramente
metafísico, ou seja, para alcançar, através dele (o gênio), um nível mais elevado de conhecimento e
de beleza sobre si mesma. A natureza, porém, por falta de senso prático, não se utiliza dos meios
mais apropriados para alcançar seu objetivo:
A finalidade da natureza é sempre produzir os exemplares mais raros – que seriam, na espécie humana, o filósofo, o artista e o santo. Falta-lhe, no entanto, o senso prático, e quase nunca encontra os meios mais apropriados para realizar seus fins. Engendrando o filósofo e o artista, ela quer tornar inteligível e significativa a existência humana, mas raramente consegue bons resultados. Sobretudo em relação ao filósofo, observa Nietzsche, seu embaraço é grande (DIAS, 1991, p.78-79).
A cultura, com isso, como procuramos demonstrar nos tópicos anteriores, deve vir em auxílio
da natureza em seus objetivos, procurar aperfeiçoá-la, como demonstra Rosa Dias: “A cultura tem
de aperfeiçoar a natureza; tornar-se seu complemento natural, e não um suplemento artificial;
perseguir os mesmos fins da natureza, isto é, propor-se a acelerar a vinda do filósofo, do artista e do
santo e mantê-los presos à sociedade”. (DIAS, 1991, p.79). Com isso, entendemos que é uma tarefa
urgente dos que se colocam na luta pela cultura, procurar criar os estabelecimentos de ensino
necessários para processo de engendramento do gênio. De modo a auxiliá-los em sua formação,
mas também reconhecendo neles os mestres que lhes guiarão à verdadeira cultura, unindo cultura
e vida. Rosa Dias, em sua obra Nietzsche Educador, trata do assunto da seguinte forma:
A vida precisa de uma cultura sadia, e, para isso, são imprescindíveis instituições de ensino voltadas para a cultura. Elas não existem ainda, mas devem ser criadas. Não devem ter por objetivo criar o pequeno burguês, que aspira a um posto de funcionário ou a um ganha pão qualquer; ao contrário, precisam voltar-se para a criação de indivíduos realmente cultos, formados a partir da necessidade interna da fusão entre vida e cultura e capazes de exercer toda a potencialidade de seu espírito. Essas instituições devem ainda ajudar a natureza na criação do gênio, filosófico e artístico, e protegê-lo da “conspiração do silêncio” com que sua época o exclui (DIAS, 1991, p.109).
Nietzsche travou um forte embate contra o espírito de sua época (séc. XIX), representado em
crenças e dogmas que ele chamou de “barbárie da modernidade”. Entre eles estão: a crença no
Estado como fim último da humanidade; a cultura jornalística levada como verdadeira cultura; e o
medíocre academicismo encarnado na figura do erudito. Na contramão dessas ideias, Nietzsche
propõe não o Estado, como pretendia a filosofia em voga na época, mas o conhecimento como o
fim último da humanidade, e todo o esforço da cultura, e dos homens que trabalham para realizar a
cultura, deve ser canalizado para o engendramento do gênio, ou seja, daquele que, através do
conhecimento, vem redimir a natureza de sua falta de significação, de seu caráter absurdo,
realizando assim seu objetivo supremo.
Na luta pela verdadeira cultura, Nietzsche distingue dois tipos de estabelecimentos de
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ensino: “só conheço uma única verdadeira oposição, aquela que existe entre os estabelecimentos
para a cultura e os estabelecimentos para as necessidades da vida: à segunda categoria pertencem
todos os estabelecimentos que existem, mas, ao contrário, é da primeira que falo”. (ZBA/FEE10, IV
Conf., p.125). Nietzsche constata aqui que um verdadeiro estabelecimento de ensino, que visa a
verdadeira cultura e o engendramento do gênio, não existe na modernidade.
O processo extemporâneo de formação do gênio
Diante da ausência desses estabelecimentos de ensino na modernidade, Nietzsche aponta
para a necessidade de o indivíduo assumir a responsabilidade diante de sua própria existência.
Assim, ele nos apresenta uma fórmula: Sê tu mesmo! Esse é o convite de Nietzsche para o homem
fugir da massa uniforme, assumindo seu papel de ser único e singular, que deve viver segundo sua
própria consciência11. É preciso, no entanto, para ser a si mesmo, desprender-se de tudo aquilo que
o tempo presente inculcou em nós; é preciso vencer o tempo em nós. É somente ao vencer a luta
contra o seu tempo, contra tudo o que nele nos impede de ser grandes, que se torna possível ser a si
mesmo, e, consequentemente, perceber em si o gênio.
Para o filósofo, que tem como papel julgar a medida e o valor de todas as coisas, é de fato
angustiante perceber o mundo ao redor como um infinito mar de estupidez e mediocridade. É
preciso, então, ocupar-se com os povos antigos, em busca de um valor que falta à época atual. É
possível neste encontro, sair vencedor sobre seu tempo, transfigurando seu próprio entendimento
do mundo e da vida, como quem escreve por cima de uma folha velha uma outra história mais
bonita:
Ora, todo o presente se impõe com impertinência, age e determina o olhar, mesmo que o filósofo não o queira; e, no cálculo de conjunto, ele se encontrará involuntariamente estimado muito alto. Na medida em que o filósofo deve exatamente avaliar sua época por comparação com as outras e, vencendo ele mesmo o presente, deve também vencê-lo na imagem que tem da vida, quer dizer, torná-la imperceptível e de algum modo garatujar sobre ela. Esta é uma tarefa muito difícil, mas possível. (UB/CoEx – III § 3, p.188).
10 Abreviatura para Über die Zukunft unserer Bildungsanstalten / Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino. 11 Para Larrosa: “o espírito aristocrático de Nietzsche deve ser entendido como a aguda consciência da impossibilidade de qualquer
educação que passe pelo funcionamento homogêneo e homogeneizador de um sistema de massas” (LARROSA, 2002, p.45). Não se deve, entretanto, confundir “cultura de massa” com “cultura popular”. Para Nietzsche, a “cultura de massa” é aquela obtida através do sistema homogeneizador de educação e da ampliação máxima da cultura. Já a “cultura popular” está ligada aos costumes de um local, seus instintos religiosos, sua língua, suas imagens míticas, etc. Rosa Dias ainda ressalta que: “Ao separar o popular e a massa, Nietzsche quer deixar claro o perigo que corre a cultura ao permitir que as classes iletradas sejam contaminadas pelos valores de sua época. Isso ocasionaria a perda das tradições de onde o gênio se nutre e amadurece. (DIAS, 1991, p.91).
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Os filósofos gregos faziam um julgamento sobre a existência de uma forma mais perfeita do
que os modernos, pois a própria vida se apresentava a eles de uma forma mais perfeita. Não havia
neles o conflito entre o instinto de verdade, o desejo de liberdade e a busca pela beleza. Para
Nietzsche: “[...] um pensador moderno sofrerá sempre de um desejo insaciável: ele exigirá que se
lhes mostre primeiro a vida, uma vida verdadeira, corada, sadia, para que então pudesse, a respeito
dela, pronunciar-se como juiz” (UB/CoEx - III, § 3, p.189). É então que surge nele um conflito interno,
entre o reformador da vida e o juiz dela. O filósofo moderno quer, antes de ser um juiz da vida,
transformá-la, transfigurá-la, enquanto que o juiz da vida emite sua sentença com tudo o que ela
tem de mais belo, mas também de mais terrível.
Para Nietzsche, é preciso se desvencilhar do presente como de um parasita em nosso corpo,
rompendo o processo que nos identifica com ele, seus costumes e suas ideias, em outras palavras,
que nos torna rebanho. Aquele que entende que todo homem é um filho legítimo de seu tempo,
pode ver como absurdo o combate travado entre um homem e seu tempo, como sendo um combate
contra si mesmo, no entanto:
Isto é somente na aparência, pois, no seu tempo, ele combate o que o impede de ser grande, o que para ele só pode exatamente significar: ser livre e totalmente si mesmo. Segue-se que sua hostilidade é no fundo dirigida contra o que está nele próprio, certamente, mas não é verdadeiramente ele próprio, dirigida contra essa mistura impura e confusa de elementos incompatíveis para sempre inconciliáveis, contra a falsa união do atual com seu próprio caráter intempestivo; e no fim, revela-se que o pretenso filho de seu tempo é somente um bastardo. (UB/CoEx – III § 3, p.189).
Schopenhauer soube, segundo Nietzsche, livrar-se dessa hóspede indesejada, essa “falsa
mãe”, purificando-se e encontrando a saúde que era de sua natureza. Não se deve espantar,
portanto, se aquele que segue a filosofia de Schopenhauer, enxerga no que é atual, somente um
sintoma de tudo o que doente, medíocre e desprezível. A luta contra o seu tempo é então, no fim
das contas, uma luta para encontrar a si mesmo “a nostalgia de uma natureza forte, de uma
humanidade simples e sã, era nele uma nostalgia de si mesmo” (UB/CoEx - III, § 3, p.190). Larrosa
identifica nessa passagem que segue aquela famosa fórmula de Píndaro “como se chega a ser o que
se é”12, muitas vezes revisitada por Nietzsche como “torna-te o que tu és”, ou mesmo “como se
chega a ser o que se é” (Ecce Homo).
A formação só poderá realizar-se intempestivamente, contra o presente, inclusive contra esse eu constituído, cujas necessidades, desejos, ideias e ações não são outra coisa que o correlato de uma época indigente. A luta contra o presente é também, e sobretudo, uma
12 Ainda em Larrosa: “’como chegar a ser o que se é’ ou, ‘como se vem a ser o que se é’. Essa frase, como se sabe, traduz um lema das
Odes Píticas de Píndaro, esse imperativo que poderíamos reescrever como ‘converte-te no que és!’ Ou, ‘transforma-te no que és’!” (LARROSA, 2002, p.47).
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luta contra o sujeito. Para “chegar a ser o que se é” há que combater o que já se é. (LARROSA, 2002, p.61).
Portanto, é somente ao vencer a luta contra o seu tempo, contra tudo o que nele nos impede
de ser grandes, que se torna possível alcançar “o que realmente se é”, perceber em si o gênio, como
fez Schopenhauer: “e já que tinha vencido o tempo em si próprio, lhe foi preciso também, com um
olho admirado, perceber em si o gênio” (UB/CoEx - III, § 3, p.190). É também a partir de então que o
filósofo, quando se coloca a tarefa de julgar toda a existência, fá-lo com a serenidade de saber que
não é realmente necessário sucumbir à hipocrisia de uma época sem valor, pois agora ele conhece
muito bem que objetivos deve alcançar, objetivos de mais valor, nobreza, enfim, objetivos bem
superiores: “ele sabia bem que há nesta terra, para buscar e alcançar, coisas mais elevadas e mais
puras do que uma tal vida de conformidade à época, e sabia também que aquele que só conhece e
avalia a existência segundo esta forma detestável, este lhe fazia cruelmente mal” (UB/CoEx - III, § 3,
p.190).
O nascimento do gênio é, portanto, um acontecimento necessariamente extemporâneo. A
luta no âmbito cultural pelo engendramento do gênio deve voltar-se contra todos os valores
cultuados na modernidade. Dessa forma, a luta pela verdadeira cultura contra o seu tempo e o
processo de engendramento do gênio coincidem: “[...] a luta pela cultura é em si mesma a formação
cultural extemporânea (do gênio)” (BARROSO, 2014, p.208). Ou seja, ao se pôr na luta contra o seu
tempo a favor da verdadeira cultura, o homem já trabalha para o processo de engendramento do
gênio.
O gênio é, desse modo, o instrumento de uma civilização para elevar-se a um nível mais alto.
À medida em que o gênio nasce e se nutre da cultura de um povo, ele unifica, através de sua obra,
cultura e vida, apresentando a unidade de estilo artístico de um povo, e libertando os homens do
caos estilístico da modernidade. David Barroso, em seu artigo A luta pela cultura: o filisteu e o gênio,
nas obras do jovem Nietzsche, ressalta que o gênio: “unifica e hierarquiza os instintos do povo para a
criação da obra de arte viva semelhante a civilização grega. O gênio é, assim, o libertador dos
homens (modernos)” (BARROSO, 2014, p.208). Podemos, portanto, afirmar novamente que,
somente através do gênio torna-se possível a realização de uma verdadeira cultura, ou seja, somente
através do gênio e de sua obra transfiguradora é possível unir cultura e vida.: “ Com isto, a ‘cultura’
vai ao encontro da ‘natureza’ para auxiliá-la com sua ‘vontade consciente’, em busca da mesma
finalidade: conquistar a unidade entre vida, pensamento, aparência e querer, ou seja, a ‘unidade de
estilo artístico em todas as manifestações da vida de um povo’” (BARROSO, 2014, p.204).
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A partir daí Nietzsche pensa a criação de um tribunal, não submetido ao Estado e à
Universidade, regulador e legislador da cultura. É importante salientar aqui a importância que
tiveram para Nietzsche os temas tratados por Schopenhauer no tratado Sobre a filosofia
universitária13, onde é abordada a relação entre filosofia, Estado e Universidade. O divórcio entre
eles é, segundo Nietzsche, inevitável, uma vez que o Estado só reconhece uma filosofia que se
submeta a ele, legitimando-o, e aquele que se dedica à filosofia não pode aceitar nada que se
coloque acima da verdade. Sendo assim, Nietzsche, de forma análoga à de Schopenhauer, chega à
conclusão de que aqueles que se utilizam da filosofia como ganha pão e vivem como meros
funcionários do Estado nas Universidades, não merecem ser chamados de filósofos14. A burocracia
utilizada nas Universidades ainda vem testemunhar a servidão da filosofia, pois exige que os
professores deem suas aulas em horários determinados, para alunos determinados, e sobre
assuntos determinados, eliminando assim toda a autonomia de que a filosofia necessita para existir.
Somente a filosofia, através da figura do gênio, poderia assumir esse lugar. É somente com a
filosofia agindo de fora dessas instituições, sem honrarias nem obrigações para com elas, mas
regulando-as e legislando-as, portanto, que o gênio poderá tomar o seu lugar como o legislador da
cultura e da educação, e por fim, da vida.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O papel do gênio deve ser o de juiz da vida e legislador de valores. Apresentando o que há de
decadente e perigoso na cultura do seu tempo, e também apontando para as novas possibilidades
de vida e os caminhos para a verdadeira cultura: “enquanto o filósofo (gênio) não estiver ligado à
sociedade por uma necessidade indestrutível, enquanto não tiver ao seu redor uma sociedade sadia,
13 Sobre a importância deste tratado de Schopenhauer, em contrapartida ao seu pequeno impacto entre seus contemporâneos,
Nietzsche afirma: “[...] nada se opõe mais à produção e à perpetuação dos que são grandes filósofos por natureza, do que os maus filósofos pela graça do Estado. Não seria este um argumento molesto? Aquele mesmo argumento, como se sabe, sobre o qual Schopenhauer inicialmente lançou o olhar, no seu famoso tratado sobre a filosofia universitária. Retorno a este argumento: pois é preciso obrigar os homens a levá-lo a sério, quer dizer, para que, por seu intermédio, se sintam induzidos a agir; e considero como inútil qualquer palavra que tenha sido escrita sem ter como respaldo esta incitação à ação; é bom, em todo caso, demonstrar mais uma vez os princípios eternamente válidos de Schopenhauer, e isto justamente para a crítica de nossos contemporâneos mais próximos, pois um homem benevolente poderia pensar que, a partir das graves acusações que ele fez, tudo mudou para melhor na Alemanha. Nem mesmo este ponto insignificante sua obra alcançou”. (UB/CoEx – III § 8, p.244).
14 Como Rosa Dias resume o assunto: “Para concluir sua análise crítica, Nietzsche diz que a filosofia universitária é transformada numa ‘coisa ridícula’, pois tornou-se, nas mãos de uma ‘multidão de pensadores puros’, uma ciência pura – isto é, um pensamento concebido como universal, abstrato, neutro, desvinculado da vida e das forças vitais. Nietzsche adverte: enquanto a filosofia existir como pensamento reconhecido pelo Estado, permitindo que este a dirija, ela não deixará de ser ridícula. E a verdade que os filósofos julgam ser a origem de todas as suas buscas não passa de uma verdade a serviço do Estado, dos valores correntes e da ordem estabelecida: ‘A verdade aparece como uma criatura bonachona e amiga das comodidades, que dá sem cessar a todos os poderes estabelecidos a segurança de que jamais causará a alguém o menor embaraço’. Nietzsche observa ainda que uma cultura decadente pouco pode fazer pelo pensamento, a não ser engendrar uma filosofia doente” (DIAS, 1991, p 108).
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pouco pode fazer pela cultura, a não ser denunciar o que a torna doente e o que a destrói”. (DIAS,
1991, p.109).
Pudemos ter um panorama da figura do gênio nos primeiros escritos de Nietzsche, o gênio
metafísico. Porém, sua forte influência do pensamento romântico alemão, sua ligação com a música
de Wagner e seu o projeto político-pedagógico, serão abandonados por Nietzsche em 1878, com o
lançamento da obra Humano, demasiado humano, onde Nietzsche assumirá novos pressupostos e
novos métodos para sua filosofia, o que o obrigará a rever profundamente sua noção de gênio.
REFERÊNCIAS
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Sobre um possível diálogo entre Lima Barreto e Nietzsche, pp. 568-584
Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274 568
SOBRE UM POSSÍVEL DIÁLOGO ENTRE LIMA
BARRETO E NIETZSCHE André Mesquita Penna Firme1
RESUMO: A obra de Lima Barreto ficou conhecida por seus ataques sistemáticos às certezas disseminadas pela ciência, às classes políticas e às configurações sociais de seu tempo, que criavam ilusões lentamente desveladas apenas pela experiência. Moral e política se confundem e se entrelaçam com o que era entendido como verdades científicas, em um momento de franco otimismo positivista. Relação tão intrínseca quanto velada, só podia torna-se visível através do processo que a experiência propicia através do realismo de sua obra, invertendo-se o olhar de forma a mostrar a desfiguração de tais ilusões. Nesse sentido, confrontar tal relação entre realismo e realidade, tendo como pedra de toque a perspectiva estética que a filosofia nietzschiana coloca na base da experiência de mundo, permite ressaltar não apenas, como já foi feito, o seu aspecto social, mas os mecanismos com os quais a arte pode mostrar o que há de propriamente artístico na vida comum. PALAVRAS-CHAVE: Literatura Brasileira; Lima Barreto, Arte, Nietzsche. RESUMÉ: L'oeuvre de Lima Barreto a eté connu pour ses attaques systématiques contre les certitudes disséminées par la science, les classes politiques et les configurations sociales de son temps, qui créaient des illusions lentement dévoilées uniquement par l'expérience. La morale et la politique sont confondues et entrelacées avec ce qui était compris comme des vérités scientifiques, dans un moment d’une trés fort optimisme positiviste. Une relation aussi intrinsèque comme voilée, elle ne pourrait pas devenir visible qu'à travers de le processus que l'expérience permetre dans le réalisme de son œuvre, en inversant son regard pour montrer la défiguration de telles illusions. En ce sens, confronter cette relation entre réalisme et réalité à la perspective esthétique que la philosophie nietzschéenne met à la base de l'expérience du monde permet de souligner non
1 Bacharel em História e mestrando em Filosofia pela PUC-Rio ([email protected]).
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seulement, comme cela a déjà été fait, son aspect social, mais les mécanismes avec lesquels l'art peut montrer ce qui est vraiment artistique dans la vie ordinaire. MOTS-CLÉS: Literature Brasilien, Lima Barreto, Art, Nietzsche.
Pensar filosofia em diálogo é pensar antes de tudo no processo filosófico como potência
criadora de sentido, enquanto deslocamento interpretativo, enfim, enquanto possibilidade. O
contato do pensamento com a vida, antes de tudo, pode ser visto como a possibilidade artística de
recriação da mesma. Como o apresentamos – desde as primeiras linhas de um texto que vem a ser
ao longo do processo de escrita – é parte fundamental do saber filosófico, como já falava Benjamin
ao afirmar que é “característico do texto filosófico confrontar-se, sempre de novo, com a questão de
sua representação”2.
Ao falarmos sobre a aproximação da expressão artística com a forma da filosofia ou do
pensamento, poderíamos recuar até Platão, ou antes mesmo, com os poemas de Parmênides. Os
diálogos de Platão, que lhe renderam por vezes a imagem de poeta ou dramaturgo, nos remetem
ao que é próprio da forma filosófica. Para o ateniense, a escrita em diálogos não era uma opção
artística em si, mas era usada por manter um pouco da vivacidade da linguagem falada – já ela
imagem projetada da ideia pura –, e consequentemente traziam em seu cerne o essencial de sua
filosofia. Consequentemente, o trabalho com a linguagem deveria ser reduzido ao mínimo, para que
simplesmente representasse as ideias com o mínimo de interferência possível, segundo ele
exatamente ao contrário do que faziam os artistas. É talvez a partir de Nietzsche que nós pudemos
entender as duas coisas de forma mais imbricada, a ponto de Lukács3 colocar Platão entre os
grandes autores ensaístas da tradição, e Lima Barreto afirmar que “(...) Platão, com o ser um grande
filósofo, não deixava de ser um grande poeta(...)”4.
Ao falar de autores em diálogo, não pretendo me contentar em procurar as influências que
um teve no outro. Não pretendo somente buscar a leitura que Lima Barreto faz do autor de
Zaratustra, nem muito menos reduzir a leitura do realismo barretiano à influência da crise metafísica
e das propostas de renovação artísticas da virada do século advindas de uma leitura a cena brasileira
2 BENJAMIN, Walter. A origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984. p. 49. 3 LUKACS, G. “Sobre a essência e a forma do ensaio: carta a Leo Popper”. In. Revista Serrote, IMS, nº 18, novembro de 2014. 4 BARRETO, Lima. O Destino da Literatura. In: Impressões de leitura e outros textos críticos. São Paulo: Penguin classics Companhia das Letras, 2017. p. 270
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teve da filosofia nietzscheana. Botar autores em diálogo também não é buscar uma solução dialética
de síntese, em que oponha os dois autores com o objetivo de chegar a conclusões definitivas sobre
certo tema. Colocar os autores em diálogo, neste trabalho, é colocá-los frente a frente, como dois
espelhos que se refletem infinitamente, e ao se refletirem, refletem a si mesmos. É deslocar o ângulo
de leitura, usar um para esclarecer e desdobrar o outro. Nesse sentido, a partir de um delineamento
preliminar do contexto filosófico que nos permite entender as referências conceituais de Lima
Barreto – que publica seu primeiro livro vinte e um anos depois do último que Nietzsche publicou em
vida –, e de como essas se entrecruzam com a produção do filósofo, o diálogo permite elencar
problemas conceituais e filosóficos que se tangenciam e se entrelaçam, formas de crítica e de
construção estética que relacionam-se seja pela aproximação, seja pela oposição. É pensar a
tragicidade da ficção barretiana à luz da morte de Deus, pensar a crítica genealógica da vontade de
verdade e a relação entre ciência e moral à luz da geografia simbólico-política que a obra do autor
carioca instaura, é buscar a crítica ao humanismo cientificista na experiência artística enquanto pano
de fundo da vida.
Por isso nessa excursão pela história do pensamento não me deterei a um destrinchar-se
filológico sobre o sentido de certo termo na tradição alemã, nem na objetivação do mapeamento
das referências literárias e filosóficas dentro do contexto da ficção carioca. Tais mecanismos, sendo
usados, são função, etapas primeiras, do trabalho de recobrar o que Emmanuel Carneiro Leão
chama de vigor do pensamento. É no sentido que ele apresenta o diálogo com os textos enquanto
forma de restaurar o que há de vivo neles que proponho aqui tal interpretação, entendendo que “a
tarefa da história do pensamento é uma tarefa exclusiva de pensadores. (...) Pois de que outra
maneira poder-se-ia apreender-lhes o pensamento se não pensando?”.5
Dialogar com os textos é, portanto, restaurar a empresa mesma do pensamento em sua
potência de deslocar a experiência da vida. Nesse sentido, colocar autores tão díspares, conquanto
igualmente combativos e de destinos semelhantes, é deslocar as possibilidades de interpretação de
um e de outro. É fugir das convencionalidades em que a tradição consagrou os escritos de cada um.
Enquanto o filósofo guerreiro de Nietzsche tinha na filosofia um mecanismo de combate ao niilismo,
a literatura militante de Lima Barreto tinha na arte uma forma de explicitar o descompasso entre as
ideias e a experiência no mundo, quando esta é confrontada por um ângulo que não o esperado,
5 In: ANAXIMANDRO; PARMÊNIES; HERÁCLITO. Os Pensadores originários; Anaximandro, Pamênides, Heráclito. Petrópolis: Vozes, 2017.
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como uma ilusão de profundidade em uma pintura no chão que, quando vista de forma invertida, se
mostra apenas como um desenho deformado.
Na ficção barretiana, moral e política se confundem e se entrelaçam com o que era entendido
como verdades científicas, em um momento de franco otimismo positivista. Tal relação, tão
intrínseca quanto velada, só se torna visível através do processo que a experiência propicia através
do realismo da obra de Lima Barreto, invertendo-se o olhar de forma a mostrar a desfiguração de
tais ilusões. O conhecimento científico se apresenta então como uma pintura em trompe l’oeil6, que
se mostra a partir do jogo de luzes produzido pela experiência mediada pela arte, revelando no
fundo o quanto estava entrelaçado com a moral o que se afirmava como conhecimento
desinteressado. Não à toa, a temática da desilusão é corrente na sua literatura, em especial nos
textos de fôlego mais longo, como em Triste Fim de Policarpo Quaresma, Recordações do escrivão
Isaísas Caminha e Clara dos Anjos. Em outros dois romances, Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá e
Numa e a Ninfa, bem como em inúmeros contos, como O homem que falava javanês, a resignação a
essa política das ideias, a esse labirinto moral das formas de saber é tematizado como uma tentativa
de supressão da angústia derivada da experiência da mesma.
Os personagens de Lima nunca estão completamente integrados nestas dinâmicas. No
romance Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá, o narrador, Augusto Machado, narra a história de seu
amigo Gonzaga de Sá com o intuito de revelar ao mundo a personalidade livre e brilhante por trás
do velho escrivão da “Secretaria dos Cultos”. Ao falar de seu primeiro encontro, no capítulo sete, ele
descreve como as solenidades burocráticas no comportamento de Gonzaga escondiam “a
palpitação moça de uma inteligência livre, que se adaptara superiormente ao feitio espiritual de sua
terra e à própria fraqueza de gênio prático”7. A inteligência livre e perambulante do personagem não
permite que ele se integre inteiramente à dinâmica de aparências e políticas que a sociedade o exige,
mas também não lhe é permitido o voo livre do espírito, sob o risco de ser taxado como louco, da
forma como o personagem do conto “Como o ‘homem’ chegou” acaba seus dias.
Já em uma leitura preliminar alguns temas podem ser reconhecidos em relação à crítica
nietzscheana, que se volta contra a metafísica e a história da filosofia de modo a compreender-lhe
6 Literalmente “engana os olhos”. Tipo de pintura em voga no período, que criava uma ilusão de ótica que sugeria uma profundidade ilusória, ou a textura de um material diferente daquele no qual se pintava. Cf. NEVES, Margarida de Souza. “Uma capital em trompe l’oeil. O Rio de Janeiro, cidade-capital da República Velha.” IN MAGALGI, Ana Maria et allii. Educação no Brasil: História, cultura e política. Bragança Paulista: EDUSF, 2003, pp. 253-286. 7 BARRETO, Lima. Vida e Morte de M.J. Gonzaga de Sá. In: Obra Reunida, Volume 1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018. p. 643.
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o cerne de sua justificação. Apesar de tratarem de assuntos fundamentalmente diferentes na
maioria do tempo, subsiste um certo tipo de desconfiança do que seja o fundamento do estatuto da
verdade enquanto realidade racionalmente justificada. Essa lembrança, relação tênue, faz
questionar – a quem se propõe a ler os dois autores um ao lado do outro – se poderia haver alguma
relação entre uma filosofia que sugere a arte enquanto alternativa à crise metafísica e uma obra
artística que sugere o caráter ficcional da realidade. Qual seria a relação entre o que Nietzsche
propõe como pensamento trágico e a tragicidade inerente à ficção barretiana? Como se poderia
relacionar uma literatura que sugere através de si o caráter político e moral da experiência da
verdade e a crítica genealógica da verdade enquanto negação do caráter fundamentalmente
artístico da vida? Como se pode entender o que Nietzsche chama de “rede de arte estendida sobre
a existência”8 e sua relação com a verdade – partindo da filosofia de um lado e da ficção do outro?
Ao propor tais leituras, surgem em primeiro lugar alguns problemas preliminares. Antes de
tudo, seria necessário compreender a forma como Lima Barreto, que produz a parte principal de sua
obra entre os anos nas duas primeiras décadas do século XX, se relaciona diretamente com a filosofia
nietzscheana. Lima em algumas ocasiões escreveu sobre Nietzsche, normalmente como o intuito
de criticar o seu mau uso nos textos de colegas e adversários literários, poucas vezes ele foi
tematizado em si mesmo. Enquanto nas crônicas ele aparece sempre como comentário a um
terceiro texto, é nas obras de ficção que ele é sutilmente referenciado. Sua filosofia, em última
instância, sempre surge em contato com a disputa constante que Lima trava com os seus
contemporâneos, aos maus usos da filosofia nietzscheana para justificar propostas de renovação
estética e de crítica moral. A relação entre os dois autores tomou vida não em um estudo isolado de
um sobre o outro, muito pelo contrário. Nietzsche foi tema para Lima Barreto enquanto campo de
disputa em relação à sua geração como um todo.
Nesse sentido, são duas as questões principais. Em primeiro lugar, de que fala o escritor
quando fala de Nietzsche? Sobre o Lima Barreto fala quando cita seu nome, que textos seus estavam
em circulação, através de que língua se lia. A relação do escritor com as obras do autor de Zaratustra
se dá em relação direta com o seu contexto intelectual, no qual as obras do escritor chegaram
através de suas traduções francesas, em voga desde o boom de comentários sobre a sua obra a partir
da década de 1890. Seu contato se dá por exemplo, de um lado, em relação às propostas de Albertina
8 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 93.
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Bertha e de outros que naquele momento buscavam em Nietzsche uma proposta de renovação
estética. De outro, o contato com a filosofia nietzscheana se dá por autores como Jules de Gaultier
e Jean-Marie Guyau, muito caros ao escritor de Todos os Santos, que dentro da tradição francesa
travavam um diálogo intenso com a obra do filósofo. Compreender a leitura que Lima faz de
Nietzsche é não apenas elencar as obras que leu, mas mapear o campo de referências conceituais e
filosóficas, sempre em tensão, nos quais os dois estão inseridos.
Em segundo lugar, é preciso compreender, dentro das discussões intelectuais que Lima
trava, a tensão deste com o pensamento nietzscheano. Seu incômodo com a crítica moral é não só
patente como explicitada nas mais fortes linhas, e a incompatibilidade de seu ideal moral uma das
mais fortes cisões entre os dois autores. Ao comentar em 1920 o recente volume intitulado Estudos,
de Albertina Bertha, ele profere talvez seu juízo mais ríspido sobre o assunto. Afirma ele: “Não gosto
de Nietzsche, tenho por ele ojeriza pessoal. Acuso-o, ele e ao Esporte, como os causadores do
flagelo que vem sendo a guerra de 1914.” E completa mais para frente:
Nietzsche é bem o filósofo do nosso tempo de burguesia rapinante, sem escrúpulos: do nosso tempo de brutalidade, de dureza de coração, do “make money” seja como for, dos banqueiros e industriais que não trepidam em reduzir à miséria milhares de pessoas, a engendrar guerras, para ganhar alguns milhões a mais.9
Tal questionamento não é infundado, e também se insere no contexto de valorização
nacionalista do filósofo através do esforço de difusão da sua obra encabeçado por sua irmã,
Elisabeth Föster-Nietzsche – que acaba por ressignificar sua obra a partir daí, tendo como ponto
central o suposto livro Vontade de Potência, que leva o nome de um termo central da filosofia
nietzscheana e se constitui de anotações nunca publicadas nem autorizadas para publicação pelo
autor. A sonoridade da rejeição de Lima Barreto se harmoniza também com outras críticas traçadas
ao filósofo no início do século, como a de Benjamin, que em fragmento póstumo intitulado O
Capitalismo como Religião afirma que “esta passagem do planeta homem, através da casa do
desespero, para absoluta solidão do seu percurso é o ethos que define Nietzsche. Este homem é o
Super-Homem, ou seja, o primeiro homem que começa conscientemente a realizar a religião
capitalista”10
9 BARRETO, Lima. Estudos. In: Impressões de leitura e outros textos críticos. São Paulo: Penguin classics Companhia das Letras, 2017. p. 220. 10 BENJAMIN, Walter. O capitalismo como religião. Apud: AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.
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Tais críticas incidem principalmente sobre a crítica de Nietzsche à solidariedade e a uma
perspectiva coletivista de relação com o mundo. Para ele, tais direcionamentos morais estão
fundados no cristianismo e na sua negação do que constitui a vida por si mesma. A solidariedade e
o ataque ao egoísmo seriam formas de enfraquecer o que há de mais fundamental na existência
humana: a vontade de potência. Uma moral que negue a vontade de potência e anule suas pulsões
em prol de uma suposta redenção futura era para ele o mais absurdo da negação niilista da vida. Ao
contrário, ele propõe um direcionamento da vida em consonância com os seus impulsos
fundamentais, opondo ao que ele chama de moral do escravo – a anulação do eu e da potência – à
moral do senhor.
Ora, se isso feria fundamentalmente a perspectiva coletivista que Benjamin herdara da
crítica marxista, na obra de Lima Barreto isso entra diretamente em choque com os ideias
anarquistas sempre em diálogo com a sua visão de mundo. Mesmo nunca tendo aderido ao
anarquismo enquanto atividade política, é notável a sua relação com o pensamento anarquista de
sua época. Na sua biografia escrita por Lilia Schwarcz, essa relação é tratada com clareza: dentre as
obras sobre o tema presentes em sua biblioteca e muitas vezes citadas em suas crônicas “constava
a versão francesa do livro ‘Ajuda mútua’, de 1902, do anarquista e geógrafo russo Piotr Kropotkin”11.
Neste livro, o autor russo mostra, numa análise que vai do mundo animal até as sociedades humanas
como a colaboração é decisiva para a superação das adversidades e para a melhora das condições
de vida. Defendendo a ajuda mútua como fator de progresso, o livro se opunha às ideias então
alastradas do darwinismo social, constantemente aproximadas às obras de Nietzsche por parte dos
seus primeiros intérpretes. Schwarcz identifica essa perspectiva anarquista ao longo das obras de
Lima a partir da própria construção dos enredos: “O autor de Policarpo, que era leitor de Kropotkin
e de Tolstói, devia se pautar no conceito de ‘apoio mútuo’, e seus escritos só poderiam significar
fábulas de solidariedade, formas de manifestação das críticas naturalistas ao capitalismo”12.
Partindo dessas impressões sempre mordazes e contundentes que Lima Barreto empunha
com tal ferocidade, é importante não cair no erro de uma análise simplista da leitura que ele faz de
Nietzsche, nem amarrá-la ao contexto em que se insere a sua obra Ele mostra um domínio
aprofundado da obra do filósofo alemão, o que se pode perceber na crônica que escreve quando,
internado no Hospital do Exército, descreve sua experiência de quase prisioneiro e acaba por
11 SCHWACZ, Lilia Moritz. Lima Barreto: Triste Visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. p. 348. 12 Idem. p. 352.
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comentar temas que os articulistas do jornal apresentavam, segundo ele, de modo tão superficial e
sem coerência. Nesta crônica, intitulada “Da minha cela”, posteriormente publicado no volume
Bagatelas, ele critica o articulista do jornal O País que, ao acusar as teorias anarquistas e
maximalistas de “velharias”, ao opõe como novidade o pensamento de Nietzsche. Com ironia, Lima
lamenta a falta de memória do articulista, que considera novidade textos publicados “há quase
quarenta anos”, e apresenta uma aproximada cronologia da produção do filósofo, dizendo que
“deixou de escrever em 1881 ou 82 (...), enlouqueceu totalmente, tristemente, em 1889.”13
Mostrando domínio sobre o conjunto da obra do filósofo, ele ainda lembra o articulista de
uma frase presente em Assim Falou Zaratustra, que aparece algumas vezes na produção do escritor
carioca e também em seu Diário Íntimo. A crônica segue assim:
Compete-me dizer afinal ao festejado articulista que o Zaratustra, do Nietzsche, dizia que o homem é uma corda estendida entre o animal e o super-humano – uma corda sobre o abismo. Perigoso era atravessá-la; perigoso, ficar no caminho; perigoso, olhar para trás. Cito de cor, mas creio que sem falsear o pensamento14
Mostrando domínio de leitura da sua obra, Lima Barreto se volta, partir da citação do próprio
Nietzsche, contra as tentativas de utilização equivocada de sua filosofia, para o enaltecimento de
certo tipo de homem, raça ou classe. Ele atenta para o cuidado com o “nietzschismo de última hora”
que é utilizado pelos “super-homens da política, da finança e da indústria”, ao qual opõe a crítica do
filósofo ao humanismo de modo geral. Em outras palavras, ao criticar a utilização indevida dos
conceitos do autor de Zaratustra, ele atenta para o que há de mais fundamental na sua leitura: o
perigo da existência humana é tal que não se deve buscar exemplos de superação do homem no
próprio homem. Ao contrário, a filosofia nietzscheana deveria servir para criticar as bases do que faz
o homem entender a si mesmo.
Tal roteiro de leitura foi já proposto por Carmem Lúcia Figueiredo em artigo de 2004.15 Nele,
traçando as referências principais que Lima faz de Nietzsche, ela sugere uma possível leitura da obra
do escritor tendo em mente um roteiro traçado pelo contato que este faz com a filosofia
nietzscheana, apresentando tal contato através de um artigo, uma crônica e um conto. Não deixa
de ser visível que, nos três, é apenas a partir do conto que a obra dos dois se aproxima. Ao destrinchar
o conto “Como o ‘homem’ chegou”, que carrega uma epígrafe de Assim Falou Zaratustra, ela mostra,
13 BARRETO, Lima. Crônicas Seletas. In: Obra Reunida, Volume 3. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018. p. 505. 14 Idem. Ibidem. 15 FIGUEIREDO, Carmem Lúcia Negreiros de. Uma corda sobre o abismo: diálogo entre Lima Barreto e Nietzsche. Alea, Rio de Janeiro, v. 6, n. 1, p. 159-173, Jun. 2004.
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a partir de uma reflexão sobre o humanismo no mundo contemporâneo, que através da crítica da
verdade científica o autor demonstra uma desconfiança em como as formas de racionalidade,
enrijecidas, criam absurdos os mais impactantes.
A crônica traz na epígrafe a passagem “Deus está morto: a sua piedade pelos homens matou-
o”16. Não à toa, a epígrafe retirada de Assim falou Zaratustra não é mero floreio intelectual, mas
sugere um olhar específico que se espera do leitor ao se defrontar com o conto. Sua introdução,
como em boa parte dos seus contos, traz um aspecto de crônica, com uma linguagem de quem
comenta algo de conhecimento geral, um caso envolvendo uma delegacia do interior e os
mecanismos de manutenção da lei. O caso a ser relatado, contudo, teria simplesmente sido
ignorado pela mídia e, com isso, não teria ganho atenção pública. Contudo, o narrador afirma que o
delegado encarregado talvez não tivesse notado “o grande alcance da sua obra”. Sugere então, se
referindo a Nietzsche, que “tanto isso é de admirar quanto às consequências do fato concordam com
luxuriantes sorites de um filósofo sempre capaz de sugerir, do pé para a mão, novíssimas estéticas
aos necessitados de apresentá-las ao público bem informado”17.
No conto, uma pacata delegacia do interior, que não recebia denúncias por falta crimes
cometidos, não encontrava o emprego da nobre atividade civilizatória da aplicação da lei,
“sustentáculo do Estado”. Tal inatividade angustiava o delegado, “como se sentisse naquele desuso
do xadrez a morte próxima do Estado, da Civilização e do Progresso”18. Em dado momento, um
guarda-civil chega trazendo uma mensagem de extrema urgência: “Doutor (...), temos um louco”19.
O delegado é logo informado sobre a identificação de um louco em Manaus e, sabendo da
delicadeza e gravidade quando o assunto era reclusão de loucos, ele se empenha de forma
contundente a realizar tal tarefa. Chegando na cidade, fica claro para o leitor o que está em jogo no
texto. O ‘homem’, modo como qual insistentemente Fernando é tratado, era um ente pacato que
havia quase totalmente abandonado a vida corriqueira em troca do céu estrelado. Ele “tinha mania
de Astronomia” e “construíra na chácara da casa de sua residência um pequeno observatório, onde
montou lunetas que lhe davam pasto à inocente mania”. Compenetrado em sua paixão, começou a
estudar a matemática “com afinco e fúria de um doido ou de um gênio”20. Em razão desse seu
16 BARRETO, Lima. Outros Contos. In: Obra Reunida, Volume 2. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018. p. 344. 17 Idem. Ibidem. 18 Idem. p. 345. 19 Idem. p. 347. 20 Idem. p. 350.
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compromisso, foi ele tomando a fama de louco, fama reforçada pelo que diziam alguns homens
“esforçados para parecer inteligentes”
Os dois personagens que mais se destacam dentre os que se empenhavam para que tal fama
fosse alastrada eram, em primeiro lugar, o Dr. Barrado, sempre encostado nos magnatas e rondando
as instâncias de poder. Na sua implicância com Fernando, decidiu estudar uma astronomia bem
oposta, “a Astronomia do centro da Terra”21, e apresentava seus compêndios e suas referências.
Além disso, com sua preocupação de ser êmulo do Padre Vieira, aproveitara o tempo na viagem para
firmar regras ortográficas. Passou a ajudar o delegado por interesse de se aproximar do chefe
político local, influente na Sociedade Astronômica. Em segundo, “o antropologista Tucolas”,
especialista na mensuração do crânio de formigas.
O uso da caricatura é marcante não só nesse conto como em toda obra de Lima Barreto.
Esta, segundo Carmen Figueiredo, “concilia a agudeza da ironia com o senso profundo do grotesco,
pela fixação de detalhes ou situações ridículos e deslocados.”22. Esse recurso, imprescindível na
utilização da ironia enquanto forma de deslocamento conceitual, é o que permite manter a relação
entre absurdo e realidade e, tendo sido confrontado com ela, permite mostrar a incongruência da
última em face do que afirma de si mesma. Assim o ‘homem’ é taxado de louco não porque se dedica
à ciência ou porque efetivamente apresenta traços de loucura. Ao contrário, o que seria ciência é
transformado em loucura pela incompatibilidade entre o personagem e o que se espera enquanto
ser científico. Não importa se a astronomia de Fernando é mais ou menos válida que a astronomia
do centro da terra do Dr. Barrado, mas simplesmente mas um certo tipo de estética de si que é posta
em jogo nos dois casos. O ‘homem’ acaba sendo levado por anos dentro de um carro forte feito de
ferro até a capital, sem ser alimentado ou consultado uma vez sequer – pois isso não estava no
regulamento.
No fim do conto, o cadáver do ‘homem’ é carregado por anos até chegar ao Rio de Janeiro,
onde poderia ser aberto. Levado a esse fim pela ciência que julgava fazer o mais racional, mas que
tropeça sempre nas próprias pernas devido a seu caráter intrinsecamente relacionado a uma certa
política, a uma dinâmica de poder que se põe em jogo na sua base.
21 Idem. p. 351. 22 FIGUEIREDO, Carmem Lúcia Negreiros de. Op. Cit. p. 170.
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É possível, por um lado, supor que o que Lima Barreto pretendia ao associar este conto à
filosofia nietzscheana era mostrar o perigo da existência humana – enquanto corda estendida sobre
o abismo – ou as consequências da moral baseada na vontade de potência como ímpeto de
dominação e subjugo. Por outro lado, também é possível notar que, se o escritor mirou um ataque,
seus fundamentos encontram o princípio de base que constitui a crítica nietzscheana à metafísica e
à racionalidade científica.
A obra de Lima Barreto ficou conhecida, entre outros aspectos, por seus ataques
sistemáticos às certezas disseminadas pela ciência, às classes políticas e às configurações sociais de
seu tempo, que criavam ilusões lentamente desveladas apenas pela experiência. É nesse sentido que
o percurso trágico de desencanto do escrivão Isaías Caminha, recém chegado ao Rio de Janeiro, se
desenrola em uma sucessão de decepções, desde a visão da capital federal, nem de longe tão
suntuosa como sua imaginação interiorana a havia pintado, até a lenta tomada de consciência da
mediocridade do mundo dos literatos e jornalistas23. Da mesma forma, em Triste Fim de Policarpo
Quaresma, o protagonista tem suas tentativas de exaltação da nacionalidade constantemente
frustradas por um mundo de estrangeirados, que não compreendiam sua própria condição.
Quaresma, que dedicou toda a sua vida a serviço da nação, termina preso e sozinho, acusado de
traição. Na prisão, chega a conclusão de que “a pátria que quisera ter era um mito, um fantasma
criado por ele dentro de seu gabinete” e se pergunta “como é que ele tão sereno, tão lúcido,
empregara sua vida, gastara seu tempo, envelhecera atrás de tal quimera?”24
A partir da noção de quimera, explicitamente citado no Policarpo Quaresma mas presente
por toda a obra de Lima, é possível entender a realidade moderna através da ficção do autor como
uma série de ilusões que, através unicamente da narrativa da experiência caricaturada, podem ser
desveladas, revelando um mundo decadente e esvaziado. Crítico da modernidade e da perda de
sentido causada por ela25, o autor vê o seu trabalho como a exposição dessa decadência. Os ídolos
que o martelo de Nietzsche tão avidamente se preocupa em destruir se revestem em Lima Barreto
na própria construção de uma realidade irônica, ambivalente, que equaciona ilusão e desvelo em um
mesmo processo da experiência.
23 BARRETO, Lima. Recordações do Escrivão Isaías Caminha. In: Obra Reunida, Volume 1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018. 24 BARRETO, Lima. Triste Fim de Policarpo Quaresma. In: Obra Reunida, Volume 1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018. 25 Cf. SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão. São Paulo: Editora Brasiliense, 1989.
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É necessário deixar clara a noção de “ídolos” aparece no título de uma das últimas obras
publicadas por Nietzsche. Sob o nome Crepúsculo dos ídolos, ou como se filosofa com um martelo, a
obra foi construída a partir dos fragmentos com que Nietzsche projetava constituir parte de seu
projeto mais ambicioso: uma obra chamada “Vontade de Potência”, que consagraria todo o seu
projeto de superação da metafísica26. Tendo abandonado essa empreitada, ele publica o Crepúsculo
dos Ídolos como um resumo de sua filosofia27 e seu primeiro título provisório, “Transvaloração de
todos os valores”, carregava a significação de seu projeto filosófico como um todo. Essa
transvaloração seria o produto final do projeto de superação da metafísica que perpassa a sua obra,
desde o Nascimento da tragédia de 1872 até os cinco livros publicados em 1888, seu último ano de
atividade. Essa se dá em última instância pela percepção de que em sua origem, a metafísica
constrói a ideia de verdade através de uma de-cisão moral sobre o mundo. Em outras palavras, o ato
socrático de fundação da filosofia é o de separar a realidade em duas e, ao fazê-lo, escolher uma
sobre a outra. Assim explica Marco Antônio Casanova:
De acordo com a leitura nietzscheana da metafísica, a moral sempre se mostrou nas mais diversas fases da filosofia como o fundamento de todos os juízos acerca da totalidade. Por moral não se tem em mente aqui senão a divisão da realidade em dois âmbitos ontologicamente diversos e a instauração de um destes dois âmbitos como parâmetro de julgamento do outro. A metafísica é, assim, regida originariamente pela moral, uma vez que se coloca desde o princípio em nome do ser contra o devir, em nome do ser contra a aparência, em nome do inteligível contra o sensível, em nome da substância contra os acidentes, em nome da verdade contra o erro, em nome do repouso contra o movimento.28
Tendo perpassado toda a sua obra, a crítica à metafísica e à verdade se apresentam, na
primeira fase do pensamento nietzscheano, em estreita relação com a arte – enquanto forma
alternativa de conhecimento. No Nascimento da Tragédia, Nietzsche identifica na constituição da
tragédia grega a correlação perfeita entre os dois impulsos fundamentais que constituem a vida –
forma como trata a relação sensível da experiência do real. De um lado, um impulso de individuação,
que cria formas, delimita diferenças, cria sentidos, e de outro, um impulso de dissolução, de contato
e conexão com o mundo não individuado. Tais impulsos ele representa sobre a distinção entre Apolo
e Dioniso, os dois deuses que no mundo helênico tinham relação com a arte. O princípio apolíneo
26 Tal projeto pouco tem relação com o livro póstumo homônimo. Nietzsche abandona o projeto da “Vontade de Potência” ainda em lucidez, e é então que decide publicar, com o material já organizado, o Crepúsculo dos Ídolos e o Anticristo. O livro publicado em 1901 é uma seleção, feita pela sua irmã e por um amigo, de fragmentos e anotações que supostamente na busca de reconstituir a obra abandonada. 27 MONTINARI, Mazzino. Ler Nietzsche: O Crepúsculo dos Ídolos. In: Cadernos Nietzsche, nº3, 1997, p. 77-91. 28 CASANOVA, Marco Antônio. O instante extraordinário: vida, história e valor na obra de Friedrich Nietzsche. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. p. XII-XIII.
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teria marcado a sensibilidade grega até a introdução de Dioniso. Este, deus da embriaguez,
representa exatamente o princípio dissolutor de todas as formas dentro da existência fundamental.
Ao pensar a arte nesses termos, Nietzsche fundamenta sua interpretação do fenômeno
estético como princípio mesmo da existência. A cisão metafísica se deve à escolha de um pelo outro.
À escolha do apolíneo pelo dionisíaco, que funda a divisão dos mundos platônica. A partir dessa ação
que cinde a vida em mundo inteligível e mundo sensível, afirmando um como superior ao outro,
como preferível ao outro, Sócrates/Platão aproxima as noções de “Bem” e “Verdade”. Essa
fundamentação artística da vida e a sua posterior negação pela metafísica prosseguirão
direcionando o pensamento de Nietzsche mesmo depois de abandonar as tentativas de
“substituição” da metafísica que em seu primeiro livro são claras – a partir da também clara
influência de Schopenhauer e da música wagneriana.
Essa divisão seguiria, segundo ele, a história do pensamento até os seus dias, tendo passado
por inúmeras metamorfoses. Apesar de bem diferentes, platonismo, cristianismo e cientificismo
trazem no seu cerne o mesmo problema, a relação entre “Verdade” e “Bem” que nega os princípios
fundamentais da vida. Nas posteriores fases de seu pensamento, em especial a partir de Assim falou
Zaratustra, em obras como Além do bem e do mal e Genealogia da moral, a relação entre ciência e
moral fica cada vez mais clara29.
Transvalorar todos os valores pode parecer um projeto por demais ambicioso, se a expressão
é entendida como o ataque a cada forma de valoração individualmente. Contudo, para Nietzsche,
como bem o resume Casanova, ele se volta para a dissolução do valor mais fundamental, do valor
dos valores, que é a relação entre “Bem” e “Verdade”.
Ora, a relação intrínseca entre arte, verdade e moral na filosofia da transvaloração, sendo a
relação de oposição entre as duas primeiras e de fundamentação entre a segunda e a última, nos
leva de volta para a construção da tragicidade do realismo caricatural barretiano como método de
dissolução de imagens – expectativas, significações e estruturações – através do caminho
experienciado por aquele que o percorre. Nietzsche fundamenta uma experiência do real baseada
na capacidade artística metafórica de construção de sentido através de sensações30, e, em última
instância, afirma que a solução da verdade científica nega esses princípios ao instaurar um “mundo
29 MACHADO, Roberto. Nietzsche e a verdade. Rio de Janeiro: Rocco, 1985. 30 CASANOVA, Marco Antônio. Op. Cit.
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verdadeiro” que estaria desconectado desses processos. Em Lima, os processos caricatural
permitem entrever - através do véu de Maia que o entrelaçamento entre moral (política) e verdade
instaura - um labirinto de signos e formas que se relacionam entre si, um jogo de ilusões em que
nada se refere ao que pretende se referir. Se Nietzsche propõe uma solução filosófica ao problema
que encontra, a partir de uma interpretação do que seria a experiência artística do mundo e uma
forma de opor a moral metafísica a uma que esteja em consonância com os impulsos fundamentais,
parece que na obra de Lima Barreto o processo de dissolução dessas quimeras só faz trazer à luz
outras quimeras, talvez mais deformadas e estranhas, num jogo de ilusão que constitui o caráter
ficcional da existência. Como se, afundados em um labirinto apolíneo de formas oníricas esvaziadas,
a única forma de achar a saída fosse a construção de outros labirintos por sobre os primeiros, tanto
mais reais quanto mais ficcionais, e quando suspirássemos de alívio ao sair da primeira prisão,
ficássemos tranquilos de ter construído um labirinto só nosso.31
É a partir desse jogo que explicita o caráter estético, ficcional, da realidade que se explicita
o caráter negativo da ciência e da moral política. Lima não chega a constituir necessariamente uma
crítica da verdade em si, como demoradamente o faz Nietzsche. Mas identifica o caráter niilista da
ciência que nega o seu aspecto ficcional, da mesma forma que na de-cisão metafísica, tal como
pensada pelo filósofo alemão, a ideia de verdade nega o seu fundamento artístico e se instaura
enquanto única realidade possível, em detrimento a um mundo que escapa a ela.
Quando se fala da tragicidade dos personagens barretianos, se tem em mente unicamente
este processo de dissolução engendrado pela percepção do caráter ilusório das imagens através da
experiência cotidiana. Diferente do conceito de trágico na obra do autor de Zaratustra, que de modo
muito mais aprofundado apresenta a perspectiva trágica da vida enquanto reconciliação dos
impulsos fundamentais e da experiência com o saber. Se ao falar de tragicidade na obra de Lima
Barreto, se tem muitas vezes em mente a noção mais corriqueira de como essa palavra foi
apropriada pela tradição, essa tragicidade, do modo como se desenrola em suas obras, pode ressoar
em certos aspectos do que Nietzsche encontra na tragédia grega como fundamento da verdade.
31 Tal imagem deve sua inspiração em parte à análise do caráter cômico da obra de Franz Kafka que faz David Foster Wallace. Nesse texto, para explicar o que ele entende pela comicidade do autor de Praga, Wallace descreve uma imagem para melhor compreensão: “Pode pedir para imaginarem que todos os seus contos tratam de uma espécie de porta. Para se visualizarem chegando perto dessa porta e batendo nela com cada vez mais força, batendo e batendo, não apenas querendo entrar, mas precisando disso; não sabemos o que é, mas conseguimos sentir esse desespero total por entrar, batendo, esmurrando e chutando. Que enfim a porta se abre… E ela abre para fora - estávamos o tempo todo dentro daquilo que queríamos. Das ist komisch”. Em: WALLACE, David Foster. Alguns comentários sobre a graça de Kafka dos quais provavelmente não se omitiu o bastante. In: Ficando longe do fato de já estar meio longe de tudo. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 193 (versão e-book).
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Em última instância, o que está em jogo na análise dialógica aqui empreendida é a
possibilidade de entender como a suspeita da verdade permite revelar o caráter ilusório do
conhecimento, da forma como ele é estabelecido. Seja a partir da crítica filosófica, que chega na
arte como fundamento da experiência, seja através da arte que faz revelar o caráter estético do
mundo, esse jogo de interpretações pode nos revelar a potencialidade mesma da arte enquanto
forma de conhecimento e saber da experiência e, em especial, como essa crítica pôde ser colocada
em jogo em lados opostos do Atlântico. Partindo do que poderia ser a presença de Nietzsche na obra
de Lima Barreto, através da crítica ou do uso de algumas de suas categorias e conceitos, podemos
desaguar, como um rio que por caminhos sinuosos se expande em seu delta, em como a crítica da
tradição assume uma forma específica nos trópicos, e em como ela só poderia ter sido feita a partir
da literatura. Colocar frente a frente textos de natureza distinta – aforismos ou ensaios filosóficos e
uma literatura ficcional satírica – não deixa de ser uma tarefa complicada. Tendo objetivos e
mecanismos diferentes, não se deve opor os dois de forma irrefletida. Contudo, o caráter estético,
artístico mesmo, da obra de Nietzsche permite a aproximação com a obra de Lima Barreto, que
entendia sua literatura como um veículo das ideias de seu tempo.32 Escrevendo textos
dessemelhantes, os autores também remetem a entendimentos distintos quando falam de tradição
e ciência, não podendo ser diferente, devido à distância que produz uma experiência diferenciada
no contexto colonial dos trópicos. Nesse contexto, a obra de Lima permite entrever os problemas
que percebe nesse litoral que se espreita entre o mar e o sertão.
Isso não impede que ele perceba, da mesma forma que o filósofo alemão, a gramática como
um dos problemas imbricados na crítica da verdade33, nem que olhe pra Grécia – enquanto ideal de
forma artística e de racionalidade – com os olhos serenos e melancólicos do guerreiro que vislumbra
manequins de deuses mortos34. Como a filosofia da suspeita de Nietzsche – que empunhando
martelos traça de forma combativa um modo de revelar a falta de sentido unificador do mundo e
destruir os ídolos que a modernidade insiste em mostrar no mortuário – a obra de Lima Barreto
propõe-se a desvelar, com os martelos cirúrgicos da experiência, um mundo que é constituído pelas
contradições de um mundo que acontece por detrás das ilusões, e que só a experiência caricaturada
pela sua ficção permite entrever, como por entre rachaduras nessas quimeras, abertas a marteladas.
32 Cf. SEVCENKO, Nicolau. Op. Cit. 33 “Receio que ainda não nos livraremos de Deus, pois ainda cremos na gramática”. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Crepúsculo dos Ídolos, ou Como se filosofa com o martelo. São Paulo: Companhia de Bolso, 2017. 34 BARRETO, Lima. Amplius! In: Obra Reunida, Volume 2. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018.
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E com sua serenidade jovial, retornado da batalha, senta-se na areia em meio às deformadas
quimeras de mármore, a olhar o mar como quem olha seus antepassados.
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SÓCRATES E NIETZSCHE: ARTE,
VERDADE E DÉCADENCE Jéssyca Aragão de Freitas1
RESUMO: Partindo da análise dos livros II, III e X da República, nos quais a crítica socrático-platônica ao valor da arte é desenvolvida, pretendemos examinar a crítica nietzscheana à racionalidade e ao socratismo estético nas obras O nascimento da tragédia e O crepúsculo dos ídolos, além de apresentar a relação entre arte e afirmação da vida no pensamento de Nietzsche. PALAVRAS-CHAVE: Sócrates. Nietzsche. Arte. Verdade. Décadence.
SOCRATES ET NIETZSCHE: ART, VÉRITÉ ET DÉCADENCE RESUME: À partir de l'analyse des livres II, III et X de la République, dans lesquels se développe la critique socratique-platonicienne de la valeur de l'art, on prétend examiner la critique nietzschéenne de la rationalité et du socratisme esthétique dans les ouvrages La Naissance de la tragédie et Crépuscule des idoles, en plus de présenter le rapport entre l'art et l'affirmation de la vie dans la pensée de Nietzsche. MOTS-CLÉS: Socrate. Nietzsche. Art. Vérité. Décadence.
1 Mestra em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (UECE), com linha de pesquisa em Ética Fundamental. Doutoranda em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com linha de pesquisa em Filosofia da Linguagem e do Conhecimento. É integrante do GENi: Grupo de Estudos Nietzsche –UECE. E-mail: [email protected]
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1 A crítica socrático-platônica ao valor da arte na República
Ao longo dos livros II e III da República, ao discorrer sobre o projeto educacional de sua
kallípolis, Platão efetua uma crítica ao papel das artes, alegando que os poetas não devem ser
responsáveis pela instrução do homem ideal, uma vez que suas obras estão repletas de falsidades e
imitações do mal. Tal crítica ressurge de modo mais veemente ao longo do livro X2, no qual o filósofo
grego, através da personagem Sócrates, expulsa toda poesia mimética de sua cidade ideal.
Essa condenação às artes – que, como podemos observar já de saída, ocupa dimensões
morais e epistemológicas –, encontra-se estritamente vinculada à concepção metafísica platônica,
cujo projeto pretende postular um fundamento inteligível e independente que garanta identidade,
ordenação e cognição às realidades sensíveis submetidas ao devir e, consequentemente, uma
resposta à crise relativista sofistica que assolava a cultura ateniense nos séculos V e IV a.C.
Com a postulação platônica das formas inteligíveis como paradigmas, todos os
indivíduos adquirem critérios objetivos para alcançar algum conhecimento verdadeiro em meio ao
devir, na medida em que essas formas autó kath’hauto se encontram refletidas nas almas humanas
– através de nossas noções a priori – e nos objetos sensíveis – através das estruturas inteligíveis que
se repetem e nos possibilitam reconhecer gêneros e classes.
Nesse contexto, as artes são destituídas de um valor autônomo, pois só podem possuir
validade enquanto instrumentos auxiliares a esse projeto metafísico. Para Platão,
independentemente do prazer que possa proporcionar ao ser humano, as artes devem ser avaliadas
de acordo com as suas capacidades de aproximarem os indivíduos do conhecimento verdadeiro e
torná-los melhores. É a partir desses critérios que o filósofo grego questiona o valor educativo da
poesia para a sua sociedade. A dimensão desse “ataque”, como salienta Maria Helena da Rocha
Pereira (2014), justifica-se pela importância da poesia para a cultura grega.
Em um período no qual o ensino primário ainda não havia sido institucionalizado, toda a
formação educacional grega primitiva constituiu-se por meio dos poetas. Era dos poemas que o
povo grego extraía todo seu alimento espiritual, cultural e moral. Ao discorrer sobre a influência da
poesia na formação do homem grego, em sua Paidéia, Werner Jaeger afirma:
Nem a apaixonada critica filosófica de Platão conseguiu abalar o seu domínio, quando buscou limitar o influxo e valor pedagógico de toda a poesia. A concepção do poeta como
2 Muitos comentadores, como Goldschmidt, Cross e Woozley, acreditam que o livro X da República deve ser considerado um apêndice à obra. Vide: GOLDSCHMIDT, Victor. Os Diálogos de Platão: estrutura e método dialético. São Paulo: Loyola, 2002; CROSS, R. C.; WOOZLEY, A. D. Plato’s Republic: a philosophical commentary. London: Mac-Millan, 1964.
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educador do seu povo – no sentido mais amplo e profundo das palavras – foi familiar aos gregos desde a sua origem e manteve sempre a sua importância (JAEGER, 2013, p. 61).
Essa crítica platônica à poesia não exprime apenas “a simples exclusão do elemento
lúdico da psicologia humana” (PEREIRA, 2014, p. XXXVII), mas representa ainda “um requerimento
para que a Filosofia tome o lugar que a Poesia até aí tinha preenchido na teoria e na prática
educativa” (ADAM, II, 1965, p. 396 apud PEREIRA, 2014, XXXVII)3.
Dentre os poetas antigos, foi, sobretudo, Homero, o maior educador da Grécia arcaica.
Os poemas homéricos não forneciam apenas conhecimentos linguísticos, mas eram fontes de
saberes religiosos, estéticos, jurídicos e morais. No século IV, em seu fragmento 10, Xenófanes de
Cólofon já relata: “Desde o início todos aprenderam seguindo Homero” (SOUZA, 1999, p. 70). No
livro X da República, Platão também ratifica esse dado, alegando que os encomiastas de Homero
não enalteciam seus poemas somente enquanto fontes de prazer artístico, mas também como
paradigmas de um modo de vida, ao afirmarem que “este foi o poeta educador da Grécia, e que é
digno de se tomar por modelo no que toca a administração e a educação humana, para aprender
com ela a regular toda a nossa vida [...]” (Rep., X, 606e-607a).
A filosofia se estabelece em oposição à cultura predominante, que reverenciava a poesia
de modo acrítico, adotando seus padrões morais sem a realização de um exercício reflexivo acerca
da legitimidade desses valores. No projeto ideal platônico, a filosofia não deve apenas ocupar o
papel educacional da paidéia, em prejuízo da poesia, mas deve ainda avaliar o verdadeiro valor das
artes para a sociedade.
1.1 O lugar das artes na formação humana
Platão inicia sua abordagem acerca do papel das artes na formação humana durante os
livros II e III da República, nos quais Sócrates discorre sobre a educação ideal dos guardiões, que deve
visar ao aprimoramento do caráter desses indivíduos. Segundo o filósofo, tendo em vista que as
almas dos jovens são facilmente moldadas através de qualquer material, faz-se necessário que as
artes de sua kallípolis sejam reguladas de acordo com o ideal de homem almejado em sua proposta
filosófica racionalista, pautada em conceitos como “bondade”, “beleza” e “perfeição”:
3 De acordo com Jaeger, no livro X “a Filosofia ganha consciência de si própria como paidéia e por sua vez reinvidica para si o primado da educação”. Cf. JAEGER, Werner. Paideia: a formação do homem grego. Tradução de Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 2013. p. 980.
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Mas então só aos poetas é que devemos vigiar e forçá-los a introduzirem nos seus versos a imagem do caráter bom, ou então a não poetarem entre nós? Ou devemos vigiar também os outros artistas e impedi-los de introduzir na sua obra o vício, a licença, a baixeza, o indecoro, quer na pintura de seres vivos, quer nos edifícios, quer em qualquer outra obra de arte? E, se não forem capazes disso, não deverão ser proibidos de exercer o seu mister entre nós, a fim de que os nossos guardiões, criados no meio das imagens do mal, como no meio de ervas daninhas, colhendo e pastando aos poucos, todos os dias, porções de muitas delas, inadvertidamente não venham a acumular um grande mal na sua alma? Devemos mais é procurar aqueles dentre os artistas cuja boa natureza habilitou a seguir os vestígios da natureza do belo e do perfeito, a fim de que os jovens, tal como os habitantes de um lugar saudável, tirem proveito de tudo, de onde quer que algo lhes impressione os olhos ou os ouvidos, procedente de obras belas, como uma brisa salutar de regiões sadias, que logo desde a infância, insensivelmente, os tenha levado a imitar, a apreciar e a estar de harmonia com a razão formosa? (Rep., III, 401b-d)4.
Partindo do pressuposto de que os indivíduos tendem naturalmente à imitação e
incorporação de comportamentos, Platão preocupa-se com as representações de “imagens do mal”
nas artes, instituindo regulamentos sobre as formas e os conteúdos das diversas expressões
artísticas, sem os quais as artes não podem ser toleradas na educação ideal. Assim, embora a poesia,
o drama, a música e as narrativas participem do currículo formativo dos guardiões e, portanto,
preservem um lugar na kallípolis, tais artes devem estar sujeitas aos valores cultivados pela cidade5.
Em “Platão e as artes”, Christopher Janaway observa que, na República, “uma boa ficção
é aquela que (ainda que falsa ou inventada) representa corretamente a realidade e imprime um bom
caráter em sua audiência” (JANAWAY, 2011, p. 364). Para além de um compromisso com a descrição
de fatos reais, Platão parece estar mais interessado em representar fielmente um ideal de homem a
ser imitado:
Há uma dificuldade potencial aqui, com a qual Platão caracteristicamente não se preocupa. Uma representação precisa do modo como os homens se comportam nas batalhas ou no amor não fracassariam em imprimir o que Platão considera como o melhor caráter em seus ouvintes? Se for assim, o critério superior do que e aceitável e do que deve ser suprimido é a representação veraz ou o efeito ético? A despeito de toda a sua defesa da veracidade, Platão em um momento sugere que é o último: algumas lendas místicas violentas, como a da castração de Ouranos, não são verdadeiras e não devem ser contadas aos jovens ainda que fossem verdadeiras (II. 378a1-3). Por outro lado, a representação que ele busca é a que é fiel
4 Christopher Janaway acredita que “essa ênfase na harmonia e no estar bem-formado (euschêmosunê) dá às artes um papel nobre e excelso e fornece as bases para um tipo de estética platônica positiva”. Cf. JANAWAY, Christopher. Platão e as artes. In: BENSON, Hugh H. et al. Platão. Tradução de Marco Antonio de Ávila Zingano. Porto Alegre: Artmed, 2011. pp. 362-373. p. 363. 5 Em “Platão e a arte na República”, Fernando Muniz salienta: "Não há, no entanto, nos livros II e III uma condenação explícita à arte. Pelo contrário, Sócrates prevê uma educação tradicional em que elementos artísticos – simetria, proporção, ritmo – são importantes na formação do caráter. Fica claro que para Platão uma sociedade não pode prescindir do valor formativo das artes [...]. Fica reconhecida assim a potência transformadora da arte, sua função na formação ética e as consequências políticas dessa formação. Tal reconhecimento é, no entanto, ambivalente. Isso porque a mousiké tanto pode produzir os referidos efeitos de criação dos cães de guarda como pode criar lobos [...]. Uma vigilância constante, portanto, deve ser mantida em relação não apenas aos poetas, mas também aos demais produtores. Qualquer que seja o tipo de obra [...] deve ser proibida de tratar do vício, da licença, da baixeza, da ausência de forma graciosa. Essa proibição tem como finalidade impedir que as imagens do mal sejam assimiladas – pouco a pouco e inadvertidamente – e acabem produzindo um mal na alma”. Cf. MUNIZ, Fernando. Platão e a arte na República. In: XAVIER, D. G.; CORNELLI, G. (Orgs.). A República de Platão: outros olhares. São Paulo: Loyola, 2011. cap. 4º. pp. 65-77. p. 68-69.
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a um ideal: o ideal do indivíduo nobre e virtuoso, guiado pela razão. Mostrar Aquiles vencido pela dor pode ser representar um tipo de verdade, mas Platão busca a representação verdadeira somente do tipo de caráter paradigmático necessário para seus futuros guardiões (JANAWAY, 2011, p. 364).
Com a reformulação socrático-platônica, as artes deixam de ser avaliadas como boas ou
más pelo critério do prazer, independente dos exemplos viciosos que possam fornecer aos jovens,
passando a serem mensuradas de acordo com os ideais de virtude que propagam. A ética, portanto,
se sobrepõe à estética. Desse modo, apesar de ser reconhecidamente talentoso enquanto poeta, as
obras de Homero são censuradas na cidade ideal, posto que apresentam conteúdos capazes de
corromper o caráter dos jovens. Aos poetas resta somente encenar as ações dos indivíduos bons,
nobres e moderados, em consonância com o ideal socrático-platônico de homem virtuoso.
1.2 Arte mimética e verdade
No livro X da República, Platão apresenta o conceito de mímesis como “geração de
imagens”. Para o filósofo, toda e qualquer atividade que não gere objetos reais, mas somente
imagens desses objetos, pode ser nomeada de mímesis. Assim, enquanto reprodutores de
aparências, tanto os poetas quanto os artistas visuais são miméticos.
Platão questiona a legitimidade da arte mimética através de uma crítica ao seu valor
ontoepistemológico6: primeiramente, na medida em que não gera objetos reais, mas, como
afirmamos acima, produz “imagens”, a arte mimética não possui um verdadeiro valor de produção;
além disso, enquanto imagens dos objetos sensíveis que, por sua vez, se constituem como
“imagens” ou “cópias” das formas auto-subsistentes, os produtos gerados por essa classe artística
estão “três pontos” (Rep., X, 597e) afastados do verdadeiro conhecimento, proveniente do âmbito
inteligível postulado pela metafísica platônica; por fim, a produção dessas obras não requer do poeta
ou artista visual nenhum conhecimento legítimo, de caráter técnico, acerca do objeto representado,
embora a cultura predominante reconheça esses artistas como conhecedores de todos os tipos de
coisas.
Assim, enquanto reprodutora da mera aparência, “a arte de imitar está bem longe da
verdade, e se executa tudo, ao que parece, é pelo fato de atingir apenas uma pequena porção de
6 Em “Para ler Platão: a ontoepistemologia dos diálogos socráticos”, José Gabriel Trindade Santos explica: “Com essa expressão queremos manifestar a impossibilidade de separar ‘saber’ e ‘ser’ nos argumentos que abordam a problemática do conhecimento do real, cuja função é capital em toda a obra dialógica”. Cf. SANTOS, José Gabriel Trindade. Para ler Platão: a ontoepistemologia dos diálogos socráticos. 2 ed. São Paulo: Edições Loyola, 2012. p. 10.
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cada coisa, que não passa de aparição” (Rep., X, 598b). Referindo-se às artes visuais, Platão ainda
esclarece:
Por exemplo, dizemos que um pintor nos pintará um sapateiro, um carpinteiro, e os demais artífices, sem nada conhecer dos respectivos ofícios. Mas nem por isso deixará de ludibriar as crianças e os homens ignorantes, se for bom pintor, desenhando um carpinteiro e mostrando-o de longe com a semelhança, que lhe imprimiu, de um autêntico carpinteiro (Rep., X, 598b-c).
É perfeitamente possível, portanto, que o artista mimético produza “uma imagem de
alguém que conhece X sem que se seja conhecedor de X” (JANAWAY, 2011, p. 367). Para o filósofo, é
exatamente isso que fazem os poetas miméticos, sobre os quais “já ouvimos dizer que [...] sabem
todos os ofícios, todas as coisas humanas referentes à virtude e ao vício, e as divinas” (Rep., X, 598e),
aos produzirem imagens do que julgam ser o bom, o mau, o prazeroso e o doloroso para vida
humana, sem, no entanto, conhecerem o que é verdadeiramente bom, mau, prazeroso ou doloroso.
Assim,
Assentamos, portanto, que, a principiar em Homero, todos os poetas são imitadores da imagem da virtude e dos restantes assuntos sobre os quais compõem, mas não atingem a verdade; mas, como ainda há pouco dissemos, o pintor fará o que parece ser um sapateiro, aos olhos dos que percebem tão pouco de fazer sapatos como ele mesmo, mas julgam pela cor e pela forma? [...] Do mesmo modo diremos, parece-me, que o poeta, por meio de palavras e frases, sabe colorir devidamente cada uma das artes, sem entender delas mais do que saber imitá-las, de modo que, a outros que tais, que julgam pelas palavras, parecem falar muito bem, quando dissertam sobre a arte de fazer sapatos, ou sobre a arte da estratégia, ou sobre qualquer outra com metro, ritmo e harmonia. Tal é a grande sedução natural que eles têm, por si sós (Rep., X, 600e-601b).
O artista mimético, “criador de fantasmas” (Rep., X, 601b), não possui nenhum
conhecimento verdadeiro, encontrando-se aprisionado a um âmbito ontoepistemológico inferior da
realidade e, consequentemente, é incapaz de exercer o papel que o justificaria na kallípolis, a saber,
o de aproximar os indivíduos do conhecimento verdadeiro. A arte mimética, nesse sentido, deve ser
considerada “uma brincadeira sem seriedade”:
Mas o imitador adquirirá o conhecimento dos objetos que pinta, pela prática, e a capacidade de distinguir se são belos e bem feitos ou não, ou obterá uma opinião correcta, pelo facto de forçosamente ter de conviver com aquele que sabe e de acatar suas prescrições sobre a maneira como deve pintar? – Nem uma coisa nem outra. – Por conseguinte, o imitador não saberá nem terá uma opinião certa acerca do que imita, no que toca à sua beleza ou fealdade. [...] Contudo, fará suas imitações à mesma, sem saber, relativamente a cada uma, em que é que ela é má ou boa; mas, ao que parece, aquilo que parecer belo à multidão ignara, é isso mesmo que ele imitará. [...] Logo quanto a estas questões, estamos, ao que parece, suficientemente de acordo: o imitador não tem conhecimentos que valham nada sobre aquilo que imita, mas a imitação é uma brincadeira
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sem seriedade. E os que se abalançam à poesia trágica, em versos iâmbicos ou épicos, são todos eles imitadores, quanto se pode ser. [...] Era a este ponto que eu queria chegar, quando dizia que a pintura e, de um modo geral, a arte de imitar, executa as suas obras longe da verdade, e, além disso, convive com a parte de nós mesmos avessa ao bom-senso, sem ter em vista, nesta companhia e amizade, nada que seja são ou verdadeiro (Rep., X, 602a-b, 603a-b).
Finalmente, por direcionar-se à “parte de nós mesmos avessa ao bom-senso”, isto é, ao
elemento concupiscível (epithymetikón) da alma humana7, as imagens produzidas pela arte
mimética fomentam nossos impulsos irracionais, infantis e emotivos, estimulando a subversão dos
elementos inferiores da alma – que, por natureza, devem estar submetidos ao elemento racional
(logistikón), cuja função própria é governar – e tornando os indivíduos intemperantes.
Na República, a poesia adquire uma natureza duplamente prejudicial: primeiramente, no
âmbito moral, ao produzir “imagens do mal” e exemplos viciosos que podem corromper o caráter
dos jovens, uma vez que suas almas são facilmente moldáveis através de narrativas; depois, no
âmbito epistemológico, ao se apresentar como detentora de um falso saber, na medida em que os
poetas não possuem conhecimentos verdadeiros acerca dos objetos ao qual imitam, dado que só
reproduzem aparências.
A crítica socrático-platônica à poesia culmina na expulsão dos poetas miméticos da
cidade ideal, sob o argumento que suas obras, que visam ao prazer e não à formação humana,
trazem danos morais e epistemológicos à psyché humana. Ainda há, no entanto, um lugar reservado
para um determinado tipo de poesia na kallípolis platônica: aquela dedicada aos “hinos aos deuses e
encômios aos varões honestos e nada mais” (Rep., X, 607a) ou, em outras palavras, aquela
submetida ao projeto filosófico metafísico-racionalista socrático-platônico. Destituída de um valor
por si mesma, a poesia e arte em geral adquirem, na República, um papel meramente educativo e
condicionado à supervisão filosófica, ao ideal de homem platônico e aos seus valores morais e
epistemológicos, direcionados para a virtude, para o conhecimento e para a verdade.
7 No livro IV da República, partindo da observação das motivações psíquicas conflitantes e do princípio de não contradição, Platão apresenta sua tese da tripartição da alma, determinando que todos os indivíduos são constituídos por três categorias psíquicas fundamentais, que esgotam todas as tendências psicológicas do homem, dividindo a alma humana em três partes (mére) distintas, responsáveis pelas três únicas motivações das ações humanas, a saber, 1) o elemento ou parte concupiscível (epithymetikón), de natureza inferior, pelo qual os indivíduos sentem desejos relativos à alimentação e à geração, sendo impelidos por ele para a realização destas satisfações e prazeres; 2) o elemento ou parte racional (logistikón) e calculativa, de natureza superior, pelo qual os indivíduos raciocinam, deliberam e governam sua alma; e 3) o elemento ou parte irascível (thymoeidés), pelo qual os indivíduos se encolerizam, se indignam e nutrem sentimentos de honra e coragem. A partir dessa tese, para que um indivíduo possua uma vida harmoniosa, temperante e justa faz-se necessário que o elemento racional de sua alma governe, o tanto quanto possível e com auxílio do irascível, o elemento concupiscível. Cf. Rep., IV, 436a et seq.
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2 A crítica nietzscheana ao projeto socrático-platônico
A filosofia nietzscheana constitui-se, sobretudo, como uma crítica ao racionalismo
filosófico, aos valores morais e ao conhecimento metafísico. Para Friedrich Nietzsche, o
pensamento metafísico é sintoma de uma décadence dos instintos e dos valores afirmativos da vida.
Visando a uma superação desse modelo filosófico tradicional, o filósofo alemão direciona sua
ofensiva aos fundamentos do saber ocidental e, consequentemente, alcança a filosofia socrático-
platônica, contra a qual faz investidas durante toda sua obra.
Dentre os inúmeros textos nos quais podemos encontrar a crítica nietzscheana ao
projeto socrático-platônico, analisaremos especificamente duas obras, O nascimento da tragédia,
primeiro livro publicado pelo jovem Nietzsche, em 1872, e O crepúsculo dos ídolos, último livro
publicado pelo filósofo em vida, em 1888.
2.1 Eurípides e a ascensão do socratismo estético
Em O nascimento da tragédia, Nietzsche realiza uma crítica ao racionalismo socrático-
platônico, enquanto negador dos instintos afirmativos da vida, responsabilizando o modo de
existência “socrático”8 pelo declínio da tragédia grega, cujo poeta paradigmático seria Eurípides9.
De acordo com a análise nietzscheana, Sócrates, portador de uma excessiva vontade de
verdade, manifesta através da busca incessante pela “verdade a todo custo”, pelo “além-mundo”,
pelas formas inteligíveis, pelo bem em si, etc., constitui um modelo de vida pautado em ideais
contrários à sabedoria instintiva, à poesia irracional e à existência trágica grega, instaurando um
otimismo científico cada vez mais exacerbado em sua sociedade.
8 “Nietzsche observa, em ST, que o socratismo é mais antigo que Sócrates e começou a exercer seu efeito dissolvente sobre a tragédia a partir do diálogo (KSA1, p. 42). Com essa observação, na qual é feita uma distinção entre a figura de Sócrates e o socratismo, o filósofo indica um elemento essencial de sua interpretação, a de Sócrates como um tipo ou representante de um momento histórico, no qual e expressam os traços e a linha predominante de uma época. Nietzsche afirma, na sessão 13 de GT, que ‘o prodigioso motor do socratismo lógico’ (ungeheure Triebrad) se encontra, por assim dizer, atrás de Sócrates. Este encarna, em sua filosofia e em sua história, a tendência dominante no desenvolvimento da sociedade, aquela onde se consolida a supremacia da consciência e do entendimento sobre o saber e o conhecimento instintivo”. Cf. CAVALCANTI, Anna Hartmann. Símbolo e alegoria: a gênese da concepção d e linguagem em Nietzsche. São Paulo: Annablume; Fapesp. Rio de Janeiro: DAAD, 2005. p. 265, nota 88. 9 Segundo Jaeger, “A Filosofia, que para os poetas primitivos fora algo de certo modo subterrâneo, emerge à luz do dia por meio da independência do νοῦς. O pensamento racional penetra em todos os domínios da existência. Liberto da poesia, volta-se contra ela e procura dominá-la. Este acento fortemente intelectual soa a nossos ouvidos em todos os discursos dos personagens de Eurípides [...]. A sua intelectualidade sensível, que parece débil em comparação com a força vital profundamente enraizada de Ésquilo, torna-se o instrumento intelectual de uma arte trágica que precisa cimentar e espicaçar, por meio de uma dialética febril, o seu arrebatamento subjetivo”. Cf. JAEGER, Werner. op. cit., p. 404. Mais adiante, o autor ainda escreve: “A reforma naturalista, retórica e racionalista do estilo trágico não é mais do que o reflexo da imensa revolução subjetivista que atinge também a poesia e o pensamento. Com Eurípides, alcança a sua plenitude a evolução que está no auge, pela primeira vez, com a lírica eolo-jônica, e que estacionara devido à criação da tragédia e a inclinação da vida espiritual para a política. Esse movimento desemboca agora na tragédia. Eurípides desenvolve o elemento lírico que desde o início fora essencial ao drama, mas o transpõe do coro para os personagens. Tornando-o assim o suporte do phatos individual”. Cf. JAEGER, Werner. op. cit., p. 406.
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No âmbito artístico, esse otimismo se manifesta através do socratismo estético,
“princípio assassino” (GT/NT, 12, p. 81) da velha tragédia, “[...] cuja suprema lei soa mais ou menos
assim: ‘Tudo deve ser inteligível para ser belo’, como sentença paralela à sentença socrática: ‘Só o
sabedor é virtuoso’” (GT/NT, 12, p. 78). Eurípides, expoente par excellence desse projeto estético,
parte de um princípio paralelo, “[...] ‘tudo deve ser consciente para ser belo’” (GT/NT, 12, p. 80),
tornando-se arauto de um novo modo de criação artística10, de caráter intelectualista, naturalista,
dialético, subjetivista e antidionisíaco.
Com a ascensão do socratismo estético, a tragédia grega entra em decadência e o
instinto transfigurador e criativo da arte clássica é subjugado pela exigência de cada vez mais
inteligibilidade, consciência, conhecimento abstrato, lógica e clareza no fazer artístico, na medida
em que os poetas devem, obrigatoriamente, ter um domínio epistemológico-conceitual acerca
daquilo que produzem, de modo científico e reflexivo.
Segundo Nietzsche, ao condenar a tragédia e a arte em geral, Platão, que “[...] não fica
certamente atrás do ingênuo cinismo de seu mestre, precisou, por necessidades inteiramente
artísticas, criar uma forma de arte que tem parentesco interno justamente com as formas de arte
vigentes e por ele repelidas”11 (GT/NT, 14, p. 85). Assim,
Se a tragédia havia absorvido em si todos os gêneros de arte anteriores, cabe dizer o mesmo, por sua vez, do diálogo platônico, o qual, nascido, por mistura, de todos os estilos e formas precedentes, paira no meio, entre narrativa, lírica e drama, entre prosa e poesia [...]. O diálogo platônico foi, por assim dizer, o bote em que a velha poesia naufragante se salvou com todos os seus filhos: apinhados em um espaço estreito e medrosamente submissos ao timoneiro Sócrates, conduziam para dentro de um novo mundo que jamais se saciou de contemplar a fantástica imagem daquele cortejo (GT/NT, 14, p. 86).
10 Com Eurípides, “A antiga idealidade trágica foi substituída por um estilo naturalista, caracterizado pela imitação fiel da vida cotidiana, onde até mesmo a linguagem se converteu na linguagem ‘da mediocridade burguesa’ (KSA1, p. 76). O caráter simbólico da arquitetura e da linguagem, característico da tragédia antiga, cede lugar a uma reprodução fiel da realidade, a partir da qual Eurípedes procura superar a suposta distância formada entre a arte antiga e os espectadores. No lugar do herói e dos sátiros, que se expressavam em versos, Eurípedes traz à cena o homem comum e a realidade de sua vida e linguagem cotidianas: ‘O que o espectador via e ouvia na cena euripidiana era seu próprio duplo e se alegrava que soubesse falar tão bem’ (KSA1, p. 77). Nietzsche observa, ironicamente, que o espectador não somente se alegrava, mas aprendia a falar e argumentar com Eurípides. E esse era, de fato, um dos méritos que o poeta ressaltava em sua disputa com Ésquilo, o de ter ensinado o povo a ‘examinar, deliberar e concluir’”. Cf. CAVALCANTI, Anna Hartmann. op. cit., p. 262. Cavalcanti ainda esclarece: “Tanto na construção de seus personagens quanto na elaboração do diálogo o poeta parece retirar da arte sua dimensão simbólica e ideal, substituindo o simbolismo das palavras pela linguagem ‘pública’. Nietzsche se refere não apenas aos personagens criados por Eurípedes, mas ao próprio processo de criação. Eurípides cria suas figuras ao mesmo tempo que as decompõe (zerlegen), de modo que nada mais nelas fica oculto [...]. É como se, paralelamente às transformações da arte, se desenvolvesse uma radical mudança no interior da sociedade, o processo que Nietzsche denominou de fenômeno socrático”. Cf. CAVALCANTI, Anna Hartmann. op. cit., p. 263. 11 Sobre essa perspectiva, Janaway afirma que, em “[...] seu empreendimento de convencer o leitor da primazia do argumento racional [Platão] não se baseia somente no uso do argumento racional. Para suplantar a tragédia e Homero, ele se serve da retórica, do mito, do jogo de palavras, da metáfora poética e da caracterização dramática [...]. Se Platão é ‘de todos os filósofos o mais poético’ (Sidney, 1973, p. 107), ele o é na ação de nos conduzir, por9 meio da persuasão da poesia, à filosofia, um lugar onde podemos começar a compreender e a avaliar a poesia e todas as artes”. Cf. JANAWAY, Christopher. op. cit., p. 362. SIDNEY, Sir Philip. A defense of poetry. In: DUNCAN-JONES, K.; DORSTEN, J. van (Org.). Miscellaneous prose of Sir Philip Sidney. Oxford: Clarendon Press, 1973. pp. 73-121.
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Para Nietzsche, os diálogos platônicos representam o protótipo do romance, uma nova
forma de arte, na qual o poeta trágico encontra-se subordinado ao homem teórico e “[...] a poesia
vive com a filosofia dialética em uma relação hierárquica semelhante à que essa mesma filosofia
manteve, durante muitos séculos, com a teologia, isto é, como ancilla [escrava, criada]” (GT/NT, 14,
p. 86).
Com o predomínio da estética socrática, “[...] o pensamento filosófico sobrepassa a arte
e a constrange a agarrar-se estreitamente ao tronco da dialética” (GT/NT, 14, p. 86), extinguindo o
modo de existência trágica dos gregos, justificada como fenômeno estético (GT/NT, “Tentativa de
autocrítica”, 5, p. 16), enquanto projeto de uma vida pautada em valores racionalistas, metafísicos e
morais, incapazes de expressar a tragicidade inerente à própria vida.
2.2 Sócrates, o tipo decadente
Em O crepúsculo dos ídolos, Nietzsche efetua uma crítica à filosofia socrática-platônica e
ao que considera ser o sintoma de uma inversão dos valores próprios da cultura helênica, baseados
na afirmação da vida e dos instintos humanos. A inversão destes valores, segundo o filósofo alemão,
culminaria em uma decadência dos impulsos helênicos. O tipo característico desta decadência seria
Sócrates, ao propor como remédio à decadência uma supervalorização da racionalidade em
detrimento dos valores de afirmação da vida.
No capítulo nove de “O problema de Sócrates”, Nietzsche afirma a que a deterioração
dos instintos já estava ocorrendo em Atenas e que, diante disto, a cidade caminhava para o fim. É
dessa maneira que Sócrates intervém como última esperança de reconstrução dos gregos,
apresentando sua dialética como remédio para a décadence:
A mesma espécie de degenerescência já se preparava silenciosamente em toda parte: a velha Atenas caminhava para o fim. — E Sócrates entendeu que o mundo inteiro dele necessitava — de seu remédio, seu tratamento, seu artifício pessoal de autopreservação.... Em toda parte os instintos estavam em anarquia; em toda parte se estava a poucos passos do excesso: o monstrum in animo era o perigo geral. “Os instintos querem fazer o papel de tirano; deve-se inventar um contratirano que seja mais forte” (GD/CI, “O problema de Sócrates”, 9, p. 17).
O contratirano, além de inventado, se consolidou entre os atenienses, propondo-lhes
um novo meio de tornar suas existências suportáveis. O significado dessa virada dialética é a
construção do homem teórico, profundamente convicto de que a razão é o instrumento necessário
para que os indivíduos ascendam e alcancem a verdade, em contraposição ao homem lúdico,
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Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274 595
afirmador de sua existência. Trata-se de uma “ilusão metafísica” que se perpetuará na atividade
filosófica de grande parte da história da filosofia ocidental.
Assim, o remédio socrático para decadência surge entre os helenos como um propulsor
da própria decadência, enquanto instrumento de degeneração dos instintos e do caráter
contingencial da vida. Ao eleger a dialética como antídoto necessário para regeneração da
decadência, o filósofo grego faz da razão um tirano, elegendo-a como o elemento redentor do
mundo helênico.12 Para Nietzsche, no entanto, Sócrates não foi só fruto desta decadência, mas
também o mais decadente dos gregos, além da figura paradigmática mais sofisticada do sintoma
de decadência:
— Seu caso era, no fundo, apenas o caso extremo, o que mais saltava aos olhos, daquilo que então começava a se tornar miséria geral: que ninguém mais era senhor de si, que os instintos se voltavam uns contra os outros. Ele fascinou por ser esse caso extremo — sua amedrontadora feiura o distinguia para todos os olhos; ele fascinou ainda mais intensamente, está claro, como resposta, como solução, como aparência de cura para esse caso (GD/CI, “O problema de Sócrates”, 9, p. 17).
A superabundância lógica empregada pelo filósofo grego culminara no esgotar-se do
caráter instintivo e inconsciente da existência trágica. Para Nietzsche, a dialética ou “remédio”
socrático foi um mero paliativo aos valores até então caracterizados como nobres, pois longe de
fornecer uma cura para a “doença ateniense”, tal método, contrariamente, apenas fomentou a
decadência:
Sócrates foi um mal-entendido: toda a moral do aperfeiçoamento, também a cristã, foi um mal-entendido... A mais crua luz do dia, a racionalidade a todo custo, a vida clara, fria, cautelosa, consciente, sem instinto, em resistência aos instintos, foi ela mesma apenas uma doença, uma outra doença — e de modo algum um caminho de volta à “virtude”, à “saúde”, à felicidade... Ter de combater os instintos — eis a fórmula da décadence: enquanto a vida ascende, felicidade é igual a instinto (GD/CI, “O problema de Sócrates”, 11, p. 18).
Sócrates, deste modo, não foi apenas o mais decadente dos gregos, mas também aquele
que conduziu o povo ateniense para a solidificação da decadência, enquanto negação dos instintos.
O remédio apresentado pelo filósofo revelou-se como uma doença ainda mais grave, pois fez com
que os sábios tivessem a pretensão de colocarem-se acima da vida, para julgá-la, sustentando-se na
máxima: [a vida] “ela não vale nada”. Para Nietzsche, contrariamente, a vida possui um valor
máximo, na qual nenhum ideal transcendental pode apreendê-la. Em suma, ela basta a si mesma.
12 “A racionalidade foi então percebida como salvadora, nem Sócrates nem seus ‘doentes’ estavam livres para serem ou não racionais — isso era de rigueur [obrigatório], era seu último recurso”. Cf. GD/CI, “O problema de Sócrates”, 10, p. 18.
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Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274 596
Sócrates, assim, transformou sua doença em uma regra moral para a vida de muitos
filósofos posteriores, que imitaram seu modo de existência. Logo, o filósofo grego não foi o único
decadente, pois, tal como ele, todos aquelas considerados os “mais sábios de todos os tempos”
negaram a vida e, por conseguinte, todos eles foram decadentes, mas tornou-se o ponto de partida
de toda filosofia decadente, enquanto modelo paradigmático a ser seguido pelos grandes sábios,
pelos transmissores da filosofia metafísico-racionalista ou, mais precisamente, da doença
metafísica.
3 A arte em Nietzsche
Em O nascimento da tragédia, Nietzsche afirma que, “[...] a existência do mundo só se
justifica como fenômeno estético” (GT/NT, “Tentativa de autocrítica”, 5, p. 16), pois, para o filósofo
alemão, a própria vida é um fenômeno estético, para a qual se direciona a arte, enquanto
legitimadora da existência. Arte e vida, portanto, encontram-se fundamentalmente atreladas: “A
arte a favor da vida – eis a chave do pensamento de Nietzsche” (DIAS, 2015, p. 232).
É nessa perspectiva que a arte trágica é constituída pelo filósofo, ao longo da obra, como
um elemento primordial para a sociedade grega, enquanto afirmadora da vida ou, ainda,
transfiguradora da existência, capaz de superar a décadence (MACHADO, 1984, p. 50). Nos
Fragmentos póstumos de 1888, encontramos um aforismo no qual Nietzsche escreve:
A arte e nada mais que a arte! Ela é a grande possibilitadora da vida, a grande aliciadora da vida, o grande estimulante da vida. A arte como a única força superior contraposta a toda vontade de negação da vida, como o anticristão, antibudista, antiniilista par excellence. A arte como a redenção do que conhece – daquele que vê o caráter terrível e problemático da existência, que quer vê-lo, do conhecedor trágico. A arte como a redenção do que age – daquele que não somente vê o caráter terrível e problemático da existência, mas o vive, quer vivê-lo, do guerreiro, do herói. A arte como a redenção do que sofre – como via de acesso a estados onde o sofrimento é querido, transfigurado, divinizado, onde o sofrimento é uma forma de grande delícia (NF/FP, “A arte em ‘O nascimento da tragédia’”, 1888, 17 (3), II, p. 28).
Intensificadora e divinizadora da existência, a arte representa um estímulo contrário a
todo tipo de negação da vontade, de deterioração dos instintos, de pessimismo e de décadence, que
nos impulsiona a viver e enfrentar o sofrimento. Em “Nietzsche e a ‘fisiologia da arte’”, Rosa Dias
saliente:
[...] o essencial da arte é que ela conclui a existência, é geradora de perfeição e plenitude [...] Enquanto força contrária a toda forma de negar a vida, a arte é a base de novos valores. Opõe-se a todas as formas de decadência, constitui-se, por excelência, o movimento contrário ao niilismo religioso, filosófico, moral (DIAS, 2006, p. 197).
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A arte é, sobretudo, um “dizer sim” à vida, oriundo de uma forte disposição fisiológica
humana para o enfrentamento e a superação. Nesse sentido, ela coaduna com a noção nietzscheana
de amor fati, cuja aceitação do destino não possui um caráter meramente resignado perante os
fatos, mas constitui-se como um “sim” transformador da realidade.
Ela emerge, ainda, como alternativa criadora à ciência e ao instinto de conhecimento.
Entendida como luta ou embate de forças, a arte é capaz de envolver o conhecimento com a
dimensão afirmadora do trágico, na medida em que promove a valorização da aparência da ilusão,
que abrange o aspecto mais embativo e contingente da vida humana. Ao limitar o instinto de
conhecimento (MACHADO, 1984), a arte impõe o valor da ilusão como um valor tão importante
quanto a verdade, neutralizando-o e sobrepondo-se ao valor do conhecimento. Na terceira
dissertação da Genealogia da moral, a arte é contraposta ao platonismo e ao ideal ascético:
“[...] a arte, na qual precisamente a mentira se santifica, a vontade de ilusão tem a boa consciência a seu favor, opõe-se bem mais radicalmente do que a ciência ao ideal ascético: assim percebeu o instinto de Platão, esse grande inimigo da arte, o maior que a Europa jamais produziu. Platão contra Homero: eis o verdadeiro, o inteiro antagonismo – ali, o mais voluntarioso ‘partidário do além’, o grande caluniador da vida; aqui, o involuntário divinizador da vida, a natureza áurea” (GM, III, 25, p. 141).
Para Nietzsche, enquanto a arte homérica representa os valores não-ascéticos,
instintivos, criativos, espontâneos e afirmativos da vida, o racionalismo socrático-platônico surge
como paradigma de ascetismo, ressentimento, décadence, fraqueza, morbidade e empobrecimento
da vida. Um artista autêntico, na perspectiva nietzscheana, não pode estar associado a ideais
ascéticos, metafísicos, racionalistas e pessimistas, pois a arte é não é somente um dispositivo
limitador da vontade de verdade, mas é fundamentalmente anti-ascetista, anti-racionalista e anti-
platônica.
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Sócrates e Nietzsche: arte, verdade e décadence, pp. 585-598
Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274 598
DIAS, Rosa Maria. Arte e vida no pensamento de Nietzsche. Cad. Nietzsche, São Paulo, v. 36 n. 1, p. 227-244, 2015.
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A formação da unilateralidade politico-moral da pequena política do ocidente em Nietzsche, pp. 599-612
Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274 599
A FORMAÇÃO DA UNILATERALIDADE
POLITICO-MORAL DA PEQUENA POLÍTICA DO
OCIDENTE EM NIETZSCHE
Cristiane Maria Marinho1
RESUMO: No presente artigo buscaremos explicitar a formação da unilateralidade político-moral da Pequena Política do Ocidente em Nietzsche. Para tanto, inicialmente, será explicitada a importância da temática nietzschiana da Pequena Política. Em um segundo momento, será apresentada a Pequena Política no âmbito agonístico com a Grande Política, mostrando o fracasso da modernidade e sua decadência, bem como a possibilidade de sua superação pela Grande Política, via esgotamento da Pequena Política e pela transvaloração de todos os valores. Em um terceiro movimento, será tematizada a construção da unilateralidade político-moral da Pequena Política e sua recusa à diferença, relação entre decadence e niilismo, tendo por base a análise nietzschiana da cultura judaica, do instinto judeu e do movimento cristão. No item final será apresentada a transformação dessa unilateralidade político-moral da Pequena Política: as novas ideias iluministas substitutas do Deus morto; o pseudo humanismo igualitário da democracia moderna de melhoramento da natureza humana; e, por fim, a ideia do niilismo perfeito na figura do budismo de ação, como Nietzsche chama o anarquismo russo, que traz uma força destruidora capaz de abalar aquela unilateralidade e promover uma mudança de perspectiva política que seja afirmativa da vida.
1 Graduada em Filosofia (FAFIFOR), especialista em Economia Política (UECE), mestre em Filosofia (UFPB/UFMG), doutora em Educação (UFC), pós-doutora em Filosofia da Educação (UNICAMP), doutoranda em Filosofia (UFG), professora de Filosofia do Mestrado Acadêmico em Serviço Social (MASS-UECE). E-mail: [email protected]
A formação da unilateralidade politico-moral da pequena política do ocidente em Nietzsche, pp. 599-612
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PALAVRAS-CHAVE: Nietzsche; Pequena Política; Grande Política; Ocidente. THE MORAL-POLITICAL UNILATERALITY FORMATION OF THE WESTERN SMALL POLITICS IN NIETZSCHE
ABSTRACT: In this work we will try to specify the moral- political unilaterality formation of the Western Small Politics in Nietzsche. For this purpose, firstly the importance of the Nietzchean theme in Small Politics will be specified. In a second moment it will be shown the Small Politics in the agonistic context together with the Small Politics to show the failure and decline of Modernity as well as the possibility of its overcoming by the Big Politics through exhaustion of the Small Politics and transvaluation of all values. In a third moment it will be themed the moral-political one-sidedness of the Small Politics, the new enlightened ideas and their refusal to difference, the relationship between decadence and nihilism based on the Nietzchean analysis of the Jewish culture, the Jewish instinct and the Christian movement. In the final section it will be shown the transformation of the moral-political one-sidedness of the Small Politics: the dead God new ubstitute enlightened ideas; the pseudo-igualitarian humanism of modern democracy for the betterment of human nature; and, finally, the idea of the perfect nihilism in the image of the Buddhism of action, as called by Nietzche the Russian Anarchism, which brings a destructive force capable of shaking up that one-sidedness and promoting change in the political perspective so that it may be affirmative to life. KEYWORDS: Nietzche; Small Politics; Big Politics; West.
Introdução
A finalidade do presente texto2 é apresentar a noção de Pequena Política presente na
primeira parte – “Pequena Política” e Unilateralidade Político-moral – do livro A grande política
em Nietzsche, de autoria de Jorge Luiz Viesenteiner, que trouxe a discussão em torno de um tema
polêmico, controverso e pouco pesquisado no Brasil, numa época em que, já há mais de dez anos, a
discussão acadêmica sobre o tema da Grande Política em Nietzsche era incipiente e relativamente
desenvolvida no nosso país.
Afirmamos ser essa discussão relativamente pouco desenvolvida no nosso país porque,
conforme Marton (2010), desde a entrada do pensamento nietzschiano por estas terras tivemos
quatro focos de discussão em torno do pensamento de Nietzsche: 1) no início do século XX,
provavelmente vindo com os anarquistas espanhóis, predominou a face contestadora do seu
pensamento no âmbito da literatura; 2) por volta das décadas de 30 e 40 do século XX, o pensamento
2 Este artigo é fruto da Disciplina A pequena e a grande política em Nietzsche ministrada pela Profa. Dra. Adriana Delbó, minha orientadora, no doutorado do Programa de Pós-Graduação em Filosofia (PPGFil) da Universidade Federal de Goiânia (UFG).
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nietzschiano foi apropriado como sendo de direita e aparecia em revistas fascistas; 3) já no final dos
anos 1960, na esteira da apropriação de seu pensamento pela extrema-esquerda francesa, por aqui
era discutido como um filósofo iconoclasta que oferecia ferramentas para se pensar a realidade, mas
não se fazia um estudo rigoroso acadêmico de seus textos; 4) por fim, na década de 1980, talvez por
influência do marxismo que crescia na academia em função da resistência à ditadura militar, o
pensamento de Nietzsche era mal visto:
[...] passaram a alertar contra os perigos do contágio Nietzsche. Afirmaram que ele era um filósofo menor, cuja obra não teria interesse algum para os brasileiros; sustentaram que seus textos nada trariam de novo para nós, pois não dariam resposta para nossas questões; chegaram a declarar que aqui seus escritos poderiam mostrar-se nefastos como já tinham se mostrado na Europa (MARTON, 2010, p. 24).
Contudo, de forma mais ampla, é possível afirmar que a discussão sobre a política em
Nietzsche, mesmo sendo incipiente e pouca estudada nos inícios do ano 2000, já era indicada em
alguns trabalhos produzidos na primeira década desse período: livros, dissertações, teses e grupos
de estudo. Esse fato mereceria um levantamento documental, dado a certa crença acadêmica de
que Nietzsche é um “pensador que defende o valor da autorealização individual contra as estruturas
políticas” (ANSELL-PEARSON, 1997, p. 24).
É possível, também, apontar mais dois motivos para compreender a importância da
abordagem do pensamento político nietzschiano. Em primeiro lugar, vem o fato dele ter sofrido
uma enorme distorção por uma suposta defesa de totalitarismo, despotismo, belicismo e racismo,
ao ponto de ser considerado um filósofo que teria fundamentado o nazismo alemão (Cf.
BARRENECHEA, 2008). Em segundo lugar, porque a abordagem que ele faz da política foge ao
tradicional tratamento dado à política, seja em sua versão liberal, seja em sua versão socialista.
Assim, para Nietzsche, o Estado é compreendido como resultado de ímpetos humanos, tais como
domínio, exploração, controle e violência, servindo como instrumento para sublimá-los, “ao invés
de ser explicado como resultado da racionalidade a fim de proteção da vida” (LOPES, 2009, p. 1).
O livro que apresentamos aqui traz uma discussão sobre a Pequena Política e a Grande
Política no pensamento de Nietzsche, atravessa diversos textos de sua obra e tece um fio condutor
com essas diversas passagens, visto que essa discussão não se encontra sistematizada na obra
nietzschiana.
Assim sendo, o objetivo da obra A grande política em Nietzsche é mostrar como se articula,
no pensamento de Nietzsche, o fracasso da modernidade e sua decadência, mas também a
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possibilidade de sua superação. Por intermédio de algumas hipóteses, o autor apresenta a Grande
Política como um momento político, moral e cultural dessa superação e que pode advir pelo
esgotamento da Pequena Política, momento este que se caracteriza pela homogeneidade dos
homens e pela exclusão do diferente, do conflito e pela política como mera busca de auto
conservação. Contudo, como mencionado acima, no presente artigo, vamos fazer a exposição da
primeira parte do livro, que é a referente à pequena política. No final da exposição, o presente artigo
também comtempla uma breve reflexão sobre a democracia como expressão máxima da pequena
política no pensamento nietzschiano. Para tanto, lançaremos mão de alguns aforismos de Nietzsche
para respaldar essa afirmação.
Pequena Política versus Grande Política
Para melhor situarmos a reflexão que Viesenteiner desenvolve na primeira parte do livro,
objeto da nossa exposição, é importante apresentar sua estrutura geral, a qual tem por objetivo
central apresentar três hipóteses hermenêuticas de interpretação da Grande Política no pensamento
de Nietzsche, bem como localizar essa noção filosófica em sua obra. O autor aborda a Grande
Política no âmbito mais geral da crítica político-moral efetuada por Nietzsche ao processo
civilizatório do Ocidente e, mais especificamente, no âmbito de sua crítica à política-cultural.
Apesar de Viesenteiner vasculhar boa parte da obra nietzschiana, garimpando a presença da
ideia da Grande Política, somente encontrará esta noção, elaborada de maneira mais intensa, no
último período da produção filosófica de Nietzsche, do último trimestre de 1888 até janeiro de 1889.
Nesse período, afirma o autor, o estudo do tema da Grande Política deve muito ao “minucioso
trabalho histórico-filológico dos organizadores das obras completas de Nietzsche, Giorgio Colli e
Mazzino Montinari” (VIESENTEINER, 2006, p. 15).
O autor ainda adverte que o tema da Grande Política deve, genérica e rigorosamente, ser
entendido no sentido de um contradiscurso. Fazendo parte do projeto nietzschiano de elaboração
de uma genealogia da cultura ocidental, a Grande Política se contrapõe à “pequena política”,
característica da modernidade político-moral, que apequena e homogeneíza o homem por
intermédio da democracia moderna, a qual estabelece uma igualdade política despotencializadora
das singularidades e da vida, tendo por suporte uma moral de rebanho inspirada no cristianismo
como é possível depreender do aforismo 201 do livro Além do bem e do mal:
Quando os impulsos mais elevados mais elevados e mais fortes, irrompendo passionalmente, arrastam o indivíduo muito acima e além da mediania e da planura da
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consciência de rebanho, o amor-próprio da comunidade se acaba, sua fé em si mesma, como que sua espinha dorsal, é quebrada: portanto, justamente esses impulsos serão estigmatizados e caluniados. A espiritualidade superior e independente, a vontade de estar só e mesmo a grande razão serão percebidas como perigo: tudo o que ergue o indivíduo acima do rebanho e infunde temor ao próximo é doravante apelidado de mau; a mentalidade modesta, equânime, submissa, igualitária, a mediocridade dos desejos obtêm fama e honra morais. Finalmente, em condições muito pacíficas há cada vez menos ocasião e necessidade de educar sentimento para o rigor e a dureza; e então todo rigor, até mesmo na justiça, começa a perturbar a consciência; uma dura e elevada nobreza e responsabilidade consigo chegam quase a ofender e despertam desconfiança, “o cordeiro”, mais ainda, “a ovelha”, cresce na consideração (NIETZSCHE, 1992, p. 100).
A Grande Política também integra o projeto nietzschiano de transvaloração de todos os
valores. Por isso, também tem a “tarefa de preparar as condições que, doravante, deverão ser
convertidas no estabelecimento dos novos para quê” (VIESENTEINER, 2006, p. 16). Além do
atravessamento do tema da Grande Política com a transvaloração de todos os valores e com a
genealogia, ele também cruza, necessariamente, com outros temas fundamentais do pensamento
nietzschiano, tais como niilismo e além-do-homem.
A obra se estrutura e se desenvolve sobre e a partir do que o autor chama de hipóteses
hermenêuticas e que, em um primeiro momento, assim as denomina pelo “fato de o tema se
encontrar de maneira esparsa ao longo dos escritos de Nietzsche, sendo necessária, pois, uma
leitura do conjunto das obras do filósofo a fim de expressar tais possibilidades hermenêuticas”
(VIESENTEINER, 2006, p. 17).
A exposição dessas hipóteses hermenêuticas se desenvolve em três partes. A primeira parte
se intitula “Pequena Política” e Unilateralidade Político-moral, na qual é apresentada a
construção dessa unilateralidade político-moral do Ocidente cristão e sua possibilidade de
transformação. A hipótese hermenêutica apresentada trata da unilateralidade político-moral do
Ocidente da Pequena Política a quem a Grande Política se contrapõe como contradiscurso.
A segunda parte, que tem por título A Grande Política como Superação da Modernidade
Político-Moral e a Indicação de sua Grande tarefa, traz uma discussão indicativa das relações
simultâneas da Grande Política com o passado e o futuro, bem como apresenta a Grande Política
relacionada com o projeto de Transvaloração de todos os valores. A hipótese hermenêutica que
norteia essa segunda parte tem por base uma interpretação dialética da filosofia de Nietzsche que,
por sua vez, pensa a Grande Política tendo como suporte algumas das principais noções do
pensamento nietzschiano, tais como niilismo, além-do-homem e transvaloração Ressalte-se que
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não se trata aqui da dialética hegeliana do aufhebung, mas sim da dialética no sentido grego do agon,
de embates que nunca terminam e sem um telus ultimo.
Por fim, a terceira parte, intitulada A Grande Política e a Noção de Pluralidade Conflitual
Entre Perspectivas, é elaborada a partir da caracterização da Grande Política e sua relação com o
perspectivismo. A hipótese hermenêutica sustentada aí fala sobre “a unidade cultural – como uma
espécie de governo da Terra – reivindicada pela Grande Política, bem como a pluralidade antagônica
e agonística que esta unidade encerra em si” (VIESENTEINER, 2006, p. 17). Ou seja, a unidade
cultural na Grande política se refere à unidade da pluralidade de resistências, perspectivas e
experimentações que poderão ser criadas por uma filosofia experimental e seus filósofos
legisladores que ultrapassem o nivelamento espiritual e o egoísmo nacionalista próprios da pequena
política.
A unilateralidade político-moral da Pequena Política: construção
Nesta primeira parte do livro, Viesenteiner, seguindo os passos de Nietzsche e lançando mão
da primeira hipótese hermenêutica, apresenta a Grande Política como um contra movimento que
se opõe como resistência à unilateralidade político-moral do Ocidente que caracteriza a Pequena
Política, a qual se efetivou plenamente na modernidade política, sua máxima expressão. Nesse
sentido, é preciso compreender que o problema central da unilateralidade político-moral da
Pequena Política é a recusa à diferença e o exercício da generalização, uma dinâmica niilista que
estabelece a igualdade entre todos e busca a sobrevivência se impondo como perspectiva
dominante,
graças a uma estratégia de isolamento, negação e extermínio de perspectivas diferentes e também possíveis (diferenças políticas, raciais, éticas, religiosas etc.) que almeja, por um lado, a eliminação do conflito, mas por outro, só o executa, pois objetiva a auto conservação. Nivelamento e mediocrização do tipo homem – características emblemáticas na hipótese hermenêutica da unilateralidade político-moral – são, portanto, os elementos aos quais Nietzsche reclamará, doravante, a compulsão à Grande Política (VIESENTEINER, 2006, p. 24).
Assim, de forma mais ampla, é possível afirmar que a construção da unilateralidade político-
moral no Ocidente deve muito à recusa da diferença, recusa esta apoiada em uma “dinâmica que
tem por estratégia a inversão ou negação de uma outra perspectiva com o objetivo final de auto
conservação” (VIESENTEINER, 2006, p. 27). Essa unilateralidade se explica por três elementos: pela
relação entre décadence e niilismo, pela análise nietzschiana da cultura judaica e do instinto judeu e
pelo movimento cristão.
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No que diz respeito ao primeiro elemento, a relação entre décadence e niilismo, é possível
afirmar que Nietzsche toma o termo décadence à Psicologia da sua época, compreendido então
como “desagregação dos instintos”, e o associa à filosofia e à moralização do homem moderno,
iniciada com Sócrates, Platão e o Cristianismo. Este último sendo compreendido como proposta
moral hegemônica do Ocidente.
Já na relação entre décadence e niilismo propriamente dita, explicitada pelo autor em
diversas passagens da obra nietzschiana e, também, da de vários comentadores, é suficiente
salientar a ideia aí predominante e que oferece a justificativa da relação entre unilateralidade,
niilismo e decadência: qual seja, em uma tendência hegemônica, a vontade do nada, o niilismo, é a
lógica da décadence que, por sua vez, traz uma dinâmica niilista que é negação e extermínio da
alteridade e também negação da potência de vida.
Contudo, inversamente do que se poderia pensar, “Nietzsche não repele este processo
decadencial, mas antes, acolhe-o inferindo que ele está entre aquelas coisas mais desejáveis que
pudessem existir” (VIESENTEINER, 2006, p. 29), pois a décadence deve ser analisada também
positivamente, porque pode ser um meio para o engrandecimento e não, simplesmente, uma
finalidade em si, de culto à decadência. Dessa forma, é possível pensar o movimento da decadência
como uma potência, desencadeando uma crise de valores que, se cultivada, poderia suscitar uma
transvaloração dos valores.
Já no segundo elemento a explicar a construção da hipótese da unilateralidade político-moral
no Ocidente, ou seja, a análise nietzschiana da cultura judaica e do instinto judeu, a relação do
jüdischer instinkt e a dynamis do niilismo, é importante ressaltar que os judeus tiveram papel
fundamental nessa unilateralidade político-moral, bem como no triunfo da negatividade na
décadence.
Negatividade e décadence, no âmbito judeu, surgem e se fortalecem, segundo Nietzsche,
com a dissolução do povo judeu como Estado. Viesenteiner relembra que o estado judeu, em suas
origens fortemente moral e politicamente estruturado, devido à relação do seu povo com a
divindade, acaba por degenerar: seja em função da generalização dos seus cultos e a consequente
anarquia interna, seja em função da invasão assíria. Contudo, apesar das ameaças externas e do
sentimento de perda da unidade nacional, o povo judeu decidiu continuar a sobreviver como nação.
A estratégia utilizada para tanto foi isolamento e oposição, “[...] negar intransigentemente o que é
diferente de judeu ou exterminar toda perspectiva diferente da judia a fim de sobreviver, é o que
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Nietzsche entende por jüdischer instinkt, cuja dinâmica [...] é igualmente negação” (VIESENTEINER,
2006, p. 36). Ou seja, da dissolução do povo judeu como Estado resultou os instintos de decadência
e, também, uma forma de proclamar sua própria hegemonia judaica e sua unilateralidade político-
moral.
O terceiro elemento a entrar na formação da unilateralidade político-moral do Ocidente, e
que, também, compõe a primeira hipótese do autor, se refere ao movimento cristão - a relação do
jüdischer instinkt (cristão) e a dynamis do niilismo - que, por sua vez, está diretamente ligado ao
instinto judaico: “se o jüdischer instinkt contribui de maneira relevante na construção da
unilateralidade, seu estabelecimento será operado pelo cristianismo entendido como proposta
moral hegemônica para o Ocidente” (VIESENTEINER, 2006, p. 38). O Cristianismo deve ser
compreendido a partir do Judaísmo do qual nasceu, e sua hegemonia no Ocidente nada mais é que
a absolutização dos valores do judaísmo se impondo como perspectiva única e com sua dinâmica
niilista de extermínio, dinâmica esta “que se configura como negação e extermínio da alteridade”
(Idem, p. 29).
Tudo isso significou a concretização da unilateralidade político-moral no Ocidente e a
caracterização da modernidade niilista, no sentido acima indicado de negação do diferente, em
todos os campos (político, moral, cultural, econômico etc.). A negação do mundo (imanência, corpo,
instinto) levada a cabo pelo cristianismo, bem como o extermínio da diferença e de outras
perspectivas em busca da sua hegemonia e da sua autoconservação fez com que a moral cristã se
tornasse hegemônica e o Cristianismo conseguisse “sua mundanização no interior dos movimentos
sócio-políticos, economia, artes e até mesmo nas ciências naturais” (VIESENTEINER, 2006, p. 42).
Para o autor, “a ascensão da interpretação cristã ao plano hegemônico significa, finalmente, a
efetivação concomitante da hipótese levantada sobre aquilo que Nietzsche denominou de pequena
política” (Idem).
A unilateralidade político-moral da Pequena Política: transformação
Seguindo ainda a primeira parte, o seu segundo item trata das transformações que a
unilateralidade político-moral sofre no Ocidente, do processo de efetivação da pequena política e
da dinâmica niilista, concernente a essas transformações, e que alimenta aquela unilateralidade. Ou
seja, continua a análise da crítica nietzschiana à modernidade política homogeneizante. À ideia do
instinto judeu predominando nos rumos da unilateralidade politico-moral do Ocidente, vem se
agregar a morte de Deus, a qual inaugura novas configurações do niilismo, permanecendo seu
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caráter de exclusão dos diferentes. Nesse momento, a unilateralidade politico-moral, característica
da pequena política, se efetivará nas ideias modernas de liberdade, igualdade, fraternidade, direitos
iguais, democracia, socialismo, anarquismo etc., nos diz o autor apoiado em textos nietzschianos.
Viesenteiner explora três tópicos nesse item. O primeiro tópico trata sobre o niilismo
europeu e a mudança na sua expressão, no qual investiga novas expressões do niilismo, dentre eles
o niilismo imperfeito. A questão é que a Modernidade (neue Zeit) não rompe de fato com a tradição
cristã, pois a unilateralidade político-moral continua sendo alimentada pela dynamis niilista e pelo
jüdischer instinkt. Em nome das novas ideias iluministas, só aparentemente a tradição cristã é
negada, mas, na verdade, o que existe é o esforço de manter vivo a sombra de um deus morto na
sua aparente substituição por um novo ideal recém-criado pela tradição cristã, as novas expressões
do niilismo.
Foi a morte de Deus, para Nietzsche ‘o maior dos acontecimentos recentes’, que engendrou
novas formas de niilismo no Ocidente e, também, possibilitou a interpretação da história ocidental
como decadência, bem como a análise crítica do presente. Num fragmento do outono de 1887,
Nietzsche fará a diferenciação entre o que denomina de ‘niilismo perfeito’ e ‘niilismo imperfeito’:
“Questão principal. Em que medida o niilismo perfeito é a consequência necessária dos ideais de até
então. O niilismo imperfeito, suas formas: nós vivemos inseridos neste contexto. A tentativa de evitar
o niilismo sem, no entanto, transvalorar os valores, acaba por trazer à tona uma lógica contrária:
intensifica o problema” (NIETZSCHE apud VIESENTEINER, 2006, p. 53). Ao que assim argumenta
Viesenteiner (2006, p. 53).
O niilismo imperfeito é entendido como a tentativa obstinada da modernidade de preencher o lugar outrora ocupado pelo Deus cristão. Numa tentativa de auto fundamentação – primeiro sintoma do desdobramento do processo de décadence que culmina na morte de Deus – os novos tempos acabam erigindo um novo ideal para ocupar o mesmo trono dantes divino. Neste sentido, progresso, democracia, socialismo, moral, ciência – todos centrados numa espécie de culto divino à Razão e otimismo santificado na capacidade humana – configurar-se-iam nos ideais laicizados candidatos à ocupação do trono celestial; enfim, é o homem moderno, o ‘último homem’ que se descobre, piscando os olhos, inventor da felicidade. É neste sentido que o niilismo imperfeito procura superar o niilismo sem, contudo, transvalorar os valores.
Os novos tempos buscam substituir a autoridade do Deus morto por outras autoridades
mundanas, mas só conseguem prolongar a dinâmica niilista, compreendida como a desvalorização
dos valores supremos (cf. VIESENTEINER, 2006, p. 66), modernização do instinto judeu e exclusão
do diferente, renovando dessa forma a unilateralidade político-moral do Ocidente presente na
Pequena Política. O prolongamento dessa dinâmica niilista acontece porque ela permanece nas
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ideias e nos acontecimentos dos tempos modernos, mormente na democracia representativa,
trazendo a mesma dinâmica de negação e exclusão do diferente, contradizendo, portanto, os
próprios ideais da Modernidade e do Esclarecimento.
O segundo tópico aborda as “ideias modernas” como expressão das transformações da
unilateralidade e dístico da pequena política, no qual se encontra a análise das ideias modernas
como expressões das transformações da unilateralidade. O autor esclarece que Nietzsche, ao fazer
a crítica das ideias modernas, não pretende destruí-las, mas sim fazer uma genealogia da cultura
ocidental via o perspectivismo, visando desarticular essas ideias modernas e desnudar sua pretensão
à absolutização. O filósofo faz outra denúncia importante acerca das ideias modernas: a de que elas
trariam um suposto programa de melhoramento da natureza do homem, mas que na verdade
desembocariam num pseudo-humanismo igualitário.
Essas novas ideias modernas, – democracia, fraternidade, socialismo, anarquismo etc. –, que
se constituem como novos ídolos, trazem, perigosamente, a absolutização de uma moral (judaico-
cristã), a incitação ao pertencimento ao rebanho, a eliminação de conflitos entre perspectivas, a
criação de um homem fraco e inofensivo e a imposição da ideia da existência de um único tipo de
felicidade. Como corolário, “tais doutrinas sociais da felicidade desembocam, inevitavelmente, em
forte repressão, isto é, excluindo estrategicamente a partir da negação de tudo aquilo que não seja
igual a elas” (VIESENTEINER, 2006, p. 60).
Dentre essas ideias modernas, o autor prioriza a abordagem crítica nietzschiana sobre a
democracia, já que ela é a mais expressiva da modernidade. Dentre outros elementos importantes,
merecem destaque os seguintes: a democracia é a expressão laicizada do Cristianismo e, como sua
principal expressão moderna, adentrou em todas as esferas da cultura ocidental, constituindo um
‘projeto civilizatório’; o movimento democrático realiza fortemente a dinâmica niilista de
isolamento, negação e extermínio das diferenças por intermédio da igualdade, seu princípio basilar;
a democracia é a forma mais acabada do niilismo imperfeito, pois não rompe com a tradição cristã
e nem com a dinâmica de exclusão judaica; a suposta igualdade política da democracia equivale à
“igualdade das almas diante de Deus”; a democracia, como mundanização cristã, prolonga a
unilateralidade ocidental (no sentido de extermínio de conflitos em nome da igualdade); e, por fim,
a decadência igualitária democrática faz parte da Pequena Política (Cf. VIESENTEINER, 2006, p. 61).
O terceiro tópico consiste em uma discussão sobre o niilismo entendido como budismo da
ação e a nova transformação da unilateralidade: o coroamento da perspectiva da pequena
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política, tendo como centro o anarquismo politico russo, que é um niilismo que ascende à reflexão
filosófica, se vivencia como estado psicológico, toma consciência do vazio deixado pela morte de
Deus e do fato de nada ter sentido e é uma das formas mais radicais do niilismo ocidental. Dessa
forma, a unilateralidade político-moral sofre uma radical transformação na figura do budismo de
ação, que é a forma como Nietzsche chama o anarquismo russo.
O radicalismo do anarquismo russo, ou budismo de ação, consiste em um niilismo ativo
caracterizado pela híbris, a atitude de vontade de destruição da natureza, de Deus e do homem. É
essa força destruidora que pode abalar a unilateralidade político-moral, transformando a negação
cristã do mundo em práxis revolucionária. Esta atitude radical é caracterizada pela vivência do
niilismo como estado psicológico e pelo seu posicionamento extremado de não acreditar em nada,
podendo servir como ponte para que o homem se proíba de acreditar em qualquer interpretação
divina do mundo.
Se a democracia representa a forma mais acabada de niilismo imperfeito, o anarquismo
russo, o budismo de ação, representa a expressão máxima do niilismo perfeito:
A vivência do niilismo como estado psicológico não autoriza mais ao homem colocar um novo ídolo no vazio deixado pela morte de Deus, diferentemente de antes, quando o crepúsculo do Deus cristão acabava abrindo as portas para novas formas de niilismo, as quais Nietzsche denominou de niilismo imperfeito, isto é, Razão, Democracia, Progresso etc. É o momento em que o homem não mais se permite a substituição de Deus por um novo ideal, por consciência de seu novo estado, que Nietzsche chama de “niilismo perfeito”, isto é, “a consequência necessária dos ideais até então” (VIESENTEINER, 2006, p. 70).
Contudo, apesar do radicalismo do budismo de ação, ele não deixa de ser, também, somente
uma nova transformação da unilateralidade político-moral, pois na sua continuidade de niilista
segue usando a lógica de extermínio ao invés da de combate, buscando a eliminação de conflitos
entre perspectivas e prosseguindo com a dinâmica de negação (contra o Estado, a Igreja, a família
etc.). Assim, para Nietzsche, o budismo de ação “é entendido como lógica final do processo de
desdobramento do niilismo ao longo da história ocidental” (Cf. VIESENTEINER, 2006, p. 72). A
crítica nietzschiana da Pequena Política, unilateral e alimentada pelo niilismo, não permite novos
ídolos e sim novos ideais, os quais não podem ser confundidos com alguma teleologia
transcendental e nem com o propósito de substituir os antigos ídolos. Dessa forma, a modernidade
niilista só será superada quando esgotar ao máximo seus elementos constitutivos. É o que pode
acontecer a partir do engendramento da Grande Política.
A democracia moderna como Pequena Politica em Nietzsche
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Como visto acima, Nietzsche fala de dois tipos de niilismo que aqui se traduz como uma
dinâmica niilista que se caracteriza pela negação e exclusão do diferente, com sólidas raízes no
jüdischer instinkt e jüdischer instinkt (cristão), e pela contestação de valores tidos como supremos.
São eles: a) o niilismo imperfeito, que apesar de questionar a existência de Deus e do feudalismo,
acaba por substituí-los pela crença nas Luzes e na Democracia; b) o niilismo perfeito, na figura do
anarquismo russo, faz um questionamento mais radical e sem substituição e por isso fica mais
próximo da possibilidade de realizar uma transvaloração de valores.
Para Nietzsche, a democracia representa a forma mais acabada de niilismo imperfeito,
portanto, nos termos estabelecidos, mais distante de uma realização de uma transvaloração de
valores. A democracia representativa moderna é, então, o prolongamento da dinâmica niilista, na
medida em que: nega e exclui o diferente; traz a absolutização da moral judaico-cristã; incita o
pertencimento ao rebanho; propõe a eliminação de conflitos entre perspectivas; cria um homem
fraco e inofensivo; impõe a ideia da existência de um único tipo de felicidade; e, paradoxalmente,
reprime e exclui tudo o que não seja igual a elas. É o que é possível depreender em um trecho do
aforismo 472, Religião e governo, de Humano Demasiado Humano:
[...] os interesses do governo tutelar e os interesses da religião caminham de mãos dadas, de modo que, quando esta última começa a definhar, também o fundamento do Estado é abalado. A crença numa ordenação divina das coisas políticas, no mistério que seria a existência do Estado, é de procedência religiosa: se desaparecer a religião, o Estado inevitavelmente perderá seu antigo véu de Ísis e não mais despertará reverência. Observada de perto, a soberania do povo serve para afugentar também o último encanto e superstição no âmbito destes sentimentos; a democracia moderna é a forma histórica do declínio do Estado (NIETZCHE,2005, p. 230).
Na perspectiva nietzschiana, em outras palavras, é possível afirmar que a democracia é a
expressão mais forte da Pequena política que, constituindo-se como uma expressão laicizada do
Cristianismo, adentrou todas as esferas da cultura ocidental, por intermédio do seu ‘projeto
civilizatório’. A partir do seu princípio basilar que é a igualdade, paradoxalmente, o movimento
democrático exerce a dinâmica niilista de isolamento, negação e extermínio das diferenças. Da
mesma forma, a suposta igualdade democrática, ao perpetuar a tradição cristã, equivale à
“igualdade das almas diante de Deus”. Por fim, a igualdade da democracia, como mundanização
cristã, é uma decadência igualitária democrática que faz parte da Pequena Política que
homogeneíza os homens quando lhes atropela as diferenças.
Nesse sentido, há que lembrar que a essa imposição democrática da igualdade acaba por
despotencializar as singularidades, tanto no âmbito individual quanto no âmbito político. No
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primeiro, quando lhes tira a potência de vida ao lhe inibir as diferenças. No segundo, ao boicotar a
atenção política para com a cultura, e se preocupar somente com partidos, votos, Parlamento etc.
(Cf. GOICOCHEA, 2009, p 130). A propósito, há que se ressaltar que uma das distinções entre a
Pequena Política e a Grande Política consiste, precisamente, no fato da primeira se ocupar da cultura
e da valorização das diferenças singulares, enquanto a segunda se enreda nas malhas institucionais
do poder que gira em torno de si próprio. Essa é uma das questões postas no longo aforismo 208 do
Além do Bem e do Mal que no final se encontra um suspiro de otimismo: “O tempo da pequena
política chegou ao fim: já o próximo século traz a luta pelo domínio da Terra – a compulsão à grande
política” (NIETZSCHE, 1992, p. 114). Quem sabe se, tal como o filósofo, essa afirmação também não
se realize de forma póstuma!
Considerações finais
Inicialmente foi explicitada a importância da temática sobre política abordada no livro de
Viesenteiner (2006), do qual foi apresentada a primeira parte relativa à Pequena Política. Essa
importância diz respeito, basicamente, a três motivos: inovação dos estudos políticos nietzschianos
ainda pouco desenvolvidos no Brasil; distorção do pensamento político de Nietzsche e a
consequente acusação de totalitarismo; e a própria inovação que Nietzsche traz para a concepção
de Estado e política, na contramão da corrente moderna contratualista e liberal da modernidade,
questionando a democracia representativa liberal moderna.
Em seguida, a Pequena Política foi situada no âmbito agonístico com a Grande Política para
melhor entendimento de sua caracterização, buscando apresentar que o fracasso da modernidade
e sua decadência são passíveis de superação pela Grande Política, a qual pode advir pelo
esgotamento da Pequena Política e pela transvaloração de todos os valores.
Depois de explicitar a relação entre Grande Política e Pequena Política foi apresentada a
construção da unilateralidade político-moral da Pequena Política, com sua recusa à diferença e pela
marca da relação entre decadence e niilismo, tendo por base a análise nietzschiana da cultura
judaica, do instinto judeu e do movimento cristão.
Por fim, foi apresentada, em três movimentos, a transformação dessa unilateralidade
político-moral da Pequena Política: a nova expressão do niilismo na figura do niilismo imperfeito, o
qual se caracteriza pelas novas ideias iluministas, as quais são compreendidas por Nietzsche como
substitutas do Deus morto; a denúncia nietzschiana do pseudo humanismo igualitário presente na
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proposta da democracia moderna de melhoramento da natureza humana; e, por fim, é trazida a
ideia do niilismo perfeito na figura do budismo de ação, como Nietzsche chama o anarquismo russo,
coroando a perspectiva da Pequena Política, pois o niilismo perfeito traz uma força destruidora que
pode abalar aquela unilateralidade e promover uma mudança de perspectiva política que seja
afirmativa da vida.
Todavia, é mostrado que apesar do radicalismo do budismo de ação, ele ainda se caracteriza
como uma nova transformação da unilateralidade político-moral por perpetuar a lógica da negação
da diferença e do conflito entre perspectivas, mas que pode encaminhar para o esgotamento dos
elementos constitutivos da Pequena Política e, quem sabe, podermos criar uma Grande Politica.
REFERÊNCIAS: VIESENTEINER, Jorge Luiz. A grande e a pequena política em Nietzsche. São Paulo: Annablume, 2006. ANSELL-PEARSON, Keith. Nietzsche como pensador político: uma introdução; tradução Mauro Gama, Cláudia Martinelli; consultoria, Fernando Salis. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997. BARRENECHEA, Miguel. A guerra e a “grande política” na interpretação de Nietzsche. In: 120 anos de “Para a genealogia da moral”. PASCHOAL, A. E.; FREZZATTI JR., W. A. (orgs). Ijuí: Ed. Unijuí, 2008 (Coleção Nietzsche em perspectiva). LOPES, Adriana Delbó. A questão da vontade nas análises políticas de Nietzsche. In: Revista Trágica: Estudos sobre Nietzsche – 1º semestre de 2009 – Vol.2 – nº1 – pp.1-19 MARTON, Scarlett. Nietzsche, filósofo da suspeita. Rio de Janeiro: Casa da Palavra; São Paulo: Casa do Saber, 2010. NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal: Prelúdio a uma filosofia do futuro. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. NIETZSCHE, Friedrich. Humano, Demasiado Humano: um livro para espíritos livres. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. GOICOCHEA, Diego Felipe Paredes. La crítica de Nietzsche a la democracia. Bogotá: Universidad Nacional de Colombia. Facultad de Ciencias Humanas. Departamento de Filosofi, 2009. (Biblioteca aberta. Filosofia).
As implicações do pensamento do jovem Nietzsche para a educação, pp. 613-623
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AS IMPLICAÇÕES DO PENSAMENTO DO
JOVEM NIETZSCHE PARA A EDUCAÇÃO
Lucas Josef Lima Brun1 Giovanni Perruci Ribeiro2
Márcio Acselrad3 Lucas Caminha Cândido Vieira4
RESUMO: O estudo apresenta como o pensamento de Nietzsche repercute no interior do contexto educacional. Realizou-se uma pesquisa bibliográfica, considerando as conferências denominadas Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino, assim como fragmentos da obra Sabedoria para depois de amanhã e os demais textos que tratam sobre a temática. Questionou-se o modelo moderno que, massificando e tecnicizando o saber, acaba por desestimular a criação e a crítica. Destacou-se a importância da produção de conhecimento conectada à vida, única fonte capaz de conferir significado à atividade humana. Por fim, discorreu-se sobre o aspecto experimental que o filósofo confere à atividade intelectual, na medida em que, em seu movimento interpretativo, jamais encerra a realidade numa totalidade. Para Nietzsche, educação é uma atividade produtora de poder, oposta ao conhecimento neutro e passivo cultivado na tradição ocidental. PALAVRAS-CHAVE: Educação, Nietzsche, Criação, Liberdade, Conhecimento.
1 Graduando em Psicologia pela Universidade de Fortaleza – Unifor. Contato: [email protected] 2 Graduando em Psicologia pela Universidade de Fortaleza – Unifor. Contato: [email protected] 3 Docente do curso de Psicologia da Universidade de Fortaleza – Unifor. Doutor em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Coordenador do LabGraça – Laboratório de Estudos sobre o Humor e o Riso. Contato: [email protected] . 4 Mestrando em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC -SP. Contato: [email protected]
As implicações do pensamento do jovem Nietzsche para a educação, pp. 613-623
Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274 614
ABSTRACT: The current study intends to show how Nietzsche’s thought reverbs inside the educational context. It was performed a bibliographic research taking into account the conference called "On the future of our educational institution" as well as some fragments of the work "Wisdom for the day after tomorrow" and the other texts which concern about the thematic. On this way, the modern model that ends up discouraging creation and criticism by massifying and technicizing the knowledge was questioned. The importance of producing knowledge connected to life, the only source capable of give meaning to human activity, was highlighted. Finally, it was discussed the experimental aspect that the philosopher confers to intellectual activity, insofar as, in his interpretative movement, he never encloses reality in a totality. To Nietzsche, education is a power-producing activity, as opposed to the neutral and passive knowledge cultivated in Western tradition. KEYWORDS: Education, Nietzsche, Creativity, Freedom, Knowledge.
Introdução
No que se refere à educação, é comum que surja uma série de indagações sobre como esta
pode ser definida, sobre o que corresponde ser e, até mesmo, caminhos pelos quais poderia tornar-
se mais efetiva e positiva aos indivíduos5. A partir dessa questão, sabe-se que a educação é princípio
formativo da sociedade, da vida individual e coletiva, uma partícula impossível de se escamotear
tendo em vista que se concentra na base da formação dos sujeitos6. Dentro deste paradigma de
incomensuráveis possibilidades, surge também uma série de problemáticas que a mesma tende a
enfrentar, principalmente na contemporaneidade, tais como o assentamento de um modelo de
educação baseado na instrumentalização técnica, subordinado ao modo de produção vigente,
alicerçado na ideia de que a transmissão de conteúdos se dá unicamente a partir da figura do
professor, reduzindo a participação dos alunos a perguntas estritamente ligadas a conteúdos
técnicos, o que resulta no entendimento de que as questões da educação não se relacionam à vida7.
Todavia, a educação, em seu real sentido, pode ser vislumbrada a partir de vários ângulos, sendo
caracterizada como essencialmente crítica, propositora da indagação, detratora dos rótulos, não-
estigmatizante e, fundamentalmente, disseminadora da ideia de interdependência dos conteúdos
de professor e aluno (no sentido de que o conhecimento se constrói a partir da relação entre ambos
e não de maneira unívoca)8. Ou seja, a potência à liberdade, como aspecto central da educação, se
5 BRANDÃO, C. R. O que é educação. São Paulo: Editora Brasiliense, 2013. 6 ROSA, G. Grande sertão: veredas. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2019. 7 DELORS, J.; Nanzhao, Z. Educação, um tesouro a descobrir. 2° ed. São Paulo: Cortez Brasília 1998. 8 NIETZSCHE, F. Escritos sobre educação. Tradução e organização de Noéli Correia de Melo Sobrinho. Rio de Janeiro: Ed. PUC-RIO.
São Paulo: Loyola, 2003.
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vê cada vez mais perdida em meio ao utilitarismo técnico característico das práticas de ensino
hodiernas.
Friedrich W. Nietzsche (1844-1900), um dos grandes expoentes do pensamento humano,
questionou as tendências da educação, localizada dentro do lócus cultural, e se opôs à singularidade
neste mesmo âmbito, assim como se colocará em objeção à técnica e ao esfacelamento da crítica
nos mais variados contextos educacionais9. Nietzsche entendera que educação não concerne à
preocupação metódica, tampouco à aplicação de sistemas, mas como primado que suscetibiliza o
ato de perguntar, o pensamento, a avaliação, a criatividade e o caráter relacional e edificante entre
as perspectivas do que conceberia como mestre e aluno10. Por fim, Nietzsche se coloca como
antípoda às tendências que a educação contemporânea, baseada na estruturação de horizontes
unitários e distantes do mundo da vida, tende a fundamentar-se11. É nesta configuração que o
filósofo tomará para si a importância de ser retratado ao se problematizar a questão da educação;
por interrogar e discutir o assunto, trazendo contribuições significativas à complexidade que é o
contexto educativo, justifica-se o uso das ideias do pensador.
De forma clara e sucinta, o objetivo geral do presente escrito é discutir a temática da
educação na obra filosófica de Nietzsche, com destaque às conferências nomeadas Sobre o futuro
dos nossos estabelecimentos de ensino (1872) e aos fragmentos póstumos reunidos e alcunhados
Sabedoria para depois de amanhã.
Método
O presente artigo desvela-se como pesquisa bibliográfica, de natureza qualitativa, apoiada
no Método de Análise Imanente12, este que consiste no exame minucioso da bibliografia sobre o
tema ao qual se pretende estudar, havendo o ato de perscrutar aspectos gerais e específicos que
possam vir a endossar a apreensão de conteúdos temáticos a partir da leitura crítica, principalmente
de autores clássicos, pressupondo as possibilidades de elencar suas ideias ao tempo em que se
redige o estudo13. Os dados bibliográficos foram obtidos através de veículos acadêmicos de
informação, tais como Scielo, Capes, PhilPapers e o próprio Google Scholar, dada preferência aos
9 NEUKAMP, E. As críticas do professor Nietzsche à educação de seu tempo. Seminário Nacional de Filosofia e Educação: Confluências,
v. 2, 2006, p. 1-9. 10 NIETZSCHE, F. Escritos sobre educação. Tradução e organização de Noéli Correia de Melo Sobrinho. Rio de Janeiro: Ed. PUC-RIO.
São Paulo: Loyola, 2003. 11 NEUKAMP, E. As críticas do professor Nietzsche à educação de seu tempo. Seminário Nacional de Filosofia e Educação:
Confluências, v. 2, 2006, p. 1-9. 12 LESSA, S. Trabalho e proletariado no capitalismo contemporâneo. São Paulo: Cortez, 2007. 13 LESSA, S. Trabalho e proletariado no capitalismo contemporâneo. São Paulo: Cortez, 2007.
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materiais que estavam escritos em inglês e português. Os materiais utilizados foram artigos
publicados entre 2000 a 2020, assim como as obras literárias do filósofo Friedrich W. Nietzsche, com
ênfase em seus Escritos sobre a Educação (1872;1874/ 2003), conjunto de textos que compreendem
as conferências nomeadas Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino, assim como a III
Consideração Extemporânea: Schopenhauer como educador. Para além disso, artigos de
comentadores também foram considerados, tais como Rodrigues (2015), Nasser (2012), Juraski
(2012), Rubira (2008) e Neukamp (2009).
Das tendências da cultura e sua influência na educação
Datando do ano de 1872, Nietzsche, professor de filologia na Universidade da Basiléia,
ministra cinco conferências intituladas Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino, as quais
continham uma série de facetas críticas, edificadas por Nietzsche, a respeito de tópicos como
educação e cultura. Para o filósofo, a educação estava enveredando-se por duas problemáticas
fundamentais, centralizadas em meio ao conectivo que se mantém com a cultura. De um lado, havia
um forte impulso de apropriação do máximo de indivíduos possíveis dentro da cultura prussiana. Do
outro lado, havia uma tendência ao retraimento da cultura.
Duas correntes aparentemente opostos, ambas nefastas nos seus efeitos e finalmente unidas nos seus resultados, dominam hoje os nossos estabelecimentos de ensino, originariamente fundadas em bases totalmente diferentes: por um lado, a tendência de estender tanto quanto possível a cultura, por outro lado, a tendência de reduzi-la e enfraquecê-la14.
Estender, amplificar, acrescer à nação o que se pôs a denominar cultura. O primeiro
movimento da cultura é sem imprecisões um desdobramento político, que pretende abranger a
totalidade dos espaços e colocá-los diante dos preceitos de uma cultura convencional. “De acordo
com a primeira tendência, a cultura deve ser levada a círculos cada vez mais amplos”15. Sendo de tal
caráter, poder-se-á lançar mão da interpretação de que a mais evidente das consequências para a
educação, oriundas deste primeiro exposto, é a massificação dos processos de ensino-
aprendizagem. Sugestiona-se um caminho unívoco que compreende o pensar, o ensinar, o aprender
e o avaliar. Desta feita, o produto é uma educação infundada na técnica e nos critérios objetivos que
certamente põem em dúvida a existência da reflexão crítica e do pensamento múltiplo, este que
penetra no âmago da realidade de maneira despretensiosa. O objetivo geral da primeira tendência
14 NIETZSCHE, F. Escritos sobre educação. Tradução e organização de Noéli Correia de Melo Sobrinho. Rio de Janeiro: Ed. PUC-RIO.
São Paulo: Loyola, 2003, p. 53. 15 NIETZSCHE, F. Escritos sobre educação. Tradução e organização de Noéli Correia de Melo Sobrinho. Rio de Janeiro: Ed. PUC-RIO.
São Paulo: Loyola, 2003, p. 53.
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estava intimamente ligado ao imperativo cultural, de modo que devendo as se formulações
endossadas por esta mesma cultura deveriam serem expandidas para além dos seus próprios
limites, resultar-se-ia uma cultura dominante, inexorável e, portanto, antinômica ao dinamismo.
Não poderia ser diferente com a educação, que, pelo próprio Nietzsche, não se fazia compreensível
fora do escopo cultural. O que se almeja dizer é que com isso, como dito outrora, conferiu-se
natureza operatória à educação, no sentido de produção, que se liga às designações modernas.
“De acordo com a segunda, se exige da cultura que ela abandone suas mais elevadas
pretensões de soberania e se submeta como uma serva de outras formas de vida, especialmente
aquela do estado”16. Dito de tal forma, com a segunda tendência, restringiu-se as potencialidades
efetivas da cultura, mas não apenas isto. Com o esfacelamento do pensamento centrado no
desenvolvimento de bases estruturantes de uma cultura que se pretende forte, a educação e a
formação (Bildung) de seus transeuntes descerra prejuízos fundamentais, entre os quais estão a
decadência do pensamento crítico e a pauperização da criatividade. Habituados à adaptação
apriorística e obrigatória a uma educação fortemente alicerçada aos interesses do estado, os
indivíduos se veem caudatários de uma postura que mais está ligada à ratificação de uma cultura
antipódica à autonomia do que à transformação social sustentada na criticidade e na transfiguração
de perspectivas que expandam a vida. A reprodução da passividade se torna a marca efetiva da
cultura sobre a qual se fala, que cria indivíduos incautos e predispostos a tomar a realidade como
imutável, díspares à ideia de que o conhecer é ativo e finito, tanto quanto a própria realidade.
Com a constatação, Nietzsche está interessado não apenas em desferir críticas à cultura e à
educação de seu tempo. A verdade é que a pretensão de Nietzsche é a renovação da cultura e da
educação prussiana17. A esta temática será dedicado o próximo capítulo.
O renascer da cultura para uma educação afirmativa
A crença na possibilidade de uma vitória é justificada, porque sabemos que estas duas tendências à extensão e à redução são tão contrárias aos desígnios constantes da natureza quanto a concentração da cultura num pequeno número é uma lei necessária da natureza, e de uma maneira geral uma verdade, embora as duas outras tendências só possam chegar a fundar uma cultura mentirosa18.
16 NIETZSCHE, F. Escritos sobre educação. Tradução e organização de Noéli Correia de Melo Sobrinho. Rio de Janeiro: Ed. PUC-RIO.
São Paulo: Loyola, 2003, p. 53. 17 RODRIGUES, E. J. L. O Problema da formação (Bildung) em Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino, de Nietzsche. 2015.
Dissertação (Mestrado em Filosofia). Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP. 18 NIETZSCHE, F. Escritos sobre educação. Tradução e organização de Noéli Correia de Melo Sobrinho. Rio de Janeiro: Ed. PUC-RIO.
São Paulo: Loyola, 2003, p. 53.
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Ao final do primeiro capítulo, entendeu-se que no contexto das conferências denominadas
Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino, Nietzsche não apenas ousou engendrar
críticas, mas também se pretendeu, de alguma maneira, a conferir possibilidades para uma espécie
de renovação da cultura e da educação, sob a finalidade de favorecer a Bildung, em suma, voltada
ao caráter plural e construtivo da vida.
O projeto de reforma neo-humanista, associado às ideias de Humboldt, parece ter mantido
forte influência na perspectiva de educação nietzscheana, no que diz respeito ao papel dos
estabelecimentos de ensino. A questão fundamental que os aproxima, no contexto das instituições,
é a de que Humboldt defendia a posição de uma cultura construída a partir das faculdades dos
indivíduos, tornando-se central que os locais onde a educação fosse primazia se responsabilizassem
pelo desenvolvimento humano19. Na perspectiva supramencionada, características como a
liberdade individual e institucional, neste último caso ante o estado, são representativas. Por outro
lado, embora Nietzsche tenha concordado com a ideia de que através do desenvolvimento das
competências dos sujeitos pode-se fomentar o nascimento de uma cultura profícua, há uma severa
discordância que veio a se tornar uma crítica dirigida ao projeto neo-humanista – ao contrário deste,
que se mostra arraigado à ideia universal de homem, Nietzsche atentará para a dimensão singular,
assim como reforçará uma formação sustentada na quebra com as generalidades e com a adesão à
impermanência do homem e de seus corolários. Este é um primeiro ponto a ser destacado. De toda
forma, o distanciamento da pretensão neo-humanista dimanou no sistema educacional criticado
por Nietzsche que, como aponta o próprio, é encoberto de “aspectos falhos e errâncias”20.
Não apenas houve o afastamento das conjecturas neo-humanistas, mas, de maneira mais
radical, do ideal de educação sustentado na Grécia Antiga, tão prestigiado e influente à formação de
Nietzsche, em sua juventude. Nietzsche enxergou na educação do período antigo da Grécia a
formação livre, arraigada à natureza e à arte, assim como suscetível à criatividade humana. Com o
advento da modernidade, diferenciada em virtude de seu projeto científico-positivista, fundado na
premissa de um apelo exacerbado à razão em detrimento das emoções, voltado à produção técnica
e objetiva – desvirtuada da reflexão demorada, cuidadosa e serena -, assim como estritamente
utilitário; Nietzsche atinou para o desaparecimento do caractere mais precípuo da educação,
19 RODRIGUES, E. J. L. O Problema da formação (Bildung) em Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino, de Nietzsche. 2015.
Dissertação (Mestrado em Filosofia). Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP. 20 NIETZSCHE, F. Escritos sobre educação. Tradução e organização de Noéli Correia de Melo Sobrinho. Rio de Janeiro: Ed. PUC-RIO.
São Paulo: Loyola, 2003, p. 42.
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principalmente a de base grega: a liberdade. Em tom de criticidade à especialização, à erudição
acadêmica e às obrigações estatais que passaram a amparar todo o estatuto do educar, cita-se
Nietzsche, se referindo aos gregos:
Liberdade viril do caráter, conhecimento precoce dos homens, educação que não visa à formação de um erudito, a ausência de qualquer estreiteza patriótica, de qualquer obrigação de ganhar seu pão, de obediência ao estado – em suma, liberdade, sempre liberdade: este mesmo elemento extraordinário e perigoso no seio do qual os filósofos gregos puderam crescer21.
Mas que não haja engano: Nietzsche não deve ser interpretado como apólogo do período
clássico. A análise de Nietzsche, quanto à educação, não se estagna no pretérito, assim como não
parece tomar modelos ideais como o absoluto de seu pensamento. Neste sentido, a interpretação
da educação, por parte de Nietzsche, está “vinculada a seu período histórico e ao extemporâneo a
ele” (JURASKI, 2012, p.54). A ancoragem nos pressupostos clássicos parece mais próxima a uma
aproximação parcial entre perspectivas do que uma adequação total entre as avaliações, até porque,
como se sabe, Nietzsche viria a empreender fortes críticas ao período socrático-platônico no curso
de suas ideias, com especial ênfase em seu período cientificista, a partir de Humano, demasiado
Humano (1878) e em seu período tardio, a partir do Livro V de A Gaia Ciência (1882-6) até o final de
sua vida.
Nietzsche opera com um discurso que conjectura o tempo à vida, não tornando-o separável
em categorias díspares entre si. Nas conferências, o filósofo reconhece a importância da história
para a vida que se faz em momentos presentes e para o futuro. No contexto dos estabelecimentos
de ensino, a pontuação se torna mais clara. Nietzsche entenderá as instituições de educação como
o que está profundamente conectado ao indivíduo, de forma a proporcioná-lo o desenvolvimento
de um arcabouço cultural arraigado à criticidade. Com maior profundidade, são estes territórios que
circunscrevem no sujeito uma espécie de elo fundamental relativo ao passado, que se faz nevrálgico
para a construção do presente e do futuro. É nestes espaços em que se pode evocar fulgurantemente
as raízes de um povo, remontando-os à ilação de que os fenômenos são de caráter histórico-
cosmológico22, o que os desvela como finitos por excelência. Em meio à finitude de suas criações, o
homem, às vistas das incomensuráveis possibilidades de sua existência, embora não eternas,
21 NIETZSCHE, F. Escritos sobre educação. Tradução e organização de Noéli Correia de Melo Sobrinho. Rio de Janeiro: Ed. PUC-RIO.
São Paulo: Loyola, 2003, p. 207. 22 RUBIRA, L. E. X. Nietzsche: do eterno retorno do mesmo à transvaloração de todos os valores. 2008. Tese (Doutorado em Filosofia).
Universidade de São Paulo – USP.
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percebe a si mesmo como encarregado de erigir contribuições úteis à vida, à expansão desta, não à
redução.
Basta que sejam escolas onde adquirimos cultura; não é fortuito que estejam associadas a nós e não colocadas sobre nós como uma vestimenta: como traços vivos de importantes movimentos culturais, em certos casos “material doméstico dos nossos antepassados”, elas nos unem ao passado do povo e, nos seus aspectos essenciais, são um patrimônio tão sagrado e tão venerável, que eu não poderia falar de futuro dos nossos estabelecimentos de ensino senão na esperança de me aproximar deles, tanto quanto possível, o espírito ideal de onde nasceram23.
Neste percurso, Nietzsche lançará mão da proposta de renovação da cultura. Antes, aqui
cabem duas observações. 1) Ao dissertar sobre a cultura, que traz consigo a educação, Nietzsche não
as compreende como acessíveis a todos, visto que tanto são particulares ao espíritos superiores,
quanto também se dispõem ao sobressalto do homem em relação à massa; e tão somente estes
homens, fortes e abertos à potência da vida, seriam capazes de realizar profundas transformações
no todo, em disparidade à maioria. Cita-se Nietzsche: “Não é a cultura da massa que deve ser a nossa
finalidade, mas a cultura de indivíduos selecionados, munidos das armas necessárias para a
realização das grandes obras que ficarão”24. 2) Pretende-se referir com renovação, neste contexto,
o desmonte das bases culturais modernas sob o pressuposto de se erguer uma cultura que tanto
aspire as contribuições mais proveitosas de suas raízes, quanto também possa se projetar para
frente, sem que haja estagnação no passado. Desta feita, o discurso nietzscheano, nas conferências,
se traduz no esforço de revigorar os estabelecimentos de ensino, a partir de uma quebra com o
projeto moderno de educação e de uma reintrodução de alicerces ligados ao espírito tradicional, à
liberdade e à criação. A alegação de Nietzsche sobre o futuro perpassa, antes, pela necessidade de
uma nova gênese da cultura, por uma espécie de depuração da mesma. Eflorecer-se-á não apenas a
cultura, mas a educação e as instituições onde esta se perfaz, retomando, com isso, as possibilidades
de uma formação livre e profícua, que não seja tangenciada pelo tecnicismo e pela objetividade
moderna. Uma formação que, do início ao fim, é crítica, experimental e se dá nos mais diversos
espaços, a qual zela pela interdependência dos conteúdos compartilhados entre o mestre e o
aprendiz, retirando a eventualidade de um caráter despótico que poderia acometer o processo de
ensino-aprendizagem. Esta é a educação afirmativa, fundada no duplo movimento de
desconstrução dos fulcros que sustentam uma cultura e construção de perspectivas que além de
nortear a vida no centro, são úteis à elevação desta. Mas não apenas no plano geral. No que diz
23 NIETZSCHE, F. Escritos sobre educação. Tradução e organização de Noéli Correia de Melo Sobrinho. Rio de Janeiro: Ed. PUC-RIO.
São Paulo: Loyola, 2003, p. 42-43. 24 NIETZSCHE, F. Escritos sobre educação. Tradução e organização de Noéli Correia de Melo Sobrinho. Rio de Janeiro: Ed. PUC-RIO.
São Paulo: Loyola, 2003, p. 105.
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respeito ao homem, a educação, às vistas de Nietzsche, alude à superação de si e à diferenciação
em relação massa, esta que remonta à igualdade no conhecer, à moral e ao pensamento unívoco.
Nietzsche quer o contrário da massa: a ultrapassagem da moral, o reconhecimento da finitude, a
apreensão da vida enquanto possibilidade, a liberdade individual e a criatividade no trato para-com
o mundo.
Sobre a Atividade do constante sem conhecimento
No decurso do Inverno de 1869-70 à primavera de 1870, Nietzsche redige o fragmento 3[44]
que compõe a coletânea de escritos póstumos denominada Sabedoria para Depois de Amanhã.
Destaca-se, no excerto, o termo “Atividade constante sem conhecimento”25, sob a intenção clara de
demonstrar as características mais basilares da educação de base nietzscheana presentificada na
juventude do pensador, que estava a adentrar em seus vinte e seis anos de idade; aliás, antes mesmo
das conferências de 1872.
Introdutoriamente, o fragmento 3[44] assinala uma crítica à modernidade, contrastando-a à
avaliação característica da antiguidade. Nietzsche utiliza a cultura dos bárbaros para equipará-la aos
aspectos da modernidade que destoam de uma cultura próspera e superior. Pode-se conferir que os
tópicos levantados pelo filósofo, os quais são problemas da modernidade, convergem com a
especialização dos saberes, a consideração de uma suposta compreensão do homem e da vida como
separados em diversas partes, o individualismo moderno (esboçado pela igualdade entre os sujeitos)
e a máxima de que o acúmulo de informações obrigatoriamente reflete uma formação forte.
Nietzsche, ao contrário, ilumina a indispensabilidade da interrelação entre os saberes, de forma com
que a preocupação fundamental destes seja dirigida à vida, assim como faz a exigência do
entendimento despretensioso dirigido àquela [vida] e ao próprio indivíduo, ao invés de cindi-los e
investigá-los como estruturas antagônicas e requerentes de conhecimentos particulares. Além
disso, pleiteia a superação do pressuposto de que há igualdade entre os fenômenos, lançando mão
da plurivocidade atributiva do existir, fato que, posteriormente, consequenciou a destruição do
fundamento e da própria razão moderna.
A escravidão dos bárbaros (ou seja, de nós). A divisão do trabalho é um princípio do reino dos bárbaros, o domínio do mecanismo. No organismo não há partes separáveis. O individualismo da modernidade e seu oposto na antiguidade. O homem completamente individualizado “é” muito fraco e cai em meio a um bando de escravos: por exemplo, o de uma ciência, o de um conceito, o de um vício. Não se fortalece um organismo pelo aumento da formação cognoscitiva, ao contrário, desse modo ele se enfraquece. Ele só se fortalece na atividade constante sem conhecimento. A ingenuidade dos antigos na distinção entre
25 NIETZSCHE, F. Sabedoria para depois de amanhã. Fragmentos de 1869-1870. Tradução de Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes,
2005, p. 6.
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escravos e homens livres: somos pudicos e presunçosos: escravidão do nosso caráter. Os atenientes sucumbiram porque eram exigidos por toda parte; o limite das necessidades não era tão estreito. Porém, todas essas necessidades eram universais26.
Mas e quanto à atividade constante sem conhecimento? O excerto é utilizado para rivalizar
com a máxima moderna a respeito de o acúmulo de informações obrigatoriamente refletir uma
formação forte. Conhecer o mundo significa, antes, tomá-lo em sua multiplicidade. As teorias que
se voltam à interpretação da realidade são, em suma, transitórias. Existir é dinamismo, não sendo
objetificável sob nenhuma circunstância. Por conseguinte, o conhecer, da mesma maneira, é finito,
cede à passagem do tempo e às transformações incessantes da própria natureza. O andarilho, de
formação superior e vigorosa, reconhece as questões supramencionadas, mas não apenas isto: ele
não anseia por se mostrar detentor máximo de uma miríade de conhecimentos; ele, antes, se exibe
um profundo desconhecedor do que se coloca à sua frente. Desconhecer implica serenidade, assim
como salienta a análise criteriosa e direcionada às perspectivas que um ou mais objetos possam
exprimir. Desconhecer aponta para uma formação destituída de finalidades utilitárias, mas tão
somente voltada à vida. Aquele que se presta à atividade do constante sem conhecimento é livre,
distinto da massa; ele é, em seu cerne, um espírito que encara o engano não como passível à
exclusão, mas, a depender do tipo de engano, vantajoso à vivência. Ao invés de clamar pela verdade,
como unidade, ousa se enveredar através das perspectivas, que não se propõem à eternidade. Em
suma, o desconhecedor assemelha-se ao gênio (NIETZSCHE, 1872-1878), que é a completa antípoda
ao especialista moderno – este que é apetecido pela exatidão, com a utilidade e com os interesses
mensuráveis do saber.
Educação, para Nietzsche, é mais do que um método ou uma finalidade prática: é potência
para a liberdade. A atividade constante do sem conhecimento ressalta uma postura diante da
existência. É uma ação que se situa na contramão da massa e reconhece o caráter pré-teorético das
perspectivas. O recorte fragmentário, como supracitado, torna evidente a proposta nietzscheana de
educação, assentada sobre a criticidade, o respaldo à pluralidade e ao dinamismo da vida,
preocupada com a transformação de si e da sociedade, e emancipadora. Seja como for, a educação
é viva e é no âmago das mais derradeiras crises que surge o Gênio, para demolir as bases e erguer
novas estruturas, favoráveis àquela, fulgaz, múltipla e jamais absoluta: a vida.
26 NIETZSCHE, F. Sabedoria para depois de amanhã. Fragmentos de 1869-1870. Tradução de Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes,
2005, p. 6.
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Considerações Finais
Só é possível pensar na educação ao considerar a cultura, na mesma equação. Nietzsche
esforçou-se em renovar a educação, a cultura e suas bases, sob a pretensa de conferir às mesmas
alicerces estritamente ligados à liberdade, à criatividade e à proximidade para-com a natureza.
Defronte a modernidade, Nietzsche engendra críticas, compreendendo o projeto de tal época como
falho, no que diz respeito à garantia de uma formação forte. Em contraposição às particularidades
modernas, como a tendência à especialização, a massificação, o ímpeto moral e o utilitarismo do
conhecimento; Nietzsche desenvolve ideias voltadas a um tipo de educação superior, que se
desdobra como atividade potente e livre, assim como compromissada com a transformação da
realidade através das mãos de seus representantes, os quais são externos à composição massificada.
O que se sabe é que para além das preleções, o filósofo alemão se preocupou com a educação
conjecturada à vida, esta que é a fonte emanadora de sentido para atividade humana. E é na
disposição a criar que o homem expande os limites para além do que consegue vislumbrar,
captando, no próprio mundo, o que escapa à generalidade.
REFERÊNCIAS:
BRANDÃO, C. R. O que é educação. São Paulo: Editora Brasiliense, 2013.
DELORS, J.; Nanzhao, Z. Educação, um tesouro a descobrir. 2° ed. São Paulo: Cortez Brasília 1998.
LESSA, S. Trabalho e proletariado no capitalismo contemporâneo. São Paulo: Cortez, 2007.
JURASKI, V.C. O projeto educacional em Nietzsche: Reflexões sobre a Educação na Alemanha do Século XIX. Perspectiva. Erechim. v.36, n° 136, 2012, p. 51-60.
NASSER, E. O destino do gênio e o gênio enquanto destino. Cadernos Nietzsche. n. 30, 2012, p. 287-302.
NEUKAMP, E. As críticas do professor Nietzsche à educação de seu tempo. Seminário Nacional de Filosofia e Educação: Confluências, v. 2, 2006, p. 1-9.
NIETZSCHE, F. Escritos sobre educação. Tradução e organização de Noéli Correia de Melo Sobrinho. Rio de Janeiro: Ed. PUC-RIO. São Paulo: Loyola, 2003.
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RUBIRA, L. E. X. Nietzsche: do eterno retorno do mesmo à transvaloração de todos os valores. 2008. Tese (Doutorado em Filosofia). Universidade de São Paulo – USP.
Nietzsche como psicólogo e artista na construção de uma cultura que transcenda valores, pp. 624-633
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NIETZSCHE COMO PSICÓLOGO E ARTISTA
NA CONSTRUÇÃO DE UMA CULTURA QUE
TRANSCENDA VALORES Alysson da Silva Lopes1
Kallyandra dos Santos Nunes2
RESUMO: A filosofia nietzscheana pode ser encarada como uma filosofia de martelo, que derruba valores fixados em nome de novas ideias e debates. Pensando dessa maneira, muitos dos problemas psicológicos, ou sintomas psicossomáticos, advém de uma cultura ressentida, onde as pessoas não conseguem expressar suas vontades e desejos, tornando-se, dessa maneira, indivíduos adoecidos, cristalizados, ou ressentidos utilizando o linguajar do próprio filósofo. Desse modo, como então as pessoas podem vir a melhorar, se socialmente temos uma cultura de ressentidos? O pensamento nietzscheano surge para romper paradigmas, criar novos valores, que transcendam os valores niilistas, para que dessa forma o sujeito possa ser um indivíduo criativo, artista, que expresse sua vontade de poder, tornando-se agente ativo de sua própria existência. A partir das ideias do filósofo alemão pensa-se como tornar a cultura mais forte, com valores que favoreçam a vida e saúde dos indivíduos que nela estão inseridos. PALAVRAS-CHAVES: Nietzsche, psicólogo, artista, niilista, cultura. RESUMEN: La filosofía nietzscheana puede verse como una filosofía de martillo, que anula los
valores fijados en nombre de nuevas ideas y debates. Pensando de esta manera, muchos de los
1 Autor: Alysson da Silva Lopes – Psicólogo – Formação em Psicologia e Psicoterapia fenomenológico existencial – GENi: Grupo de Estudos Nietzsche da UECE - Email: [email protected] 2 Coautora: Kallyandra dos Santos Nunes – Graduanda em Psicologia – Uninassau. Email: [email protected]
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problemas psicológicos, o síntomas psicosomáticos, provienen de una cultura resentida, donde las
personas no pueden expresar sus voluntades y deseos, convirtiéndose así en individuos enfermos,
cristalizados o resentidos, como dijo el filósofo. Entonces, ¿cómo pueden mejorar las personas si
socialmente tenemos una cultura de resentimiento? El pensamiento nietzscheano surge para
romper paradigmas, crear nuevos valores, que trascienden los valores nihilistas, de modo que el
sujeto pueda ser un individuo creativo, un artista, que exprese su voluntad de poder, convirtiéndose
en un agente activo de su propia existencia. Basado en las ideas del filósofo alemán, se piensa cómo
fortalecer la cultura, con valores que favorezcan la vida y la salud de las personas que forman parte
de ella.
PALABRAS CLAVE: Nietzsche, psicólogo, artista, nihilista, cultura.
1. Introdução
Refletindo sobre o modo de vida atual, percebe-se que a temática nietzscheana permanece
significativa e operante na contemporaneidade. Sua filosofia do século XIX critica seriamente a ideia
de cultura e valores morais vigentes em sua época, valores estes que reduzem o ser humano a
simples fato e que poda as vontades pessoais em nome de um valor universal. Diante disso, os ideais
ascéticos são tão criticados por ele em suas obras.
Desta maneira, o presente artigo traz brevemente a ideia de Nietzsche como psicólogo, ou
seja com o seu papel e posicionamento crítico diante dessa cultura que domestica cada vez mais o
ser humano, usurpando suas possibilidades, reprimindo suas vontades, tornando pessoas mais
adoecidas e ressentidas e criando um grande sintoma social de sofrimento psíquico.
Nietzsche, também conhecido como o filósofo do martelo, em sua filosofia derruba velhos
ídolos e traz a arte como retomada de enfrentamento em uma sociedade degenerada, ou seja, que
foi criada pelos ideais ascéticos e que continua fortemente atravessada por eles. Assim, a arte
atuaria favorecendo a saúde dos indivíduos que passariam a compreender a existência desses
valores e a questioná-los e, a partir disso, esse humano artístico poderia se erguer e criar seus
próprios valores que afirmassem a vida.
2. Nietzsche como psicólogo social
Em suas obras, Nietzsche confronta os valores morais vigentes, valores estes instaurados
pelo ascetismo que favorece sobremaneira o ressentimento nos indivíduos, o que contribui para
refletir acerca da causa do sofrimento psíquico na sociedade como advindo desses valores, onde o
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indivíduo ausenta-se de afirmação própria e não reconhece sua possibilidade de manifestação de
uma vida autêntica em nome de valores eternos.
“A mentira do ideal foi, até agora, as blasfêmia contra a realidade; a própria humanidade foi enganada por ela e tornou-se falsa até o mais baixo de seus instintos – a ponto de adorar os valores inversos como se fossem aqueles com os quais ela poderia garantir para si a prosperidade, o futuro, o direito altivo do futuro” 3
Valorizando esses valores, sem que haja um aprofundamento nem mesmo uma busca pela
origem dos mesmos, as pessoas vivem estagnadas sem romper velhos paradigmas e, dessa forma,
amam o ideal ao invés de viverem o real, isto é, o homem torna-se escravo de uma moral que oprime
e que mina sua forma de olhar o mundo através de vários ângulos e perspectivas. O ser humano
torna-se, assim, somente um animal domesticado que não reconhece sua própria força e que aceita
debilmente as forças impostas por uma cultura que vê este homem como um ser que já nasceu
condenado ao pecado e à obediência e sujeição.
Nietzsche se auto intitula psicólogo, em seu Ecce Homo ele declara: “Que do fundo dos meus
escritos fala um psicólogo sem igual, talvez seja a primeira conclusão à qual chega um bom
leitor[..]”4. Sua psicologia faz uma genealogia buscando a origem do sofrimento humano,
compreendendo que através desse ideal ascético o homem freou sua busca por expansão, havendo,
desta maneira, em termos psicológicos, uma “despersonalização”5 do ser humano por meio da
imposição da religião.
Segundo Nietzsche (2017), o sacerdote asceta serviu-se de seu estratagema para aprisionar
ainda mais o bicho homem, explorando, cada vez mais, e para seu benefício o sentimento de culpa
do ser humano, tornando-o frágil, incapaz de fugir dessas amarras. Assim, o sacerdote se viu como
agente que adoecia o homem, mas o mesmo tempo lhe trazia o antídoto, deixando o sujeito sem
muitas alternativas.
Enquanto o indivíduo não perceber nele mesmo sua própria vontade, ficará refém do que os
outros tem a lhe oferecer. Portanto, se faz necessário, o questionamento de todos os valores e sua
destruição, transformando o certo em dúvida, e criando, então, novas formas de manifestação da
vida e existências mais autênticas.
O ressentido, é o niilista segundo o filósofo, esse niilista deixa de confrontar a realidade como
ela é, olhando puramente para um ideal vazio, onde todas suas vontades se perdem na vontade de
3 NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo. Vol: 799. Porto Alegre: RS: L&PM POCKET, 2017, p.16. 4 NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo. Vol: 799. Porto Alegre: RS: L&PM POCKET, 2017, p.78. 5 NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. São Paulo: Lafonte, 2017, p. 119.
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nada. O niilismo é uma introjeção da vontade poder, da vontade de querer cada vez mais, da
expansão de forças e, para Nietzsche, é necessário romper com esse pensamento niilista, o que será
alcançado, segundo ele, através do homem do futuro.
Esse homem do futuro que será o redentor que nos libertará do ideal do presente como daquele que deveria necessariamente fazer brotar, do grande desgosto, da vontade de nada, do niilismo, essa batida de sino do meio-dia e da grande decisão que libera de novo a vontade, que resistiu à terra sua finalidade e, ao homem, sua esperança, esse anticristo e esse antinilista, esse vencedor de Deus e do nada – é necessário que venha um dia...6
É necessário esse resgaste do homem, despojado da vontade de poder, em total decaimento
de suas forças ativas, vivendo como um animal enjaulado desconhecendo suas próprias vontades,
submetido ao julgo do ideal ascético, vivendo simplesmente dia após dia como um ressentido,
desejando ser como o nobre, mas não reconhecendo a si mesmo também como um nobre.
2.1 Vontade de poder como força ativa criadora
Nietzsche com sua famosa frase “Deus está morto”, abre um novo caminho na filosofia e no
modo de pensar, já não há mais um Deus para o homem lançar-se, não há mais esse ideal decadente
que aprisionou o homem durante muito tempo desde que os sacerdotes encontraram essa maneira
de subjugar o sujeito existente, “Nietzsche spoke the word "God is dead" for the first time in the
third book of his work The Gay Science, which appeared in the year 1882.”7
Questionar a origem dos valores, e como esses valores nos afetam não é uma tarefa das mais
simples, é como sair de um grande devaneio e de repente se preparar para uma realidade que se
mostra muito mais dura. Não há mais ídolos impedindo o homem de nada, agora ele está só com
sua companhia, agora ele é o agente de transformação de si, um legislador que deve tomar suas
próprias rédeas.
Quanta é a verdade que um espírito suporta, quanta é a verdade que ele ousa? Essa foi para mim, e cada vez mais, a tábua para medir valores. Engano (- a crença no ideal -) não é a cegueira, engano e covardia...Toda a conquista, todo o passo adiante no conhecimento é consequência da coragem, da dureza em relação a si mesmo, da decência consigo mesmo...Eu não refuto os ideais, eu apenas visto luvas diante deles...[...]8
É necessário coragem para seguir em frente, o homem é livre e tem que decidir por ele
mesmo, suas vendas foram tiradas. O filósofo ao questionar a genealogia dos valores morais, coloca
o indivíduo como o agente que não necessita mais de um ideal e de um ídolo, e que tem
6 NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. São Paulo: Lafonte, 2017, p. 86. 7 HEIDEGGER, Martin. The question concerning technology, and other essays. New York & London: GARLAND PUBLISHING, INC. 1977, p. 91. 8 NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo. Vol: 799. Porto Alegre: RS: L&PM POCKET, 2017, p 17.
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potencialidade para criar seus caminhos e para decidir como agir agora que está livre, ou seja, que o
ser pode ser ativo e protagonista em seu processo e em sua construção enquanto ser humano, não
anulando sua liberdade enquanto ser criador.
Através da Genealogia da Moral, o homem teve um melhor entendimento do movimento de
como ele foi domesticado, tendo, finalmente, a percepção da influência da moralidade e como ela
conseguiu modelar o agir e o pensar humano. Assim, Nietzsche coloca: “unicamente pela
moralidade dos costumes e pela camisa de força social, o homem chegou a ser realmente
calculável.”9
Agora que já não há mais nada na frente do homem, é necessário que ele afirme sua vontade
e torne-se o que se é10. Para vencer a doença que assola o homem, ele deve reinventar-se. Deste
modo, trata-se de não mais uma psicologia que olha uma unidade, a psicologia nietzscheana
observa a multiplicidade de forças que envolvem o ser humano. “A patologia é uma produção do
homem na relação com seu mundo e em suas relações sociais e sociológicas.”11
O adoecimento, como levantando por Campos e Rodrigues (2005), revela um funcionamento
do indivíduo, este com seu campo de inter-relações, ou seja, de constante convívio com os outros,
como também de contínuo contato consigo mesmo. Desta maneira, é tendo a visão de um ser total,
que se entende também um indivíduo adoecido em sua integralidade, tendo repercussões
biológicas, sociais e psíquicas.
A doença diz sobre a forma de vida do sujeito, de como ele reage ao lidar com as situações
do ambiente, se consegue se adaptar mais facilmente ou não. Portanto, esse adoecimento diz sobre
uma pluricausalidade, com fatores de ordem biológica, ambiental, social e psíquica. O adoecimento
se encaixaria como um desequilíbrio e uma disfunção no modo de viver, onde as emoções, ao lidar
com as situações, podem provocar transtornos ou alterações fisiológicas ou estruturais.
Quando um conflito intrapsíquico se torna persistente, a emoção advinda dele pode gerar
estado de tensão que busca ser expresso de alguma forma, como por acesso emocional e somático
para que o indivíduo possa manter uma homeostase psíquica. Assim, o conteúdo desse conflito pode
não estar tão claro e o sintoma seria a tradução desse conflito psíquico (CAMPOS E RODRIGUES,
2005).
9 NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. São Paulo: Lafonte, 2017, p. 53. Nietzsche em sua genealogia trás em suas dissertações ou tratados, o modo como o homem foi domesticado e deixou de ser um agente passivo, tornando-se presa fácil do ideal ascético e dos valores que minavam sua vontade de poder, termo que aparece pela primeira vez em “Assim falava Zaratustra.” 10 Tema do seu livro Ecce Homo, onde o título ‘Ecce Homo – De como a gente se torna o que a gente é’, tradução de Marcelo Backes – L&PM POCKET, 2017. 11 SCHNEIDER, Daniela. Sartre e a psicologia clínica. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2011, p. 192.
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Se o ser humano adoece no mundo, pelas relações sociais, através da cultura, é sinal de que
há uma sociedade que não estimula o indivíduo a usar suas forças, sua multiplicidade de forças, é
necessário agora uma ultrapassagem do homem comum, é necessário ir além do homem,
reconhecer sua vontade de poder e transvalorar todos os valores impostos até então. O termo
“vontade de poder” surge pela primeira vez no seu “Assim falava Zaratustra”.12
Com o escrito de Aurora (1881) surge a claridade sobre o caminho metafisico de Nietzsche. No mesmo ano desponta para ele - "6 mil pés acima do mar e muito além de todas as coisas humanas!"- a intelecção do "eterno retorno do mesmo (XII, 425). Desde então, o seu percurso esteve por quase uma década sob a luminosidade mais clara dessa experiencia. Zaratustra toma a palavra. Como o mestre do "eterno retorno do mesmo", ele ensina o "além-do-homem". Clarifica-se e solidifica-se o saber de que o caráter fundamental do ente seria a "vontade de poder" e de que toda intepretação do mundo proviria dessa vontade, uma vez que ela possuiria o modo de ser das instaurações de valores. A história europeia revela o seu traço fundamental como "niilismo" e impele para a necessidade de uma "transvaloração de todos os valores". A nova instauração de valores a partir da vontade de poder que se confessa agora decididamente partidária de si mesma exige como legisladora a sua própria justificação a partir de uma nova "justiça".13
Em Assim falava Zaratustra, Nietzsche (2014), escreve de maneira poética o percurso que
Zaratustra percorre buscando o além-do-homem. No capítulo intitulado ‘Das três metamorfoses’
ele cita três estados do homem até a superação de si mesmo como homem comum. No primeiro
estágio o homem é o camelo, um animal forte, que aguenta os climas mais quentes do deserto
carregando alguém em suas costas. Apesar da força, ele nada cria, nada muda, ele continua se
lançando para o deserto dele mesmo, já que nada criou até o momento.
No segundo momento o homem se metamorfoseia em leão, mas no leão ainda há resignação, ele ainda não pode criar novos valores, mas tem a força necessária para abrir caminho para criar novos valores. Meus irmãos, para que preciso do leão no meu espírito Não basta a besta de carga resignada e respeitosa? Criar valores novos, nem mesmo o leão o pode; mas a liberdade para a criação nova, isso pode o poder do leão. Para conquistar sua própria liberdade, o direito sagrado de dizer não, até ante o dever, para tanto, meus irmãos, é preciso ser leão. Conquistar o direito de criar valores novos é a mais terrível empresa para um espírito resignado e respeitoso. Certamente veria em tal ato uma façanha de salteador e de animal de rapina.14
Na terceira metamorfose o homem torna-se uma criança, livre, despojada de
ressentimentos, criadora dos seus artífices, o leão deve se tornar uma criança, inocente, para
Nietzsche (2014) a criança é a legisladora, sempre criando novos jogos, a criança é afirmadora da
vontade, livre da imposição moral, a criança é o último estágio para o além-do-homem.
12 Assim Falava Zaratustra foi escrito entre 1883 e 1885. 13 HEIDEGGER, Martin. Nietzsche volume II. Ed 1ª. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 2007, p. 109. 14 NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falava Zaratustra. Ed 3ª. Rio de Janeiro: Vozes de Bolso, 2014, p. 32.
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Criando novos valores o indivíduo torna-se legislador, agora ele não é mais subjugado por
nenhum tipo de idealismo, agora ele olha o mundo tal como é, e afirmativamente diz sim, sim a
vontade poder “a inexausta, geradora vontade de vida.”15 A vontade de poder é:
um complexo de forças e o que caracteriza a vontade é o embate de diversos impulsos entre si, por isso, o corpo é fundamental na ótica de Nietzsche, pois ele reflete claramente esta luta, esta busca de expansão, de domínio. O corpo, não é uma unidade, mas aquilo que se constitui a partir da tensão entre as partes e se apresenta como “um ajustamento hierárquico estruturado de várias vontades de poder particulares[...]16
A vontade de poder é multiplicidade de forças, desdobramentos de possibilidades
constantes, Nietzsche tem um olhar holístico sobre o humano, ele não observa fatos soterrados em
causalidades, ele observa o indivíduo em sua inteireza, com seus defeitos e qualidades, ele olha o
humano em toda sua conjuntura, um ser que pode superar a si mesmo, um ser que além de tudo é
“humano, demasiado humano”17.
De acordo com Cox (2011), a vontade de poder é liberdade positiva, expansiva, e é através
dela que o homem escolhe seu próprio caminho, sendo responsável por si mesmo e recusando os
arrependimentos. Sem negar suas ações, este homem escolhe como um senhor nobre seus próprios
valores.
Para ser senhor de si mesmo, em sua superação, o homem deve se afastar do niilismo, ele
deve dizer sim a vida, ele deve olhar para o mundo sem nenhum tipo de devaneio, pois já não deve
existir as muletas que amparavam o sujeito em seu idealismo, agora ele já não ama mais o ideal, não
ama mais a Deus, agora ele ama o mundo, o homem, seu destino, sua facticidade.
Minha fórmula para a grandeza no homem é amor fati: não querer ter nada de diferente, nem para a gente, nem para trás, por toda a eternidade...Não apenas suportar aquilo que é necessário, muito menos dissimulá-lo – todo o idealismo é falsidade diante daquilo que é necessário -, mas sim amá-lo...18
Agora o homem não é mais resignado, ele passa a amar o trágico, o bem e o mal como lhe
chegam, ele compreende as lutas de forças no mundo, e aceita a vida como ela é, dessa maneira o
indivíduo rompe com a morbidade, a doença é apenas um outro lado da mesma moeda, e a
existência se torna mais leve. Assim, o homem se aceita com sua liberdade e pode então se vê ativo
em seu processo de estar vivendo, ultrapassando as imposições sociais e questionando qualquer
forma de controle e submissão.
15 NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra. Ed 1ª. São Paulo. Companhia das Letras, 2011, 113. 16 NASCIMENTO, Aline Ribeiro. O que é a psicologia para Nietzsche? RJ: Universidade Federal do Rio de Janeiro. Dissertação de mestrado, 2006. 17 Título da obra de Nietzsche publicada em 1878. 18 NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo. Vol: 799. Porto Alegre: RS: L&PM POCKET, 2017, p 67-68.
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2.2. A arte como processo de saúde
Para o filósofo de Zaratustra, a arte tem papel importantíssimo na constituição da grande
saúde do homem, ele resgata a arte trágica dos gregos como algo que valoriza e afirma a vida e, na
visão dele, o trágico não tem uma visão negativa ou pessimista, pelo contrário, é justamente a
tragédia grega que fornece elementos que nos ajudam a encarar a existência de forma mais alegre
e animada, sem o peso da seriedade que tanto a modernidade insiste em colocar.
Para Barrenechea (2014), a grande saúde em Nietzsche é sintoma do páthos trágico, é dizer
sim a vida mesmo diante do sofrimento, mesmo diante da finitude, mesmo que a situação pudesse
se repetir como no eterno retorno, ainda assim, o homem tomado por esse páthos diria sim diante
da vicissitude da existência e riria logo em seguida, entendendo o movimento da vida como uma
totalidade, o que é novo envelhece, o que é vivo morre. Para Nietzsche o trágico é:
[...]conjunção de impulsos que levam à afirmação e celebração da existência. Na harmonização dos instintos apolíneos e dionisíacos, das forças solares e noturnas, dos impulsos que levam ao equilíbrio e, ao mesmo tempo, ao desregrado, da lucidez à embriaguez, do citadino ao estrangeiro, do idêntico ao diferente, do medonho ao belo, tudo tende à expansão da vida, à floração, à celebração de tudo o que existe.19
Desse modo, arte trágica é uma transvaloração dos valores morais e sociais vigentes, vemos
pessoas soturnas ao falar a respeito da morte, da dor, como algo completamente distante da nossa
realidade, as pessoas até evitam falar sobre quaisquer dessas temáticas se puderem. O filósofo
alemão vem resgatar esses valores que foram perdidos, a arte perdeu lugar na civilização moderna,
perdeu lugar com o advento da filosofia socrática, para Nietzsche foi o momento da decadência
cultural, toda forma de expressão artística que manifestasse plenitude de instintos e sentimentos
deveria ser extirpada (BARRENECHEA, 2014).
Dessa maneira seguimos até os nossos dias, com a racionalidade como expoente de vida,
quando na verdade para o filósofo essa forma é uma decadência, uma introjeção das forças que
clamam pela existência. Vivendo regrado o tempo todo o homem esquece do riso e da alegria de
viver, passando a ter uma vivência cada vez mais árida.
Com a retomada da arte trágica como lugar de recuperação da plenificação dos instintos, o
indivíduo aceita sua tragédia, sua facticidade de maneira espontânea, ele não se arrepende de seus
erros, pelo contrário, ele rir e aprende com seus erros, pois suas experiências o transformam no que
19 Barreneachea, Miguel Angel. Nietzsche e a alegria do trágico. Rio de Janeiro: Editora 7 Letras, 2014, p. 117.
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ele é. Desta maneira, a pessoa se torna um ser autêntico, que está sempre se reinventando
existencialmente (COX, 2011).
Nietzsche propõe um novo olhar para a tragédia, devendo-se olhar a existência de forma
mais lúdica, como a criança do Zaratustra, inocente que rir das situações mais inusitadas,
ressignificando sua condição humana.
Nietzsche sustenta que os homens que conseguem ultrapassar a condição doentia e fraca que caracteriza os modernos, que podem afirmar a vida em todas as suas vicissitudes, experimentariam a grande saúde. Esses podem rir de todas as dificuldades e dores da existência atingiriam uma “nova saúde”, mais forte que “todas as saúdes até agora20”.
Aceitando a vida como ela é, com seus ciclos de destruição e renovação e compreendendo o
movimento da vida, o homem então supera a si mesmo, torna-se ele mesmo, sem ideais, somente
ele e o real, autêntico, criador de valores, o homem que legisla em prol da vida, a existência que
brinda, que dança, que ascende como fogo, agora ele rir...de quem? Dele mesmo.
Considerações finais
O filósofo de Zaratustra trás importantes reflexões acerca da desconstrução da moral que
impõe um fardo no homem, moral essa que poda as forças do indivíduo, o que Nietzsche vem a
nomear de niilismo, a decadência da civilização, em nome de um idealismo que usurpou durante
muito tempo a vontade humana, tornando a civilização refém do além, ou da racionalidade pura,
condenando as expressões artísticas, condenando as formas do homem ser e agir no mundo,
favorecendo um total declínio da saúde humana, as pessoas se tornaram frias e pessimistas,
introjetando sua vontade de poder.
Nietzsche se mostra com um psicólogo, que compreende através de sua genealogia a raiz do
problema da humanidade, e passa a martelar a moral, a cultura, a verdade, tudo que prende o ser
humano em grilhões de aço, o filósofo aparece se intitulando um psicólogo que pensa numa grande
saúde, ele não está preocupado em olhar fatos, e sim a totalidade da experiência do homem.
Até agora a psicologia ficou presa a preconceitos morais e temores morais: ela não se arriscou nas profundezas. Concebê-la como morfologia e teoria do desenvolvimento da vontade de poder, como eu a concebo – ninguém tocou nisso ainda, sequer em pensamento: desde que seja lícito, pois reconhecer naquilo que até agora se escreveu, um sintoma daquilo que até agora se calou[...]21
Se pensarmos na psicologia nietzscheana e quisermos continuar desenvolvendo essa
psicologia, temos que continuar mantendo nossos olhos bem abertos, prestando atenção no
desenvolvimento da cultura, e combater o espírito do pessimismo, favorecendo ao ser humano
20 Barreneachea, Miguel Angel. Nietzsche e a alegria do trágico. Rio de Janeiro: Editora 7 Letras, 2014, p. 133. 21 NIETZSCHE, Friedrich. Além do Bem e do Mal. Vol: 677. Porto Alegre: RS: L&PM POCKET, 2017, p. 46.
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meios que o ajudem a ele ser ele mesmo, um indivíduo plural, uma pessoa com uma multiplicidade
de forças em si mesmo, um ser humano que rir alegremente sobre o devir, dessa forma então:
[...] que a psicologia seja novamente reconhecida como rainha das ciências, a cujo serviço e para cuja preparação existem as demais ciências. Pois doravante a psicologia volta a ser o caminho para os problemas fundamentais.22
Que a psicologia volte seu olhar para o Ser de uma maneira mais profunda, que possa olhar
a dimensão humana com todo seu desdobramento de forças, tornando possível uma transcendência
dos valores niilistas para valores que favoreçam à vontade de poder, o amor fati, tornando assim a
civilização mais alegre e mais saudável. As ideias do filósofo continuam atuais, portanto, se faz
mister continuar com suas interlocuções acerca da existência.
REFERÊNCIAS:
Barreneachea, Miguel Angel. Nietzsche e a alegria do trágico. Rio de Janeiro: Editora 7 Letras, 2014, 113 - 135 p.
COX, Gary. Compreender Sartre: 3. ed. Petrópolis: RJ: Vozes, 2011. 187-192 p.
CAMPOS, Elisa Maria Parahyba; RODRIGUES, Avelino Luiz. Mecanismo de formação dos sintomas em psicossomática. Mudanças–Psicologia da Saúde, v. 13, n. 2, p. 290-308, 2005.
HEIDEGGER, Martin. The question concerning technology, and other essays. New York & London: GARLAND PUBLISHING, INC. 1977, 91 p.
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche volume II. Ed 1ª. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 2007, 109 p.
NASCIMENTO, Aline Ribeiro. O que é a psicologia para Nietzsche. 2006. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
NIETZSCHE, Friedrich. Além do Bem e do Mal. Vol: 677. Porto Alegre: RS: L&PM POCKET, 2017, 46 – 47 p.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falava Zaratustra. Ed 3ª. Rio de Janeiro: Vozes de Bolso, 2014, 32 -33 p.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra. Ed 1ª. São Paulo. Companhia das Letras, 2011, 113 p.
NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo. Vol: 799. Porto Alegre: RS: L&PM POCKET, 2017, 16 - 78 p.
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. São Paulo: Lafonte, 2017, 1 – 126 p.
SCHNEIDER, Daniela. Sartre e a psicologia clínica. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2011, 192 p.
22 NIETZSCHE, Friedrich. Além do Bem e do Mal. Vol: 677. Porto Alegre: RS: L&PM POCKET, 2017, p. 47.
O grande acontecimento: a morte do deus-moral, pp. 634-641
Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274 634
O GRANDE ACONTECIMENTO: A
MORTE DO DEUS-MORAL Hedy Carlos Santos de Pina1*
RESUMO: O presente artigo objetiva apresentar e discutir o problema do conceito nietzschiano “Deus está morto” a partir de duas leituras: uma em sentido histórico do acontecimento, a partir de alguns aforismos selecionados da obra A gaia ciência e outra, no sentido metafórico, partindo dos textos de Assim falou Zaratustra. Com esse duplo viés, esperamos não só trazer à tona a polêmica sobre a existência ou não de Deus, mas apontar para as inúmeras perspectivas de interpretação da realidade que surgem após o descrédito em uma visão de mundo que se estabeleceu por milênios como a única e absoluta forma de entender a existência. Um exame mais pormenorizado e aprofundado acerca do significado da “morte de Deus” de certo demandaria uma quantidade maior e diversificada de pesquisas, incluindo não unicamente as obras publicadas pelo filósofo, mas também um amplo material publicado postumamente. Sob esse ângulo, o presente texto deve ser entendido como uma indicação para futuras pesquisas. PALAVRAS-CHAVE: Moral, Deus, Transvaloração, Auto-superação. THE GREAT EVENT: THE DEATH OF THE MORAL GOD ABSTRACT: This article aims to present and discuss the problem of the Nietzschean concept “God is dead” from two readings: one in the historical sense of the event, from some selected aphorisms from the work The gay Science and another, in the metaphorical sense, starting from the texts of Thus spoke Zarathustra. With this double bias, we hope not only to bring up the controversy about the existence or not of God, but to point to the innumerable perspectives of interpretation of reality that arise after the discredit in a worldview that was established for millennia as the only and
1Hedy Carlos Santos de Pina é mestre em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (UECE).
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absolute way of understanding existence. A more detailed and in-depth examination of the meaning of the “death of God” would certainly demand a greater and more diversified amount of research, including not only the works published by the philosopher, but also the wide material published posthumously. From this angle, the present text should be understood as an indication for future research.
KEYWORDS: Moral, God, Revaluation of values, Self-overcoming.
A expressão “Deus está morto” é uma constatação que Nietzsche faz ao tomar a
sociedade moderna como objeto de crítica. Uma sociedade que tem por fundamento o saber técnico
e científico. Um conhecimento do mundo que busca dar respostas práticas aos acontecimentos e
preza a eficiência na obtenção de resultados precisos sobre os fenômenos naturais. Esse tipo de
saber pragmático ignora as questões mais “fundamentais” da metafísica e toma as teológicas como
ingênuas e pueris. No entanto, alguns conceitos metafísicos e teológicos como “causa”, “espírito”,
“alma”, “Eu”, “sujeito”, “consciência” (Gewissen), “razão”, “verdade”, “coisa em si” (Ding an sich)
continuam fazendo parte do discurso do homem moderno.
Nietzsche, no seu filosofar baseado na própria experiência e no diálogo com as
descobertas científicas do seu tempo, faz uso dos termos adotados das ciências naturais, da física e
da psicologia, como “impulso” (Trieb), “força”, “afeto” (Affekt), “vontade”, “corpo”, sem abandonar
completamente os termos anteriores, mas os dá um outro sentido2. Contudo, o filósofo alemão não
restringe seu filosofar a um discurso racional que busca a verdade a todo custo, uma vontade de
verdade (Wille zur Wabrbeit) que se encontrava também entre os cientistas e pensadores da sua
época. Nietzsche cria pra si um novo estilo, como um artista que se refugia na sua obra para
interpretar o mundo. Assim nasce o seu Zaratustra, que a partir de uma linguagem poética, marcada
por sinais, simbologias, metáforas, enigmas, nos fala desse grande acontecimento: a inutilidade da
moral num mundo do progresso científico.
Assim começa a tragédia: Depois de ter gozado do seu espírito e de sua solidão,
Zaratustra certa manhã levantou com um coração transfigurado (Za/ZA, “Prólogo” §1, 11) e decidiu
iluminar como o sol aqueles que vivem nas sombras. Havia nascido nele o desejo e a necessidade de
2 O próprio filósofo usa termos como “sujeito”, “eu”, “indivíduo”, mas somente “como símbolos para o que escapa à denominação. E ele os rejeita, tão logo são pensados como conceitos”. (MÜLLER -LAUTER, Wolfgang. Nietzsche: sua filosofia dos antagonismos e os antagonismos de sua filosofia. p. 55.). Um dos termos que ganha um sentido deferente é a “alma mortal”, “alma como pluralidade de sujeito” e “alma como estrutura social dos impulsos e afetos” [Seele als Gesellschaftsbau der Triebe und Affekte] (JGB/BM-I §12, 19).
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esvaziar o copo querendo enchê-lo novamente. Iluminado, o solitário, cansado da sua própria
solidão, declina em direção aos homens carregando na algibeira da sua transbordante sabedoria
acumulada um presente para os homens. Descendo para a cidade, no bosque, encontra um eremita
que testemunhara antes a sua subida e agora testemunha sua descida e percebe uma grande
mudança em Zaratustra:
Não me é estranho esse andarilho: por aqui passou há muitos anos. Chamava Zaratustra; mas está mudado.
Naquele tempo levavas tuas cinzas para os montes: queres agora levar teu fogo para os vales? Não temes o castigo dos incendiários?
Sim, reconheço Zaratustra. Puro é seu olhar, e sua boca não esconde nenhum nojo. Não caminha ele como um dançarino?
Mudado está Zaratustra; tornou-se uma criança Zaratustra, um desperto é Zaratustra: que queres agora entre os que dormem? (Za/ZA-I §1, 11).
Zaratustra caminhava agora dançante como uma criança, carregando a luz do fogo para
o abismo escuro da multidão3. Depois de um pequeno diálogo entre Zaratustra, o “desperto” e o
“santo” do bosque aparece pela primeira vez no Zaratustra a noção da morte de Deus.
O tema “Deus está morto” já se encontra na obra A gaia ciência no parágrafo de título “O
homem louco” que diz:
Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente: “Procuro Deus! Procuro Deus!”? – E como lá se encontrassem muitos daqueles que não criam em Deus, ele despertou com isso uma grande gargalhada. Então ele está perdido? Perguntou um deles. Ele se perdeu como uma criança? Disse um outro. Está se escondendo? Ele tem medo de nós? Embarcou num navio? Emigrou? – gritavam e riam uns para os outros. O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-os com seu olhar. “Para onde foi Deus?”, gritou ele, “já lhes direi! Nós o matamos – vocês e eu. Somos todos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que fizemos nós ao desatar a terra do seu sol? Para onde se move ela agora? Para onde nos movemos nós? Para longe de todos os sóis? Não caímos continuamente? Para trás, para os lados, para frente, em todas as direções? Existem ainda ‘em cima’ e ‘embaixo’? Não vagamos como que através de um nada infinito? Não sentimos na pele o sopro do vácuo? Não se tornou ele mais frio? Não anoitece eternamente? Não temos que acender lanternas de manhã? Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? – também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos! Como nos consolar, a nós, assassinos entre os assassinos? O mais forte e sagrado que o mundo até então possuíra sangrou inteiro sob os nossos punhais – quem nos limpará esse sangue? Com que água poderíamos nos lavar? Que ritos expiatórios, que jogos
3 Roberto Machado compreende a simbologia luz e sombra como referência ao antigo conceito nietzschiano: o apolíneo. Segundo o
comentador “o declínio de Zaratustra nesse início é sua descida ao ínfero mundo das sombras para iluminá-lo. Por sua sabedoria apolínea, Zaratustra permanece fiel ao tema da oposição e da luta entre o dia e a noite, entre a luz e a sombra” (MACHADO, R. Zaratustra, tragédia nietzschiana. p. 43).
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sagrados teremos de inventar? A grandeza desse ato não é demasiado grande para nós? Não deveríamos nós mesmos nos tornar deuses, para ao menos parecer dignos dele? Nunca houve ato maior – e quem vier depois de nós pertencerá, por causa desse ato, a uma história mais elevada que toda a história até então!” Nesse momento silenciou o homem louco, e novamente olhou para seus ouvintes: também eles ficaram em silêncio, olhando espantados para ele. “Eu venho cedo demais”, disse então, “não é ainda meu tempo. Esse acontecimento enorme está a caminho, ainda anda: não chegou ainda aos ouvidos dos homens. O corisco e o trovão precisam de tempo, a luz das estrelas precisa de tempo, os atos, mesmo depois de feitos, precisam de tempo para serem vistos e ouvidos. Esse ato ainda lhes é mais distante que a mais longínqua constelação – e no entanto eles cometeram! – Conta-se também que no mesmo dia o homem louco irrompeu em várias igrejas, e em cada uma entoou o seu Réquiem aeternaum deo. Levado para fora e interrogado, limitava-se a responder: “O que são ainda essas igrejas, se não os mausoléus e túmulos de Deus? (FW/GC §125, 137).
O homem louco que sai a procura de Deus não provoca na multidão nenhum escândalo
ou irritação. A sua afirmação “Deus está morto” não abala a fé dos que se encontram no mercado,
mas pelo contrário, causa neles um grande riso. Não se trata, portanto, aqui de uma polêmica em
relação à existência de Deus, dado que, àqueles para o qual o homem louco se dirige não possuem
mais essa crença. Ele os acusa e acusa a si mesmo do assassinato de Deus, um ato de grandeza, que,
no entanto, não possui um autor digno dele.
A expressão reaparece em Zaratustra logo após o diálogo do personagem com o eremita
no bosque. Zaratustra é o sem-deus4 que se dirige aos homens e o santo aquele que se afasta dos
homens para estar com Deus. O velho eremita questiona a Zaratustra: “que queres agora entre os
que dormem?” e ele responde: “Eu amo os homens”. Acontece que o santo havia se refugiado na
floresta justamente fugindo do amor aos homens que poderia matá-lo5. Porém, enquanto que o
amor do eremita aos homens se expressa no “amor ao próximo”, o de Zaratustra se exprime na
superação da compaixão.6 O eremita já não mais amava o homem por ser uma coisa demasiado
imperfeita, mas a Deus, algo para Zaratustra que não mais fazia nenhum sentido. Admirado como
a ignorância do santo em relação à morte de Deus, Zaratustra segue sozinho rumo à cidade.
A exclamação “Deus está morto” será retomada no livro II no capítulo intitulado “Dos
compassivos” onde diz:
4 “E, quando eu grito: ‘Maldizei todos os covardes demônios em vós, que gostam de choramingar, juntar as mãos e rezar’, então eles
gritam: ‘Zaratustra é sem-deus’. E especialmente seus mestres da resignação gritam isso –; mas justamente a esses eu amo gritar no ouvido: ‘Sim, sou Zaratustra, o sem-deus!’. Esses mestres da resignação! Onde quer que seja pequeno, doentio e sarnento eles se enfiam, como piolhos; e apenas meu nojo me impede de esmagá-los. Muito bem! Eis a minha prédica para os seus ouvidos: eu sou Zaratustra, o sem-deus, que diz ‘quem é mais sem-deus do que eu, para desfrutar do seu ensinamento?” (Za/ZA-III §3, 162-163).
5 “Por que” disse o santo “fui para o ermo e a floresta? Não seria por amar demais os homens? Agora amo a Deus: os homens já não amo. O homem é, para mim, uma coisa demasiado imperfeita. O amor aos homens me mataria.” (Za/ZA-I §2, 12).
6 É interessante notar que, para Nietzsche, a ideia de compaixão pertence à esfera da moral dos ressentidos e não a moral do homem nobre. Nesse caso ela serviria como um obstáculo ao super-homem: “Podemos entender que Nietzsche vê na compaixão uma grande objeção à superação do homem, um grande objeção à nobreza. A atitude compassiva seria a estratégia de poder do fraco que não tem outra forma de exercer sua força senão socorrendo miseráveis.” (MACEDO, Iracema. Zaratustra, compaixão e amor fati. p. 87).
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Ai de todos os que amam e que não atingiram uma altura acima da compaixão! Assim me falou certa vez o Demônio: “Também Deus tem seu inferno: é seu amor aos homens”. E recentemente o ouvi dizendo isto: “Deus está morto; morreu de sua compaixão pelos homens.” (Za/ZA-II, 84).
Ali a causa apontada da morte é o seu amor aos homens. Os homens ocidentais da casta
sacerdotal a partir da moral da compaixão, do amor ao próximo, inverteram a imagem do antigo
Deus do oriente. O cristianismo com seu lema “Deus na cruz” transformou o Deus vingativo e duro
em um ser compassivo capaz de se sacrificar pela humanidade. No livro IV no capítulo “Aposentado”,
pela boca do personagem velho papa aparece essa inversão:
Quem o exalta como o deus do amor não tem o amor em alta conta. Não pretendia também ser juiz esse deus? Mas quem ama, ama acima do prêmio e do castigo. Quando ele era jovem, esse deus de oriente, era duro e vingativo, e construiu um inferno para o gozo de seus favoritos. Afinal, porém, tornou-se velho, brando, mole e compassivo, mais semelhante a um avô do que um pai, e ainda mais semelhante a uma vovó trôpega. Ficava sentado, murcho, em seu canto da estufa, afligindo-se com a fraqueza das pernas, cansado do mundo, de vontade cansada, e um dia asfixiou-se com a compaixão demasiada (Za/ZA-IV, 247).
Os valores morais e religiosos propagados pelo cristianismo representam para Nietzsche
uma transvaloração e degeneração dos antigos valores que se baseavam na afirmação da vida. Ao
invés de potencializar a vontade ascendente, a moral cristã prega a renúncia de si e a aniquilação de
todo impulso vital.7 Ela exalta, segundo o autor de Zaratustra, como virtude tudo que é fraco,
doente, covarde e condena os instintos mais fortes que ataca, domina, destrói. Esses afetos passam
a ser visto pelo homem moral como inferiores, animalesco e nocivo à convivência. A partir dessa
perspectiva se torna vergonhosa a própria natureza e se passa a vê-la como feia e má. Tido como
monstro, ela foi relegada às profundezas e encobertada com as maquiagens da moral: a polidez e a
etiqueta. Travou-se assim uma luta milenar contra a própria vida, contra a Terra em nome dos
valores superiores.
A incapacidade de alguns homens de manter a besta interior encarcerada8 os obriga a se
afastar das relações sociais e evitar qualquer olhar externo que censura ou que se apieda. Dessas
testemunhas inconvenientes se faz necessário livrar-se. Assim em Zaratustra aparece no livro IV no
7 Nietzsche vê a moral cristã baseada no imperativo altruísta “ama teu próximo” em oposição ao princípio egoísta “ame a si mesmo”
como a moral de decadência: “(...) a moral de renúncia de si é a moral de declínio par excellance, o fato ‘eu pereço’ traduzido no imperativo: ‘todos devem perecer’ – e não só no imperativo... Essa única moral que até hoje foi ensinada, a moral da renúncia de si, trai uma vontade de fim, nega em seus fundamentos a vida.” (EH/EH-XIV §7, 108).
8 “...o animal de rapina, a magnífica besta loura que vagueia ávida de espólios e vitórias; de quando em quando este cerne oculto necessita desafogo, o animal tem que sair fora, tem que voltar a selva”. GM/GM-I §11, 32.
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capítulo “O mais feio dos homens” a vingança contra o testemunho. Lá confessa o assassino do Deus
que tudo vê:
Mas ele – tinha que morrer: ele via com olhos que tudo viam – ele via os fundamentos e
profundezas do homem, toda a sua escondida ignomínia e feiura.
Mas sua compaixão não conhecia pudor: ele se insinuava em meus mais sujos recantos. Esse
curioso entre os curiosos, esse superimportuno e supercompassivo tinha que morrer.
Ele sempre me via: de uma testemunha assim eu desejava me vingar – ou não mais viver.
O Deus que tudo via, também o homem: esse Deus tinha que morrer! O homem não suporta que viva uma testemunha assim (Za/ZA-IV, 252-253).
Parece que, mesmo após este ato grandioso que garante à posteridade uma história
mais elevada, os seus autores permanecem passivos e alheios à riqueza de perspectiva que a morte
de Deus traz. Tanto os espectadores abordados pelo homem louco no escrito A gaia ciência, quanto
o mais feio dos homens no Zaratustra não se dão conta de que seus atos abrem caminhos para a
possibilidade da criação de novos valores.
No primeiro aforismo, 343, do livro V: “Nós, os impávidos”, Nietzsche escreve sobre a
morte de Deus como:
O maior acontecimento recente – o fato de que “Deus está morto”, de que a crença no Deus cristão perdeu o crédito – já começa a lançar suas primeiras sombras sobre a Europa. Ao menos para aqueles poucos cujo olhar, cuja suspeita no olhar é forte e refinada o bastante para esse espetáculo, algum sol parece ter se posto, alguma velha e profunda confiança parece ter se transformado em dúvida: para eles o nosso velho mundo deve parecer cada dia mais crepuscular, mais desconfiado, mais estranho, “mais velho”. Mas pode-se dizer, no essencial, que o evento mesmo é demasiado grande, distante e a margem da compreensão da maioria, para que se possa imaginar que a notícia dele tenha sequer chegado; e menos ainda que muitos soubessem já o que realmente sucedeu – e tudo quanto irá desmoronar, agora que esta crença foi minada, porque estava sobre ela construído, nela apoiado, nela arraigado: toda a nossa moral europeia, por exemplo. [...]
E pós esse evento as suas consequência são:
Talvez soframos demais as primeiras consequências desse evento – e estas, as suas consequências para nós, não são, ao contrário do que talvez se esperasse, de modo algum tristes e sombrias, mas sim algo difícil de descrever, uma nova espécie de luz, de felicidade, alívio, contentamento, encorajamento, aurora... De fato, nós, filósofos e “espíritos livres”, ante a notícia de que “o velho Deus morreu” nos sentimos como iluminados por uma nova aurora; nosso coração transborda de gratidão, espanto, pressentimento, expectativa – enfim o horizonte nos aparece novamente livre, embora não esteja limpo, enfim os nossos barcos podem novamente zarpar ao encontro de todo perigo, novamente é permitida toda a ousadia de quem busca o conhecimento, o mar, o nosso mar, está novamente aberto, e provavelmente nunca houve tanto “mar aberto.” (FW/GC §343, 207-208).
Após a morte de Deus, fundamento último da interpretação moral do mundo, sobraram
apenas princípios morais como sombra desse “velho Deus”. O desaparecimento daquilo que dava o
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sentido à existência e que garantia a ordenação do mundo, leva à desvalorização dos valores morais
que ainda permanecem, segundo Nietzsche, como guias da conduta do homem europeu.
Na visão de Nietzsche, cabe agora aos filósofos e “espíritos livres” superar qualquer
pressuposto metafísico ou religioso que estabelecem ainda um telos ordenador do mundo. Escreve
Nietzsche no aforismo108 intitulado “Novas lutas”, do livro III da A gaia ciência o seguinte:
Depois que Buda morreu, sua sombra ainda foi mostrada numa caverna durante séculos – uma sombra imensa e terrível. Deus está morto; mas, tal como são os homens, durante séculos ainda haverá cavernas em que sua sombra será mostrada. – Quanto a nós – nós teremos que vencer também a sua sombra! (FW/GC §108, 126).
Essa vitória certamente consiste na auto-superação da moral pela veracidade, na auto-
superação do moralista em seu contrário, como afirma Nietzsche, posteriormente, na sua
autobiografia ao referir o seu personagem Zaratustra.9 Essas “novas lutas” podem ser constatadas
na sua obra Assim falou Zaratustra em que o personagem anuncia um novo horizonte, um novo tipo
de homem que representa a superação do próprio homem.
A noção da morte de Deus, portanto, mais de que uma mera polêmica sobre a existência
de Deus, ela é uma constatação da descrença em uma entidade transcendente, um criador que
governa o mundo. As investigações científicas modernas e suas descobertas, as ciências naturais, a
física e a biologia contribuíram para a desdivinização da natureza e consecutivamente despertaram
a desconfiança em relação à todo dogmatismo religioso e metafísico. No entanto, parece a
Nietzsche, que a maioria dos homens do seu tempo não percebeu a magnitude desse evento e vivem
ainda submetidos aos valores morais. A maioria prefere esses ideais ascéticos que lhe oferecem um
sentido, pois, qualquer sentido é melhor que nenhum (GM/GM-III §28, 149). Na Genealogia da moral
Nietzsche dirá que “o homem preferirá ainda querer o nada a nada querer” (GM/GM-III §3, 104), na
incapacidade de criar para si novos valores e um novo sentido.
9 “A autossuperação da moral pela veracidade, a autossuperação do moralista em seu contrário – em mim – isto significa em minha boca
o nome Zaratustra.” (GM/GM-III §3, 104).
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REFERÊNCIAS:
NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia De
Bolso, 2016.
______. Além do bem e do mal. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras,
1997.
______. Assim falou Zaratustra. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia de Bolso,
2015.
______. Ecce homo. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia de Bolso, 2015.
______. Genealogia da moral. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras,
1998.
MACEDO, Iracema. Zaratustra, compaixão e amor fati. In: DIAS, Rosa; VANDERLEI, Sabrina;
BARROS, Tiago (Orgs.). Leituras de Zaratustra. Rio de Janeiro: Mauad X, 2011. p. 83-96.
MACHADO, Roberto. Zaratustra: tragédia Nietzschiana. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
MARTON, Scarlett. A morte de deus e a transvaloração dos valores. Hypnoe, São Paulo ano 4/ n. 5, p. 133-
134, 2 sem. 1999.
MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. Nietzsche: sua filosofia dos antagonismos e os antagonismos de sua
filosofia. Trad. Clademir Araldi. São Paulo: Editora Unifesp, 2009.
SCHMIDT, Rüdiger / SPRECKELSEN, Cord. Assim falava Zaratustra: uma chave de leitura. Trad. de
Diego Kosbiau Trevisan. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.
O ressentimento enquanto doença em Nietzsche, pp. 642-651
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O RESSENTIMENTO ENQUANTO DOENÇA EM
NIETZSCHE Igor Alysson Lemos Pinto1
RESUMO: Este artigo prioriza uma análise nas áreas da psicologia e da moral sobre a questão do ressentimento enquanto doença em Nietzsche. Para esse estudo a Genealogia da moral é a obra fundamental do filósofo, nessa questão, portanto, é a partir dela que muito dessa pesquisa está fundamentada. É importante destacar que o filosofo francês Gilles Deleuze é um grande aliado nessa presente pesquisa via sua obra Nietzsche e a filosofia. Então, o interesse aqui é de realizar uma abordagem sobre como é construída uma moral nas bases do ressentimento e como ela se manifesta, indicando a fisiologia e os aspectos psicológicos que estão envolvidos nessa relação, tratando da tipologia do ressentimento e suas atribuições. PALAVRAS-CHAVE: Ressentimento. Moral. Doença. Vingança. ABSTRACT: This article prioritizes an analysis in the areas of psychology and morals on the issue of resentment as a disease in Nietzsche. For this study, the Genealogy of Morals is the fundamental work of the philosopher, in this question; therefore, it is from it that much of this research is grounded. It is important to highlight that the French philosopher Gilles Deleuze is a great ally in this present research via his work Nietzsche and philosophy. So, the interest here is to carry out an approach on how a moral is built on the basis of resentment and how it manifests itself, indicating the physiology and psychological aspects that are involved in this relationship, dealing with the typology of resentment and its attributions. KEYWORDS: Resentment. Morals. Disease. Revenge.
1 Bacharel em Filosofia (UECE). E-Mail: [email protected].
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Nietzsche vê no ressentimento uma inversão do olhar apreciador. Enquanto o senhor afirma
a si mesmo que é “bom” e sem querer ou se importar de ser chamado assim, agindo e gozando de
tal maneira, sendo a negação apenas contraste de sua própria afirmação, ou seja, enquanto cria
realmente valores e estes valores partem dele, ele é a fonte dos valores, ele se diz, nomeia-se e avalia
de acordo com seus valores. Já o escravo necessita de um contrário para estabelecer seu próprio
valor. Então, na moral do escravo os valores estão no externo, ele diz: “ele é mau, portanto eu sou
bom”, na moral do escravo parte-se duma premissa negativa para chegar a uma premissa positiva.
O inverso ocorre com a moral do senhor, ele diz: “eu sou bom, portanto ele é mau”. Então, agora
parte duma premissa positiva para chegar, por um inevitável contraste, a uma premissa negativa. É
neste sentido que se pode verificar como se estabelecem essas duas formulações de moral na
filosofia nietzschiana.
Precisamente o oposto do que sucede com o nobre, que primeiro e espontaneamente, de dentro de si, concebe a noção básica de “bom”, e a partir dela cria para si uma representação de “ruim”. Este “ruim” de origem nobre e aquele “mau” que vem do caldeirão do ódio insatisfeito – o primeiro uma criação posterior, secundária, cor complementar; o segundo, o original, o começo, o autêntico feito na concepção de uma moral escrava – como são diferentes as palavras “mau” e “ruim”, ambas aparentemente opostas ao mesmo sentido de “bom”: perguntemo-nos quem é propriamente “mau”, no sentido da moral do ressentimento. A resposta, com todo o rigor: precisamente o “bom” da outra moral, o nobre, o poderoso, o dominador, apenas pintado de outra cor, interpretado e visto de outro modo pelo olho de veneno do ressentimento2.
Nietzsche toma como questão de saúde a força ativa que o homem possui para viver e
intensificar a vida, para ele o nobre, o senhor, o aristocrata; estes que possuem privilégio
hierárquico, possuem um modo de existência que está sempre ligado a uma forma de saúde forte,
enquanto o vil, o escravo, o plebeu, são homens do ressentimento, não vivem e nem intensificam a
vida, são pobres, baixos e mesquinhos. Vivem obstinados pela vingança, têm sérias dificuldades para
digerir as impressões e para esquecer os traços que se solidificam, que se cristalizam na sua
consciência. Então, são homens dolorosos, tudo lhes causa sofrimento, estão envolvidos de rancor
e veneno, sofrem da doença do ressentimento. Por possuírem um modo de existência fraco,
constantemente sentem-se feridos (toda impressão que lhes toca os fere) e não conseguindo vingar-
se de imediato visto que na maioria das vezes não possuem força suficiente para tal reação e por isso
mesmo precisam de um apelo moral que os justifique enquanto fracos como bons e ponha o forte
como mal numa inversão do olhar apreciador, então, esperam cheios de rancor e veneno o momento
em que poderão descarregar seu ressentimento e gozar de sua vingança, de seu verdadeiro torpor,
2 NIETZSCHE, Friedrich W. Genealogia da moral. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 31.
O ressentimento enquanto doença em Nietzsche, pp. 642-651
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seu narcótico, seu entorpecente de onde podem esquecer por um instante sua miséria. Mesmo
quando possuem força suficiente para reagir não reagem, preferem sentir-se feridos e articular uma
vingança imaginária do que acionar a reação, do que agir para resolver de imediato.
A descarga de afeto é para o sofredor a maior tentativa de alívio, de entorpecimento, seu involuntariamente ansiado narcótico para tormentos de qualquer espécie. Unicamente nisto, segundo minha suposição, se há de encontrar a verdadeira causação fisiológica do ressentimento, da vingança e quejandos, ou seja, em um desejo de entorpecimento da dor através do afeto3.
Nietzsche concebe a faculdade do esquecimento como uma força ativa, um sinal de saúde,
uma forma de saúde forte, diferentemente de como pensavam os psicólogos contemporâneos dele,
que tinham essa faculdade como uma força inercial, simplesmente passiva e sintoma de debilidade
psíquica. O esquecimento é um tratamento do corpo e da alma, necessário para sustentar uma
determinada “ordem psíquica”. O homem do ressentimento tem uma debilidade nessa área, tem
esse aparelho inibidor danificado, é um homem obstruído, rancoroso, inerte, estancado, preso ao
passado, refém das lembranças, portanto, tem sérias dificuldades com a transmutação das
impressões, enfim, são homens portadores de uma doença, são doentes no sentido mais amplo.
Análogo a um dispéptico, nunca concluem nada. Possuem uma debilidade intestinal, ou seja, sofrem
de uma má digestão. Esquecer para Nietzsche não é simplesmente destruir a impressão, é
transmutá-la em alimento, fazer uma digestão e assim tornar o homem mais forte.
Esquecer não é uma simples vis inertiae [força inercial], como crêem os superficiais, mas uma força inibidora ativa, positiva no mais rigoroso sentido, graças à qual o que é por nós experimentado, vivenciado, em nós acolhido, não penetra mais em nossa consciência, no estado de digestão (ao qual poderíamos chamar “assimilação psíquica”). Do que todo o multiforme processo da nossa nutrição corporal ou “assimilação física”4.
Pode-se dizer que o ressentimento é um certo deslocamento das forças reativas, deste
modo, Deleuze define como o primeiro aspecto do ressentimento na perspectiva nietzschiana, o
aspecto topológico. Deleuze diz que no ressentimento acontece uma invasão dos traços mnêmicos
na consciência, uma subida da memória para dentro da própria consciência. Então, esse
deslocamento das forças reativas obstruem o fluído e a renovação da consciência, assim, o
ressentimento é visto como uma forma doente de existir. O homem do ressentimento possui uma
memória prodigiosa e esta memória está intimamente ligada com seu espírito de vingança. Então,
não conseguindo livrar-se dos traços mnêmicos que estão em sua consciência e impelido por sua
3 NIETZSCHE, Friedrich W. Genealogia da moral. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 116. 4 NIETZSCHE, Friedrich W. Genealogia da moral. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 47.
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impotência, tem na vingança imaginária sua justiça e sua satisfação. O homem do ressentimento é
um homem passivo, ou seja, nele a reação não é acionada, ao invés, é sentida (passivo aqui não é o
contrário de ativo, isso seria reativo. Passivo aqui é aquele cujas reações não são acionadas).
Entretanto, isso não significa que ele seja inofensivo e que sua vingança não se realize.
O esquecimento como força inibidora ativa, impede que os traços mnêmicos invadam e
tomem a consciência, disto resulta: leveza, paz, liberdade e habilidade para criar e vivenciar o novo.
Na criação onde atua uma força plástica, modeladora, ativa, uma vontade de potência afirmativa,
plena de si, está uma expressão de autonomia, de ingenuidade, de inocência, de franqueza própria
da criança de que fala Nietzsche em Assim falou Zaratustra. A criança é esquecimento, espontânea,
ingênua e autêntica. Não tem ressentimentos nem preconceitos morais. Não sofre do passado e
supera a si mesma a cada momento. A criança sempre diz sim para a vida, ela afirma a vida e a
intensifica, ela é uma criação que cria (é autônoma), ela é a única que cria novos valores, ela é artista,
ela é o novo.
Inocência é a criança, e esquecimento, um novo começo, um jogo, uma roda a girar por si mesma, um primeiro movimento, um sagrado dizer-sim. Sim, para o jogo da criação, meus irmãos, é preciso um sagrado dizer-sim: o espírito quer agora sua vontade, o perdido para o mundo conquista seu mundo5.
O homem cuja faculdade do esquecimento é ativa, e para o qual essa atividade é livre, é visto
como um perigo para o convívio social, pelo motivo de sua singularidade ferir a segurança da
equidade que a coletividade exige, o instinto de rebanho está presente entre os membros dessa
coletividade, e esse homem gregário que encontra como subterfúgio a massa, a virtude, e o apelo
moral, supõe a vingança como justiça e aplica a moral como um dos meios para realização de sua
vingança.
O que levou o homem que pode esquecer de ficar marcado pelo passado foram excessos de
crueldade praticados em todos os períodos da história da humanidade, que foram pouco a pouco
domesticando o animal “homem”, então, justamente na crueldade dos castigos mais perversos que
se pode imaginar, está o mecanismo que pôde criar no homem uma memória e daí chegou-se à
razão. Tão louvada e motivo de orgulho, está entranhada nesta crueldade e perversidade onde pôde
ela mesma florescer. O que Nietzsche enfatiza é a hipocrisia do homem do ressentimento; por
exemplo: do judeu, do cristão e do homem moderno, pois, em todas as épocas da história do homem
onde se construiu determinações morais para norteá-los, houve grandes suplícios e martírios por
5 NIETZSCHE, Friedrich W. Assim falou Zaratustra. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 28.
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detrás dessa construção e isso simplesmente é falseado e obscurecido por hipócritas que se utilizam
dessa moral para continuar com as práticas de crueldade na vingança revestida de justiça.
“Grava-se algo a fogo, para que fique na memória: apenas o que não cessa de causar dor fica na memória” – eis um axioma da mais antiga (e infelizmente mais duradoura) psicologia da terra. Pode-se mesmo dizer que em toda parte onde, na vida de um homem e de um povo, existem ainda solenidade, gravidade, segredo, cores sombrias, persiste algo do terror com que outrora se prometia, se empenhava a palavra, se jurava: é o passado, o mais distante, duro, profundo passado, que nos alcança e que reflui dentro de nós, quando nos tornamos “sérios”. Jamais deixou de haver sangue, martírio e sacrifício, quando o homem sentiu a necessidade de criar em si uma memória6.
Já foi visto que o primeiro aspecto do ressentimento é o aspecto topológico, ou seja, quando
há um certo deslocamento das forças reativas. O ressentimento é caracterizado por essa mudança
de lugar das forças reativas, ou seja, quando os traços mnêmicos invadem a consciência, quando a
memória em vez de ficar no inconsciente (profundeza) vai para a consciência (superfície), neste
sentido é que se pode falar de uma subida da memória para a consciência.
Somente quando a memória dos traços encarna o espírito de vingança e faz um trabalho de
acusação perpétua que o ressentimento toma forma e deste modo torna-se então um tipo, e é
justamente isto que compreende o segundo aspecto do ressentimento, ou seja, o segundo aspecto
do ressentimento é o aspecto tipológico que é introduzido pelo aspecto topológico, porém,
intimamente relacionado com o espírito de vingança no sentido que a memória dos traços encarna
o espírito de vingança e só assim é que pode-se dizer que houve um triunfo completo das forças
reativas. Enquanto no aspecto topológico (que seria o estado bruto do ressentimento) tudo se passa
entre as forças reativas, ou seja, quando as forças reativas se furtam a ação das forças ativas por
meio de um determinado desvio, no aspecto tipológico acontece que as forças reativas separam as
forças ativas do que elas podem por meio de uma determinada ficção. Esta ficção seria a inversão
da relação das forças e dos valores correspondentes desta relação, e isto parte da manifestação das
forças reativas e de seu indissociável elemento diferencial, que então provocaria esta projeção
reativa, esta projeção de uma imagem invertida. E isto é o que compreende ficção numa perspectiva
nietzschiana que também não deixa de ser uma ficção de um mundo suprassensível em oposição
com um mundo sensível. O sacerdote é quem daria essa forma ao ressentimento, neste momento
especialmente o sacerdote sob sua forma judaica, ele é “o artista” do ressentimento, operando a
acusação perpétua, propagando a vingança e invertendo os valores pondo a ficção de um deus em
contradição com a vida, como também ao reinterpretar o ressentimento como uma virtude e isto
6 NIETZSCHE, Friedrich W. Genealogia da moral. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 50.
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fica bem claro ao examinarmos as formas e os métodos de como trabalham os sacerdotes nos
seguintes discursos: felizes são os pobres, felizes são os doentes, felizes são os fracos, felizes são os
cansados, felizes são os impotentes, felizes são aqueles que esperam e coisas do tipo que são próprio
do modo de ser vingativo, e neste sentido atacam tudo que se opõe a este modo de existência
miserável, ocorre o que já foi anteriormente exposto nesta presente pesquisa como a inversão do
olhar apreciador do homem do ressentimento, que contrapõe toda riqueza, saúde, força, coragem,
potência, ação, beleza, alegria dentre outros tantos atributos nobres e dotam os possuidores de tais
atributos como os causadores, os culpados de todas suas mazelas e suas misérias que tanto causam
dor e sofrimento. Vitimização é a procura incessante por culpados pelo seu mal-estar, essa é a
reação típica daquele que deprecia todo e qualquer afeto, excitação ou impressão que o atinge, pois
considera-os como algo ameaçadores demais para ele.
Entre eles não falta igualmente a mais nojenta espécie de vaidosos, os monstros de mendacidade que buscam aparecer como “almas belas” e exibem no mercado, como “pureza do coração”, sua sensualidade estropiada, envolta em versos e outros cueiros: a espécie de onanistas morais e “autogratificadores”. A vontade dos enfermos de representar uma forma qualquer de superioridade, seu instinto para vias esquivas que conduzam a uma tirania sobre os sãos – onde não seria encontrada, essa vontade de poder precisamente dos mais fracos7!
Ficou bem claro que o espírito de vingança tem uma relação intrínseca com a memória, que
esse modo de ser vingativo necessita e possui uma prodigiosa memória, que esta prodigiosa
memória é o principal sintoma do espírito de vingança. Este indivíduo está marcado pelo passado,
pois é incapaz de esquecer, não consegue livrar-se dos grilhões que o passado lhe impõe. Este modo
de existência vingativo, pelo que já foi mencionado aqui anteriormente, é impotente diante do
passado, pois não consegue voltar trás e mudar o que aconteceu, portanto, tornou-se refém do
passado, prisioneiro dele, as lembranças nele doem como feridas abertas que nunca cicatrizam. Ele
é um doente neste sentido, pelo fato de ser incapaz de transmutar as impressões ao seu favor, como
faz o nobre que se fortalece com suas impressões, utilizando-as como um alimento. Mas o que faz o
homem do ressentimento em relação a todos os afetos que o atingem? Ele vitimiza-se, culpabiliza
e ataca o objeto de sua vingança.
Para Nietzsche o homem do ressentimento põe sobre a vingança um manto para encobrir
sua face, que é muito indelicada e que pode destruir a imagem de homem bom que ele tem a
intenção de transmitir para os demais, então, para protegê-lo precisamente disso, encobre a
7 NIETZSCHE, Friedrich W. Genealogia da moral. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 113.
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vingança sobre o manto da justiça, tentando deste modo esconder todo o ódio que ele carrega, toda
a ânsia de vingança latente neste ser doloroso e julgador que deprecia para se sentir melhor, pois
relaciona todo seu atraso a um outro sujeito que pode ser mais forte do que ele, entretanto não é
necessário que este sujeito seja mais forte do que ele para que o mesmo seja o objeto de sua
vingança, pois nesta perspectiva do homem do ressentimento trata-se de uma impotência
qualitativa ou típica, portanto, trata-se de como se relaciona as forças de naturezas diferentes no
próprio sujeito (lembrando que são estas forças que o compõem), então, neste sentido observa-se
que é irrelevante a quantidade de força abstrata que possa possuir um ou outro: o que está em
questão aqui é um tipo que é impotente em si, por não conseguir mais acionar suas reações, por ter
um desequilíbrio entre as forças de naturezas diferentes, onde as forças reativas preponderam sobre
as forças ativas.
Eles rodam entre nós como censuras vivas, como advertências dirigidas a nós – como se saúde, boa constituição, força, orgulho, sentimento de força fossem em si coisas viciosas as quais um dia se devesse pagar, e pagar amargamente: oh, como eles mesmos estão no fundo dispostos a fazer pagar, como anseiam ser carrascos! Entre eles encontram-se em abundância os vingativos mascarados de juízes, que permanentemente levam na boca, como baba venenosa, a palavra justiça e andam sempre de lábios em bico, prontos a cuspir em todo aquele que não tenha olhar insatisfeito e siga seu caminho de ânimo tranquilo8.
O ressentimento pode ser entendido como uma doença no sentido que a consciência e a
memória passam por uma disfunção. A consciência que era para estar sempre fresca, renovada para
acolher o novo, ou seja, receptiva às excitações presentes, por uma disfunção, é invadida pela
memória que fixa as excitações de modo indelével na consciência, isto como já foi visto
anteriormente é o primeiro aspecto do ressentimento, o aspecto topológico, já que aqui trata-se de
um deslocamento das forças no que tange à função da memória e da consciência, e a partir daí dá-
se início a um processo de indigestão crônica. O segundo aspecto do ressentimento é o aspecto
tipológico que está relacionado com espírito de vingança e que como já foi visto aqui anteriormente
é somente com a encarnação do espírito de vingança que o ressentido se torna um tipo, o tipo fraco,
o tipo doente, o tipo escravo.
Um homem forte e bem logrado digere suas vivências (feitos e malfeitos incluídos) como suas refeições, mesmo quando tem de engolir duros bocados. Se não “dá conta” de uma vivência, esta espécie de indigestão é tão fisiológica quanto a outra – e muitas vezes, na verdade, apenas uma consequência da outra9.
8 NIETZSCHE, Friedrich W. Genealogia da moral. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 112. 9 NIETZSCHE, Friedrich W. Genealogia da moral. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 119.
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Então, o ressentimento é uma doença do tipo fraco que se define a partir dessa condição
patológica. Esse tipo não possui condições de agir nem de criar e nisto consiste sua miséria. O tipo
fraco, o tipo doente, não transmuta as impressões ao seu favor, não transforma as impressões em
alimento para o tornar mais forte, ao invés, acumula as impressões e sofre da sua indigestão, do seu
enfezamento crônico. Já o forte, o são, o homem que vingou é aquele que sabe cozinhar o acaso,
que sabe transmutar as impressões ao seu favor, que sabe transforma-las em alimento para si
mesmo, tornando-se mais forte com elas, fortalecendo-se em sua vivência.
Um homem que vingou faz bem a nossos sentidos: ele é talhado em madeira dura, delicada e cheirosa ao mesmo tempo. Só encontra sabor no que lhe é salutar; seu agrado, seu prazer cessa, onde a medida do salutar é ultrapassada. Inventa meios de cura para injúrias, utiliza acasos ruins em seu proveito; o que não o mata o fortalece. De tudo o que vê, ouve, e vive forma instintivamente sua soma: ele é um princípio seletivo, muito deixa de lado10.
Para Nietzsche, um corpo enfermo é aquele que está desorganizado hierarquicamente, neste
caso que estamos tratando é justamente nessa disfunção que passam a consciência e a memória na
qual caracteriza o ressentimento como uma doença onde se pode observar uma desarmonia, uma
desorganização hierárquica, então, pode-se concluir que no ressentimento o corpo encontra-se
hierarquicamente desarmônico, e por isto mesmo este corpo está enfermo. O ressentimento é um
influxo, é disfuncional, portanto, consiste aqui em uma forma doente de existir.
Nietzsche na sua obra Ecce Homo, que é uma espécie de autobiografia, na primeira parte,
intitulada “Por que sou tão sábio”, ele esclarece sua própria experiência com a decadência
(décadence), principalmente sobre os anos que esteve bastante enfermo, que segundo ele foi
justamente ali quando sua vitalidade estava mais baixa que ele abandonou o pessimismo e seu
instinto de autorrestabelecimento prevaleceu. Segundo Nietzsche, ele sempre soube escolher os
devidos remédios para suas enfermidades, enquanto o típico decadente sempre escolheu os
remédios que não o curavam e que por sinal agravavam mais ainda sua doença, ou seja, o tornavam
mais doente (a terapêutica do sacerdote ascético). Então, com energia para o absoluto isolamento
e desprendimento das relações habituais, pelo seu instinto de autorrestabelecimento cura a si
mesmo, a condição para isso seria ser no fundo sadio, pois para ele um ser tipicamente mórbido não
pode ficar são.
Tomei a mim mesmo em mãos, curei a mim mesmo: a condição para isso – qualquer fisiólogo admitirá – é ser no fundo sadio. Um ser tipicamente mórbido não pode ficar são, menos ainda curar-se a si mesmo; para alguém tipicamente são, ao contrário, o estar enfermo pode ser até um enérgico estimulante ao viver, ao mais-viver. [...] foi durante os
10 NIETZSCHE, Friedrich W. Ecce homo. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 23.
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anos de minha menor vitalidade que deixei de ser um pessimista: o instinto de autorrestabelecimento proibiu-me uma filosofia da pobreza e do desânimo...”11.
Nietzsche também nessa primeira parte do seu livro Ecce Homo apresenta o fatalismo russo
como o único e o grande remédio para o ressentimento. Um fatalismo sem revolta, sem o desgaste
desnecessário que supõe as reações do ressentimento, ligadas aos instintos doentes, onde há
somente perda de energia e enfraquecimento, uma luta em vão que só leva o homem ao estado de
maior enfermidade ou morte, pois, neste sentido, não adianta em nada a revolta, sendo ela
desnecessária e prejudicial. No fatalismo russo persiste uma prudência, uma lógica prudencial, que
determina uma convalescência, uma desativação do desejo de vingança, não permitir que aquilo a
que está exposto e vulnerável venha a envenenar. Então, o fatalismo russo é uma afirmação do amor
fati nietzschiano, que é para ele a “fórmula para grandeza no homem” (NITZSCHE, 2008, p. 49), um
amor pela vida que se vive, amar o necessário, amar o inevitável, amar o destino.
Estar doente é em si uma forma de ressentimento. – Contra isso o doente tem apenas um grande remédio eu o chamo de fatalismo russo, aquele fatalismo sem revolta, com o qual o soldado russo para quem a campanha torna-se muito dura finalmente deita-se na neve. Absolutamente nada mais a si aceitar, acolher, engolir, – não mais reagir absolutamente... [...] Porque nos consumiríamos muito rapidamente se reagíssemos, não reagimos mais: esta é a lógica. E nenhuma chama nos devora tão rapidamente quanto os afetos do ressentimento12.
Nietzsche enfatiza a urgência de uma renovação cultural, pois, para ele, o mundo há muito
tempo transformou-se em um hospital, em um verdadeiro hospício, visto que os doentes
reproduzem os valores necessários à preservação do seu modo de ser doente, onde os atributos de
fraqueza passam a pautar a cultura, estruturando a conceituação da moral pela positivação dos
atributos de fraqueza. Portanto, é necessário a destruição desse hospício para lograr uma sociedade
que tenha em suas condições de existência muito mais a favorecer às naturezas fortes e plenas, aos
acasos felizes. O modo de transformar esta cultura caduca no sentido que não prioriza os instintos
necessários à própria existência e conservação da vida seria no sentido da criação de valores novos,
na transvaloração de todos os valores de uma cultura decadente. É importante destacar aqui, sem a
intenção de pasteurizar a filosofia de Nietzsche para ser mais acolhida pelo público, que o conceito
nobre, no contexto nietzschiano, não está relacionado de fato com classe social (isto serve apenas
de imagem para fazer uma analogia na exposição do seu pensamento), assim o nobre é quem digere
suas vivências tornando-se mais forte, e com elas segue, criando na sua existência. O nobre é o
11 NIETZSCHE, Friedrich W. Ecce homo. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 23. 12 NIETZSCHE, Friedrich W. Ecce homo. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 28
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artista, é a criança, é o são, é o forte, ou seja, quem tem disposições para viver e intensificar a vida,
criando valores que promovam a vida. O que se refere a aristocracia aqui é como uma atitude ante
a vida e não como privilégio de classe social, raça, cor, sexo, religião, sangue e etc. então, trata-se
de como se relacionam as forças de naturezas diferentes no próprio sujeito. Esse privilégio
hierárquico não é nascer dentro de uma classe social, é ter privilégio hierárquico psicofisiológico, ser
forte o bastante para digerir a vida, tornando-se mais forte com os eventos da vida, cozinhando o
acaso.
REFERÊNCIAS:
DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a Filosofia. Tradução de Ruth Joffily Dias e Edmundo Fernandes Dias. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976. KEHL, Maria Rita. Ressentimento. 4. ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2014. MARTON, Scarlett. Dicionário de Nietzsche. 4. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2016. NIETZSCHE, Friedrich W. A genealogia da moral. Tradução de Mário Ferreira dos Santos. 4. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. NIETZSCHE, Friedrich W. Genealogia da moral. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. NIETZSCHE, Friedrich W. A gaia ciência. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. NIETZSCHE, Friedrich W. Assim falou Zaratustra. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. NIETZSCHE, Friedrich W. Além do bem e do mal. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. NIETZSCHE, Friedrich W. Ecce homo. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
O sentido da reintegração do homem na natureza em Nietzsche, pp. 652-670
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O SENTIDO DA REINTEGRAÇÃO DO
HOMEM NA NATUREZA EM NIETZSCHE
Helly Lucas Barros Crispim1
RESUMO: O presente artigo tem como objetivo principal delimitar o sentido de “naturalização do homem” segundo Nietzsche em Além do bem e do mal § 230 e Gaia Ciência § 109, a partir de uma análise do refinamento da consciência europeia que se inicia a partir da metafísica, passa pela moralidade cristã, chega à ciência moderna e culmina na reavaliação da verdade; momento histórico o qual Nietzsche denomina “morte de Deus”. Conclui-se que a reintegração do homem com a natureza se dá a partir de uma reconciliação da verdade com a natureza, levando a uma superação de oposições e dicotomias; a uma superação de pressupostos metafísicos ocultos o qual Nietzsche denomina ideal ascético. PALAVRAS-CHAVE: Naturalização; Desdivinização ; Perspectivismo; Verdade; Antropomorfismo. ABSTRACT: The main objective of this article is to delimit the meaning of “naturalization of men” according to Nietzsche in Beyond good and evil § 230 and Gay Science § 109, based on an analysis of the refinement of the European consciousness that begins with Metaphysics, passes through Christian Morality, reaches Modern Science and culminates in the Reevaluation of Truth, a historical moment which Nietzsche calls “Death of God”. It is concluded that the reintegration of man with nature occurs from a reconciliation of “truth” with “nature”, leading to an overcoming of oppositions and dichotomies; to an overcoming of hidden metaphysical assumptions which Nietzsche calls ascetic ideal. KEYWORDS: Naturalization; de-deification; Perspectivism; Truth; Anthropomorphism.
1Graduado em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Membro do grupo de estudos Nietzsche (GENi) da UECE.
https://orcid.org/0000-0003-0256-4638
O sentido da reintegração do homem na natureza em Nietzsche, pp. 652-670
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1. INTRODUÇÃO
Christoph Cox2, no início de seu livro Nietzsche: Naturalism and interpretation, afirma que
Nietzsche é comumente reconhecido como “o avô do pós-modernismo”. Em geral, “o pós-
modernismo caracteriza-se pela incredulidade a metanarrativas” (COX, 1999, p. 1), ou melhor, a
deslegitimação de metanarrativas. Essa incredulidade, segundo Cox, é justamente aquilo que
Nietzsche caracteriza como sendo nossa “atual situação histórico-intelectual” (COX, loc. cit.),
marcada pelo que o filósofo alemão entende como “morte de Deus” ou “Niilismo”, em outras
palavras, uma época marcada pela tentativa de superação de interpretações metafísicas ou
teológicas sobre o mundo.
De fato, em seu pequeno ensaio de 1873 “Verdade e Mentira no sentido extra-moral”3,
Nietzsche procura demonstrar como a verdade da essência das coisas em si mesmas é impossível de
alcançar. Aquilo que denominamos como “verdade” não passaria de um conjunto de metáforas e
metonímias, ou seja, um conjunto de relações humanas, antropomorfismos ou extensões do
homem; espécies de mentiras inconscientes, metáforas comuns, impostas pela vida em sociedade4.
O que distinguiria o homem do animal seria o fato de que este tem impressões imediatas do mundo,
ao passo que aquele transforma suas impressões imediatas em esquemas; as coisas no mundo
passam a ser vistas de forma sistematizada, simbolizadas através de “pirâmides”, “graus”, “leis”,
“castas”, etc5. Desse modo, Nietzsche faz uma distinção, que nesse seu texto de juventude o
aproximaria de Kant: a distinção entre a verdade das coisas aparte do homem (a coisa-em-si) e a
verdade antropomorfizada que mais seria “a metamorfose do mundo em homem”6. Como não seria
possível designar a coisa tal como ela é, o conhecimento verdadeiro não seria possível. Nesse
sentido, o homem se utilizaria do conhecimento apenas para coisas práticas, para si, e o
conhecimento não ultrapassaria esse limite. O limite do conhecimento é a vida humana, qualquer
designação sobre elementos da natureza seria uma arbitrariedade; a criação de modelos para
2Cox é atual vice-presidente de assuntos acadêmicos e decano da Hampshire College; autor de diversos livros, professor de filosofia,
critico e curador de arte visual e sonora. Sua obra, Nietzsche: Naturalism and interpretation de 1999, será usada como referência e suporte a muitos posicionamentos presentes neste artigo.
3Escrito um ano após o Nascimento da Tragédia e publicado posteriormente por sua irmã Elizabeth em 1896, quatro anos antes de sua morte, quando Nietzsche já estava mentalmente doente.
4NIETZSCHE, Friedrich. On truth and lies in an extra-moral sense. Trans. Walter Kaufmann et all. passim. Disponível em: <https://oregonstate.edu/instruct/phl201/modules/Philosophers/Nietzsche/Truth_and_Lie_in_an_Extra-Moral_Sense.htm> Acesso em: 02-06-2020 às 18:44.
5Id. op. cit., p. 4-5). 6Id. loc. cit.
O sentido da reintegração do homem na natureza em Nietzsche, pp. 652-670
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explicar os fenômenos da natureza é uma arbitrariedade que funciona apenas para a vida humana,
mas nada diz realmente das coisas; fazer isso é reduzir o mundo ao humano, um antropomorfismo.
No mesmo ensaio mencionado, Nietzsche designa a mentira como “o uso de designações
válidas de palavras para fazer o irreal parecer real”7. Desse modo, da mesma maneira que a mentira,
o homem aparentemente designa corretamente palavras ou sons a objetos na realidade, mas, na
verdade, o que ele cria aí são metáforas e metonímias que passam a ser vistas enquanto o real; o que
os sons e as palavras designam são na verdade “estímulos nervosos”8. Podemos interpretar o
processo da seguinte forma: inicialmente, a linguagem é usada de forma adaptativa, como uma
capacidade de simulação que atinge seu ápice na dissimulação9, no mentir para sobreviver. Na
formação da sociedade, inicia-se um processo de legislação da linguagem, e é a partir daí que se
inicia a distinção entre a mentira e a verdade10. Para preservar a paz do rebanho e evitar a guerra de
todos contra todos – “Bellum omni contra omnes”11 – estabelecem-se as primeiras leis da designação:
a mentira se estabelece a partir da formação do irreal a partir do real; quando um indivíduo se auto-
designa “rico” quando, devido as circunstancias, a correta designação deveria ser “pobre”, esse
indivíduo será julgado pela sociedade como mentiroso, como alguém que não se deve confiar, pois
utiliza-se da linguagem de maneira incorreta12.
No entanto, não havia uma tal percepção no homem, de que não existia outra maneira de se
utilizar da linguagem além desta: a redução da realidade em metáforas a partir da criação de
imagens de estímulos nervosos em forma de sons. Devido a vida curta, o esquecimento fez com que
o homem deixasse de perceber o caráter metafórico de seu mundo, de modo que os significados
ganharam qualidades que não se encontravam na realidade; os significados cada vez mais afastados
da sensibilidade, engendraram “formas”, “substâncias”, “gêneros”, “espécies” etc. Acreditava-se
que a verdade deveria pertencer a um domínio eterno e imutável, absoluto e sem limites, de modo
que o mundo sensível – onde não se encontravam essas tais coisas imutáveis, onde tudo se movia,
onde nada permanecia – se tornaria um mundo produtor de falsidades e aparências. Isso marcou o
início do pensamento filosófico ocidental, em outras palavras, marcou a primeira fase da Consciência
Europeia.
7Id. op. cit., p. 2. 8NIETZSCHE, Friedrich. On truth and lies in an extra-moral sense. Trans. Walter Kaufmann et all., p. 2 e 7 Disponível em:
<https://oregonstate.edu/instruct/phl201/modules/Philosophers/Nietzsche/Truth_and_Lie_in_an_Extra-Moral_Sense.htm> Acesso em: 02-06-2020 às 18:44.
9Id. op. cit., p. 1 10Id. op. cit., p. 2 11Loc. cit. 12Idem.
O sentido da reintegração do homem na natureza em Nietzsche, pp. 652-670
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Destarte, a Consciência Europeia se preparava para enfrentar uma de suas mais radicais fases,
“a Morte de Deus”, na qual seguiria um caminho de superação da verdade; uma autossuperação de
seus próprios pressupostos: da metafísica platônica, à teologia cristã, à ciência empírica e
finalmente, culminando numa reavaliação da verdade. Esse momento significaria uma possibilidade
de reintegração do homem na natureza, que outrora fora concebida como antagonista, arrancada
do homem por ele mesmo, pelas suas próprias significações, pelas suas próprias ilusões metafísicas.
Faremos nossa investigação a respeito do sentido da reintegração do homem na natureza,
segundo Nietzsche, a partir dos seguintes pontos: Em primeiro lugar, vamos tratar sobre o evento
da morte de Deus, em segundo trataremos do conceito de naturalização e, por fim, trataremos do
que se entende como reavaliação da verdade.
2. O EVENTO DA MORTE DE DEUS.
No aforisma 343 do Livro V da Gaia Ciência, cujo o título é bastante sugestivo: “O sentido de
nossa jovialidade [heiterkeit]13”, Nietzsche descreve uma certa disparidade no pensamento dos
homens causada por esse evento histórico da humanidade denominado “morte de Deus”. De um
lado, o “velho mundo”, de outro, a jovialidade de um “novo mundo”, onde uma velha certeza dava
lugar a uma nova suspeita: “Uma velha e profunda confiança parece ter se transformado em dúvida
[…], o velho Deus morreu, nos sentimos como iluminados por uma nova aurora […], o mar, o nosso
mar, está novamente aberto e provavelmente nunca houve tanto ‘mar aberto’”. (NIETZSCHE, 2001,
p. 208). Segundo Cox (1999, p. 16-19), esta passagem indicaria que Nietzsche estaria se tratando de
um evento que ocorreria na história da humanidade e não simplesmente expressando um certo
ateísmo ao se tratar da “morte de Deus”. O aforisma também indica um certo retorno à jovialidade,
onde o mundo anterior aquele evento se apresenta “cada dia mais crepuscular, mais desconfiado,
mais estranho, ‘mais velho’” (NIETZSCHE, 2001, p. 207).
Vários questionamentos podem se insurgir a partir da leitura do mencionado aforisma: a que
se refere o “velho mundo” e a que se refere o “novo mundo”? Qual é o seu divisor de águas, o
elemento capaz de separá-los?
13Heiterkeit é traduzido para o inglês como “Happiness”, “cheer”, “cheerfulness” ou “joy”; vem da junção do adjetivo alemão “heiter”
+ o sufixo “keit”. O adjetivo “Heiter”, é traduzido para o português como “alegre”; vem do proto-alemão “Haidraz” que pode significar “brilho” ou “claro”. É interessante, e ao longo deste artigo poderemos observar, como Nietzsche faz uso metafórico dos contrastes entre o “Quente” e “Frio” - ou “Gélido”; o “alegre” e “mórbido”; “velho” e “jovial”, para comparar o pensamento ocidental anterior ao evento da morte de deus com o do advento de uma nova maneira de pensar da qual ele se mostra revelador.
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Segundo Cox (1999, p. 18-19), no que se refere ao divisor de águas, trata-se de um
refinamento do pensamento Europeu. Esse refinamento, levou “a autossuperação da metafísica, da
teologia, da moralidade cristã e da ciência em direção a uma reavaliação da verdade” (op. cit., p. 19
tradução nossa), o “velho mundo” seria o mundo anterior àquele que agora se questiona pela própria
noção de verdade. A escola eleática compunha os primeiros pensadores a separarem dois domínios:
o domínio do ser e o domínio da aparência; o primeiro era o domínio da verdade: imutável, absoluta
e universal, onde não havia movimento; O segundo era o domínio do movimento: do particular e do
mutável. Esses filósofos perceberam que ao olhar o mundo ao seu redor viam que nada permanecia:
as coisas apareciam e desapareciam, os corpos mudavam qualitativamente, as coisas eram vistas de
forma diferente a partir de pontos de visão diferentes, os seres humanos possuíam opiniões distintas
sobre um mesmo tópico, “o que o olho via a mão não sentia” (Cox. loc. cit.) etc. Para eles, a verdade,
não poderia existir num tal domínio; então, o mundo sensível passou a ser o domínio das aparências
e das opiniões, ao passo que o mundo intelectual, passou a ser o mundo das formas imutáveis, das
quais as coisas são apenas cópias. Essa noção de verdade, encabeçada por Platão, casou-se com a
noção de verdade cristã que a moralizou, de tal forma que buscar a verdade não era mais apenas
buscar as coisas no mundo metafísico, mas falar a verdade, agir conforme a verdade. Assim nasceu
a Consciência Europeia14, ou “integridade intelectual” que passou a se chamar de “honestidade”15. O
refinamento de tal consciência requeria que “as próprias crenças, convicções e ideias fossem
rigorosamente testadas”16, fazendo a transição no pensamento europeu de um dogmatismo a um
ceticismo, até que passasse a questionar a própria metafísica herdeira de Platão, as “ideias inatas”
dos racionalistas e finalmente o Deus cristão, tornando-as coisas indemonstráveis. Esse
agnosticismo, encaminhado sobretudo por Kant, marca a transição da consciência cristã para uma
consciência científica no pensamento ocidental, levando ao abandono da Metafísica e da Teologia
Cristã; a preocupação passava a ser com o mundo natural a partir da investigação empírica.
Com efeito, a partir da análise de Cox (1999), exposta anteriormente, podemos perceber que
ocorreu no pensamento Ocidental um retorno à busca pela verdade a partir do mundo que
anteriormente havia sido caracterizado como um mundo aparente, portanto falso ou enganador, e
que a verdade deveria estar fora dele, numa dimensão onde haveria possibilidade de imutabilidade,
universalidade e necessidade. Contudo, como o próprio Cox analisa, a consciência científica que
14Cf. NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras. 2001., p. 227-231 15COX, CHRISTOPH. Nietzsche: Naturalism and Interpretation. Berkeley: University of California Press. 1999. p. 45. 16NIETZSCHE, op. cit., p. 20-21.
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substituiu esse pensamento, não abandonou completamente o ideal ascético17 dele característico,
muito menos triunfou sobre Deus. Esse ideal ascético seria o responsável por caracterizar a verdade
como um valor absoluto e incondicional sobre o mundo18.
No aforismo 344 da Gaia Ciência, com o título “Em que medida também nós ainda somos
devotos”, Nietzsche descreve que a Ciência, ao mesmo tempo em que não admite convicções – que
estas devem antes “se rebaixar a modestas hipóteses e pontos de vista experimentais para que
possam ser tratas com seriedade” – mantém ainda uma convicção “tão imperiosa e absoluta, que
sacrifica a si mesma todas as demais convicções”19. Trata-se da convicção de que “nada é mais
necessário do que a verdade, e em relação a ela tudo o mais é de valor secundário”20: a convicção de
que as próprias convicções, os pontos de vista fisiológicos nascidos do instinto ou da vontade, devem
deixar de ser convicções para que possam adquirir valor científico, ainda que meramente
hipotéticos, a serem testados. Nietzsche denomina tal convicção de “vontade de verdade”, e lança
duas hipóteses para o seu surgimento: Seria a vontade de não se deixar enganar? – ou seja, teria
razões pragmáticas – ou seria a vontade de não enganar, inclusive a si mesmo? – onde teria razões
morais. Nietzsche rejeita a primeira hipótese mostrando que ela pressupõe um entendimento sobre
a existência tal que comprovasse a vantagem da desconfiança sobre a confiança incondicional;
como não há tal entendimento, não é possível que as razões para a vontade de verdade firmem-se
no pragmatismo. Além disso, afirma que, na existência, tanto a confiança incondicional quanto a
desconfiança, se mostram necessárias; diz ainda que “justamente essa convicção (do valor
incondicional da verdade) não poderia surgir, se a verdade e a inverdade continuamente se
mostrassem úteis: como é o caso”,21 afinal, em sua vida diária, o homem se utiliza de ambas. Restaria
então a origem moral dessa convicção. Nietzsche então compara a pergunta “Para que ciência” com
a pergunta “Para que moral” ao mesmo tempo em que tenta demonstrar que tanto a vida, quanto a
natureza e a história são “imorais”, e que “a vida sempre se mostrou ao lado dos homens mais
inescrupulosos”.22 Dessa forma, Nietzsche compara o pensamento científico positivista, que busca
a verdade a qualquer custo, com a antiga e supostamente superada moral cristã; a Consciência
Europeia se desvela, é o que pode-se observar a partir do trecho a seguir:
17Cf. NIETZSCHE, Friedrich. On the Genealogy of Morality. Trans. Carol Diethe. Cambridge Texts in the History of Political Thought.
Cambridge University Press. 2007., p. 68-120. 18Cf. NIETZSCHE. loc. cit. 19NIETZSCHE, op. cit. 2001., p. 208. 20NIETZSCHE, op. cit. 2001., p. 209. 21NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras. 2001., p. 209. 22Id. op. cit. p. 210.
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Não há dúvida, o homem veraz, no ousado e derradeiro sentido que a fé na ciência pressupõe, afirma um outro mundo que não o da vida, da natureza e da história; e, na medida em que afirma esse “outro mundo” – não precisa então negar a sua contrapartida, este mundo, nosso mundo?… Mas já terão compreendido aonde quero chegar, isto é, que a nossa fé na ciência repousa ainda numa crença metafísica – que também nós, que hoje buscamos o conhecimento, nós, ateus e antimetafísicos, ainda tiramos nossa flama daquele fogo que uma fé milenar acendeu, aquela crença cristã, que era também a de Platão, de que Deus é a verdade, de que a verdade é divina…23
Como podemos ver, o advento da ciência empírica não marcaria o evento da morte de Deus,
muito pelo contrário, a Ciência carrega em si, de maneira ainda mais sutil, o ideal ascético24, que
deveria ser superado, como diz Nietzsche, na terceira dissertação da Genealogia da Moral:
Não! Não me venha com ciência enquanto procuro o antagonista natural do ideal ascético, enquanto pergunto: “Onde está a vontade oposta na qual o seu ideal oposto se expressa?”. A ciência não é suficientemente independente para isso, em todos os aspectos necessita primeiramente de um valor-ideal, poder ideal de criação de valor, em cujo serviço possa acreditar em si mesma – a ciência em si mesma nunca cria valores. Sua relação com o ideal ascético certamente ainda não é inerentemente antagônica; de fato, é muito mais o caso, em geral, de ainda representar a força motriz na evolução interna desse ideal.25
Destarte, como podemos ver, o “novo mundo” mencionado no início – a “aurora” que ilumina
a consciência europeia – ainda não estaria presente no pensamento científico moderno. De fato,
Nietzsche expressa bem esse pensamento no famoso aforisma 125 da Gaia Ciência, onde narra um
pequeno conto, em que um homem louco vai a um mercado perguntar as pessoas do local onde está
Deus. Muitos descrentes, ateus, que ali estavam, acham graça do homem e zombam dele. O homem
louco então, provoca olhares de espanto e silêncio ao anunciar que Deus havia morrido e que o
homem era o responsável por sua morte; põe-se então a descrever uma situação de niilismo, de
ausência de valores causada por conta da morte de Deus. A partir desse cenário que acaba de
descrever, o homem louco pronuncia as seguintes palavras:
Nunca houve um ato maior – e quem vier depois de nós pertencerá, por causa desse ato, a uma história mais elevada que toda a história até então! […] eu venho cedo de mais […] não é ainda meu tempo. Esse acontecimento enorme está a caminho, ainda anda: não chegou ainda aos ouvidos dos homens26.
Os descrentes presentes no mercado, os ateus, eram homens que supostamente já haviam
superado a Metafísica e a Teologia Cristã: eram homens modernos, eram homens da ciência.
23Idem. 24De fato, Nietzsche afirma que a Ciência é o melhor aliado do ideal ascético: “No! – open your eyes! – this ‘modern science’ is, for the
time being, the best ally for the ascetic ideal, for the simple reason that it is the most unconscious, involuntary, secret and subterranean”. (NIETZSCHE, 2007. p. 114).
25NIETZSCHE, Friedrich. On the Genealogy of Morality. Trans. Carol Diethe. Cambridge Texts in the History of Political Thought. Cambridge University Press. 2007., p. 113.
26NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras. 2001., p. 138.
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Contudo, eles ainda não estavam cientes do que ainda viria a acontecer, de que haveria também
uma autossuperação dos pressupostos da ciência, de que estes passariam também a ser
questionados pela própria consciência europeia; de que a verdade, enquanto um valor incondicional,
seria reavaliada, seria posta a prova. “A vontade de verdade precisa de uma crítica – vamos definir
nossa incumbência com isso –, o valor da verdade deve ser posto provisoriamente em questão…”27.
Antes de tratarmos do desenvolvimento dessa reavaliação da verdade, que corresponderia
a fase efetiva do evento da morte de Deus, nos é mister tratar anteriormente do conceito de
naturalização do homem, cuja a delimitação do sentido é o tema principal deste artigo.
3. O CONCEITO DE NATURALIZAÇÃO DO HOMEM Iniciaremos nossa investigação sobre o conceito de naturalização do homem a partir da
análise do seguinte aforisma de Além do Bem e do Mal:
Retraduzir o homem de volta à natureza; triunfar sobre as muitas interpretações e conotações vaidosas e exaltadas, que até o momento foram rabiscadas e pintadas sobre o eterno texto homo natura; fazer com que no futuro o homem se coloque frente ao homem tal como hoje, endurecido na disciplina da ciência, já se coloca frente a outra natureza, com intrépidos olhos de Édipo e ouvidos tapados como os de Ulisses, surdo às melodias dos velhos, metafísicos apanhadores de pássaros, que por muito tempo lhe sussurraram: “Você é mais! É superior! Tem outra origem!”28
Há vários elementos interpretativos nesse trecho, dos quais gostaríamos de destacar os
seguintes: “interpretações e conotações vaidosas e exaltadas”, “o eterno texto homo natura”, “os
velhos metafísicos apanhadores de pássaros”.
Frente ao que foi exposto na seção anterior, não nos é difícil perceber a quem Nietzsche se
refere como “velhos metafísicos apanhadores de pássaros”; aqui, certamente, ele faz referência aos
primeiros filósofos, os correspondentes ao “velho mundo” anterior ao evento da “Morte de Deus”.
Destes podemos destacar os Eleátas; suas concepções e interpretações sobre o mundo, seriam
“vaidosas e exaltadas” pois eram elas que “sussurraram” aos ouvidos dos homens “Você é mais! É
superior! Tem outra origem!”; Nietzsche está se referindo as interpretações sobre a natureza
pautadas pelo ideal ascético, pelo valor incondicional da verdade, aquele que separou o mundo
“aparente” do mundo “real”, como vimos na seção anterior. Esses primeiros filósofos não poderiam
estabelecer que o domínio da verdade era o domínio do mundo físico e sim o domínio metafísico.
27Id. On the Genealogy of Morality. Trans. Carol Diethe. Cambridge Texts in the History of Political Thought. Cambridge University
Press. 2007., p. 113. 28Id. Além de Bem e Mal. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras. 1992., p. 124. Ver também: NIETZSCHE,
2001, p. 127: “Quando teremos desdivinizado completamente a natureza? Quando poderemos começar a naturalizar os seres humanos com uma pura natureza, de nova maneira descoberta e redimida?”
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Isso teria afastado o homem da natureza, teria feito com que o “Eterno texto homo natura”, que
corresponde as relações de sentido entre o homem e a natureza, fosse “rabiscado e pintado” de
modo que essas relações fossem observadas como se tivessem outra proveniência; todas as
metáforas criadas pelo homem sobre a natureza teriam ganhado independência, de tal modo que o
homem não mais as reconhecia como suas próprias criações. O mundo humano não seria nada mais
do que a produção de sentido sobre a natureza, de modo que os estímulos físicos do homem,
capazes de apreender as coisas ao seu redor, são representados através de sons, pela linguagem;
tudo o que o intelecto humano produz sobre a natureza não é nada mais do que metáforas de
metáforas e metonímias de metonímias.
Em verdade e mentira no sentido extra-moral, o qual analisaremos a seguir, Nietzsche
desenvolve com afinco sua interpretação sobre o caráter metafórico do intelecto humano, caráter
este que proporciona ao homem a capacidade, a partir do esquecimento, de torna o mundo uma
extensão de si mesmo.
No referido ensaio, Nietzsche inicialmente descreve o homem e sua racionalidade, na
contramão do que era de costume: o homem e seu intelecto são ínfimos em comparação com o
universo e sua imensidão29. Além de seu ínfimo caráter, Nietzsche demonstra também a soberba de
um ser que se acha superior a tudo e a todos os outros animais, de modo que “[…] se pudéssemos
nos comunicar com o mosquito, saberíamos que ele flutua no ar com a mesma presunção, sentindo
em si o centro voador do mundo”.30
Segundo Nietzsche, a importância do intelecto humano não ultrapassaria o limite da vida
humana; no entanto, o homem se engana do valor da existência sua, e da própria racionalidade, pela
altivez gerada pelo conhecimento. Isso ocorre por duas razões concomitantes: o esquecimento, e o
próprio efeito do intelecto. Segundo Nietzsche, o efeito mais universal do intelecto é o engano;
engana-se sobre o valor do homem, sobre o próprio conhecimento humano e até mesmo sobre as
coisas mais simples aparentemente conhecidas, como por exemplo as simples coisas ao redor.
Quanto a origem do intelecto humano, Nietzsche afirma que este surge no homem, fraco e
delicado frente a outros animais, como uma forma de manter sua existência;31 sem garras ou presas,
29NIETZSCHE, Friedrich. On truth and lies in an extra-moral sense. Trans. Walter Kaufmann et all. p. 1 Disponível em:
<https://oregonstate.edu/instruct/phl201/modules/Philosophers/Nietzsche/Truth_and_Lie_in_an_Extra-Moral_Sense.htm> Acesso em: 02-06-2020 às 18:44.
30Id. loc. cit. Tradução nossa. 31NIETZSCHE, Friedrich. On truth and lies in an extra-moral sense. Trans. Walter Kaufmann et all. p. 1 Disponível em:
<https://oregonstate.edu/instruct/phl201/modules/Philosophers/Nietzsche/Truth_and_Lie_in_an_Extra-Moral_Sense.htm> Acesso em: 02-06-2020 às 18:44.
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os seres humanos se preservam com o intelecto pela capacidade de simulação (de certo modo,
quase como uma modelagem; uma manipulação), que se expressa em engano, bajulação etc.
Segundo o filósofo, em geral, seres mais fracos desenvolvem essa habilidade e no homem ela
alcançaria seu pico32. O homem, com seu intelecto, sem o perceber, está mais interessado na
mentira do que na verdade, o homem olha para a superfície e vê “formas”, sem o perceber, acaba
focando mais em seus próprios estímulos (subjetividade) do que na coisa em si. A Mentira é descrita
por Nietzsche, como uma falsa designação, quando um indivíduo designa a si mesmo como “rico”
numa situação em que a designação correta seria “pobre”33. A exemplo de Platão, da mesma forma,
ao olhar para a superfície das coisas, ele as designa como “cópias” das formas, sendo estas últimas,
uma designação linguística que carrega um conceito advindo de um estímulo; o homem concebe
este estímulo e aquele conceito como o real, impondo-o por cima da coisa em si, ou seja, o homem
mente para si mesmo sem o perceber. O homem está preso no horizonte da consciência; “Esta, o
afasta de coisas como o intestino e a circulação sanguínea”, diz Nietzsche34. A consciência humana
é ao mesmo tempo, orgulhosa e enganosa: ao olhar além do horizonte orgulho e enganoso de sua
consciência, o homem poderá encontrar um ser ambicioso, impiedoso, ignorante ao ponto de
desejar a própria ignorância de si mesmo e das coisas que lhe desagradam no mundo, assim, o
conhecimento do homem, é bastante seletivo, mesmo que inconscientemente.
De uma maneira um pouco diferente de outros de seus futuros textos, no referido ensaio,
Nietzsche descreve a origem da vontade de verdade com outra roupagem. Vimos que em Gaia
Ciência § 344, Nietzsche rejeita que tal vontade seria oriunda do pragmatismo, e que sua base é
moral. Em Verdade e mentira no sentido extra-moral, escrito bem anteriormente, mantendo ainda a
base moral da origem da vontade de verdade, Nietzsche acentua também um certo caráter
pragmático: O anseio pela verdade advém de um pacto de paz entre os homens a fim de superar os
conflitos e preservar sua sobrevivência, desse modo, o anseio pela verdade advém do instinto de
rebanho, como uma consequência dele. Ocorre da seguinte forma: as primeiras regras da verdade
se iniciam pelo uso adequado das palavras para cada situação, se o mal uso dessas palavras acarretar
em prejuízo para o rebanho, o infrator será tachado de “mentiroso” ou “caluniador”. É a partir daqui
que aparecem os contrastes entre a verdade e a mentira35. De posse desse raciocínio, Nietzsche
32Id, loc. cit. 33Id, op. cit., p. 2 34Idem. 35NIETZSCHE, Friedrich. On truth and lies in an extra-moral sense. Trans. Walter Kaufmann et all. p. 2. Disponível em:
<https://oregonstate.edu/instruct/phl201/modules/Philosophers/Nietzsche/Truth_and_Lie_in_an_Extra-Moral_Sense.htm> Acesso em: 02-06-2020 às 18:44.
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infere que o homem está mais preocupado com os efeitos negativos do engano do que com o
engano em si36. Tais efeitos negativos têm causa social: para preservar a paz do rebanho, as
designações que foram fixadas convencionalmente devem ser obedecidas, tendo como penalidade
a exclusão do infrator. Um processo que se inicia a partir de uma base pragmática (para aumentar
sua sobrevivência no rebanho) e se estende para uma base moral, a partir do esquecimento; a
própria vida curta do homem faz com que suas designações convencionadas ganhem o aspecto de
“verdade”37. Segundo Nietzsche, haveria duas maneiras de se produzir uma verdade: através de uma
tautologia ou através de ilusões tomadas como verdade;38 pode ser que inicialmente algo fosse
percebido como ilusório e posteriormente foi tomado como verdadeiro como consequência do
esquecimento.
Ao tratar sobre o conteúdo dessa verdade, Nietzsche inicialmente trata da linguagem;
descreve as palavras como estímulos nervosos traduzidos em sons.39 Assim, infere-se uma causa
externa (os sons), revelando uma certa irracionalidade na aplicação das palavras: diz-se que x tem
uma causa y externa, ou seja, que não faz parte do mesmo horizonte de eventos; o estímulo nervoso
que sinto, e que denomino sonoramente como “dor” passa a ser identificado como um som, mas de
fato, o que sinto não é “dor” e sim um estímulo nervoso o qual denomino “dor”. Assim, as palavras
são subjetivas, um exemplo disso é o uso dos artigos definidos ou indefinidos, ou quando
designamos uma coisa como “masculino” ou “feminino”; o mesmo ocorre quando muitas vezes
damos preferência a uma propriedade em detrimento de outras “que podem ser mais exclusivas de
uma determinada coisa”.40 Dizer que a pedra é “dura” ou “pesada” é algo completamente subjetivo41
e advindo de um estímulo: não é a “verdade” que determina o sentido das palavras ou mesmo sua
origem, mas a designação sonora de um estímulo. O propósito da linguagem não é o de tangenciar
a coisa-em-si; como tal ela deve ser independente de nossas experiências – está na própria definição,
é “coisa-em-si”, e não, “coisa-para-mim” – nesse sentido a linguagem estaria mais distante das
coisas que de nossos próprios estímulos. A linguagem serve para lidar com relações-para-o-homem;
ela tem utilidade prática e não teórica. Tal característica das palavras caracteriza uma metáfora: uma
metáfora diz que A é B, sendo B pertencente a uma categoria distinta de existência. Em nosso caso,
A é um estímulo físico e B é uma representação sonora embutida em uma palavra. “O misterioso X
36Id, loc. cit. 37Id. op. cit., p. 4. 38Id. op. cit., p. 3. 39Idem. 40Idem. 41Idem.
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de uma coisa, primeiramente aparece como um estímulo nervoso, depois como uma imagem e
finalmente como som” (NIETZSCHE, idem); um processo que requer várias metáforas. Nesse
sentido, o material usado pelo filósofo ou cientista não vem da lógica, muito menos da essência das
coisas; vem de uma capacidade motora42 do ser humano possivelmente pelo uso da memória, que
parte de uma simples manipulação de objetos percebidos pelo seu corpo até evoluir para uma
complexa manipulação de conceitos e palavras43, referenciados a um estímulo provocado por um
determinado objeto, em outras palavras, uma série de metáforas, as quais Nietzsche denomina de
“relações humanas”44: elas são extensões do homem, antropomorfismos45. Nietzsche descreve
dois exemplos para ilustrar o caráter metafórico da linguagem: O primeiro é o de uma pessoa surda
que olha para as figuras sonoras de Chladni46 achando que agora compreenderia o que é o som, mas
estaria enganada47. Outro exemplo é o do pintor sem braços que deseja expressar uma imagem de
sua mente em uma música, substituindo a esfera das imagens pela esfera dos sons48.
Ao tratar sobre os conceitos, Nietzsche os descreve como aquilo cuja a origem é a igualdade
do que não é igual49, em outras palavras, uma abstração das diferenças. Uma única palavra descreve
coisas semelhantes, não há igualdade na natureza, apenas semelhança; assim nasce um conceito50.
A partir do esquecimento das diferenças, cria-se a ilusão de que o conceito remete a algo que é igual
e imutável, percebe-se as diferenças na natureza e inverte-se a realidade; o diferente passa a ser
42Ver nota seguinte. 43Em forma de esclarecimento, Nietzsche não descreve o fenômeno em questão a partir da noção de “capacidade motora” nesse
ponto a interpretação é nossa. Dizemos: o homem inicialmente desenvolve a linguagem a partir da manipulação de objetos externos; a linguagem é inicialmente motora, o mecanismo vai se desenvolvendo e se tornando complexo, até alcançar o nível de manipulação de símbolos que carregam sentidos, conceitos etc. Disso advém a inferência e o raciocínio lógico, nem estes símbolos muito menos a maneira como são percebidos os objetos na linguagem motora são a imagem do mundo tal como ele é, mas uma maneira propriamente humana de vê-las.
44NIETZSCHE, Friedrich. On truth and lies in an extra-moral sense. Trans. Walter Kaufmann et all. Disponível em: <https://oregonstate.edu/instruct/phl201/modules/Philosophers/Nietzsche/Truth_and_Lie_in_an_Extra-Moral_Sense.htm> Acesso em: 02-06-2020 às 18:44.
45A exemplo destas relações humanas e antropomorfismos, Nietzsche descreve a ciência e a matemática como formas de conhecimento do próprio homem, respectivamente:
a) “Operamos somente com coisas que não existem, com linhas, superfícies, corpos, átomos, tempos divisíveis, espaços divisíveis – como pode ser possível a explicação, se primeiro tornamos tudo imagem, nossa imagem! Basta considerar a ciência a humanização mais fiel possível das coisas, aprendemos a nos descrever de modo cada vez mais preciso, ao descrever as coisas e sua sucessão.” (NIETZSCHE, 2001, p. 131).
b) “Vamos introduzir o refinamento e o rigor da matemática em todas as ciências, até onde seja possível, não na crença de que por essa via conheceremos as coisas, mas para assim constatar nossa relação humana com as coisas. A matemática e apenas o meio para o conhecimento geral e derradeiro do homem.” (NIETZSCHE, 2001, p. 162).
46“O cientista alemão Ernst Chladni foi um dos pioneiros da acústica experimental. Sua pesquisa sobre diferentes tipos de vibrações serviu de base para a compreensão científica do som que surgiu mais tarde no século XIX”. (Cf. URL: <https://americanhistory.si.edu/science/chladni.htm> Acesso em: 02-06-2020 às 19:51.
47NIETZSCHE, op. cit., p. 3. 48Id, op. cit., p. 6. 49Id, op. cit, p. 3. 50Nietzsche retoma este mesmo raciocínio no aforisma 111 da Gaia Ciência: “[…] a tendência predominante de tratar o que é
semelhante como igual – uma tendência ilógica, pois nada é realmente igual – foi o que criou todo fundamento para a lógica.” A este respeito, vale conferir todo o aforisma.
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uma cópia, uma ilusão, uma imagem imperfeita das “formas”; o real se torna a forma; a metáfora
ganha status de realidade.
Como foi dito, a noção de verdade se torna possível a partir do esquecimento da origem
metafórica dos conceitos e sentidos das palavras. Nietzsche compara isso com as moedas que
perdem sua imagem (sua metaforicidade) mas que continuam a ser usadas comercialmente51. O
sentido de naturalização do homem, o qual buscamos delimitar, se mostra a partir desse ponto:
significa trazer de volta as imagens que não se afastam da sensibilidade; quando as metáforas se
tornam rígidas (gélidas), elas se afastam da sensibilidade (do quente)52, deve-se então reconhecer o
caráter metafórico da linguagem e usá-lo como tal. Nietzsche descreve esse distanciamento da
sensibilidade a partir de exemplos semelhantes ao seguinte53: “Isto é um pato”, “Um pato é um
pássaro”; veja que a metáfora se torna rígida e se separa do sensível. Pássaro passa a ser o som
designado para uma classe e não mais para um indivíduo; quando dizemos “este ser é um pássaro”
estamos indicando que o ser faz parte de uma classe, da qual, vários outros seres tomados como
indivíduos também fazem parte. Seres racionais trabalham com conceitos mais apolíneos, conceitos
mais gélidos e distantes da sensibilidade; com as metáforas esquecidas de sua natureza metafórica
e apreendidas enquanto realidade. A metáfora, por sua vez, tomada enquanto tal, gera conceitos
dionisíacos, mais próximas da dimensão psicofisiológica do homem; trata-se de uma questão de
percepção da própria metáfora.
Com efeito, diante do que foi exposto, retomemos nossa investigação a respeito da
reavaliação da verdade; evento anunciado por Nietzsche como a morte de Deus; momento em que,
no nosso entendimento, há uma proposta de redefinir a verdade anteriormente separada da
natureza a partir da metafísica de volta para a natureza; para o mundo do vir-a-ser, da eterna
mudança, constituindo assim o sentido da reintegração do homem na natureza, sua naturalização54:
“triunfar sobre as muitas interpretações e conotações vaidosas e exaltadas, que até o momento
foram rabiscadas e pintadas sobre o eterno texto homo natura” (NIETZSCHE, 1992., p. 124).
4. A REAVALIAÇÃO DA VERDADE
Nesse ponto, precisamos parar e reservar um tempo para refletir. A própria ciência agora precisa de uma justificativa (o que não significa dizer que exista alguma). Nessa questão, volte-se para as mais antigas e mais modernas filosofias: todas elas não têm consciência de
51Idem. 52Idem. 53Id. op. cit. p. 6-7. 54Cf. NIETZSCHE, 2001, p 126-127 “Guardemo-nos”, onde há uma relação entre o termo Naturalizar e Desdivinizar.
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até que ponto a vontade de verdade em si precisa de uma justificativa, eis uma lacuna em toda filosofia – como isso acontece? Porque o ideal ascético tem dominado até agora toda a filosofia, porque a verdade foi estabelecida como um ser, como Deus, como a mais alta autoridade em si mesma, porque a verdade não estava autorizada a ser um problema. Compreende esse “autorizada”? – Desde o momento que a fé no Deus do ideal ascético é negada, há também um novo problema: o do valor da verdade. – A vontade de verdade precisa de uma crítica – vamos definir nossa incumbência com isso –, o valor da verdade deve ser posto provisoriamente em questão…55
Como discutimos na segunda seção do presente artigo, segundo Nietzsche, a Ciência ainda
não teria superado o ideal ascético; a vontade de verdade. O “novo mundo”, com sua jovialidade,
ainda não havia sido desbravado. A ciência moderna fazia parte ainda da transição do “velho mundo”
para o “novo mundo”, pois esta foi a primeira a trazer de volta o mundo físico como ponto de partida
para o desvelamento da verdade; o descobrimento da natureza sem a Metafísica ou a Teologia, mas
ainda, com pressupostos metafísicos, com uma fé metafísica inconsciente e oculta; uma tácita visão
teleológica sobre funcionamento da natureza e dos organismos presente no mecanicismo, na noção
de “preservação da espécie”, numa certa teleologia presente na teoria da evolução e na Biologia; o
ideal positivista dos “fatos” e “obervações desinteressadas” que se punham a procurar
“necessidade”, “leis”, “padrões”, “Atomismo”, “Equilibrium”56. Assim, permanecia na ciência a antiga
dicotomia que separava o mundo do vir-a-ser do “outro mundo”, do incomprovável, onde habitavam
o “estático”, o “duradouro”; onde existiam coisas ou estados isolados.57
Naquele momento, conforme podemos observar a partir da leitura do trecho acima, a
verdade ainda não havia sido posta em questão; a verdade ainda não estava “autorizada” a ser um
problema. Vejamos a seguir outro trecho em que Nietzsche expõe com clareza esse raciocínio:
Exceto pelo ideal ascético: o homem, o homem animal, não tinha sentido até então. Sua existência na terra não tinha propósito; "Para que serve o homem, na verdade?"- era uma pergunta sem resposta; não havia vontade para o homem e para a terra; por trás de todo grande destino humano soava o refrão ainda mais alto "Em vão!" Isto é o que o ideal ascético significava: algo estava faltando, havia uma imensa lacuna em torno do homem - ele próprio não conseguia pensar em nenhuma justificativa, explicação ou afirmação, ele sofria do problema referente ao seu sentido. Outras coisas também o fizeram sofrer, no geral ele era um animal doentio: mas o sofrimento em si não era problema dele, pelo contrário, o fato de não haver resposta para a pergunta que ele bradava: ‘Sofrendo pelo quê?’ O homem, o animal mais corajoso e mais propenso a sofrer, não nega o sofrimento como tal: ele o quer, ele até o procura, desde que lhe seja mostrado sentido para isso, um propósito para sofrer. A falta de sentido do sofrimento, não o sofrimento, foi a maldição que até agora cobriu a humanidade – e o ideal ascético ofereceu ao homem um significado!58
55NIETZSCHE, Friedrich. On the Genealogy of Morality. Trans. Carol Diethe. Cambridge Texts in the History of Political Thought.
Cambridge University Press. 2007., p. 113. 56COX, CHRISTOPH. Nietzsche: Naturalism and Interpretation. Berkeley: University of California Press. 1999. p 30. 57Cf. NIETZSCHE, 2001, p. 130-131 (“Causa e efeito”) e NIETZSCHE, 2001, p. 162 (“Matemática”). 58Id. On the Genealogy of Morality. Trans. Carol Diethe. Cambridge Texts in the History of Political Thought. Cambridge University
Press. 2007., p. 120.
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Como podemos ver, a necessidade de sentido, ou de significado, caracteriza o objetivo do
ideal ascético; mais do que seu sofrimento, o homem se importava com o sentido de sua vida, de
seu próprio sofrimento e de tudo ao seu redor. Segundo Nietzsche, no aforisma 357 da Gaia Ciência,
Schopenhauer representava um dos grandes filósofos que haviam acompanhado já de antemão
essa evolução da Consciência Europeia, “como bom europeu e não como alemão” (sic. NIETZSCHE,
2001, p. 231), ao se questionar se a existência possuía algum sentido; mesmo que ainda não a tivesse
respondido da maneria esperada, Nietzsche o reconhecia como aquele que ao menos pôs a questão
(NIETZSCHE. loc. cit) que a consciência alemã ainda não se atrevia a fazer; logo em seguida diz o
seguinte:
[…] explicar as próprias vivências como durante muito tempo fizeram os homens devotos, como se tudo fosse providência, aviso, concebido e disposto para a salvação da alma: isso agora acabou, isso tem a consciência contra si […] devemos a este rigor […] o fato de sermos bons europeus e herdeiros da mais longa e corajosa autossuperação da Europa.59
Era exatamente isso que estaria em falta na consciência moderna, ou no reconhecido
positivismo científico: uma reavaliação sobre a verdade. A visão científica do mundo ainda se
colocava diante do velho impasse posto por Platão e transferido para o positivismo: “o que é”
distante do que “parece ser”. Com o seu “selecionar”, “simplificar”, “quantificar”, “mapear
tendências relativas”60, a Consciência Europeia agora necessitava voltar-se novamente contra si.
Essa “autossuperação da Europa” deveria agora, efetivamente, reconciliar a verdade com a
aparência: “somente com isso é novamente estabelecida a inocência do vir-a-ser”61 e “naturalizar os
seres humanos com uma pura natureza, de nova maneira descoberta e redimida” (NIETZSCHE,
2001. p. 127). Para isso, seria necessário ir na contramão do que já havia sido feito anteriormente; a
verdade, em vez de situar-se em “outro mundo”, deveria situar-se agora no “mundo aparente”.
Segundo a análise de Cox62, para Nietzsche, a verdade e o conhecimento sempre tomariam
lugar no mundo da perspectiva e da interpretação, isto é, dentro do mundo da aparência e da
semelhança. A “vontade de verdade” não se distanciaria da “vontade de engano”; rejeitar-se-ia o
sentido de que uma fosse boa e a outra ruim. Essa dicotomia metafísica deveria ser superada63,
deveria haver com isso, um reconhecimento de que a natureza, a vida e a história não toleram
opostos, mas apenas “graus e várias sutilezas de gradação”. Desse modo, Nietzsche rejeitaria a
59NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras. 2001. p. 229. 60COX, CHRISTOPH. Nietzsche: Naturalism and Interpretation. Berkeley: University of California Press. 1999. p 31. 61NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos Ídolos. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras. 2006. p. 47. 62COX. op. cit., p. 39-40. 63Cf. NIETZSCHE, Friedrich. Além de Bem e Mal. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras. 1992. p. 9-10.
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suposição de que há uma oposição essencial entre o "verdadeiro" e o "falso"; ao invés disso,
existiriam apenas graus de aparência, como diferentes tons de aparência: a "vontade de verdade" e
a "vontade de engano" seriam como "refinamentos" de uma e outra. De fato, é o que nos apresenta
Nietzsche, no aforisma 34 de Além de bem e do mal, o qual reproduzimos a seguir:
O caráter errôneo do mundo onde acreditamos viver é a coisa mais firme e segura que nosso olho ainda pode aprender […] eu mesmo aprendi há muito a pensar de outro modo, a avaliar de outra maneira o enganar e o ser enganado […] Não passa de um preconceito moral que a verdade tenha mais valor que a aparência; […] não existiria nenhuma vida, senão com base em avaliações e aparências perceptivas; e se alguém, com o virtuoso entusiasmo e a rudeza de tantos filósofos, quisesse abolir por inteiro o “mundo aparente”, bem, supondo que vocês pudessem fazê-lo – também da sua “verdade” não restaria nada! Sim, pois o que nos obriga a supor que há uma oposição essencial entre “verdadeiro” e “falso”?64
Nessa passagem, Nietzsche destaca uma certa irredutibilidade da interpretação; é o mundo
aparente que gera nossas percepções individuais e distintas sobre ele, e o faz infinitamente.
Semelhante raciocínio é exposto em Crepúsculo dos Ídolos:
Eles [os sentidos] não mentem nem do modo como os eleatas pensavam […] - eles não mentem. O que fazemos do seu testemunho é que introduz a mentira; por exemplo, a mentira da unidade, mentira da materialidade, da substância, da duração… […] o mundo “aparente” é o único: o “mundo verdadeiro” é apenas acrescentado mendazmente…65
A vida, a história e a natureza são os objetos de nossas interpretações “vaidosas e exaltadas”,
mas a natureza desses objetos se mostra diante de nós errante. Segundo Nietzsche, “A melhor
ciência procura nos prender do melhor modo a esse mundo simplificado, completamente artificial,
fabricado, falsificado, […] involuntariamente ou não, ela ama o erro, porque, viva, ama a vida!”
(NIETZSCHE, Friedrich. 1992. p. 29).
Com efeito, Nietzsche estabelece como alvo o ideal ascético, que gera a noção de
incondicionalidade da verdade a estabelecendo como um erro, invertendo assim toda a metafísica
platônica e a moralidade cristã. As interpretações, todas elas, inclusive a do próprio Nietzsche, sobre
a natureza são errantes assim como a própria natureza. É a partir desse ponto que Nietzsche
estabelece que existem interpretações melhores do que outras; melhores não no sentido
pragmático ou utilitarista, mas no sentido que o próprio refinamento racional do homem é capaz de
estabelecer: as melhores interpretações são aqueles que se assemelham mais com a vida, com a
natureza; são aqueles que não a negam, que não se estabelecem ou se fundamentam em algo
externo a própria natureza, portanto, tratam-se daquelas que estabelecem condicionalidade,
temporalidade, contingência, e relatividade. A vida se estabelece no semblance; na aparência, no
64NIETZSCHE, Friedrich. Além de Bem e Mal. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras. 1992. p. 38 65Id. Crepúsculo dos Ídolos. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras. 2006. p. 26.
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erro, no engano e na simulação (Cf. GC, 344); a busca pelo “mundo verdadeiro” acarreta numa
rejeição do mundo da vida, da natureza e da história. Eis o sentido, o qual buscamos estabelecer, da
reintegração do homem na natureza.
Essa interpretação Nietzschiana guarda a contradição, que segundo ele é característica de
uma nova maneira de pensar (Cf. NIETZSCHE, 1992. p. 9-10) que se propõe além do bem e do mal:
rejeita o dogmatismo, afirmando ao mesmo tempo um certo dogmatismo que descreve como
natureza é e se comporta. Contudo, segundo nos mostra Cox (1999, p. 3), o perspectivismo de
Nietzsche mitiga seu dogmatismo, de modo que não há uma pretensão de que exista apenas uma
única concepção verdadeira sobre o mundo, mesmo diante da afirmação de que sua maneira de ver
o mundo esteja mais adequada aos padrões naturais; de fato, é o que poderemos ver na citação a
seguir de Humano, Demasiado Humano, que encerra nossa investigação:
[...] dizem que um leitor emerge de meus livros, não sem alguma reticência e até desconfiança frente à moral, e mesmo um tanto disposto e encorajado a fazer-se defensor das piores coisas: e se elas forem apenas as mais bem caluniadas? [...] e quem adivinhar ao menos em parte as consequências de toda profunda suspeita, os calafrios e angústias do isolamento, a que toda incondicional diferença do olhar condena quem dela sofre, compreenderá também com que frequência, para me recuperar de mim, como para esquecer-me temporariamente, procurei abrigo em algum lugar – em alguma adoração, alguma inimizade, levianidade, cientificidade ou estupidez; e também por que, onde não encontrei o que precisava, tive que obtê-lo à força de artifício, de falsificá-lo e criá-lo poeticamente para mim (- que outra coisa fizeram sempre os poetas? Para que serve toda a arte que há no mundo?). […] Supondo, porém, que tudo isso fosse verdadeiro e a mim censurado com razão, que sabem vocês disso, que podem vocês saber disso, da astúcia da autoconservação, da racionalidade e superior proteção que existe em tal engano de si – e da falsidade que ainda me é necessária para que continue a me permitir o luxo de minha veracidade?... Basta, eu ainda vivo; e a vida não é excogitação da moral: ela quer ilusão, vive ilusão... porém, vejam só, já não começo de novo a fazer o que sempre fiz, como velho imoralista e apanhador de pássaros – falando imoralmente, amoralmente, “além do bem e do mal? Foi assim, que há tempos, quando necessitei, inventei para mim os “espíritos livres”, aos quais é dedicado este livro melancólico brioso que tem o título de Humano, demasiado humano: não existem esses “espíritos livres”, nunca existiram – mas naquele tempo, como disse, eu precisava deles como companhia, para manter a alma alegre me meio a muitos males (doença, solidão, exílio, acedia, inatividade): como valentes confrades fantasmas, com os quais proseamos e rimos, quando disso temos vontade, e que mandamos para o inferno, quando se tornam entediantes – uma compensação para os amigos que faltam.66
5. CONCLUSÃO Como vimos até aqui, o desenvolvimento histórico do pensamento ocidental, o qual se
denominou consciência europeia, foi marcado por diversos momentos de autossuperação. No início,
a Filosofia havia superado o pensamento mítico; Heráclito havia se interposto contra Hesíodo;
66NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras. 2000. p. 7-8.
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Platão havia se insurgido contra Homero; Xenófanes denunciava o antropomorfismo na religião
grega, de modo a denunciar as “arbitrariedades” e “absurdos” dos pensamentos dos poetas; a escola
eleática distinguia o “ser” do “não-ser”; finalmente o mundo sensível passava a ser visto como ilusão
e aparência, uma cópia imperfeita das “formas” eternas e imutáveis, a “opinião” se opunha a
“verdade”, nascia então a Metafísica Platônica que durante a idade média havia sido refinada
novamente com a Moralidade Cristã. A Ciência Moderna, que aparentemente havia superado tudo
isso, carregava ainda em si a base de todos os pressupostos metafísicos, o ideal ascético: a
incondicionalidade da verdade, o valor absoluto da verdade, a necessidade de sentido. Haveria
então um outro momento de autossuperação no pensamento europeu, marcado pela reavaliação
da verdade: “a morte de Deus”. Era necessário à Consciência Europeia, a partir do seu refinamento,
uma reintegração do homem na natureza. A consciência do homem havia se separado da natureza
a partir da própria capacidade humana de significar, de nomear, classificar, conceituar, modelar,
metaforizar; o homem criava o mundo sua imagem e semelhança, a natureza se tornava sua própria
extensão, cada um de seus significados o separava cada vez mais da natureza, colocando sempre
suas metáforas no domínio antinatural: da eternidade, imutabilidade, estaticidade, necessidade etc.
Nem mesmo a ciência havia escapado de Deus.
Com efeito, Nietzsche trazia a tona “a primazia e a irredutibilidade da interpretação” (Cox
1999, p. 70); mais ainda, a consciência da visão metafórica sobre o mundo e o reconhecimento do
caráter estético do conhecimento humano. A contradição, as oposições, seriam como inerentes a
natureza, cada coisa seria como relativa pespectivamente ao ser que a observa; o mundo seria um
fluxo contínuo e infinito. (NIETZSCHE, 2001, p. 131).
Segundo Cox (1999, p. 3), o antidogmatismo de Nietzsche é confrontado com um certo
dogmatismo aparente que descreve o mundo e seu funcionamento. Esse aparente dogmatismo é
mitigado pelo perspectivismo, a ideia de que os conceitos são apenas interpretações como qualquer
outra; contudo, interpretações melhores para os padrões naturais, por conta de estarem mais
próximas da sensibilidade. Vê-se aí uma oscilação entre o dogmatismo e o antidogmatismo; uma
contradição inerente a nova maneira de pensar que se coloca além do bem e do mal.67
Na passagem que encerra a penúltima seção deste artigo, Nietzsche se autodenomina
“apanhador de pássaros”, termo o qual se utiliza para tratar dos “velhos metafísicos” em Além do
bem e do mal § 230. Ele responde aos seus críticos dizendo: “e se elas [as piores coisas as quais meus
67Cf. NIETZSCHE, Friedrich. Além de Bem e Mal. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras. 1992. p. 11.
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leitores se dispõem ao ler-me] forem apenas as mais bem caluniadas?”; revelando o caráter de seu
filosofar: o desprendimento de pressupostos metafísicos que impõem incondicionalidade e
imutabilidade à verdade; a reconciliação da verdade com o mundo natural; a afirmação da vida, da
história e da natureza; a afirmação de que o “caráter errôneo do mundo onde acreditamos viver, é a
coisa mais firme e segura que nosso olho ainda pode apreender […]”.68
REFERÊNCIAS
CARVALHO, Daniel. Nietzsche como filósofo naturalista. Tese de Doutorado. Universidade Federal de Minas Gerais. 2018.
COX, CHRISTOPH. Nietzsche: Naturalism and Interpretation. Berkeley: University of California Press. 1999. Disponível em: <http://ark.cdlib.org/ark:/13030/ft5x0nb3sz/>
NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras. 2001.
___________________. Além de Bem e Mal. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras. 1992.
___________________. Crepúsculo dos Ídolos. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras. 2006.
___________________. Humano, demasiado humano. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras. 2000.
___________________. On the Genealogy of Morality. Trans. Carol Diethe. Cambridge Texts in the History of Political Thought. Cambridge University Press. 2007.
___________________. On truth and lies in an extra-moral sense. Trans. Walter Kaufmann, Daniel Breazeale e The Nietzsche Channel. Disponível em: <https://oregonstate.edu/instruct/phl201/modules/Philosophers/Nietzsche/Truth_and_Lie_in_an_Extra-Moral_Sense.htm>69
68NIETZSCHE, op. cit. p. 38. 69Esta tradução é um compilado da tradução de Walter Kaufmann e Daniel Breazeale feita pelo The Nietzsche Channel. Disponibilizada
na plataforma da Oregon State University: <https://oregonstate.edu/>. Na fonte, a data da tradução não é citada.
Sofrimento humano e a “proposta terapêutica” nietzschiana, pp. 671-684
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SOFRIMENTO HUMANO E A “PROPOSTA TERAPÊUTICA” NIETZSCHIANA
Danielly Maia de Queiroz1
RESUMO: O presente texto tem como ponto de partida a problemática da “esquizoalgia”, conceito proposto por Ivan Illich referente à alienação da dor e à supermedicalização como consequências da destruição do ato de sofrer, produtos da iatrogênese estrutural da cultura ocidental. Optou-se por discutir nuances do sofrimento humano a partir de reflexões suscitadas por Susan Sontag tendo por base a iconografia da dor e da crueldade. Uma vez articulados os sintomas da “esquizoalgia” com a hiperexposição e banalização da dor dos outros, buscou-se compreender como a temática do sofrimento humano se apresenta junto à tradição de pensamento que concebe a filosofia como forma de “terapia”, identificando-se no pensamento nietzschiano um contraponto à visão hegemonicamente negativa e niilista que se tem diante do sofrer. A partir do diagnóstico feito por Nietzsche de adoecimento da cultura ocidental e da proposta de transvaloração do conceito de “saúde” em “grande saúde”, identificam-se três aspectos que se contrapõem à passividade do ideal ascético: o ativo cultivo do corpo; o reconhecimento do equilíbrio do desequilíbrio; e a desconstrução da suposta contradição entre saúde e doença. Considera-se que tais aspectos podem servir de base para uma proposta terapêutica singularizada, cuja filosofia prática reconhece o sofrimento humano como pleno de legitimação e propósito. Isso implica uma postura ativa diante do sofrimento, contribuindo com a reaprendizagem corporal de enfrentar sem subterfúgios as sensações produzidas pelos “nociceptores”, atitude tão negada pela decadente sociedade analgésica. PALAVRAS-CHAVE: Sofrimento humano; Nietzsche; Transvaloração; Grande saúde; Terapia.
1 Enfermeira; Doutora em Saúde Coletiva; Graduanda em Filosofia (UECE); servidora pública de Maracanaú (CE); integrante do grupo de Filosofia Feminista e Ética (UECE). E-mail: [email protected].
Sofrimento humano e a “proposta terapêutica” nietzschiana, pp. 671-684
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RESUMÉN: El presente texto tiene como punto de partida el problema de la "esquizoalgia", un concepto propuesto por Ivan Illich con respecto a la alienación del dolor y la sobremedicalización como consecuencias de la destrucción del acto de sufrimiento, producto de la iatrogénesis estructural de la cultura occidental. Optamos por discutir los matices del sufrimiento humano basados en reflexiones planteadas por Susan Sontag basadas en la iconografía del dolor y la crueldad. Una vez que los síntomas de la “esquizoalgia” se articulan con la sobreexposición y la trivialización del dolor de los otros, buscamos comprender cómo se presenta el tema del sufrimiento humano en la tradición del pensamiento que concibe la filosofía como una forma de "terapia", identificándose en el pensamiento nietzscheano un contrapunto a la visión hegemónicamente negativa y nihilista del sufrimiento. Basado en el diagnóstico de enfermedad de la cultura occidental realizado por Nietzsche y la propuesta de transvaluar el concepto de “salud” en “gran salud”, se identifican tres aspectos que se oponen a la pasividad del ideal ascético: el cultivo activo del cuerpo; el reconocimiento del equilibrio del desequilibrio; y la deconstrucción de la supuesta contradicción entre salud y enfermedad. Se considera que tales aspectos pueden servir como base para una propuesta terapéutica singularizada, cuya filosofía práctica reconoce el sufrimiento humano como lleno de legitimación y propósito. Esto implica una postura activa frente al sufrimiento, contribuyendo al reaprendizaje corporal de enfrentar las sensaciones producidas por los "nociceptores" sin subterfugio, actitud tan negada por la decadente sociedad analgésica. PALABRAS-CLAVE: Sufrimiento humano; Nietzsche; Transvaloración; Grand salud; Terapia.
Introdução
Esse texto assume como ponto de partida uma inquietação provocada por Ivan Illich em seu
livro A expropriação da saúde: nêmesis da medicina, que, ao caracterizar o processo de “iatrogênese
estrutural” da cultura ocidental, destaca o processo de “alienação da dor” como uma retirada do
significado mais íntimo e pessoal do sofrimento, transformando-o em problema técnico. Illich
apresenta o conceito de “esquizoalgia” como sintoma da supermedicalização, criada pela destruição
iatrogênica do ato de sofrer. Paradoxalmente, diante dessa “esquizoalgia”, a sociedade “analgésica”
aumenta a demanda de estimulantes dolorosos, visto que “são necessários estimulantes cada vez
mais poderosos às pessoas que vivem em uma sociedade anestesiada, para terem a impressão de
que estão vivas.”2
Para refletir sobre tais aspectos, tão prementes na contemporaneidade, buscou-se
inicialmente elencar alguns apontamentos feitos por Susan Sontag com base em seu livro intitulado
Diante da dor dos outros,3 por meio do qual ela nos convida a nos debruçarmos sobre o que a
2 ILLICH, Ivan. A expropriação da saúde: nêmesis da medicina. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975, p.140. 3 SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
Sofrimento humano e a “proposta terapêutica” nietzschiana, pp. 671-684
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representação por imagens, em especial, fotografias da crueldade, nos provoca, indagando:
tornamo-nos progressivamente insensíveis e apáticos ou somos incitados à violência? Há um
desgaste da percepção da realidade por meio do bombardeio diário dessas imagens? O sofrimento
de povos distantes vitimados pela guerra nos importa? Essas imagens de sofrimento humano,
representadas ao longo da história de distintos modos, e que hoje estão cotidianamente presentes,
seja na televisão, nos dispositivos móveis ou outros meios de veiculação de imagens, provocam o
que em nós?
Diante desses questionamentos suscitados por Sontag, buscou-se compreender como a
temática do sofrimento humano se apresenta junto à tradição do pensamento que concebe a
filosofia como uma forma de “terapia”. Nesse ínterim, identificou-se no pensamento nietzschiano
um contraponto à visão hegemonicamente negativa e niilista que se tem diante do sofrimento. Esse
ponto de vista está alicerçado na tese de doutorado de Marta Sofia Ferreira Faustino, intitulada
Nietzsche e a grande saúde: para uma terapia da terapia.4 A autora retoma o diagnóstico de
adoecimento e decadência da cultura ocidental demarcado por Nietzsche e busca delinear sua
proposta terapêutica singularizada articulada à noção de “grande saúde”, cuja filosofia prática
implica uma postura ativa e afirmativa diante do sofrimento.
Ao buscar estabelecer conexões entre o fenômeno da “esquizoalgia” delineado por Illich e as
derivações decorrentes da exaustiva exposição iconográfica ao sofrimento humano demarcadas por
Sontag, percebe-se na proposta terapêutica de Nietzsche um convite a uma atividade plena diante
da vida, em detrimento da paralisia, anestesia, indiferença, perplexidade e passividade que
epidemicamente tem acometido a humanidade.
O que as imagens de sofrimento humano provocam em nós?
Susan Sontag tece uma história da representação da dor, traçando a evolução da iconografia
das imagens de sofrimento, registradas por meio de pinturas, fotografias ou mesmo imagens
televisionadas. A autora nos convida a pensar sobre a natureza da guerra, os limites da solidariedade
humana e os supostos deveres da consciência, diante do uso e dos sentidos atribuídos a essas
imagens.
Ao longo da história da humanidade a guerra foi, por muito tempo, encarada como norma, e
a paz como exceção. Na modernidade, passa-se a considerar a guerra como aberração e a paz como
4 FAUSTINO, Marta Sofia Ferreira. Nietzsche e a grande saúde: para uma terapia da terapia. 2013. Tese de Doutorado em Filosofia. Universidade Nova de Lisboa, Portugal.
Sofrimento humano e a “proposta terapêutica” nietzschiana, pp. 671-684
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norma, mesmo que inatingível. Todavia, reconhece-se que nem mesmo os pacifistas
contemporâneos acreditam que a guerra possa ser abolida. Levando-se em consideração a
linguagem, diferente de um relato escrito que pode ser destinado a um número maior ou menor de
leitores, a fotografia tem uma única língua e está potencialmente direcionada a todas as pessoas. E
quando se trata de recordar, em um contexto, tal como o nosso, de sobrecarga de informações, a
imagem fotográfica “congela o quadro” e oferece um modo rápido e compacto de apreensão e
memorização de algo.5
Olhar fotos de guerra pode desencadear diferentes reações e a vida moderna oferece
inúmeras oportunidades de ver, à distância, a dor de outras pessoas, uma vez que hoje é comum que
as atrocidades humanas componham imagens e sons na sala de estar. Com isso, Sontag destaca que
à medida que cada desgraça se apresenta, pode-se reagir com compaixão, indignação, excitação ou
até mesmo aprovação, visto que...
Fotos de uma atrocidade podem suscitar reações opostas. Um apelo em favor da paz. Um clamor de vingança. Ou apenas a atordoada consciência, continuamente reabastecida por informações fotográficas, de que coisas terríveis acontecem.6
A autora considera que rememorar é um ato do indivíduo e o que se chama de memória
coletiva não passa de ficção. Todavia, as ideologias são construídas com base em imagens
representativas que englobam ideias relevantes, desencadeando pensamentos e sentimentos
previsíveis. Fotos amplamente divulgadas e que boa parte da humanidade reconhece compõem
temas sobre os quais a sociedade declara ter escolhido pensar e que, de certa maneira,
“aprisionaram a história em nossa mente.”7
Na antiguidade clássica, os mitos pagãos são compostos de um vasto repertório de
crueldades. O clímax nas histórias contadas na Ilíada é alcançado com a descrição minuciosa de
corpos feridos e mortos em combate. No medievo, a arte cristã está repleta de imagens do inferno
mostrando corpos em sofrimento. Sontag considera que não há acusação moral que recaia sobre a
representação dessas crueldades, e sim uma provocação de que somos ou não capazes de olhar para
isso. No início do século XIX, Francisco de Goya (1746-1828) apresenta uma sequência de 83 gravuras
feitas entre 1810 e 1820, intitulada Los desastres de la guerra, retratando as atrocidades de soldados
napoleônicos ao invadir o território espanhol em 1808, para sufocar a insurreição contra o domínio
5 SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p.23. 6 SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p.16. 7 SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p.73.
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francês. A arte de Goya pode ser comparada a de Dostoievski, por lidar com sentimentos morais e
da dor de modo profundo, original e exigente. O intuito de Goya é abalar, chocar, ferir o espectador,
buscando atacar sua sensibilidade a partir do relato iconográfico das crueldades da guerra.8
Nas imagens de guerra produzidas por artistas, pode-se perceber a beleza do trágico. Mas
isso também se aplica a imagens captadas por câmeras? É possível encontrar beleza em fotos de
guerra sem parecermos insensíveis? Sontag considera que “a paisagem da devastação ainda é uma
paisagem. Existe beleza nas ruínas”.9 Entretanto, Sontag faz uma ponderação crítica acerca de quais
corpos foram autorizados a se fazer registros fotográficos dessa natureza, mostrando-se ferimentos
graves ou feições agonizantes. Segundo ela, historicamente, essas imagens foram feitas de povos
africanos e asiáticos, considerados pela população europeia como “exóticos”, chegando até a ser
exibidos como animais de zoológico em muitas capitais europeias no período entre o século XVI até
o início do século XX. A autora afirma que a exibição dessas fotos pode trazer uma dupla mensagem:
confirma que esse sofrimento ultrajante e injusto existe; porém, pode alimentar a crença fatalista
de que essas tragédias são inevitáveis em regiões pobres e ignorantes do mundo.
Sontag ilustra a questão polêmica relativa a esse estilo fotográfico nos remetendo ao
trabalho do fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado (1944-) que, nas palavras da autora, é
“especializado na desgraça mundial”.10 Ela menciona, em especial, seu projeto de sete anos
intitulado Migrações: humanidade em transição, cujas fotografias podem ser conferidas no livro
Êxodos,11 ou em sua exposição de mesmo nome. Nesse trabalho, ele reúne, sob um único título,
fotos tiradas em trinta e nove países, mas que na verdade nos faz reportar a uma multidão de causas
e de modalidades diversas de infortúnio e desgraças humanas.
Fazer o sofrimento avultar, globalizá-lo, pode incitar as pessoas a sentir que deveriam “importar-se” mais. Também as convida a sentir que os sofrimentos e os infortúnios são demasiado vastos, demasiado irrevogáveis, demasiado épicos para serem alterados, em alguma medida significativa, por qualquer intervenção política local. Com um tema concebido em tal escala, a compaixão pode apenas debater-se no vazio – e tornar-se abstrata.12
Segundo a autora, apesar de lindamente compostas, espetaculares e cinemáticas, o
problema maior das fotos de Sebastião Salgado não está na maneira ou lugar onde estão expostas,
e sim nas fotos em si mesmas, pois seu foco se volta aos destituídos de poder, reduzidos à sua
8 SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, pp.38-41. 9 SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p.65. 10 SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p.67. 11 SALGADO, Sebastião. Êxodos. Colônia (Alemanha): Taschen, 2016. 12 SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p.68.
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impotência, e que sequer são designados nas legendas. Frente a isso, é incontornável a indagação
sobre o sentido de se exibir fotos relacionadas à crueldade humana: elas despertam indignação, mal-
estar, tristeza? Elas nos ensinam algo? Tornamo-nos melhores ao vê-las? Ou confirma o que já
sabemos? Essas são algumas questões levantadas por Sontag, e remete-nos a inúmeras motivações
que despertam nosso interesse por essas cenas de horrores13. Será que o choque provocado por
imagens de crueldade tem prazo de validade? Pode tornar-se familiar e enfraquecer?
Apesar de as pessoas poderem até se habituar ao horror da vida real e a certas imagens,
Sontag destaca que “existem casos em que a repetida exposição àquilo que choca, entristece,
consterna, não esgota a capacidade de reação compassiva”14, pois algumas fotos aflitivas não
perdem seu poder de nos chocar e aumentam as chances de cristalizar um sentimento, chegando
até mesmo a nos perseguir. Entretanto, quando se discute os efeitos diante de fotos de atrocidades,
nem todas as reações provocadas estão sob o domínio da razão e da consciência.
Tais como o interesse lascivo e libidinoso, despertado por corpos atraentes, as imagens do
repugnante, de corpos torturados e mutilados, também podem seduzir, configurando um “tropismo
inato orientado para o horrível”, como pode ser percebido nos apontamentos do irlandês Edmund
Burke (1729-1797) que em sua obra Investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime
e do belo demarcou que as pessoas extraem graus de prazer ante os infortúnios e as dores reais dos
outros; e ainda nas formulações do francês Georges Bataille (1897-1962) que em seu livro As lágrimas
de Eros afirmava que a imagem fotográfica de dor da morte de mil cortes lhe remetia a sentimentos
paradoxais, simultaneamente extasiantes e intoleráveis15.
Em consonância com essa perspectiva de apreciação da crueldade humana, na segunda
dissertação de A genealogia da moral, Nietzsche busca relacionar a dor como compensação de
dívidas, destacando que...
Ver sofrer, alegra; fazer sofrer, alegra mais ainda; há nisto uma frase dura, uma antiga verdade “humana, demasiado humana”, à qual talvez subscrevessem os macacos, porque, na verdade, e diz-se que com a invenção de certas bizarras crueldades anunciam já o advento do homem. Sem crueldade não há gozo, eis o que nos ensina a mais antiga e remota história do homem; o castigo é também uma festa.16
Percebe-se que há nesse fragmento de Nietzsche expressões de sentimentos paradoxais
envolvidos na experiência de dor e sofrimento, de certo “gozo” mediado pela apreciação de cenas
13 SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, pp.77-78. 14 SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p.70. 15 SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p.82. 16 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A genealogia da moral. Petrópolis (RJ): Vozes, 2013, II-7, p.65.
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de crueldade humana. Esse apontamento pode se entrelaçar com o que Sontag pontua ao destacar
que apesar de a crescente “teleintimidade” com a morte propagada pela cobertura televisiva nos
levar a pensar que a brutalidade física parece estar mais vinculada ao entretenimento do que mesmo
ao choque, diante da constante dieta de imagens violentas, é preciso levar em consideração os
sentimentos que vêm à tona. Ela, então, argumenta que...
A compaixão é uma emoção instável. Ela precisa ser traduzida em ação, do contrário definha. A questão é o que fazer com os sentimentos que vieram à tona, com o conhecimento que foi transmitido. [...] As pessoas não se insensibilizam àquilo que lhes é mostrado – se é que essa é a maneira correta de descrever o que ocorre – por causa da quantidade de imagens despejadas em cima delas. É a passividade que embota o sentimento. Os estados definidos como apatia, anestesia moral ou emocional, são repletos de sentimentos; os sentimentos são raiva e frustração. Mas, se ponderarmos quais emoções seriam desejáveis, parece demasiado simples escolher a solidariedade.17
Assim, Sontag pondera que o sentimento de solidariedade parece nos fazer sentir menos
cúmplices, proclamando nossa inocência. Mas, paradoxalmente, também parece evidenciar nossa
impotência diante dos fatos expostos. Parece que em um mundo hipersaturado de imagens, num
fluxo contínuo que impossibilita uma imagem privilegiada, mesmo diante dessa “dieta de horrores”,
tornamo-nos insensíveis àquelas imagens que deveriam ser consideradas importantes. Isso seria
insensibilidade ou instabilidade de atenção? Um interesse mais reflexivo em relação a isso
demandaria certa intensidade de consciência, aspecto intencionalmente enfraquecido pela mídia.18
Sontag defende que é de suma importância que “deixemos que as imagens atrozes nos
persigam”19, pois estas exercem um papel importante, lembrando-nos do que os seres humanos são
capazes de fazer. A autora considera que o ato de recordar tem um valor ético por si mesmo, e que
a memória, por vezes dolorosa, é a única relação que podemos estabelecer com os mortos. No que
se refere à instauração da “memória”, Nietzsche postula que esta foi sendo constituída a partir de
múltiplas formas de dor e sofrimento, como pode ser verificado no fragmento a seguir.
[...] quando o homem julgava necessário criar uma memória, uma recordação, não era sem suplício, sem martírios e sacrifícios cruentos; os mais espantosos holocaustos e os compromissos mais horríveis [...], as mutilações mais repugnantes [...], os rituais mais cruéis de todos os cultos religiosos [...], tudo isso tem a sua origem naquele instinto que descobriu na dor o auxílio mais poderoso da mnemotécnica.20
17 SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p.85. 18 SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, pp.88-89. 19 SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p.95. 20 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A genealogia da moral. Petrópolis (RJ): Vozes, 2013, II-3, p.60.
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Mas Nietzsche considera que o esquecimento “é um poder ativo, uma faculdade
moderadora, à qual devemos atribuir tudo quanto nos acontece na vida, tudo quanto
absorvemos”.21 Sontag parece coadunar com tal afirmativa, mesmo levando em consideração
motivações diferentes, ao destacar que existe muita injustiça no mundo e recordar demais pode
gerar rancor. Ela, então, vislumbra na “amnésia” uma possibilidade de reconciliação, mesmo que
esta pareça andar junta com a insensibilidade22.
Diante das provocações elencadas por Susan Sontag, questiona-se: como a tradição do
pensamento filosófico tem lidado com o sofrimento o humano? Pode a Filosofia ser encarada como
“terapia” diante dessa problemática? Quais os distintos modos de lidar com essa incontornável
afecção da existência humana? Que contrapontos e proposições estão presentes nas obras de
Nietzsche em relação a isso?
Sofrimento humano e possibilidades terapêuticas da filosofia
A dimensão terapêutica que a filosofia assume está presente desde a antiguidade,
marcadamente nas escolas helenísticas do Epicurismo (cultivo da ataraxia, ausência de
perturbações) e do Estoicismo (cultivo da apatheia, ausência de paixões). Na Idade Média, ela perde
lugar para a terapia religiosa, promovida pelo ideal ascético do cristianismo. A partir da
modernidade, identifica-se uma retomada do caráter terapêutico da filosofia por autores cristãos,
tais como Pascal e Kierkegaard, e mais recentemente, no século XX, por Wittgeinstein, filósofo cuja
perspectiva terapêutica se volta para a clarificação e desambiguação da linguagem.23
Além dos filósofos supracitados, Faustino24 defende a inclusão de Nietzsche nessa tradição
de pensamento, argumentando que este filósofo, enquanto “médico da cultura”, além de
diagnosticar a doença na cultura ocidental por meio do método genealógico e da fisiologia, assumiu
um projeto terapêutico com base na transvaloração de todos os valores, na elevação da cultura e no
cultivo de um novo tipo de homem, buscando alcançar o ideal da “grande saúde”.
Interessa-nos aqui saber como estas distintas perspectivas filosóficas buscaram lidar com o
sofrimento humano, para refletirmos se alguma delas nos ajuda a encarar de maneira mais assertiva
o fenômeno da “esquizoalgia” evocado por Ivan Illich, cujos desdobramentos podem ser percebidos
nas expressões e reflexões apontadas por Susan Sontag.
21 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A genealogia da moral. Petrópolis (RJ): Vozes, 2013, II-1, p.57. 22 SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p.96. 23 FAUSTINO, Marta Sofia Ferreira. Nietzsche e a grande saúde: para uma terapia da terapia. 2013. 24 FAUSTINO, Marta Sofia Ferreira. Nietzsche e a grande saúde: para uma terapia da terapia. 2013.
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Tendo por base a formulação aristotélica de que os seres humanos almejam a felicidade, as
escolas helenísticas lidavam de modo negativo com o sofrimento, cuja terapia buscava reduzir todo
tipo de tormento, dor, perturbação ou paixão da alma. Essa busca da felicidade como justificação da
vida, representando um estado de paz e de tranquilidade da alma, era alcançada segundo os
epicuristas através da ataraxia e pelos estoicos através da apatheia. Mas o “ascetismo” como terapia
triunfa a partir do cristianismo, que também reconhece o sofrimento existencial como algo negativo
e que precisa ser eliminado.25
Em A genealogia da Moral, Nietzsche disserta sobre as consequências perversas do ideal
ascético que, além de refrear e reprimir os instintos e os impulsos, através da domesticação e
moralização do homem, faz com que o mesmo direcione para dentro de si essa poderosa energia
impulsiva, fazendo germinar, assim, a “má consciência” e a noção de “culpa”.
As formidáveis barreiras que a organização social construía para se defender contra os antigos instintos de liberdade, e, em primeiro lugar, a barreira do castigo, conseguiram que todos os instintos do homem selvagem, livre e vagabundo, se voltassem contra o homem interior. A ira, a crueldade, a necessidade de perseguir, tudo isto se dirigia contra o possuidor de tais instintos: eis a origem da “má consciência”. [...] este louco, este cativo, de aspirações impossíveis, teve de inventar a “má consciência”. Então veio ao mundo a maior e mais perigosa de todas as doenças, o homem doente de si mesmo; foi consequência de um divórcio violento com o passado animal, de um salto para novas situações, para novas condições de existência, de uma declaração de guerra contra os antigos instintos que antes constituíam a sua força de vontade e o seu temível caráter.26
O aumento da repressão social desencadeia a necessidade de o indivíduo autoinfligir
sofrimento, justificado pelos sacerdotes ascéticos como legítimo estado de punição, invertendo a
direção do ressentimento para dentro. O círculo vicioso da culpa e do pecado promove um profundo
enfraquecimento, adoecimento e uma desapropriação das potencialidades humanas, tornando os
indivíduos mais inofensivos, vulneráveis e sujeitados.27
O sacerdote ascético deve ser o salvador predestinado, o pastor e defensor do rebanho doente [...]. A dominação sobre os que sofrem é o seu reino [...]. É preciso que ele também seja doente, para que doentes e mal aquinhoados possam compreendê-los e entendê-los; mas é preciso também que seja forte, pelo menos na vontade de potência, a fim de possuir a confiança dos doentes e ser para eles um amparo, um escudo, um mestre, um tirano, um deus. Tem que defender o seu rebanho – contra quem? Contra os sãos, naturalmente, mas também contra a inveja que inspiram os sãos. Deve ser o inimigo natural de toda a saúde e de toda a potência, de tudo que é rude, selvagem, desenfreado, violento.28
25 FAUSTINO, Marta Sofia Ferreira. Nietzsche e a grande saúde: para uma terapia da terapia. 2013. 26 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A genealogia da moral. Petrópolis (RJ): Vozes, 2013, II-16, p.82. 27 FAUSTINO, Marta Sofia Ferreira. Nietzsche e a grande saúde: para uma terapia da terapia. 2013. 28 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A genealogia da moral. Petrópolis (RJ): Vozes, 2013, p.121.
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Essa relação negativa com o sofrimento sintetizada no “ideal ascético”, partilhada tanto
pelas escolas helenistas quanto pela terapia religiosa promovida pelo cristianismo, intensificaram
ou agravaram o que supostamente se dispuseram a curar. Ao diagnosticar a doença da cultura
ocidental como inferior, decadente e niilista, Nietzsche evidencia esses nexos causais relacionados
ao ascetismo. Ele afirma que o problema fundamental do ser humano não é o sofrimento em si, mas
a ausência de sentido para ele.29 Essa constatação a que chega Nietzsche pode ser conferida na
segunda dissertação de A genealogia da moral, quando ele afirma que “o que verdadeiramente nos
repugna não é a dor, mas a falta de sentimento da dor”30, ou ainda no final da terceira dissertação,
quando demarca uma “imensa lacuna” do homem, pois...
[...] não sabia justificar-se a si mesmo, interpretar-se, afirmar-se; sofria ante o problema dos seus sentidos. E sofria de muitas maneiras: era antes de tudo um animal doente, o seu problema, porém, não era a dor, mas porque faltava a resposta à pergunta: Por que sofrer? [...] Essa falta de finalidade na dor é a maldição que pesou sempre sobre a humanidade. Agora bem: o ideal ascético apresenta uma finalidade. [...] Ele explicava a dor; enchia um imenso vácuo; fechava a porta ao suicídio do niilismo. A interpretação da dor trazia uma dor nova mais profunda, mais íntima, mais enevoada [...]. Esse ódio a tudo quanto era humano, quanto era animal, a tudo quanto era material, este horror aos sentidos, à razão, à felicidade, à saúde, à beleza, à força, à mudança, ao movimento, à morte, à vontade, ao esforço, ao desejo: tudo isto significa uma vontade para o nada, uma hostilidade à vida, uma negação das condições fundamentais da existência; mas era ao menos uma vontade! [...] O homem deve preferir a vontade do nada a nenhuma vontade.31
Contrapondo-se a todas essas terapias filosóficas, morais e religiosas, Nietzsche propõe uma
reinterpretação do sofrimento, reivindicando sua legitimação, propósito e justificação, visto que ele
compreende o sofrimento como absolutamente necessário à existência humana, para que o próprio
prazer seja possível, inclusive, visto que, para ele, prazer e dor são elementos correlativos e
concomitantes. Faustino defende que o projeto terapêutico nietzschiano pode ser considerado
como uma “terapia da terapia”, com a pretensão de “cura da própria necessidade de toda e qualquer
forma de terapia”, requerendo, para tanto, uma reinterpretação e valorização do sofrimento. Diante
disso, ela afirma que...
[...] para que se consiga suprimir a necessidade de toda e qualquer terapia, isto é, abdicar da questão do sentido do sofrimento e afirmar uma vida pejada dele, é preciso que o sofrimento deixe de ser visto como algo absolutamente negativo e que requeira uma legitimação, um propósito ou uma justificação.32
29 FAUSTINO, Marta Sofia Ferreira. Nietzsche e a grande saúde: para uma terapia da terapia. 2013. 30 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A genealogia da moral. Petrópolis (RJ): Vozes, 2013, II-7, p.67. 31 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A genealogia da moral. Petrópolis (RJ): Vozes, 2013, III-28, p.150. 32 FAUSTINO, Marta Sofia Ferreira. Nietzsche e a grande saúde: para uma terapia da terapia. 2013, p.213.
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No aforismo 326 de A gaia ciência, Nietzsche critica os “médicos da alma” por tentarem
convencer os homens de que estão muito mal, enquanto omitem de propósito que...
[...] há inúmeros paliativos para a dor, como o entorpecimento, ou a febril aceleração dos pensamentos, ou uma posição calma, ou memórias, intenções, esperanças boas e ruins, assim como muitas espécies de orgulho e de empatia, que têm quase um efeito anestésico; além de nos graus elevados da dor se produzir uma perda natural dos sentidos.33
No pensamento nietzschiano, conceber o homem como corpo não significa eliminar a noção
de alma, nem abolir por completo essa distinção corpo-alma, mas apenas a visão dualista que
pretende elevar a alma a substrato de identidade ou a “essência” do indivíduo. O homem enquanto
corpo significa pensá-lo como uma “multiplicidade unificada”, estando a alma incorporada ao corpo
de tal modo que seja parte dessa multiplicidade e esteja subordinada a seu sentido unificador, qual
seja: “equilíbrio de forças entre o feixe de instintos, impulsos e afectos que o constituem.”34 Na
interpretação de Faustino, a transvaloração nietzschiana do conceito de saúde assume o primado
do corpo como vontade de poder, requerendo seu “cultivo”, admissão do “equilíbrio do desequilíbrio”
e “dissolução da antinomia entre saúde e doença”.
O primado da saúde do corpo pode ser conferido no aforismo 47 de Crepúsculo dos ídolos, no
qual Nietzsche demarca que “é decisivo, para a sina de um povo e da humanidade, que se comece a
cultura no lugar certo [...]: o lugar certo é o corpo, os gestos, a dieta, a fisiologia, o resto é
consequência disso [...]”.35 Para tanto, é preciso lidar com os próprios instintos como um “jardineiro”
e sua arte, como é proposto no aforismo 560 de Aurora, cujo cultivo das sementes de maneira
proveitosa pode fazer “frutificar”, ou mesmo deixar a natureza agir, sem mediação de saberes ou
reflexões para as plantas crescerem livremente, trazendo alegria, mas também aflição.36
Faustino destaca que a noção de saúde, enquanto “equilíbrio do desequilíbrio” pode ser
evidenciada no pensamento nietzschiano como...
[...] o estado fisiológico de um organismo na sua relação consigo próprio e com o exterior. Assim, num organismo saudável, que se encontre em plena harmonia com a sua natureza, o objectivo deverá ser sempre o seu crescimento, a sua expansão, o seu fortalecimento e contínua auto-superação, podendo mesmo, em determinadas circunstâncias, pôr em risco a sua auto-conservação. Pelo contrário, uma vontade de paz, de tranquilidade, de equilíbrio e de estabilidade, onde é inversamente o instinto de auto-conservação que domina, designa
33 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, 326, p.216. 34 FAUSTINO, Marta Sofia Ferreira. Nietzsche e a grande saúde: para uma terapia da terapia. 2013, p.74. 35 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Crepúsculo dos ídolos. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, 47, p.97. 36 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Aurora. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, 560.
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para Nietzsche um sintoma de cansaço, de esgotamento e, justamente, de doença, na medida em que contraria o processo natural do organismo.37
Um exemplo dessa demarcação pode ser verificado no aforismo 349 de A gaia ciência, no qual
Nietzsche reconhece que um organismo saudável que se dá na natureza é dominado pela
abundância e pelo desperdício, e que a luta pela vida é apenas uma restrição temporária, visto que
o que prevalece é o domínio, o crescimento e a expansão, que são expressões da “vontade de poder”,
que é justamente a “vontade de vida”.38
Integrando-se a isso, Faustino destaca também do pensamento nietzschiano a “dissolução
da antinomia entre saúde e doença”, cujo indicador de saúde passaria a ser, então, uma postura
ativa, afirmativa, combativa e criativa diante do sofrimento, contrapondo-se frontalmente ao ideal
ascético alicerçado na passividade, resignação e ressentimento. A saúde necessitaria de seu
contrário para se fortalecer e se renovar, uma vez que saúde e doença seriam consideradas como
“graus de uma mesma realidade”.39 Essa ideia de indissociabilidade do processo saúde-doença seria
posteriormente aprofundada por Georges Canguilhem (1904-1995), em sua obra intitulada O normal
e o patológico.40
A transvaloração nietzschiana do conceito de saúde está, assim, alicerçada em dois fatores
que se retroalimentam:
[...] por um lado, a força, a robustez, a energia, a coragem, a ousadia de um organismo; por outro lado, a sua capacidade para suportar e superar a doença [...]. Quanto mais forte, robusto, enérgico e dinâmico for um organismo, maior será a sua capacidade de suportar e superar a doença, e quanto maior for a sua capacidade de suportar e superar a doença, mais forte, robusto, enérgico e dinâmico se tornará o organismo. [...] E se é verdade que a doença, a dor, o sofrimento, as adversidades são necessárias e omnipresentes em qualquer existência, também é verdade que os organismos não lhe reagem todos da mesma maneira e, em particular, nem todos possuem esta capacidade de os aceitar e superar activamente.41
Diante disso, Faustino acrescenta que na proposta terapêutica nietzschiana, a “grande
saúde” estaria relacionada a uma vontade de vida singularizada, que implica atividade, e cultiva o
crescimento e a expansão, sem abrir mão do perigo, do risco e da aventura, desafiando os próprios
limites. Vale ressaltar que o termo “grande saúde” foi utilizado por Nietzsche, por exemplo, no
prólogo de Humano, demasiado humano, como pode ver conferido a seguir.
37 FAUSTINO, Marta Sofia Ferreira. Nietzsche e a grande saúde: para uma terapia da terapia. 2013, p.235. 38 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, 349. 39 FAUSTINO, Marta Sofia Ferreira. Nietzsche e a grande saúde: para uma terapia da terapia. 2013, p.237. 40 CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico. 7ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015. 41 FAUSTINO, Marta Sofia Ferreira. Nietzsche e a grande saúde: para uma terapia da terapia. 2013, p.239.
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[...] o excesso de forças plásticas, curativas, reconstrutoras e restauradoras, que é precisamente a marca da grande saúde, o excesso que dá ao espírito livre o perigoso privilégio de poder viver por experiência e oferecer-se à aventura: o privilégio de mestre do espírito livre! No entremeio podem estar longos anos de convalescença, anos plenos de transformações multicores, dolorosamente mágicas, dominadas e conduzidas por uma tenaz vontade de saúde, que frequentemente ousa vestir-se e travestir-se de saúde.42 [grifos nossos].
Reconhece-se que essa postura diante da existência exige o cultivo de um novo homem,
ensinando-lhe a viver, afirmar e amar a vida sem qualquer justificação, sentido ou significado,
apenas como “pura afirmação existencial”, pois...
Num mundo sem deus, onde reinam a guerra, a luta e a discórdia, em que tudo o que existe luta por poder, mais poder, e supremacia sobre os demais, sem qualquer tipo de fim, finalidade ou mesmo lei, onde não existe qualquer tipo de justiça divina ou ordem moral do universo, mas antes um incessante devir aleatório de uma natureza absolutamente desdeificada, isto é, irracional, caótica, cega, cruel e indiferente – num tal mundo é precisamente a ausência de sentido que impera e que urge aceitar.43
Essa ponderação supracitada feita por Faustino nos remete a Albert Camus (1913-1960) que,
em seu ensaio de 1942, sobre O mito de Sísifo, destaca que cabe ao “homem absurdo” desaprender
a esperar, comendo o “pão da indiferença” e tomando o “vinho do absurdo” para nutrir sua grandeza
diante do mundo insensato, reconhecendo a luta, a revolta e o confronto, mas sem desprezar por
completo a razão.44
Considerações finais
A propedêutica nietzschiana e seu diagnóstico acerca da cultura ocidental nos faz
compreender o fenômeno da “esquizoalgia” apontado por Illich. Sua transvaloração do conceito de
saúde como noção de “grande saúde”, cuja proposta terapêutica se contrapõe à passividade do ideal
ascético e norteia-se pelo ativo cultivo do corpo, pelo reconhecimento do equilíbrio do desequilíbrio
e pela desconstrução da pseudocontradição entre saúde e doença, reconhece o sofrimento humano
como pleno de legitimação, propósito e justificação.
A dieta de horrores ofertada dia após dia à revelia daquilo que pretensamente gostaríamos
de ingerir e digerir é uma situação que nos faz indagar se Nietzsche concordaria com Sontag quanto
42 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, 4, p.11. 43 FAUSTINO, Marta Sofia Ferreira. Nietzsche e a grande saúde: para uma terapia da terapia. 2013, p.209. 44 CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: BestBolso, 2010.
Sofrimento humano e a “proposta terapêutica” nietzschiana, pp. 671-684
Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274 684
à relevância de deixarmos as imagens cruéis e atrozes nos perseguirem. Decerto que a iconografia
do sofrimento humano, apresentada reflexivamente por Sontag, evidencia o requinte de crueldades
de que os seres humanos são capazes. Resta-nos indagar o que mobilizamos dentro de nós ao
sermos bombardeados a cada instante por elas.
O desfecho com base na terapêutica singularizada proposta por Nietzsche estaria atrelado à
“atividade” em detrimento da “passividade” do ser humano, diante dessa multiplicidade de
expressões da crueldade e do sofrimento a qual todos nós estamos submetidos diariamente. O
cultivo dessa postura ativa diante do sofrimento poderia servir de “antídoto” à esquizoalgia,
contribuindo com a reaprendizagem corporal de enfrentar sem subterfúgios as sensações
produzidas pelos nociceptores, atitude tão negada pela decadente sociedade analgésica na qual
estamos inseridos.
REFERÊNCIAS:
CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Tradução de Ari Roitman e Paulina Watch. Rio de Janeiro: BestBolso, 2010.
CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico. Tradução de Maria Thereza Redig de Carvalho Barrocas. 7ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015.
FAUSTINO, Marta Sofia Ferreira. Nietzsche e a grande saúde: para uma terapia da terapia. 2013. Tese de Doutorado em Filosofia. Universidade Nova de Lisboa, Portugal.
ILLICH, Ivan. A expropriação da saúde: nêmesis da medicina. Tradução de José Kosinski de Cavalcanti. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1975.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A gaia ciência. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A genealogia da moral. Tradução de Mário Ferreira dos Santos. 4 ed. Petrópolis (RJ): Vozes, 2013.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Aurora. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Crepúsculo dos ídolos. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
SALGADO, Sebastião. Êxodos. Tradução de Maria Regina Martines. 1ed. Colônia (Alemanha): Taschen, 2016.
SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. Tradução de Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
Arte-expressão: quando se estranha a verdade, pp. 685-704
Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274 685
ARTE-EXPRESSÃO: QUANDO SE ESTRANHA
A VERDADE Gisele Gallicchio1
A arte não espera o homem para começar (...)
Deleuze e Guattari
RESUMO: Na perspectiva nietzscheana, a verdade enquanto construção metafísica encontra-se indissociável da representação. O trabalho propõe aproximar as rupturas com a representação no âmbito da arte. Ao avizinhar o pensamento de Nietzsche, que sustenta uma estética da existência, com a concepção de arte de Deleuze e Guattari, o vivido e o pensamento ganham contornos assinalados pela expressão, escapando da metafísica e da linguagem. A partir das ilusões dos universais de contemplação, de reflexão e de comunicação apresentados pelos referidos autores, o artigo procura marcar uma breve distinção entre arte-representação e arte-expressão, salientando os movimentos de tensão, absorção e fraturas, bem como a importância do improviso, do estrangeiro e da errância na criação. Esta dimensão estética, que também se faz ética e política, tensiona as fronteiras acadêmicas e epistêmicas, colocando em suspensão modelos, poderes e hierarquias tão caros à educação.
PALAVRAS-CHAVE: Expressão – representação – improviso – performance - devir RESUMEN: En la perspectiva nietzscheana, la verdad como construcción metafísica es inseparable de la representación. El trabajo propone abordar las rupturas con la representación en el ámbito del art. Al acercar el pensamiento de Nietzsche, que propone una estética de la existencia, con la concepción del arte de Deleuze y Guattari, lo vivido y el pensamiento adquieren contornos marcados por la expresión, escapando de la metafísica y el lenguaje. Basado en las ilusiones de los universales de contemplación, reflexión y comunicación presentados por estos autores, el artículo busca marcar una breve distinción entre “arte-representación” y “arte-expresión”, destacando los
1 Doutora em Educação/Universidade Federal do Ceará (UFC), docente da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira(UNILAB), coordenadora do Grupo de Estudos Estética da Existência (UNILAB). E-mail: [email protected]
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movimientos de tensión, absorción y fracturas, así como la importancia de improvisación, del extranjero y de vagar en la creación. Esta dimensión estética, que también se convierte en ética y política, tensa los límites académicos y epistémicos, poniendo en suspensión modelos, poderes y jerarquías relevantes para la educación. PALABRAS CLAVE: Expresión - representación - improvisación - performance - devenir
O texto tem fins didáticos e busca sistematizar de maneira esquemática os aspectos que
distinguem arte-representação de arte-expressão, utilizando a perspectiva de Deleuze e Guattari e
sua vizinhança com o pensamento de Nietzsche, o qual problematiza e suspende a verdade,
quando a vida é afirmada em sua força de criação. A escolha do termo arte-expressão consiste em
uma marcação gráfica para dissociar a arte da representação e da linguagem. Em “Crítica e Clínica”,
Deleuze utiliza o termo “modos de existência e de expressão2” para mencionar os três gêneros de
conhecimento presentes na Ética de Spinoza. O primeiro gênero abrange os signos ou afectos. O
signo, além de portar vários sentidos, indica o efeito de um corpo sobre outro. Este efeito é uma
afecção, a qual diz das sensações ou percepções. É possível deslizar para a pintura, o cinema, a
fotografia, a música, a dança, o teatro, etc., ligando os blocos de sensações e os modos de existir,
criados nos planos de composição da arte, aos modos de expressão, a fim de evitar a redução destes
modos a linguagens como ocorre, usualmente, na esfera da arte. É frequente a tipologização das
variedades e das manifestações ético-estéticas em “linguagens artísticas”. Apelar para as
linguagens acarreta em enclausurar em formas, significantes e interpretações aqueles planos de
composição cujos blocos de sensações fissuram tais funções explicativas e semióticas.
As características a serem indicadas entre representação e expressão no plano da arte não
atendem à reconstituição de uma história da arte, mas pretendem assinalar aproximações com as
“idades” da filosofia. Convém notar que as concepções estéticas mesclam-se às noções filosóficas,
gerando movimentos de tensão, absorção e rupturas.
Deleuze e Guattari apontam que a história da filosofia é composta por três espécies de
Universais: contemplação, reflexão, comunicação3. Estes podem ser considerados como “três
idades da filosofia, respectivamente, a Eidética, a Crítica e a Fenomenologia”. A Eidética é
assinalada pela objetividade, pressupondo o objeto ou a coisa em si, cuja essência assegura a fonte
2 DELEUZE, Gilles .Crítica e Clínica.São Paulo: Ed. 34, 1997. P. 156 3 DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia? São Paulo: Ed. 34, 1996, p. 65.
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da verdade, a qual é extraída pela contemplação. A Crítica reconhece a subjetividade, procede por
reflexão, pressupondo o sujeito como condição necessária ao conhecimento e à consciência. A
Fenomenologia (e a Hermenêutica) investe na intersubjetividade e na interpretação, considerando
a comunicação entre sujeitos que carrega códigos e significados portadores da interpretação de
mensagens.
Estes três sentidos também sustentam as diferentes abordagens constitutivas da história
da arte. Estas abordagens carregam explicações e interpretações através critérios universalizantes
(universais de contemplação, universais de reflexão, universais de comunicação) que remetem a
um plano de transcendência, concebendo a arte como representação.
A arte consiste em uma representação estética quando institui “regras e valores que
demarcam o belo, o universal, o imutável, a essência, a consciência, a estrutura, a significação, a
mensagem”4. A representação comporta a determinação de uma abstração que estabelece um
modelo ou um padrão a partir da divisão do mundo em binariedades (sensível/inteligível,
real/abstrato, essência/aparência...). A fixação de um referente estipula um centro, um padrão,
definido como original e verdadeiro. Este referente possibilita operar pela equivalência, isto é, pelo
critério de igualdade e semelhança que, ao reconhecer e identificar através do rebatimento sobre
o Mesmo, resulta em um traço extensivo e um valor universal. A determinação do modelo não
somente sustenta o julgamento, como também separa a arte da vida, tornando-a ora objeto de
apreciação, ora índice de conhecimento, ora consciência e cultura.
Deleuze e Guattari salientam que a “contemplação, a reflexão, a comunicação não são
disciplinas, mas máquinas de constituir Universais em todas as disciplinas”, confundindo os
conceitos com o plano e caracterizando a ilusão dos universais5. Deste modo, ocorre uma extensão
para o domínio da arte, aplicando os três sentidos dos universais às abordagens da arte-
representação. Nela, localizam-se as escolas e se classificam os estilos, além de estipular o que
pertence ou não à esfera da arte. A separação sujeito-objeto, que fundamenta a definição de
conhecimento e ciência, prolonga-se na divisão autor-obra, reproduzindo os critérios
determinantes das funções e das concepções de arte. A arte pautada pelo belo traz seu foco na obra
a ser observada, julgada e admirada como objeto de contemplação. O artista apresenta um dom e
uma genialidade comprovados pelo resultado estético da obra. Quando tratada como reflexão
4 KROEF, Ada; GALLICHIO, Gisele. Arte, Resistência. In: LINS, Daniel (Org.). Nietzsche/Deleuze: Arte, resistência. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. 5DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia? São Paulo: Ed. 34, 1996, p. 15 e 67-68
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crítica, a obra adquire nova significação. Ela consiste em um instrumento de consciência e de
conscientização provocado pelo autor que, na condição de sujeito e de vanguarda, desvela a
realidade. A arte ganha uma função focalizada na formação do sujeito através da obra que revela,
denuncia e suscita um conhecimento crítico e dialético sobre o mundo. Já como suporte de
comunicação, a obra de arte converte-se em mensagem, em objeto simbólico de troca. O artista,
na qualidade de emissor, faz da obra um conjunto de significados a ser decodificado pelo público,
entendido como sujeito receptor. Esta interação procede por interpretação. Os símbolos e os
signos contêm significados específicos a serem decifrados pelo espectador numa espécie de “isto
quer dizer que”, ou ainda, “o autor quis dizer que”, efetivando a troca simbólica.
A representação acarreta a reprodução da coisa, da realidade, da informação e considera
uma obra de arte original quando esta institui o modelo. A “originalidade” atribui valor ao objeto e
ao artista, bem como classifica estilos e define escolas6.
O conceito e a verdade presentes na história da filosofia delimitam a arte-representação.
Nietzsche enfatiza que o conceito como representação da coisa tem a função de “igualar o
desigual”, debulhando as coisas para encaixá-las na ideia, ignorando os traços singulares que elas
trazem para adequar ao modelo e confirmar a verdade, o real.
Assim como é certo que nunca uma folha é inteiramente igual à outra, é certo que o conceito de folha é formado por arbitrário abandono destas diferenças individuais, por um esquecer-se [ignorar] do que é distintivo, e despertar então a representação, como se na natureza além das folhas houvesse algo, que fosse ‘folha’, uma espécie de folha primordial, segundo a qual todas as folhas fossem tecidas, desenhadas, recortadas, coloridas, frisadas, pintadas por mãos inábeis, de tal modo que nenhum exemplar tivesse saído correto e fidedigno como cópia fiel da forma primordial7
A folha primordial revela a substância, a essência de um ser-folha convertido em modelo
ideal que serve de referente para comparar as demais folhas, consideradas cópias concretas
presentes na natureza. O procedimento descrito, de comparação e de identificação das folhas pela
ajuste ao modelo, assenta a transcendência. A ilusão de transcendência, conforme Deleuze e
Guattari, sempre remete a “imanência a algo”, fazendo com que o vivido seja submetido à ideia, a
um referente separado do mundo, apartando o pensamento da vida8.
6 A originalidade também serve como critério de mensuração para inserir a obra no mercado. Ela passa a atuar como uma “marca registrada” do autor e uma medida monetária. 7 Fragmentos extraídos de Verdade e Mentira, ⸹1. NIETZSCHE, Friedrich. Obras Incompletas. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 48. 8 DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia? São Paulo: Ed. 34, 1996, p. 67
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Nietzsche prossegue, assinalando a singularidade e a multiplicidade da natureza. Uma
natureza incompatível com as formas e os conceitos que a mensuram e a antropomorfizam, a fim
de extrair explicações e finalidades.
A desconsideração do individual e efetivo nos dá o conceito, assim como nos dá também a forma, enquanto que a natureza não conhece formas, nem conceitos, portanto também não conhece espécies, mas somente um X, para nós inacessível e indefinível [...] nossa oposição entre indivíduo e espécie é antropomórfica e não provém da essência das coisas [...] uma afirmação dogmática9.
Individual, aqui, não remete à unidade, diz do singular, quando ligado às forças que se
efetuam corpos. Forças e relações com outros corpos num movimento infinito e irredutível à forma
(seja como fenômeno, essência de fenômeno, estrutura ou matriz), a qual fixa a medida e o padrão
a serem copiados. Nietzsche indica o traço dogmático do conceito que procede por modelização e
binariedades, edificando a verdade, baseada na crença e na razão que sobrepõem o homem ao
mundo. Ao mesmo tempo, aponta para a potência da natureza em seu movimento vital cujos
fluxos, imprevisíveis e incalculáveis, engendram devires. Devires que ligam corpos, levando em
conta a multiplicidade e a heterogeneidade de suas composições, tornando impossível a
comparação e o enquadramento no ser e na estrutura. Devires que trazem a força do indiscernível,
do imperceptível e do impessoal. Devires que constituem intensidades vividas, aquilo que foge aos
limites e às molduras da episteme, da linguagem e do sujeito.
Além da ilusão de transcendência e dos universais já mencionados, há a ilusão do eterno
que, para Deleuze e Guattari, encontra-se vinculada aos conceitos como algo que se reproduz.10
Nietzsche os denomina “conceitos-múmia” que são manejados por filósofos, os idólatras de
conceitos. Nestes conceitos a vida é retirada: “Eles matam, eles empalham quando adoram (...)
todos eles crêem, com desespero até, no ser. 11” O conceito é separado do corpo e moralizado, uma
vez que os sentidos ligados às sensações estão acometidos de “todos os erros da lógica”. A este
respeito, Dias sublinha que os filósofos metafísicos criaram uma forma de pensar cujo excesso de
racionalidade em um corpo anêmico gerou seres aberrantes, seres aos quais sempre falta alguma
coisa12. Através da metafísica, nega-se o movimento e o tempo, nega-se a atividade transformando
o tempo em representação. A dicotomização temporalidade/eternidade acarreta a instauração do
mundo do devir como ilusório, visto que a metafísica não suporta o fluxo e o movimento. Na história
9 Fragmentos extraídos de Verdade e Mentira, ⸹1. NIETZSCHE, Friedrich. Obras Incompletas. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 48. 10 DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia? São Paulo: Ed. 34, 1996, p. 67 11 Conferir Crepúsculos dos Ídolos, a ‘razão’ na filosofia, III, §1. DIAS, Rosa DIAS, Rosa. Nietzsche, vida como obra de arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 72 12DIAS, Rosa. Nietzsche, vida como obra de arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p.72-73 e 76
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da filosofia, predomina a limitação dos conceitos a determinados quadros reconhecidos como
verdades eternas a serem reproduzidas, requentadas, polidas, caracterizando uma forma de
proceder que impede a criação, pois criar supõe diferir, errar, escapar destas rígidas margens. O
pensamento metafísico mumifica a vida e transforma a expressão em conservação através da
representação.
Por fim, Deleuze e Guattari indicam uma quarta ilusão correspondente à discursividade que
acata as proposições como conceitos. A discursividade acena para a relevância da linguagem na
determinação da verdade presente nos enunciados.
Nietzsche frisa “agora, com efeito, é fixado aquilo que doravante deve ser ‘verdade’, isto é,
é descoberta uma designação uniformemente válida e uniforme das coisas, e a legislação da
linguagem dá também as primeiras leis da verdade: pois surge aqui pela primeira vez o contraste
entre verdade e mentira13”. A contradição verdade e mentira contém uma implicação moral, a qual
define deveres, legitima metáforas e profere sentenças. Um encargo que “a sociedade para existir,
estabelece: de dizer a verdade, isto é, de usar as metáforas usuais, portanto, expresso moralmente:
da obrigação de mentir segundo uma convenção sólida, mentir em rebanho, em um estilo
obrigatório para todos”.
O filósofo provoca uma espécie de distância que se prolonga em um estranhamento das
designações de verdade organizadas pela linguagem. A orientação da verdade, que se sobrepõe à
vida através da determinação de uma metafísica transcendente, é manifesta em proposições que
dispõem certas espécies ilusões:
o que se passa com aquelas convenções da linguagem? São talvez frutos de conhecimento, do senso de verdade, as designações e as coisas que elas recobrem? É a linguagem a expressão adequada de todas as realidades? Que critério é esse que usa a equivalência para atribuir legitimidade às coisas? [...] Dividimos as coisas por gêneros, designamos a árvore como feminina, o vegetal como masculino: que transposições arbitrárias![...] preferências unilaterais, ora por esta, ora por aquela propriedade de uma coisa! [...][O formador de linguagem] designa apenas relações das coisas aos homens e toma em auxílio para exprimi-las as mais audaciosas metáforas. [...] Acreditamos saber algo das coisas mesmas, se falamos de árvores, cores, neve e flores, e, no entanto não possuímos mais do que metáforas das coisas[...].
As metáforas elegem figuras, sobrepondo-as ou justapondo-as através das analogias que
ignoram a composição das coisas em sua singularidade. Com isso, Nietzsche apresenta a definição
de verdade, a qual consiste em
um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma série de relações humanas que foram enfatizadas poética e retoricamente, transportadas,
13 As citações que seguem encontram-se em NIETZSCHE, Friedrich. Obras Incompletas. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 46-49.
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enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões das quais se esqueceu o que são, gastas e sem força sensível [...].
Esta breve definição conecta vários traços caros à transcendência: representação; unidade
e totalidade, sujeito e razão; linguagem, regra e medida-padrão. As metáforas e as metonímias
designam objetos e qualidades de objetos por substituição, estabelecendo uma conformidade. Elas
operam através da comparação e da semelhança (no caso da primeira) e da relação objetiva em que
uma característica particular (uma unidade) designa a totalidade do objeto (no caso da segunda).
Ambas denotam construções de um sujeito que, provido de razão, atribui explicações consolidadas
em regras e medidas, as quais são reveladas pela linguagem através da seleção de um referente, a
representação. Desta maneira, a verdade imputa a regra, elege o universal e instala a reprodução.
Representar é desvelar a verdade que se eterniza e se separa da força vital.
A proposição discursiva e lógica difere do conceito gerado com a filosofia da diferença, que
se desprende da verdade, repele a transcendência, abandona a representação para propor a
transformação do conceito em criação. A criação consiste em uma apreensão do desigual, do
díspar, do incomensurável, considerando a multiplicidade que define sua composição heterogênea,
tornando as coisas incomparáveis e diferentes, por isso, singulares. A ruptura com a representação
implica um pensamento imanente em filosofia, em que a diferença, ao se tornar afirmativa, não
reporta a nenhum referente ou modelo. Renunciar o modelo torna a verdade estranha, num
movimento que erra, distancia, suspeita e suspende padrões sustentados na representação, no
conhecimento, na linguagem. Errar a verdade implica destruir o sujeito e a arquitetura do
pensamento racional moderno; realizar a passagem do sujeito para o agenciamento crivado pela
multiplicidade. Não se trata de substituir termos, trocar sujeito por agenciamento, por exemplo, e
reproduzir a lógica binária, que parte de uma substância, uma origem, uma unidade, uma
interioridade. Errar e deslizar por uma superfície, experimentando as relações, pensando o
movimento e o sentido que se instauram. Errar supõe abandonar a verdade, os termos, os valores
e os juízos que ela fixa, explica e universaliza. O desvio do centro indica o improviso. Improvisar é
errar, deslizar pelas linhas de errância. Uma espécie de deriva, de encontro com o inusitado,
fazendo do erro criação. Linhas estrangeiras, que evadem dos pontos de referência, despojam-se
das equivalências, da qualidade de representar, de operar por coordenadas, as quais determinam
os limites e se estendem em metáforas e em sentenças. Uma evasão que despreza o valor moral e
seus constrangimentos para lançar-se à vida e transformar a distância em componente de
estranhamento, em perplexidade. Uma fratura na crença logocêntrica e seu prolongamento
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técnico-científico, que opõem pensamento e vida no plano de transcendência. Nas rachaduras da
verdade e da representação, vaza uma dimensão ética-estética capaz de estranhar o consolidado.
A criação, que dilui as binariedades, abandona a dicotomia real (concreto)/ abstrato, desfaz o
par sujeito e objeto, recusa as essências, escapa à linguagem, instaura um plano de imanência.
Neste movimento, o pensamento torna-se inseparável do vivido, exprime o vivido, produzindo
sentido. Sentido que, ao mesmo tempo, indica vetores e expressa linhas de força, diferindo do
significado. A filosofia da diferença cria conceitos que povoam o plano de imanência, ocupam o
horizonte do pensamento. Nele, os conceitos se fazem e desfazem num movimento infinito,
variando a cada encontro e cada vez e construindo-se por vizinhanças. O conceito diz da
singularidade do acontecimento (do vivido). Criação, expressão e experimentação, que ao levarem
em conta “o que se passa entre”, resistem à reprodução, à representação e à interpretação, as quais
buscam “o que isso quer dizer”. Sem remeter aos referentes, dispensando as explicações e
generalizações, aberturas são produzidas. Elas recusam a significação e possibilitam novos
sentidos (que exprimem as forças geradas nos encontros, expressam os devires). Daí, o movimento
de criação torna-se irredutível a qualquer forma de representar, fixar centro, padronizar, visto que
faz da diferença a potência e a efetivação da singularidade. O conceito não tem mais pretensão
explicativa e extensiva, ele diz do acontecimento, das relações, das tensões de forças em jogo, que
definem as linhas, dando contorno aos corpos.
A arte tranversaliza com a filosofia, produzindo um plano de composição de blocos de
sensações, afectos e perceptos, que expressam diferentes maneiras de existir. Cabe salientar que
sensação difere de sensibilidade e que afectos e perceptos divergem de emoções e percepções,
uma vez não presumem sujeito, nem indivíduo, nem se restringem a narrações. Deleuze e Guattari
(1996:247-248) afirmam que a arte jamais foi representativa: “composição, composição, eis a única
definição da arte. A composição é estética [...] é o trabalho da sensação” 14. No plano de
composição, os elementos são heterogêneos e fazem da obra de arte um monumento que conserva
e exalta o acontecimento não como memória, mas como fabulação através das sensações que
incitam devires do presente. Elementos com proveniências e velocidades diferentes permeiam o
plano, definem um território existencial e transformam-se em matérias expressivas, atuando como
marcas ou placas que balizam as fronteiras territoriais de um agenciamento poroso e efêmero.
Segundo Deleuze e Guattari, a matéria torna-se expressiva quando adquire “constância temporal
14DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia? São Paulo: Ed. 34, 1996, 247-248.
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e alcance espacial que fazem dela uma marca territorial [...]”15. Neste movimento, a matéria
expressiva caracteriza o “solo da arte” que “não é um privilégio do homem”. Cabe notar que a vida
carrega uma potência de criação cuja multiplicidade dilui os princípios e os valores racionais,
humanos e antropomórficos, considerados condições necessárias para se fazer a arte na esfera
semiótica.
Deleuze e Guattari afirmam que a arte pensa com blocos de sensações, gerando
deslocamentos, vibrações e contaminações por devires e afectos. Ela estranha o vivido, perspectiva
o instituído, indica a potência de outros modos de vida, cria paisagens a serem habitadas, traz o
inusitado (o acidente) e expressa o imperceptível. A vida caracteriza-se como uma obra de arte
porque consiste em um incessante processo que cria, não reproduz. Os encontros e devires ganham
expressão e tensionam um pensamento-movimento, um pensamento-vida, em direção à sua
afirmação.
A vida, para Nietzsche, é vontade de potência. Deleuze ressalta que a vontade de potência é
um elemento de onde procedem “simultaneamente a diferença de quantidade de forças postas em
relação e a qualidade que, nessa relação, marca cada força16.” Assim, ela permeia e instaura forças
assimétricas, porque não são proporcionais, mas diferenciais. Forças que, colocadas em relação,
qualificam-se como ativas e reativas. Deleuze também menciona que a vontade de potência implica
o acaso, pois “sem ele não teria nem plasticidade, nem metamorfose”17. Dias expõe a passagem
para a vontade criadora18, quando as forças criadoras predominam sobre as forças inferiores de
adaptação e de conservação.
O termo criação é revertido por Nietzsche, quando o desprende da referência teológica para
designar ações que não se esgotam. Criar supõe agir, engendrar forças ativas, fazer mundo. A
criação despreza a metafísica porque não concebe a existência pela falta e pela negação. Para faltar
é preciso comparar e para comparar é necessário um modelo (um centro como referência). A vida
não segue modelos. Ela cria, por isso para Nietzsche, existir é criar. O filósofo alemão também
recorre e amplia a noção de arte, a qual manifesta os atos que produzem continuamente a vida.
Assim, a partir da arte, Nietzsche vem definir a vida como vontade criadora. Ao privilegiar a
atividade, a vontade criadora assinala uma maneira de pensar por ação e movimento que diverge da
metafísica, a qual fixa o estável e o perene. Dias sublinha, na “Genealogia da Moral, a ação e a recusa
15DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1997, v. 4, p. 121-123. 16 DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a Filosofia. Porto: RES-Editora Ltda., s/d, p.77 17 DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a Filosofia. Porto: RES-Editora Ltda., s/d, . 81 18 DIAS, Rosa. Nietzsche, vida como obra de arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 64-65
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do ser: “não existe ‘ser’ por trás do fazer, do atuar, do devir; o ‘agente’ é uma ficção acrescentada à
ação - a ação é tudo”19.
Devir vida da arte, devir arte da vida
A criação permeia a filosofia e a arte, marcando as linhas de forças, os devires, os encontros.
A arte-expressão vem sinalizar as divergências da arte-representação. Estas dissensões estão
amparadas nas concepções filosóficas de criação e devir. Elas podem ser experimentadas com
Godard em “Je vous salue Sarajevo”20 que traz as linhas do vivido, as forças e poderes moleculares e
molares, as práticas e os investimentos dirigidos à organização e à imposição de um modo de vida
dominante. A arte-expressão problematiza o vivido pela sensação. Ela não descreve, nem narra,
nem explica, mas leva a pensar quando se é afetado pelas matérias expressivas, pelas figuras
estéticas indissociadas do vivido. O cineasta apresenta a divergência entre cultura e arte, que
abrigam, respectivamente, a representação e a criação. A primeira, cultura, referencia a morte e a
segunda, arte, exalta a vida. Uma sequência de imagens fotográficas inicia com a exposição de dois
soldados. O medo, a agonia e a morte são acompanhados pela tristeza melódica e os acordes
soturnos de uma orquestra. O texto soa como um lamento que detecta a existência da regra e da
exceção:
[...] Cultura é a regra e arte a exceção. Todos falam a regra: cigarro, computador, camisetas, televisão, turismo, guerra. Ninguém fala a exceção. Ela não é dita, é escrita: Flaubert, Dostoyeviski. É composta: Gershwin, Mozart. É pintada: Cèzanne, Vermeer. É filmada: Antonioni, Vigo. Ou é vivida e se torna a arte de viver: Srebenica, Mostar, Sarajevo. A regra quer a morte da exceção. Então a regra para a Europa cultural é organizar a morte da arte de viver, que ainda floresce.[...]
O filme de dois minutos traz um plano ético-estético e político através de uma fotografia de
jornal publicada por ocasião da Guerra na Bósnia e Herzegovina iniciada em 1992. Este Estado multi-
étnico é formado por sérvios, bósnios, croatas e iugoslavos, cuja diversidade religiosa (muçulmanos,
cristãos ortodoxos e católicos) torna-se pretexto dos interesses mundiais decorrentes do fim da
Guerra Fria, disparando uma guerra civil. Investimentos nacionalistas e forças militares, policiais,
paramilitares, em nome de uma limpeza étnica, atacam cruelmente a população.
Nesta guerra, os moradores da capital Saravejo foram mantidos sob o terror de um cerco que
durou quase 4 anos. A ação de provocar maior sofrimento possível aos civis teve como finalidade
19 NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral: uma polêmica. São Paulo: Cia da Letras, 1998, p. 36 20 Filme de Jean-Luc Godard disponível no site https://www.youtube.com/watch?v=LU7-o7OKuDg&t=7s
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coagir as autoridades bósnias a se submeterem às exigências sérvias21. Godard traz o horror da
guerra e da cultura como uma imposição violenta sobre o que difere. Com uma única imagem, ele
escapa da narração e da informação jornalísticas, conferindo movimento à fotografia que se
transforma em uma expressão plástica, musical, literária e filosófica. O filme fragmenta a imagem,
percorre os quadros e dimensiona a disparidade das forças, bem como a brutalidade do poder bélico.
Ele impacta, forçando a pensar o vivido e maneiras distintas de existir que são barradas em nome da
regra, como constrangimento a um único modo de vida, o qual justifica a guerra. Sua arte incita a
sensação desta truculência em nome da cultura, da Lei (Estado) e do capital. O filme realiza a
passagem da vida expressa em blocos de sensações para a arte de viver anunciada na potência das
vizinhanças étnicas. A exceção é o que escapa da reprodução. A arte escrita não remete à linguagem,
mas exibe a força da literatura. A exceção em diferentes modos de expressão carrega a força vital,
passando de um devir vida da arte para um devir arte da vida.
Em outro filme intitulado “Cinema e Prosa: na escuridão do tempo”22, Godard apresenta “os
últimos minutos do pensamento” em que sacos plásticos cheios de livros encontram-se depositados
na escada de uma casa, esperando para serem “devorados” pelo caminhão de lixo.
Concomitantemente às imagens, uma voz feminina lê fragmentos dos exemplares que ensaca:
“Penso, logo existo. O eu que eu penso não é o eu que sou. Por que? A sensação de existir não é
ainda um ‘eu’”
Descartar o racionalismo e suspender o sujeito, dissociar-se do eu e constituir exercício de
devir são disparados nestas provocações. As imagens brincam com a ação de descartar Descartes,
uma atitude que se depara com a existência e a multiplicidade “exteriores” a um eu e a um sujeito.
“É uma sensação irrefletida que nasceu em mim, mas... sem “eu”. Tal sensação está engendrada por
velocidades e intensidades diferentes, heterogêneas que atravessam e dão consistência a um corpo,
constituem um agenciamento.
Na imagem, mãos masculinas ajudam a retirar os livros da estante. Sobre a mesa, mãos
depositam estes volumes, mãos os retiram... Os gestos ganham voz com o timbre de um homem
maduro: “Oh, não se pode dizer nada sobre nada. Por isso não há limite no número de livros. Todos
os corpos, todas as almas juntas e tudo o que produzem, não tem mais o mínimo valor”. Na rua, o
caminhão de lixo recebe os volumes acompanhados da voz que afirma “isso forma uma parte do
infinito”. O pensamento, circunscrito ao conhecimento e à linguagem que sustentam a verdade e a
21 Convém observar que a maioria da população era formada por bósnios e muçulmanos. 22 Esta obra encontra-se disponível no site https://www.youtube.com/watch?v=gH4pjOP9MoQ
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regra, é engolido pelo movimento das lâminas do caminhão, misturando-se com restos e vestígios
das coisas mais banais e cotidianas. Coisas que aqueles livros desprezam. Pensar-se vida, inserindo-
se num movimento infinito que combina acaso e esquecimento.
O acaso, segundo Nietzsche, carrega as coisas mais cotidianas e traz um presente que é, ao
mesmo tempo, temporal e dádiva. O acaso “não é um incidente que devemos afugentar, mas o
elemento essencial que determina a plasticidade da vontade criadora”23, pois impulsiona a ação
criadora. O acaso gera encontros inusitados que são incompatíveis com a repetição como
reprodução e com o destino como fim. Ele dilui o sujeito, quando se defronta com a ilusão da certeza
e do controle, transformando-o em elemento e em força nas relações dispostas no presente que
vem tensionar a capacidade de criar. A criação carrega um presente que difere da linearidade
histórica. Com isso, evoca o esquecimento, a digestão e a alegria em confronto com a memória, o
passado e o sofrimento. Conforme Nietzsche, a vontade criadora quer o presente, o inesperado e o
acaso que leva ao improviso, caracterizando uma composição de ações, as quais dançam com o
imprevisto, num ritmo que marca o encontro com o aqui e o agora. Um encontro com o acaso, afirma
Nietzsche, “que toca conosco uma melodia24”. O devir arte da vida ocupa-se da vida como obra de
arte, assinalando trajetórias em linhas de errância, fazendo do improviso uma espécie de
performance.
Performance e improviso
Um breve levantamento acerca das inúmeras classificações e esforços de enquadramento
para definir performance no âmbito formal da arte indicam que ela, a performance, compreende
meios de expressão sem contornos específicos ou precisos. Alguns traços frequentes nas investidas
de conceitualização estão indicados pelos termos: sistema flexível e aberto, multifacetado, função,
forma de expressão, gênero, fusão de gêneros, multidisciplinaridade ou interdisciplinaridade,
evento, intervenção política ou ambiental, ritual, pura ação ou presença, espaços não convencionais,
“arte viva”, unificação da vida e da arte, artista-instrumento, corpo-meio, interação artista-plateia.
Há uma tendência em sustentar a perspectiva estrutural acomodando a performance no campo
simbólico, equiparando-a a um ritual que recorre aos recursos semióticos para estabelecer
significados, realocando o referente da arte-representação.
23 DIAS, Rosa. Nietzsche, vida como obra de arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 79 24 DIAS, Rosa. Nietzsche, vida como obra de arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 78
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Distinções entre performance, happening e live art decorrem de derivações que desembocam
em vertentes sob tais denominações. Na tabela apresentada por Renato Cohen25, o caráter ritual e
a modalidade de apresentação assinalados pelo evento consistem em aspectos comuns, enquanto
que preocupação conceitual e a estruturação individual qualificam a performance. Outros aspectos
são demarcadores de divisões, tais como: maior ou menor participação do público, espontaneidade,
pluralidade de meios, tendência ao improviso e ao descontrole. Alguns aspectos como a
diversificação e o uso do espaço, o foco no corpo (antropomórfico), em especial no corpo do artista,
a ênfase ao ritual tornam-se pontos mais recorrentes nos discursos acerca da performance. O ritual
reporta ao imaginário ou ao simbólico. O imaginário estabelece uma correlação com o real através
de um jogo dialético constituído pela oposição e pela complementaridade. Gilles Deleuze destaca
que “ora invocamos o ponto transcendente em que o real e o imaginário se penetram, e se unem,
ora sua fronteira aguda, como o gume de sua diferença26”. A definição de imaginário envolve “dois
jogos de espelho, de desdobramento, de identificação e de projeção invertidas, sempre ao modo do
duplo”. O simbólico atua como elemento da estrutura27, como fonte de interpretação, inserindo um
terceiro termo que descobre o ponto da linguagem, circula e determina os significados pela posição
na cadeia significante. A estrutura do inconsciente é linguagem. Os corpos falam pela linguagem
dos sintomas. As coisas revelam a linguagem dos signos. A metáfora, a intersubjetividade e a
comunicação concernem ao estruturalismo, que fixa referente, opera por representação e erige
transcendência.
A performance, especialmente no teatro e em suas derivações cênicas, tende a reforçar a
ideia mítica e/ou ritual de viés estruturalista sustentada pela noção de troca simbólica. Um
repertório que busca um tipo de estranhamento, de atenção à vida, com exaltação do corriqueiro,
do comum através da sua sacralização. Há uma valorização, uma significação instaurada com um
processo de sacralização do profano, de divinização do cotidiano, amparado em recursos
interpretativos, sejam semióticos, sejam psicanalíticos. Componentes, capturados pelos artistas,
críticos e público, investem na representação pelo reconhecimento de um significante, que
desvenda e distribui significados ritualizados na e pela performance.
25 COHEN, Renato. Performance como Linguagem: criação de um tempo-espaço de experimentação. São Paulo: Perspectiva, 2002. 26 DELEUZE, Gilles. A Ilha Deserta:e outros textos São Paulo: Iluminuras, 2006, p. 222 e 224 27 Conforme Lévi-Strauss, a estrutura “oferece um caráter de sistema” em que a modificação de um dos elementos acarreta na modificação de todos os outros. Este sistema de relações permite a construção de modelos preditivos e explicativos dos fatos observados que podem ser reencontrados em objetos diferentes. LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996, p. 316
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A perspectiva simbólica procura desvendar uma invariante que configura a estrutura a ser
preenchida por conteúdos variados, os quais conformam o repertório proposto pelo artista. Esta
estrutura assegura a comunicação, a interação, a imersão proposta com a performance através da
ressonância do referente lançado pelo artista, o qual pretende atuar como uma espécie de xamã,
garantindo a eficácia do espetáculo.
A equiparação ao xamanismo, explicado pela antropologia através das categorias
estruturais, vem justificar a arte como mensagem e troca simbólica, atribuindo uma função ritual
para performance. Entretanto, esta comparação, quando busca dar estatuto a performance, vem
corroborar para redução da percepção, do pensamento e do modo de vida indígena a uma esfera de
ação equivalente à representação, ignorando a mutliplicidade e singularidade indígenas.
A performance concebida como representação e espetáculo ritual determina um referente
que repercute nos espectadores por analogia, correspondência e semelhança. Sujeito e cognição
são reforçados pela linguagem – palavras e gestos – inerente a um sistema semiótico que viabiliza a
equivalência e a troca simbólica. Neste vetor, as práticas artísticas operam máquinas binárias,
supõem a essência do espírito humano para investir na transcendência. O significante atua como
“chave” da interpretação, fixando sentidos em significados que sobrecodificam a vida. A significação
e a ressignificação são reproduzidas em espetáculos que corroboram para o teatro-representação.
Neste movimento, pensamento e vida, arte e vida permanecem separados.
Linhas de uma arte-expressão encontram-se no Teatro da Crueldade, proposto por Antonin
Artaud, trazendo elementos e rupturas que precedem a performance28, abrindo para novos sentidos.
Interessa destacar aqueles componentes que tensionam a criação e trazem um conceito de
inconsciente distinto da estrutura e da representação. Um incosnciente-usina que não representa,
nem interpreta, nem explica. Um inconsciente que produz, adquirindo expressão e conteúdo nos
agenciamentos, nos encontros que se estabelecem aqui e agora, atravessados pelo acaso e pelo
improviso. Artaud menciona a importância de “romper com a linguagem para tocar a vida”,
rejeitando os poderes do homem e tornando “infinitas as fronteiras do que chamamos realidade29”.
A vida é definida como uma “espécie de centro frágil e turbulento que as formas não alcançam”.
28 Há uma ambiguidade no texto de Artaud, “O Teatro e seu Duplo”, que possibilita a restituição da representação através da linguagem e da comunicação pela retomada no traço religioso e ritual. É possível perceber o atravessamento do surrealismo e do simbolismo com o enfrentamento e o combate aos elementos cognitivos, explicativos, moralizantes e psicológicos do teatro europeu e da civilização ocidental (moderna), ao mesmo tempo que se dá margem para a restauração da transcendência e da consciência pelo imaginário enfatizada com o conceito de duplo presente na obra. ARTAUD, Antonin. O Teatro e seu Duplo. São Paulo: Martins Fontes, 2006. 29 ARTAUD, Antonin. O Teatro e seu Duplo. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 8
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Neste sentido, a vida escapa da representação e da linguagem, as quais consistem em uma maneira
de capturá-la e organizá-la. O autor lança a potência do teatro como processo de produção,
descontrole, desordem, incerteza, contágio, que procede por tematizações, percorrendo linhas
abstratas, informes, intensidades e vibrações cujos deslocamentos dirigem-se para a criação. Para
ele “uma verdadeira peça de teatro perturba os sentidos, libera o inconsciente reprimido, leva a uma
espécie de revolta virtual[...]30”. Um teatro capaz de provocar um flagelo dos costumes, um delírio,
agindo em coletividades, transformando o sentido, restituindo conflitos e forças, lançando o
impossível, o impensado. Artaud denomina de linguagem concreta do teatro, a poesia para os
sentidos, a qual se separa da palavra, expressa pensamentos sem recorrer à linguagem articulada,
fazendo da cena uma superfície de registro, de dispersão e de expressão dos sentidos sem
correspondência com a palavra e o diálogo. Sons, ruídos, gritos, melodias, gemidos mesclam-se a
outros objetos e componentes luminosos, gestuais, “humanos”, estabelecendo relações e ações
imprevisíveis distribuídas neste campo que se constrói em cena. Há uma profusão de modos de
expressão que ganham sentido nos fluxos, sem subordinação, nem equivalência, nem reprodução.
Artaud denuncia o voyerismo presente nas dicotomias ator e espectador, espetáculo e representação da
realidade. Tais dicotomias reforçam a paralisia e a reprodução. O processo de uma experimentação
teatral, encorajada por Artaud, precipita a imanência e sublinha o improviso. Deleuze e Guattari
afirmam que “improvisar é ir ao encontro do mundo, ou confundir-se com ele31”, um devir-mundo
que se liga a um pensamento imanente indissociável da vida. O devir arte da vida penetra no
cotidiano, diluindo as fronteiras disciplinares e cognitivas para experimentar a vida com as forças
plásticas de um pensamento-mundo tornado uma estética da existência.
O recorte proposto visa a relação performance e improviso, a partir do conceito de
agenciamento (maquínico do desejo e coletivo de enunciação) de Deleuze e Guattari. Aqui, interessa
crivar a noção de performance com um modo performativo. Este modo, constitutivo dos atos de fala
de John Austin, é considerado por Deleuze e Guattari uma fissura na linguagem por demarcar
relações imanentes, relações intrínsecas entre a fala e a ação, abarcando uma ação que se realiza
quando dita32. Conforme os autores, a linguagem caracteriza-se por transmissão de palavra de
ordem, por um discurso indireto, de um signo que remete a outro signo, narrando aquilo que não se
percebe diretamente. “Ela não é vida, dá ordens à vida, consistindo em dever no sentido moral, é
30 ARTAUD, Antonin. O Teatro e seu Duplo. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 24 31 DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996, v. 4, p.117 32 No enunciado performativo, Austin salienta que o verbo não descreve, mas realiza a ação DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed.34, 1995, vol.2.
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feita para obedecer e fazer obedecer33”. A palavra de ordem remete aos comandos e aos “atos
ligados aos enunciados por uma obrigação social”. Como ilocutório, o performativo consiste em um
ato instantâneo. Os atos instantâneos caracterizam-se por atos imanentes à linguagem. Eles
quebram com o discurso indireto, realizando através do enunciado uma passagem, uma
transformação incorpórea que, ao se referir aos corpos, se insere em suas ações e paixões34. Ocorre
uma passagem para os afectos. Essa passagem torna-se importante na arte da performance por
poder desencadear deslocamentos subjetivos, quebras das modelizações, modificações das ações.
Guattari afirma que a arte da performance leva “ao extremo as implicações das dimensões
intensivas, a-temporais, a-espaciais, a-significantes a partir da teia semiótica da cotidianeidade35”.
Ela gera um descentramento estético, uma “multiplicação polifônica dos componentes de
expressão”, desconstruindo estruturas e códigos em vigor através de matérias de sensação,
lançando focos enunciativos que buscam instaurar novas clivagens.
Neste sentido, a performance em arte transforma-se em improviso num encontro com o
imprevisível. O improviso percorre as “linhas de errância com volteios, velocidades, movimentos,
gestos, sonoridades diferentes”, definindo agenciamentos por desterritorialização dos meios, por
extração de componentes heterogêneos que, arranjados, marcam distâncias, relações e
singularidades, sem homogeneizar, nem hibridizar36. Além de desfazer enquadramentos e resistir
às determinações molares, que são as padronizações, improvisar consiste em ativar uma
composição por variações, modulações, desvios, vizinhanças que caracterizam um cromatismo
generalizado, impossibilitando a determinação de um centro através da conjunção “e”, do devir. O
improviso é produção de devires. Devir-mundo que “(...) põe em jogo o cosmo com seus
componentes moleculares37”, procedendo por vizinhança, por zonas de indiscernibilidade, por
contágio e eliminando a analogia, a semelhança, “tudo o que excede o momento, mas colocando
tudo o que o inclui”. Tornar-se mundo acarreta em não se fazer notar, em se tornar desconhecido,
impessoal, assubjetivo, linha abstrata, sem forma, nem função, conjugada com outras linhas, outras
peças. Um devir-imperceptível só pode ser percebido ao se tornar molecular, passando por linhas
33 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed.34, 1995, vol.2, p. 18 34 Qualquer diagnóstico grave pode ser um exemplo de um ato ilcutório. No momento em que o médico declara o diagnóstico (o qual funciona como uma espécie de tarja), modificam-se imediatamente todas as ações e as sensações do corpo diagnosticado, provocando uma mudança das posturas e das ações no tocante à vida. Um diagnóstico, quando recebido, leva a uma avaliação instantânea de modo de viver e implica uma transformação, que questiona as modelizações, atravessa o desde as percepções cotidianas, as atenções às relações (humanas e não-humanas) até hábitos alimentares e prazeres efêmeros. O tempo converte-se em duração. A vida é percebida e vivida em suas intensidades. A escala de valores passa a ser redimensionada. 35 GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p.114-115 36DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996, v. 4, p.117. 37 DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996, v. 4, p. 73
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silenciosas e clandestinas. O improviso é encontro, devir, que adquire sentido e consistência pela
vizinhança dos agenciamentos, pela relação, pelo ritmo, pelas intensidades, pelo que passa entre os
componentes colocados em jogo. Ele articula a repetição dos meios com a diferença dos ritmos,
impedindo a reprodução, pois institui o novo a cada vez. No improviso, o inconsciente é maquínico
e difere do ritual que revela um inconsciente estrutural. O improviso ativa forças de criação, exerce
a experimentação. Experimentação que possibilita a vida-arte e arte-vida, cujos vetores devir vida
da arte e devir arte da vida lançam a potência do devir da arte nos estados vividos, apreendendo a
vida como obra de arte. Rosa Dias destaca, em Nietzsche, que a vida como obra de arte concerne à
“arte de criar a si mesmo, isto é, de sair da posição de criatura contemplativa e adquirir hábitos e
atributos de criador, ser artista de sua própria existência38”. A vida como obra de arte assinala a
dissolução da fronteira entre arte e vida pelo atrevimento de singularizar. O incomparável e o
incomensurável permeiam as relações cotidianas, moleculares numa superfície de co-existências e
de exercício da diferença, em que a reprodução, a analogia, a correspondência dissipam-se pelo
abandono da representação, do referente, do padrão, da unidade, da origem. Neste processo,
ocorre a dispersão de práticas reservadas aos artistas entendidos como uma ‘casta’ responsável pela
condução de um espetáculo. A própria noção de espetáculo esmorece, uma vez que ela se encontra
vinculada à exibição, à contemplação e à representação.
A invasão da arte na dimensão vivida, cotidiana, desfaz o limite da arte traçada como esfera
semiótica, quando a diferença é exercida, quando a criação efetiva-se a cada conexão, a cada
relação. O deslocamento dos sentidos, a inversão dos vetores, dirigida à experimentação arte-vida,
incitam o processo de tornar-se artista com a produção de si39, a qual é considerada afirmação da
diferença. O embaralhamento e a criação de relações inusitadas, irredutíveis aos modelos, às
explicações e ao controle, disparam forças capazes de constituir uma ética inseparável das
dimensões estética e política, assinalando agenciamentos concretos de um modo de vida
insubordinado aos enquadramentos e esquemas de subjetivação ligados ao organismo e ao
antropomorfismo; à significação e à linguagem; à subjetivação e à sujeição.
O improviso caracteriza-se pelo encontro com o acaso, um exercício de devir que tensiona
cartografia. Ela não é um procedimento metodológico ou acadêmico, mas uma maneira de se inserir
e se situar nas relações estabelecidas, apreender as tensões, as ações e as paixões, as proveniências,
38 DIAS, Rosa. Nietzsche, vida como obra de arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p.20 39 A produção de si não possui nenhuma relação com o indivíduo e a identidade. Ela realiza a passagem, assinala a singularização em que percebe-se mundo, numa relação rizomática e descontínua de forças que dão contorno aos corpos num movimento infinito através de uma cartografia.
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os componentes e as velocidades que engendram um agenciamento. Cartografar, para Guattari
implica “discernir os componentes postos em jogo e os universos de referências correspondentes40”.
A cartografia visa construir mapas dos processos que estão sempre em obra. Ela analisa o
acontecendo, produz uma experimentação que traça percursos imanentes à própria produção da
realidade entendida como multiplicidade, viabilizando a transvaloração. Improvisar leva a compor,
percorrer linhas que fazem agenciamentos, ativando forças afirmativas e processos de
singularização. O agenciamento consiste em um encadeamento de afectos com velocidades
variáveis, precipitações e transformações em correlação com o fora, instaurando anéis abertos e
contornos mutantes. Ele oscila entre um fechamento territorial e uma abertura desterritorializante
que o conecta no cosmos e em outros agenciamentos41.
A performance, quando relacionada ao improviso, dispara estranhamentos, desvios de
fluxos, abandono de modelos, suspendendo a verdade e a realidade. Ao mesmo tempo, exerce
composição e criação. O improviso indica a desterritorialização, a linha de fuga de um centro. Linha
lançada à incerteza que, sem se paralisar, desliza entre os componentes, faz cortes e conexões,
produz novos sentidos, inesperados, imprevisíveis, ganhando consistência em novos
agenciamentos. Conforme Deleuze e Guattari, um agenciamento é simultaneamente maquínico do
desejo e coletivo de enunciação. O agenciamento maquínico efetiva-se pela mistura de corpos, de
ações e de paixões. Ele é um corte radical entre signos e objetos. O agenciamento coletivo de
enunciação funciona diretamente no regime de signos e se encontra atrelado ao processo de
subjetivação e de significação.
O agenciamento é um acoplamento de máquinas em que investimentos molares apostam na
reprodução de um padrão dominante e vêm reproduzir o capital42. Ele também produz devires
moleculares capazes de criar um sentido diferente com a entrada ou saída de um componente
desterritorializado que o abre para outros agenciamentos, modificando as relações de forças com
potência de afirmar a vida. Guattari assinala a importância de romper com a serialidade dos
dispositivos de subjetivação para produzir processos de singularização, de afirmação da
singularidade atravessada pela relação diferencial dos componentes constitutivos do
agenciamento, pela distância entre agenciamentos e, simultaneamente, pelos traços comuns que
40 GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p.84 41 Sobre as passagens do agenciamento, conferir DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Ed. 34 1997, p. 151. 42 Na forma molar, forças internas moleculares atuam em conjunto, estabelecendo uma maioria, um padrão dominante, em que as relações são localizáveis, covalentes, arborescentes e operam por encadeamento. Na forma molecular, as ligações não são localizáveis, nem covalentes. Elas são maquínicas, indiretas, mutantes e operam por discernimento.
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os percorrem. A cartografia, ao discenir as forças e os componentes em jogo, leva ao improviso na
ordem das paixões e das ações, efetivando uma dança que percebe e acolhe a vida em direção a
novos sentidos, imprevisíveis, inusitados, insubordinados, resistentes, e também abertos às forças
capazes de convergir e aumentar a potência de existir. Uma dança cujas marcas expressivas e
plásticas carregam atitudes éticas e estéticas de uma maneira de viver.
A cartografia constrói um mapa de um percurso estrangeiro e inusitado, precipitando um
estranhamento radical aos pressupostos científicos que fixam hierarquias e valores. Uma linha
transversal atravessa e dissipa as fronteiras disciplinares, cruzando diferentes perspectivas,
renunciando dicotomizações. A cartografia compõe uma anticiência. Ela não possui intenção
explicativa, não visa exprimir um conhecimento científico, nem busca um sistema interpretativo
com suas invariantes universais. As construções explicativas estabelecem determinantes causais
para dar conta deste ou daquele resultado e, com isso, reportam-se à(s) origem(s).
Nietzsche penetra em terras ignoradas pela metafísica quando incita um estranhamento
acerca da verdade. Ele cria um pensamento estrangeiro àquelas determinações, àquelas
significações, insubordinando-se aos universais e aos valores morais, problematizando a
reprodução inerente à representação. O estrangeiro traz partículas imperceptíveis que penetram
em territórios acadêmicos e epistêmicos, tensionando os limites da verdade e do conhecimento em
direção ao um pensamento-vida. Um pensamento que encoraja a penetrar no desconhecido, no
impensado.
O improviso articula-se à cartografia demarcando o que se passa e criando com. Improviso e
acaso tensionam a performance, que escapa do plano técnico-artístico e lingüístico, ganhando
movimento e vida no devir-mundo. Um movimento que estranha e abandona a verdade; procede
pela cartografia, pelo esquecimento e pelo devir. Linhas indicam os processos de singularização,
quando recusam a culpabilização, a segregação e infantilização. Os fluxos e as forças enfrentam a
culpabilização e a segregação que articulam o ser, a identificação e a representação, sustentando a
negação, a falta, o ressentimento e a dívida; resistem à infantilização que supõe “falar por”
suportado na linguagem, na verdade e na interpretação segundo um modelo semiótico; atacam a
subjetividade que procede pela equivalência e pela produção de esquemas de submissão e de
sujeição. Improvisar traz a ousadia de acolher o insólito, percorrer o movimento que compõe a
estética da existência.
Arte-expressão: quando se estranha a verdade, pp. 685-704
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“FIM DO JUÍZO”, SINTOMATOLOGIA E
EXISTÊNCIA EM DELEUZE
Leandro Lélis Matos1
RESUMO: O objetivo deste artigo é apresentar algumas considerações de Deleuze acerca do “fim do juízo” a partir de sua apropriação do tema das forças elaborado por Nietzsche. A questão que atravessa o presente texto é sob quais condições Deleuze elabora uma resistência ao sistema do juízo. Para tanto, serão contempladas as teses de David Lapoujade sobre o fim do juízo em Deleuze e de Anne Sauvagnargues sobre uma sintomatologia composta pela aliança conceitual de Deleuze com Nietzsche. Em seguida, será discutido como essas duas teses convergem para a abordagem de Deleuze acerca da arte e porque a crítica ao sistema do juízo pode suscitar uma discussão sobre a existência. PALAVRAS-CHAVE: Deleuze; juízo; sintomatologia; existência. ABSTRACT: The aim of this paper is to presente some Deleuze’s considerations about the “end of judgement” from his appropriation of Nietzsche’s typology of forces. The central question this paper will address is under what conditions Deleuze formulated a resistance against the system of judgmen. To follow this objective, will be contemplated David Lapoujade’s thesis about the end of judgment in Deleuze and Anne Sauvagnargues’s thesis about the symptomatology composed by Deleuze’s conceptual alliance with Nietzsche. Then will be discussed how the two theses converge to Deleuze’s approach about art, and why the critical for judgment’s system may make an discussion about the existence. KEYWORDS: Deleuze; judgement, symptomatology; existence.
1 Doutorando em Filosofia (UFMG) pela linha de pesquisa Estética e Filosofia da arte. Membro do GT Deleuze/Guattari-ANPOF.
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Introdução
Em Para dar um fim ao juízo, Deleuze anuncia que uma teoria do juízo foi elaborada e se
desenrolou da tragédia grega à filosofia moderna. A novidade dessa reflexão é compreender o juízo,
em vez da ação, como trágico. O juízo foi explorado por Kant em sua famosa Crítica da faculdade de
julgar (CFJ), que reivindicava uma subjetividade universal como o alicerce da sua teoria. No entanto,
exceto a importância dada por Deleuze à relação paradoxal entre as faculdades na Analítica do
sublime, suas posições ante a CFJ não são amistosas, pois, segundo o autor, essa obra edificou um
“fantástico tribunal subjetivo”2, em vez de uma crítica do juízo propriamente dita.
Mantendo Nietzsche no horizonte, a tese de Deleuze sobre o juízo é a de que ele é originário
de uma “forma moral e teológica”, forma esta que associa a existência com o infinito de acordo com
“uma ordem do tempo”. Não foi o juízo que se estendeu ao infinito, mas foi pela ação de levar ao
infinito que o juízo se tornou possível. A condição do juízo é determinada pela “suposta relação entre
a existência e o infinito na ordem do tempo”3. Deleuze reforça que não basta remontar a um pré ou
a um antejudicativo para sair desse sistema o qual tudo abarca e todas as coisas pretende julgar.
Então, a resistência ao sistema do juízo se dá pela constituição de um sistema dos afetos. Essa
resistência é explicitada por meio de um combate, o qual nos é constitutivo, e em vez de reproduzir
juízos, o combate “faz existir”. Dessa maneira, a saída proposta por Deleuze é afirmar a existência
em oposição ao sistema do juízo.
A existência possui cinco características: “a crueldade contra o suplício infinito, o sono ou a
embriaguez contra o sonho, a vitalidade contra a organização, a vontade de potência contra um querer-
dominar, o combate contra a guerra”4. A tarefa de reconstituir os cinco confrontos é demasiada
estimulante, mas em outra situação, talvez, poderei me prestar ao devido empenho exigido à sua
execução. No momento, considero mais pertinente lançar luz sobre a seguinte questão: em quais
condições Deleuze restitui a força combativa da existência contra o sistema do juízo?
Encaminharei as considerações ao problema com base nas interpretações de dois
importantes estudiosos do pensamento deleuziano. A primeira, de David Lapoujade, defende que o
fim do juízo implica necessariamente a abolição do fundamento; e a segunda, de Anne
Sauvagnargues, sustenta a constituição de um sistema dos afectos no interior de uma “filosofia das
forças”, que corresponde a uma sintomatologia. Após a passagem pelas duas interpretações,
2 DELEUZE. Crítica e clínica. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1ª edição, 1997 (3ª reimpressão – 2008), p. 143. 3 DELEUZE, Crítica e clínica, p. 144. 4 DELEUZE, Crítica e clínica, p. 153.
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analisarei em que medida a existência, enquanto experimentação vital em uma relação privilegiada
entre filosofia e arte, pode ser compreendida como uma resistência ao sistema do juízo.
I. “Para dar um fim” ao fundamento
Iniciemos com a tese de Lapoujade. Em Deleuze, “a crítica do fundamento é
indissociadamente uma crítica do juízo”5, portanto dar um fim ao juízo equivale a dar um fim ao
fundamento. Lapoujade justifica essa tese afirmando que julgar não significa fundar. Julgar diz
respeito à obediência dos seres que são julgados aos designíos do fundamento. Mas o que é fundar?
Para Deleuze, “fundar é sempre fundar a representação”6. É da ação do fundamento que emana o
pensamento da representação, com o qual a filosofia deleuziana da diferença rivaliza.
Lapoujade ressalta que uma das maiores questões da filosofia deleuziana é a questão de
direito (quid juris?). Ao perguntar “com que direito?”, Deleuze indaga a legitimidade de um fato. O
fato é uma pretensão, todo fato exige algo, e o direito julga a legitimidade da exigência, ou seja, se
ela é bem fundada ou não7. Para julgar, é preciso um critério, nesse caso a pretensão é julgada a
partir de um fundamento. As duas filosofias que melhor instituíram o fundamento foram o
platonismo e o kantismo. O platonismo criou o fundamento no âmbito metafísico como critério de
seleção para julgar quem é o melhor pretendente para participar da Ideia; e o kantismo erigiu o
fundamento no domínio do transcendental, objetivando determinar o conhecimento com base na
identidade do conceito e julgar a legitimidade dos juízos sintéticos a priori.
Nessas filosofias, o fundamento atribui um solo ao pensamento e, ao mesmo tempo,
funcionou como princípio determinante para a distribuição desse solo. Como afirma Lapoujade, essa
é a tarefa do que Deleuze denomina de “imagem do pensamento”, ou seja, prejulgar “tanto a
distribuição do objeto e do sujeito quanto do ser e do ente”8. O pensamento atua de acordo com as
determinações do fundamento, que atribui o direito da distribuição e da hierarquia dos seres sobre
a terra. Distribuir e hierarquizar são, portanto, as duas operações pelas quais o fundamento “exerce
sua soberania, tanto sobre o Ser quanto sobre o pensamento”9. Por essa razão, julgar é submeter os
seres às pretensões do fundamento.
O fundamento imprime sua soberania por meio da distribuição e da hierarquia, ou seja, as
duas operações do juízo. Deleuze observa que o juízo opera sempre por duas funções principais: “a
5 LAPOUJADE, David. Deleuze, os movimentos aberrantes. Trad. Laymert Garcia dos Santos. São Paulo: n-1 edições, 20015, p. 58. 6 DELEUZE. Diferença e repetição. Trad. Roberto Machado. Rio de janeiro: Graal, 2006, 2ª edição. p. 379. 7 LAPOUJADE. Deleuze, os movimentos aberrantes, p. 25. 8 DELEUZE. Diferença e repetição, p. 192. 9 LAPOUJADE. Deleuze e os movimentos aberrantes, p. 58.
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distribuição, que ele assegura com a partilha do conceito, e a hierarquização, que ele assegura pela
medida dos sujeitos”10. As duas faculdades no juízo correspondentes a essas operações dizem
respeito ao senso comum e ao bom senso. No senso comum, o juízo assegura o privilégio legítimo
de uma forma de identidade, sendo ele o responsável pela distinção das partes. Com isso, o juízo
subsidia um sentido partilhado entre os seres garantindo-lhes uma semelhança. O bom senso
equivale à hierarquia que regula os seres de acordo com suas gradações de proximidade ou
distanciamento ante um princípio de ordenação. Por meio dessa dupla operação, o juízo mantém
um laço firme com a questão de direito, visto que o direito é determinado e distribuído pelo juízo.
De acordo com Lapoujade, não adianta pretender dar um fim ao juízo se o fundamento
permanecer acima do ser e do pensamento, uma vez que o fundamento concede “a todo juízo um
travo moral”11, abarcando tanto os juízos morais quanto os juízos do conhecimento. A pretensão de
fundar é julgar de acordo com “um direito que procede da forma de identidade do fundamento”12.
Esclarecendo esse círculo vicioso no qual estão encerrados o fundamento e o juízo, Lapoujade afirma
que se julga de acordo com o direito, mas “o direito só existe e tem sentido positivo por e para aquele
que julga. O juízo é a ratio essendi do fundamento, enquanto o fundamento é a ratio cognoscendi do
juízo”13. Esse raciocínio reforça como o juízo está a serviço do fundamento com o objetivo de manter
os seres e o pensamento sob o seu domínio, o que nos remete à fundação do sistema do juízo, tal
como Deleuze constatou evidenciando a sua origem moral. Dessa maneira, o fim do juízo procede
como uma crítica ao fundamento. Isso é possível se o solo do fundamento sofrer um grande abalo,
assim como propõe Deleuze, com forte inspiração em Nietzsche: o “desmoronamento, um
deslizamento de terreno, uma perda de horizonte (...)”14.O fim do juízo significa, portanto, explorar
o fundamento até o ponto no qual ele não seja mais capaz de fundar. Ou seja, ultrapassar o
fundamento e fazê-lo desabar “sob nossos pés e, com ele, o que o funda, como se fosse preciso
passar necessariamente pela prova de uma catástrofe”15, como afirma Lapoujade. Ora, se o entrave
do juízo está no fundamento, por que a filosofia deleuziana não o recusa logo de partida?
Deleuze não pretende eliminar o fundamento, mas subvertê-lo. Toda questão de direito é
crítica, e ela assim se torna quando não abre mão de julgar a legitimidade das pretensões e de dispor
ou não um campo a um ou a outro ser. Todavia, ressalta Lapoujade, a filosofia nunca é neutra ou
10 DELEUZE. Diferença e repetição, p. 63. 11 LAPOUJADE. Deluze e os movimentos aberrantes, p. 58. 12 LAPOUJADE. Deluze e os movimentos aberrantes, p. 58. 13 LAPOUJADE. Deluze e os movimentos aberrantes, p. 58. 14 DELEUZE. Crítica e Clínica, p. 144. 15 LAPOUJADE. Deleuze, os movimentos aberrantes, p. 59.
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meramente descritiva, ela é sempre crítica porque não cessa de julgar e avaliar16. A filosofia de
Deleuze não foge a essa regra. O que distingue a filosofia deleuziana do pensamento da
representação são os critérios com os quais se julgam e avaliam as pretensões. A questão de direito
se propõe a determinar um critério para julgar o fato, mas no pensamento da representação ela se
aferra à “determinação de um fundamento”. Se Deleuze mantém a importância da investigação do
fundamento é porque “a procura de um fundamento forma o essencial de uma ‘crítica’, que deveria
inspirar-nos novas maneiras de pensar”17. No entanto, o fundamento não pode ser superior ao
fundado, sob o risco de produzir uma crítica que apenas endossa “as maneiras de pensar
tradicionais”18. Então, Deleuze insiste na questão do fundamento para forçá-lo ao limite
perguntando “o que funda?”, até chegar a um desfundado que, como afirma Lapoujade, “acarreta
uma crítica do valor de verdade e da verdade como valor”19.
Nietzsche cumpriu essa tarefa ao “explorar o sem-fundo diferencial da vontade de
potência”20, revirando a metafísica pelo avesso. A filosofia deleuziana herda esse gesto nietzschiano
na medida em que é constituída sobre o sem-fundo, sendo este o seu “verdadeiro início” e o da
própria Filosofia21. Segundo Lapoujade, a metafísica não foi tão arrojada a tal ponto, pois ela se
estendeu somente até o problema do fundamento. A filosofia deleuziana, por seu turno, ultrapassa
a metafísica quando leva o princípio da razão até o absurdo, ao inexplicável. O sem-fundo é a crise
que ameaça o fundamento, e se Deleuze o segue não é para nele permanecer, mas para trazê-lo à
tona e produzir novas superfícies.
A razão do sem-fundo está no mundo da vontade de potência. Explorando um pouco essa
noção tão importante da filosofia nietzschiana, podemos confrontar o sistema do juízo valendo-se
de uma “filosofia das foças”, tal como defende Anne Sauvagnargues. Acompanhar alguns
momentos da tese da “filosofia das forças” possibilitará elucidar como Deleuze se vale do conceito
de vontade de potência e quais as implicações dessa apropriação no que diz respeito a uma
sintomatologia.
16 Cf. LAPOUJADE. Deleuze e os movimentos aberrantes, p. 29. 17 DELEUZE. Diferença e repetição, p. 221. 18 DELEUZE. Diferença e repetição, p. 221. 19 LAPOUJADE. Deleuze, os movimentos aberrantes, p. 34. 20 LAPOUJADE. Deleuze, os movimentos aberrantes, p. 34. 21 “A ação do sem-fundo sobre o fundamento introduz nele uma fenda, uma fratura que disjunta sua forma de identidade, tanto que o pensamento exige novas lógicas para pensar o que sobe do sem-fundo através da fratura e ‘formiga suas bordas’” (LAPOUJADE, Deleuze, os movimentos aberrantes, pp. 59-60).
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II. “Filosofia das forças” e sintomatologia
Nietzsche define o mundo como um campo de forças, sendo estas caracterizadas
internamente pela vontade de potência. A concepção nietzschiana de vontade de potência é cara a
Deleuze porque ela revela a existência de um dinamismo interior à força, engendrando diferenças
de quantidade e de qualidade. Deleuze assume a vontade de potência, em primeiro lugar, como
elemento diferencial, porque ela diz respeito à diferença de quantidade, a qual define se as forças
são dominadas ou dominantes; e, em segundo lugar, porque dela decorre a diferença de qualidade
que classifica se as forças são ativas ou reativas22. As forças dominantes, também entendidas como
superiores, são de qualidade ativa; e as forças dominadas, ou inferiores, são de qualidade reativa23.
Cada força relacionada possui uma qualidade correspondente à sua “diferença de quantidade”. A
diferença de quantidade é a “essência da força”, correspondendo assim à qualidade. Dessa maneira
a vontade de potência é o “elemento do qual decorrem, ao mesmo tempo, a diferença de quantidade
das forças postas em relação e a qualidade que, nessa relação, cabe a cada força”24.
Assumida como elemento diferencial e genético, a vontade de potência é um dos
componentes principais do conceito deleuziano de diferença como diferença de intensidade. O
primeiro capítulo de Diferença e repetição aborda como a diferença é afirmada em si mesma e
liberada da submissão à identidade quando ela provém de um mundo sub-representativo, o mundo
da vontade de potência, configurando assim a crítica do fundamento. Nesse sentido, a filosofia da
diferença traz à tona uma existência que se relaciona diretamente com as forças reais e imanentes.
No Prefácio à edição americana de Nietzsche e a filosofia, Deleuze resume o pensamento de
Nietzsche em duas linhas mestras. A primeira diz respeito a uma semiologia das forças e a segunda
a uma ética e uma ontologia da potência, contemplando a questão do mundo como relação entre
forças e o caráter avaliativo da vontade de potência. O modo como Deleuze percorre a semiologia e
a ética se faz presente na interpretação de Sauvagnargues, quando a autora aborda o problema das
forças na concepção deleuziana de arte e de crítica como clínica. A relação entre forças expressa,
portanto, uma semiologia à medida que o autor transforma a força em afeto.
22 DELEUZE. Nietzsche e a filosofia. Trad. Mariana de Toledo Barbosa e Ovídio de Abreu Filho. São Paulo: N-1 Edições, 2018, p. 77-78. 23 Deleuze alerta que, pelo fato de serem forças que obedecem, as forças inferiores não deixam de ser forças, pois obedecer e comandar são qualidades inerentes à força. Mesmo reativas, as forças inferiores atuam na conservação da sua quantidade de força: “Nenhuma força renuncia à sua própria potência. Do mesmo modo que o comando supõe uma concessão, admite-se que a força absoluta do adversário não é vencida, assimilada, dissolvida. Obedecer e comandar são duas formas de um torneio” (Nietzsche apud Deleuze. DELEUZE. Nietzsche e a filosofia, p. 56-57). 24 DELEUZE. Nietzsche e a filosofia, p. 68.
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Considerando que a força corresponde a uma variação de potência, a filosofia da força, a qual
Sauvagnargues se refere, “define a vocação da arte como uma sintomatologia, captura de forças e
de imagem”25. Cada uma dessas determinações corresponde a três etapas do pensamento
deleuziano: em primeiro lugar, a sintomatologia enquanto uma “arte medicinal praticada por
Proust, Klossowski, Sacher-Masoch ou Artaud”; em segundo lugar, a arte definida como captura de
forças, em vez de reprodução de formas, “na pintura de Francis Bacon, ou a música de Boulez”; em
terceiro lugar, “a imagem como ação e reação acoplando a força da imagem-percepção e da
imagem-ação com a potência da imagem-afeção no cinema”26. Neste momento, acompanharei a
sintomatologia considerando a capacidade da vontade de potência de oferecer novos critérios pelos
quais se avalia.
Sauvagnargues evidencia que, em primeiro lugar, a filosofia nietzschiana diz respeito às
forças, que recebem o componente avaliativo possibilitando definir à quais estados de potência as
forças se reportam. As relações de forças sustentam uma semiótica, a qual fornece um “mapa
signalético das potências”27. Deleuze destaca que, em Nietzsche, o modo de existência é “o estado
de forças enquanto ele forma um tipo exprimível por signos ou sintomas”28. Sauvagnargues explora
essa questão observando que Deleuze emprega o termo “sintoma” vinculando a sintomatologia de
Nietzsche com a etologia de Espinosa, liberando-o da pesada carga conceitual psicanalítica. O signo,
ou o sintoma, passa a dizer respeito a uma “relação de forças (semiologia) que corresponde a um
certo afeto (ontologia e ética)”29. Para Sauvagnargues, Deleuze faz de Nietzsche e Espinosa seus
aliados na elaboração de uma “teoria das forças”, resultando em uma “filosofia da arte” que
incorpora o tema do signo ao da imagem30.
Deleuze define a arte como a elaboração de um material heterogêneo e consistente capaz
de captar forças intensas31, em vez de uma imposição da forma sobre a matéria. Segundo
Sauvagnargues, a relação entre signo e imagem justifica uma semiologia da força definindo “uma
concepção da forma que renova inteiramente a filosofia da arte, ao mesmo tempo em que expulsa
25 SAUVAGNARGUES, Anne. Deleuze et l’art. Paris: PUF, 2005, p. 60. 26 SAUVAGNARGUES. Deleuze et l’art, p. 60. 27 SAUVAGNARGUES. Deleuze et l’art, p. 61. 28 DELEUZE. Dois regimes de loucos. Textos e entrevistas. David Lapoujade (Org.). Trad. Guilherme Ivo. São Paulo: Editora 34, 2016. p. 213. 29 SAUVAGNARGUES. Deleuze et l’art, p. 61. 30 (SAUVAGNARGUES. Deleuze et l’art, p. 61). Para uma análise integral dessa interpretação, cf. SAUVAGNARGUES. Deleuze et l’art, pp. 62-81. 31 DELEUZE E GUATTARI. Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia 2 (vol. 4). Trad. Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 1ª Edição, 1997 (4ª Reimpressão, 2008), p. 141.
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o signo do plano transcendente do sentido para expô-lo no plano material das forças”32. A hipótese
da autora é desenvolvida a partir da substituição da relação entre significante e significado, ou
formas e matérias, pela relação entre forças e materiais. Razão pela qual na arte é mais notável
definir quais são os materiais adequados para captar “forças cada vez mais intensas e os afetos que
essas configurações liberam ‘perceptos ou ‘visões’ da arte”33. A autora arremata seu raciocínio
depreendendo que, se o afeto determina o “modo etológico da potência que corresponde a tal
estado de força ou imagem”34, ele autoriza a definição da arte como “o afeto da imagem”, com base
na noção nietzschiana de vontade de potência remetida a uma sintomatologia. Portanto, o artista e
o filósofo são sintomatologistas.
Na rubrica clínica, o sintomatologista é um médico que elabora diagnósticos ao buscar a
natureza e causa das afecções. Deleuze retoma a ideia de Nietzsche de que todos os fenômenos
naturais, espirituais, sociais “são signos, ou melhor, sintomas, e remetem como tais a estados de
forças”35. Daí o filósofo e o artista serem considerados médico e fisiologista, ou seja,
sintomatologistas. Deleuze desenvolve essa questão assumindo a “interpretação” como uma
investigação acerca de qual força é determinante para dar sentido a algo, pois, para estarmos diante
do sentido de um fenômeno (signo), é preciso saber qual a força que dele se apropria e que nele se
expressa. Os fenômenos possuem o seu sentido em uma força real, donde o caráter sintomatológico
ou semiológico da filosofia e da arte.
Sauvagnargues explora essa decisiva relação da seguinte maneira: em vez de conferir um
sentido interpretativo às forças, o sintomatologista diagnostica a civilização ao avaliar o “tipo” das
forças, “compondo materialmente com as forças uma nova relação que se pode fazer uma
cartografia dos afetos”36. Todavia, a “interpretação” é um termo utilizado por Deleuze de forma
datada. Em Proust e os signos (1964) o termo “interpretar” para romper com o par significante e
significado, isto é, representação de palavras e coisas. A interpretação consiste na extração de um
sentido velado a partir de uma análise das forças presentes no signo: pensar é interpretar signos.
Pouco tempo depois, em 1967, Deleuze abandona o sentido de interpretação como tradução. Em
uma formulação decorrente do pensamento nietzschiano, “interpretar” trata-se de um “modo vital
32 SAUVAGNARGUES. Deleuze et l’art, p. 62. 33 SAUVAGNARGUES. Deleuze et l’art, p. 62. 34 SAUVAGNARGUES. Deleuze et l’art, p. 62. 35 DELEUZE. Dois regimes de loucos, p. 213. 36 SAUVAGNARGUES. Deleuze et l’art, p. 63.
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de assimilação”37. Interpretar é uma relação de captura de uma força sobre outra força a partir da
qual se pode avaliar a potência38.
A semiologia e a etologia da potência compreendem a “filosofia das forças”, no sentido em
que, diante dos signos, questiona-se a qual estado de força eles se referem. Tudo é composto por
relação de forças e o estado das coisas incita uma indagação acerca da sua potência, provocando
um “exame crítico dos tipos de vida postos em jogo”. Como as forças se expressam nos fenômenos?
Pelos caráteres quantitativo, de obediência e dominação, da vontade de potência, o que nos dá as
condições para avaliarmos os fenômenos existentes. Tendo em vista o aspecto dinâmico da relação
entre as forças, Sauvagnargues assinala que, em Nietzsche, “o signo compõe uma certa relação de
forças, e essa mesma relação sofre uma variação de potência”39. Nietzsche estabeleceu distinções
entre as forças existentes e classificou “tipos” sociais e históricos de acordo com a função das forças
que neles operam. Pelo caráter qualitativo da vontade de potência, avalia-se e classifica “tipos”
como ativos e reativos. Complementa a autora: “a sintomatologia nietzschiana implica uma
sociologia e uma política, uma pragmática dos signos que avalia as ações e as produções sociais em
função dos tipos de vida que promovem”40.
III. Sintomatologia e literatura
Fazendo convergir as implicações da sintomatologia de Nietzsche para os seus interesses,
Deleuze elabora um pensamento com a arte deslocando o caráter interpretativo que ela pode
suscitar se vinculada ao par significante-significado. A escrita é um dos campos centrais da análise
sintomatológica, pois promove uma relação com forças reais em vez de imaginárias. Em vez de ser
reduzida a enunciados formais, a proposição é composta por sintomas os quais expressam um modo
de existência, já que se reporta a um modo de existência, um “tipo”. A questão, a saber, é qual modo
de existência é preciso para sustentar uma escrita sem remetê-la a um subjetivismo do escritor?
Em A literatura e a vida, Deleuze afirma que o escritor é um “médico do mundo” e a literatura
é uma saúde, no entanto o artista possui uma saúde frágil: “O mundo é o conjunto dos sintomas cuja
doença se confunde com o homem”41. A escrita não é originada pela doença, pelo contrário, a
doença é “parada do processo”, trata-se de uma situação na qual o escritor tomba quando o seu
fluxo criativo é bloqueado. Em vez de um estado ou de imitação de uma forma, a escrita é um caso
37 SAUVAGNARGUES. Deleuze et l’art, p. 63. 38 SAUVAGNARGUES. Deleuze et l’art, p. 63. 39 SAUVAGNARGUES. Deleuze et l’art, p. 63. 40 SAUVAGNARGUES. Deleuze et l’art, p. 64. 41 DELEUZE. Crítica e clínica, p. 13.
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de devir, porque expressa passagens da Vida, extrapolando o vivível e o vivido42. O escritor capta
diretamente forças demasiadas intensas, incorporando-as no material e liberando as potências de
vida anteriormente aprisionadas por formas dominantes. Eis a importância de o escritor criar uma
sintaxe: “A sintaxe é o conjunto dos desvios necessários criados a cada vez para revelar a vida nas
coisas”43. Sem reproduz suas lembranças ou casos particulares, o escritor expressa a criação de um
“povo, isto é, uma possibilidade de vida”44. O objetivo principal da literatura é fazer existir um povo
em devir, não aprisionado em formas ou tentando imitar um modelo.
A questão da vida no domínio da literatura conecta-se com o segundo eixo da filosofia
nietzschiana, a ética e a ontologia da potência, permitindo desfazer alguns embaraços acerca de
interpretações da vontade de potência, que segundo Deleuze incorrem em equívocos. Seria uma
leitura ordinária de Nietzsche examinar a vontade de potência a partir de uma busca pela potência,
pois tal visão está aquém do essencial dessa noção: “a potência não é aquilo que a vontade quer,
mas ao contrário aquele que quer na vontade”45. Essa interpretação pode apontar para um retorno
ao individualismo em Nietzsche, se a considerar o “aquele” como um sujeito que, em última
instância, encontra sua forma no Eu substancial. Deleuze evita esse caminho ao chamar a atenção
para uma das maiores originalidades de Nietzsche: a introdução da questão “quem é que?”, em vez
de “o que é?”. Nesse sentido, a análise de uma proposição não se reporta à questão “quem
enuncia?”, mas “quem é capaz de enunciá-la?”46. Sem se referir a uma pessoa ou indivíduo, o “quem”
diz respeito a uma máscara sobre outra máscara que recobre um sem-fundo.
O discurso não é de um sujeito, seja ele Deus, o homem, ou o homem ocupando o lugar de
Deus. Insubmisso a uma forma, o discurso é de um informal puro sem sujeito, ocupado pelo super-
homem: “o tipo superior de tudo aquilo que é”. Esse novo discurso é capaz de “renovar a filosofia”,
pois ele não concebe o sentido em termos de predicação, mas “como acontecimento”47. Com o
discurso do SE, o ponto de vista da representação é desarticulado: se o Eu não fala mais, a
individuação segue o mesmo silêncio e as singularidades cessam, resultando no sem-fundo como
uma imagem esvaziada de diferenças. Dessa maneira, o sem-fundo diz respeito à questão “Quem?”,
42 DELEUZE. Crítica e clínica, p. 11. 43 DELEUZE. Crítica e clínica, p. 11. 44 DELEUZE. Crítica e clínica, p. 15. 45 DELEUZE. Dois regimes de loucos, p. 214. 46 DELEUZE. Dois regimes de loucos, p. 214. 47 DELEUZE. Lógica do sentido. Trad. Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 110.
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ou seja, “Quem? é sempre uma intensidade...”48. Assim, a individuação destitui o sujeito da sua
posição de privilégio e afirma um campo pré-individual assubjetivo.
Ao longo de toda a sua filosofia, Deleuze faz com que as figuras do sem-fundo existam por si
mesma em meio às formas. Essas figuras possuem origem no “mundo de singularidades impessoais
e pré-individuais, mundo que ele chama agora de dionisíaco ou da vontade de potência, energia livre
e não ligada”49. Em Para dar um fim ao juízo, o sem-fundo corresponde ao sono ou a embriaguez
contra o sonho. O mundo do juízo é onírico, pois no sonho os juízos irrompem sem o
questionamento do conhecimento e da experiência. Deus e juiz do sonho, Apolo julga e limita a
forma orgânica, o mesmo sonho que “encerra a vida nessas formas em nome das quais a
julgamos”50, revelando assim uma circularidade com relação ao que é julgado e os seus critérios. A
saída do mundo apolíneo dos sonhos ocorre com passagem ao mundo dionisíaco da embriaguez.
No mundo do êxtase desviamos do sono em direção a uma nova justiça, que nos reporta à insônia,
a um sono sem sonho. Enquanto o sono é estatizante e governante, a insônia resplandece no sono
e estabelece uma diferença no indiferenciado, como um relâmpago no céu escuro. É de uma noite
escura na qual nada se distingue que o sistema da crueldade precisa sair.
O sem-fundo desfaz as formas erigidas sobre ele. Como isso ocorre? O mundo apolíneo
abriga o pensamento que produz e representa formas a partir das ações da determinação. Esse
domínio revela a exigência da medida e o autoconhecimento para contemplá-la, ratificando o seu
status de divindade ética. Já o mundo dionisíaco, mundo das forças que pulsam sob as belas formas,
é apropriado por Deleuze como o sem-fundo que freme sob o fundamento. Na dimensão dionisíaca,
em vez de autoconhecimento e do meio termo, encontramos a autoexaltação e a desmesura51. A
resistência ao mundo das formas pelo mundo da embriaguez parte da exploração de uma lacuna na
atividade da determinação, a saber: a tentativa de determinar o indeterminado pretende organizar
as matérias, e essas matérias só aparecem no solo criado pelo fundamento sob a condição de serem
representadas. No entanto, a determinação não abarca tudo, e o pensamento da diferença traz à
tona essas matérias em seu estado puro. O que sobe à superfície sem assumir formas, na verdade
confundindo-se sutilmente entre elas, compõe uma “existência autônoma sem rosto, base
48 DELEUZE. Diferença e repetição, p. 346. 49 DELEUZE. Lógica do sentido, p. 110. 50 DELEUZE. Crítica e Clínica, p. 147. 51 Como afirma Nietzsche, “considerados como os demônios propriamente hostis da esfera não apolínea, portanto como propriedades da época pré-apolínea, da era dos Titãs e do mundo extra-apolíneo, ou seja, do mundo dos bárbaros” (NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad. J. Ginsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, pp. 37-38).
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informal”. Como afirma Deleuze, “todos os rostos morrem, subsistindo apenas a linha abstrata
como determinação absolutamente adequada ao indeterminado, como relâmpago igual à noite (...),
distinção adequada à obscuridade inteira: o monstro”52. Dessa maneira, a potência dionisíaca recusa
o “consolo metafísico”, o qual nos extraiu de modo provisório da “engrenagem das figuras
mutantes”53, distanciando a vida e o pensamento da dimensão da existência trágica. Deleuze
assume para si a ambição nietzschiana de trazer o caráter monstruoso da existência incontido pelas
belas formas oníricas. Insubmisso ao domínio das formas, o pensamento é um pensamento trágico,
assim a ordem das participações não é mais viável, dando origem ao “mundo das distribuições
nômades e das anarquias coroadas”54, no qual as identidades são subvertidas e o fundamento é
abismado.
Diante da subversão da forma sujeito pelo mundo dionisíaco e afirmação de um impessoal,
podemos retomar a questão da literatura. Não sendo individual ou pessoal, a condição para a
literatura ser criada advém de um mundo sub-representativo no qual descobre “(...) a potência de
um impessoal, que de modo algum é uma generalidade, mas uma singularidade no mais alto grau”55.
Inspirado em Blanchot, Deleuze afirma que os pronomes “eu” e/ou “tu” não instauram a enunciação
literária e a literatura só é possível quando “nasce em nós uma terceira pessoa que nos destitui do
poder de dizer Eu”56.
Convoco Sauvagnargues à discussão. A autora destaca que as escritas de Kafka para a
burocracia e de Aratud para a esquizofrenia “tornam-se o sismógrafo sensível de um tipo de forças
cujas escritas não ultrapassariam o limiar do sensível”57. Isso implica no modo pelo qual Deleuze
pensa a arte a partir de uma lógica da sensação de acordo com uma sintomatologia. A arte capta
signos torando-os sensíveis, e uma filosofia da arte no autor diria respeito a um inventário de signos
e imagens “em uma lista aberta e variável que compõe seu mapa intensivo”58. Enquanto
experimentação, a arte promove uma crítica política captando as forças reais do social, sem se
52 DELEUZE. Diferença e repetição, p. 381. 53 Continua Nietzsche: “Nós mesmos somos realmente, por breves instantes, o ser primordial e sentidos o seu indomável desejo e prazer de existir; a luta, o tormento, a aniquilação das aparências se nos afiguram agora necessários, dada a pletora de incontáveis formas de existência a comprimir-se e a empurrar-se para entrar na vida, dada a exuberante fecundidade da vontade do mundo; nós somos trespassados pelos espinho raivante desses tormentos, onde quer que nos tenhamos tornado um só, por assim dizer, com esse incomensurável arquiprazer na existência e onde quer que pressintamos, em êxtase dionisíaco, a indestrutibilidade e a perenidade deste prazer. Apesar do medo e da compaixão, somos os ditosos viventes, não como indivíduos, porém como o uno vivente, com cujo gozo procriador estamos fundidos” (NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo, p. 100). 54 DELEUZE. Diferença e repetição, p. 369. 55 DELEUZE. Crítica e clínica, p. 13. 56 DELEUZE. Crítica e clínica, p. 13. 57 SAUVAGNARGUES. Deleuze et l’art, p. 64. 58 SAUVAGNARGUES. Deleuze et l’art, p. 64.
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reduzir a um “motivo pessoal de uma história individual”, mas produzindo uma “física dos afetos”.
Assim, deixa-se de julgar de acordo com valores transcendentes, para avaliar a partir de um “mapa
dos afetos”59.
IV. Experimentar: uma questão vital
Vimos que a crítica do juízo corresponde a uma crítica do fundamento. Em seguida,
passamos pela importância da relação entre forças para elaborar uma filosofia sintomatológica, que
reconfigura o pensamento sobre a arte. Neste momento, pretendo me valer dos ganhos conceituais
das interpretações de Lapoujade e de Sauvagnargues para tecer algumas considerações acerca da
questão de como Deleuze defende a criação de um sistema dos afetos a partir de um direito
adquirido pelo pensador.
Para elaborar um sistema dos afetos, um pensador precisa passar pela prova do fundamento
e sofrer uma mudança radical. Como afirma Lapoujade, essa prova é a diferença, dotada do poder
de transformar quem a encara, assim “fundar é metamorfosear”60. Por esse processo, o pensador
“acede a suas próprias potências e adquire um direito imprescritível por ocasião de cada
metamorfose”61. As potências em jogo são as potências do sem-fundo, que, definitivamente,
tratam-se de “uma questão vital”62. Em poucas palavras, a questão vital é uma experimentação, e
não uma reflexão.
Lapoujade observa que Deleuze frequentemente retorna à afirmação de que há algo
demasiado forte na vida, levando-nos ao seu limite. A experimentação promove um grande número
de conexões, mas ela não deixa de carregar em si certo grau de autodestruição63. Experimentar não
compõe a imagem de um combate contra si, esgotando as forças vitais e nos extirpando de nós
mesmos, pois há algo demasiado potente na vida que só podemos vivê-lo em nosso próprio limite.
Com o pensamento não é diferente, ele é levado ao limite da vida, a exemplo da própria filosofia
deleuziana. Irrestritos a uma existência teórica, os conceitos de Deleuze possuem um “vínculo direto
com a vida, tanto de um ponto de vista ético quanto político”64, atuando na borda entre a liberação
de potências vitais e uma ameaça destrutiva. A questão de vida apresenta como a nova prova do
fundamento e insere a questão de direito acerca da legitimidade do pensador. Lapoujade ressalta
que Deleuze insiste nesta pergunta: “por que prova passou o autêntico criador, aquele que arranca
59 SAUVAGNARGUES. Deleuze et l’art, p. 39. 60 DELEUZE. Diferença e repetição, p. 222. 61 LAPOUJADE. Deleuze, os movimentos aberrantes, p. 67. 62 LAPOUJADE. Deleuze, os movimentos aberrantes, p. 88. 63 Cf. DELEUZE. Dois regimes de loucos, p. 160. 64 LAPOUJADE. Deleuze, os movimentos aberrantes, p. 20.
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a prova justamente das experiências ordinárias e das vivências originárias?”65. A meu ver, Espinosa,
Nietzsche, Lawrence, Kafka e Artaud cumprem a exigência da prova vital. Eles passaram por uma
metamorfose e, parafraseando Deleuze, criaram para si um corpo sem órgãos.
O combate do sistema dos afetos contra o sistema do juízo na esfera dos corpos diz respeito
à vitalidade contra a organização. O juízo está para a organização assim como a vitalidade está para
o corpo. Em um sentido mais amplo, a organização resulta do juízo divino de ordenar as matérias
em estado intensivo, estruturando-as em organismos, que originarão corpos físicos, biológicos e
sociais. Por outro lado, o sistema físico oferece um corpo vital ainda embrionário66. Sem uma
estruturação orgânica, o corpo não pode julgar nem ser julgado, pois ele é um corpo afetivo
perpassado por uma “poderosa vitalidade não-orgânica”67. A vitalidade significa a capacidade de o
corpo entrar em relação com forças imperceptíveis, as quais podem dele se apoderar ou estar sob o
seu poder. A tarefa do sistema da crueldade em oposição ao sistema do juízo nos corpos é criar um
corpo sem órgãos, um projeto que Deleuze afirma ser nietzschiano, mas na verdade é nietzschiano-
espinosano: “definir o corpo em devir, em intensidade, como poder de afetar e ser afetado, isto é,
Vontade de potência”68.
Em Mil platôs, a organização corresponde à estratificação, a criação do mundo a partir do
caos, o que constitui o juízo de Deus. Organizar o mundo também é um exercício praticado no
domínio da arte, já que o trabalho do artista clássico reproduz a função de Deus “ao organizar as
formas e as substâncias, os códigos e os meios, ele cria o mundo”69. Os corpos são definidos a partir
de critérios dinâmicos, isto é, por “afectos e movimentos locais, velocidades diferenciais”70. Essa
definição de corpo em termos de velocidade e de lentidão, de variações potenciais é captada por
Sauvagnargues como uma colagem promovida por Deleuze entre Espinosa e Nietzsche no que diz
despeito à relação entre a ética e a tipologia dos signos71. Nesse sentido, a relação de força é
denominada de percepto, que combinada à variação de potência, o afecto, compõem a definição da
65 LAPOUJADE. Deleuze, os movimentos aberrantes, p. 67. 66 “Deus criou para nós um organismo, a mulher criou para nós um organismo ali onde tínhamos um corpo vital e vivente” (DELEUZE. Crítica e Clínica, p. 148). 67 DELEUZE. Crítica e Clínica, p. 148. 68 DELEUZE. Crítica e Clínica, p. 148. 69 DELEUZE E GUATTARI. Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia 2 (Vol. 5). Trad. Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa. São Paulo: Editora 34, 1ª Edição, 1997 (3ª Reimpressão, 2007) p. 216-217. 70 [DELEUZE e GUATTARI. Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia 2 (Vol. 4). Trad. Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 1ª Edição, 1997 (4ª Reimpressão, 2008), p. 47]. Os corpos correspondem à noção de hecceidade, que relaciona o “conjunto dos elementos materiais que lhe pertencem sob tais relações de movimento e de repouso, de velocidade e de lentidão (longitude), com o “conjunto dos afectos intensivos de que ele é capaz sob tal poder ou grau de potência (latitude)” [DELEUZE E GUATTARI. Mil platôs (Vol. 4), p. 47)]. 71 Para uma análise mais detalhada da relação entre Deleuze e Espinosa, considerando também a aliança com Nietzsche, Cf. SILVA, Cintia Vieira da. Corpo e pensamento – alianças conceituais entre Deleuze e Espinosa. Campinas: UNICAMP, 2013.
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arte como captura de forças reais em vez de reprodução de formas imaginárias. De acordo com uma
formulação baseada em Klee, a tarefa do artista é tornar visíveis as forças, e não reproduzir o
visível72. Essa proposta coaduna com a filosofia nietzschiana na medida em que ela “tende a elaborar
um material de pensamento para capturar forças não pensáveis em si mesma”73.
Sauvagnargues ressalta que Deleuze se volta para a existência do signo em uma chave
pragmática considerando as questões de como eles funcionam socialmente nas relações de
dominação. Contra o caráter interpretativo, a leitura imanente do signo e da arte apresenta o
deslocamento da moral à ética. Como assegura Deleuze de acordo com Espinosa, do julgamento a
partir de valores transcendentes a uma avaliação de sentimentos e condutas correspondentes “(...)
a modos de existência que eles supõem ou implicam”74. A condição para acreditar, dizer, sentir algo
é a de que precisamos ser escravos e fracos, ou, em outras situações, livres e fortes. Ou seja, as
condições variam de acordo como os modos de existir. Continua Deleuze: “Um método de explicação
dos modos de existências imanentes substitui dessa maneira o recurso aos valores transcendentes”75.
No que diz respeito à relação estrita entre a literatura e a ética, Sauvagnargues afirma que essa
relação se posta sobre um “plano de relações de forças e negligencia as formas sociais
estabilizadas”76. Nesse sentido, a substituição de valores transcendentes por modos de existência
procede também pela apropriação da ética imanentista de Espinosa.
A recusa do julgamento em nome de modos de existência reformula a noção de crítica, pois
as suas maneiras comuns são rejeitadas. O julgamento baseado em imperativos transcendentes e
abstrações morais dá lugar a conveniência e a inconveniência, ao assentimento e argumentação de
forças vitais77. Dessa maneira, a clínica é a crítica no sentido de que nos força a sentir, a pensar
complexos de forças que constituem uma vida78, já que, ao abordá-la em termos de forças, em vez
de subjetividade, Deleuze redefine o problema da existência impondo uma resistência vital ao
sistema do juízo.
Considerações finais
Para dar um fim ao juízo chega a seguinte conclusão: somente o combate pode dar um fim ao
juízo, porque o combate não é destrutivo, mas criativo. A renúncia ao juízo pode suscitar a impressão
72 DELEUZE E GUATTARI. Mil platôs (Vol. 4), p. 159. 73 DELEUZE E GUATTARI. Mil platôs (Vol. 4), p. 159. 74 DELEUZE. Espinosa e o problema da expressão. Trad. GT Deleuze 12 – coordenação Luiz Orlandi. São Paulo: Editora 34, 2017, p. 299. 75 DELEUZE. Espinosa e o problema da expressão, p. 299. 76 SAUVAGNARGUES. Deleuze et l’art, p. 55. 77 Cf. SAUVAGNARGUES. Deleuze et l’art, p. 56. 78 SAUVAGNARGUES. Deleuze et l’art, p. 58.
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de que esgotaram os meios pelos quais pudéssemos estabelecer distinções entre “modos de
existências”, mas o fim do juízo não significa igualar tudo. Um novo modo de existir é criado por um
combate vital, por uma crueldade contra si mesmo e por forças que ele assimila ao estabelecer novas
combinações79. Resistir ao sistema do juízo por meio da existência é experimentar em vez de
interpretar: “Não temos por que julgar os demais existentes, mas sentir se eles nos convêm ou
desconvêm, isto é, se nos trazem forças ou então nos remetem às misérias da guerra, às pobrezas
do sonho aos rigores da organização”80.
Com Nietzsche, e outros tantos aliados, Deleuze nos convoca a promover as trocas de forças
entre os corpos capazes de, nessas relações, produzirem novos espaços-tempos suficientes para
desestabilizar regras transcendentes. Todavia, fazer existir não nos exime de sermos capturados
pelo sistema do juízo, que não deixa de se reproduzir e investir contra a capacidade de agir. Fazer
existir implica no esforço de manter a capacidade de ação diante das crises e das organizações, no
entanto, agir depende de uma crença no mundo. A crença diz respeito a um risco assumido ao se
lançar no indeterminado, mas ela demanda uma confiança nas nossas capacidades e, ao mesmo
tempo, a confiança em que algo no mundo irá se realizar. Para falar com Pelbart, é preciso que “o
mundo dado contenha o possível e extrapole o real”81.
“Dar um fim ao juízo” está em consonância com a crença na terra. Se Nietzsche afirmou que
o abismo do mundo da vontade de potência traga tudo, Zaratustra também disse que há uma terra,
cujo seu sentido é o super-homem82. A filosofia de Deleuze se dirige a “nova terra” e a ela busca
chegar por meio de uma experimentação radical. De acordo com Santos, a fidelidade a Terra e o
surgimento do além-do-homem foi a flecha lançada por Nietzsche e apanhada por Deleuze e
Guattari em Mil platôs, obra que apresenta de maneira inédita o pensamento como multiplicidade83.
Para Deleuze, o legado decisivo da filosofia nietzschiana foi “ter transformado radicalmente a
imagem que fazíamos do pensamento”84, pois ela extirpou do pensamento as travas que o juízo
impunha impedindo a experimentação. Nietzsche fez do pensamento...
(...) uma interpretação e uma avaliação, interpretação de forças, avaliação de potência – é um pensamento movimento. Não apenas no sentido em que Nietzsche quer reconciliar o pensamento e o movimento concreto, mas no sentido em que o próprio pensamento deve
79 DELEUZE. Crítica e Clínica, p. 153. 80 DELEUZE. Crítica e Clínica, p. 153. 81 Peter Pál Pelbart. O avesso do niilismo. Cartografias do esgotamento. São Paulo N-1 Edições, 2013, p. 320. 82 “O super-homem é o sentido da terra. Que a vossa vontade diga: o super-homem seja o sentido da terra! Eu vos imploro, irmãos, permanecei fiéis à terra e não acrediteis nos que vos falam de esperanças supraterrenas!” (NIETZSCHE, Assim Falou Zaratustra. Trad. Paulo Cézar de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 14). 83 SANTOS, Laymert Garcia dos. “Rumo a uma nova terra”. In: Revista Ecopolítica. São Paulo, n. 5, jan-abr, 2013, p. 41. 84 DELEUZE. Dois regimes de loucos, p. 217.
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produzir movimentos, velocidades e lentidões extraordinárias (donde, mais uma vez, o papel do aforismo, com suas velocidades variadas e seu movimento de ‘projétil’). Segue-se disso que a filosofia ganha, com as artes do movimento, teatro, dança música, um novo entrelace (...) Que pensar seja criar, esta é a maior lição de Nietsche85.
REFERÊNCIAS:
DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1ª edição, 1997 (3ª reimpressão - 2008).
______. Dois regimes de loucos. Textos e entrevistas. David Lapoujade (Org.). Trad. Guilherme Ivo. São Paulo: Editora 34, 2016.
______. Diferença e repetição. Trad. Roberto Machado. Rio de janeiro: Graal, 2006, 2ª edição.
______. Lógica do Sentido. Trad. Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva, 2007.
______. Nietzsche e a filosofia. Trad. Mariana de Toledo Barbosa e Ovídio de Abreu Filho. São Paulo: N-1 Edições, 2018, p. 181.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia 2 (Vol. 4). Trad. Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 1ª Edição, 1997 (4ª Reimpressão, 2008).
_____. (Vol. 5). Trad. Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa. São Paulo: Editora 34, 1ª Edição, 1997 (3ª Reimpressão, 2007).
LAPOUJADE. David. Deleuze, os movimentos aberrantes. Trad. Laymert Garcia dos Santos. São Paulo: n-1 edições, 20015.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra. Trad. Paulo Cézar de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
______. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad. J. Ginsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
PELBART, Peter Pál. O avesso do niilismo. Cartografias do esgotamento. São Paulo N-1 Edições, 2013.
SANTOS, Laymert Garcia dos. “Rumo a uma nova terra”. In: Revista Ecopolítica. São Paulo, n. 5, jan-abr, 2013.
SAUVAGNARGUES, Anne. Deleuze et l’art. Paris: PUF, 2005.
SILVA, Cintia Vieira da. Corpo e pensamento – alianças conceituais entre Deleuze e Espinosa. Campinas: Editora UNICAMP, 2013.
85 DELEUZE. Dois regimes de loucos, p. 217.
Homem, arte e verdade: aproximações (des)necessárias entre Nietzsche e Sartre, pp. 722-749
Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274 722
HOMEM, ARTE E VERDADE:
APROXIMAÇÕES (DES)NECESSÁRIAS
ENTRE NIETZSCHE E SARTRE
Paulo Willame Araújo de Lima1
RESUMO: Os escritos de juventude do filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905-1980) trazem consigo problemáticas, reflexões e propostas filosóficas que parecem estar intimamente influenciadas por uma leitura sartriana de Nietzsche (1844-1900). Este artigo visa apresentar algumas aproximações possíveis entre os escritos do existencialista francês, onde o mesmo reflete sobre a arte e sobre a verdade, e os textos nietzscheano que podem ser lidos também pela busca de uma relação entre arte e verdade humanas. Para tanto, será pertinente passar pelos escritos literários e teatrais do francês, bem como seus textos filosóficos, a exemplo do livro “Verdade e existência” em diálogo com os textos nietzscheano sobre o nascimento da tragédia e sobre Zaratustra. A (in)conclusão oportuna é a de admitir que existe uma grande aproximação entre o super-homem nietzscheano e aquele que Sartre, quando jovem, chamou de homem só e depois parece aprimorar para a ideia de homem autêntico. PALAVRAS-CHAVE: arte, verdade, mito, homem autêntico, transformação.
1 Professor de Filosofia licenciado pela UECE; mestrando em Filosofia, na linha de ética e política, pela UFC; Professor Voluntário do programa de extensão Transpassando UECE; Agente Educacional pela Secretaria Municipal de Educação – SME/Fortaleza. E-mail: [email protected]
Homem, arte e verdade: aproximações (des)necessárias entre Nietzsche e Sartre, pp. 722-749
Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274 723
ABSTRACT: The youth writings of the French philosopher Jean-Paul Sartre (1905-1980) bring with them philosophical problems, reflections and proposals that seem to be intimately influenced by a Sartrian reading by Nietzsche (1844-1900). This paper aims to present some possible approximations between the existential French writings, where the text itself about art and about the truth, and the Nietzschean texts that can be displayed also in the search for a relationship between art and human truth. For that, it will be pertinent to go through the French literary and theatrical writings, as well as its philosophical texts, for example, the book "Truth and existence" in dialogue with the Nietzschean texts on the birth of the tragedy and on Zarathustra. The (in)conclusion that seems to be possible is to admit that there is a great rapprochement between the Nietzschean superman and the one that Sartre, as a young man, recorded as a alone man and then seems to have tried an idea of an authentic man. KEYWORDS: art, truth, myth, authentic human, transformation.
O existencialismo e a burguesia
O existencialismo surge no século XX como uma nova perspectiva filosófica que, para alguns
comentadores e críticos, tem a pretensão de ser a “terceira via” entre o pensamento de esquerda e
o de direita. Georg Lukacs2 talvez seja o maior expoente da crítica a esta filosofia que o húngaro
caracteriza como expressão de uma burguesia em crise. Neste sentido, o filósofo de Budapeste tem
razão: a burguesia estava em crise. E o principal catalisador desta crise intelectual certamente foi a
rotina de guerras e seus desdobramentos no século em questão: Primeira Grande Guerra (1914 –
1918), Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945) e, mesmo quando a ilusão da futura paz ainda pairava
como esperança nesse tenso pós-guerra, sente-se o impacto da Guerra Fria (1947 – 1991).
Essa crise intelectual que tem por marco estes três grandes eventos, onde o iluminismo da
razão humana levou ao mais profundo abismo de destruição em massa – do homem e do mundo –
foi sendo instaurada bem antes: desde as guerras de conquistas e as explorações coloniais que,
pregando os ideais burgueses de liberdade, igualdade e fraternidade logo seriam forçados a notar a
contradição interna na pretensa universalidade deste discurso com a convicta prática excludente,
segregacionista e moralista desta burguesia ascendente em relação ao mundo e aos povos de outras
culturas.
2 Filósofo húngaro (1885 – 1971) marxista da Escola de Budapeste, crítico do existencialismo alemão e francês, autor do livro “Existencialismo ou Marxismo”.
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No mais íntimo e fundante do projeto renascentista burguês, a máxima sobre igualdade,
liberdade e fraternidade brotava como uma reposição das máximas universais e apolíneas de Platão,
onde o Bem, a Beleza e a Justiça devem acompanhar uma certa ordem universal que tem seu
sustento maior na intelectualidade e não na sensibilidade. A burguesia surge com um projeto que se
propõe universal, mas logo se mostra como um projeto que se institui enquanto um poder superior
que impõe uma determinada cosmovisão de ordem. Assim cresce o processo opressor-civilizatório
que havia começado com as embarcações coloniais.
O que aqui se entende por burguesia não é apenas um grupo social em processo de ascensão
econômica específica, pois o burguês, o sujeito que dá corpo e voz à burguesia, em seu espaço
privilegiado na sociedade moderna e contemporânea não é apenas detentor de condições
econômico-financeiras dominantes. Sua experiência social e sua existência subjetiva são
atravessadas por uma cultura e uma visão de mundo específica que pretensiosamente se impõe
sobre as demais como expressão do bom, do belo e do justo por excelência.
Ao acusar o existencialismo de ser um projeto positivado no pensamento burguês, busca-se
diminuir seu valor filosófico primeiro posto a decadência visível do segundo e, consequentemente,
de seus valores éticos, estéticos e civilizatórios. Certamente que essa visão reducionista do
existencialismo deixa de lado, por exemplo, a complexidade da crítica existencialista ao próprio
mundo burguês-capitalista bem como apaga e invisibiliza a filosofia existencialista também escrita
em francês e produzida por autores como o filósofo Frantz Fanon, médico e militante de Martinica.
É certo que muitos existencialistas compactuavam com o pensamento burguês vigente que
privilegiava a Europa e os europeus. Contudo isto não anula o fato de que existiam outros
existencialistas que denunciava de dentro ou de fora a hipocrisia burguesa.
Sartre e Nietzsche
A doutrina existencialista tem suas referências filosóficas associadas também a autores
anteriores aos conflitos armados em pauta. Fosse na Alemanha ou na França, a Europa
existencialista, se não partia, pelo menos dialogava em algum momento com a angustia
kierkegaardiana e com o niilismo nietzschiano além, claro da importante bússola metodológica que
Edmund Husserl (1859 – 1938) representou com sua fenomenologia que, segundo Angela Ales Bello,
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pode ser tomada como reflexão sobre o fenômeno ou sobre aquilo que se mostra3. Um dos principais
nomes dessa doutrina foi o escritor francês Jean-Paul Sartre.
Antes de ter a fenomenologia husserliana como referência metodológica para seu pensamento
filosófico, Sartre começou a filosofar com aquilo que ele chamou de “método psicológico”. E como
indicam os estudos sobre os escritos de juventude do pensador, este método parecia ter grande
influência do pensamento nietzschiano. Este método psicológico tinha como matriz reflexiva
questões relacionadas aos princípios da moral, à alienação ideológica, à inexistência ontológica do
mal, à estética do mal, ao homem só e à contingência. Não é preciso muito esforço para
rapidamente associar esses temas com as questões de Nietzsche tais como a genealogia da moral,
o niilismo da moral cristã, o bem o mal como concepções morais a serem superadas, o nascimento
da tragédia, a solidão criativa, e a finitude que a vontade de potência suscita em sua busca.
O pesquisador Fabio Caprio, em seu livro A ética de Sartre, mostra como desde os escritos de
juventude, Sartre já apresenta questões e temas que atravessariam toda sua produção filosófica e
literária. Segundo Michel Contat, “Er, o armeniano foi escrito depois de Uma derrota (Une Défaite) –
romance inacabado em que Sartre apresenta a relação triangular entre Nietzsche, Cosima e Wagner
–, podendo ser datado de 1928. Er, o armeniano mostra os primeiros traços do projeto do jovem
Sartre de aproximar filosofia e literatura”. (CASTRO, 2016, p.24) Os textos, Er, o armeniano e A lenda
da verdade são duas fortes referências para perceber a presença desde o começo dos temas que
marcariam o pensamento sartreano: liberdade, o problema moral do bem e do mal, a importância
do movimento enquanto ação no mundo e o problema da consciência, por exemplo. Este último
termo ele definiria através do estória mitológica de inspiração grega presente em Er, o armeniano
como “uma potência ativa que permite discernir entre o bem e o mal” (CAPRIO, 2016, p.25). A ideia
de potência surge fazendo lembrar nitidamente a vontade de potência nietzschiana. Segundo o
comentador, a influência do modelo nietzschiano presente em Er, o armeniano é ainda mais
perceptível em A lenda da verdade, pois neste segundo, onde melhor aparece o conceito de “homem
só”, fica notável
um paralelo entre o homem só e Zaratustra. ‘O homem só reconstrói sua alma ou, se quisermos, a ideia de solidão’ (LV, 47). Isso significa dizer que é possível um pensamento
3 ALES BELLO, Angela. Introdução à fenomenologia. Trad. Ir. Jacinta Turolo Garcia e Miguel Mahfoud. Bauru: Edusc, 2006, p.18. Vale ressaltar que enquanto método, a fenomenologia era tomada por Husserl como caminho para se chegar à essência das coisas através de duas etapas: a redução eidética(compreender o sentido do objeto) e a redução transcendental (compreender o sujeito que busca o sentido).
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livre, pertencente ao homem só tal como um retrato pertence ao pintor. O homem só é como o pintor, como o artista: eis a primeira metáfora. A amplitude da solidão é consequência do fato de que a alma se reconstrói totalmente sozinha. Sartre denuncia por aí o conceito de potência, fruto do sentimento de necessidade e de um finalismo (LV, 47-48). A necessidade funda-se no artifício da unidade e vice-versa. Dessa maneira, a noção de universal é introduzida artificialmente como fundamento das operações da razão. (CAPRIO, 2016, p. 27-28)
Apoiando-se nas colocações de Fabio Caprio, é possível perceber que as principais questões
que permeiam o pensamento sartreano estão presentes em seus escritos antes mesmo da influência
hursserliana de fenomenologia e heideggeriana de existência. A existência parece ser
problematizada primeiramente pelo viés da existência humana presente na filosofia nietzschiana. E
as principais questões alí encontradas e desenvolvidas vão sofrer aprofundamentos, contradições,
ajustes ressignificações, redefinições, mas estarão sempre presentes nos escritos de Sartre.
Nessa esteira, cabe lembrar que tanto em Friedrich Nietzsche (1844 – 1900) como em Soren
Kierkegaard (1813 – 1855), a questão da existência já era posta em destaque não como uma simples
percepção contingente, etapa inicial do processo de reflexão rumo ao absoluto, tal como atribuíram
a questão em Hegel, o filósofo do sistema hermético e abstrato em busca de um universal extra-
humano. A concretude da existência era já nesses autores uma questão central. E Kierkegaard
revela:
No que me diz respeito, já gastei demasiado tempo para aprofundar o sistema de Hegel e de modo algum acredito que o tenha compreendido; tenho até a ingenuidade de imaginar que não obstante todos os meus esforços, se eu não consigo dominar o seu pensamento o motivo é que ele mesmo não consegue, completamente, ser claro. Faço este estudo sem dificuldade, com muita naturalidade, e a cabeça não sofre com isso. Quando, porém, começo a meditar sobre Abraão, sinto-me como que aniquilado. Caio a todo momento no paradoxo inaudito que é a substância de sua existência. (KIERKEGAARD, 1964, p. 26. Grifo nosso)
Este paradoxo inaudito ao qual o poeta-dialético faz referência é o paradoxo da fé que, com
Ilana Viana do Amaral, pode ser entendido como “um segredo ou um silêncio que é dito, e que no
seu dizer é ainda ocultado, o silêncio que é ocultado interrompido pela fala, a qual, entretanto,
apenas afirma a dubiedade”4.
4 AMARAL, Ilana Viana do. O ‘conceito’ de Paradoxo: (constantemente referido a Hegel) Fé, história e linguagem em S. Kierkegaard. 2008. (tese de doutorado). São Paulo: PUC, p. 31. A Professora Ilana do Amaral é uma das pesquisadoras que vivamente defende a dissociação de Kierkegaard da alcunha de “pai do existencialismo” levantada por inúmeros comentadores da doutrina filosófica em questão. Sua tese ilustra bem seu posicionamento a este respeito, onde os problemas filosóficos abordados por Kierkegaard recebem uma abordagem orientada pelo e contra método dialético hegeliano tendo em vista seu desdobramento crítico, buscando apresentar um Kierkegaard absolutamente incompatível com qualquer forma de Estado.
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Apesar de sua forte crítica à filosofia hegeliana e sua forte valorização da existência humana
como fator central de reflexão filosófica, nem Kierkegaard, nem Nietzsche e muito menos Husserl
podem ser apresentados como filósofos existencialistas. Entretanto, suas reflexões foram
repaginadas posteriormente como decisivas ao existencialismo, inclusive no que diz respeito à
referência metodológica.
Sartre e o homem
Jean-Paul Sartre (1905 – 1980) apresenta o existencialismo como uma doutrina que se divide
em duas frentes: os existencialistas cristãos, a quem ele referencia com Karl Jaspers (1883 – 1969) e
Gabriel Marciel (1889 – 1973), e os existencialistas ateus, nos quais, para o francês, está Martin
Heidegger (1889 – 1976), com sua obra prima O Ser e o Tempo, Simone de Beauvoir (1908 – 1986) –
incansável pensadora engajada com a escrita de seu tempo - e o próprio Sartre, para quem é apenas
o “fato de admitirem que a existência precede a essência, ou se se quiser, que temos de partir da
subjetividade” que aproxima ambos os segmentos existencialistas.5
Mas, interessantemente, aquilo que se apresenta a Sartre como o que distingue um grupo de
existencialista do outro não é o mesmo critério adotado por Lukacs, por exemplo, que atrelando o
existencialismo a “uma concepção mais positiva” põe nesta positividade a justificação da religião
para alguns existencialistas e um ateísmo religioso para outros6, fazendo assim a distinção como
“existencialismo alemão” e “existencialismo francês”.
Seja enquanto ateu ou enquanto francês, o existencialismo sartreano se destaca como uma
leitura do mundo e principalmente do homem referencial para o século XX. Um pensador burguês
que no período entre-guerras tenta descrever os fenômenos do novo mundo a partir da ótica desta
nova concepção de “homem” enquanto jogado no mundo sem um sentido a priori, ou seja, numa
5 SARTRE, Jean Paul. O existencialismo é um humanismo. Conferência apresentada em 1945 e publicada pela primeira vez em 1946, em poucos exemplares que logo acabou e foi reimpressa em nova tiragem, a qual Sartre, em uma, assumidamente, atitude de má-fé – como ele próprio fala no documentário Sartre por ele mesmo, nega consentimento à nova publicação. Aqui na edição Os pensadores, 1973, p. 11. 6 LUKACS, Georg. Existencialismo ou Marxismo. Publicada pela primeira vez em 1947 com segunda edição francesa em 1960, ano de publicação da Crítica da Razão Dialética. Nesta segunda edição que data de uma fase declaradamente marxista de Sartre, Lukacs reitera em nota sua crítica ao existencialismo usando como sustentáculo para a manutenção da crítica e do texto sem nenhuma alteração pelo próprio fato de que “Sartre e Merleau-Ponty tenham mudado fundamentalmente, nesse lapso de tempo, sua posição política, e portanto filosófica”. Aqui na edição de 1979, p.40.
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existência absurda7, em que o homem está “condenado a ser livre”8, pois terá que inventar-se
constantemente, reinventar-se contra o que fizeram dele em nome do que ainda não é. O homem é
este ser que escapa a todo o rígido determinismo dentro ou fora de si, um ser imediata e
integralmente responsável por todas as suas ações. Assim “o homem é intrínseca e ontologicamente
livre”9.
Entretanto, conceber que a condição – e não a natureza10 – ontológica do homem é a própria
liberdade em uma tradição pautada nos princípios de universalidade e abstração abre margem para
inúmeras questões e mal entendidos conceituais, aos quais Sartre não se dedicou ao esforço de
responder por completo; pois sua proposta filosófica parece estar mais preocupada em questionar
pela ação do que demonstrar pelo conceito (preocupação igualmente posta pela crítica nietzschiana
à moral e à metafísica), ou seja, está mais comprometida em problematizar, questionar e negar as
verdades e valores postos como universais do que fundar novos valores e verdades que se
pretendam absolutos. Entretanto não cabe aqui a precipitação de instaurar um Sartre que não
propõe uma verdade e uma universalidade.
O problema da verdade já se colocava para Sartre desde a narrativa de A lenda da verdade -
que vimos ter forte influência da filosofia de Nietzsche - e segue até, por exemplo, o livro Vérité et
existence (obra da maturidade sob forte influência marxista), onde o francês diz que verdade não é
uma organização lógica e universal de “verdades” abstrata. Para ele, verdade é a totalidade do Ser
em tanto quanto ele [o Ser] se manifeste como um “há/tem/existe” na historialização da realidade
7 O absurdo é uma noção extremamente cara ao existencialismo francês, de modo que está presente tanto na sua produção filosófica como na sua produção literária. Como exemplo é possível tomar O mito de Sisifo, de Albert Camus, bem como a peça Entre quatro paredes, de Sartre, obra na qual é possível encontrar várias proximidades dramatúrgicas com o que depois seria intitulado Teatro do Absurdo. Tais proximidades podem ser tomadas pela ótica de um teatro que aborda o absurdo através de três evidências: crise do objeto, crise do sujeito e crise da linguagem. Entretanto esta proximidade na construção de uma dramaturgia que põe a questão do absurdo da existência não deve ser identificada nem confundida com a estética do absurdo, pois o texto sartreano em questão que tematiza o absurdo, e não traz como orientação de concepção cênica e construção de personagens a mesma proposta estética de Eugène Ionesco e Samuel Beckett, por exemplo. Sua encenação está mais referenciada numa estética clássica da tradição teatral da tragédia e do mito provocando situações-limites do que de um “simbolismo abstrato” (MÉSZÁROS, 2012, p. 52), tal como o próprio Sartre classifica, por exemplo, Fim de Partida, de Beckett. Tal afastamento do Teatro do Absurdo parece não ser tão cristalizado como antes na adaptação do texto de Eurípedes, em 1965, onde o próprio Sartre admite ter se inspirado na linguagem teatral da estética do absurdo para propor a dramaturgia de As Troianas. 8 SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. In: Os Pensadores. 1 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 15. 9 SILVA, Cléa e Gois. Liberdade e consciência no existencialismo de Jean-Paul Sartre, 1997, p. 81. 10 “O verdadeiro problema para nós é definir em que condições há universalidade. [...] Estamos de acordo neste ponto: não há natureza humana, ou, por outras palavras, cada época desenvolve-se segundo leis dialéticas, e os homens dependem da época e não de uma natureza humana.” (SARTRE, 1973, p. 37)
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humana.11 A verdade é, portanto, a objetividade do subjetivo, sendo este último seu fundamento
(ou, nas palavras da Professora Eliana Sales Paiva, sua contextualização):
O fundamento da Verdade é a liberdade. Por isso o homem pode escolher a não-verdade. Esta não-verdade é a ignorância ou a mentira. Por outro lado, o desvelamento implica que o que é desvelado está originalmente oculto. Subjetivamente, isto significa que a condição humana é originalmente [de] ignorância [no sentido de não-saber]. Enfim o comportamento de desvelamento é ativo: para deixar aparecer o Ser tal como ele [o Ser] é, ele [o homem] precisa ir busca-lo [o Ser]. (SARTRE, 1989, p.35. Grifo nosso)12
O homem, que é originalmente ignorante a respeito do Ser, o é porque é ontologicamente
nada, sua condição ontológica é a liberdade, esta mesma liberdade que é fundamento/contexto da
Verdade, a qual, ao querer descobri-la, é preciso agir em sua direção, portanto inicialmente escolher
buscá-la.
Quando a liberdade é posta na ontologia humana pela via da escolha e pela responsabilidade
a qual esta acarreta, Sartre afirma que o que escolhemos é sempre o bem, e nada pode ser bom para
nós sem que o seja para toda a humanidade, de forma que uma escolha nossa traz sobre si a
responsabilidade perante toda a humanidade13. Uma reflexão similar a esta apresentada pelo Sartre
escritor de O Ser e o Nada é feita já nos escritos de juventude, posto que Caprio nos um Sartre
dizendo, como que o inverso complementar do homem que sempre busca o bem, que o homem
“egoísta não é mau, pois fazendo tudo em seu próprio interesse, ele não age para fazer seu próximo
sofrer gratuitamente. A maldade exige uma certa gratuidade, como aquela da arte”. (CAPRIO, 2016,
p. 26). Nesse sentido, a humanidade só atinge a maldade quando age de forma gratuita, sem uma
intencionalidade.
Por outro lado, humanidade não deve ser entendida aqui exclusivamente como o substantivo
que refere-se ao coletivo universal dos homens, tal como a tradição o toma, principalmente após o
sujeito transcendental kantiano. Humanidade também pode – e neste caso deve – ser um termo
compreendido pela sua função adjetiva: a qualidade que torna cada homem um ser humano, o
elemento próprio que faz do ser humano existir e que, concomitantemente está presente em todos
os homens. É no reconhecimento dessa qualidade em todos os seres humanos que possibilita tomar
11 SARTRE, J-P. Vérité et existence,. Paris: Ed. Gallimard, 1989, p. 21. 12 “Le fondament de la Vérité est la liberte. Donc l’homme peut choisir la non-vérité. Cette non-vérité est ignorance ou mensonge. D’autre part le dévoilement implique que ce qui est dévoilé est originellment voilé. Subjectivement, cela signifie que la condition de l’homme est originellment ignorance. Enfin le comportement de dévoilement est activité: pour laisser paraître l’Être tel qu’il est, il faut aller le chercher.” (Tradução nossa). 13 SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. In: Os Pensadores. 1 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 13.
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o termo em sua função substantiva, ou seja, o conjunto dos homens que cultivam/criam em si a
própria humanidade.
Uma afirmação desta quando recebida de modo apressado ou mesmo desatento ao
pensamento sartreano em sua inteireza pode levar o leitor à estreita aproximação entre a moral
sartreana e a moral kantiana em seu imperativo categórico14. Mas basta um pouco mais de esforço
e se entenderá a questão: de partida, tanto em Kant como no paradigma de toda filosofia iluminista,
a liberdade surge como um telos, um fim a se alcançar, um ponto de chegada.
Já no existencialismo sartreano, a liberdade, enquanto ontológica, aparece – com a licença
anacrônica da expressão – como a arché do homem (tal como a vontade de potência nietzschiana):
ela é o “princípio fundante e constituinte” da existência humana, uma pretensa “essência”, que na
verdade é uma condição, e que coincide com a angustiante contingência de seu ser. Esta realidade-
humana
é livre porque não é o bastante, porque está perpetuamente desprendida de si mesmo, e porque aquilo que foi está separado por um nada daquilo que é e daquilo que será. E, por fim, porque seu próprio ser presente é nadificação na forma do “reflexo-refletidor”. O homem é livre porque não é si mesmo, mas presença a si. [...] A liberdade é precisamente o nada que é tendo sido no âmago do homem e obriga a realidade-humana a fazer-se em vez de ser. (SARTRE, 2014, p. 545. Grifo do autor)
Aqui é possível supor um Sartre que parafraseia Nietzsche em sua afirmação de que a verdade
é feia e que temos a arte para não definharmos diante da verdade15. A liberdade é a condição que
torna o homem artífice de si mesmo, que forja pra si uma verdade artístico-subjetiva bela em meio
à Verdade metafísico-objetiva feia. Essa realidade humana é arte de si mesmo na medida em que
arte é criação, originalidade, criatividade a partir de um passado que condiciona, mas não determina
a criação futura projetada, pois tal projeção é feita livremente. Essa liberdade, que é o próprio
homem, não se basta porque ela é um nada, é potência, possibilidade de criação, de transformação
e de ressignificação da realidade.
Este nada e esta nadificação que dele deriva não são senão o mundo de possibilidades
presentes em cada momento presente onde o homem é posto em cheque no mundo pela sua
14 “O imperativo categórico é portanto só um único, que é este: Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal.” KANT, na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, p. 59. 15 TANNER, Michael. Nietzsche. Trad. Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Loyola, 200, p. 108.
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condição de escolha livre e situada. A liberdade, portanto, torna-se uma realidade constante e
presente no fazer-se do homem.
Mesmo com todo esforço sartreano de apresentar a liberdade no âmbito da ação concreta e
contingente do homem, ainda há estudiosos que insistem nesta aproximação conceitual com Kant,
como o próprio tradutor de O existencialismo é um humanismo, Vergílio Ferreira16. Na tentativa de
sanar este mal entendido, cabe dizer: quando Sartre diz que ao escolher a si, o homem escolhe a
humanidade, não é de um universal abstrato forjado por um imperativo categórico que está falando.
O existencialista francês refere-se à possibilidade do homem manifestar-se no mundo como um
modelo único e sem cópias, autêntico, que surge criando-se do nada de possibilidades em situação;
um modelo não para se seguir à risca, mas para mostrar uma via possível de autocriação, um
exemplo subjetivo do exercício desta liberdade ontológica e situada; um novo Zaratustra.
Escolher a toda a humanidade é, na verdade, escolher uma possibilidade onde a condição de
humano de todo e cada homem também pode fazer-se, mas não na qual todo e cada homem devam
fazer-se. Sartre reconhece a liberdade como a abertura para as possibilidades e não como o
resultado de uma deontologia.
Quando o existencialista se põe a tematizar a liberdade como central em sua proposta
filosófica não é para instaurar uma nova categoria universal e absoluta na filosofia contemporânea.
A liberdade só é central no pensamento sartreano porque ele não se direciona para a liberdade
enquanto um “Em-si” universal, mas para o homem, que é ontologicamente liberdade. Como
percebem Eliana Sales Paiva e Rita Bittencourt17, no texto sobre a análise sartreana do povo e da
burguesia brasileiros, pois
quando afirma que o apoio mundial aos revolucionários brasileiros significa um compromisso com a liberdade humana e o engajamento como forma de emancipação coletiva, Sartre ressalta que a resistência é um dos componentes possíveis para a construção de uma filosofia do sujeito, na qual a crítica da política e a articulação de movimentos sociais sejam lutas de liberdade. (CASTRO e NORBERTO (orgs.), 2017, p. 43. Grifo nosso)
16 Em sua nota de número 8, na página 13 da edição aqui apresentada, de 1973. 17 Artigo intitulado “A resistência sob o fogo cruzado do capital” sobre o texto sartreano “Le peuple brésilien sous le feu croisé des bourgeois” (Situações VIII); publicado no volume 2 da coleção Sartre Hoje, organizada por Fabio C. L. Castro e Marcelo S. Norberto, em 2017. Ainda como contribuição à discussão aqui posta, vale ressaltar que tal artigo conclui-se dizendo: “Não basta fundir a subjetividade na estrutura marxista, sempre disposta a provocar rupturas; é preciso compreender a subjetividade no âmbito do marxismo, para a fim de que, a filosofia materialista permaneça fiel à sua vocação de uma filosofia da liberdade e que nela esteja também o sujeito” (2017, p. 47).
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Ou seja, ao se falar em uma filosofia da liberdade no existencialismo sartreano deve-se
entender por isto, uma filosofia do sujeito livre, o qual se engaja em conflitos políticos e movimentos
sociais por escolher e construir lutas de liberdade, e não para a liberdade, o que repõe o argumento
ontológico da liberdade não como absoluta, mas como condição humana e historicamente situada.
Os métodos e a metodologia
A liberdade, portanto é o termo ontológico para abordar o homem, que é a verdadeira
preocupação de Sartre desde seus escritos de juventude até seus escritos de maturidade. É porque
sua preocupação é prioritariamente com o homem e suas relações com os outros e com o mundo
que Sartre pode definir este homem como liberdade e anos depois falar que esta condição do
homem foi alienada. A intenção aqui é compreender Sartre em sua inteireza, tal como ele responde
a todos aqueles que suspeitam que seu pensamento tenha se dividido em duas matrizes distintas: a
primeira melhor ilustrada pela obra O Ser e o Nada (1943) e a segunda representada pelos escritos
mais voltados ao pensamento marxista da Crítica da Razão Dialética (1960):
Se o senhor pensa [...] que há uma diferença entre O ser e o nada e a Crítica da razão dialética é por causa da maneira como os problemas são formulados mas não por causa da própria direção; a direção continua a mesma. Com efeito, em O ser e o nada eu quis apreendendo-me ao nível da consciência, isto é, no nível ao mesmo tempo mais certo e mais abstrato, o mais formal, aquele que se encontram em verdades inegáveis, mas quase nulas, com as quais não se pode fazer nada, eu quis portanto fazer uma descrição do que é a realidade humana como projeto, compreensão. Mas [...] não é de forma nenhuma assim que cabe reintroduzi-las numa antropologia. [...] A verdade, portanto, é que nosso trabalho não consiste em insistir indefinidamente sobre o projeto, sobre a natureza da liberdade, sobre a necessidade (besoin), sobre o conjunto das coisas que fazem a condição humana. O que é necessário para nós é reconstituir uma ontologia ou, pelo menos, uma antropologia dialética na qual a compreensão seja exigida a cada instante, a cada instante o projeto da pessoa sob forma concreta e real apareça.” (SARTRE, 2005, p. 97ss)
Em outras palavras, em termos de método, há quem defenda que existe um Sartre
fenomenólogo que em nada, ou quase nada, se associa ao Sartre do método regressivo-progressivo.
Sartre define o método de abordagem existencialista como um método regressivo-progressivo e
analítico-sintético; é, ao mesmo tempo, “um vaivém enriquecedor entre o objeto (que contém toda
a época como significações hierarquizadas) e a época (que contém o objeto em sua totalização)”
(SARTRE, 2002, p.112).
Para ilustrar esta forma de pensar, basta voltar-se sobre a pergunta de Fausto Castilho que
mobiliza a fala sartreana na conferência de Araraquara, a saber, sobre a consequência de se,
renunciando o nome de filósofo na Questão de Método (1960) para assumir-se ideólogo, não seria
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necessário uma nova ideia das relações entre sujeito e objeto – o que colocaria por terra
praticamente todo esforço do ensaio de uma ontologia fenomenológica (SARTRE, 2005, p. 23).
Outro exemplo desta defesa de dois pensamentos sartreanos discordantes entre si é a crítica de
Lukacs ao francês de que ele teria mudado fundamentalmente, no lapso de tempo da década de
1940 para a década de 1960, sua posição política, e portanto filosófica (LUKACS, 1979, p. 13).
Talvez seja um fato que algumas ideias tenham sofrido algumas alterações no tempo-espaço
da filosofia sartreana. Não seria de se estranhar, já que se trata de um pensador fortemente
engajado em compreender e transformar seu tempo histórico, ou pode-se dizer, seu contexto.
Contudo quando se admite que o objeto central da investigação sartreana não é a liberdade, ou o
mundo, muito menos um Ser metafísico, mas desde o início do desenvolvimento reflexivo
sartreano18, seu objeto de investigação é o homem concreto, em situação, não será difícil perceber
que desde o começo não é de uma filosofia extensiva que trata Sartre, mas sim de um
aprofundamento filosófico em um objeto específico da investigação filosófica: o homem. E com a
eleição deste objeto, perpassar todas as suas relações e seus desdobramentos, de certo modo
fenomenológico (pelo método descritivo) e por outro lado, de modo regressivo-progressivo (pelo
método dialético analítico-sintético).
É óbvio e inegável que aqui já não há mais uma relação metodológica com Nietzsche tal como
era possível perceber no método psicológico do jovem Sartre. Entretanto, não se pode dizer o
mesmo sobre as problemáticas filosóficas que emergem ainda lá atrás sob a influência nietzschiana:
mesmo que de modo diferente e com ressignificação dos conceitos e reposição das questões, o peso
do martelo nietzschiano ainda parece ser o mesmo peso que dá suporte aos escritos sartreanos para
que estes não voem de aleatoriamente quando os fortes ventos da tradição niilista-alienante do
universal-abstrato soprar contra o homem concreto. É por isso que tanto em seu estágio
fenomenológico como em seu estágio dialético, Sartre se mantém inteiro em seu projeto. E por
inteiro não entenda-se completo, pleno: entenda-se, coerente. Inteireza aqui deve ser entendido
como coerência existencial do sujeito para consigo mesmo e com o seu projeto de recriação do
mundo.
18 Dentre os escritos de juventude de Sartre (compreendidos entre 1922 e 1932) temos A lenda da verdade, um texto narrativo que propõe, já na juventude de Sartre, uma crítica social e uma atitude anarquista, além de desenvolver a concepção do homem só. Para o pesquisador Fabio C. L. Castro, em seu livro A ética de Sartre, o francês tenta mostrar que “o homem só elimina de seu pensamento o artifício da necessidade tornando-se, na solidão, o criador de seu próprio pensamento. É assim que a liberdade parece implicada na compreensão geral do texto, já que a solidão do homem só vem do próprio fato de que ele é livre” (2016, p. 28)
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Neste sentido, pelo exposto só é possível cogitar duas filosofias sartreana radicalmente
diferente entre si se o critério for o da quantidade de métodos. Contudo ainda assim soa
extremamente equivocado já que, sendo este o critério, seria preciso pensar em uma “terceira
filosofia” no jovem Sartre, com o método psicológico sob forte influência de Nietzsche, o que
parece, no mínimo, inútil à compreensão do pensamento do autor enquanto inteiro (isso sem tocar
na gravidade da questão se tal critério fosse aplicado a outros filósofos, como Foucault - que em um
só livro expõe inúmeros métodos de pesquisa filosófica dos quais fez uso durante a escrita de um só
texto). Talvez o mais sensato seja entender os métodos sartreanos como complementares na
investigação do mesmo objeto por perspectivas teóricas diferentes: em um primeiro momento, o
método está preocupado com uma perspectiva psicológica de compreensão do homem; tomando
por referência os escritos sartreanos a partir da década de 1940, enquanto um método preocupa-se
ontologicamente com o homem, o outro se preocupa histórica e antropologicamente com este, o
que só pode ser feito honestamente de maneira dialética, se é verdade que a filosofia de Marx é a
filosofia inevitável, tal como afirma Sartre em sua Questões de Método (1960).
A melhor forma de lidar com este impasse é elevar a discussão do campo do método filosófico
para o campo da metodologia de pensamento e escrita filosófica. A este respeito, o livro Que é a
literatura?(1948) Parece mostrar exatamente a chave de leitura que arremata o pensamento de
Sartre como uma inteireza a respeito da questão do homem. Nesta obra, temos Sartre estruturando
seu pensamento a respeito da literatura em quatro capítulos, que podem ser lidos, genericamente
pelas perguntas “o que é o objeto pesquisado?”, “por que pesquisar tal objeto?” “para quem se
direciona esta pesquisa?” e, por fim, mas não menos importante “qual a situação em que o
pesquisador em relação ao objeto?”. No livro, tais perguntas se referem ao ato de escrever e ao
escritor. Aqui, a intenção é propor a compreensão delas como matriz para qualquer ação. E como
filosofar, refletir, escrever, ler e até calar-se a respeito de algo é, cada qual a seu modo, uma ação
em Sartre19, ao ler sua obra tendo como consenso que o homem é seu objeto pesquisado (e também
o sujeito pesquisador) todos os escritos sartreano, todas as suas ações poderão ser articuladas nesta
mesma concepção metodológica de “o que...?”, “por que...?” “para quem...?” e “qual situação...?”,
19 O propósito aqui não é igualar, por exemplo, o filosofar com o calar-se. O que se argumenta aqui é apenas o fato de que, enquanto tais, em suas especificidades, ambos são ações humanas, o que não quer dizer que equivalham a mesma ação: são ações diferentes, mas mesmo assim ações. Em uma argumentação lógica, poderíamos dizer que ler, escrever, filosofar e calar são subconjuntos contidos no conjunto maior da ação. Contudo, dizer que o conjunto “Ação” contém o conjunto “Filosofar” não é o mesmo que dizer que Ação = Filosofar. Dito de outra forma: todo filosofar é uma ação, mas nem toda ação é um filosofar.
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pois enquanto o método pode ser entendido como o caminho, o processo para alcançar ou uma
verdade ontológica ou epistêmica ou também uma compreensão filosófica a respeito do objeto
pesquisado; a metodologia pode ser entendida como a problematização dos caminhos possíveis, ou
a reflexão sobre a escolha deste ou daquele caminho.
A metodologia é a escolha da direção a seguir, independente do caminho a ser percorrido
naquela direção. Assim, enquanto metodologia Sartre aparece como o mesmo pensador que
escolhe métodos diferentes para investigar o mesmo problema em contextos diferentes.
Um artista engajado
A relação entre filosofia e literatura em Sartre se dá de forma autêntica em cada gênero de
escrita, contudo não há mais que uma linha tênue separando sua produção filosófica de sua
produção artística. É por isso que Franklin Leopoldo e Silva define esta relação como uma
“vizinhança comunicante”, pois a princípio não se trata de uma relação extrínseca e, defende o
comentador, muito menos uma relação de identidade absoluta (LEOPOLDO E SILVA, 2004, p. 13).
Esta relação entre filosofia e literatura é responsável pela diferença e pela adequação recíproca dos
dois modos de escrita do pensador. Assim, Leopoldo e Silva alega que a expressão filosófica e a
expressão literária são ambas necessárias em Sartre porque, por meio delas, o autor diz e deixa de
dizer as mesmas coisas, ou seja, por meio de métodos de escrita diferentes desenvolve as mesmas
problemáticas.
Nesse caminho está o crítico Benedito Nunes20, para quem o “teatro de situações”21 e o
existencialismo se implicam mutuamente, pois ambos tem suas raízes na problemática da ação. O
próprio filósofo refere-se a seus textos como criações de implicações sempre e concomitantemente
filosóficas e literárias. Sartre se pergunta sobre sua identidade: filósofo ou literata? E sua resposta
é: “Acredito que trago desde minhas primeiras obras, uma realidade que é as duas coisas: tudo o que
escrevi é ao mesmo tempo filosofia e literatura, não justapostos, mas cada elemento dado é de uma
20 ROMANO, Luís Antônio Contatori. A passagem de Sartre e Simone de Beauvoir pelo Brasil em 1960. Campinas: Mercado das Letras: São Paulo: Fapesp, 2002. p. 323.
21 Cabe desde já alertar para a fragilidade do termo “teatro de situações” para classificar o teatro sartreano. Para este trabalho, por reconhecimento da importância do mito na literatura e no teatro sartreano, sugere-se o uso do termo “teatro de situações-limites” que expressaria mais adequadamente as preocupações não só filosóficas, mas também estéticas, antropológicas e políticas da concepção de teatro e de dramaturgia para o autor em questão.
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só vez literário e filosófico”.22 Filosofia e Arte estão para a escrita sartreana assim como o apolíneo
e o dionisíaco estão para a tragédia em Nietzsche: Apolo (o deus olimpiano da ordem, da beleza e
do comedimento) não podia viver sem Dionísio (o deus titânico e bárbaro/estrangeiro da
embriaguez, da loucura e da desmesura), pois para o indivíduo com todos os seus limites e medidas,
o desmedido revelava-se como verdade, a contradição, o deleite nascido das dores, falava por si
desde o coração da natureza23. Ambos eram necessários ao nascimento da tragédia grega.
Em seu livro Que é a literatura?, onde se encontra a afirmação de que o escritor lida com signos,
Sartre toma a escrita como um ato livre do escritor que apela à liberdade do leitor de modo que a
“verdadeira” e “pura” literatura expressa uma subjetividade que se lança com a aparência de
objetividade, um discurso tão curiosamente articulado que equivale ao silêncio tal como o faz o
paradoxo da fé, ou seja: o silêncio da literatura é aquele que mesmo quando fala, oculta algo que só
pode ser revelado pela subjetividade do leitor e que seguirá sempre com ele não sendo possível
expressar em sua plenitude a experiência da leitura (para o leitor) ou da escrita (para o escritor). Esse
silêncio é a “gratuidade da arte”, tal como chamada pelo Sartre leitor de Nietzsche. A literatura é
um
pensamento que se contesta a si mesmo, uma Razão que é apenas a máscara da loucura, um Eterno que dá a entender que é apenas um momento da História, um momento histórico que, pelos aspectos ocultos que revela, remete de súbito ao homem eterno; um perpétuo ensinamento, mas que se dá contra a vontade expressa daqueles que ensinam. (SARTRE, 2004, p. 28)
O escritor é aquele que ensina mesmo contra sua vontade, posto que sua obra vai além de seu
controle e, se boa, deixará marcas que suscitam a liberdade daquele que lhe dá vida pela leitura. É
pelo silêncio que se pretende promover em detrimento da liberdade (do locutor e do interlocutor),
que o escritor precisa estar engajado inteiramente com suas obras, não de forma passiva e viciada,
mas sim como uma escolha, com esse total empenho em viver que constitui tanto o escritor como o
leitor para quem ele se direciona. Cada obra traz consigo uma verdade, mas tal verdade não é
22 SICARD, Michel. Essais Sur Sartre. op. cit., p. 380. No original: “Suis-je philosophe? Ou suis-je littéraire? Je pense que ce que j’ai apporte depuis mes premières œuvres, c’est une réalité qui soit les deux : tout ce que j’ai écrit est a fois philosophie et littérature, non pas juxtaposées, mais chaque élément donne est a fois littéraire et philosophique”. In CASTRO, Fabio Caprio Leite de; NORBERTO, Marcelo S. (Orgs.) Sartre hoje: volume 1 [recurso eletrônico]. Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2017, p. 85. 23 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 38. Entenda-se aqui, com a licença comparativa da analogia, a natureza nietzscheana como equivalente à condição sartreana. Certamente sabemos que filosoficamente esses conceitos não equivalem e na verdade chegam a ser antagônicos na perspectiva sartreana. Mas aqui propõe-se essa equiparação para favorecer o paralelo possível entre a tragédia do teatro grego e a tragédia do teatro sartreano.
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absoluta, posto que para Sartre o pressuposto da verdade é a liberdade24 - podendo, tanto escritor
como leitor, escolher a não-verdade que pode aparecer tanto como o não conhecimento do
conteúdo de um texto como seu descrédito pela mentira nele posta.
Por isso a escrita configura-se como um ato livre, de engajamento com um projeto autêntico
de liberdade. Engajamento aqui, não deve ser entendido como engajar-se numa causa partidária ou
comprometer-se moralmente com uma norma já dada, ou mesmo com um imperativo categórico.
O melhor termo para expressar o sentido semântico de engajar-se, na terminologia sartreana talvez
seja a tradução proposta pelo crítico Casais Monteiro, a saber: participar. Engajamento na literatura
é, portanto, a participação do escritor na solução dos problemas da sociedade em que vive, na qual
deve tornar-se elemento ativo (ROMANO, 2002, p. 284). Não à toa, para Sartre, a verdade se revela
na ação25.
A questão da verdade ganha contorno e dimensão ampliada quando o autor de As Moscas, em
entrevista para Kenneth Tynan, afirma que o teatro não está preocupado com a realidade: só
preocupa-se com a verdade. Por outro lado, segundo ele, o cinema busca uma realidade26 que pode
conter momentos de verdade. O dramaturgo defende que o verdadeiro campo de batalha do teatro
é o da tragédia – drama que incorpora um autêntico mito. Não há razão alguma para que o teatro não deva contar uma história de amor ou casamento, na medida em que ela tenha uma qualidade de mito; em outras palavras, na medida em que ela se ocupe de algo mais do que rixas conjugais ou desentendimentos entre amantes. Buscando a verdade por meio do mito, e pela utilização de formas tão não realistas quanto a tragédia, o teatro pode fazer frente ao cinema (MÉSZÁROS, 2012, p. 51)
Sartre apresenta claramente uma discussão a respeito da linguagem própria do fazer teatral
em sua concepção, de modo que fica nítido sua posição de que escrever teatro não é a mesma coisa
que escrever um romance, uma novela, um artigo ou roteiro de cinema – o qual requer uma
apropriação adequada da linguagem cinematográfica também. Para o autor, escrever é “apelar ao
leitor para que faça passar à existência objetiva o desvendamento que empreendi por meio da
24 “Le fondement de la Vérité est la liberté. Donc l’homme peut choisir la non-vérité. Cette non-vérité est ignorance ou mensonge.” In SARTRE, Jean-Paul. Vérité et existence. Paris: Gallimard, 1989, p. 35. 25 “C’est à un être qui l’En-soi se jette vers l’avenir et qui décide de sa manière d’être que l’En-soi se révèle; en un mot, la vérité se révèle à l’action” (In SARTRE, Jean-Paul. Vérité et existence. Paris: Gallimard, 1989, p. 39) 26 Para Sartre, compreensão não está necessariamente no campo da linguagem falada e na transmissão de sentidos por signos escritos, mas é precisamente as intuições possíveis a partir da observação de uma situação. É a ação, uma determinada atitude no mundo, que nos permite a compreensão, posto que compreender é o ato de, em sendo diferente, acessar o outro em sua diferença reconhecendo na situação posta o que é possível construir de sentido comum a ambos. Na Conferência de Araraquara, Sartre apresenta o cinema mudo como um bom exemplo das relações por compreensão, já que, para Sartre, o cinema está preocupado com a realidade.
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linguagem”27 (2004, p. 39). Não é porque literatura não é filosofia que todos os escritos literários
sartreano obedecem à mesma técnica e mesma escolha literária e/ou filosófica. O existencialista
tem consciência de que cada gênero literário requer um trato específico, posto que a literatura não
está a serviço da filosofia, mas sim da liberdade. É tendo em vista esta necessidade de pensar cada
gênero literário como independente – mesmo quando relacionado com outros escritos literários ou
filosóficos – que o autor, referindo-se ao alcance e a algumas especificidades dos principais meios
de comunicação de sua época, diz ser verdade o fato de que os escritores são mais conhecidos do
que seus livros são lidos. E continua:
Atingimos as pessoas, mesmo sem querer, através de novos meios e novos ângulos de incidência. Sem dúvida, o livro ainda é a infantaria pesada que limpa o terreno. Mas a literatura dispõe de aviões, de bombas V1 e V2, que vão longe, inquietam e afligem, sem levar a uma decisão. A imprensa primeiro. Um autor escrevia para dez mil leitores; se lhe oferecerem uma coluna num semanário, ele terá trezentos mil, mesmo que seus artigos não valham nada. Em seguida a rádio: Huis clos [Entre quatro paredes], uma de minhas peças, proibida na Inglaterra pela censura teatral, foi ao ar em quatro transmissões pela BBC. Encenada em Londres, não conseguiria, mesmo na hipótese improvável de sucesso, vinte ou trinta mil espectadores. O programa teatral da BBC deu-me automaticamente meio milhão. Por fim o cinema: quatro milhões de pessoas frequentam as salas francesas. (SARTRE, 2004, p.179)
É claro que a quantidade de acessos a um determinado conteúdo não está diretamente e
intrinsecamente associado à qualidade com que esta informação chega e fica em quem a recebe.
Sartre tem conhecimento das potencialidades e limitações das tecnologias de comunicação
apresentadas, bem como dos respectivos gêneros literários que atendem a cada demanda. Para ele
não é viável que um escritor que visa produzir textos para dramaturgia teatral possa escrever como
se propõe um roteiro cinematográfico, por exemplo.
O nascimento da tragédia sartreana
É por saber que há especificidades para cada gênero literário que esta pesquisa se aterá mais
dedicadamente ao diálogo com os textos dramatúrgicos de Sartre, haja vista este estudo tomar o
homem como objeto das reflexões sartreana e é este mesmo homem – personagem concreto, em
27 Em seu artigo “Sartre, linguagem e psicanálise”, a Profa. Dra. Camila Salles Gonçalves escreve: “Ainda que com pouca informação disponível, considero ‘indecidível’ a questão de situar ou não o interesse de Sartre pela linguagem no nível do significante. Sem condições de entrar no campo da semiótica, ressalto em outro aquilo que Timothy J. Reiss vê como um grande problema. Ele atribui à teoria de Sartre a proposição segundo a qual a consciência individual precede la mise en signes, que tomo a liberdade de traduzir aqui por acesso ao universo dos signos. Tudo se passaria como se houvesse primeiro uma consciência (de) ..., que depois usaria a linguagem para se expressar. A consciência individual teria então que trabalhar a materialidade da língua, para dela arrancar suas palavras. [...]Apenas observo que a anterioridade da consciência em relação à “circulação de signos” não constitui uma premissa que possa ser atribuída de forma indiscutível a teses do filósofo.” GONÇALVES, Camila Salles. Sartre, linguagem e psicanálise. In: Ide. São Paulo, 30(44), 45-50, junho 2007, p. 47.
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ação na tragédia – que aparece em cena fazendo-se em situação, no palco do teatro sartreano. Além
do mais, para esta valorização em destaque do teatro sartreano, leva-se em consideração o
posicionamento do próprio filósofo em relação à proximidade entre filosofia e teatro:
"Eu penso que a filosofia é dramática. Não se trata mais de contemplar a imobilidade de substâncias que são o que são, nem de encontrar as regras de uma sucessão de fenômenos. É sobre o homem - que é tanto um agente quanto um ator - que produz e atua seu próprio drama, vivendo as contradições de sua situação até a solução de seus conflitos. Uma peça (épica - como as de Brecht - ou dramática) é a forma mais apropriada, hoje, para mostrar o homem em ato (isto é, o homem, simplesmente). E a filosofia, de outro ponto de vista, é desse homem que ela pretende se ocupar. É por isso que o teatro é filosófico e a filosofia é dramática."28
Para Sartre há uma relação quase que simbiótica entre filosofia e teatro, que de formas
autônomas, cada uma a seu modo, se ocupam do homem concreto, situado, em ação. Na visão
sartreana de filosofia, não se trata mais de contemplar a verdade universal e substancial de um Ser
metafísico, nem sequer de alimentar a lógica formal ou mecanicista buscando regras vigentes para
explicar passivamente a sucessão dos fenômenos. A filosofia tem por alvo e objeto agora o homem
e suas relações consigo, com os outros e com o mundo. E é deste mesmo homem que tanto se ocupa
o teatro como a filosofia. Não por acaso o filósofo escolhe esta arte para propagar suas questões e
reflexões acerca do homem em ação. Este homem situado – seja no meio social ou no palco – é, ao
mesmo tempo, agente em sua realidade e ator de sua verdade. Por isso, não há como pensar uma
filosofia política e moral sartreana distante de seu teatro, posto que seu teatro é filosófico e sua
filosofia é dramática. Entretanto, parece sensato alertar para um equívoco apressado da
terminologia usada para denominar o teatro sartreano como “teatro de situações”, pois como o
próprio autor disse, o teatro deve apresentar um mito. Essa arte deve simbolizar o homem e
representar o mundo29.
Para o filósofo-escritor francês, a filosofia é dramática e o drama é filosófico exatamente
porque tanto o drama quanto a filosofia tratam da ação humana e, para Sartre, não só falam sobre
28 SARTRE. Jean-Paul. Sur moi-même. In Situations, IX. Paris: Gallimard, 1972., pp. 12-13. No original: "je pense que la philosophie est dramatique. Il ne s'agit plus de contempler l'immobilité des substances qui sont ce qu'elles sont, ni de trouver les règles d'une succession de phénomènes. Il s'agit de l'homme - que est à la fois un agent et un acteur - qui produit et joue son drame, en vivant les contradictions de sa situation jusqu'à la solution de ses conflits. Une pièce de théâtre (épique - comme celles de Brecht - ou dramatique), c'est la forme la plus appropriée, aujourd'hui, pour montrer l'homme en acte (c'est-à-dire l'homme, tout simplement). Et la philosophie, d'un autre point de vue, c'est de cet homme-là qu'elle prétend s'occuper. C'est pour cela que le théâtre est philosophique et que la philosophie est dramatique”. 29 Sartre, ao comentar o teatro brechteano, declara que uma peça “é o símbolo vivo do homem e o mundo representado para o homem. A questão é saber qual a relação que há entre o público e o símbolo. Creio que o que Brecht procurava destruir é a relação entre o teatro burguês comum – não é este o caso do teatro clássico – e do espectador. [...] Ele [Brecht] queria que o espectador saísse do teatro inquieto, isto é, compreendendo as razões para a contradição, sem ser capaz de transcendê-la emocionalmente”. (ROMANO, 2002, p. 316)
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esta ação como são também reflexo dela. Trata-se, tanto na filosofia como na arte dramática, de
um encantamento do real promovido pela ação do homem que, ao existir no mundo, movimenta-
se nele, com ele e transformando a si e ao mundo. E, como lembra Nietzsche, o encantamento é o
pressuposto de toda arte dramática. O encantamento é o método pelo qual a verdade humana é
revelada na tragédia. Neste sentido, a forma do teatro sartreano está muito mais atrelada à tragédia
grega tal como apresenta Nietzsche pela relação criativa, narrativa, ritualística e simbólica entre o
apolíneo e o dionisíaco do que à forma teatral de seus contemporâneos. Em Nietzsche, a tragédia
grega deve ser compreendida como sendo “o coro dionisíaco a descarregar-se sempre de novo em
um mundo de imagens apolíneo”. (2007, p. 57) De modo que em Sartre há uma valorização decisiva
e fundamental em seu teatro de uma estética dramática pautada no mito. Para ele, o bom teatro é
aquele que não só fala ao espectador de sua época, mas que é capaz de, enquanto concepção mítica,
expressar a condição humana em qualquer tempo. A este respeito, István Meszáros define o
dramaturgo sartreano como aquele que apresenta o eidos da sua existência cotidiana: apresenta sua
própria vida como se a observasse de fora. É aí que reside a genialidade de Bertolt Brecht que “teria
protestado veementemente se alguém lhe dissesse que suas peças eram mitos. Mas o que mais
pode ser Mãe Coragem senão uma antítese que, apesar disso, torna-se mito?”(MÉSZÁROS, 2012,
p.53).
A função do teatro, para Sartre, é apresentar o individual sobre a forma de mito, que é “uma
condensação de traços de caráter (em consonância com a ‘densidade’ ou ‘plenitude’ do ser) que faz
com que a realidade percebida e descrita se eleve ao nível do ser sem abandonar os dados da
sensibilidade” (MÉSZÁROS, 2012, p.46). Sendo sua proposta teatral a de que esta arte seja
essencialmente mito, o filósofo da existência posiciona-se em contraste ao “teatro realista burguês”,
que visa a representação direta da realidade, e ao “simbolismo abstrato” tal como ele classifica o
Rinoceronte de Ionesco e qualquer peça do Beckett (com exceção de Esperando Godot), com ênfase
em Fim de partida, que ele classifica como simbolismo inflado demais, desnudado demais. Pela
mesma prerrogativa do mito, Sartre elogia, por exemplo, obras como Calígula e O equívoco, de
Albert Camus. Esse simbolismo abstrato que Sartre critica ainda no século XX já havia sido criticado
pelo filólogo alemão no século XIX, quando ele diz que o poeta só é poeta
porque se vê cercado de figuras que vivem e atuam diante dele em cujo ser mais íntimo seu olhar penetra. Por uma fraqueza peculiar de nossa capacidade moderna, tendemos a complicar o protofenômeno estético e a representa-lo de maneira muito complicada e abstrata. A metáfora é para o autêntico poeta não uma figura de retórica, porém uma
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imagem substitutiva, que paira à sua frente em lugar realmente de um conceito. O caráter, para ele, não é uma reunião de traços individuais, que foram procurados para compor um todo, mas uma pessoa insistentemente viva, perante seus olhos, que se distingue da vida tão similar do pintor pelo fato de continuar a viver e agir. (NIETZSCHE, 2007, p. 56).
Olhar para Sartre com o olhar poético de Nietzsche induz àqueles afeitos à aproximação
íntima entre arte e filosofia à ver o existencialista francês como um autêntico poeta nietzscheano
mesmo nos seus textos mais prosaicos, pois metáforas e personagens de com forte caráter é o que
não faltam em seus textos, desde os jornalísticos até os teatrais. Basta, por exemplo, olhar para o
cidadão francês no artigo jornalístico intitulado “República do silêncio” ou mesmo para o Orestes da
peça “As Moscas” e não precisará muito esforço para encontrar alí não uma universalização do
sujeito, mas sim uma figura, uma imagem, um mito do homem concreto em situação, que
transforma seu mundo e sua história desde sua ação.
As peças teatrais de Sartre sempre foram uma forma clara de engajamento do filósofo e
dramaturgo para com sua realidade e sua sociedade de modo que não há uma peça sequer que não
tenha sido escrita inspirada em seu tempo histórico, mas capaz de dialogar com outros tempos
passados e futuros, pois trouxeram em seu âmago, não apenas uma situação como querem os
comentadores do “teatro de situações” que lêem a literatura teatral como um escrito a serviço da
filosofia. O texto de teatro não é subordinado à filosofia, mas sim à liberdade. Ele existe para
subsidiar a montagem e a encenação do espetáculo teatral ao seu público expondo não uma
situação casual, mas sim o que o autor chama de “situação-limite”30.
Quando Sartre faz referência ao seu teatro como aquele que expõe uma “situação-limite”, ele
não parece estar se referindo apenas ao conceito filosófico de “situação”. Uma situação quando é
limite deixa de ser uma situação comum e passa a ser um referencial extremo, simbólico e decisivo.
O limite não é apenas um fato concreto na situação, como uma coerção física ou uma limitação
espaço-temporal ao qual o cenário da peça faz referência. Uma situação é limite quando tem por
possibilidade, em última instância, a morte. A situação-limite é, pode-se dizer, o ápice da
embriaguez titânica do dionisíaco, é o instante em que a morte aparece como a verdade máxima,
aquela a qual Nietzsche classificou como feia e contra a qual existe a arte.
30 Leandro Neves Cardim, em seu artigo intitulado A forja do mito em As moscas de Sartre, observa que o teatro de situações “não é um teatro de símbolos, mas um teatro de mitos austeros, uma vez que é rigoroso na investigação desses comportamentos humanos em situações-limite, como, por exemplo, a morte, o exílio e o amor.” (CARDIM, Leandro Neves. A forja do mito em As Moscas de Sartre. In. Trans/Form/Ação, Marília, v. 40, n. 4, p. 167-186, Out./Dez., 2017, pp. 180-181)
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A morte aparece, portanto, em todas as peças sartreana não necessariamente como um fato
futuro (ou passado, como em Huis Clos), mas como um símbolo da finitude e da precariedade
humana. A morte é, assim como a violência e a tortura, um grande mito que deve sempre está
presente como possibilidade ou acontecimento/relato, no palco31. Seria mais adequado, parece,
nomear o teatro sartreano de teatro de situações-limites.
O teatro de situação-limite é sempre um projeto de futuro ensaiado no presente através da
visitação e da ressignificação de um passado mítico ainda pertinente aos mitos contemporâneos.
Do mesmo modo, a arte engajada é, em qualquer uma de suas linguagens, um projeto de criação do
novo futuro a partir do velho passado em um presente efêmero.
Do homem só ao Zaratustra-criança.
Projetar é escolher a criação de um futuro que se quer, em consonância com o profeta
nietzschiano declarando que o querer liberta “pois querer é criar: assim ensino eu. E somente para
criar deveis aprender!”32. Assim, não basta o desejo por determinado projeto. É preciso agir para
criar tal realidade projetada. Não há projeto sem ação, pois o primeiro já pressupõe uma ação
primeira que é a escolha livre por um não-ser a devir.
Para Sartre, na conferência após o lançamento de O Ser e o Nada, o homem é, antes de tudo,
“o que se lança para o futuro, e que é consciente de se projetar no futuro. O homem é, antes de mais
nada, um projeto que vive subjetivamente” (1973, p. 12). Esse lançar-se para o futuro é lançar-se na
negação da situação presente. É partir dela, mas para negá-la. É assumir a situação dada como
condição de possibilidade para que as coisas, e o próprio homem, possam ser diferentes.
Todo projeto é fruto de uma ação original – a escolha – e apresenta-se como uma ação no
mundo, realizada por uma subjetividade em nome de um uma realidade que ainda não existe. E
assim diz Sartre em Araraquara, pós Crítica da razão dialética:
Assim, pelo projeto, há negação de uma situação definida em nome de uma situação que não existe. Aqui intervém essa negação, esta negatividade que é própria do ato. Há, em
31 É também do mito da morte que parte o roteiro cinematográfico escrito por Sartre e publicado no Brasil sob o título de “Os dados estão lançados”, que tem por protagonista o casal Eve e Pierre. Contudo neste texto preparado para o Cinema, Sartre não está preocupado com a verdade existencial das personagens, e sim com a realidade do projeto político-moral das mesmas. Não está em questão a verdade ontológica da morte (tanto é que no filme a morte aparece alegoricamente, como uma inação burocrática), mas sim da realidade situacional a qual Eve e Pierre estão imersos e precisam agir conscientes das consequências de suas escolhas. 32 NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 197.
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primeiro lugar, negatividade. Negatividade, ou seja, recusa, fuga, nadificação, chamem como quiserem. Mas o ponto de partida é que algo é negado daquilo que vemos, que sentimos em nome de algo que não vemos e não sentimos. (SARTRE, 2005, p. 83. Grifo nosso)
Quem é este “nós” que conjuga os verbos ser e sentir? Quem ver e sente aqui? O homem! Não
o Homem universal e abstrato, mas o homem concreto, existente. O projeto para Sartre, mesmo
após sua declarada guinada filosófica ao horizonte político do marxismo continua sendo uma
relação profunda de nadificação da situação presente em nome de uma situação que se quer como
futura e que, portanto, requer ações que assim a façam. Nesse sentido, portanto, não basta o
escravo, ou o oprimido – de modo geral – desejar-se fora da situação de opressão. É preciso primeiro
negá-la em suas ações, traçar um projeto subjetivo (o que não quer dizer que seja sozinho) para
transformar a situação presente na situação almejada. Ou como falou Zaratustra, a nobreza do
escravo é a rebelião33. Mas é preciso atentar para que este projeto seja autêntico e que sua realização
não se torne uma nova alienação.
É deveras oportuno aqui, tendo em vista o teor desta pesquisa, fazer menção à noção de
“bluesman” expressa pelo cantor e compositor negro brasileiro, o rapper Baco Exu do Blues, na
última faixa do álbum Bluesman lançado em 2018 pela gravadora 999. No final da ultima faixa, o
vocalista narra a situação do surgimento do estilo musical blues nos Estados Unidos e define o termo
bluesman:
1903. A primeira vez que um homem branco observou um homem negro, não como um um “animal” agressivo ou força braçal desprovida de inteligência. Desta vez percebe-se o talento, a criatividade, a MÚSICA! O mundo branco nunca havia sentido algo como o “blues”.
Um negro, um violão e um canivete. Nasce na luta pela vida, nasce forte, nasce pungente. Pela real necessidade de existir!
O que é ser “Bluesman"?
É ser o inverso do que os "outros" pensam. É ser contra corrente, ser a própria força, a sua própria raiz. É saber que nunca fomos uma reprodução automática da imagem submissa que foi criada por eles.
Foda-se a imagem que vocês criaram.
Não sou legível. Não sou entendível.
Sou meu próprio deus.
Sou meu próprio santo. Meu próprio poeta.
Me olhe como uma tela preta, de um único pintor.
33 NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 47.
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Só eu posso fazer minha arte. Só eu posso me descrever.
Vocês não têm esse direito.
Não sou obrigado a ser o que vocês esperam! Somos muito mais!
Se você não se enquadra ao que esperam…
Você é um “Bluesman”.34
Tendo em mente as noções sartreana de homem e autenticidade, não é difícil relacionar tais
noções à noção de “bluesman” do poeta. Contudo, propõe-se por enquanto notar apenas o caráter
de nadificação, de recusa do espírito de seriedade presente na concepção proposta por Baco35. Essa
negação do Bluesman em sua divindade autêntica repõe Zaratustra em, pelo menos, dois
momentos: 1) quando Zaratustra alega só poder acreditar em um deus que soubesse dançar e que,
por outro lado, quando o profeta viu seu próprio diabo, achou-o sério, meticuloso, profundo e
solene: era o espírito de gravidade que faz todas as coisas caírem36 ou, em termos sartreanos, o seu
diabo era o próprio espírito de seriedade; 2) na ocasião em que Zaratustra se desvincula dos deus
externos a ele, e se assume um “sem-deus” perguntando onde poderia encontrar seus iguais em
condição, no que ele mesmo responde: “são meus iguais todos aqueles que dão a si mesmos sua
vontade e se desfazem de toda resignação”37. Ou, nas palavras de Sartre, os que projetam sua
subjetividade contra toda alienação.
O grande desafio para este homem sartreano é o de conservar sua autenticidade, ou seja
tornar-se um permanente sendo não-ser. Autenticidade deve ser entendida aqui tal como explicita
Fabio Caprio (2016, p. 224): uma liberdade que se toma ela mesma por fim, que coloca sua própria
condição existencial como valor e fonte de todo valor. Ao sugerir uma ética existencial38, Caprio diz
34 O projeto Blvsman tem também um filme homônimo que conta com este texto apresentado como descrição do curtametragem. (https://www.youtube.com/watch?v=-xFz8zZo-Dw - Acesso em 30/06/2020) 35 O nome artístico Baco Exu do Blues é repleto de referências míticas que possuem enormes cargas de significados potentes. Só para possibilitar uma ideia geral, o nome comporta duas divindades de culturas diferentes (Baco, o mesmo Dionísio grego, e Exu - um dos principais orixás das religiões de matrizes africanas, o orixá da comunicação entre o humano e o divino, a divindade das encruzilhadas e do corpo fértil) e referência à uma musicalidade que parte da busca autêntica de se recriar como subjetividade livre e potente, aquela dos negros norte-americanos diaspóricos e escravizados). 36 NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 41. 37 NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 163. 38 Aqui não se pretende defender a existência presente e completa desta ética, principalmente porque ao que algumas leituras indicam, Sartre não pretende fundar uma ética. Ele parece – em todos os seus textos – não prescrever um padrão mais ou menos normativo; seu intuito parece muito mais ser o de questionar e problematizar os valores e a moral, ou nas palavras da pesquisadora Eliana Sales Paiva, não se trata da questão da moral, mas sim da moral em questão. Em consonância a este indicativo está o próprio Sartre quando, em entrevista concedida em 1979 à R. Fornet-Betancourt, M. Casañas e A. Gomes o filósofo alega, assumindo-se anarquista, não ter escrevido senão obras de moral, e que, se fosse para definir sua moral, “seria uma moral da esperança, pois a esperança é um valor, uma vez que a realidade da sociedade anarquista não é para amanhã”. (Impulso, Piracicaba, 16(41): 75-77, 2005) Com isto é possível entender que Sartre ver sua moral (e não ética) como algo inexistente ainda, pois o valor da esperança remete
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que esta deve discernir e descrever a condição de possibilidade da conversão moral, assim como a
transformação do projeto como consequência desta conversão. A autenticidade só é possível nesta
conversão constante que, por sua vez, provoca uma mudança da relação ambígua da consciência
com o corpo, com o mundo, consigo mesma e com o outro. Trata-se, portanto, de uma
transformação complexa vivida na unidade de uma síntese, mas que deve ter como resultado a
recusa da alienação39.
Deste modo, o homem autêntico sartreano se apresenta como o desdobramento em
maturidade daquele homem só sugerido pelos escritos de juventude de modo que no homem só a
perspectiva a discussão se põe no nível do psicológico. Já no homem autêntico encontramos uma
análise no âmbito ontológico-político-antropológico. Ambos, contudo, parecem recriações daquele
homem profético de Zaratustra, aquele que o profeta chamou de “super-homem”, posto “que o
homem é algo que tem que ser superado, - que é uma ponte e não um fim: declarando-se bem-
aventurado por seu meio-dia e entardecer, como o caminho para novas auroras”.40
O processo de criação de si enquanto homem autêntico nunca se encerra, não acaba senão
com a finitude da vida. Começa com a tomada de consciência de si e segue na busca livre por
emancipação até alcançar a constante reinvenção de si e do mundo. Não por acaso, Zaratustra
começa suas profecias falando das três metamorfoses do espírito: o camelo, o leão e a criança. E
assim o profeta os descrevem:
1) O espírito, quando camelo, carrega o peso de sua subjetividade submissa e de sua servidão ao
mundo exterior. Ele tem consciência de si enquanto espírito que se ajoelha. “Todas essas coisas mais
que pesadas o espírito resistente toma sobre si: semelhante ao camelo que ruma carregado para o
deserto, assim ruma ele para seu deserto”41. E é em seu deserto que ele se põe em conflito interno,
pois sem ninguém para lhe direcionar com imposições, o único monstro que lhe ataca é o dragão
exatamente a um a um projeto que visa o que ainda não-é. Até que esta moral realmente suja no mundo, o que não será tão logo, o que o homem pode fazer é criar alternativas, fazer-se autenticamente em constante transformação tendo em vista um projeto sempre mutável por ter como horizonte um valor que só presentifica o não-ser. 39 CASTRO, 2016, p. 230. 40 NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 189. 41 NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 28.
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dos valores pré-concebidos, dos deveres morais, da deontologia universal a qual Sartre também
critica. É preciso o camelo se metamorfosear-se em leão;
2) o leão não consegue criar o novo, mas tão pouco sem ele o novo é possível, pois ele é condição
necessária para que o espírito se livre dos falsos deuses dos velhos monstros. O leão cria a liberdade,
que em Sartre é a própria condição existencial do homem. Em Zaratustra, o leão é necessário para
“criar a liberdade para si e um sagrado Não também ante o dever”. Em Sartre o leão é todo resistente
que não aceita submeter-se à violência e à opressão sob nenhuma circunstância. É aquele que diz
“não” mesmo quando parece dizer “sim”. Mas o leão não cria, o resistente não necessariamente é
autêntico, pois para tanto ele precisa criar o novo, revolucionar a situação. Contudo, quando
conseguir este feito, tal espírito já não será mais leão, pois terá se transformado na criança.
3) A criança é finalmente o estágio do homem autêntico sartreano, é o momento em que o espírito
se abre ao novo de sua própria criação, é a inocência na construção do novo mundo. É o
esquecimento dos valores que aprisionavam o espírito-camelo para dedicar-se a criação e recriação
constante de si, “um novo começo, um jogo, uma roda a girar por si mesma, um primeiro
movimento, um sagrado dizer-sim”42 ao não-ser que virá através dela mesma. O espírito-criança,
quando pergunta pelo seus iguais, não se contenta em contemplá-los: é preciso começar sempre um
novo jogo, fazer a ciranda girar, ser Bluesman com os seus na criação de novos homens-crianças e
novos mundos-sem-deuses-alheios. Ser criança, arriscamos dizer, é ser um homem só em
movimento criativo com outros homens sós. O homem-criança é aquele que sabe valorizar o
dionisíaco da tragédia existencial.
Por fim, é certo que Sartre não tem em Nietzsche seu maior horizonte teórico ou
metodológico. Mas parece igualmente certo que ter sido leitor atento e fervoroso dos escritos
nietzschiano fez do escritor-filósofo Sartre um leão sempre em busca de sua criança, um homem
comprometido com a sua autenticidade na medida mesma em que se comprometia com a
emancipação de todos, pois para ele parece não ser possível alcançar o super-homem sem que todos
os homens estejam existindo e se transformando em muito mais que camelos. Sua crítica aos valores
42 NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, pp. 28-29.
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burgueses parecem críticas denunciáveis apenas por aqueles que Nietzsche chamou de espíritos
livres, aos quais o filósofo do martelo convoca dizendo:
Necessitamos de uma crítica dos valores morais e, antes de tudo, deve-se discutir o valor desses valores e por isso é totalmente necessário conhecer as condições e os ambientes em que nasceram, em favor dos quais se desenvolveram e nos quais se deformaram (a moral como consequência, como sintoma, como máscara, hipocrisia, enfermidade, equívoco; mas também a moral como causa, remédio, estimulante, inibição, veneno), como certo conhecimento que nunca houve outro igual e nem poderá haver.43
A crítica desses valores morais apresenta-se a Sartre como a impossibilidade e, ao mesmo
tempo, a necessidade de uma moral; uma moral que é remédio na mesma medida que pode ser
veneno. Uma moral que tenha como fundamento/contexto verdades novas e livres das amarras
universais.
A intenção aqui nunca foi a de um tratado que demonstrasse uma presença coercitiva do
pensamento nietzschiano no pensamento sartreano, pelo contrário: este projeto desnecessário de
mostrar a aproximação do pensamento de ambos levantando a hipótese destas influências da
existência potente no existencialismo autêntico é na esperançosa tentativa de fortalecer uma visão
filosófica que vá para além da figura diabólica do espírito de gravidade que não se contenta em
dissecar conceitos e se esforça em fazê-los cair no limbo do abstracionismo universalizante e
rabugento. O intento aqui realizado foi o de ver Nietzsche e Sartre como crianças que se encontram
em algum lugar filosófico e começam um jogo dinâmico e potente de derrubar o castelo de cartas
dos valores que impedem do super-homem de aparecer como um novo existente.
O encontro desses dois autores é tão desnecessário como qualquer outro encontro entre
pessoas e ideias qualquer, posto que, como visto, a necessidade é um artifício. Mas é no encontro
que se o mito do trágico e do divino ganha corpo. O encontro é o instante por excelência do ritual de
transformação. Primeiro, o encontro consigo mesmo, depois o encontro com os seus iguais e a partir
daí a criação cotidiana de um novo mundo junto da conversão permanente de si; uma transformação
constante de tudo.
43 A genealogia da moral: texto integral. Trad. Antonio Carlos Braga. 3. ed. São Paulo: Escala, 2009, p. 20.
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Notas sobre a análise foucaultiana da parresia e sua potencialidade na criação de sujeitos éticos na atualidade, pp. 750-766
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NOTAS SOBRE A ANÁLISE
FOUCAULTIANA DA PARRESIA E SUA
POTENCIALIDADE NA CRIAÇÃO DE SUJEITOS
ÉTICOS NA ATUALIDADE1
Antônio Alex Pereira de Sousa2
RESUMO: Este artigo apresenta considerações em torno da análise foucaultiana da parresia, compreendida como modo veridicção (dizer a verdade) com efeitos éticos, estéticos e políticos na constituição dos sujeitos. Entendendo, também, a parresia como ação daquele que cuida do outro, refletir-se-á sobre a forma como essa prática, essencial no cuidado de si e dos outros, mostra-se na atualidade, como possibilidade para a formação de sujeitos éticos, no sentido do êthos pensado por filósofos da antiguidade greco-romana. Para tanto, leva-se em conta a ideia de mestre do cuidado,
1 O presente artigo é parte da pesquisa realizada no Mestrado Profissional em Filosofia da UFC intitulada As práticas de si no Ensino Médio: por um ensino de Filosofia para o cuidado de si, concluída em 2019. 2 Doutorando e mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Ceara. Graduado em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceara e especialização em Filosofia pela Universidade Estacio de Sa. Professor da Faculdade Ratio e da Secretaria de Educação do Ceara (SEDUC/CE). E-mail: [email protected].
Notas sobre a análise foucaultiana da parresia e sua potencialidade na criação de sujeitos éticos na atualidade, pp. 750-766
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de amizade e das diversas formas de veridicção trabalhadas por Michel Foucault em seus cursos no Collège de France. PALAVRAS-CHAVE: Ética; Parresia; Cuidado de si; Atualidade; Michel Foucault. ABSTRACT: This article presents notes about the analysis parameters of the analysis, understood as a true way (to tell the truth) with ethical, aesthetic and political effects in the constitution of the subjects. Understanding a parresia as an action that leads to another, reflecting on a way in which this practice, essential for the care of oneself and others, shows itself, today, as a possibility for training ethical practices, meaningless to you ancient philosophers Greco-Roman. To do so, make use of the idea of a master of care, friendship and various forms of verification demonstrated by Michel Foucault in his courses at the Collège de France. KEYWORDS: Ethics; Parresia; Take care of yourself; Present; Michel Foucault.
Michel Foucault produziu, nos seus últimos anos de vida, uma série de pesquisas que tinham
como objeto de análise os processos de subjetivação na antiguidade greco-romana. Essas análises
foram chamadas de fase ética de sua produção filosófica, na qual se debruçou sobre as formas como
os sujeitos se autoconstituíam como sujeitos éticos. Esse processo de formação de si mesmo como
sujeito ético recebeu o nome de cuidado de si (epimeleia heautou) 3.
O cuidado de si é objeto de análise central no curso A hermenêutica do sujeito (2014a), no qual
já está presente a questão da parresia. Contudo, é no curso O governo de si e dos outros (2011b) e n’A
coragem da verdade (2014b), que Foucault dá atenção diferenciada à questão do falar francamente.
Aqui, serão apresentadas algumas questões presentes nestes cursos que podem ajudar na
compreensão do conceito central de análise deste artigo, ou seja, a parresia, bem como outros
conceitos que se relacionam com ele e são importantes para o entendimento da ética, tal como
pensada por Foucault.
3 O termo epiméleia heautoû, que segundo Foucault significa ter cuidados para consigo, é utilizado, inicialmente, nos seus cursos ministrados no Collège de France. Contudo, na tradução dos últimos três cursos, o termo em grego foi escrito diferente. No curso de 1981/1982 se encontrava o termo parrhêsia e parrhesía e nos de 1982/1983 e 1983/1984 estava escrito parresía. Aqui, utiliza-se o termo parresía, mas mantém-se o termo utilizado pelos autores no caso de citação. Ainda sobre o termo, uma das traduções presentes no dicionário grego-francês de Bailly, Dictionnaire Grec Français (2000), traduz o termo Epimeleia (επιμέλεια) por surveillance, gouvernement e administration (p. 339) que, respectivamente, poderia de forma geral ser traduzido no português por fiscalização, governo e administração; já o termo Heautoû (εαυτοû) é traduzido por de soi-même, à soi-même e soi-même (p. 239) – entre outras -, que podem ser compreendidas, dentro de cada contexto, como si mesmo. Essa tradução se aproxima, semanticamente, da presente na obra Léxico do Novo Testamento – Grego/Português (2005), de Wilbur Gingrich e Frederick Danker, que traduz Epimeleia (επιμέλεια) por cuidado e atenção (p.82).
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O surgimento, na análise foucaultiana, do problema que deságua no trabalho sobre o
cuidado de si e, consequentemente, a parresia, segundo Candiotto (2009), encontra-se na
necessidade de Foucault em ampliar a compreensão da tese “onde ha poder ha resistência”,
presente na Vontade de saber (2011a, p. 105). Era necessário explicar, em outros termos, como a
resistência e o poder se relacionam.
Surgem, então, as análises sobre o governo que resultaram na problematização do conceito
de governamentalidade (FOUCAULT, 2008) e governo de si (2011b;2014b)4, todas tematizando a
relação entre subjetividade e verdade. Em outras palavras, o tema do cuidado de si, refere-se à
forma como conduzir a si mesmo, e tem suas raízes na problemática do poder, da resistência e da
liberdade presentes nas obras genealógicas, que não serão diretamente exploradas neste artigo5.
Dentre as interpretações da ideia de governo, dar-se-á atenção à ideia de governo de si
mesmo, necessariamente fomentado pelo papel que um Outro tem sobre o sujeito que cuidada de
si mesmo. Esse Outro, importante para a constituição ética e governo de si realizados pelos sujeitos,
é o mestre do cuidado. No processo de subjetivação, que se dá através de uma relação entre
subjetividade e verdade, o mestre é aquele que, por saber cuidar de si, incita o outro a dar a si mesmo
esse cuidado através de técnicas de si, como a escrita de si, a abstinência, o silêncio, a parresia, e
outros (FOUCAULT, 2014c). Além de sábio, o mestre aquele que, de forma quase necessária,
participa do processo de aprendizado do cuidado de si.
Neste processo de cuidado do mestre com aquele que está aprendendo a cuidar de si mesmo,
na maioria dos casos citados por Foucault, refere-se ao próprio aprendizado da Filosofia (Sócrates,
Platão, Epicuro, Sêneca, Diógenes de Sinope e outros), são utilizadas técnicas de si. Dentre essas
técnicas, a parresia é uma das principais, pois o mestre sabe aplicar a si mesmo, além de ensinar os
outros a aplicarem também em si. Foram a esses aspectos que Foucault deu atenção singular nos
últimos dois cursos ministrados no Collège de France.
Creio que temos aí (aquilo que, parece-me, devemos reter) o. que define a posição do mestre na epiméleia heautoú (o cuidado de si). Pois o cuidado de si é, com efeito, algo que, como veremos, tem sempre necessidade de passar pela relação com um outro que é o mestre[...].
4 O estudo realizado por Foucault sobre a Pastoral Cristã, presente no primeiro livro da História da sexualidade (2011a) e no curso de 1975 intitulado Os anormais (2010), inaugura a reflexão sobre o governo de si e dos outros, mas não explicitamente como tocará na questão nos anos seguintes. Contudo, o problema já está nestas análises, pois o pastor é aquele que conduz a conduta não só de um fiel, mas todos. Ele exerce o poder sobre as individualidades e coletividades. Foucault deslocará essas reflexões para pensar o poder disciplinar que se exerce sobre o corpo individual e sobre a biopolítica, que se dará sobre populações. A análise sobre o governo de si se dará de forma clara nos seus últimos cursos (2011b; 2014a; 2014b), dialogando de forma direta com as ideias de cuidado de si e parresia. 5 Para compreender a questão de forma comentada, ver o artigo de Cesar Candiotto intitulado FOUCAULT: ética e governo (2009).
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Não se pode cuidar de si sem passar pelo mestre, não há cuidado de si sem a presença de um mestre. Porém, o que define a posição do mestre é que ele cuida do cuidado que aquele que ele guia pode ter de si mesmo. Diferentemente do médico ou do pai de família, ele não cuida do corpo nem dos bens. Diferentemente do professor, ele não cuida de ensinar aptidões e capacidades a quem ele guia, não procura ensiná-lo a falar nem a prevalecer sobre os outros, etc. O mestre é aquele que cuida do cuidado que o sujeito tem de si mesmo e que, no amor que tem pelo seu discípulo, encontra a possibilidade de cuidar do cuidado que o discípulo tem de si próprio. (FOUCAULT, 2014a, p. 55)
Neste contexto, a parresia do mestre, entendida como fala franca e verdadeira, é percebida
por Foucault como parte de um contexto político (elemento cultural que é observado na democracia
grega), mas é também um elemento ético. Assim, a função do mestre em cuidar de si e ensinar o
outro a cuidar de si mesmo.
Todo esse trabalho de si sobre si mesmo, fomenta a constituição de um êthos6, um modo de
ser que esteja preparado para usar de forma refletida sua liberdade, não por saber todo
conhecimento, mas por ter a capacidade de lidar com diversas experiências no pensamento e que
surgem da exterioridade. O exercício refletido da liberdade de si, por um intermédio de uma prova
refletida da verdade, passará a constituir sua subjetividade e interferirá de forma decisiva no modo
como conduz a si mesmo. Assim, um sujeito ético constituiria a si de modo tal que tenha uma
maneira singular de ser, que será valorizada como única. O homem com um êthos, por problematizar
sua vida e sua liberdade, constitui um modo de ser e de resistir que se traduz nos seus atos
(FOUCAULT, 2012, p. 264), conduzindo a própria conduta de forma outra. Um modo de ser que
esteja preparado para usar de forma refletida sua liberdade, não por saber todo conhecimento, mas
ter a capacidade de lidar com diversas experiências no pensamento e que surgem da exterioridade.
O exercício refletido da liberdade de si, por um intermédio de uma prova refletida da verdade,
passará a constituir sua subjetividade e interferirá de forma decisiva no modo como conduz a si
mesmo. Um sujeito ético é aquele que relaciona suas ações com o seu pensamento, de forma
refletida e consciente, por saber provar a verdade.
Será, a partir dessas questões introdutórias, que se dará a reflexão sobre a parresia, como
analisada por Foucault, bem como seus possíveis efeitos na atualidade. Para a organização e
estrutura do texto, lança-se mão do artigo de Frédéric Gros, A parrhesia e Foucault (2004), no qual
pontua, na trilha aberta por Foucault n’A Coragem da verdade, que se pode compreender a fala
6 Êthos - nθός - εθος (Gingrich; Danker, 2005, p. 94) e εθος (YARZA, 19--, p. 441) - significa, em grego, costume, uso ou hábito. Essa interpretação condiz com a de Foucault, mas o filósofo francês, na leitura do cuidado de si, exige um trabalho longo de si sobre si mesmo para que se chegue a esse determinado hábito, possibilitado, necessariamente, pelo uso refletido da liberdade (práticas de liberdade).
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franca diferenciando-a da confissão cristã, da retórica e dos discursos do oráculo, da sabedoria e do
saber do técnico. Além disso, as concepções de parresia política e ética, que dialogam com os
regimes de fala citados, são questões importantes, no presente artigo, para a análise de Foucault do
regime de verdade parresiástico.
A parresia e os outros modos de veridicção
A parresia é um discurso de verdade que parte daquele que se propõe a cuidar de um outro,
como na fala de Sócrates para Alcebíades, Platão para o rei Dionísio, Diógenes para Alexandre
Magno, um amigo para o outro, um(a) professor(a) para um(a) discente e etc. Essa relação que tem
a parresia como elemento característico é efetivada por uma fala, proferida pelo mestre, que exige
uma relação necessária com o pensar, pois ela é um meio necessário para constituição de uma
subjetividade ética. Na confissão cristã - outra forma de veridicção, de dizer a verdade - é o discípulo
que profere o discurso de verdade, na qual Foucault observa que está permeada por uma forma
diferente da relação de poder e saber, mais próxima de um assujeitamento do que uma prática de
liberdade7.
A confissão, n’A Vontade de saber (2011a), é sinalada como estratégia de poder de uma nova
forma de governo que surge no seio da igreja católica, a pastoral cristã, a partir do Concílio de Trento
e da Contrarreforma8, tornando-se prática obrigatória anual em todos os países. Nela, o discurso
daquele que confessava era extraído pelo padre, que passava a olhar atenciosamente tudo o que
girava em torno da sua sexualidade. “Coloca-se um imperativo: não somente confessar os atos
contrários a lei, mas procurar fazer seu desejo, de todo o seu desejo, um discurso” (FOUCAULT,
2011a, p. 27).
A confissão se tornava, desse modo, um recurso singular no exercício de poder da Igreja
sobre seus fiéis, na qual a verdade poderia ser usada contra ele mesmo, para conduzir sua conduta,
para constituir sua subjetividade. Essa análise é feita, justamente, no tópico intitulado A incitação
aos discursos (FOUCAULT, 2011, p. 23-42) do primeiro volume da História da sexualidade, no qual
Foucault desconstrói a tese de que na modernidade, no plano moral, científico, jurídico, entre
outros, o sexo teria sido somente repreendido, sofrido repressão. Para Foucault, o poder disciplinar,
7 Enquanto a parresia foi objeto das últimas análises de Foucault, a confissão foi objeto de obras e curso da década de 70 do século XX, nos quais analisava o regime de verdade expresso nos discursos científicos e apresenta, objetivamente, sua analítica do poder. 8 A Contrarreforma foi a resposta da igreja católica à Reforma Protestante iniciada por Martin Lutero (1483-1546), e o Concílio de Trento (1545-1563) o encontro convocado pela igreja para modificar regras dos seus dogmas.
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neste momento histórico, edifica-se utilizando os discursos científicos elaborados com informações
extraídas dos indivíduos, como fora realizado na confissão, muito mais produtivos do que
repressivos. Assim, estruturavam-se as novas instituições de saber-poder modernas que vigiavam e
puniam9, como o hospital psiquiátrico, a prisão, o quartel e a escola. Na confissão, havia uma forma
de exercício de poder que se efetivava sobre os indivíduos, na qual as verdades extraídas dos seus
discursos auxiliavam na condução de suas próprias condutas.
Ora, a parresia, como analisada por Foucault, era o uso da fala no sentido inverso ao da
confissão e da lógica disciplinar moderna, que tinha a sexualidade como importante ponto de coleta
de saber e de investimento de poder, que lançava mão dessas técnicas de veridicção cristã. Na fala
franca do mestre parresiasta, o objetivo jamais era disciplinar no sentido de assujeitamento, mas
fomentar no discípulo atitudes que o levassem a constituir uma subjetividade livre, com domínio
sobre si mesmo. Exceção à parresia política, que se analisa neste texto, que está amparada em um
direito dado ao cidadão ateniense, as outras formas de dizer a verdade entendidas como parresia
visavam ao fomento de práticas de liberdade e constituição de um êthos.
A retórica é a arte de bem falar, de construir um discurso no intuito de fazer o outro seguir
uma verdade, que não é ética, já que o retórico não age necessariamente como pensa, uma
característica essencial da parresia. Diferente da confissão cristã, que surgiu na idade média e teve
uma nova constituição a partir da modernidade10, o aparecimento da retórica se deu, segundo
Foucault, paralelo à parresia11, como observado em textos antigos que tocam no tema e mostram a
9 Sobre a vigilância e a punição como instrumentos para o exercício do poder disciplinar, ver a obra Vigiar e Punir (2011d) de Michel Foucault. 10 Não existe, nas análises de Foucault, uma referência sobre a ideia de confissão na antiguidade greco-romana, como quando analisa a modernidade. O falar a verdade estava mais relacionado à direção de consciência, a um exame das almas ou a práticas penitenciais que se relacionavam com questão espiritual. No curso Do governo dos vivos (2014d), por exemplo, Foucault apresenta uma história do exame das almas e da confissão no cristianismo primitivo entendida como um ritual. Na idade medieval, a confissão passa a ter uma relação diferenciada com a penitência, vista por exemplo, na confissão tarifária, na qual um erro era calculado para que se tivesse uma penitência correspondente. Foucault apresenta essa análise no curso A verdade e as formas jurídicas (2003). Na modernidade, ela sofre modificações que passam a relacionar com a nova forma de poder que surge na modernidade, o poder disciplinar. Sobre a confissão na modernidade, conferir o primeiro volume de História da sexualidade – A vontade Saber e o curso ministrado no Collège de France em 1974/1975, Os anormais (2011b), especialmente as aulas de 19 e 25 fevereiro e 5 de março de 1975. 11 Ao afirmar que a parresia era, inicialmente, entendida como um direito de fala do cidadão e, posteriormente, uma característica singular da filosofia, Foucault entende que ela surge no mesmo contexto da retórica, já que ambas emergem no contexto do surgimento da democracia. Analisando a tragédia de Eurípedes chamada Ion - afirma ser ela uma obra representante do desejo ateniense de mostrar as raízes do seu povo -, em que é contada a história de um jovem que, sem saber que era, só queria ser um ateniense se tivesse o direito da fala (parresia). Foucault mostra, assim, como a parresia está no âmago do surgimento da política grega e, consequentemente, do surgimento da retórica, elemento importante para a compreensão da democracia grega. No decorrer desse texto será aprofundada a questão da parresia política e ética.
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presença da fala franca12, ainda que não estivesse dentro do contexto filosófico como o do presente
em Sócrates.
Se o parresiasta exigia do discípulo que sua ação deveria estar em acordo com o próprio
pensar, o mesmo não ocorria com o retórico. “O bom retórico, o bom reitor é o homem que pode
perfeitamente e é capaz de dizer algo totalmente diferente do que sabe, totalmente diferente do
que crê, totalmente diferente do que pensa” (2011b, p. 14). Desse modo, Foucault mostra que a
retórica era um regime de fala e verdade que, dificilmente, possibilitava ao sujeito a constituição de
um êthos, já que ele não cuidava de si e não se preocupava necessariamente com os outros. A
retórica é, assim, um regime de fala que não dialoga, necessariamente, com a verdade que constitui
um êthos. A confissão cristã, ao contrário, faz-se necessariamente por um discurso de verdade, que
não é o do mestre, mas do seminarista, fiel, entre outros.
Ainda n’A coragem da verdade (2014b), Foucault apresenta quatro modos de veridicção,
diferentes da confissão e da retórica, presentes na antiguidade greco-romano e nos diálogos
platônicos por ele analisados13. Os quatro modos de veridicção – o oráculo, o sábio, o técnico e a
própria parresia – proporcionam-nos compreender mais detalhadamente a parresia.
O oráculo é um intermediário entre os homens e os deuses, a verdade que diz é, justamente,
a dos deuses, não a sua. Junto a isso, sua fala é cercada de obscuridade e enigmas sobre o futuro dos
homens, devendo ser decifrada pelos mortais: “Ela não diz a verdade nua e crua, e em sua pura e
simples transparência” (2011b, p. 16). O parresiasta, ao contrário, diz aquilo que ele mesmo pensa,
de forma clara e franca sobre uma questão do presente, dando ao seu discípulo a tarefa de olhar
para si mesmo de modo outro.
O parresiasta não deixa nada para interpretar. Claro, ele deixa algo para fazer: deixa àquele a quem ele se dirige a rude tarefa de ter a coragem de aceitar essa verdade, de reconhecê-la e dela fazer um princípio de conduta. Deixa essa tarefa moral, mas, diferente do profeta, não deixa o difícil dever de interpretar (2014b, p. 16).
O sábio, que profere outro modo de veridicção presente na antiguidade, difere do oráculo
por uma característica que o aproxima do parresiasta: ele só fala o que pensa. É a relação
ação/pensamento tão fundamental para a constituição de uma subjetividade ética. Entretanto, ele
12 No curso O governo de si e dos outros (2011c), Foucault se refere a textos, não necessariamente filosóficos, que mostram essa presença. Ele cita, por exemplo, Eurípedes (Ion), Tucídides e Isócrates (Sobre a paz). 13 A análise dos quatro modos de veridicção aqui citados encontra-se na aula de 1 de fevereiro de 1984 (FOUCAULT, 2014b).
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é silencioso14 e profere seu discurso de verdade somente em casos de urgência. Ora, o parresiasta
fala seu discurso em circunstâncias diversas, e Foucault cita, n’A Coragem da Verdade (2014b),
Sócrates e Diógenes - o cínico - como exemplos singulares de filósofos parresiastas. Neste contexto,
o sábio profere seu discurso em situações específicas, mas o parresiasta não. “Veremos
precisamente com Sócrates, que lembra isso com frequência na apologia: ele recebeu de deus essa
função de interpelar os homens, de pegá-los pela manga, de lhes fazer perguntas” (2011b, p. 18)15.
Se o objetivo do parresiasta era fazer seu ouvinte ter cuidados consigo mesmo, o do sábio
era, diferentemente, dizer o que as coisas são. Enquanto este mostra o ser do mundo e das coisas -
essencial e imutável -, aquele mostra como está a situação do indivíduo no momento do cuidado,
incitando-o a se modificar. “O parresiasta não revela a seu interlocutor o que é. Ele desvela ou o ajuda
a reconhecer o que ele, interlocutor, é” (FOUCAULT, 2011b, p. 19).
O último dos regimes de fala, que Foucault diferencia da parresia, é o do técnico, que
necessitava, para a sua prática do dizer a verdade, de um conhecimento do tipo teórico e prático
(tékhne)16 e de um exercício (áskesis)17. Esse regime se localiza dentro de uma responsabilidade
social ligada à tradição, pois o técnico é um professor que transmite um saber aos outros de sua
comunidade, o que faz sua fala não depender somente de sua vontade, já que é um dever repassá-
lo. Contudo, diferente do parresiasta, ele não corre nenhum risco ao executar sua fala, pois, como
diz Foucault, “ninguém precisa ser corajoso para ensinar”. A parresia, ao contrário, leva aquele que
profere seu discurso ao risco “da hostilidade, da guerra, do ódio e da morte” (2011b, p. 24).
A condição de possibilidade para a constituição de um êthos na antiguidade greco-romana
era, assim, o cuidado de si que tinha na parresia um elemento primordial. Pensa-se, desse modo, que
Foucault compreende a coragem de dizer a verdade do parresiasta como possibilidade de princípio
ético para o presente. Nem as práticas e técnicas da confissão, da profecia, do sábio ou técnico
14 Foucault cita Heráclito (aproximadamente 540 a.C. - 470 a.C.) como exemplo de sábio, assim como é apresentado por Diógenes Laércio (180 - 240) na sua obra Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres (1987). 15 A Apologia citada por Foucault se refere ao diálogo de Platão A apologia de Sócrates (1987). 16 Tékhne significa técnica, habilidade prática conhecida. Essa é a mesma compreensão de Bailly, quando diz que Tékhne (τέχνη) é art manuel, profession, habilité manuelle, produit d’un art (2000, p. 866), e Gingrich e Danker (2005, p. 206), quando a coloca como “habilidade, ofício [...]- [técnica, tecno-, prefixo de varias palavras, e.g. tecnologia]”. Essas definições dialogam com a de Foucault, ja que o técnico, aquele que não é um parresiasta, é, justamente, alguém com uma técnica, uma habilidade de produção. 17 Analisando dicionários gregos, encontra-se no Byzantius (1856) o termo aσkhσiσ (p. 66), traduzido por vida ascética. Não se encontra em outros dicionários vocábulos que representassem o termo áskesis (ασκησεις), para reforçar a ideia apresentada por Foucault de áskesis (ascese) como um exercício de si sobre si no intuito de constituir a própria subjetividade. Contudo, a presença do termo no dicionário citado, que apresenta os significados dos vocábulos no contexto bizantino, dialoga com o que Foucault apresenta, já que, segundo ele, o termo áskesis, com o cristianismo, passa a sofrer uma mudança, significando abstinência dos prazeres mundanos. Importante pontuar que Foucault entende que esse termo não está circunscrito somente no contexto do técnico, como se está pontuando, já que é, também, uma atividade essencial na prática do cuidado, mas em outros termos.
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seriam suficientes, ou são modelos, para se tornar um elemento fundamental no processo de
subjetivação ético, como presente na parresia.
A parresia política e parresia filosófica
O estudo da parresia, apontado no curso A hermenêutica do sujeito (1981-1982) e
aprofundado no Governo de si e dos outros (1982-1983) e n’A coragem da verdade (1983-1984), todos
ministrados no Collège de France, não se limita a análise que a diferencia da confissão, da retórica,
da verdade do oráculo, do sábio e do técnico, como se acaba de apresentar. Para Foucault, o estudo
desse conceito também passa por uma reflexão sobre seu papel político e ético na antiguidade
greco-romana, estudo esse que pode ser pensado em perspectiva histórica: “[...] o momento
político, que estuda o papel da parrhesia na democracia grega [...]; o momento socrático de uma
parrhesia qualificada como ‘ética’ e oposta a precedente [...]; a parrhesia cínica [...]; e, por fim, o
momento helenístico” (GROS, 2004, p. 158-159).
O contexto histórico de surgimento da parresia política é a democracia grega, especialmente
em Atenas, na qual o falar franco era compreendido como um direito e um privilégio que só alguns,
os cidadãos atenienses18, poderiam ter. Esse direito é questionado por diversos personagens gregos,
entre eles Platão, pois seria uma qualidade dada às pessoas que nem sempre terão a competência
necessária para utilizá-la, colocando em risco a própria cidade e determinados indivíduos: a fala
franca, motivo de orgulho e de diferenciação de um ateniense em relação a outros povos, passava a
ser compreendida, no campo filosófico, como um risco.
Para o coletivo, a parresia política era um risco por possibilitar a todos, até mesmo indivíduos
sem qualificação para ocupar cargos políticos, falar sua verdade, justamente aqueles que
conseguiam seduzir os outros através da fala. Essas pessoas seriam as que geralmente têm o poder
e os recursos do Estado (FOUCAULT, 2011a, p. 34). Desse modo, a parresia política é perigosa para
aqueles que a utilizavam de modo positivo, sem o intuito de ter benefícios particulares, mas que
buscavam o bem do coletivo, como Sócrates. Essa foi, justamente, a causa do que Foucault chamou
de crise da parresia política, já que o sujeito com responsabilidades políticas deveria ter uma
diferenciação ética. O filósofo apresenta, neste contexto, as críticas feitas por Platão - reversão
18 No curso Governo de si e dos outros (2011c) a tragédia Íon de Eurípedes é minuciosamente analisada. Nela, Foucault observa os traços de uma sociedade que tinha no direito à parresia política uma característica central da democracia ateniense. A análise do Íon encontra-se nas aulas de 19 e 26 de janeiro e 2 de fevereiro de 1983.
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platônica19 - e por Aristóteles - hesitação Aristotélica20 -, que refletem sobre quem deveria ser o
político (2011a, p. 42-44).
Essa diferenciação ética, condição de possibilidade para um outro falar francamente,
diferente daquele presente na parresia política, teria como referência o personagem de Sócrates, ao
qual Foucault dá atenção especial no curso de 1983-1984. Ora, Sócrates, no seu julgamento em
Atenas, profere um discurso parresiástico diferente daquele que possibilitava enganar os outros
cidadãos. A parresia socrática, diferente da que caracterizava um direito do cidadão, passava a se
articular com a incitação a cuidar de si mesmo e fomento à constituição de uma subjetividade ética
naquele que o escutava. Sócrates expressava, assim, uma parresia como meio para o cuidado dos
outros, visando a modificação da subjetividade do seu ouvinte, não um treinamento (retórica) para
que usasse a fala objetivando ludibriar os outros através, principalmente, da bajulação.
A parresia socrática, contudo, mesmo que diferente daquele direito do cidadão grego, estava
ligada à política, já que o cuidado de si e a incitação ao cuidado do outro (que tinha a parresia
filosófica representada por Sócrates como instrumento essencial) era destinado ao público que tinha
um papel e um estatuto determinado na cidade: jovens que iriam participar da vida política, cuidar
dos outros, como Alcebíades. Essa característica da parresia filosófica é diferente da que Foucault
chega ao analisar a parresia e o cuidado de si no período helenístico, pois naquela (socrático-
platônica) as características do cuidado de si são de natureza política (jovens que se dedicarão à
política), pedagógica (correção de uma deficiência formativa que se verifica na adolescência) e
erótica (relação mestre e discípulo)21, enquanto na parresia helenístico-romana a incitação ao
cuidado estava direcionada a todos (não só aos que ingressarão na vida política) e durante toda a
vida (o foco é a velhice, e não a juventude). Houve uma mudança, assim, da parresia socrática,
relacionada à formação de jovens, visando formá-los eticamente para agir na vida política, para uma
19 Retomando uma leitura do livro A república de Platão, Foucault levanta a tese do filósofo grego de que ou há a democracia ou o discurso verdadeiro da parresia. Os dois juntos não podem existir. Assim, conclui ele sobre a questão: após a crítica da parresia democrática, que mostrava que não pode haver parresia no sentido do dizer-a-verdade corajoso na democracia, a reversão platônica mostra, portanto, que, para que um governo seja bom, para que uma politeia seja boa, eles tem de se basear num discurso verdadeiro, que banirá democratas e demagogos (2014, p. 42). 20 Como Platão, Foucault desconfia da convivência entre democracia e o diferencial ético presente na parresia. Além disso, ele mostra como Aristóteles hesita em defender de forma objetiva a democracia. Contudo, pontua que o estagirita problematiza a oposição entre os numerosos /menos numerosos e os mais pobres e mais ricos; problematiza se um bom cidadão é, necessariamente, um homem virtuoso; questiona se o melhor governo é aquele constituído de um, poucos ou todos como alguém com o poder; considera o ostracismo ateniense, que expulsa alguém que é diferente por ser melhor do que os outros (2014, p. 43-48). 21 A relação erótica que está presente no cuidado de si socrático, expresso na sua relação com Alcebíades (PLATÃO, 1975), é diferente daquela criticada pelo próprio Sócrates, já aqui apresentada, em relação ao paidagogos. Desse modo, percebesse que Sócrates critica a relação amorosa entre o mestre e o indivíduo que vise, unicamente, o interesse sexual do mestre.
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parresia helenístico-romana, que também buscava a constituição de uma ética, mas não
diretamente ligada à política (MUCHAIU, 2011 p.74-76).
A Grécia antiga, especialmente o contexto da democracia ateniense, para Foucault, foi o
local de nascimento dessas duas formas de parresia, aquela que é um direito político de todo cidadão
e a outra que, na figura de Sócrates, poderia ser chamada de parresia política, que é ética. A incitação
ao cuidado de si expandisse e toma novas proporções no período helenístico, mas também é um
elemento essencial na constituição do êthos dos sujeitos através do cuidado de si e dos outros. Se a
parresia presente em Sócrates pode ser chamada de política, a helenística pode é nomeada por
Foucault como filosófica22.
Para Foucault, as características do cuidado de si nos períodos acima citados, socrático-
platônico e helenístico, devem ser pensadas relacionadas à ideia de amizade (philía)23 vivenciada
para além de uma relação amorosa, muito comum no processo pedagógico presente na Grécia
antiga24 (2014d, p. 151-263). Mesmo que haja uma relação entre amigos, como a pontuada no
contexto socrático-platônico da parresia, e chamada pelo filósofo de amor (éros), a relação entre
duas pessoas, pautada no exercício da liberdade e representada no ato da fala franca, seria
justamente a amizade (philía)25.
Analisando o livro III do texto das Leis de Platão, Foucault apresenta a diferença que Ciro, o
monarca persa, tinha na forma de se relacionar com aqueles que podiam dizer uma verdade que o
levasse a ter conhecimento e domínio sobre si mesmo, incentivando que seus exércitos fossem
constituídos “de soldados [...] amigos dos chefes e, sendo amigo, aceitariam se expor ao perigo sob
as suas ordens” (FOUCAULT, 2011b, p. 185). Consequentemente, essa relação de amizade,
expandida para outras instâncias da sociedade, possibilitava àqueles sujeitos, que exercem essa
22 A socrática não deixa ser filosófica. Essa diferenciação funciona, na leitura de Foucault, como meio de apresentar os modos de existência da parresia na antiguidade greco-romana. 23 Philía (φιλία) significa, segundo Gingrich, Danker (2005, p. 218) amizade ou amor, a mesmo entendimento de Bailly (2000, p. 931), quando afirma que ela significa amitié, vive affection e amour. 24 Na primeira parte da aula de 13 de janeiro d’A hermenêutica do sujeito (2014a), Foucault analisa os limites da pedagogia ateniense em torno da questão escolar e erótica. 25 “Se existe uma coisa que me interessa, hoje, é o problema da amizade. No decorrer dos séculos que vieram após a Antiguidade, a amizade constitui uma relação social muito importante: uma relação social no interior da qual os indivíduos dispunham de certa liberdade, de certo tipo de escolha (limitada, é claro), e eu lhe permitia viver relações afetivas muito intensas.” (FOUCAULT, 2014e, p. 260). Para mais análises sobre a amizade em Foucault, ler os comentários de Sandra Fernandes (2011) e Francisco Ortega (2011).
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liberdade (Eleuthería) da fala, fomentar e fortalecer um sentimento de colaboração (Koinomia)
social26.
Essa concepção, presente na leitura foucaultiana sobre a autocracia do governo de Ciro,
difere-se da democrática, pois ao possibilitar que todas as pessoas tenham a liberdade da fala, abre-
se espaço para um uso negativo da parresia, no qual o sujeito que fala a verdade é considerado
perigoso - correndo o risco de ser morto, como Sócrates, ou não ser escutado (FOUCAULT, 2011b,
p. 179). É preciso, para que haja uma amizade na instância política, social ou individual - como se
apresenta no contexto do helenismo -, um acordo, um pacto entre aquele que profere a verdade
franca e aquele que a escuta. Foucault (2011) chama essa relação, amparada na amizade, de pacto
parresiástico27.
Esse pacto estabelecido entre o parresiasta e seu interlocutor esclarece o que, no início da
Coragem da verdade (2014a), Foucault pontua sobre o discurso parresiástico e a coragem como
elemento essencial que o constitui, vista no risco que o parresiasta corre de perder a própria vida por
falar francamente28. Por isso, é preciso que na parresia este pacto exista, podendo ser entre o mestre
e um indivíduo ou uma coletividade, como no caso da democracia grega29. A relação de amizade
que existe entre dois sujeitos se sustentaria, justamente, neste pacto, algo que leva os partícipes ao
cuidado de si que os fazem correr risco de vida30 (2011a, p. 12).
Se amizade possibilita compreender a relação entre os sujeitos do cuidado, Foucault,
problematizando-a em uma perspectiva história, afirma que, no contexto socrático-platônico, o
cuidado de si e a parresia se direcionavam à jovens que adentrariam a política; já no período de ouro
do cuidado essa relação, que se limitava a algumas pessoas, foi intensificada e expandida para
diversas relações sociais. Como diz Muchail (2011 p. 76), referindo-se a amizade neste novo período:
Cuidar-se não se circunscreve ao vínculo dual e amoroso entre mestre e discípulo, expande-se aos círculos de amizade (e sabemos quanto o tema da amizade é importante nas filosofias helenísticas), de parentesco, de profissão, quer em formas individuais (cartas,
26 Para Bailly (2000), eleutheria (ελευθερία) pode ser traduzido por liberte (p. 280), e koinomia (κοινωνία), por échange de relations (p. 501). As duas traduções se aproximam do sentido dado por Foucault. 27 Na primeira parte da aula de 1 de fevereiro de 1984 (2014b), Foucault analisa a ideia de paco parresiástico. 28 Sobre esse risco, Foucault analisa, na aula de 12 de janeiro de do curso O governo de si e dos outros (2011c), o exemplo de Platão na Sicília diante de Dionísio. 29 Foucault cita alguns casos, como o de Péricles, no qual o pai da democracia profere um discurso de verdade para toda a assembleia (2011b, p. 173-174). 30 Na obra Amizade e estética da existência em Michel Foucault (2011), Francisco Ortega defende a tese que Foucault tinha como objetivo central em suas últimas pesquisas a criação de um novo conceito de amizade, baseado em um uso outro da sexualidade como ferramenta para fomentá-lo.
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aconselhamentos, confidencias), quer institucionalizas e coletivas (escolas, comunidades, etc.).
Nestas pesquisas, então, Foucault analisa as mudanças da parresia no contexto socrático-
platônico para o helenístico, dando atenção às características do discurso dos filósofos epicuristas
e, especialmente, dos estoicos. Posteriormente, Foucault passou a priorizar a análise sobre o
pensamento cínico, como afirma Gros (2004, p. 165):
A análise da parrhesia cínica terá levado Foucault ainda mais longe, quase que o oposto do cuidado de si estoico que o ocupará durante o ano de 1982 no Collège de France. O cuidado de si permitirá tramar a vida e a verdade em uma harmonia ideal. A ética estoica era, com efeito, uma ética da correspondência regrada entre ação e discurso, com a vida pondo a verdade à prova: trata-se de saber se essa existência, que sabemos desbaratada pelas circunstâncias, pode se ver ordenada, regulada por princípios verdadeiros. É uma ética da ordem e da disciplina. A ética cínica da parrhesia é, ao contrário, a verdade pondo a vida à prova: trata-se de ver até que ponto as verdades suportam ser vividas e de fazer da existência o ponto de manifestação intolerável da verdade.
Mesmo que a leitura foucaultiana da parresia no epicurismo, no estoicismo e no cinismo
estejam no contexto do que ele chamou de fase da ética da parresia (época de ouro), os jogos
estabelecidos entre mestre e discípulo, estratégia importante para o cuidado de si, especialmente
os jogos parresiástico, não eram os mesmos. Sobre a questão, Foucault dedica atenção diferenciada
sobre esses jogos no contexto da parresia cínica, sendo seu último curso, em boa parte, dedicado à
sua análise31.
Jogo de verdade e jogo parresiástico
A parresia, como aqui se pontua, é uma ferramenta utilizada por aquele que cuida de si
mesmo e, por disso saber, aplica os cuidados a alguém. Contudo, a fala franca não é simplesmente
um ato ingênuo. Ela necessita, para ser compreendida em sua inteireza, ser analisada em termos
estratégicos. Surge, desse modo, a ideia de jogo parresiástico, uma forma de entender a outra ideia
de jogos de verdade.
Um jogo de verdade se realiza através de estratégias, táticas, exercícios, regras, objetivos
etc. No contexto do cuidado de si, é uma forma de se realizar o cuidado do mestre, no intuito de
31 A aula de 29 de fevereiro e todo o mês de março do curso A coragem da verdade (2014b) são dedicados à análise de Foucault da parresia cínica. Para aprofundamento, ver o livro Michel Foucault e a verdade cínica (2013) de Ernani Chaves, no qual apresenta uma leitura singular do cinismo para Foucault.
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fazer seu interlocutor, o objeto do cuidado, provar uma verdade. Essa prova de verdade se daria a
partir do processo de reflexão, criação, aceitação, negação ou modificação de uma verdade pelo
sujeito cuidado. No jogo de verdade que proporciona uma prova de si mesmo, o cuidado de si se
apresenta como meio para o cuidado, bem como a modificação da subjetividade do Outro.
Contudo, esse jogo não se realiza somente através do diálogo entre o mestre e o discípulo,
como se vê no caso de Diógenes de Sínope e Alexandre Magno. Qualquer sujeito, lembrando
sozinho do seu dia, escrevendo o que passa com seus desejos, anotando falas e trechos importante
para si, entre outros, pode estar realizando uma prova de verdade, sem necessitar, no momento da
sua realização, estar com um outro. Foucault, porém, entende que mesmo essas formas de
autocuidado precisam de um mestre para ensinar como pensá-las e tomá-las como instrumento
para a construção de si mesmo. O jogo de verdade poderia, então, dar-se de formas diversas, sendo
o jogo parresiástico um dos principais, na qual os filósofos cínicos praticavam mais rigorosamente.
Para os cínicos, a verdadeira vida32 deveria ser uma vida escandalizada, imagem apresentada
por Foucault ao falar de Diógenes de Sínope e outros cínicos. No mesmo caminho que Sócrates,
esses filósofos usavam da fala e de uma maneira de viver diferente dos outros. Contudo, os cínicos
elevaram o nível de desprendimento com a vida material e usavam a fala assumindo riscos
diferenciadamente. Ora, Sócrates evitou o discurso político para evitar a morte e não ter encerrada
sua tarefa de incitar os outros a cuidar de si mesmo; os cínicos a vivenciam de um modo outro, como
afirma Wellausen (2011, p. 99) em seu livro sobre a parresia em Foucault, dando como exemplo a
ação de Diógenes.
Apesar da superioridade de Diógenes em relação ao Rei, Alexandre aceita entrar no jogo parresiástico proposto por Diógenes. O jogo cínico parrhésiasta que se inicia é, em alguns aspectos, igual ao diálogo socrático na medida em que há uma troca de perguntas e respostas; há, entretanto, no mínimo duas diferenças significativas: é Alexandre quem tende a fazer pergunta e Diógenes, o filósofo, a responder (...); segundo, enquanto Sócrates joga com a ignorância do seu interlocutor, Diógenes quer ferir o orgulho (...). O jogo cínico é levado ao limite do contrato parresiástico – ou Alexandre desiste ou parte para a agressão. Quando o diálogo chega nesse ponto, Diógenes tem duas formas de trazer Alexandre de volta ao jogo. Uma delas é o desafio: Diógenes diz “bem, certo, sei que você esta ofendido e é livre. Você tem tanto a habilidade quanto o amparo legal para me matar. Mas você será corajoso o suficiente para ouvir a verdade de mim, ou é tão covarde que ira me matar?” Estabelece-se um novo jogo parresiastico diante da questão: “Bem, você pode me matar,
32 Foucault analisa o tema da verdadeira vida cínica nas aulas de 14 e 21 de março d’A coragem da verdade, pontuando os aspectos da vida de impudor, de despojamento, de animalidade e de soberania.
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mas se assim o fizer ninguém mais lhe dira a verdade”. Esse destemor de Diógenes impressiona Alexandre que aceita continuar no jogo da verdade.33
Além de expor o destemor do filósofo cínico, no trecho está presente uma comparação do
modo de agir de Diógenes ao de Sócrates e mostra como a coragem de dizer a verdade ao
imperador, num risco claro de perder a própria vida, coloca Alexandre dentro de um jogo
parresiástico. Os efeitos claros dessa prática parresiástica é a comprovação de uma superioridade do
filósofo no que se refere ao domínio de si mesmo, o que faz ser um mestre, que ajuda o imperador a
conhecer a si mesmo. Com o exemplo de Diógenes, Foucault vê na filosofia cínica um exemplo da
potencialização da prática da parresia.
Considerações finais
A parresia difere de outras formas de dizer a verdade, além de ter uma longa história, que vai
de uma característica de diferenciação do cidadão grego à incitação geral dos cuidados consigo
mesmo. Em Sócrates, mesmo fomentando um diferencial ético naquele a quem tinha cuidados,
estava ligada ao campo político, já que os jovens cidadãos eram o objeto do cuidado. No helenismo,
o interesse estava na constituição de uma subjetividade ética, não relacionada, necessariamente, ao
campo político, já que todos deveriam cuidar de si mesmo.
Como instrumento essencial para ter domínio sobre si mesmo e cuidar dos outros, a parresia
é compreendida por Foucault, em nosso entender34, como uma possibilidade de atitude para a
constituição de uma relação outra entre sujeito e verdade no presente. Se hoje a subjetividade tem
nos discursos científicos a base para sua constituição, a fala franca entre sujeitos que estabelecem
um pacto, a amizade, pode ser o fio condutor de um novo processo de subjetivação.
Desse modo, não seria a confissão, nos moldes cristãos, nem o discurso da profecia, da
sabedoria, da técnica e da retórica grega que estimulariam o sujeito a constituir uma subjetividade
ética. A parresia e, consequentemente, todo o jogo que se estabelece em torno dela, eram os
mecanismos para que o mestre do cuidado pudesse fomentar nos discípulos uma relação outra de si
33 Wellausen não coloca a referência do citado episódio entre Alexandre Magno e Diógenes. Entretanto, no curso A coragem da verdade (2014a), Foucault apresenta alguns pontos desse episódio quando analisa a questão do filósofo como um rei, mas não com os detalhes apresentados por Wellausen. Para mais sobre o encontro entre Alexandre e Diógenes no curso de 1984, ver a aula de 21 de março. 34 Celso Kraemer (2018), em seu artigo Discurso e técnica da vida: a questão metodológica em Subjetividade e verdade. Haveria um Foucault da ética?, questiona a existência da fase ética de Foucault, situando as análises de Foucault dentro de uma trabalho que busca compreender a relação entre subjetividade e verdade, mas não uma positivação do cuidado de si como proposta ética.
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consigo mesmo, através de uma verdade colocada à prova, refletida e exercitada pelo próprio
sujeito.
Um sujeito constituído eticamente (êthos) teria, na leitura foucaultiana, meios mais eficazes
de, primeiramente, conduzir suas condutas de uma forma efetivamente livre, mesmo que permeado
por relações de poder de seu tempo, como as permeadas pela disciplina, a biopolítica e a
governamentalidade neoliberal. Ter domínio sobre as próprias condutas se mostra, nestes termos,
ponto importante para a vida política, pois uma subjetividade resistente pode também ser
capturada. Ao contrário, o cuidado de si fomenta uma resistência atenta a isso.
É notório que o cuidado de si tem seus efeitos no plano político, pois a base para essa ação
consciente é a ética. Amparadas na ausência de Foucault em criar uma teoria política, dizendo o que
e como fazer, muitas críticas se dirigem às suas análises, principalmente em torno do cuidado de si,
que tem na parresia um importante instrumento. Essas críticas se dirigem à tese de que só o cuidado
de si não basta, pois se limitaria a uma relação entre duas pessoas e não atingiria efeitos políticos,
ou até mesmo que, na atualidade, o cuidado de si teria sido capturado pela lógica neoliberal.
Pensar nesses termos é não compreender os efeitos que um trabalho na constituição de
sujeitos pode ter em uma sociedade. Imagine, hoje, que efeitos teria na vida política se a educação
buscasse cuidar dos estudantes na perspectiva da incitação à condução das próprias condutas de
forma efetivamente livre e consciente? Se na antiguidade greco-romana só quem desejasse
estudaria, hoje toda a sociedade passa pela instituição escola que, para além de disciplinar, pode
dessubjetivar e incitar a formação de um êthos resistente. Se a imaginação política hoje nos falha,
vislumbramos uma possibilidade de fortalecimento das lutas atuais a partir da leitura de uma ética
foucaultiana presente na perspectiva do cuidado de si. Pensar a ética não limita pensar a política, e
em Foucault não se pode pensar uma sem a outra. Deve-se criar modos outros de vida e de
resistência diante das relações de poder e a leitura de Foucault sobre cuidado de si e a parresia são
meios potentes para se olhar o horizonte de outro modo, no qual os sujeitos governam a si mesmo
no meio político da convivência coletiva e transformam a vida em uma obra de arte.
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O DESAMPARO HUMANO E A ESTÉTICA
DA EXISTÊNCIA EM NIETZSCHE E SARTRE
Renan Soares Esteves1
RESUMO: O objetivo do presente trabalho é traçar relações entre o pensamento do filósofo francês Jean-Paul Sartre e a filosofia do pensador alemão Friedrich Nietzsche, explicitando alguns pontos em comum nas reflexões de ambos sobre a condição humana e suas propostas éticas. Como resultado, percebe-se que ambos os autores admitem a inexistência de um sentido a priori para a existência humana, o que implica na arbitrariedade dos valores morais e na liberdade da criação humana para significar a existência a seu próprio modo. Para reforçar tais considerações, abordamos o trabalho de Christine Daigle (2004), a qual destaca, sobretudo, dois elementos em comum entre ambos os pensadores: o niilismo como ponto de partida filosófico e a resposta à questão acerca do sentido da vida humana.
PALAVRAS-CHAVE: Ética. Nietzsche. Sartre. Niilismo. Sentido da vida.
ABSTRACT: The aim of the present work is to trace relations between the thought of the French philosopher Jean-Paul Sartre and the philosophy of the German thinker Friedrich Nietzsche, explaining some points in common in the reflections of both on the human condition and its ethical proposals. As a result, it is clear that both authors admit that there is no a priori meaning for human existence, which implies the arbitrariness of moral values and the freedom of human creation to mean existence in its own way. To reinforce these considerations, we approach the work of Christine Daigle (2004), who highlights, above all, two elements in common between both thinkers: nihilism as a philosophical starting point and the answer to the question about the meaning of human life.
KEYWORDS: Ethics. Nietzsche. Sartre. Nihilism. Meaning of life.
1 Licenciado em Filosofia pela UFC e, atualmente, mestrando do Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFC na linha de pesquisa Filosofia da Linguagem e do Conhecimento. E-mail: [email protected].
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1 Introdução
Qual é o sentido da vida? Tal pergunta se refere à existência humana e questiona qual seria a
razão ou a finalidade desta. Se a existência humana possui uma razão de ser, então o homem
também possui um dever-ser, um modo como deve se comportar para cumprir com a sua finalidade
pré-estabelecida. Para muitas pessoas a resposta à essa pergunta é óbvia. Tal resposta encontra-se
nas tradições e nos costumes dos povos que naturalizam significações, crenças, atitudes e
comportamentos, como se estes remetessem a uma essência do que seria o homem. Contudo, a
pergunta se refere ao homem em geral, à existência de todos os homens. Se existem diferentes
respostas de diferentes povos para como o homem deve ser, então qual é a resposta correta para se
escolher? Qual é a cultura que apresenta a essência do homem em geral? O que o Relativismo
Cultural pode nos mostrar? Das duas uma: ou a humanidade possui alguma cultura que define de
fato o para-quê do homem ou não existe uma essência capaz de definir o sentido da existência
humana.
Tal questionamento introduzido acima está no âmbito da corrente filosófica conhecida como
Existencialismo, a qual vai centrar na existência humana a reflexão filosófica. Este movimento teve
início historicamente no século XIX, com a obra do filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard (1813-
1855), e se desenvolveu e popularizou no século XX, destacando-se no período após as Guerras
Mundiais. Dentre as principais temáticas trabalhadas pelos filósofos existencialistas podemos citar
o abandono do homem sobre a terra, a liberdade humana, o Absurdo, a solidão e a autenticidade.
O objetivo do presente trabalho consiste em destacar quais são os pontos em comum entre
os pensamentos de Nietzsche e Sartre. Para tanto, serão utilizadas obras que tratam da temática
existencial e de propostas éticas. Segundo Daigle (2004), esses pensadores tem o mesmo ponto de
partida filosófico: o niilismo. Além disso, para a referida autora, ambos dão uma resposta similar ao
problema aberto pelo niilismo, a questão do significado da existência.
2 O Desamparo em Sartre
Em seu texto O existencialismo é um humanismo, Sartre considera inicialmente que o
Existencialismo é “[...] uma doutrina que torna a vida humana possível, e que declara que toda
verdade e toda ação implicam um meio e uma subjetividade humana”. Em seguida, o filósofo
francês faz uma distinção entre dois tipos de existencialistas: os cristãos (Jaspers e Gabriel Marcel,
por exemplo) e o ateus (Heidegger e o próprio Sartre). Por mais que hajam diferenças entre essas
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vertentes, Sartre afirma que ambas partem de uma noção comum: a de que, no homem, “a
existência precede a essência”. Esta premissa tão conhecida significa tão somente que o homem
não possui uma essência que o defina de modo anterior à sua existência, de modo que o homem
primeiro existe para depois se definir, ou seja, construir sua própria essência.
Como Sartre é um partidário do Existencialismo ateu, ele defende que Deus não existe e que isso
deve ser levado até as suas últimas consequências para a condição humana. Sartre defende que não
há uma natureza humana, já que não há um deus para concebê-la. O que existe é uma realidade
humana que consiste no fato de que “O homem não é passível de definição porque, no início, não é
nada – só depois será alguma coisa e será aquilo que fizer de si mesmo”. Nesse contexto, o pensador
francês propõe que o primeiro princípio do seu existencialismo é que o homem nada mais é do que
aquilo que ele faz de si mesmo. Dessa forma, está no homem a posse e, consequentemente, a
responsabilidade sobre o seu ser. O homem escolhe a si mesmo, mostrando a sua liberdade e
tornando-se responsável pelo que é.
Além disso, Sartre afirma que quando escolhemos a nós mesmos, escolhemos uma imagem de
como o homem em geral deveria ser, de modo que adquirimos responsabilidade sobre toda a
humanidade e deveríamos pensar como seria se todos agissem como agimos. Nesse momento,
surge a Angústia, chamada por Kierkegaard de angústia de Abraão, a qual é o sentimento
considerado a marca da liberdade, pois através das minhas ações sou responsável por toda a
humanidade. A Angústia constitui a própria condição da ação, pois diante de opções de escolha não
podemos prever todas as consequências das nossas decisões.
Outra noção fundamental do existencialismo sartreano é o conceito de Desamparo, o qual é a
marca da condição humana. Se não podemos contar com a existência de algum bem a priori, não há
algo que justifique as nossas ações. Como diz Sartre, citando Dostoievski: “Se Deus não existisse,
tudo seria permitido”. Nesse momento do texto, Sartre decreta ao homem a sua condenação à
liberdade:
O homem está desamparado porque não encontra nada a que se agarrar [...] nada poderá ser explicado em referência a uma natureza humana. [...] não existe determinismo, o homem é liberdade. Não existem valores prontos que possam legitimar a nossa conduta. [...] Estamos sós, sem desculpas. [...] O homem está condenado a ser livre (SARTRE, 1987, p. 7).
Ainda no mesmo texto, Sartre evidencia a realidade da condição humana encarada de um
ponto de vista niilista, destacando o homem enquanto artista de sua própria existência e criador de
seus próprios valores:
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Temos que encarar as coisas como elas são. E, aliás, dizer que nós inventamos os valores não significa outra coisa senão que a vida não tem sentido a priori. Antes de alguém viver, a vida, em si mesma, não é nada; é quem a vive que deve dar-lhe um sentido; e o valor nada mais é do que esse sentido escolhido (SARTRE, 1987, p. 17).
Nessa passagem, percebemos que Sartre evidencia a relação entre sentido e valor: o sentido
dado à vida está diretamente relacionado aos valores que vão guiá-la. Em seguida, apresentaremos
partes do pensamento de Nietzsche que mostram semelhanças com as reflexões do referido filósofo
francês.
3 A origem e a superação dos valores morais em Nietzsche
Em sua obra A Genealogia da Moral, o pensador alemão Friedrich Nietzsche se propõe a fazer
uma investigação sobre as origens da moral – entendida como o conjunto de normas de uma
sociedade que determinam o que é o certo e o errado, o bem e o mal. Já no prefácio da referida obra,
Nietzsche afirma seu alvo através de questionamentos fundamentais: “sob que condições inventou-
se o homem aqueles juízos de valor, bom e mau? E que valor tem eles mesmos?” (NIETZSCHE, 1978,
p. 298).
O pensador alemão afirma, na primeira dissertação da obra, que a moral é uma criação humana
e que, historicamente, existia uma moral nobre, na qual os homens poderosos primeiro se
afirmavam como bons para depois julgar os outros que não participavam de suas características, os
plebeus e comuns. Dessa forma, para Nietzsche, foi o sentimento de superioridade de uma classe
dominadora em relação a uma inferior que determinou a origem da oposição entre bom e mau.
Por outro lado, Nietzsche afirma que, em contraposição a essa moral nobre, surge uma moral de
rebanho, na qual os homens inferiores, os escravos, primeiro negam os juízos de valor aristocráticos
para depois se afirmarem como os bons, invertendo os valores morais para que os humildes, os
necessitados e os doentes sejam considerados os bons. Nesse contexto, os homens nobres e
poderosos são considerados maus, ímpios e condenados. O pensador alemão considera este
movimento reativo como uma vingança dos escravos na moral, a qual começou a ser realizada pelos
judeus e alcançou o seu pleno desenvolvimento e consolidação no cristianismo.
Na segunda dissertação da referida obra, Nietzsche mostra que essa moral de rebanho
desenvolve uma técnica para criar um animal capaz de fazer promessas, o qual estaria assombrado
pela “má consciência”, o sentimento de culpa que o obriga a cumprir um dever para que não sofra
um castigo. Em verdade, a má consciência é um mecanismo eficiente de controle do
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comportamento do indivíduo, pois nela a consciência acusa a si mesma, sofrendo um
constrangimento de modo interior que determinará o seu comportamento exterior. Após dissecar
este mecanismo de tornar o comportamento individual calculável, Nietzsche afirma que os ideais
sob os quais impera a má consciência são hostis à vida e à natureza, pois negam os instintos do
indivíduo e, aspirando a um além, negam a própria realidade sensível.
Já na terceira dissertação, Nietzsche explana sobre o ideal ascético, o qual, para ele, demonstra
um fato fundamental sobre a vontade humana: o seu horror ao vácuo. O ascetismo é uma doutrina
segundo a qual devemos nos abster dos prazeres corporais em prol de um desenvolvimento
espiritual e moral. O pensador alemão, então, defende que a vontade humana necessita de uma
finalidade e que o ideal ascético mostra que o homem prefere querer o nada do que nada querer.
Nesse contexto, Nietzsche salienta que o sacerdote – representante do ideal ascético – aplica aos
doentes, deprimidos e amargurados, um treinamento de penitência que os “levaria” a uma
redenção, mas este treinamento, na verdade, os tornaria mais doentes, gerando um sistema
nervoso mais abalado e, possivelmente, epidemias de epilepsia (o autor cita casos históricos, como
os dançarinos de São Guido na Idade Média). Através do ressentimento, o sacerdote redireciona a
finalidade da vontade dos doentes para uma dimensão contra a natureza e contra os seus próprios
prazeres corporais.
No final da referida obra, Nietzsche evidencia a sua visão sobre a condição humana e sobre o que
significa o ideal ascético:
Que se desconte o ideal ascético e o homem, o animal homem, não teve, até agora, nenhum sentido. Sua existência sobre a terra não conteve nenhum alvo: “Para que existe o homem?” – era uma pergunta sem resposta; a vontade de homem e terra faltava; por trás de cada destino humano soava como refrão um ainda maior “Em vão!” (NIETZSCHE, 1978, p. 324).
Diante da inexistência de uma finalidade para a existência humana, o ideal ascético representa
uma justificação do sofrimento humano sobre a terra. Para Nietzsche, o problema do homem não
consiste em sofrer, mas em não ter algo que justifique o seu sofrimento. Dessa forma, o ideal
ascético preenche essa lacuna explicativa característica da condição de existir do homem, mesmo
que, para isso, seja necessário negar a própria individualidade.
Em contraponto a esta postura ascética diante da condição humana, Nietzsche propõe uma
superação dos valores morais e de entidades metafísicas, exaltando a liberdade do indivíduo que
age, conforme a própria vontade, livre da má consciência. Tal proposta é colocada em sua obra
Assim Falou Zaratustra:
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[...] Querer liberta: eis a verdadeira doutrina da vontade e da liberdade – assim Zaratustra a ensina a vós. [...] Para longe de Deus e deuses me atraiu essa vontade; o que haveria para criar, se deuses – existissem! [...] A beleza do além-do-homem veio a mim como sombra. Ai, meus irmãos! Que me importam ainda – os deuses! – Assim falou Zaratustra (NIETZSCHE, 1978, p. 235).
4 A relação entre Nietzsche e Sartre segundo Christine Daigle
Segundo Christine Daigle (2004), Sartre retoma algumas ideias nietzscheanas, sendo essas:
a inocência moral do mundo e a relatividade das noções de bem e mal, que são vistas não mais como
absolutas e objetivas, mas como frutos da razão humana. Para a referida autora, a abordagem de
Sartre é bastante semelhante à de Nietzsche. O ponto de partida comum é o niilismo, mas se é o
mesmo em ambos os pensadores, não se manifesta da mesma maneira. O niilismo militante de
Nietzsche se torna um niilismo passivo em Sartre: ele é o herdeiro de uma onda de niilismo ativo que
ocorreu antes dele.
Em Nietzsche, tal como exposto por Daigle, o niilismo diagnosticado e aquele que é defendido
são muito diferentes. O niilismo deficiente da tradição metafísico-religiosa, nascido do Idealismo
Platônico e do Cristianismo, nega o ser humano e sua vida através das incontáveis restrições que ele
impõe ao ser humano e do forte peso que coloca na transcendência. Este nega toda a relevância à
imanência. Ele também tem um impacto negativo, porque distingue entre um mundo real e um
mundo de aparências. O Idealismo platônico mantém uma divisão ilusória entre o mundo inteligível
e o mundo sensível e, portanto, desvaloriza o mundo no qual os humanos vivem2. A posição
antropológica tradicional também é niilista, porque valoriza apenas certas partes do ser humano e,
assim, é prejudicial à maioria dos aspectos do ser humano. O chamado “homem justo/moderado”,
desejado pela tradição metafísico-religiosa, deve reprimir seus instintos, seus impulsos, suas
emoções e, desse modo, nega metade de seu ser. A tradição metafísico-religiosa é duplamente
niilista, pois rejeita o mundo dos fenômenos e, consequentemente, rejeita uma parte importante do
que significa ser humano. A crítica de Nietzsche ao Cristianismo é uma parte integrante de sua crítica
da tradição metafísico-religiosa. O Cristianismo segue essa tradição e atinge um clímax com o ideal
ascético e sua ética da virtude impossível.
Como é exposto por Daigle (2004, p. 198), para remediar esse niilismo diagnosticado,
Nietzsche propõe um niilismo mais complexo e devastador: seu próprio niilismo completo que
2 Essa interpretação do pensamento platônico, como é sabido, não é ponto pacífico entre os comentadores de Platão. Apesar de amplamente disseminada, a visão segundo a qual existe uma divisão da realidade entre dois mundos, o mundo sensível e o mundo das ideias, no pensamento de Platão, alguns comentadores negam que tal divisão exista. Historicamente, essa visão foi difundida pelo platonismo que influenciou o cristianismo, como podemos perceber na obra de Santo Agostinho.
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prescreve o ateísmo como um primeiro passo. Na tradição metafísico-religiosa, Deus é aquele que
garante todo o sistema e se alguém rejeita Deus, todo o sistema fica sem fundamento. Esse ateísmo
tem profundas consequências, já que a inexistência de Deus ameaçaria a vida humana com uma
completa perda de sentido.
Como solução Nietzsche oferece seu próprio niilismo pleno. Ele julga a tradição metafísico-
religiosa como a ordem alienante das coisas e desde que sua tradição está desmoronando, o niilismo
pleno de Nietzsche tem como tarefa provocar sua inevitável destruição. Mas, segundo Daigle:
[...] uma vez que a reconstrução é seu objetivo final, Nietzsche deve primeiro eliminar tudo o que existia até agora, porque a libertação do jugo da ordem transcendente da tradição metafísico-religiosa apenas pode ser alcançada quando se atravessa esta para o fim da negação. Essa libertação tem sérias consequências: os seres humanos são abandonados no mundo, deixados sem um cuidador. Ninguém cuida deles, zela por eles, assume responsabilidade por suas ações, dá sentido à vida humana ou responde à mais crucial e fundamental das perguntas: qual é o sentido da vida? (DAIGLE, 2004, p. 199).
O niilismo pleno de Nietzsche é ativo e pode resultar no homem não encontrando significado
em lugar algum. Uma interpretação entrou em colapso. Mas porque essa foi considerada a
interpretação, agora parece que não existe nenhum sentido na existência, como se tudo fosse em
vão. O próximo passo é construtivo: consiste em fornecer uma resposta à questão do sentido da vida
para que os humanos possam sobreviver ao seu abandono.
Como é destacado por Daigle, a abordagem de Sartre é similar. Ele reconhece a natureza
alienante da tradição metafísico-religiosa. Afirmando seu ateísmo, e a necessidade do ateísmo para
todos os seres humanos, ele propõe o niilismo como uma solução. A principal diferença entre
Nietzsche e Sartre está no tom e na maneira de seus niilismos plenos. Nietzsche ataca uma tradição
em ruínas, enquanto Sartre já a encontra em ruínas. Ele não sente que precisa de mais críticas. O
niilismo militante de Nietzsche não é mais necessário e Sartre, como um herdeiro solícito de um
niilismo muito ativo, pode adotar uma atitude mais passiva. Ele concorda com Nietzsche a respeito
do aspecto alienante da tradição metafísico-religiosa.
Eles também concordam no ateísmo. Sartre considera a morte de Deus uma genuína
libertação para o homem. Daigle (2004, p. 200) destaca que isso é expresso em textos literários de
Sartre, como As moscas. É uma verdadeira libertação, mas condena uma pessoa à liberdade. Uma
vez que Deus não é mais responsável por este mundo e esta vida, a pessoa humana deve assumir
total responsabilidade por sua vida. A morte de Deus implica que os seres humanos devem se
encarregar da tarefa divina de atribuir significado. O fato de Deus não mais existir tem sérias
consequências, mas Sartre concorda com Nietzsche que este é o preço que se deve pagar por um
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novo começo: uma reconstrução. A morte de Deus, que é equivalente à morte de toda
transcendência, é “a abertura do infinito”: o infinito das possibilidades humanas.
O fato de que Deus está morto e que a antiga ordem das coisas desmoronou significa
libertação para os seres humanos e o fim de sua alienação, mas também significa assumir uma
importante responsabilidade: a de atribuir sentido à vida e ao mundo. Portanto, a rejeição da visão
de mundo tradicional imediatamente levanta a questão do sentido da vida.
Segundo Daigle, essa questão possui uma certa “lógica interna”. Quando alguém pergunta a
questão, entra-se primeiro em um período de dúvida e se pergunta: “A vida tem um significado?” Se
a resposta é não, abandona-se a investigação e se cai num estado de desespero (falta de esperança).
Mas se a resposta é sim, a próxima questão vem à tona: “Quem é o provedor de significado?” e,
finalmente, pergunta-se: “Qual é o sentido da vida?”, isto é, qual é a ordem particular das coisas na
qual uma pessoa encontra seu lugar e uma justificação para sua vida?
O provedor de significado é fundamental, porque sem ele, a ordem é deixada sem um
fundamento. Tanto Nietzsche como Sartre rejeitam o provedor de significado da visão de mundo
tradicional, isto é, Deus. A rejeição deles da tradição como um todo tem grandes consequências.
Não é apenas a questão do significado que se levanta novamente, mas a Ética se torna problemática.
A primeira deve encontrar uma nova resposta e, posteriormente, a Ética deve receber uma nova
base na qual possa ser reconstruída. Dado que a questão do significado é fundamental e fornece a
visão de mundo necessária para a elaboração de todo o resto: ontologia, antropologia e ética, a sua
solução precisa ser cuidadosamente estudada.
Para a referida comentadora, essa questão pode ser respondida de modo pessimista ou de
modo otimista. A resposta pode ser pessimista de duas formas. Ou se diz que não existe nenhum
sentido para a vida ou se diz que existe um sentido, mas este é inacessível a nós, porque não
podemos conhecer o que ele constitui. Uma resposta otimista propõe não apenas que existe um
sentido para a vida, mas também que podemos descobri-lo. Na visão de Daigle, Nietzsche e Sartre
são otimistas, uma vez que para ambos a vida tem sentido e o homem pode conhecer qual é, já que
ele é o provedor de significado.
Ainda nesse contexto, Daigle expõe que, por diferentes razões, Nietzsche e Sartre iniciam
dizendo que o mundo é absurdo e sem sentido. Nietzsche fala de uma inocência do vir-a-ser, um
termo não usado por Sartre embora a noção esteja presente em seu pensamento. Essa fórmula
explica o mundo, o universo e, indiretamente, o ser humano como uma parte do universo. O mundo
e seu vir-a-ser são fenômenos inocentes aos quais o homem realmente não tem acesso. Esses
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fenômenos inacessíveis são inocentes na medida em que eles são simplesmente matéria mecânica
sem pensamento, sem julgamento, sem objetivos e, portanto, são irresponsáveis. Contudo, uma vez
que o ser humano se torna consciente dessa matéria mecânica, ele começa a pensar, o que resulta
em discernimento e julgamento. Os juízos de valor proferidos são tais que “bom” e “mau” passam a
ser ligados ao mundo e seu vir-a-ser, e este não é mais inocente. Mas isso é tudo ação do ser humano
e não constitui uma característica do mundo.
Em Sartre, o processo é semelhante mesmo que ele não o chamasse assim. Segundo Daigle,
na obra A náusea, é a indiferença do mundo da matéria que é intrigante e nauseante. A descoberta
desse estado de coisas, pelo personagem Roquentin, também provoca raiva em relação ao mundo
indiferente e absurdo.
O seu desespero e a raiva de Roquentin mostram que a absurdidade do mundo é muito
pesada para ser suportada. Nesse sentido, a noção de inocência do vir-a-ser existe também em
Sartre. Porém, não deve ser entendida como nos fazendo ser completamente irresponsáveis. A
inocência do vir-a-ser alia-se à noção de responsabilidade absoluta, e implica que o ser humano deve
se tornar consciente de que ele é o criador do mundo, de si mesmo e de sua vida. Não apenas deve
estar consciente disso, como também deve aceitá-lo, já que é o provedor de significado. Ele é
responsável por tudo, incluindo a existência do mundo, uma vez que é pela sua presença e percepção
que o mundo ganha realidade. O mundo precisa do homem para existir. É claro que isso não significa
que o homem é o criador do mundo físico bruto que sempre existia. O humano é simplesmente
jogado neste mundo absurdo. Uma vez que as pessoas são criadoras do mundo humano, o mundo
significativo, pode-se dizer que o mundo precisa dos seres humanos para existir como significativo
ao ser humano.
Portanto, segundo a referida comentadora, porque ambos dizem que o mundo a priori é sem
sentido por si mesmo e que nós fornecemos sentido a ele, em nossa interpretação, nosso ato
criativo, nós devemos definir esse ato criativo. Ambos primeiramente estabelecem significado
através da arte.
Na obra o Nascimento da Tragédia, Nietzsche afirma que “é apenas por um fenômeno
estético que a existência e o mundo são eternamente justificados”. Embora algumas passagens
possam nos levar a acreditar que Nietzsche está falando da criação artística em um sentido estrito,
ele está de fato falando da criação num sentido amplo. Nesse sentido, a autora destaca a passagem
em que Nietzsche afirma que existe apenas um olhar perspectivo, apenas um conhecimento
perspectivo. O mundo é sempre resultado de um certo ato criativo. Essa criação deve ser artística?
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Não necessariamente. A criação do mundo, o produto do contato original entre o homem e o
mundo, é uma criação, mas não simplesmente uma criação artística. É uma transformação do
mundo, de um mundo físico bruto para o mundo humano com sentido. Contudo, essa
transformação não é do mesmo tipo que aquela que encontramos numa obra de arte. Além disso,
Nietzsche não diz que a vida e o mundo são justificados como obra de arte, mas como fenômenos
estéticos. A escolha de palavras feita por Nietzsche é intencional e leva-nos para uma noção mais
ampla de criação.
Por sua vez, em Assim Falou Zaratustra, como é considerado por Daigle, a pessoa com
vontade de potência, isto é, a pessoa que se supera continuamente, aquela que se recria
constantemente, tem uma existência significativa, a qual está justificada por seu movimento de
criação. A vida tem sentido se esta é dinâmica e criativa por si só. O homem deve se tornar um além-
do-homem para ele mesmo. Ele deve transformar a si mesmo para se tornar um além-do-homem,
ele deve criar a si mesmo como além-do-homem. “O homem como fenômeno estético” é justificado
e, consequentemente, o homem que cria a si mesmo como um além-do-homem é justificado. A
chave da questão do significado em Nietzsche é a noção de criação: de si mesmo, da vida, do mundo
e do significado de tudo isso.
Por outro lado, na obra A náusea, segundo Daigle, parece que Sartre justifica a vida apenas
através da arte. O personagem Roquentin descobre a absurdidade do mundo e sua própria absoluta
contingência. Nem a sua presença nem a sua existência são necessárias, significantes ou
justificadas. Ele está, como qualquer outro ser, apenas ali. “Tudo é gratuito.”, incluindo ele mesmo,
os outros, o mundo. Esse é o mundo da contingência. A experiência da arte como um expectador
não justifica a existência ou o mundo. Deve-se ser um artista, um criador. E essa é a resposta que a
Náusea fornece à questão do significado. O mundo e a existência são absurdos em si mesmos,
somos contingentes e tudo é gratuito, mas pela arte, através da criação artística, podemos justificar
nossa existência.
O ser humano deve dar sentido ao ser através da ação, através da criação. Desse modo, no
pensamento sartreano, a consciência modifica o mundo em si mesmo usando o ser para o seu
projeto. Esse mundo modificado, em troca, ensina a consciência o que ela é. Como o mundo-para-
a-consciência se modifica continuamente sob as ações da consciência, essa perpétua criação
corresponde a uma criação perpétua da consciência e do ser humano. Para resumir, nas palavras de
Daigle, pela ação no mundo, a consciência cria o mundo e a si mesma, dá significado ao ser e realiza
seu dever, sua missão de substituir o deus morto como provedora de significado.
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Ao criar o mundo através da ação, a consciência dá sentido ao ser e o salva da absurdidade e
do ser sem sentido. A justificação do ser resulta do fato de que este empresta seu ser ao projeto da
consciência. A partir disso, Daigle afirma que a criação, em Sartre, é entendida num sentido amplo,
é a ação em geral, o projeto humano, a relação entre o humano e o mundo. Essa noção de criação
ainda apresenta a criação como a chave para responder à questão do significado.
5 Considerações finais
Conforme o exposto, é possível afirmar que Sartre foi um herdeiro de Nietzsche, já que sua
filosofia existencialista mostra pontos presentes no pensador alemão: o niilismo que marca o
rompimento com uma tradição ascética e a criação humana como solução para a questão do sentido
da vida que emerge da absurdidade do mundo.
Tal herança intelectual é perceptível através da comparação entre diferentes obras, seja
entre textos literários, seja entre textos filosóficos. Sendo, assim, uma afirmação com fundamento.
REFERÊNCIAS:
DAIGLE, Christine. Sartre and Nietzsche, Sartre Studies International, v. 10, n. 2, 2004, p. 195-210.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Obras incompletas. Seleção de textos de Gérard Lebrun; tradução e notas de Rubens Rodrigues Torres Filho; posfácio de Antônio Cândido de Mello e Souza. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. Tradução de Rita Correia Guedes. São Paulo: Abril Cultural, 1987.