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BOBÓK*
*PublicadooriginalmentenosemanárioGrajdanin(OCidadão),nº6,em5defevereirode1873,quandoDostoiévskijáeraseuredator-chefe.TraduzidodooriginalrussoPólnoiesobrániesotchiniéniivtridtsatítomákh(Obrascompletasemtrintatomos)deDostoiévski,tomoXXI,Leningrado,Ed.Naúka,1980.Asnotasdaediçãorussaestãoassinaladascom(N.daE.);asnotasdo
tradutor,com(N.doT.).
Destavezeupublicoas“Notasdeumapessoa”.Essapessoanãosoueu;éoutrabemdiferente.Achoquenãoémaisnecessárionenhumprefácio.
NOTASDEUMAPESSOA
AnteontemSemiónArdaliônovitchmeveiojustamentecomessa:—Apropósito,IvanIvánitch,seráquealgumdiavocêvaiestarsóbrio?
fazoobséquiodemedizer?Estranhaexigência.Nãomeofendo,souumhomemtímido;emesmo
assimatédeloucojámefizeram.Umpintorfezomeuretratoporacaso:“Sejacomofor,dizele,vocêéumliterato”.Rendi-me,eeleoexpôs.Depoisli:“Ande,váveraquelerostodoentioàbeiradaloucura”.Válá,mas,nãoobstante,logoassim,tãodiretonaimprensa?Na
imprensadevesertudonobre;devehaverideais,masaqui...Digapelomenosdeformaindireta,paraissovocêtemestilo.Não,de
formaindiretaelejánãoquer.Hojeohumoreobomestiloestãodesaparecendoeseaceitaminsultosemvezdegracejos.Nãomeofendo:nãosoudessesliteratosquelevamoleitoraodesatino.Escreviumanovela—nãopublicaram.Escreviumfolhetim—recusaram.Essesfolhetinseuleveiaredaçõesdeváriasrevistasedetodaselasrecebiumnão:“Ésal,dizem,oquelheestáfaltando”.—Quesaléesse—perguntoporbrincadeira—,ático?1Nemconsigo
entender.Estoutraduzindomaisdofrancêsparaeditores.Tambémescrevoanúnciosparacomerciantes:“Umararidade!Chábemvermelho,dizquedecultivopróprio...”.PelopanegíricoaSuaExcelênciaofalecidoPiotrMatvêievitchrecebiumaboabolada.EscreviAartedeagradaràsmulheresporencomendadeeditores.Poisbem,emminhavidapubliqueiunsseislivroscomoesse.EstoucomvontadedereunirosaforismosdeVoltaire,masreceioquepareçaminsossosaosnossosleitores.IssoláétempodeVoltaire:étempodepalerma,nãodeVoltaire!Detantosemorderemacabaramquebrandounsaosoutrosatéoúltimodente!Aíestátodaaminhaatividadeliterária.Nãofaçooutracoisasenãoenviarcartasgratuitamenteàsredações,commeunomecompleto.Vivoafazersermõesesugestões,acriticareindicarocaminho.Nasemanapassadaenvieiaumaúnicaredaçãoaquadragésimacartaemdoisanos;sócomselosgasteiquatrorublos.Tenhoumcaráterasqueroso,éisso.
Achoqueopintornãomeretratouporcausadaliteratura,masdeduasverrugassimétricasquetenhonatesta:dizqueéumfenômeno.Ideiasmesmoandamescassas,porquehojesóhálugarparafenômenos.Ecomoasminhasverrugassaíramnoretratoqueelefezdemim:vivinhas!Éissoqueeleschamamderealismo.Quantoàloucura,noanopassadomuitagentefoiregistradacomolouca
emnossopaís.Ecomqueestilo:“Comumtalentodizquetãooriginal...evejamoqueacabouacontecendo...aliás,hámuitotempoissodeviatersidoprevisto...”2Aíaindaexistemuitaastúcia;desortequedopontodevistadaartepuradáatéparaelogiar.Massúbitoaquelagenteapareceaindamaisinteligente.Queemnossopaísselevaàloucura,seleva,sóqueaindanãosefezninguémficarmaisinteligente.Achoqueomaisinteligenteéquemaomenosumavezpormêschamaa
simesmodeimbecil—capacidadedequehojenãoseouvefalar!Antesaomenosumavezporanooimbecilsabiasobresimesmoqueeraimbecil,mashoje,nemisso.Econfundiramtantoacoisaqueagentenãodistingueoimbecildointeligente.Issoelesfizeramdepropósito.Lembra-meumagalhofaespanhola,dotempoemqueosfranceses
construíramaprimeiracasadeloucoshádoisséculosemeio:“Elestrancaramtodososseusimbecisemumacasaespecialparasecertificaremdequeerampessoasinteligentes”.Edefato:aotrancarooutronumacasadeloucosvocêaindanãoestáprovandosuaprópriainteligência.“K.enlouqueceu,significaqueagorasomosinteligentes.”Não,aindanãosignifica.Aliás,comosdiabos...porquetodaessaceleumacomminha
inteligência?Euresmungo,resmungo.Atéaempregadajáenchi.Ontemmeapareceuumamigo:“Teuestilo,dizele,estámudando,estátruncado.Truncas,truncas,esaiumaoraçãointercalada,apósaintercaladavemoutraintercalada,depoismaisalgumacoisaentreparênteses,edepoistornasatruncar,atruncar...”.Oamigoestácerto.Umacoisaterrívelestáacontecendocomigo.O
carátermudando,acabeçadoendo.Começoavereouvirumascoisasestranhas.Nãosãopropriamentevozes,masécomoseestivessealguémaolado:“Bobók,bobók,bobók!”.3Quebobókéesse?Precisomedivertir.Saíparamedivertir,acabeinumenterro.Umparentedistante.No
entanto,conselheirodecolégio.4Viúva,cincofilhas,todasdonzelas.Sóemsapato,aquantonãovaiisso!Ofalecidodavaumjeito,masagorasobra
umapensãozinha.Vãoterdemeteroraboentreaspernas.Sempremereceberamcomdescortesia.Aliás,eunemteriavindonãofosseumacontecimentotãoespecial.Acompanheiocortejoatéocemitérionomeiodosdemais;evitam-meesefazemdeorgulhosas.Meuuniformeérealmenteruinzinho.Fazunsvinteecincoanos,acho,queeunãovouaumcemitério;sómefaltavaumlugarzinhoassim!Emprimeirolugar,oespírito.Comunsquinzemortosfuilogodandode
cara.Mortalhasdetodosospreços;haviaatédoiscarrosfunerários:odeumgeneraleoutrodealgumagrã-fina.Muitascarastristes,etambémmuitadorfingida,emuitaalegriafranca.Opároconãopodesequeixar:sãorendas.Masespíritoéespírito...Eunãoqueriaseropárocodaqui.
Olhoparaascarasdosmortoscomcautela,desconfiadodaminhaimpressionabilidade.Háexpressõesamenas,comohádesagradáveis.Ossorrisossãogeralmentemaus,unsatémuito.Nãogosto;sonhocomeles.
Duranteamissasaídacapelaparatomararfresco;odiaestavaacinzentado,masseco.Efrio;tambémpudera,estávamosemoutubro.Comeceiacaminharentreassepulturas.Classesdiferentes.Asdeterceiraclassecustamtrintarublos:sãobastanteboasenãotãocaras.Asduasprimeirasficamnaigreja,noadro;bem,issocustaosolhosdacara.Naterceiraclasseenterraramdestavezumasseispessoas,entreelesogeneraleagrã-fina.Deiumaolhadanassepulturas—umhorror:haviaágua,equeágua!
Todaverdee...sóvendooquemais!Atodoinstanteocoveiroaretiravacomumavasilha.Enquantotranscorriaamissa,saíparadarumavoltinhaalémdosportões.Fuilogoencontrandoumhospício,eumpoucoadianteumrestaurante.Eumrestaurantezinhomaisoumenos:tinhadetudoeatésalgadinhos.Haviamuitagente,inclusiveacompanhantesdoenterro.Noteimuitaalegriaeanimaçãosincera.Comiunssalgadinhosetomeiumtrago.Depoisajudeicomasprópriasmãosalevarocaixãodaigrejaparao
túmulo.Porqueosmortosficamtãopesadosnocaixão?Dizem,combaseemalgumainércia,queocorpojánãoteriadomíniosobresimesmo...oualgumabsurdodessaordem;coisacontráriaàmecânicaeaobomsenso.5Nãogostoquandoalguémapenascominstruçãogeralsemeteaespecialista:entrenósissoaconteceatortoeadireito.Civisgostamdejulgarassuntosdemilitares,eatédaalçadademarechaisdecampo,gentecomformaçãoemengenhariadiscutemaisfilosofiaeeconomiapolítica.NãoassistiaoRéquiem.Souorgulhoso,esemerecebemapenaspor
extremanecessidade,porquevoumeenfiarnosseusjantares,aindaquesejamdefunerais?Sónãoentendoporquefiqueinocemitério:sentei-meemumasepulturaepasseiameditardeverdade.ComeceiporumaexposiçãodeMoscou6etermineirefletindosobrea
admiração,falandodotemaemlinhasgerais.Eisoqueconcluísobrea“admiração”:“Admirar-sedetudoé,semdúvida,umatolice,nãoseadmirardenadaé
bemmaisbonito7e,poralgummotivo,reconhecidocomobom-tom.Masépoucoprovávelquenofundosejaassim.Achoquenãoseadmirardenadaéumatolicebemmaiordoqueadmirar-sedetudo.Alémdomais,nãoseadmirardenadaéquaseomesmoquenãorespeitarnada.Aliás,umhomemtolonãopodemesmorespeitar.”—Sim,acimadetudodesejorespeitar.Estousequiosoporrespeitar—
disse-mecertavez,poressesdias,umconhecido.
Estásequiosoporrespeitar!MeuDeus,pensei,oqueseriadetiseteatrevessesapublicaressacoisahojeemdia!Nissocomeceiadormitar.Nãogostodelerinscriçõesdetúmulos;são
sempreiguais.Sobreumalápide,aomeulado,haviaumrestodesanduíche:coisatolaeinoportuna.Derrubei-osobreaterra,poisnãoerapãomasapenassanduíche.Aliás,parecequenãoépecadoesfarelarpãosobreaterra;sobreoassoalhoéqueépecado.ProcurarinformaçõesnoalmanaquedeSuvórin.8
Cabesuporquefiqueisentadomuitotempo,atédemais;ouseja,chegueiinclusiveamedeitaremumlongoblocodepedracomformatodecaixãodemármore.Ecomofoiacontecerquederepentecomeceiaouvircoisasdiversas?Aprincípionãopresteiatençãoedesdenhei.Masaconversacontinuava.Eeuescutava:sonssurdos,comoseasbocasestivessemtapadasportravesseiros;e,adespeitodetudo,nítidosemuitopróximos.Despertei,sentei-meepasseiaescutaratentamente.—Excelência,issosimplesmentenãosefaz.Osenhorcantacopas,eu
façoojogo,ederepenteosenhoraparececomumsetedeouros.Deviatercantadoourosantes.—Então,querdizerquevamosjogardememória?Quegraçahánisso?—Não,Excelência,nãohámeiodejogarsemgarantias.Nãopodefaltar
omorto,eascartastêmdeserdadasviradasparabaixonamesa.—Bem,mortoporaquinãosearranja.Queraiodeconversamaismaçante!Éestranhaesurpreendente.Uma
voztãoforteegrave,aoutraparecendosuavementeadulçorada;nãoacreditariaseeumesmonãoestivesseouvindo.AoRéquiemparecequenãoassisti.E,noentanto,comoéquepodemjogarpréférence9aqui,equegeneraléesse?Dequeouvicoisasdedebaixodostúmulosnãohánenhumadúvida.Inclinei-meeliumainscriçãoemumtúmulo:
“Aquijazocorpodogeneral-majorPiervoiêdov...taisetaismedalhasdecavaleiro.”Hum!“Faleceuemagostodesteano...cinquentaesete...Descansemempaz,queridosrestosmortais,atéoamanhecerradiante!”10
Hum!quediabo,éumgeneralmesmo!Naoutracova,deondevinhaavozbajuladora,aindanãohaviatúmulo;haviaapenasumalápide;pelovistoeradealgumnovato.Pelavoz,umconselheirodacorte.11—Oh-oh-oh-oh!—ouviu-seumavozbemnovaaumascincobraçasdolugardo
generalevindadeumacovabemfresquinha,vozmasculinaevulgar,porématenuadapelamaneirareverenteecomovida.—Oh-oh-oh-oh!—Ah,eleestásoluçandodenovo!—ouviu-sedesúbitoavozenojadae
arrogantedeumadamairritada,parecequedaaltasociedade.—Paramiméumcastigoficaraoladodessevendeiro!—Eunãoestousoluçandocoisanenhuma,ealémdomaisnemcomi
nada,issoésóporcausademinhanatureza.Tudoisso,senhora,éporqueosseuscaprichosaquinestelugarnuncalhedãopaz.—Então,porqueosenhorsedeitouaqui?—Mebotaram,foramamulhereosfilhosquemebotaramenãoeuque
medeitei.Éomistériodamorte!Eeunãomedeitariaaseuladopornada,porouronenhum;estoudeitadoàscustasdemeuprópriocapital,ajulgarpelopreço.Porquesemprepodemospagarporumasepulturadeterceiraclasse.
—Juntoudinheiro;roubandoaspessoas?—Dequejeitoroubarasenhorasedesdejaneironãorecebemos
nenhumpagamentodasuaparte?Temumacontaemseunomenaminhavenda.—Bem,issojáéumabobagem;achomuitabobagemcobrardívidas
aqui!Váláemcima.Cobredaminhasobrinha;elaéaherdeira.—Oraessa,ondeéquesevaicobrareaondeiragora.Nósdois
chegamosaolimite,eemmatériadepecadossomosiguaisperanteotribunaldeDeus.—Depecados!—arremedouafinadacomdesdém.—Enãotenhao
atrevimentodefalarnadacomigo!
—Oh-oh-oh-oh!—Masovendeiroobedeceàsenhora,Excelência.—Eporquenãohaveriadeobedecer?—Sabe-seporquê,Excelência,jáquereinaaquiumanovaordem.—Quenovaordeméessa?—Équenós,porassimdizer,estamosmortos,Excelência.—Ah,émesmo!Masaindaassiméordem...Queobséquio!realmenteumconsolo!Seacoisaaquichegouaesse
ponto,oquesepodeindagarnoandardecima?Quecoisasestãoacontecendo,simsenhor!Masnoentantocontinueiaescutar,mesmotomadodeexcessivaindignação.
—Não,euaindagostariadeviver!Não...eu,fiquemsabendo,euaindagostariadeviver!—ouviu-sederepenteavoznovadealguémn’algumcantoentreogeneraleasenhorairritadiça.—Ouvi,Excelência,onossovizinhovoltaabaternamesmatecla.Hátrês
mesescalado,ederepente:“Euaindagostariadeviver,não,euaindagostariadeviver!”.Ecomqueapetite,hi-hi!—Eleviandade.—Estáatônito,Excelência,eficaisabendo,estáentrandonosono,no
sonodefinitivo,jáestáaquidesdeabril,masderepente:“Euaindagostariadeviver!”.—Issoémeiomaçante,convenhamos—observousuaExcelência.—Meiomaçante,Excelência;nãoseriaocasodetornarmosamexer
comAvdótiaIgnátievna,hi-hi?—Issonão,peçoquemedispense.Nãoconsigosuportaressagritalhona
provocante.—Jáeu,aocontrário,nãoconsigosuportarvocêsdois—respondeua
gritalhonacomnojo.—Vocêsdoissãoosmaismaçantesenãosabemfalardenadaemquehajaideal.Aseurespeito,Excelência—porfavor,nãosejaispresunçoso—,conheçoaquelahistoriazinhaemqueocriadovosvarreucomavassouradedebaixodacamadeumcasalaoamanhecer.—Mulherdetestável!—rosnouogeneralentredentes.—MinhacaraAvdótiaIgnátievna—tornouagritarsubitamenteo
vendeiro—,minhasenhorinha,esqueceomalemedizseeutenhode
passarportodasessasprovaçõesoudevoagirdeoutrojeito?—Ah,lávemelecomamesmaladainha,eubemquepressenti,pois
estousentindoocheiroquevemdele,ocheiro,porqueéelequeestásemexendo!—Nãoestoumemexendo,minhacara,enãoédemimqueestásaindo
nenhumcheiroespecial,porqueeuaindaestouinteironomeucorpoplenamenteconservado;jáasenhorinhasemexeumesmo,porqueocheiroérealmenteinsuportávelatéparaumlugarcomoeste.Ésópordelicadezaqueeuficocalado.—Ah,esseofensordetestável!Fedequeéumhorroredizquesoueu.—Oh-oh-oh-oh!Sepelomenososnossosacabassemlogoessa
quarentena:escutosobremimvozeschorosas,oprantodamulhereochorobaixinhodosfilhos!...—Vejamsóporqueeleestáchorando:vãoencherapançadekutyá12e
irembora.Ah,seaomenosalguémacordasse!—AvdótiaIgnátievna—falouofuncionáriobajulador.
—Espereumsegundinho,osnovatosvãofalar.—Tambémhájovensentreeles?—Tambémhájovens,AvdótiaIgnátievna.Atérapazinhos.—Ah,comoviriamapropósito!—Eporqueaindanãocomeçaram?—quissabersuaExcelência.—Nemosdeanteontemacordaram,Excelência,osenhormesmosabe
queàsvezesficamumasemanacalados.Aindabemquederepentetrouxerammuitosontem,anteontemehoje.Senãoaumasdezbraçasaoredortodosseriamdoanopassado.—É,interessante.—Poisbem,Excelência,hojesepultaramoconselheiroefetivosecreto13
Tarassiêvitch.Reconheci-opelasvozes.Conheçoseusobrinho,queaindahápoucofezdescerocaixãodele.—Hum,ondeestaráeleporaqui?—Aunscincopassosdosenhor,Excelência,àesquerda.Quasebemaos
vossospés...Seriabomqueossenhoresseconhecessem,Excelência.—Hum,essanão...eu,daroprimeiropasso.—Ora,elemesmotomaráainiciativa,Excelência.Elevaisesentiraté
lisonjeado,deixaicomigo,Excelência,eeu...
—Ah,ah...ah,oqueestáacontecendocomigo?—súbitocomeçouaofegaravozinhanovataeassustadadealguém.—Umnovato,Excelência,umnovato,graçasaDeus,efoitãodepressa!
Noutrasocasiõespassamumasemanasemfalar.—Ah,parecequeéumjovem!—guinchouAvdótiaIgnátievna.—Eu...eu...eutiveumacomplicação,etãoderepente!—tornoua
balbuciarorapazinho.—Schultzmedisseaindanavéspera:osenhor,dizele,estácomumacomplicação,ederepentemorriaoamanhecer.Ah!Ah!—Bem,nãoháoquefazer,meujovem—observouogeneralcheiode
benevolênciaenotóriaalegriapelonovato—,precisaconsolar-se.Sejabem-vindoaonosso,porassimdizer,valedeJosafá.14Somosgentebondosa,vósosabereiseapreciareis.General-majorVassíliVassílievPiervoiêdovparaservi-lo.—Ah,não!não,não,dejeitonenhum!EstavanoconsultóriodeSchultz;
andavacomumacomplicação,primeirosentiopeitotomadoetosse,depoispegueiumagripe:opeitoeagripe...ederepentetudoinesperado...eopior,totalmenteinesperado.—Osenhorestádizendoqueprimeirofoiopeito—intrometeu-se
brandamenteofuncionário,comosequisesseanimaronovato.—Sim,opeitoeescarro,depoisdesapareceuoescarroenãosentio
peito,nãoconseguiarespirar...osenhorsabe...—Sei,sei.Masseerapeito,seriamelhorosenhorteridoaEckoudenão
aSchultz.15
—Sabe,euestavaparairaBótkin...masderepente...—Bem,Bótkinarrancaosolhosdacara—observouogeneral.—Não,elenãoarrancaolhonenhum;ouvidizerqueeleémuito
atenciosoeantecipatudo.—SuaExcelênciaobservouapropósitodopreço—emendouo
funcionário.—Ah,oqueéisso,apenastrêsrublos,eeleexaminatãobem,ereceita...
eeuqueriasemfalta,porquemedisseram...Então,senhores,devoiraEckoudouaBótkin?—Oquê?Aonde?—comumagargalhadaagradávelcomeçouaagitar-
seocadáverdogeneral.Ofuncionárioorepetiuemfalsete.—Queridomenino,meumeninoqueridoeradiante,comoeuteamo!—
ganiuemêxtaseAvdótiaIgnátievna.—Ah,secolocassemumassimaomeulado!Não,issoeujánãopossoadmitir!eolhequeesseéummortomoderno!
Entretanto,vamosouvirmaisesempressadeconcluir.Essefedelhonovato—lembro-medeleaindahápouconocaixão—éaexpressãodeumfrangoassustado,amaisasquerosadomundo!Masvejamosoquevempelafrente.
Masdepoiscomeçoutalpandemônioquenãoretivetudonamemória,porquemuitosacordaramaomesmotempo;acordouumfuncionário,conselheirocivil,16ecomeçouimediatamenteadiscutircomogeneraloprojetodeumanovasubcomissãonoministérioe,conjugadocomessasubcomissão,umprovávelremanejamentodeocupantesdecargos,oquedeixouogeneralbastanteentretido.Confessoqueeumesmomeinteireidemuitasnovidades,desortequefiqueiimpressionadocomosmeiospelosquaisàsvezespodemostomarconhecimentodasnovidadesadministrativasnestacapital.Depoissemidespertouumengenheiro,queaindalevoutemporesmungandoumcompletoabsurdo,desortequeosnossosnemimplicaramcomele,masdeixaramquepororacontinuassedeitado.Finalmenteumailustregrã-senhora,sepultadapelamanhãno
catafalco,deusinaisdeanimaçãotumular.Lebieziátnikov(porquesechamavaLebieziátnikovobajuladorconselheirodacorte,objetodomeuódio,quesecolocaraaoladodogeneralPiervoiêdov)ficoumuitoagitadoesurpresoaoverquedestaveztodosestavamacordandomuitodepressa.Confessoqueeutambémmesurpreendi;aliás,algunsdosdespertosjáestavamenterradoshátrêsdias,como,porexemplo,umamocinhabemjovem,deunsdezesseisanos,quedavarisadinhassemparar...davarisadinhasabjetasesensuais.
—Excelência,oconselheirosecretoTarassiêvitchestáacordando!—anuncioudesúbitoLebieziátnikovcomumapressaexcepcional.—Ãh,oquê?—resmungouoconselheirosecretocomvozciciantee
nojo,despertandoderepente.Nosomdavozhaviaumquêdecaprichoeimposição.Porcuriosidadeaguceioouvido,poisnosúltimosdiaseuouvirafalarcoisassumamentetentadoraseinquietantesarespeitodesseTarassiêvitch.—Soueu,Excelência,porenquantoapenaseu.—Qualéoseupedidoeoqueosenhordeseja?—ApenasmeinteirardasaúdedeVossaExcelência;porfaltadehábito,
cadaumquechegaaquisesentemeiotolhidodaprimeiravez...OgeneralPiervoiêdovgostariadeterahonradeconhecerVossaExcelênciae
espera...—Nãoouvi.—Perdão,Excelência,éogeneralPiervoiêdov,VassíliVassílievitch...—OsenhoréogeneralPiervoiêdov?—Não,Excelência,souapenasoconselheirodacorteLebieziátnikov
paraservi-lo,masogeneralPiervoiêdov...—Absurdo!Epeço-lhequemedeixeempaz.—Deixai-o—finalmenteogeneralPiervoiêdovdetevecomdignidadea
pressatorpedoseuclientesepulcral.—Eleaindanãoacordou,Excelência,éprecisoconsiderar;issoéfaltado
hábito:quandoacordaroreceberádemododiferente...—Deixai-o—repetiuogeneral.
—VassíliVassílievitch!Ei,Excelência!—gritoualtodesúbitoeentusiasmadaaoladodaprópriaAvdótiaIgnátievnaumavozinteiramentenovata,vozfidalguescaepetulante,comadicçãolânguidadamodaedescaradamenteescandida—,jáfazduashorasquevosobservoatodos;hátrêsdiasestoudeitadoaqui:osenhorselembrademim,VassíliVassílievitch?Kliniêvitch,nósnosencontramosemcasadeVolokonski,ondeosenhor,nãoseiporquê,tambémerarecebido.
—Como,ocondePiotrPietróvitch...nãomedigaqueéosenhor...eemidadetãojovem...Comolamento!—Eeutambémlamento,sóqueparamimdánomesmoedoravante
querodesfrutardetudooqueforpossível.Enãosouconde,masbarão,apenasbarão.Nóssomosunsbaronetessarnentos,descendentesdecriados,aliás,euatédesconheçoarazãodissoeestoumelixando.Souapenasumpulhada“pseudo-altasociedade”emeconsideroum“amávelpolisson”.17Meupaieraumgeneralotequalquerehouveépocaemqueminhamãeerarecebidaenhautlieu.18Noanopassadoeueojid19Zifelpusemosemcirculaçãocercadecinquentamilrublosemnotasfalsas,euodenunciei,eodinheiroYulkaCharpentierdeLusignanlevoutodinhoparaBordeaux.Eimaginaiqueeujáestavanoivo—deSchevaliévskaia,moçaaindacolegial,amenosdetrêsmesesparacompletardezesseisanos,noventamilrublosdedote.AvdótiaIgnátievna,estaislembradadecomo
mepervertestesháquinzeanos,quandoeuaindaeraumcadetedequatorzeanos?—Ah,éstu,patife,pelomenosDeusteenviou,porqueaqui...—Emvãodesconfiastesdemaucheironovossovizinhonegociante...Eu
melimiteiacalarerir.Porqueomaucheirosaidemim;équemeenterraramnumcaixãopregado.—Ah,quetipoabominável!Masmesmoassimestoucontente;não
acreditaríeis,Kliniêvitch,nãoacreditaríeiscomoissoaquicarecedevidaegraça.—Poisé,poisé,maseutenhoaintençãodeorganizaraquialgumacoisa
original.Excelência—nãoestoufalandocomosenhor,Piervoiêdov—,Excelência,ooutro,osenhorTarassiêvitch,oconselheirosecreto.Respondei!ÉKliniêvitch,quenaQuaresmavoslevouàcasademademoiselleFurie,estaislembrado?—Euvosestououvindo,Kliniêvitch,emuitocontente,acreditai...—Nãoacreditonumavírgula,eestoumelixando.Eu,amávelvelhote,
querosimplesmentecobri-lodebeijos,masgraçasaDeusnãoposso.Sabeisvós,senhores,oqueessegrand-père20engendrou?Faztrêsouquatrodiasquemorreu,epodeisimaginarquedeixouumdesfalquedequatrocentosmilrublosredondosemdinheiropúblico?Aquantiaestavaemnomedasviúvasedosórfãos,masnãosesabeporqueeleaadministravasozinho,desortequeacabouficandooitoanoslivredefiscalização.Imaginoacaradetachodetodoselesláequelembrançaguardamdele!Nãoéverdadequeéumaideiacheiadevolúpia?Vivitodooanopassadoadmiradodevercomoessevelhotedesetentaanos,cheiodegotanasmãosenospés,aindaconseguiaconservartantaenergiaparaalibertinagem,eagoravejooenigmadecifrado!Aquelasviúvaseórfãos...aliás,asimplesideiadesuaexistênciadeveriadeixá-loembrasas!...Eujáconheciaessahistóriahaviamuitotempo,eeraoúnicoaconhecê-la,CharpentiermecontounaSemanaSantae,maltomeiconhecimento,investicontraele,amigavelmente:“Passa-mevinteecincomil,senãoamanhãafiscalizaçãoestaráaqui”;imaginai,naocasiãoelesóarranjoutrezemil,desorteque,parece,agoraamortedelevembemapropósito.Grand-père,grand-père,estaisouvindo?—ChèrKliniêvitch,estouinteiramentedeacordoconvosco,eemvão...
descestesasemelhantesdetalhes.Navidahátantosofrimento,tantomartírioetãopoucocastigo...eudesejeifinalmenteaquietar-mee,atéonde
percebo,esperoaténestelugardesfrutardetudo...—ApostoqueelejáfarejouKátichBieriestova!—Qual?...QueKátich?—tremeulascivaavozdovelho.—Ahah,queKátich?Aliestá,àesquerda,acincopassosdemim,adez
dosenhor.Elajáestáaquihácincodias,eseosenhor,grand-père,soubessequecanalhinha...deumbomlar,educada,eummonstro,ummonstroemúltimograu!Láeunãoamostravaaninguém,sóeusabia...Kátich,responda!—Ih-ih-ih!—respondeuosomdecanarachadadavozdamocinha,
masneleseouviualgocomoumaalfinetada.—Ih-ih-ih!—Eélou-ri-nha?—balbuciouogrande-pèrecomtrêssons
fragmentados.—Ih-ih-ih!—Amim...amimjáfaztempo—pôs-seabalbuciarofeganteovelho—
quemeatraiosonhocomumalourinha...deunsquinzeanos...ejustamentenumasituaçãocomoesta...—Ah,quemonstruosidade!—exclamouAvdótiaIgnátievna.—Basta!—resolveuKliniêvitch.—,estouvendoqueomaterialé
magnífico.Aquivamosnosorganizarrapidamenteparaatingiromelhor.Oprincipaléquepassemoscomalegriaorestodotempo:masquetempo?Ei,osenhoraí,Lebieziátnikov,funcionáriodealgumacoisa,parecequefoiesseonomequeouvichamarem!
—Lebieziátnikov,conselheirodacorte,SemiónIevsêitchik,paravosserviremuito,muitocontente.—Estoumelixandoparaoseucontentamento,masparecequeosenhor
éoúnicoaquiquesabetudo.Dizei,emprimeirolugar(desdeontemqueestouadmirado),dequemodonósfalamosnestelugar?Porqueestamosmortosenoentantofalamos;écomosefalássemos,enoentantonemfalamosnemnosmovemos!Quetruquessãoesses?—Isso,seosenhordesejar,barão,quempodevosexplicarmelhordo
queeuéPlatonNikoláievitch.—QueméessePlatonNikoláievitch?Paredemastigar,vamosao
assunto.—PlatonNikoláievitchéonossofilósofodomésticodaqui,naturalistae
grão-mestre.Jálançouvárioslivrosdefilosofia,masfaztrêsmesesque
vementrandonosonodefinitivo,demodoqueaquijánãoémaispossíveldesentorpecê-lo.Umavezporsemanabalbuciaalgumaspalavrassemnexo.—Aoassunto,aoassunto!...—Eleexplicatudoissocomofatomaissimples,ouseja,dizendoquelá
emcima,quandoaindaestávamosvivos,julgávamoserroneamenteamortecomomorte.Écomoseaquiocorposereanimasse,osrestosdevidaseconcentram,masapenasnaconsciência...Istonãotenhocomolheexpressar—éavidaquecontinuacomoqueporinércia.Tudoconcentrado,segundoele,emalgumpontodaconsciência,eaindaduradedoisatrêsmeses...àsvezesatémeioano...Há,porexemplo,umfulanoqueaquiquasejásedecompôsinteiramente,masfazumasseissemanasquedevezemquandoaindabalbuciaderepenteumapalavrinha,claroquesemsentido,sobreumtalbobók:“Bobók,bobók”;logo,aténeleaindapersisteumacentelhainvisíveldevida...—Coisabastantetola.Ecomoéqueeuestousemtato,massintofedor?
—Isso..eh-eh...Nessepontoonossofilósofometeu-seemzonanebulosa.Referindo-seprecisamenteaoolfato,eleobservouqueaquisesenteumfedor,porassimdizer,moral,eh-eh!Écomoseofedorviessedaalmaparaque,nessesdois-trêsmeses,nósnosapercebêssemosatempo...equeisso,porassimdizer,éaúltimamisericórdia...Sóqueeu,barão,achoquetudoissojáédelíriomístico,bastantedesculpávelnasituaçãodele...
—Basta,eestoucertodequetodoorestoéabsurdo.Oprincipalsãoosdoisoutrêsmesesdevidae,nofimdascontas,bobók.Sugiroquetodospassemosessesdoismesesdamaneiramaisagradávelpossível,eparatantotodosnosorganizemosemoutrasbases.Senhores!proponhoquenãonosenvergonhemosdenada!—Ah,vamos,vamos,nãonosenvergonhemosdenada!—ouviram-se
muitasvozese,estranho,ouviram-seatévozesinteiramentenovas,logo,quehaviamtornadoadespertarnesseínterim.Umengenheiroquedespertaracompletamentetrovejoucomvozdebaixoasuaconcordância,comumaprestezaespecial.AmocinhaKátichdavarisadinhasdealegria.—Ah,comoeuqueronãomeenvergonhardenada!—exclamavaem
êxtaseAvdótiaIgnátievna.—Ouvi,jáqueAvdótiaIgnátievnaquernãoseenvergonhardenada...—Não-não-não,Kliniêvitch,eumeenvergonhava,apesardetudoláeu
meenvergonhava,masaquiestoucomumaterrível,umaterrívelvontadedenãomeenvergonhardenada!—Euentendo,Kliniêvitch—falouoengenheirocomsuavozdebaixo
—,queestaispropondoorganizaravidaaqui,porassimdizer,emprincípiosnovosejáracionais.—Bem,paraissoeuestoumelixando!Nestesentidoaguardemos
Kudeiárov,foitrazidoontem.Assimquedespertarvosexplicarátudo.Precisamverquetipo,éumtipoagigantado!Amanhã,parece,vãotrazermaisumnaturalista,certamenteumoficiale,senãoestouenganado,dentrodeunstrêsouquatrodiasumfolhetinista,eparecequejuntocomoredator-chefe.Aliás,odiaboostenha,porquetãologosereúnaanossaturma,tudoentrenósseorganizaránaturalmente.Masporenquantoeuqueroquenãoseminta.Ésóoqueeuquero,porqueistoéoessencial.NaTerraéimpossívelviverenãomentir,poisvidaementirasãosinônimos;mas,comointuitoderir,aquinãovamosmentir.Aosdiabos,ora,poisotúmulosignificaalgumacoisa!Todosnósvamoscontaremvozaltaasnossashistóriasjásemnosenvergonharmosdenada.Sereioprimeirodetodosacontaraminhahistória.Eu,sabei,soudossensuais.Láemcimatudoissoestavapresoporcordaspodres.Abaixoascordas,evivamosessesdoismesesnamaisdesavergonhadaverdade!Tiremosaroupa,dispamo-nos!—Dispamo-nos,dispamo-nos!—gritaramemcoro.—Estoucomumaterrível,umaterrívelvontadedetirararoupa!—
ganiuAvdótiaIgnátievna.—Ah...ah...Ah,estouvendoqueacoisaaquivaificaralegre;nãoquero
maisiraEckoud.—Não,euaindagostariadeviver,não,ficaisabendo,euaindagostaria
deviver!—Ih-ih-ih—Kátichdavarisadinhas.—Oprincipaléqueninguémpodenosproibir,eaindaquePiervoiêdov
sezangue,comoestouvendo,elenãopodemesmomealcançarcomamão.Grand-père,osenhorestádeacordo?—Totalmente,totalmentedeacordoecomomaiordosprazeres,mas
contantoqueKátichsejaaprimeiraacomeçarsuabi-o-grafia.—Protesto,protestocomtodasasforças—pronuncioucomfirmezao
generalPiervoiêdov.—Excelência!—balbuciouemvozbaixaocanalhadoLebieziátnikov
numainquietaçãoprecipitadaeemtompersuasivo.—Excelência,seráatémaisvantajosoparanósseconcordarmos.Comosabeis,estáemjogoessamenina...e,nofimdascontas,todasessascoisinhasvárias...—Suponhamos,amenina,noentanto...—Maisvantajoso,Excelência,juroqueseriamaisvantajoso!Aomenos
umaprovinha,aomenosexperimentemos...—Nemnotúmulonosdeixamempaz!—Emprimeirolugar,general,osenhorjogapréférencenotúmulo,em
segundo,estamosnosli-xan-doparaosenhor—escandiuKliniêvitch.—Meucarosenhor,nãoobstante,peçoquenãoesqueçaisasmaneiras.—Oquê?Oraessa,osenhornãomealcança,edaquieupossoprovocá-
locomosefazcomumcachorrinho.Emprimeirolugar,senhores,quegeneraléeleaqui?Láeleerageneral,masaquiéumnada!—Não,nãosouumnada...euatéaqui...—Aquiapodreceránocaixão,edeixaráseisbotõesdecobre.—Bravo,Kliniêvitch,quá-quá-quá!—mugiramvozes.—Euserviaomeusoberano...tenhoumaespada...—Vossaespadaserveparaespetarratos,ealémdomaisosenhor
nuncaadesembainhou.—Nãoimporta;euerapartedeumtodo.
—Sabe-seláquepartestemumtodo.—Bravo,Kliniêvitch,bravo,quá-quá-quá!—Eunãoentendooqueéumaespada—proclamouoengenheiro.—Nósvamosfugirdosprussianoscomoratos,elesnosreduzirãoapó!
—gritouumavozdistante,estranhaamim,masliteralmentesufocadadeêxtase.
—Aespada,senhor,éhonra!—iagritandoogeneral,massóeuoouvi.Ergueu-seumaberrariademoradaefrenética,motimealarido,esóse
ouviamosguinchosimpacientesequasehistéricosdeAvdótiaIgnátievna.—Vamoslogocomisso,logo!Ah,quandoéquevamoscomeçaranãoter
vergonhadenada!—Oh-oh-oh!aalmaandaverdadeiramenteatormentada!—ia-se
ouvindoumavozvindadopovãoe...Eeisquederepenteespirrei.Aconteceudeformasúbitaeinvoluntária,
masoefeitofoisurpreendente:tudoficouemsilêncio,exatamentecomonocemitério,desapareceucomoumsonho.Fez-seumsilêncioverdadeiramentesepulcral.Nãoachoquetenhamsentidovergonhademim:haviamresolvidonãoseenvergonhardenada!Espereiunscincominutose...nemumapalavra,nemumsom.Tambémnãodáparasuporquetenhamtemidoserdenunciadosàpolícia;porque,oqueapolíciapodefazernestecaso?Concluoinvoluntariamenteque,apesardetudo,elesdevemteralgumsegredodesconhecidodosmortaisequeelesescondemcuidadosamentedetodomortal.“Bem,queridos,refleti,aindaheidevisitá-los”—ecomessaspalavras
deixeiocemitério.
Não,issoeunãopossoadmitir;não,efetivamentenão!Obobóknãomeperturba(vejamemqueacaboudandoessetalbobók!).Perversãoemumlugarcomoeste,perversãodasúltimasesperanças,
perversãodecadáveresflácidoseemdecomposição,sempouparsequerosúltimoslampejosdeconsciência!Deram-lhes,presentearam-noscomesseslampejose...Eomaisgrave,omaisgrave:numlugarcomoeste!Não,istoeunãopossoadmitir...Circuloemoutrasclasses,escutoemtodaparte.Oproblemaéque
precisoescutaremtodaparteenãosódeumladoparafazerumaideia.Podeserqueeudeparecomalgoconsolador.Masvoltareisemfaltaàqueles.Prometeramsuasbiografiasetodasorte
deanedotas.Arre!Masvouprocurá-los,vousemfalta;éumaquestãodeconsciência!VoulevaraoGrajdanin;21látambémreproduziramoretratodeum
redator-chefe.Podeserquepubliquem.
VassíliPerov,RetratodoescritorFiódorDostoiévski,1872,óleos/tela,99x80,5cm,GaleriaTretiakov,Moscou.
1“Salático”,expressãofiguradaquesignificagracejorefinado.RemontaaMarcoTúlioCícero(106-43a.C.),quenutriaumaltoapreçopelaarteoratóriagrega.(N.daE.)2Têm-seemvistaasresenhaseasrepercussõespolêmicasdoromanceOsdemônios,sobretudoa
nota“Jornalismoebibliografia”,publicadaporBirjevíeViédomosti[BoletinsdaBolsa]eassinadaporM.N.,quecomparavaoconteúdodoromanceàsalucinaçõesdePopríchin,protagonistadoDiáriodeumlouco,deNikolaiGógol.AquisemencionaoiníciodaatividadeliteráriadeDostoiévski,quandosuaprimeiraobra“foisaudadaporBielínski,paraquemotalentodoescritorestreantepertenciaàcategoriadaquelesquenãosepercebemnemsecompreendemdeimediato.Enquantoelecontinuaremsuasatividades,diziaocrítico,surgirãomuitostalentosqueirãoopor-seaele,masestesacabarãoesquecidos,aopassoquesuaglóriachegaráaoapogeu.Nãosabemosseoseutalentochegouaesseapogeu,mas,peloquefezumapartedosnossosjovenspátrios,elerealmentesuperouaomenosaquelesconcorrentesqueenveredamporessecaminhonoRússkiViéstnik[MensageiroRusso]eemoutrasrevistasdamesmanaturezaequejáforamesquecidas”(Birjevíe
Viédomosti,24/3/1872,nº83).(N.daE.)3Emrusso,bobóksignificafava.(N.doT.)4Classecivildesextacategoria.(N.daE.)5RéplicapolêmicaaoartigodocríticoViktorP.Buriênin(1841-1926),“Osentidopurificadordas
galéseosfolhetinscheiosdenervosismoeclamordosr.Dostoiévski”(Grajdanin,nº1,2,3).BuriêninassimavaliaapublicísticadeDostoiévski:“Masquandoosr.Dostoiévskienveredapelocampodopensamentoteórico,quandoelesemeteapublicista,filósofo,moralista,eleficahorrível;não,maisquehorrível:eleéirresponsáveldiantedobomsensoedalógica”(S.-PeterbúrgskieViédomosti[BoletimouDiárioOficialdeSãoPetersburgo],20/1/1873,nº20—grifosdaredação).“Umapessoa”modificaumpoucoaspalavras(grifadas)deBuriênin,substituindo“lógica”por“mecânica”.TudoindicaqueDostoiévskiofazcomumafinalidadepolêmicacomplementardeatingirIvanTurguênievpeloartigo“ApropósitodePaisefilhos”,queantesDostoiévskiparodiaraemOsdemônios.Turguênievconcluioartigocomesseapeloàs“pessoaspráticas”:“respeitaiaomenosasleisdamecânica,tiraidecadacoisatodooproveitopossível!Senãooleitor,aopercorrernasrevistasalgumaspáginasdeverborreiamurcha,vaga,impotentedetãoprolixas,palavra,deveráinvoluntariamentepensarquesubstituísexatamentealavancaporescorasprimitivas,queestareisretornandoàprimeirainfânciadaprópriamecânica[...]”(IvanTurguêniev,Obras,tomoXIV,p.109—grifosdaediçãorussa).(N.daE.)6Tudoindicatratar-sedeumaexposiçãopolitécnicainauguradaemMoscounodia30demaio
de1872eencerradanodia30deagostodomesmoano,emcomemoraçãoaobicentenáriodenascimentodePedro,oGrande.Umgranderesumo,“AexposiçãopolitécnicadeMoscou”,assinadocomasiniciaisB.K.N.,foipublicadonumacoletâneadoGrajdaninem1872econstanabibliotecadeDostoiévski.(N.daE.)7DostoiévskitememvistaQuintoHorácioFlaco(68-8a.C.),autordaexpressãoNiladmirari(De
nadaadmirar-se).EmBobókessalocuçãotalvezatinjapolemicamenteocríticodearteLevPaniútin(1831-1882),queusavaaexpressãocomopseudônimo.(N.daE.)8Trata-sedoAlmanaqueRussodeAlekseiSuvórinemsuaediçãode1872(SãoPetersburgo).O
novoalmanaquedifereconsideravelmentedosanteriores,queeramsimplescalendários.Essacircunstânciafoiressaltadaeexplicadanoprefácioànovaedição:“Diantedointeressepelasquestõessociaisesuadiscussãoquevemseexpandindonosúltimosdezanosemnossasociedade,colocamoscomometacentraldoCalendárioRussosernãosóumlivrodeconsultacomo,aomesmotempo,ummanualdeinformaçõessobreaRússiaededadosparaoconhecimentodosseusrecursosfísicos,econômicoseético-políticosnoestadoemqueestãodisponíveise,ainda,comparadoscomasmesmaspotencialidadesdorestodaEuropa”.Ocalendáriocontavacomquarentaeduasseções;pelovisto,“umapessoa”pretende“consultar”aquartaseção,“Calendáriodesuperstições,costumesecrendicespopularesnaRússia”,pp.48-55.(N.daE.)9Jogodebaralhosemelhanteaobridge.(N.doT.)10EpitáfiodoescritorNikolaiKaramzin(1766-1826).PorvontadedosirmãosMikhaileFiódor
Dostoiévski,foigravadoem1837nomonumentoqueelescolocaramnotúmulodamãe.Oepitáfiojáeraamplamentepopularem1830.A.Chlekhter,noconto“Vítimasdovício:cenasdavidaurbana”(1834),constata:“Comrepetiçõesparticularesaspessoasusaramtanto,gastaramtantoessainscriçãomaravilhosaqueelaperdeuinteiramenteoseubelosentido.Agenteaencontrasobreascinzasdealgummalvado,deumhomemdequemserecebeuumaherançahámuitoesperada,sobreotúmulodeuminimigo,ocorpodeummaridoodiadopelamulher”.OepitáfiodeKaramzinjáfiguraraantes(emcontextoburlesco)noromanceOidiota,deDostoiévski.(N.daE.)11Classecivildesétimacategoria.(N.daE.)12Misturadecerealcozidocommel(ouaçúcar,ameixaempassas,passas,etc.).Tudoindicaque
ocerealé,aqui,umsímbolodaressurreição,eomel(ououtrosingredientesdoces)umsímbolodedoçuradafuturavida.Okutyáéumtradicionaldetalhesimbólicodoritualfúnebre.(N.daE.)13Classecivildesegundacategoria.(N.daE.)
14ValesituadonosarredoresdeJerusalém;segundoalendabíblica,onomesedeveaJosafá,reidaJudeia.OvaledeJosafáéumsímboloproféticobíblico:éolugarondesedaráoDiadoJuízoFinal,quandoomundoacabar.(N.daE.)15EstrelasdamedicinadePetersburgo.OAlmanaqueRussodeSuvórininformasobreelesna
rubrica“MédicosespecialistasdePetersburgo”,dandodetalhesdeendereço,diasdeatendimentoetc...TambémaparecemnosmanuscritosdeCrimeecastigoeOidiota.(N.daE.)16Classecivildequintacategoria.(N.daE.)17“Vadio”,“vagabundo”,emfrancêsnooriginal.(N.doT.)18“Nasaltasrodas”,emfrancêsnooriginal.(N.doT.)19Termodepreciativousadonotratamentodejudeus.(N.doT.)20“Vovô”,emfrancêsnooriginal.(N.doT.)21OCidadão,semanáriodePetersburgodoqualDostoiévskiéredatorchefequandopublica
Bobók.(N.doT.)
OUNIVERSODEBOBÓK
PauloBezerra
DostoiévskipublicaBobókem1873,comafinalidadedeajustarcontascomacríticamuitasvezesazeda,ideologicamenteraivosaedesrespeitosaaoromanceOsdemônios,publicadonoanoanterior.Escritoàqueimaroupa,essecontoaproximanarradoreobjetodarepresentação,tempodaaçãoetempodanarração,eliminatodadistânciaentreospoloscomponentesdouniversorepresentadoearrastaimediatamenteoleitorparadentrodoclimadehostilidadedacríticaaoromancista,queseseguiuàpublicaçãodeOsdemônios,em1872.Acusadodelouco,dehavercriadoumromanceque“lembraumhospitalpovoadodepacientesexcêntricos”,de“marionetesefigurasafetadasaoladodepersonagensvivas”,umromanceque“deixaaimpressãoextremamentesinistradeummanicômio”,trazuma“enxurradadeasneiras”eapresentaosniilistascomo“manequinsquesedistinguementresiporessaouaquelavariedadededelírio”que,nofundo,são“delíriosdopróprioautor”—tudoisso,segundomuitoscríticos,revelademododefinitivo“afalênciadoautordeGentepobre”.Sensívelàcríticapróoucontra,Dostoiévskipassaporumabrevecriseefazplanospararespondernabuchaaosseuscríticos.Podiafazê-losemnenhumadificuldade,poisaessaalturaeraredatorchefedosemanárioGrajdanin[OCidadão],onde,alémdeeditarartigossobreosmaisdiversostemas,publicouofamosoDiáriodeumescritoreváriasdesuasobras,entreelasoprópriocontoBobók.Contudo,emvezdeusaracríticajornalística,naqualsedestacavacomoumpolemistainflamadoecontundente,preferiudarsuarespostanocampoondenenhumdeseusoponentesedetratorestinhaamínimacondiçãodeombrearsecomele:nocampodaficção.FoiistoquedeuorigemaBobók.OclimapsicológicodesencadeadoporessacríticahostilaoromanceOs
demôniosrefletesediretamentenaestruturadeBobók,queémarcadaporumaprofundatensãotraduzidanocomportamentodoprotagonistaenosvaivénsdesualinguagem.ObservandoamaioriadasresenhasecríticasaOsdemônios,notasequenelaspredominaaideiadedesequilíbrio,delírioeloucura,emsuma,todaumaestratégiadacríticacujofimédesqualificarobraeautor,irritá-loetirá-lodoprumo,levá-loacometer“desatinos”.O
narradoraceitaodesafioemergulhanesseclima,vaidesenvolvendoseumovimentopendulardesentimentoscontraditórios,ondeaparecemelementosdialógicoscomoevasivas,cisões,intermitênciasacentuais,reticênciasetc.,numatensãodiabólicaentreaceitaçãoerejeiçãodapalavradooutro.Masistoéumaestratégiadanarrativaparaprepararacontraposiçãodoautor,queestáportrásdonarrador.SendoBobókumarespostaaessescríticos,mesmoconsiderandoo
necessáriodistanciamentoestéticoentreautoreobra,entreosfatosreaisesuaplasmaçãoficcional,verifica-senocontoumapresençamuitofortedoelementoautobiográfico,quesetraduz,paraalémdapolêmicacomoscríticos,nomodocomposicionaldeDostoiévski,noqualtodopersonagemtemplenodireitoàvoz,independentementedopesodesuafunçãonaobra.ApesardatensãoqueenvolviaDostoiévskiduranteaescritadeBobók,seuprotagonistaenarradorvaidandovozacadaumdosdetratoresdoromancistaparadepoislhescontraporseusargumentos,marcadosporgrandeelevaçãoesutisobservaçõesdeordemhistórica,éticofilosófica,estéticaepsicológica.Aênfasenotemadaloucura,umdosprincipaiselementosdesuapolêmicacomacrítica,visalivraressetemadavulgarizaçãoaqueforareduzidonosensocomumeincorporadodessamesmamaneirapelacrítica.Daísuasobservaçõessutiseprofundas,quepõemotemadaloucuraemumnovoníveldereflexãoeorelativiza.Primeirofazumareferênciaàexperiênciarussa:“Noanopassadomuitagentefoiregistradacomoloucaemnossopaís...”,eemseguidaarremata:“Defato:aotrancarooutronumacasadeloucosvocêaindanãoestáprovandosuaprópriainteligência”.Masonarradornãosedariaporsatisfeitolimitandoadiscussãodotemadaloucuraàexperiênciarussa,eresolveuniversalizá-lo,incluindonadiscussãodoisgrandespensadores.PrimeiroremeteaErasmo,paraquem“ohomemétantomaisfelizquantomaisnumerosassãoassuasmodalidadesdeloucura...eunãosaberiadizersehaverá,emtodoogênerohumano,umsóindivíduoquesejasempresábioenãotenhatambémasuamodalidade”,1ecompletaareflexãodotemacomumaalusãoaestacitaçãodeMontesquieu:“Háaquiumacasaondeinternamosloucos.Seriaentãodeseacreditarquefosseamaiordacidade...Semdúvidaosfranceses,tãodenegridosporseusvizinhos,encerramunspoucosdoidosnessacasa,paraseconvenceremdequetêmjuízoosqueestãofora”.2Aouniversalizarotemadaloucuraerelativizaracondiçãodelouco,DostoiévskiretomaaqueleespaçosemfronteirasdamemóriadoromanescoreferidoporNorthropFrye,eassimpermiteque
selanceumaponteentreBobókeOalienista,deMachadodeAssis.Neste,SimãoBacamarte,opsiquiatraquetrancoutodaapopulaçãodacidadenafamosaCasaVerde,presumindoquetodosfossemloucos,acaboutrancandoseasimesmoaoperceberqueodoidoeraele.Abordadaaquestãodaloucura,onarradorintroduznapolêmicaa
relaçãoentreinteligênciaeimbecilidade,earelativizaatalpontoqueaimbecilidadepassaaserpatrimôniopúblicoesegeneralizatantoquequaseapagaoslimitesentreessesdoisconceitos.Aoafirmarqueomaisinteligentedoshomenséaqueleque“aomenosumavezpormêschamaasimesmodeimbecil”,onarradordeBobókcriaaimagemambivalentedaimbecilidadeinteligenteeviceversa,incorporandooespíritodeSócrates,quesediziaomaissábiodoshomensporquesabiaquenadasabiaeassimcriavaaimagemambivalentedasábiaignorância.Otomjocosoquedaíseseguequebraatensãoasfixiantemotivadapelapolêmicaqueenvolveoprimeirosegmentodanarrativaeabreespaçoparasuaradicalinversãotemática.Masantesqueistoaconteça,Dostoiévskiusadeumextraordináriovirtuosismoparamudarascoordenadasformaisdanarrativaejustificarcomposicionalmenteainsólitaexperiênciaaservividaporseuheróienarrador.Esteafirmaque“começaavereouvirumascoisasestranhas”,sendoassiminseridonanarrativaaquiloqueemteorialiteráriasechamadeprecondiçãodofantástico.Ecomoquemsesentesaturadodetãoasfixiantetensão,fechaoprimeirosegmentocomaseguinteafirmação:“Precisomedistrair”.
GÊNEROEGÊNEROS
Osegundosegmentodesdobraaúltimafrasedoprimeiro,“Saíparamedistrair,acabeinumcemitério”,ecomissomudabruscaeradicalmenteoestilodonarrador,quepassadoempolado,descontínuoeziquezaguente,queatéentãomarcarasuafalainsegura,paraumadicçãoleve,bemconsentâneacomotomjocosodahistóriaqueculminaránodiálogodosmortos.Apalavracemitério,porevocaraideiademorte,poderiaparecerumcontrapontoinsuperávelàpalavradistração,queevocaalegria,farra,vida.MasDostoiévskiresolveuaquestãorecorrendoaoantiquíssimogênerodasátiramenipeia,tipodenarrativacujacriaçãoéatribuídaaofilósofocínicoMenipodeGádara(primeirametadedoséculoIIa.C.),eofeznaformadediálogodosmortos,consagradaporLucianodeSamósata(séculoIId.C.),masatualizadaàmaneirarussa.Vejamosembrevespinceladasalgunstraçoscaracterísticosdamenipeiaquederam
sustentaçãoformalaocontoBobók.Nasátiramenipeia,desaparecemtodososresquíciosdasbarreiras
hierárquica,social,etária,sexual,religiosa,ideoló-gica,nacional,linguísticaetc.;entreosparticipantesdodiá-logonãohánenhumaespéciedereverência,regradedecoro,etiqueta,medo,resultandodaíumacompletaliberdadedeexpressão,sobaqualtodasascoisassãoditascomnaturalidadeeorisodesempenhaumpapelmaisgrosseirodoquedesempenharaatéentão.Aausênciadeformasdereverênciapõeomundoliteralmentedepernasparaoar,criaaimpressãodeumcaosabsolutonaordemuniversaldascoisas.Desapareceasensaçãodeseriedadenocomportamentodaspersonagenseemsuarelaçãocomomundo;tudoéalvoderebaixamentogrosseiroeinversõesousadas,nasquaisosmomentoselevadosdomundoaparecemàsavessas,comumafacetaopostaàquelaemqueantessemanifestavam.Orisoaproximaedáotomatudo,suaambivalênciavislumbraumanovaperspectivadeconstruçãodouniverso,assumindo,emcasosparticulares,conotaçõesutópicas.Orisofamiliarizatudoenãodeixamaislugarparaaimagemelevadadopassado;todooespaçodarepresentaçãoseconstituinumazonadecontatofamiliarentreomaissagradoeomaisprofano,omaisaltoeomaisbaixo,enessazonatudopodeserfisicamentetocado.Comopredominaafamiliarização,comotudoédadonocontatoimediato,nãoháqualquerrestriçãodeespaçoetempoparaoenredo,quesedeslocacomtotalliberdadedefantasiadocéuàterra,destaaoinferno,dopresenteaopassadoetc.Oreinodealém-túmuloéoespaçodasdisputasedocongraçamentouniversal,eaíosprotagonistasdopassado,dostemposlendárioehistórico,eoscontemporâneosvivos,queemvidaeramseparadosporbarreirasdediversostipos,encontram-sedemaneirafamiliarparadebateseatécontendas.Surge,assim,ummodeloutópicodemundoideal,ondecadaindivíduoédonodesimesmoedasuapalavra,quefluilivredequalquerinjunção,umavezquenãoháleispararegerocomportamentodoshomens.Oreinodosmortoséolugaridealparaoriso,poisestálivredasleisque
regemavidaterrena,nelenãoexisteapreocupaçãocomopósmortenemcomodesconhecido,etodosseencontramforadoalcancedasrestriçõesdomundodosvivos.EmBobók,essasrestriçõessãorepresentadaspelas“cordaspodres”emque,segundoKliniêvitch,sesustentavaomundodosvivoseagora,livresdelas,osmortosqueintegramaalegreconfrariadealém-túmulopodemexperimentarumavidanovaemcondições
excepcionais,oumelhor,nas“outrasbases”aqueserefereopróprioKliniêvitch.Aítodossãoiguaisemsuacondiçãodemortoseporissonãohánenhumaformadereverência,podemrirunsdosoutros,insultar-se,desafiar-semutuamente,enfim,aliberdadeétotal.Assim,Dostoiévskirecrianumaformamuitocondensadaoautêntico
climadoreinodosmortosdeLuciano,abrindoespaçoparaoriso,queaíexerceafunçãodeelementodeflagradordaverdade,comodizKliniêvitch:“comointuitoderir,aquinãovamosmentir”.Aoatualizarotemadodiálogodosmortos,Dostoiévskimostracomoele
estáuniversalizadoeperpetuadonamemóriadogênero.Doisexemplosilustramessaafirmação.NaApocoloquintosedeSêneca,depoisdemorto,CláudioéjulgadonoOlimpoemumgrandediálogodemortosilustres,entreelesAugusto.Alitodosestãolivresdasleiserestriçõesqueregemocomportamentodoshomensemvida,aliberdadeétotal,odireitoàpalavraseestendeatodos,hádefatouma“vida”em“novasbases”,semnenhumescamoteamentodaverdadeeCláudioédesmascarado,condenadoeexpulso.OsegundoexemploestáemMemóriaspóstumasdeBrásCubas,deMachadodeAssis.Machadoatualizoudetalformaotemadamenipeiaquecriouodefuntoautor,que,“dooutroladodavida”,escreveoseguintesobreacondiçãodemorto,quecoincidecomas“novasbases”emqueseassentaa“vida”ealiberdade:
“Talvezespanteaoleitorafranquezacomquelheexponhoerealçominhamediocridade;advirtaqueafranquezaéaprimeiravirtudedeumdefunto.Navida,oolhardaopinião,ocontrastedosinteresses,alutadascobiçasobrigamagenteacalarostraposvelhos,adisfarçarosrasgõeseosremendos,anãoestenderaomundoasrevelaçõesquefazàconsciência...Mas,namorte,quediferença!quedesabafo!queliberdade!Comoagentepodesacudirforaacapa,deitaraofossoaslantejoulas,despregar-se,despintar-se,desafeitar-se,confessarlisamenteoquefoieoquedeixoudeser.Porque,emsuma,jánãohávizinhos,nemamigos,neminimigos,nemconhecidos,nemestranhos;nãoháplateia.Oolhardaopinião,esseolharagudoejudicial,perdeavirtude,logoquepisamosoterritóriodamorte;nãodigoqueelenãoseestendaparacá,enosnãoexamineejulgue;masanóséquenãosenosdádoexamenemdojulgamento.Senhoresvivos,nãohánadatãoincomensurávelcomoodesdémdosfinados.”3
FicacomoleitoradecisãodecompararessareflexãopostmortemdeBrásCubascomasfalasdeKliniêvitcheconfradesnoreinodosmortosdeBobók.Note-sequenesteúltimoesboça-seamanutençãodasformalidadesdo
relacionamentoentreaspessoasnasociedadehierarquicamenteestruturada;contudo,taisformalidadessãoapenassuperficiaisevãoserelativizandoatésereminteiramenteneutralizadasoureduzidasamerossimulacrosderelacionamentoshierárquicos.ProvadistoéareaçãoàsatitudesdogeneralPiervoiêdov,quetentamantersuadignidadedegeneralnoreinodosmortossacandodaespadaparadefendê-la;masnessemundoadignidadeécoisaabsolutamentedescartada,suasimplesideiasoainoportunaeporissoninguémlhedáomenorcréditoeeleterminaahistóriacomicamentereduzidotambémasimulacrodeantigogeneral.ÉcômicaegrotescaasanhaeróticadeAvdótiaIgnátievna,comoécômicaegrotescaasensualidadedoconselheiroTarassiêvitch;éprofundamentecômicaacenaemqueLebieziátnikovperguntapelasaúdedomortoTarassiêvitchetc.Trata-sedeelementosdogêneroqueDostoiévskimanteveessencialmenteintactos.DostoiévskiaproveitaaindaemBobókumimportanteelementofilosófico
damenipeiaedosdiálogossocráticosqueéaexperimentaçãodaideiafilosófica,dapalavraedaverdade.Essefundofilosóficoassumecaracterísticasbastanteamplas,abreumainterlocuçãocomoutrasobrasdostoievskianas(comoHumilhadoseofendidos,paracitarmosapenasuma),ecomoutrosautores,comoPlatão,porexemplo,levandoaquestãoatranscenderoslimitesdoprópriotexto,acomeçarpelaideiadarelaçãoentrevidaemorte.Ofilósofodacasa,PlatonNikoláievitch,autordevárioslivrosdefilosofia,desenvolveaideiasegundoaqualquandoeles,istoé,osmembrosdaconfrariadealém-túmulo,aindaestavamvivos,julgavam“erroneamenteamortecomomorte”.Ali,noreinodealém-túmulo,“écomoseocorpotornasseaviver”,“osrestosdevidaseconcentram[...]emalgumpontodaconsciência[...]avidacontinuacomoqueporinércia”.EssaconcepçãoémuitopróximadaquePlatãodesenvolvenoFédon,4ondeSócratesdiscuteaquestãodamortecomolibertaçãodopensamentoediz:“portodootempoemquedurarnossavida,estaremosmaispróximosdosaber[...]quandonosafastarmosomaispossíveldasociedadeemuniãocomocorpo”.TraduzidaessaafirmaçãosocráticanalinguagemdePlatonNikoláievitch,elapoderiaserassimresumida:enquantojulgarmos“erroneamenteamortecomomorte”,seráimpossívelatingiressesaber
socrático.EcomoSócratesestáinteressadonosabercomoformadechegaràverdade,temele“afirmeconvicçãodequedepoisdamorteháqualquercoisa—qualquercoisaderesto[...]”,5oumelhor,há“osrestosdevida”,comoquerPlatonNikoláievitch.Sócrates,porém,usadecritérioaxiológicoedelimitaoacessoaessesrestosdevida,argumentandoque“umaantigatradiçãodizsermuitomelhorparaosbonsdoqueparaosmaus”.Sócratesargumentaque,estandoaalmalivredaprisãodocorpo,pode“concentrar-seemsimesmaesobresimesma”,ou,diriaPlatonNikoláievitch,concentrar-se“naconsciência”,“emalgumponto”desta.Emessência,háumdiálogoentreasreflexõesdoSócratesdeFédoneasdePlatonNikoláievitch;Sócratesfaladorestodaexistênciadasalmaspuras,istoé,suaperspectivadesobrevivênciaéindefinida,aopassoquePlatonNikoláievitchfalade“doisatrêsmeses”e“...àsvezesatémeioano...”.Cabe,porém,maisumaobservação:PlatonNikoláievitchfalaquealisesenteumfedormoral,e,naperspectivasocrática,talfedorseriaumaadvertênciaparaque,nosdoisoutrêsmesesrestantes,osmortossedessemcontadavidaprovavelmentemalvivida.OpróprioLebieziátnikovqualificataisreflexõesde“delíriomístico”,Kliniêvitch,detolice.Cruzadaseexperimentadas,asverdadesfilosóficasdeSócratesePlatonNikoláievitchacabamtachadasdedelíriomísticoetoliceporaquelesqueaindacontinuampresosà“vidadocorpo”.Tambémcomofilosofia,aquestãoéticaligadaaofedormoralampliaos
horizontesdeBobók,queassimdialogacomoutrasobrasdeDostoiévski,comoHumilhadoseofendidos,romancede1861,comaconfissãoqueopríncipeValkovskifazaonarrador,afirmandoque,secadaumdenósdescrevessetodososseuspodres,“nãosóoqueeletemedizeraosseusmelhoresamigos,masinclusiveoqueàsvezestemeconfessarasimesmo”,omundoseriatomadode“tamanhofedor”quetodosnósacabaríamosmorrendosufocados.6OmesmosensualismodeKliniêvitch,AvdótiaIgnátievna,TarassiêvitcheKátichtambémaparecenessemesmoromance,ondeopríncipeValkovskidefinebemsuasaspiraçõesaristocráticasaodizerque“nomundopode-seviverdemodotãoalegreebelosemideais”,quegostade“pompa,patente,hotel,imensasapostasnobaralho”,masgosta“principalmentedemulheres,edemulheresdetodasasespécies”:“gostoatédeumalibertinagemsecreta,obscura,maisinusitadaemaisoriginal,atécomumpoucodesordidezparavariar[...]”.7Note-sequeessemesmogostopelalibertinagemsecretaeobscuraepelasordideztambéméprofessadoporoutronobre:Svidrigáilov,deCrimeecastigo.Valkovski
chocaonarrador,seuinterlocutor,contandocomamaisabsolutasem-cerimôniasegredosíntimosseusedagentedeseumundo.Contaahistóriadeumadamadaaltasociedade,umacondessadeuns27ou28anos,primeiraclasseembeleza,e“quebusto,quepostura,queandar!”.Noseumeioaquelamulhertinhaenormeimportância.“Asvelhasmaisorgulhosasedasvirtudesmaisterríveisarespeitavameadulavam...Umaúnicaobservação...ouinsinuaçãosuapodiaarruinarumareputação,taleraamaneiracomosecolocaranasociedade;atéoshomensatemiam”.8Aqueladamadetantasvirtudesealvodetantorespeitoeadmiraçãolançou-seemum“misticismocontemplativo,aliástambémserenoemajestoso...Eoqueseviu?Nãohaviaumadevassamaisdevassaqueaquelamulher,eeutiveafelicidadedemerecerinteiramentesuaconfiança.Numapalavra,eraseuamantesecretoemisterioso”.Aquelamulherera“tãovoluptuosaqueoprópriomarquêsdeSadepoderiaaprendercomela.Contudo,omaisintenso,omaispenetranteeemocionantenaqueleprazereraseumistérioeaimpudênciadoengano.Aquelazombariadetudooqueacondessapropagavanasociedadecomoomaiselevado,inacessíveleinviolável,e,porúltimo,aqueladiabólicagargalhadainterioreahumilhaçãoconscientedetudooquenãosepodehumilhar,etudoissosemlimite,levadoàqueleúltimodosúltimosgraus,àquelegrauquenemaimaginaçãomaisardentepoderiaconceber...É,elaeraoprópriodiaboemcarneeosso”,masumdiabo“invencíveldetãoencantador.Atéhojenãoconsigomelembrardelasemêxtase”.9Aimagemdacondessadevassa,cujahistóriaValkovskiacabadenarrar,temrelaçãodiretacomaimagemdeAvdótiaIgnátievna.QueméessepríncipeValkovski?Umdescendentedeumramonobre
arruinado,quecomeçasuacarreiracasando-secomafilhadeumcomercianteexclusivamentepelodote.Fazcarreiranoserviçopúblico,ocupandocargosqueusaparaenriquecimentoepassandoporcimadetudoedetodosnoafãdeacumulareampliarsuafortuna.Valkovskireúneemsioperfildadecadênciadanobrezaedocapitalismoascendente,templenaconsciênciaeorgulhodasuacondiçãodeburguês,dizque“Tudoéparamim,etodoomundofoicriadoparamim...Eusómeconsideroobrigadoquandoistometrazalgumproveito...Ameasimesmo—eisumaregraqueeureconheço.Avidaéumatransaçãocomercial...”.10Esseindividualismoexacerbadoenarcísicoéopragmatismoburguêsquevêtudocomoobjetodeproveito,delucro,eavisãodaprópriavidaàluzdessepragmatismoqueaconsiderameratransaçãocomercial.Essehíbridodearistocratadecadenteenovoburguêsvêomundocomosua
vontadeeporissodesejaqueavidasejalonga,edeclaraquequer“viverforçosamenteatéosnoventaanos”.11Diantedetudoisso,apropostadeKliniêvitch,nosentidodepassaremosrestantes“doisoutrêsmesesdamaneiramaisagradávelpossível”,semseenvergonharemdenada,“contandoemvozalta”suashistóriaseestabelecendooreinoda“maisdesavergonhadaverdade”,jáencontraantecedentesnopríncipeValkovski.Essaverdadearistocrática,experimentadaporessepríncipeepelobarãoKliniêvitché,navisãodeDostoiévski,produtodacivilizaçãodoséculoXIX.EssaexperimentaçãodaverdadepassapelopróprioKliniêvitch,que
agora,vivendoem“novasbases”noinfernocarnavalizado,livredas“cordaspodres”quesustentamasociedade“láemcima”,queraverdade,quer“quenãoseminta...”,porquenaterra“éimpossívelviverenãomentir,poisvidaementirasãosinônimos”.Aquiamentiraédiscutidanoplanoexclusivodoimaginário,poissão
personagensficcionaisqueadebatem.Éimportanteobservarque,emDostoiévski,oimaginárioeorealestãodetalformaimbricadosqueadiscussãodaverdadepassadiretamentedaspersonagensficcionaisparaopróprioDostoiévskijornalista,comoseverificanoartigo“Algumacoisasobreamentira”(“Niétchtoovraniô”),publicadoemagostode1873noGrajdanin,ondeoautorescreve:
“Umadelicadareciprocidadedamentiraquasechegaaseraprimeiracondiçãodasociedaderussa:emtodasassuasreuniões,saraus,clubes,sociedadescientíficasetc...NaRússia,averdadequasesempretemcaráterperfeitamentefantástico...estánamesaháumséculodiantedaspessoaseestasnãoatocam,mascorrematrásdoinventadojustamenteporqueconsideramaverdadecoisafantásticaeutópica...cadaumdenóscarregaconsigoumaquasenatavergonhadesimesmoedasuaprópriacara.”12
Jáqueamentiraéaprimeiracondiçãodasociedaderussaeaverdadesempretemcaráterfantástico,entãoénecessárioqueoplanodorealsejasubstituídopelofantásticoparaqueseinvertaessasituação:aprimeiracondiçãonãosejamaisamentiraesimaverdade,eosrussosnãoseenvergonhemdenada.Essapassagemdoplanorealparaofantásticoéfacilitadaporumelementonadasecundário:omundoreal,quefica“láemcima”,ésustentadopor“cordaspodres”,istodenunciaseuequilíbrioprecário,quepodeservioladoaqualquermomento,esugerequeémuitotênueafronteiraentreorealeofantástico,queconvivememplanos
paralelos.DaíserfácilaKliniêvitcheseusconfradesaristocratasaboliremastais“cordaspodres”einstituíremumasociedadeutópicaaomodoaristocrático,ondeirãopassaros“doisoutrêsmeses”quelhesrestamnamaisabsolutaliberdade,semseenvergonharemdenadanemferiremoprincípiodaverossimilhança,pois,comoreconheceopróprioDostoiévskijornalista,naRússiaaspessoascorrematrásdoinventadoemdetrimentodaverdade,queconsideramcoisautópicaefantástica.Comoaverdadequepredominanomundorealéadaaristocracia,éelatambémquevaipredominarnoreinodosmortos,mascomumadendo:éuma“verdadedesavergonhada”,emperfeitasintoniacomaverdadecínicadavidasemprincípiosacalentadapelopríncipeValkovski,nãohavendosequernecessidadedeobservânciadequalquerpreceitomoral,comoocorrenasociedadedomundorealdaqualessereinodosmortosémetonímia.Maistarde,emartigodenominado“Aummestre”(“Utchítieliu”),publicadonoGrajdaninde6deagostode1873,Dostoiévskicomentaqueascamadas“estéticaeintelectualmentedesenvolvidas”dasociedaderussasãoincomparavelmente“maisdevassasqueonossopovogrosseiro”etãoatrasado;nassociedadesmasculinasatévelhotescalvos,depoisdelautosjantaresealtasdiscussõesdeassuntosdeEstado,passamatemasestéticosquetransbordamrapidamenteem“libertinagemeobscenidade”taisqueaimaginaçãopopularjamaispoderiaconceber.Acrescentaqueissoacontececommuitafrequênciaeenvolvetodososmatizesdesse“círculodepessoastãosituadasacimadopovo”.13
OtemadaprovocaçãoeexperimentaçãodaverdadeenvolveahistóriadoconselheirodacorteTarassiêvitch,quedeudesfalquedeumdinheiropúblicodestinadoaviúvaseórfãoseteveKliniêvitchcomocúmplice.OpróprioKliniêvitchnarraofatoetambémseautodenunciacomamaiornaturalidade.Tarassiêvitchnãoseperturba,elimita-seadizerquetudoissoéinútillembrar,umavezquenavida“hátantosofrimento,tantomartírioetãopoucocastigo”.OmesmotemaenvolvetambémAvdótiaIgnátievna,queacabadenunciadacomocaloteirapelovendeiro.Aexperimentaçãodessasverdadesacabaemumautodesmascaramentodaaristocracia,pronunciadopelobarãoKliniêvitch,queseautodefinecomo“umpulhadapseudo-altasociedade”,umdos“baronetessarnentos”,filhodeum“generalotequalquer”,esimplesmenteladrãoecanalhadapiorespécie—pôsemcirculaçãocinquentamilrublosemnotasfalsasemsociedadecomZifel,aquemdenunciouparaapoderar-sedodinheirosozinho.
Contudo,háemBobókumconflitodeverdadesnoqualsechocamessaaristocraciadecadenteeoremanescentedeumaaristocraciaqueaindaguardaalgunsvestígiosdeprincípioedignidade.ÉocasodogeneralPiervoiêdov,quetambémteveosseuspecadilhosemvida,masnãoaceitaamáximadotudoépermitidocomqueKliniêvitchecompanhiadesejamgovernaroreinodosmortosnastaisnovasbases.MasogeneralPiervoiêdovestásó,seusvaloresnadasignificamnessemundosemvaloresnemprincípios,eporissoeleestáirremediavelmentecondenadoaosilêncio.Portudoisso,asociedadetumularemBobókéumametonímiadasociedadearistocráticarussa,atravésdaqualseprovocaeexperimentaaverdadedouniversoaristocrático.ArelaçãoentretextoecontextoemBobókmanifesta-seaindanotema
dasensualidade,queébemrecorrenteemváriasobrasdeDostoiévskiemereceuocapítuloespecial“Oslascivos”emseuúltimoromanceOsirmãosKaramázov.Quando,emBobók,Kliniêvitchproclama,“Todosnósvamoscontaremvozaltaasnossashistóriasjásemnosenvergonharmosdenada.Sereioprimeirodetodosacontaraminhahistória.Eu,sabei,soudossensuais”,onarradorregistra,“Ergueuseumaberrariademoradaefrenética,motimealarido,esóseouviamosguinchosimpacientesequasehistéricosdeAvdótiaIgnátievna[...]‘Ah,comoeuqueronãomeenvergonhardenada![...]apesardetudoláeumeenvergonhava,masaquiestoucomumaterrível,umaterrívelvontadedenãomeenvergonhardenada!’”.Essasanhaeróticadaheroínaéarepresentaçãoficcionalhiberbolizada
deumapráticacomumnasociedadearistocráticarussa,comooregistraopróprioDostoiévskiemartigojornalístico:
“[...]nassociedadesmasculinas,compreendendoasmaisaltasrodas,atévelhotescalvosecobertosdemedalhas[...]depoisdojantaredefartasconversassobretodososassuntosimportantes,inclusivedematériadeEstado,passamàsvezesatrataremcascatadetemasestéticos.Essestemasemcascata,porsuavez,transbordamrapidamenteemlibertinagem,emobscenidade,emdesbocamentostaisqueaimaginaçãopopularjamaispoderiaconceber.Issoacontececommuitafrequênciaentretodososmatizesdessecírculodepessoastãosituadasacimadopovo.Elesgostamjustamentedasobscenidadesedorequintedasobscenidades,enãotantodapalavraindecentequantodaideiaqueelaencerra;gostamdavilezadadegradação,gostam
exatamentedofedor...”14
Éessalibertinagempraticadanasaltasesferascomonormadevidasocialqueessesmortospretendemprolongarpelosdoisoutrêsmesesdevidaquelhesrestam,porque,aofimeaocabo,otúmulorepresentaalgumacoisa.JáDostoiévskiproduziu,metonimicamente,umarepresentaçãocomplexa
dessemundo,fazendoimperarnoreinodosmortosumclimadeabsolutaliberdadeparaqueseusrepresentantesserevelassemintegralmenteeexternassemsuaúltimaposição“emvida”naquelesdoisoutrêsmesesquelhesrestavam.Recriouessemundoapartirdaperspectivadesuafinitude,mostrando-ohumanamentepobreedesprovidodeumsentidoduradouro,ummundosemumprojetomaior,restritoapersonalidadessemalcancehistórico.Parodiouumaliteraturaeróticadebaixaqualidadeestética.Dostoiévskiatualizaformasdaantigasátiramenipeia,eestasse
concretizamnaabsolutaliberdadedepalavraeaçãoqueoautordáàquelaspersonagensaristocráticas,usandoométodosocráticodaanácrisecomomeiodeexperimentaçãomoralepsicológicaefazendo-asexternarsuasverdades,tendênciasehábitos,suaúltimaposiçãodianteda“vida”edomundo.Eoqueseverifica?Elasserevelamcapazesapenasdecontinuarporinérciaomododevidaquenasociedadearistocráticaascaracterizavacomoclasseusufruidora;agora,livresdasmínimasnormassociaisdecomportamentoquelhesimpunhamas“cordaspodres”,essesaristocratassósãocapazesdeproporousufrutodaliberdadetotal.Comoantesnuncativeramumprojetodevidarespaldadoemprincípiosevalores,agoranãoconseguemiralémdapropostadeaboliravergonhaeinstituirodesnudamentototal.Éimportanteassinalarqueapropostadedesnudamentototal,mesmo
semtersidopostaempráticanoreinodosmortosporquefoiinterrompidapeloespirrodonarrador,efetuadefatoodesnudamentodasociedadearistocráticadosvivos.AafirmaçãodofilósofoPlatonNikoláievitch,segundoquemosrestosdevidaseconcentramapenasnaconsciênciae“avidacontinuacomoqueporinércia”,mostraqueadecomposiçãodessescadáveresaristocratascomeçaraaindaemvida,pois,pelaspalavraseatitudesdeKliniêvitch,Lebieziátnikov,TarassiêvitcheAvdótiaIgnátievna,vemosqueelesdesprezavamadignidadehumanaepassavamporcimadosprincípiosquenorteiamumacomunidadehumanaguiadaporumgrauminimamenteaceitáveldecivilidadeedecência.ComoparaDostoiévskiohomemdecaídoquenãotentareabilitar-seperdeaprópriadignidade,a
condiçãohumanae,comesta,arazãodeviver,essesmortosaristocratasperderamosentidodadignidadehumanaearazãodevivere,porisso,nãopassamdecadáveresemdecomposição.Eumavezqueestãoafastadosdequaisquerprincípiosmoraiseachamdesnecessárioobservá-losaindaquesejaporpurahipocrisia,resolvemnãomentirepassarotempoquelhesrestanamaisdesavergonhadaverdade.Porissoreceberamcomentusiasmoapropostadetodostiraremaroupaenãoseenvergonharemdenada.Nestepontochocam-seduasverdades:averdadedesavergonhadadaaristocraciaeaverdadedoautor,quereageatravésdonarrador:“Não,issoeunãopossoadmitir...Perversãoemumlugarcomoeste,perversãodasúltimasesperanças...Deram-lhes,presentearam-noscomesseslampejose...”.Asreticênciasfalamporsi;écomoseoautordissesse:essesaristocratas
ganharamdepresenteessesúltimoslampejosdevidaeconsciênciacomoumaexperimentaçãoenãoforamcapazesdeproporsenãoomesmohedonismovazio,asmesmastrivialidadesquemarcaramsuaexistênciaenquantovivos.AúnicanotadestoantedesseuniversoéogeneralPiervoiêdov,queresisteeprotesta,porémseusprotestoscaemnovazioesóonarradorosouve.Asimbologiadopãoqueonarradoratiraaochão,dizendoquenãoépecadoesfarelarpãosobreaterra,ésintomáticaparaqualificaressesaristocratas.ParaBakhtin,esseepisódioevocaumasimbólicadetipocarnavalescoeestáligadoaostemasdasemeaduraedafecundação,istoé,aotemadaperpetuaçãoerenovaçãopermanentedociclovital.Orestodesanduícheláemcima,“coisabobaeinoportuna”pelolugaremqueseencontra,evocafertilidade,aopassoqueosaristocratasláembaixoevocamapenasesterilidade,aesterilidadedesuaclasse,cujavidacontinua“porinércia”,segundopalavrasdofilósofotumularPlatonNikoláievitch.Carentesdeumprincípioedevaloresquelhesjustifiquemaexistência,
desprovidosdeiniciativacriadora,essesaristocratas,quesãorepresentadosporDostoiévskiemcriseprofunda,sóconseguemreproduzirsuarotinasocial,osmesmosvelhosmodelosdecomportamentoquelhescaracterizaramaexistência,agorareduzidaadoisoutrêsmesesderestodevida.Quecontinuaporinércia.
TRADUÇÃOELINGUAGENS
Quandosetraduzficçãonãosetraduzlíngua,masaquiloqueuma
individualidadecriadora,oautor,fazdela,istoé,traduz-selinguagem,oumelhor,linguagens,àmedidaquecadafalanteésujeitodeseuprópriodiscurso,temsuaprópriadicção,éumanesgadouniversosocioculturalesualinguagemmarcasuapertençaacertosegmentosocialeexprimeseugraudeescolaridade,seunívelculturaleatésuasaúdementalouafaltadela.Portanto,numaobradearteliteráriaasmodalidadesdelinguagemvariamsegundoonúmerodefalantesesuasrespectivaspeculiaridades,ecadaumdestestemseuprópriopadrãodelinguagem.Cabeumdestaqueespecialparaonarrador,quegeralmenteéalguémqueusaopadrãoeruditoeuniversaldelinguagem,oque“facilita”avidadotradutor,quedominaanormacultadalínguaeaempregaemseuofíciotradutório.Masnemtudosãofloresnatraduçãodalinguagemdosnarradores,poishánarradoresquemesclammaisdeumouváriospadrõesdelinguagememseudiscurso,assimcomohánarradoresquesãotambémprotagonistasdaobraeaclarezaouobscuridadedesualinguagemdependedoseuestadodeespírito,deseuequilíbriooudesequilíbrio,domaioroumenorgraudetensãoqueexperimentaenquantonarra.NocasoespecíficodeDostoiévski,afluidezouasinuosidadedodiscursodonarradorestãodiretamentevinculadasaoclimapsicológicodanarrativa,aograudeproximidadeoudistânciaentrenarradorepersonagens.
SENTIRALÍNGUA
Orussocostumafalardeumacoisaquemeagradamuito:tchuvstoyaziká,quetraduzooracomosensibilidadelinguística,oracomosentiralínguaquandousadanasconversascomuns,ousentiralinguagemquandosetratadeliteratura.Sentiralínguaoulinguagemdooutroésentirooutro,entraremalgumaempatia(ouantipatia)comeleparatentarcaptarasnuancesdesuapersonalidade.Quandotraduzimosliteraturaentramosematividadeestéticaporquetraduzimosaartedapalavra,eessapalavraédooutro.Atraduçãoéumacompenetraçãonaalmaenalinguagemdooutro,cujoestadod’almaotradutorprecisavivenciar,colocando-senolugardeleparasenti-loaténosmínimosgestos.Então,sentiralínguadeondesetraduzécompenetrar-setotalmente,
embeber-sedela,vivenciarsuasonoridade,seuritmo,pensarcomseusmúltiplosrecursosmorfológicosesintáticos,captarevivenciaraafetividadeetambémahostilidadequeemanamdasfalasdaspersonagens.Emsuma,entranhar-senalínguadepartida,encarnar-se,“despersonalizar-se”temporariamentenela,diluir-senadicçãodosseus
falanteseassumirseugestualcomoumatorquerepresentafalasalheias.Masparaqueatraduçãoaconteça,eucomotradutornãopossopermaneceremestadodeeterna“despersonalização”nooutro,precisosairdessacompenetraçãopararetornaramimmesmo,comosugereBakhtin,paramereencarnaremmeudiscursonaminhalíngua,emconsonânciacomseusmúltiplosvalores,paraproduzirumatraduçãoembomportuguês,comasformasdeexpressãotípicasdonossomodobrasileirodefalareescrever.
PSIQUISMOERITMO
Afaladecadaindivíduotraduzoritmodefuncionamentodoseupsiquismo,suafluênciaouperturbaçãomanifestam-seemsuasintaxe,oracoerenteeharmoniosa,oraincoerenteedescontínua,dependendodoestadodesaúdementaloudeespíritodecadafalante.IvanIvánitch,narradordeBobók,acusadodefaltadesobriedadeedeloucura,passatodooprimeirosegmentodanarrativasedebatendoentreessasacusações,procurandoexemplosquelhepermitamrefutá-las.Mesclandomomentosdetranquilidadeapenasrazoávelcomumreceioqueparececongênito(“souumhomemtímido”),articulaumdiscursoalicerçadonumasintaxedescontínua,porvezesatabalhoadaetensa,emumritmoquetraduzoestadodoseupsiquismoabaladopelasinsinuaçõesdebêbadopermanenteelouco,desuapsiqueangustiada.Bobókéumanarrativamarcadaporumaexperiênciadeprocedimento
deconstruçãodasfalasdaspersonagensdiretamentevinculadasaoseuestadopsíquico,procedimentoesteiniciadonaliteraturarussaporGógolcomAkákiAkákievitch,protagonistadeOcapote,ePopríschin,protagonistaenarradordoDiáriodeumlouco.DostoiévskiaprofundoueradicalizoutalprocedimentocomosenhorGolyádkin,personagemcentralenarradordeOduplo,eomantevenorestantedesuaobra.NocasodeBobókesseprocedimentoéidêntico.Onarrador,autodefinindo-secomo“umhomemtímido”,resistecomcertahesitaçãoàspalavrascomqueooutrooespreita,avaliaejulga,eessahesitaçãoprovocaumatensãonasintaxe,queserefletenosziguezaguesenaformasinuosadesualinguagem,naobnubilaçãodosentidodealgumasdesuasfrases,nosretardamentosdasprópriaspalavras.Contudo,apenetraçãoporpartedotradutornesseestadodelinguagemnãosedeudechofre,logonoiníciodoprocessodatradução.Elaocorreudeformagradual,noárduoprocessodeanálise,atravésdoqualfuipenetrandonoâmagododiscursodostoievskianoe
perscrutandoosseussentidos,e,àmedidaquemeaprofundavanaanáliseepercebiaossentidosdafaladonarrador,compreendiamelhorossentidosdotextoeaíintroduziaasmodificaçõesqueoprocessodeinterpretaçãomeimpunha.Assim,fuiempreendendoumaretraduçãodotextoconcomitanteaoprocessodaanálisedodiscursoaliveiculado;essaanálisefoimerevelandoosentidodealgumaspassagensparaoqualeunãoeuhaviaestadosuficientementeatentonoiníciodatraduçãoequesóconseguipercebernaarticulaçãoàsvezescaóticadaforma.Istomelevouacometeralguns“pecadilhos”contraachamadaboanormadalíngua,comonoempregocontíguodasduasadversativasmasenãoobstantenapassagem“mas,nãoobstante,atédeloucomefizeram”,queobedecerigorosamenteaoestadopsicológicodonarrador-protagonista.Usaraquiorigordalíngua,evitandoaduplaadversativa,implicarianãoentenderomovimentopendularemquesedebateoprotagonistaentrearesistênciaeaaceitaçãodapalavraqualificativaejudicativadooutro,oumelhor,significarianãoentendereanularoprocessodialógico.EmsuatraduçãodeOsenhorProkhartchin(1846),BorisSchnaidermanobservaqueos“polimentosdeestilo”seriamcatastróficosparaessaobradas“maisestranhas”deDostoiévski,equeoembelezamentoiriaferir“ocontonoqueeletemdemaiscaracterístico”.Eacrescentaque“aprópriadesarticulaçãodalinguagem[...]coincidecomadesarticulaçãodomundodeProkhartchin”,15istoé,aformadeserdapersonagemestáemhomologiacomaformadesuamanifestação,harmonizandoosplanosdoconteúdoedaexpressão.ÉoqueocorrecomoprotagonistaIvanIvánitchemBobók:aarticulaçãosinuosadesualinguagemestáemhomologiacomomodosinuosocomoeleresisteàpalavradooutro.UmdosexemplosdistoestáilustradonapassagememqueIvanIvánitchreproduzaspalavrascomqueumcríticocomparaDostoiévskiaumlouco,esaicomumatiradaemquesecombinamaceitaçãoeresistência:“Válá,mas,nãoobstante,logoassim,tãodiretonaimprensa?”.Nestapassagemficamclarasasvacilaçõeseevasivasdofalante,quese
debateentreaceitarodiscursoqualificativodooutroeoferecer-lhealgumtipoderesistência.Daíaformasinuosadasuafala:primeirousaopronomepessoalneutrodeterceirapessoaonó,dandoaideiadeabrangênciadetodaaqualificaçãoanterioraeleaplicada,ecombinaessepronomecomapartículademotivaçãoeestímulodalínguarussapust,criandoonúcleooracionalsemverboOnópust,dotadodeumaexpressivagamadesentidos,equetraduzimosporválá,produzindoaimpressãode
aceitaçãoresignadadetodaaafirmaçãoanterior.Masessaexpressãoélogoseguidadaconjunçãoadversativanô,que,emsi,jáquebraaexpectativadessaaceitaçãoresignada;essaadversativavaicombinar-secomapartículaexpletivaviêdcujafunção,aqui,éreforçaraexpressividadedaenunciaçãoeinserirnelaoembriãodaideiaderejeiçãoquesecompletacomainserçãodapartículadeinterrogaçãoemodokak,conjugadacomaadversativajé,formandoaexpressãoviêdkakjé,quetraduzimosporassim.Segue-semaisumaadversativa,odnáko,edessemodosecompletaaprimeirapartedesselabirintoemqueseconstituiafaladoprotagonista:Onópust,nôviêdkakjé,odnáko,ondesecombinamumpronomepessoalneutro,umapartículademotivaçãoeestímulo,umapartículaexpletivaetrêsconjunçõesadversativas,oquecaracterizaomovimentodeaceitaçãoeresistênciadoprotagonistaàfaladooutro,movimentoessetraduzidonasinuosidadedoseudiscurso,quevaidesaguarnaexpressãoquesimulaperplexidadeerejeição:“tãodiretonaimprensa?”.Emminhaprimeiratraduçãoapassagemcompletasaíaassim:“Válá,
mas,comoéquepode,irlogometendonaimprensa?”.Nãosetratavadetraduçãomasdeinterpretação,oque,evidentemente,nãoéamesmacoisa:mantinha-seosentidogeral,masseaboliaoestadopsicológicodoprotagonista,traduzidonasinuosidadedaarticulaçãodesuafala,quenãoadmiteamaneiramento.Depoisfizumasegundatradução:“Válá,masolheojeito,eaindaassimtãodiretonaimprensa?”.Estajáestavamaispróximadoestadopsicológicodoprotagonista,porémeraclarademaisparatalestado.Enquantoeuanalisavaotextoetentavaváriasoutrassaídas,chegueia:“Válá,mas,nãoobstante,logoassim,tãodiretonaimprensa?”.Estameagradoubastante,jánãotraziaverbo,eacabeioptandoporela,porqueaíacontiguidadede“nãoobstante”,“logoassim”e“tãodireto”medavaumasensaçãomaistosca,próximadorealestadopsicológicodeIvanIvánitch.Oritmodashesitaçõesdonarradornoprimeirosegmentedanarrativa
ditouoprocessoderecriaçãodesualinguagemtensa.Masnodiálogodosmortosnãohámaistensão,osdiscursosaliproferidos,exceçãofeitaapenasàfaladogeneralPiervoiêdov,sãodiscursosde“pessoas”livresdasamarrasdavidaterrestre;nãohámaisumalinguagem,comonoprimeirosegmentodanarrativa,maslinguagens—falasquecaracterizamacondiçãosocial,culturalesexualdecadaex-vivo.Emqualquertraduçãoéessencialqueotradutorpenetrenos
subterrâneosdalinguagem;nocasoespecíficodeDostoiévski,éimprescindívelqueprocure,comojáescrevi,sentiralíngua,cadapalavra,auscultarasnuancesdecadavozqueparticipadoprocessodialógico.Sãocoisasmuitodifíceis,masumlongoconvíviocomalíngua—e,especialmente,comalinguagemdeumautordacomplexidadedeDostoiévski—permiteaotradutorumafamiliarizaçãocrescentecomsuariquezaeabrecaminhoparaqueelepercebaotratamentoqueessariquezarecebenele,Dostoiévski,eemoutrosautores.Dostoiévskiéummestreinsuperávelnoempregodepartículasdalínguarussa,queaparentementenãodizemnadamasque,sobsuabatuta,revivificamsentidosquepareciamadormecidosnossubterrâneosdalíngua.Oempregodetaispartículasmuitasvezescriaaimpressãodealgomalescrito,dedisplicênciadoautor,epodedesorientarsobremaneiraotradutor.Daíaimportânciadesenti-las,interpretá-las,poissóassimpoderáatinarcomafinalidadedoescritoraoempregá-las.FoioquetenteifazercomapresentetraduçãodeBobók.Atraduçãoéumprocessocontínuoquepareceterminarquandoo
tradutorpõepontofinalemseutrabalho,masqueretornasemprequeeleorelê,poisodistanciamentoentreoatodatraduçãoeoatodesualeiturajáemlivropeloprópriotradutordespertaaspectosdasuasensibilidadequepareciamadormecidosduranteatradução.Alémdomais,assimcomooautor,tambémotradutorvisaaumleitor,cujasensibilidadeeexperiênciasãofundamentaisparaarecepçãodatraduçãoeseuposterioraperfeiçoamento,oquenossugereaideiadequeotextotraduzidoéumtextoinacabado,abertoamodificações.Atraduçãodeficçãoéumaproduçãopoética,cujoresultadofinaléareproduçãodaobraemsuaunidadeabertaque,porserumaunidadepoética,comoafirmaMeschonnic,“édaordemdocontínuopeloritmoepelaprosódia”.16
Daíaimportânciadeseconsideraratraduçãocomoumprocessoeaobratraduzidacomoumaobraaberta.
1ErasmodeRoterdã,Elogiodaloucura,traduçãodePauloM.Oliveira,ColeçãoOsPensadores,vol.X,SãoPaulo,AbrilCultural,1972,pp.68-9.2Montesquieu,Cartaspersas,traduçãodeRenatoJanineRibeiro,SãoPaulo,Pauliceia,1991,p.
137.3MachadodeAssis,MemóriaspóstumasdeBrásCubas,SãoPaulo,W.M.Jackson,1952,p.101.4Platão,Fédon,traduçãodeJorgePaleikateJoãoCruzCosta,ColeçãoOsPensadores,vol.II,São
Paulo,AbrilCultural,1972,p.74.
5Idem,p.70.6FiódorDostoiévski,Humilhadoseofendidos,emObrascompletasemtrintatomos,Leningrado,Ed.
Naúka,1972,p.361.7Idem,p.365.8Idem,ibidem.9Idem,pp.364-5.10Idem,p.365.11Idem,p.366.12FiódorDostoiévski,“Algosobreamentira”,emObrascompletasemtrintatomos,op.cit.,tomo
XXI,p.119.13FiódorDostoiévski,“Aummestre”,emObrascompletasemtrintatomos,op.cit.,tomoXXI,p.
116.14Idem,ibidem.15BorisSchnaiderman,Dostoiévski:prosapoesia,SãoPaulo,Perspectiva,1982,pp.58-9.16HenriMeschonnic,Poéticadotraduzir,traduçãodeJerusaPiresFerreiraeSuelyFenerich,São
Paulo,Perspectiva,2010,p.xxxi.
SOBREBOBÓK
MikhailBakhtin1
ÉpoucoprovávelqueerremossedissermosqueBobóké,porsuaprofundidadeeousadia,umadasmaisgrandiosasmenipeiasemtodaaliteraturauniversal.Masaquinãonosdeteremosnaprofundidadedoseuconteúdo,poisestamosinteressadosnasparticularidadesdogênerodessaobra.Sãocaracterísticos,acimadetudo,aimagemdonarradoreotomdasua
narração.Onarrador—“umapessoa”2—encontra-senolimiardaloucura(distúrbiomental).Aforaisso,porém,elenãoéumhomemcomotodos,istoé,quesedesvioudanormageral,docursonormaldavida,oumelhor,temosdiantedenósumanovavariedadedo“homemdosubsolo”.Seutomévacilante,ambíguo,comambivalênciaabafadaeelementosdebufonariasatânica(comonosdiabosdosmistérios).Apesardaformaexteriordasfrases“truncadas”curtasecategóricas,eleocultasuaúltimapalavra,esquiva-sedela.Elemesmocitaacaracterizaçãodoseuestilo,feitaporumamigo:
“Teuestilo,dizele,estámudando,estátruncado.Truncas,truncas,esaiumaoraçãointercalada,apósaintercaladavemoutraintercalada,depoismaisalgumacoisaentreparênteses,edepoistornasatruncar,atruncar...”
Seudiscursoéinteriormentedialogadoetodoimpregnadodepolêmica.AnarraçãocomeçadiretamentecomumapolêmicacomumtaldeSemiónArdaliônovitch,queoacusadeembriaguez.Elepolemizacomredatoresquenãoeditamassuasobras(eleéumescritornãoreconhecido),comopúblicocontemporâneo,éincapazdeentenderohumor,polemizaessencialmentecomtodososseuscontemporâneos.Emseguida,quandosedesenvolveaaçãoprincipal,polemizaindignadocomos“mortoscontemporâneos”.Sãoessesoestiloliterárioeotomdoconto,dialogadoseambíguos,típicosdamenipeia.Noiníciodocontoháumjuízosobreumtematípicodamenipeia
carnavalizada,istoé,ojuízoacercadarelatividadeedaambivalênciadarazãoedaloucura,dainteligênciaedatolice.Emseguida,vemadescrição
deumcemitérioedecerimôniasfúnebres.Todaessadescriçãoestáimpregnadadeumaatitudefamiliareprofana
emfacedocemitério,dascerimôniasfúnebres,docleronecropolense,dosmortosedopróprio“mistériodamorte”.Todaadescriçãoseestruturasobrecombinaçõesdeoxímorosemésalliancescarnavalescas,éimpregnadadedescidaseaterrissagens,desimbólicacarnavalescae,aomesmotempo,deumnaturalismogrosseiro.Eisalgunstrechostípicos:“Saíparamedivertir,acabeinumenterro[...]Fazunsvinteecincoanos,acho,queeunãovouaumcemitério;sómefaltavaumlugarzinhoassim!Emprimeirolugar,oespírito.Comunsquinzemortosfuilogodandodecara.Mortalhasdetodosospreços;haviaatédoiscarrosfunerários:odeumgeneraleoutrodealgumagrã-fina.Muitascarastristes,etambémmuitadorfingida,emuitaalegriafranca.Opároconãopodesequeixar:sãorendas.Masespíritoéespírito...Eunãoqueriaseropárocodaqui.Olhoparaascarasdosmortoscomcautela,desconfiadodaminhaimpressionabilidade.Háexpressõesamenas,comohádesagradáveis.Ossorrisossãogeralmentemaus,unsatémuito[...][...]Enquantotranscorriaamissa,saíparadarumavoltinhaalémdosportões.Fuilogoencontrandoumhospício,eumpoucoadianteumrestaurante.Eumrestaurantezinhomaisoumenos:tinhadetudoeatésalgadinhos.Haviamuitagente,inclusiveacompanhantesdoenterro.Noteimuitaalegriaeanimaçãosincera.Comiunssalgadinhosetomeiumtrago.”
Grifamososmatizesmaisacentuadosdafamiliarizaçãoedaprofanação,dascombinaçõesdeoxímoros,dasmésalliances,aterrissagens,donaturalismoedasimbólica.Vemosqueotextoestásaturadíssimodesseselementos,temosdiantedenósumprotótipobastantecondensadodeestilodamenipeiacarnavalizada.Lembremosovalorsimbólicodacombinaçãoambivalente:morte,riso(nestecaso,alegria),banquete(aqui“comiunssalgadinhosetomeiumtrago”).Segue-seumadivagaçãobreveevacilantedonarrador,que,sentado
sobrealápide,refleteacercadotemadoespantoedorespeito,aosquaisoscontemporâneosrenunciaram.Essaconsideraçãoéimportanteparacompreenderaconcepçãodoautor.Emseguida,vemumdetalhesimultaneamentenaturalistaesimbólico:
“Sobrealápide,aomeulado,haviaumrestodesanduíche:coisatolaeinoportuna.Derrubei-osobreaterra,poisnãoerapãomasapenassanduíche.Aliás,parecequenãoépecadoesfarelarpãosobreaterra;sobreoassoalhoéqueépecado.ProcurarinformaçõesnoalmanaquedeSuvórin.”
Odetalheestritamentenaturalistaeprofânico—umrestodesanduíchesobrealápide—dámotivoparaevocarasimbólicadetipocarnavalesco:permite-seesfarelarpãosobreaterra—Trata-sedesemeadura,defecundação—,masnãosepermitesobreoassoalho—seioestéril.Segue-seodesenvolvimentodoenredofantástico,quecriaumaanácrise
deumaexpressividadeexcepcional(Dostoiévskiéumgrandemestredaanácrise).Onarradorouveaconversadosmortosqueestãodebaixodochão.Ocorrequeassuasvidasaindacontinuamporalgumtemponostúmulos.OfalecidofilósofoPlatonNikoláievitch(alusãoao“diálogosocrático”)dáaofenômenoaseguinteexplicação:
“Ele[PlatonNikoláievitch]explicatudoissocomofatomaissimples,ouseja,dizendoqueláemcima,quandoaindaestávamosvivos,julgávamoserroneamenteamortecomomorte.Écomoseaquiocorposereanimasse,osrestosdevidaseconcentram,masapenasnaconsciência...Istonãotenhocomolheexpressar—éavidaquecontinuacomoqueporinércia.Tudoconcentrado,segundoele,emalgumpontodaconsciência,eaindaduradedoisatrêsmeses...àsvezesatémeioano...Há,porexemplo,umfulanoqueaquiquasejásedecompôsinteiramente,masfazumasseissemanasdevezemquandoaindabalbuciaderepenteumapalavrinha,claroquesemsentido,sobreumtalbobók:‘Bobók,bobók’;logo,aténeleaindapersisteumacentelhainvisíveldevida...”
Cria-se,comisso,umasituaçãoexcepcional:aúltimavidadaconsciência(doisoutrêsmesesatéosonocompleto),libertadetodasascondições,situações,obrigaçõeseleisdavidacomumé,porassimdizer,umavidaforadavida.Comoseráaproveitadapelos“mortoscontemporâneos”?Aanácrise,queprovocaaconsciênciadosmortos,manifestasecomliberdadeabsoluta,nãorestritaanada.Eelesserevelam.Descortina-seotípicoinfernocarnavalizadodasmenipeias:uma
multidãobastantevariegadademortos,quenãoconseguemlibertar-seimediatamentedassuasposiçõeshierárquicaserelaçõesterrenas,conflitoscômicosquesurgemnessabase,blasfêmiaseescândalos.Do
outrolado,asliberdadesdetipocarnavalesco,aconsciênciadatotalirresponsabilidade,osinceroerotismosepulcral,orisonostúmulos(“comumagargalhadaagradável,começouaagitar-seocadáverdogeneral”)etc.Oacentuadotomcarnavalescodessaparadoxal“vidaforadavida”édadodesdeoiníciopelojogodecartasnotúmulosobreoqualestásentadoonarrador(evidentemente,éumjogonovazio,“dememória”).Tudoissosãotraçostípicosdogênero.O“rei”dessecarnavaldosmortoséum“pulhadapseudo-alta
sociedade”(comoelemesmoseautocaracteriza),obarãoKliniêvitch.Citemosassuaspalavras,queenfocamaanácriseeoseuemprego.FugindoàsinterpretaçõesmoraisdofilósofoPlatonNikoláievitch(expostasporLebieziátnikov),eledeclara:
“Basta,eestoucertodequetodoorestoéabsurdo.Oprincipalsãoosdoisoutrêsmesesdevidae,nofimdascontas,bobók.Sugiroquetodospassemosessesdoismesesdamaneiramaisagradávelpossível,eparatantotodosnosorganizemosemoutrasbases.Senhores!proponhoquenãonosenvergonhemosdenada!”
Encontrandoapoiogeraldosmortos,eleaprofundamaisasuaideia:“Masporenquantoeuqueroquenãoseminta.Ésóoqueeuquero,porqueistoéoessencial.NaTerraéimpossívelviverenãomentir,poisvidaementirasãosinônimos;mas,comointuitoderir,aquinãovamosmentir.Aosdiabos,ora,poisotúmulosignificaalgumacoisa!Todosnósvamoscontaremvozaltaasnossashistóriasjásemnosenvergonharmosdenada.Sereioprimeirodetodosacontaraminhahistória.Eu,saibam,soudossensuais.Láemcimatudoissoestavapresoporcordaspodres.Abaixoascordas,evivaessesdoismesesnamaisdesavergonhadaverdade!Tiremosaroupa,dispamo-nos!—dispamo-nos,dispamo-nos!—gritaramemcoro.”
Odiálogodosmortosfoiinesperadamenteinterrompidoàmaneiracarnavalesca:
“Eeisquederepenteespirrei.Aconteceudeformasúbitaeinvoluntária,masoefeitofoisurpreendente:tudoficouemsilêncio,exatamenteco-monocemitério,desapareceucomumsonho.Fez-seumsilêncioverdadeiramentesepulcral.”
Citaremosmaisumaapreciaçãoconclusivadonarrador,interessantepelotom:
“Não,issoeunãopossoadmitir;não,efetivamentenão!Obobóknãomeperturba(vejamemqueacaboudandoessetalbobók!).Perversãoemumlugarcomoeste,perversãodasúltimasesperanças,perversãodecadáveresflácidoseemdecomposição,sempouparsequerosúltimoslampejosdeconsciência!Deram-lhes,presentearam-noscomesseslampejose...Eomaisgrave,omaisgrave:numlugarcomoeste!Não,istoeunãopossoadmitir...”
Aquiirrompemnodiscursodonarradorpalavraseentonaçõesquasegenuínasdeoutravozinteiramentediferente,ouseja,davozdoautor,irrompemmasnomesmoinstanteinterrompem-senaexpressãoreticente“e...”.Ocontotemumfinaljornalístico-folhetinístico:“VoulevaraoGrajdanin;látambémreproduziramoretratodeumredator-chefe.Podeserquepubliquem.”
ÉessaamenipeiaquaseclássicadeDostoiévski.Aquiogênerosemantémcomumaintegridadesurpreendentementeprofunda.Pode-seatédizer,nessecaso,queogênerodamenipeiarevelaassuasmelhorespotencialidades,realizaassuaspossibilidadesmáximas.Oqueissomenosrepresentaé,evidentemente,aestilizaçãodeumgêneromorto.Aocontrário,nessaobradeDostoiévskiogênerodamenipeiacontinuaaviversuaplenavidadegênero,poisoviverdogêneroconsisteemrenascererenovar-sepermanentementeemobrasoriginais.Evidentemente,oBobókdeDostoiévskiéprofundamenteoriginal.Dostoiévskitampoucoescreveuparódiasdogênero,eleoempregoucomfunçãodireta.Cabeobservar,entretanto,queamenipeia—inclusiveaantiquíssimaeaantiga—sempreparodiaasimesma.Essaparódiaéumtraçodogênerodamenipeia.Oelementodaautoparódiaconstituiumadascausasdaexcepcionalvitalidadedessegênero.Aquidevemosabordaraquestãodaspossíveisfontesdogêneroem
Dostoiévski.Aessênciadecadagênerorealiza-seerevela-seemtodaasuaplenitudeapenasnaquelassuasdiversasvariaçõesqueseformamnoprocessodeevoluçãohistóricadeumdadogênero.Quantomaisplenoforoacessodoartistaatodasessasvariações,tantomaisricoeflexívelseráodomínioqueelemanterásobrealinguagemdeumdadogênero(poisalinguagemdeumgêneroéconcretaehistórica).Dostoiévskitinhaumacompreensãomuitoprecisaeagudadetodasas
possibilidadesdogênerodamenipeia,eradotadodeumsensoexcepcionalmenteprofundoediversificadodessegênero.Examinartodosospossíveiscontatosdoescritorcomasdiversasvariedadesdemenipeiaseriamuitoimportante,querparaumacompreensãomaisprofundadaspeculiaridadesdegênerodesuaobra,querparaumaconcepçãomaiscompletadaevoluçãodatradiçãodogêneropropriamenteditoqueoantecedeu.Éatravésdaliteraturacristãantiga(istoé,atravésdoEvangelho,do
Apocalipse,dasVidasdossantoseoutras)queDostoiévskiestávinculadodamaneiramaisdiretaeestreitaàsmodalidadesdamenipeiaantiga.Ele,porém,conheceuindiscutivelmenteosprotótiposclássicosdamenipeiaantiga.Ébastanteprovávelquetenhaconhecidoasme-nipeiasdeLuciano,MenipooudanecromanciaouosDiálogosdosmortos(grupodepequenassátirasdialogadas).Nessasobras,aparecemdiversostiposdecomportamentodosmortosnoreinodealém-túmulo,ouseja,noinfernocarnavalizado.ÉnecessáriodizerqueLuciano—oVoltairedaAntiguidade—foiamplamenteconhecidonaRússiaapartirdoséculoXVII3esuscitouinúmerasimitações,tendoasituação-gênerodo“encontronomundodealém-túmulo”seconvertidonumaconstantenaliteraturaeatéemexercíciosescolares.ÉprovávelqueDostoiévskiconhecessetambémamenipeiadeSêneca,
Apocoloquintose...,poisencontramosneletrêsmomentosconsonantescomessasátira:1)épossívelquea“alegriasincera”dosacompanhantesdoenterroemDostoiévskitenhasidoinspiradaporumepisódiodeSêneca:aopassarpelaTerraemvoodoOlimpoparaoinferno,CláudioencontranaTerraseusprópriosfuneraiseseconvencedequetodososacompanhantesdoenterroestãomuitoalegres(àexceçãodoschicaneiros);2)ojogodecartasnovazio,“dememória”talvezestejainspiradonojogodedadosdeCláudionoinferno,estetambémnovazio(osdadosrolamantesdeseremlançados);3)adescoroaçãonaturalistadamorteemDostoiévskilembraarepresentaçãonaturalistaaindamaisgrosseiradamortedeCláudio,quemorre(entregaaalma)nomomentoemqueestáevacuando.4
NãorestadúvidadequeDostoiévskiconheciamaisoumenosdepertooutrasobrasantigasdessegênero,comoSatiricon,Oasnodeouroeoutros.5
Podemtersidoinúmeraseheterogêneasasfonteseuropeiasdogênero
emDostoiévski,asquaislherevelaramariquezaeadiversidadedamenipeia.Eleconhecia,provavelmente,amenipeiapolêmico-literáriadeBoileau,Dialoguesurleshérosdesromans,comotalvezconhecesseasátirapolêmico-literáriadeGoethe,Deuses,heróiseWieland.Conhecia,tudoindica,os“diálogosdosmortos”deFéneloneFontenelle(Dostoiévskifoiumexcelenteconhecedordeliteraturafrancesa).Todasessassátirasestãorelacionadascomarepresentaçãodoreinodealém-túmulo,etodasconservamexteriormenteaformaantiga(predominantementealuciânica)dessegênero.ParacompreenderastradiçõesdogêneroemDostoiévski,são
essencialmenteimportantesasmenipeiasdeDiderot,livrespelaformaexterna,porémtípicaspelaessênciadogênero.MasotomeoestilodanarraçãoemDiderot(àsvezesnoespíritodaliteraturaeróticadoséculoXVII)diferemdeDostoiévski,evidentemente.EmOsobrinhodeRameau(emessência,tambémumamenipeia,massemoelementofantástico),omotivodasconfissõesextremamentefrancas,semqualquerindíciodearrependimento,estáemconsonânciacomBobók.AprópriaimagemdosobrinhodeRameau,um“tipofrancamenteferoz”que,aexemplodeKliniêvitch,consideraamoralvigente“cordaspodres”esóreconhecea“verdadedesavergonhada”,éconsonanteàimagemdeKliniêvitch.Dostoiévskiconheceuoutravariedadedemenipeialivreatravésdos
ContosfilosóficosdeVoltaire.Essetipodemenipeiafoimuitopróximodealgunsaspectosdaobradostoievskiana(DostoiévskichegouinclusiveaesboçaraideiadeescreverumCândidorusso).CabemencionaraenormeimportânciaquetinhaparaDostoiévskia
culturadialógicadeVoltaireeDiderot,queremontaao“diálogosocrático”,àmenipeiaantigae,emparte,àsdiatribeseaosolilóquio.Outrotipodemenipeialivre,comelementofantásticoefabular,esteve
representadonaobradeHoffmann,autorqueinfluenciouconsideravelmenteoDostoiévskijovem.ChamaramaatençãodeDostoiévskioscontosdeEdgarAllanPoe,que,pelaessência,seaproximamdamenipeia.Emsuaobservação,“TrêscontosdeEdgarPoe”,Dostoiévskifrisoucommuitaprecisãoasparticularidadesdesseescritormuitoafinsàssuas:“Eletomaquasesemprearealidademaisexcepcional,colocaseuheróinamaisexcepcionalsituaçãoexternaoupsicológica;equeforteperspicácia,queimpressionantefidelidadeusaparanarraroestadodeespíritodessapessoa!”.6
Éverdadequenessadefiniçãoestálançadoapenasummomentodamenipeia,ouseja,acriaçãodeumaexcepcionalsituaçãodeenredo,istoé,daanácriseprovocante,efoiprecisamenteessemomentoqueDostoiévskiapresentoupermanentementecomooprincipaltraçocaracterísticodoseuprópriométodocriativo.Nossolevantamento(nemdelongecompleto)dasfontesdogêneroem
Dostoiévskimostraqueeleconheceuoupodeterconhecidodiversasvariaçõesdamenipeia,gêneromuitoplástico,ricoempossibilidades,excepcionalmenteadaptadoparapenetrarnas“profundezasdaalmahumana”eparaumacolocaçãoargutaeclarados“últimosproblemas”.OcontoBobókpodeservirdebaseparamostraroquantoaessênciado
gênerodamenipeiacorrespondeatodasasaspiraçõescriativasdeDostoiévski.Quantoaogênero,essecontoéumadasmaioresobras-chavedoacervodostoievskiano.Prestemosatenção,antesdetudo,aoseguinte.OpequenocontoBobók
—umdosenredosdecontomaisbrevesdeDostoiévski—équaseummicrocosmodetodaasuaobra.Muitasideias,temaseimagensdesuaobra,todossumamenteimportantes,manifestam-seaquiemformaextremamenteargutaeclara:aideiadequenãoexistindoDeusnemaimortalidadedaalma“tudoépermitido”(umdosprincipaismodelosdeideiaemtodaasuaobra);otema,vinculadoaessaideia,daconfissãosemarrependimentoeda“verdadedesavergonhada”,presenteemtodaaobradeDostoiévski,acomeçarporMemóriasdosubsolo;otemadosúltimoslampejosdeconsciência(relacionado,emoutrasobras,aostemasdapenademorteedosuicídio);otemadaconsciência,situadaàbeiradaloucura;otemadavoluptuosidade,quepenetrounasesferassuperioresdaconsciênciaedasideias;otemadaabsoluta“inconveniência”eda“fealdade”davidadesvinculadadasraízespopularesedafépopularetc.Todosessestemaseideiasforaminseridos,emformacondensadaeclara,noslimites,pareceria,estreitosdaqueleconto.Asprópriasimagensdeterminantesdoconto(poucas,diga-sede
passagem)estãoemconsonânciacomoutrasimagensdostoievskianas:emformasimplisticamenteaguçada,KliniêvitchrepeteopríncipeValkovski,SvidrigáiloveFiódorPávlovitch.7Onarrador(“umapessoa”)éumavariantedo“homemdosubsolo”.Emcertosentido,conhecemosogeneralPiervoiêdov,8ovelhodignatáriovoluptuoso,queesbanjouumaimensaquantiadedinheiropúblicodestinadoàs“viúvaseaosórfãos”,obajuladorLebieziátnikoveoengenheiroprogressista,quedeseja“organizaravida
daquiembasesracionais”.Entreosmortosocupaposiçãoespecialo“homemsimples”(ovendeiro
abstrato).Eleéoúnicoquemanteveligaçãocomopovoesuafé,porissocomporta-secomdecêncianotúmulo,aceitaamortecomoummistério,oqueocorreaoredor(entremortosdepravados)interpretacomo“peregrinaçãodaalmaporentretormentos”,aguardaansiosamentesua“missadetrintadias”(“Seriabomqueanossamissadetrintadiasviesseomaisrápido:ouvirvozeschorosas,oprantodamulhereochorobaixinhodosfilhos!...”).Aboaaparênciaeoestilovenerabundododiscursodessehomemsimples,contrapostosàinconveniênciaeaocinismofamiliardetodososoutros(tantodosvivosquantodosmortos),antecipamparcialmenteafuturaimagemdoperegrinoMakarDolgoruki,9emboraaqui,nascondiçõesdamenipeia,a“boaaparência”dohomemsimplessejaapresentadacomumlevematizdecomicidadeedeumacertainconveniência.Alémdisso,oinfernocarnavalizadodeBobókestáinternamenteem
profundaconsonânciacomascenasdeescândalosecatástrofes,tãoessencialmenteimportantesemtodasasobrasdeDostoiévski.Essascenas,queocorremhabitualmentenossalões,são,evidentemente,bemmaiscomplexas,policrômicasecompletasqueoscontrastescarnavalescos,asmarcantesmésalliances,asexcentricidadeseasessenciaiscoroações-destronamentos,mastêmumaessênciainternaanáloga:rompem-se(oupelomenossedebilitamporuminstante)as“cordaspodres”damentiraoficialeindividualerevelam-seasalmashumanas,horríveiscomonoinfernoou,aocontrário,radiantesepuras.Poruminstanteaspessoasseveemforadascondiçõeshabituaisdevida,comonapraçapúblicacarnavalescaounoinferno,eentãoserevelaumoutrosentido—maisautêntico—delasmesmasedasrelaçõesentreelas.Assimocorre,porexemplo,comafamosacenadodiadosantode
NastáciaFilíppovna(emOidiota).AquitambémháconsonânciaexternacomBobók:Ferdischenko(umpequenodiabinhomisterioso)sugereaNastáciaFilíppovnaumpetitjeu:cadaumdevecontaroatomaisvildetodaasuavida(compare-seapropostadeKliniêvitch:“Todosnósvamoscontaremvozaltaasnossashistóriasjásemnosenvergonharmosdenada”).ÉverdadequeashistóriascontadasnãojustificaramasexpectativasdeFerdischenko,masessepetitjeucontribuiuparaapreparaçãodaqueleclimacarnavalescoderuanoqualocorrembruscasmudançascarnavalescasdosdestinosedapersonalidadedaspessoas,
desmascaram-seoscálculoscínicosesoacomonapraçapúblicacarnavalescaafalafamiliardestronantedeNastáciaFilíppovna.Aqui,evidentemente,nãoenfocaremosoprofundosentidopsicológicomoralesocialdessacena,jáqueestamosinteressadosnoseuaspectodegêneropropriamente,naquelesmódulosmaiorescarnavalescosquesoamemquasetodasasimagensepalavras(adespeitodetodoocaráterrealistaemotivadodelas)enaquelesegundoplanodapraçacarnavalesca(edoinfernocarnavalizado)queparecetransparecerporentreotecidorealdessacena.Mencionaremosaindaumacenaacentuadamentecarnavalescade
escândalosedestronamentosnasexéquiasdeMarmieládov(emCrimeecastigo),ouacenaaindamaiscomplexificadanosalãomundanodeVarvaraPietrovnaStavróguina,emOsdemônios,comaparticipaçãodalouca“coxa”,comodiscursodoseuirmão,capitãoLebiádkin,comoprimeiroaparecimentodo“demônio”PiotrVierkhoviénski,comaexaltadaexcentricidadedeVarvaraPietrovna,odesmascaramentoeaexpulsãodeStiepanTrofímovitch,ahisteriaeodesmaiodeLisa,osocodeChátovemStavróguinetc.Tudoaquiéinesperado,inoportuno,incompatíveleinadmissívelnocursocomum,“normal”davida.Éabsolutamenteimpossívelimaginarsemelhantecena,porexemplo,numromancedeTolstóiouTurguêniev.Issonãoéumsalãomundano,masumapraçapúblicacomtodaalógicaespecíficadavidacarnavalescaderua.Lembremos,porúltimo,acenaexcepcionalmenteclarapelocoloridomenipeico-carnavalescodoescândalonaceladostárietzZossima(emOsirmãosKaramázov).Essascenasdeescândalos—eelasocupamlugarmuitoimportantenas
obrasdeDostoiévski—foramquasesemprecomentadasnegativamentepeloscontemporâneos,10oquecontinuaacontecendoatéhoje.Elaseramecontinuamsendoconcebidascomoinverossímeisemtermosreaiseartisticamenteinjustificadas.Foramfrequentementeatribuídasaoapegodoautoraumafalsaeficáciapuramenteexterna.Emrealidade,porém,essascenasestãonoespíritoenoestilodetodaaobradeDostoiévski.Esãoprofundamenteorgânicas,nadatêmdeinventado:sãodeterminadasnotodoeemcadadetalhepelalógicaartísticacoerentedasaçõesecategoriascarnavalescasqueanteriormentecaracterizamosequeséculosafioabsorveramalinhacarnavalescadaprosaliterária.Elassebaseiamnumaprofundacosmovisãocarnavalesca,queassimilaereúnetudooquenessascenaspareceabsurdoesurpreendente,criandoparaelasuma
verdadeartística.Graçasaoseuenredofantástico,Bobókapresentaessalógica
carnavalescanumaformaumtantosimplificada(exigênciadogênero),masacentuadaemanifesta,podendo,porisso,servircomoespéciedecomentárioafenômenosmaiscomplexos,porémanálogos,daobradeDostoiévski.NocontoBobók,comonumfoco,estãoreunidosraiosquesefazem
presentesnaobraanterioreposteriordeDostoiévski.Bobókpôdetornarseessefocojustamenteporquesetratadeumamenipeia.Todososelementosdaobradostoievskianaaquisãopercebidosemsuaveiaespontânea.Comovimos,oslimitesestreitosdessecontoresultarammuitoabrangentes.Lembremosqueamenipeiaéogênerouniversaldasúltimasquestões.
Nelaaaçãonãoocorre,apenas,“aqui”e“agora”,masemtodoomundoenaeternidade:naTerra,noinfernoenocéu.EmDostoiévski,amenipeiaseaproximadomistério,poisestenadamaiséqueumavariantedramá-ticamedievalmodificadadamenipeia.EmDostoiévski,osparticipantesdaaçãoseencontramnolimiar(nolimiardavidaedamorte,damentiraedaverdade,darazãoedaloucura).Eaquielessãoapresentadoscomovozesqueecoam,quesemanifestam“diantedaTerraedocéu”.Aquitambémaideiacentraldaimageméoriundadomistério(éverdadequenoespíritodosmistérioseleusínicos):os“mortosatuais”sãogrãosestéreislançadosnaterramasincapazesdemorrer(ouseja,delivrarasimesmosdesuasprópriasimpurezas,decolocarseacimadesimesmos)ouderenascerrenovados(ouseja,darfruto).
1TextoextraídodeProblemasdapoéticadeDostoiévski,traduçãodePauloBezerra,RiodeJaneiro,ForenseUniversitária/GEN,2010,5ªediçãorevista,pp.157-69.(N.doT.)2NoDiáriodeumescritor,deDostoiévski,eleaparecemaisumaveznas“Semicartasde‘uma
pessoa’”.3NoséculoXVII,“Diálogosnoreinodosmortos”foramescritosporAleksandrSumarókov(1717-
1777)eatéporAleksandrV.Suvórov(1729-1800),futurochefemilitar(vejaseoseuDiálogonoreinodosmortosentreAlexandre,oGrande,eHeróstrato,1755).4Ébemverdadequecomparaçõesdessanaturezanãopodemterforçademonstrativadecisiva.
Todosessesmomentossemelhantespodemtersidogeradostambémpelalógicadoprópriogênero,particularmentealógicadasdescoroações,descidasemésalliancescarnavalescas.5Nãoestáexcluída,emborasejaduvidosa,apossibilidadedeterDostoiévskiconhecidoassátiras
deMarcusTerentiusVarro(116-27a.C.).UmaediçãocientíficacompletadosfragmentosdeVarrofoieditadaem1865(Riese,VarronisSaturarumMenippearumReliquiae,Leipzig,1865).OlivrosuscitouinteressenãoapenasnoscírculosestritamentefilológicoseDostoiévskipodetê-lo
conhecidoindiretamentedurantesuaestadanoestrangeiroou,talvez,atravésdefilólogosrussosconhecidos.6FiódorDostoiévski,Obrascompletas,organizaçãodeB.TomachevskieK.Khalabáiev,tomoXII,
Moscou/Leningrado,Ed.Goslitzdat,1930,p.523.7PersonagensdosromancesHumilhadoseofendidos,CrimeecastigoeOsirmãosKaramázov,
respectivamente.(N.doT.)8OgeneralPiervoiêdovnemnotúmulopoderenunciaràconsciênciadesuadignidadede
general,eéemnomedessadignidadequeprotestacategoricamentediantedapropostadeKliniêvitch(“nãoseenvergonhardenada”),declarando:“Euserviaomeusoberano”.EmOsdemôniosháumasituaçãoanáloga,masnoplanoterrenoreal:ogeneralDrozdov,encontrandoseentreniilistas,paraquemasimplespalavra“general”éumepítetoinjurioso,defendesuadignidadedegeneralcomasmesmaspalavras.Ambososepisódiossãotratadosnumplanocômico.9MakaréopaideArkádiDolgoruki,protagonistadoromanceOadolescente.(N.doT.)10InclusiveporcontemporâneoscompetentesebenévoloscomoopoetaApollonNikoláievitch
Máikov(1821-1897).
SOBREOSDESENHOSDEGOELDI
capa:Últimadiscussão,s.d.,bicodepenaenanquims/papel,23,2x32,3cm,cole-çãoAfonsoHenriqueCosta.
p.13:Semtítulo,s.d.,bicodepenaenanquims/papel,30x23,5cm,coleçãoFredericoMendesdeMoraes.
p.19:Grã-finos,s.d.,bicodepenaenanquims/papel,31x21,7cm,coleçãoAfonsoHenriqueCosta.p.25:Morte,s.d.,bicodepenaenanquims/papel,21,6x28,6cm,cole-çãoparticular.p.27:Ventomacabro,s.d.,bicodepenaenanquims/papel,25,2x34cm,MuseudeArteModernadoRiodeJaneiro.
p.29:Fotógrafomacabro,1947,bicodepenaenanquims/papel,29,4x24cm,coleçãoparticular.p.33:Casal,s.d.,bicodepenaenanquims/papel,26,8x21,2cm,coleçãoparticular.p.35:Morte,s.d.,nanquims/papel,21,5x26,5cm,coleçãoAfonsoHenriqueCosta.p.39:Destino,s.d.,bicodepenaenanquims/papel,32,5x21,8cm,coleçãoAfonsoHenriqueCosta.AutorizadaareproduçãopelaAssociaçãoArtísticaCulturalOswaldoGoeldi-www.oswaldogoeldi.com.br.
SOBREOAUTOR
FiódorMikháilovitchDostoiévskinasceuemMoscoua30deoutubrode1821,numhospitalparaindigentesondeseupaitrabalhavacomomédico.Em1838,umanodepoisdamortedamãeportuberculose,ingressanaEscoladeEngenhariaMilitardeSãoPetersburgo.Aliaprofundaseuconhecimentodasliteraturasrussa,francesaeoutras.Noanoseguinte,opaiéassassinadopelosservosdesuapequenapropriedaderural.Sóesemrecursos,em1844Dostoiévskidecidedarlivrecursoàsua
vocaçãodeescritor:abandonaacarreiramilitareescreveseuprimeiroromance,Gentepobre,publicadodoisanosmaistarde,comcalorosarecepçãodacrítica.PassaafrequentarcírculosrevolucionáriosdePetersburgoeem1849épresoecondenadoàmorte.Noderradeirominuto,temapenacomutadaparaquatroanosdetrabalhosforçados,seguidosporprestaçãodeserviçoscomosoldadonaSibéria—experiênciaqueseráretratadaemRecordaçõesdacasadosmortos,livropublicadoem1861,mesmoanodeHumilhadoseofendidos.Em1857casa-secomMariaDmitrievnae,trêsanosdepois,voltaa
Petersburgo,ondefunda,comoirmãoMikhail,arevistaliteráriaOTempo,fechadapelacensuraem1863.Em1864lançaoutrarevista,AÉpoca,ondeimprimeaprimeirapartedeMemóriasdosubsolo.Nesseano,perdeamulhereoirmão.Em1866,publicaCrimeecastigoeconheceAnnaGrigórievna,estenógrafaqueoajudaaterminarolivroUmjogador,eserásuacompanheiraatéofimdavida.Em1867,ocasal,acossadopordívidas,embarcaparaaEuropa,fugindodoscredores.Nesseperíodo,eleescreveOidiota(1868)eOeternomarido(1870).DevoltaaPetersburgo,publicaOsdemônios(1871),Oadolescente(1875)einiciaaediçãodoDiáriodeumescritor(1873-1881).Em1878,apósamortedofilhoAleksiêi,detrêsanos,começaaescrever
OsirmãosKaramázov,queserápublicadoemfinsde1880.Reconhecidopelacríticaepormilharesdeleitorescomoumdosmaioresautoresrussosdetodosostempos,Dostoiévskimorreem28dejaneirode1881,deixandováriosprojetosinconclusos,entreelesacontinuaçãodeOsirmãosKaramázov,talvezsuaobramaisambiciosa.
SOBREOTRADUTOR
PauloBezerraestudoulínguaeliteraturarussanaUniversidadeLomonóssov,emMoscou,especializando-seemtraduçãodeobrastécnico-científicaseliterárias.ApósretornaraoBrasilem1971,fezgraduaçãoemLetrasnaUniversidadeGamaFilho,noRiodeJaneiro;mestrado(comadissertação“CarnavalizaçãoehistóriaemIncidenteemAntares”)edoutorado(comatese“AgênesedoromancenateoriadeMikhailBakhtin”,soborientaçãodeAfonsoRomanodeSant’Anna)naPUC-RJ;edefendeutesedelivre-docêncianaFFLCH-USP,“Bobók:polêmicaedialogismo”,paraaqualtraduziueanalisouessecontoesuainteraçãotemáticacomváriasobrasdouniversodostoievskiano.FoiprofessordeteoriadaliteraturanaUniversidadedoEstadodoRiodeJaneiro,delínguaeliteraturarussanaUSPe,posteriormente,deliteraturabrasileiranaUniversidadeFederalFluminense,pelaqualseaposentou.RecontratadopelaUFF,éhojeprofessordeteorialiterárianessainstituição.Exercetambématividadedecrítica,tendopublicadodiversosartigosemcoletâneas,jornaiserevistas,sobreliteraturaeculturarussas,literaturabrasileiraeciênciassociais.Naatividadedetradutor,játraduziudorussoquarentaecincoobras
noscamposdafilosofia,dapsicologia,dateorialiteráriaedaficção,destacando-se:FundamentoslógicosdaciênciaeAdialéticacomológicaeteoriadoconhecimento,deP.V.Kopnin;AfilosofiaamericananoséculoXX,deA.S.Bogomólov;Cursodepsicologiageral(4volumes),deR.Luria;ProblemasdapoéticadeDostoiévskieOfreudismo,deM.Bakhtin;Apoéticadomito,deE.Melietinski;Asraízeshistóricasdocontomaravilhoso,deV.Propp;Psicologiadaarte,AtragédiadeHamlet,príncipedaDinamarcaeAconstruçãodopensamentoedalinguagem,deL.S.Vigotski;Memórias,deA.Sákharov;nocampodaficçãotraduziuAgostode1914,deA.Soljenítsin;cincocontosenovelasdeN.GógolreunidosnolivroOcapoteeoutrashistórias;Oheróidonossotempo,deM.Liérmontov;Onaviobranco,deT.Aitmátov;OsfilhosdaruaArbat,deA.Ribakov;AcasadePúchkin,deA.Bítov;Orumordotempo,deO.Mandelstam;Emritmodeconcerto,deN.Dejniov;LadyMacbethdodistritodeMtzensk,deN.Leskov;alémdeOduplo,Crimeecastigo,Oidiota,OsdemônioseOsirmãosKaramázov,deF.Dostoiévski.
Em2012recebeudogovernodaRússiaaMedalhaPúchkin,porsuacontribuiçãoàdivulgaçãodaculturarussanoexterior.
SOBREOARTISTA
OswaldoGoeldinasceuem31deoutubrode1895,noRiodeJaneiro.Noanoseguinte,afamíliatransferiu-separaBelém,ondeseupai—onaturalistasuíçoEmílioAugustoGoeldi—foraencarregadodereestruturaroMuseuParaense(atualMuseuParaenseEmílioGoeldi).Em1901,afamíliasemudaparaaSuíça.Noanoemqueeclodea
PrimeiraGuerraMundial,GoeldiingressanaEscolaPolitécnicadeZurique.Nessamesmaépoca,começaadesenhar,deacordocomsuaspalavras,movidopor“umagrandevontadeinterior”.Em1917,apósamortedopai,abandonaaEscolaPolitécnicaematricula-senaÉcoledesArtsetMétiers,deGenebra,aqualtrocará,seismesesdepois,peloateliêdosartistasSergePahnkeeHenrivanMuyden.Tambémaípermanecepoucotempo,poisoqueensinavam“nãocorrespondiaaoquevinhadaminhaimaginação”.Em1919,suafamíliaretornaaoBrasil,fixando-senoRiodeJaneiro.
Goeldi,quejáconheciaasvanguardaseuropeias,sente-sedeslocadonomeioculturalaindapré-moderno.Éessedeslocamentoqueoartistaexpressariaemseusdesenhos:“oquemeinteressavaeramosaspectosestranhosdoRiosuburbano,doCaju,compostesdeluzenterradosatéametadenaareia,urubunarua,móveisnacalçada,enfim,coisasquedeixariambestaqualquereuropeurecém-chegado”.Nessemesmoanocomeçaafazerilustraçõespararevistasejornais,o
queseriaumadesuasfontesderendamaisestáveisatéofimdavida.Em1924,Goeldicomeçaagravarnamadeira“paraimporumadisciplinaàsdivagações”aqueodesenhoolevava.Nosanos1940,realizaparaaJoséOlympioEditorabicosdepenaexilogravurasparailustrarasseguintesobrasdeDostoiévski:Humilhadoseofendidos(1944),Memóriasdosubsolo(1944),Recordaçõesdacasadosmortos(1945)eOidiota(1949).Em1960,GoeldirecebeograndePrêmioInternacionaldeGravurada
BienaldoMéxico.A15defevereirode1961,éencontradomortoemsuacasa-ateliênoLeblon,ondecriara,aolongodosanos,umaobraintensa,concentrada,equesetornariarapidamenteumpontodereferênciaparaasnovasgerações.
COLEÇÃOLESTEdireçãodeNelsonAscher
92IstvánÖrkényAexposiçãodasrosas
KarelCapekHistóriasapócrifas
DezsöKosztolányiOtradutorcleptomaníaco
SigismundKrzyzanowskiOmarcadordepágina
AleksandrPúchkinAdamadeespadas
ÓssipMandelstamOrumordotempo
A.P.TchekhovAdamadocachorrinho
FiódorDostoiévskiMemóriasdosubsolo
FiódorDostoiévskiOcrocodiloeNotasdeinvernosobreimpressõesdeverão
FiódorDostoiévskiCrimeecastigo
FiódorDostoiévskiNiétotchkaNiezvânova
FiódorDostoiévskiOidiota
FiódorDostoiévskiDuasnarrativasfantásticas:
AdócileSonhodeumhomemridículo
FiódorDostoiévskiOeternomarido
FiódorDostoiévskiOsdemônios
FiódorDostoiévskiUmjogador
FiódorDostoiévskiNoitesbrancas
AntonMakarenkoPoemapedagógico
A.P.TchekhovObeijoeoutrashistórias
FiódorDostoiévskiAsenhoria
LevTolstóiAmortedeIvanIlitch
NikolaiGógolTarásBulba
LevTolstóiASonataaKreutzer
FiódorDostoiévskiOsirmãosKaramázov
VladímirMaiakóvskiOpercevejo
LevTolstóiFelicidadeconjugal
NikolaiLeskovLadyMacbethdodistritodeMtzensk
NikolaiGógol
Teatrocompleto
FiódorDostoiévskiGentepobre
NikolaiGógolOcapoteeoutrashistórias
FiódorDostoiévskiOduplo
A.P.TchekhovMinhavida
BrunoBarrettoGomide(org.)Novaantologiadocontorusso
NikolaiLeskovAfraudeeoutrashistórias
NikolaiLeskovHomensinteressanteseoutrashistórias
IvanTurguênievRúdin
FiódorDostoiévskiAaldeiadeStepántchikovoeseushabitantes
FiódorDostoiévskiDoissonhos:OsonhodotitioeSonhosdePetersburgoemversoeprosa
FiódorDostoiévskiBobók
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