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Ecofascismo Uma coletânea João Bernardo William Gillis Carlos Taibo Ecofascismo

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EcofascismoUma coletânea

João BernardoWilliam GillisCarlos Taibo

Ecofascismo

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Aviso de Copyleft: Esta publicação é uma ferramenta deluta contra o capitalismo, a colonialidade e o patriarcado emtodas as suas expressões. Por isso, pode e deve serreproduzida para ler em qualquer lugar, discutir em grupo,promover oficinas, citações acadêmicas, rodas de conversase fazer impressões para fortalecer o seu rolê anarquista /banquinha de zines / coletivo. Compartilhar não é crime.Pirataria é multiplicação.

Editora Subtawe.riseup.net/subta

Primavera de 2019

Copie e distribua livremente.

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SUMÁRIO

Prefácio ..................................................................... 5Editora Subta

O Mito da Natureza .............................................. 13João Bernardo

Ecofascismo revisto .............................................. 47William Gillis

Ecofascismo no colapso ...................................... 75Carlos Taibo

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PrefácioTudo começa com a ecologia clássica. Ou seja, a Nature-

za vive em equilíbrio, cada elemento, planta ou rocha, fungoou estrela, possui o seu lugar para manter essa dança numaharmonia inspiradora. A Natureza é sábia, a Natureza é bela.De repente, no meio desse todo coeso e autorregulado surgea corrupção. O ser humano, antes aos poucos, agora de ma-neira cada vez mais vertiginosa, se afasta de suas origens,quebra o alegre pacto da vida, torna-se uma aberração.

Portanto, acima de tudo e antes de mais nada, nós, entretodas as pessoas ignorantes e violentas, nós, que somos cons-cientes e prestativos, devemos voltar para o caminho. E dadaa urgência em que vivemos a cada momento, precisamos aju-dar a Mãe Natureza, coitada, tão explorada, tão fora de si.

Ecologia e cibernética foram ciências complementares, umabaseada na noção de equilíbrio, a outra na de autorregulação.No século XIX, junto com a “ciência” que pretendia inferircomportamentos étnicos através das medidas do crânio, a cren-ça no Equilíbrio natural foi usada como dispositivo colonial:para que o universo funcione, cada ser necessariamente tem oseu lugar, e o da aristocracia europeia era o de senhores da Ter-ra. Qualquer deslocamento botaria tudo a perder.

No meio do século XX a moda mudou, porém os pressu-postos continuavam muito semelhantes. De Salazar a Hitler,a identificação do Bem com a Natureza fez criar a ideologiade que um povo saudável e poderoso é aquele diretamentevinculado à terra. Isso porque estar em contato com o chão,

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as plantas e os rios nos aproxima do Equilíbrio natural. JoãoBernardo aponta, no texto selecionado nessa coletânea, que“segundo Walter Daré [ideólogo nazista], a população se-dentária que compunha o mundo agrário fora o elementofundador da raça nórdica e continuava a fornecer-lhe o es-teio mais sólido e duradouro, em contato orgânico com aterra, regada pelo sangue dos antepassados”.

Apesar de efeitos potencialmente diferentes, defensoresda agroecologia e apologistas do modo de vida indígenapartem dessa mesma ideia. Existe um jeito certo de estarno mundo. Por mais perturbador que isso possa parecerquando dito com todas as letras, aí está a chave para enten-der a fusão, muito possível, entre ecologia e fascismo.

Uma vez ajudei a organizar uma atividade que buscavaevidenciar a autonomia que nós já possuímos. Começamosdescrevendo um cenário hipotético: imagine que foi defla-grada uma greve de caminhoneiros e que, portanto, esta ci-dade não receberá mais combustíveis. Como toda cidade éum local de concentração e subsequente distribuição de re-cursos e serviços, no momento em que o transporte para ocentro é interrompido, a distribuição interna não tem maiscomo acontecer. Imaginando esse cenário, lançamos a pri-meira pergunta: o que, a partir de agora, nós, com nossospróprios corpos e relações, teremos que cuidar? Usamosmeia hora para juntar, através de uma chuva de ideias –onde não discutimos, apenas somamos –, todos os camposda vida: energia, comida, comunidade, saúde, arte, trans-porte, abrigo, etc. Neste pouco tempo, as pessoas presentesfacilmente concordaram ao elencar o que lhes era caro paraviver. Não havia dúvidas nem conflito.

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Depois de uma rápida sintetização do que foi falado, di-vidimos as várias ideias em algumas poucas áreas. Isso visa-va a divisão das pessoas em grupos menores para debatesmais focados. Assim, a segunda questão que lançamos, combase nesse campo comum de necessidades, foi: o que nós,com nossos próprios corpos e relações, já fazemos hoje paracuidar e atender a essas necessidades?

O resultado foi negativamente surpreendente: um silênciofrustrante cobriu o espaço, sendo rompido somente por umaou duas ideias delirantes sobre o que deveríamos fazer, e nãodescrições de práticas reais que já compõem nossas vidas.

Pode ser que essa tenha sido a primeira vez que aquelaspessoas haviam pensado no assunto. Talvez elas nunca tives-sem passado por dificuldades materiais. Talvez elas fossemprivilegiadas o suficiente para já receberem da sociedade oque precisavam. Talvez, tendo vivido sempre numa cidade,essas pessoas não haviam desenvolvido outras habilidadesque não aquelas relacionadas à burocracia e à obediência. In-dependente do que possamos supor sobre a razão daquele si-lêncio, o fato é que ninguém está preparada para uma situa-ção de crise. Seja individual ou socialmente. Se a água acabar(São Paulo, 2014-2016), se a eletricidade faltar (Brasil, 2001-2002), se não houver mais combustíveis (BR, 2018), o quefaremos? O que fizemos?! Afinal, quem poderá nos defender?

Será que esse é o efeito de 10 mil anos de autoritarismo esubmissão? Será que a obediência ensinada na família, naescola, no trabalho, nas instituições enfim, cria as condiçõespara nossa confusão sobre o que fazer? Instila na sociedade

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essa falta de confiança em nós mesmas? E será que acombinação de tudo isso resulta na imensa dificuldadede nos organizarmos socialmente?

Como aponta Lierre Keith, no livro “O mito vegetariano”,“a sociedade civil estará sob uma tremenda pressão num futu-ro próximo. À medida que as configurações básicas da socie-dade industrial comecem a falhar, o fascismo é um dos resul-tados mais prováveis. Quando as pessoas estão desesperadas,elas são muito vulneráveis a soluções fáceis e autoritárias, es-pecialmente aquelas que utilizam bodes expiatórios”.

Ao montarmos esta coletânea, tivemos em vista que o fu-turo será catastrófico e que a socialização básica do ser hu-mano há muitos séculos é a submissão. Nos parece que ashabilidades e os recursos para levarmos nossas vidas comautonomia estão longe de nossas mãos. Será que temos no-ção dessa incrível vulnerabilidade?

Os textos a seguir visam sacudir a poeira dessa alienação esão um convite desconfortável para percebermos como os ine-gáveis valores ecológicos vêm gerando práticas autoritárias.

Em “O mito da natureza”, João Bernardo aborda em trêspartes como esse mito foi um dos pilares ideológicos do fas-cismo. A primeira, analisa de modo geral a tensão entre eco-logia e desenvolvimento técnico, culminando na figura docamponês, como interface nacional de conexão com a nature-za. A segunda olha para o desenvolvimento fracassado daagricultura familiar no fascismo europeu, enquanto o últimoaponta como o nazismo, levando ao extremo a noção de equi-líbrio natural, promoveu uma guerra pelo “solo e o sangue”.

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As críticas de João Bernardo à agroecologia nos fizerampensar muito sobre as origens e condições da fome crônica,mesmo discordando no geral da sua análise marxista do ine-vitável desenvolvimento da sociedade.

Em “Ecofascismo revisto”, William Gillis faz um comen-tário amplo e cheio de digressões sobre o livro “Ecofascismo,lições da experiência alemã” e o contexto do meio anarquistado seu lançamento nos anos 1980. Com um estilo mais infor-mal e abordando questões filosóficas, Gillis, assim como JoãoBernardo, traça uma genealogia da ideologia nazista baseadana defesa da natureza. O tradicionalismo resultante possuiuma semelhança assustadora com posições primitivistas. “Épreciso se deixar levar”, “as coisas precisam acontecer natu-ralmente”, “foi a razão que nos trouxe à beira do abismo,logo, temos que abandoná-la”, pensamentos como esses colo-cam uma venda sobre nossa capacidade crítica (científica ounão) tornando-nos ora seres dóceis nas mãos de poderosos ca-rismáticos, ora irascíveis seguidores da lei do mais forte.

Por se tratar de uma resenha permeada por relatos pes-soais, em muitos momentos esse texto se apresenta confu-so ou difícil. Nem sempre uma mente acadêmica se bene-ficia de uma linguagem coloquial. Entretanto, em muitosmomentos Gillis traz questões que nos parecem de impor-tância crítica para esse debate.

Por fim, extraímos o 5º capítulo do livro “Colapso” deCarlos Taibo e o posicionamos aqui a título de conclusão.Apesar da grande quantidade de “poréns” e “entretantos”,

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Taibo apresenta novamente a história catastrófica do séculoXX, mas para além disso, avalia possibilidades sociais futurastendo em vista a trágica virada ambiental que se avizinha.

Quem nunca ouviu frases como “tem gente demais nomundo” ou “onde tem pobre, tem lixo”? Numa situação decolapso devido ao aquecimento global e à escassez de recur-sos naturais, a “solução fácil” proposta pelas _pessoas debem_ não será outra que o extermínio daqueles que não sealinham com a (sua) defesa da Mãe Natureza. E não há ne-nhum problema de consciência nisso. Afinal, “é preciso fa-zer alguma coisa para salvar a Terra!”

O ecofascismo já mostrou sua cara durante o séculoXX, principalmente na Europa. Não sem fortes contradi-ções, gigantescas máquinas de guerra estatais, arrancandoincansavelmente matérias-primas para a destruição de po-pulações vizinhas, promoveram políticas públicas de pre-servação ambiental e o enaltecimento da vida no campo.O ponto não é verificar se eles eram “verdadeiros” ecolo-gistas, mas mostrar o que se pode fazer com uma ideolo-gia. Enquanto continuarmos vendo nossa responsabilidadecomo indireta, belas palavras seguirão nos fazendo sorrircom tranquilidade, somos crianças aquecidas por Fukushi-ma, alimentadas pela soja do Mato Grosso.

Hoje, a ascensão de governos de extrema-direita em con-texto de catástrofe iminente apontam para o que virá. A clas-se média vem adotando e exigindo valores ecológicos, semmostrar nenhum interesse por quem produz a sua comida ouo que é feito com sua merda. Coisas como energias renová-veis e comidas orgânicas vão se tornando senso comum,

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ao mesmo tempo que o senso comum elege Bolsonaro. Paramuitos, a Amazônia queima lá longe (há décadas!), uma ca-tástrofe distante, que não tem nada a ver com o seu conforto.Nos parece muito possível que essa mesma classe média in-centive a construção de formas democráticas de expurgos,desde que alguém faça o trabalho sujo e a responsabilidadeesteja tão afastada que não consigamos vê-la.

Alguma start-up a fim de desenvolver um aplicativo queintermedeie essa nossa salvação?

Editora Subta,primavera de 2019

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João Bernardo1

O Mito da Natureza

A mitificação do camponês

Desde há mais de um século que a extrema-esquerda prog-nostica com uma insistente regularidade a crise do capitalis-mo, e quanto mais revolucionários se pretendem esses profe-tas, tanto mais anunciam que se trata da crise definitiva e der-radeira. Apesar disso o capital tem-se acumulado e concentra-do, a economia tem crescido e o sistema tem-se reforçado edesenvolvido, o que não impede as habituais previsões de serepetirem. Mas estes erros de óptica não se devem apenas aofacto de a generalidade dos revolucionários tomar os desejospor realidades e construir as estratégias em cima de sonhos.Deve-se também a uma instabilidade inerente ao capitalismo.

O capitalismo é o único modo de produção a exigir ainstabilidade, quando todos os sistemas económicos anteri-ores procuraram garantir que as suas condições de funcio-namento se conservassem inalteradas. Os antigos sistemastendiam a reproduzir a mesma profissão nas mesmas famí-lias e os mesmos tipos de produção nos mesmos lugares,

1 Publicado no site www. passapalavra.info/2011/11/98773 em 25/11/2011. Mantivemos a escolha ortográfica do autor.

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mas o capitalismo alterou decisivamente este panorama e ins-tituiu como regra a mobilidade da força de trabalho e a mutabi-lidade dos tipos de produção. Por isso o capitalismo não podesobreviver nem desenvolver-se sem permanentes crises secto-riais e regionais, sem a ininterrupta adopção de novas técnicase novos sistemas organizativos, sem que estejam sempre a serlançadas no desemprego multidões de trabalhadores enquantooutras são absorvidas por novos ramos de actividade, sem acontínua deslocação de volumes muito consideráveis de capitale a migração de enormes vagas humanas, sem uma destruiçãoque é sempre acompanhada pela construção.

A instabilidade, em vez de indicar qualquer crise geral docapitalismo, é, pelo contrário, um sintoma da sua vitalidade.Neste sistema a instabilidade não implica por si só um dese-quilíbrio, porque o equilíbrio pode restabelecer-se no tempoou no espaço, quero dizer, um desequilíbrio pode ser com-pensado posteriormente ou noutro lugar por um desequilí-brio em sentido contrário. É por isso que erram os profetasapressados, ao confundirem instabilidade com crise.

Aquela confusão, porém, não é desprovida de base social,porque um modo de produção que, para assegurar a vitalida-de dos seus fundamentos, não pára de pôr em causa as suasformas episódicas e de substituí-las por outras parece correrum risco grave. Será que os explorados, educados a admitir amutabilidade de todos os meios económicos e de todas ascondições de existência, acabarão afinal por conceber a pre-cariedade do próprio regime de exploração? E assim, ao mes-mo tempo que uma corrente ideológica proclama os valoresdo progresso e anuncia que a instabilidade faz parte das ne-cessidades da vida, outra corrente insiste na necessidade de

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dotar a sociedade de uma âncora conservadora. As ideologiascapitalistas têm oscilado entre estas duas perspectivas e, nageneralidade dos casos, combinam-nas de formas variadas.Foi neste quadro que surgiu o mito da natureza.

A ideia de que a sociedade industrial rompeu o equilí-brio da natureza baseia-se na suposição de que este equilí -brio tivesse alguma vez existido. Os ecologistas, que con-quistaram uma larguíssima expressão pública e consegui-ram um surpreendente poder de intervenção na sociedadecontemporânea, admitem implicitamente, quando não o fa-zem explicitamente, um axioma fundamental – o mito doequilíbrio natural e da natureza como padrão perante o qualdevem avaliar-se as instabilidades económicas. A tal pontoque as contradições sociais são sistematicamente apresen-tadas como contradições entre a sociedade e a natureza, fi-cando deste modo escamoteados o processo de exploraçãoe as suas consequências. Mas atribuir à natureza um estadooriginário de equilíbrio e remeter para ela os postuladosgenéricos de todos os demais equilíbrios é procurar aí ajustificação de ilusórias harmonias sociais e, portanto, éalienar da sociedade os seus modos de funcionamento. Anaturalização constitui a forma suprema de reificação. Apartir do momento em que um dado padrão de ordem éapresentado como natural ele torna-se eterno e indiscutível.A aceitação do mito do equilíbrio natural corresponde aotriunfo absoluto da tradição.

Isto não seria de estranhar em ideologias conotadas clarae exclusivamente com a ala mais retrógrada do capitalismo.Mas é perturbante verificar que a extrema-esquerda engoliucom isco, anzol e cana de pesca o mito da natureza – e esta é

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uma situação nova. Até há poucas décadas atrás a esquerdacaracterizava-se pela ânsia de acelerar o futuro e os amantesde relíquias encontravam-se apenas entre os conservadores.Hoje a situação inverteu-se e é da extrema-esquerda quemais vozes se erguem apelando para os factores históricosde estabilidade, enquanto a direita, mesmo quando se pre-tende conservadora, não tem o mínimo receio de abrir cami-nho a inovações que liquidam os vestígios do passado. Ali-ás, por que motivo a antiguidade de uma cultura ou de umcomportamento colectivo é apresentada como critério emabono da necessidade da sua sobrevivência, quando se podiacom mais lógica argumentar que para algo que já dura hámuito tempo teria chegado a altura de se extinguir?

Um dos artifícios do multiculturalismo é o de se insurgircontra a destruição de culturas, línguas e modos de vida ar -caicos, como se eles tivessem existido desde sempre e nãotivessem resultado, por sua vez, da destruição de culturas elínguas anteriores. Os multiculturalistas servem assim umduplo objectivo. Em primeiro lugar, num amplo plano es-tratégico, procuram manter a população pobre fragmentadanuma multiplicidade de minigrupos, precisamente quandoo capital, por seu lado, se encontra globalizado mundial-mente. Este é um importante factor de fortalecimento docapital aquando dos confrontos sociais. Em segundo lugar,e no âmbito mais reduzido dos seus interesses profissio-nais, os multiculturalistas, todos eles de extracção universi-tária, procuram conservar em vida as suas cobaias huma-nas, que lhes servem para fazer as teses e artigos sobre asculturas e línguas em que se especializaram.

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A natureza é um mito porque ela não existe senão comoobjecto da acção humana. Se eu fosse definir os limites danatureza, usaria termos equivalentes aos da coisa em si deKant, ou seja, daquilo que, mantendo-se exterior à acção hu-mana, não pode ser conhecido, porque o homem só pensa econhece a sua própria actuação. Já desde os primórdios dahumanidade esse mito foi desvendado. Os arqueólogos quetêm tentado reconstituir a base das concepções vigentes noneolítico e os pesquisadores que se dedicam à análise estru-tural das narrações mitológicas consideram que um dos ele-mentos fundadores das ideologias arcaicas era a oposiçãoentre a cultura humana e a natureza, entre o mundo civiliza-do e o espaço selvagem. Aristóteles inseriu-se numa lon-guíssima linhagem e, ao definir o homem como um animalsocial, estava realmente a defini-lo como um ser antinatural.O facto de Aristóteles, para estudar o fenómeno da mudan-ça, ter recorrido a analogias extraídas da actividade artísticae artesanal indica que considerava a natureza como objectode intervenção. Enquanto princípio de mudança, a natureza,tal como ele a entendia, opunha-se por um lado ao acaso e poroutro opunha-se também ao ofício do artesão e do artista. Re-ciprocamente, os artistas e os artesãos, embora se servissemdos mesmos materiais que a natureza, transmutavam-nos emformas diferentes; por isso, em vez de imitarem a natureza, en-travam em concorrência com ela. Nesta perspectiva, no séculoII antes da nossa era, numa época em que as técnicas haviamcomeçado a adquirir outra importância, o filósofo estóicoPanætius de Rodes defendeu que a actividade manual dos sereshumanos é capaz de completar a natureza, criando como queuma nova natureza. E nos alvores da época em que a ciência setornou experimental, aquele clássico metodológico que é o

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Novum Organum de Bacon anunciou que «a técnica é o ho-mem acrescentado à natureza», o que implicava, como ob-servou Jean-François Revel, arguto comentador de questõesfilosóficas, «que a natureza sem a técnica humana não seriaa natureza». A todos os desequilíbrios inerentes à naturezadevemos somar mais um, o da acção social, que, sendo sem-pre contraditória, só pode entender-se como um desequilí-brio determinante de desequilíbrios.

As sucessivas tecnologias não se limitaram a instaurardesequilíbrios. Todas elas, enquanto materialização de da-dos sistemas de relacionamento social, surgiram para re-solver desequilíbrios mais ou menos agudos resultantes daapropriação social da natureza, inaugurando assim formasdiferentes de desequilíbrio. Não estou a escrever aqui umahistória da tecnologia em vários volumes, por isso cabeum único exemplo, ilustrativo dos demais, sem excepção.O recurso ao carvão mineral no começo da indústria capi -talista, na passagem do século XVIII para o século XIX,uma fonte de energia muito poluente e a que hoje se atri -buem tão grandes culpas, surgiu para resolver um enormedesequilíbrio provocado durante o regime senhorial,quando a madeira era o material empregue em pratica-mente todas as construções e todos os tipos de fabrico.Este uso extensivo da madeira como matéria-prima provo-cou uma retracção tão acentuada dos bosques e das flores-tas que na Grã-Bretanha a lenha teve de ser importada depaíses distantes, atingindo preços incomportáveis. O usodo carvão mineral veio solucionar a crise suscitada pelouso da madeira na sociedade europeia pré-capitalista.

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A indústria moderna limitou-se inicialmente a resolver osdesequilíbrios insustentáveis que haviam resultado das tecno-logias e das formas de exploração que a precederam, e a par-tir de então tem encontrado resposta aos desequilíbrios queela própria criou, avançando para outras modalidades contra-ditórias e, por isso, desequilibradas. Nem sequer se deve jul-gar que a sociedade industrial atingiu uma potencialidadedestruidora superior, em termos relativos. Bem pelo contrário,pode definir-se como regra que quanto mais rudimentares fo-rem os meios técnicos empregues por uma sociedade tantomais vastas serão as repercussões da sua acção sobre a natu-reza, por comparação com os resultados obtidos no plano daprodução material. Não faltam os estudos de sistemas econó-micos tanto de povos pré-históricos como de povos contem-porâneos utilizando tecnologias arcaicas que confirmam estaregra. Limito-me a dois exemplos. Os grupos sociais nóma-das que usavam instrumentos de pedra lascada não os volta-vam a afiar quando o gume estava embotado, mas punham-nos de lado e talhavam outros instrumentos. Em prazos mui-tíssimo breves, agrupamentos humanos diminutos consegui-am esgotar completamente pedreiras consideráveis, estabele-cendo-se então junto a uma nova fonte de abastecimento, atéque a tivessem consumido também, e assim sucessivamente.Como o mesmo sistema era aplicado às outras matérias-pri-mas e aos alimentos, em pouco tempo se provocava a depre-dação de enormes territórios. Uma das técnicas que os peque-nos grupos itinerantes de colectores usavam para caçar ani-mais consistia em lançar fogo a uma floresta ou uma savanaquando o vento fazia as chamas correr em direcção a um pre-cipício, levando os animais a despenhar-se para fugir às cha-mas. Ficava assim queimada uma enorme área e matava-se

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um número de animais superior às capacidades de consumo,porque, não sendo ainda conhecidos métodos de conserva-ção a longo prazo, a carne só era comida enquanto não apo-drecia. Quando partia para outro lugar, esse pequeno grupohumano deixava atrás de si uma destruição incomparavel-mente superior aos benefícios que retirara da caçada. Podiasomar interminavelmente exemplos, todos eles demonstrati-vos de uma regra única, a de que, proporcionalmente ao ní-vel de produção pretendido, as tecnologias mais toscas sãoas que ocasionam efeitos secundários mais consideráveis eque perturbam áreas mais vastas.

O mito do equilíbrio natural é inseparável do mito dobom selvagem, do ser humano primitivo em harmoniacom o meio circundante. A própria concepção moderna deselvagem, elaborada por uma sociedade europeia possui-dora de algumas técnicas de produção bastante avançadas,resultou de uma distorção da capacidade de observaçãodos navegantes e colonizadores, que não conseguiam vera considerável sofisticação daquela humanidade que abor-davam pela primeira vez. Procurando nos outros apenasaquilo que eles mesmos possuíam, os europeus chegaram,evidentemente, à conclusão de que os outros nada tinham,ou muito pouco, quando na realidade essas sociedades,embora mantivessem em formas simples certos âmbitosde actividade que na Europa tinham atingido uma grandecomplexidade, haviam desenvolvido a complexidade deoutros âmbitos, que não ultrapassavam entre os europeusum estado rudimentar. Difundiu-se assim, para o bem epara o mal, a noção da existência de selvagens em comu-nhão com a natureza, em vez de se entender que essas

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pessoas actuavam também sobre a natureza, destruíam-na erecriavam-na em moldes sem dúvida diferentes dos euro-peus, mas nem por isso menos carregados de consequências.

O mito do bom selvagem, continuado por antropólogosque curiosamente, no panorama político actual, gostam dese situar na esquerda, tem reforçado as implicações social-mente conservadoras do mito da natureza. Se a terra, mãecomum, fosse a fonte inesgotável de uma tradição perene eimutável, então os homens e as mulheres pretensamentedesprovidos de técnica seriam os actores de uma vidaexemplar. O tipo de racismo surgido nos países germânicoscom o romantismo, na passagem do século XVIII para oséculo XIX, introduziu uma alteração neste mito, entroni-zando como modelo da tradição não a gente de outras pelese outros narizes, mas aquela parte da população europeiaque fora relegada para o emprego de instrumentos arcaicos,ou seja, os camponeses. A noite dos tempos é a ignorânciados historiadores e a imutabilidade das técnicas arcaicas éa ignorância dos comentadores triviais acerca das mutaçõesoperadas. Quem procura na história uma estabilidade que ja-mais existiu está a adulterá-la para servir as conveniênciaspolíticas do presente. Pouco importa hoje aos entusiastas doarcaísmo camponês que desde as pesquisas de Lefebvre desNoëttes e depois, noutra perspectiva, de Marc Bloch e dosseus seguidores, bem como de Haudricourt, se saiba que astécnicas rurais, longe de se terem mantido imutáveis, havi-am sofrido numerosas adaptações e mesmo, por vezes, re-modelações muitíssimo profundas e relativamente rápidas,destinadas a resolver desequilíbrios provocados pelas técni-cas anteriores e inaugurando assim desequilíbrios novos.

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Numa obra dedicada ao regime senhorial europeu entre oséculo V e o século XV (ver as Referências no final desteartigo) analisei detalhadamente as transformações operadasnas técnicas agrárias e o leitor muito interessado encontraráaí abundantíssima bibliografia. Mas servirá para algumacoisa? É de mitos que se trata, e estes são tanto mais sóli -dos quanto mais cegamente resistem às demonstrações queos invalidam. Os camponeses europeus foram consideradospelo romantismo como estando imemorialmente apegadosa técnicas que, por comparação com as velozes mutaçõesdifundidas na indústria, eram apresentadas como neutras,efectivamente não-técnicas.

Ilustrativo deste percurso ideológico é o caso de ErnstMoritz Arndt, um dos expoentes do racismo e nacionalismoromântico de conotação linguística, que derivou da apologiado campesinato para a apologia da terra. A natureza era, paraArndt, uma totalidade orgânica, em que plantas, pedras e se-res humanos estavam inter-relacionados, sem que uns fos-sem mais importantes do que os outros. E assim o solo e araça eram apresentados como partes de um mesmo conjunto.

No círculo de intelectuais formado pelo romantismo ger-mânico tornou-se um lugar-comum a ideia de que as flores-tas haviam moldado a maneira de pensar teutónica e, portan-to, haviam condicionado as características cerebrais da raça,e Martin Bernal, historiador que se deteve nestas questões,referiu «a insistente propensão dos românticos para deduzi-rem o carácter de um povo a partir das paisagens da sua ter-ra natal». Note-se que eles não estavam a escolher o factorgeográfico em detrimento do factor racial, mas a uni-los am-bos num conjunto indiferenciado, porque a visão de dados

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panoramas naturais suscitaria uma dada linguagem, e umadada linguagem corresponderia a uma dada estrutura cere-bral. «Mal começava o século XIX», observou Peter Stau-denmaier, «e já estava solidamente estabelecida a relaçãomortífera entre o amor à terra e o nacionalismo racista mili-tante». Criou-se assim o mito da harmonia do camponêscom a natureza ou, em termos mais drásticos, da própria in-tegração do camponês na natureza, enquanto elemento natu-ral. Cultivador de raízes, ele mesmo seria uma raiz, funda-mente implantada na terra mãe.

Os ecologistas actuais, ao postularem o equilíbrio naturale considerarem a indústria demoníaca por haver introduzidoo desequilíbrio, espartilham-se — possivelmente sem o sa-ber — com um par de conceitos que estruturou a dialécticada história na obra principal de Spengler, um dos monumen-tos do pensamento de extrema-direita nas primeiras décadasdo século passado — a cultura, que corresponderia a umaessência orgânica e se definiria pela coesão interna, e a civi-lização, que seria meramente exterior e adventícia, não ul-trapassando o plano técnico. Tratava-se para Spengler daoposição entre a vida e o artifício, entre o orgânico e o me-cânico. «Cultura e civilização, isto é, o corpo vivo e a mú-mia de um ser animado!». Nestes termos, inevitavelmente,«a civilização representa a vitória da cidade. A civilização li-berta-se da origem rural e corre para a sua própria destrui-ção». Muito antes de se terem iniciado as lucubrações ecoló-gicas, bastou a utilização daquele par de conceitos para queum dos clássicos do pensamento de extrema-direita chegas-se à principal conclusão dos ecologistas.

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ReferênciasA frase de Francis Bacon e o comentário de Jean-François Revel encon-tram-se em Jean-François Revel, Histoire de la Philosophie Occidentalede Thalès à Kant, Paris: Nil, 1994, pág. 357. A obra minha referida é Po-der e Dinheiro. Do Poder Pessoal ao Estado Impessoal no Regime Se-nhorial, Séculos V-XV,. 3 vols., Porto: Afrontamento, 1995, 1997, 2002.O leitor deverá consultar o verbete Técnicas agrárias no Índice de As-suntos, no final de cada volume. A observação de Martin Bernal encon-tra-se na sua obra Black Athena. The Afroasiatic Roots of Classical Civi-lization, vol. I: The Fabrication of Ancient Greece 1785-1985, NewBrunswick, Nova Jersey: Rutgers University Press, 1987, pág. 334. Apassagem de Peter Staudenmaier está em Janet Biehl e Peter Stauden-maier, Ecofascism. Lessons from the German Experience, Edimburgo eSan Francisco: AK Press, 1995, pág. 6. As citações de Oswald Spenglersão retiradas da edição espanhola do seu livro, La Decadencia de Occi-dente. Bosquejo de una Morfología de la Historia Universal, Madrid:Espasa-Calpe, 1942-1944, vol. II, pág. 205, e vol. III, pág. 150.

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A agricultura familiar no fascismo

Não poderemos entender o mito campestre sem nos aper-cebermos de que ele vigora num nível estritamente ideológi-co, servindo de adorno ao crescimento da grande produçãofabril. São regimes promotores da industrialização ou atéfrancamente tecnocráticos que propõem a pretensa harmoniarural como padrão de comportamento genérico. Assegurar aordem e a obediência às hierarquias numa sociedade em mu-dança contínua, conseguir o milagre de enxertar a estabilida-de dos modos de vida e de pensamento sem comprometer anecessária instabilidade da economia e os ritmos aceleradosda produção — eis a ambição de quem promove o mito docampesinato e das suas raízes. As maiores companhiastransnacionais sustentam hoje organizações não-governa-mentais destinadas a alertar a opinião pública acerca dos ris-cos da poluição e a promover outras boas causas, e nada háde contraditório nesta conjugação, já que os mesmos gruposeconómicos que poluem ou destroem o meio ambiente ga-nham redobradamente, depois, a vender serviços de limpezada poluição e a reconstituir o meio ambiente. Exactamente damesma maneira, em todos os regimes fascistas, sem excep-ção, existiam duas correntes, uma industrializadora e moder-nista, fazendo a apologia do mundo urbano e fabril, e a outratradicionalista e ecológica, glorificando o mundo rústico.

A mitificação da agricultura familiar foi gerada em con-junto com a produção fabril em série. Henry Ford é uma fi-gura que qualquer pessoa associa imediatamente à indústriade massas, mas ele foi também um incansável apologista da

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sociedade agrária e da agricultura familiar. «Sou um homemdo campo», afirmou em 1918, uma das muitas declaraçõesdo mesmo estilo que prodigou ao universo. «Quero ver cadaacre da superfície terrestre coberto por pequenas quintas,onde habitem pessoas felizes e satisfeitas». Estes devaneiosruralistas não eram politicamente inocentes, porque foramdesenvolvidos poucos anos depois em The International Jew(O Judeu Internacional), uma obra que Ford assinou e quetanto contribuiu para divulgar o anti-semitismo, exercendouma influência directa sobre o racismo alemão e nomeada-mente sobre Hitler. Na primeira edição de Mein Kampf Hi-tler classificou Henry Ford como um «grande homem» edurante vários anos ornamentou com uma fotografia dele asua mesa de trabalho. Aliás, mais tarde o Terceiro Reichhomenagearia Henry Ford com uma condecoração. «A teo-ria mais desastrosa», escreveu ou mandou escrever o gran-de industrial, «é a que estabelece um contacto íntimo e umaharmonia entre as ideias modernas e as catástrofes delas re-sultantes, dizendo que “tudo são sinais de progresso”, por-que, se realmente forem, então será de um progresso queconduz ao abismo. Ninguém pode assinalar um progressoefectivo no facto de que, onde os nossos antepassados usa-vam moinhos de vento ou hidráulicos, nós empreguemosmotores eléctricos. Sinal de um verdadeiro progresso seriaa resposta a esta pergunta: que influência essas rodas exer-cem sobre nós? Foi a sociedade da época dos moinhos devento melhor ou pior do que a actual? Foi mais uniformenos costumes e na moral? Tinha mais respeito pela lei eformava caracteres mais elevados?».

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Estas linhas, assinadas por um dos empresários que maiscontribuiu para tornar obsoletos os velhos moinhos e propa-gar os novos motores, só parecerão extraordinárias se nãovirmos, na continuação do livro, que Ford pretendia defen-der o que considerava serem valores autenticamente norte-americanos contra o cosmopolitismo e o desenraizamentoatribuídos aos judeus. Não eram os motores das suas fábri-cas mas os agentes da finança internacional judaica quemporia em causa as harmonias agrárias, e assim o ruralismode Ford fazia parte do seu anti-semitismo. Ele consideravaque os tractores saídos das suas linhas de montagem contri-buiriam para revitalizar as famílias rurais, e com o mesmoobjectivo defendia a implantação de pequenos pólos indus-triais disseminados nos campos e movidos pela energia hi-dráulica. «As fábricas e as quintas deviam ter sido organiza-das não como concorrentes mas como colaboradoras», pos-tulou Ford. O certo é que, pondo o dinheiro onde pusera aspalavras, mandou construir alguns pequenos estabelecimen-tos fabris, integrados no complexo de indústria automóvel ecuja mão-de-obra estava dispensada do trabalho industrialnas ocasiões em que precisasse de atender às exigências daagricultura. Aquele fanático da produção fabril de massasnunca perdeu o entusiasmo pelas excursões campestres nemo gosto pelas danças aldeãs, e parecia encontrar na calmados campos as mesmas lições de humildade, de modéstia ede respeito que o chefe do fascismo português professava.

«A agricultura», disse Salazar em Maio de 1953, «pela suamaior estabilidade, pelo seu enraizamento natural no solo emais estreita ligação com a produção de alimentos, constitui agarantia por excelência da própria vida, e, devido à formação

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que imprime nas almas, manancial inesgotável de forças deresistência social». Estas timoratas palavras foram proferi-das a propósito do primeiro Plano de Fomento, e como opresidente do Conselho receava que o desenvolvimento eco-nómico provocasse o colapso do seu morigerado país, expli-cou que «aqueles que não se deixam obcecar pela miragemdo enriquecimento indefinido, mas aspiram, acima de tudo,a uma vida que embora modesta seja suficiente, sã, presa àterra, não poderiam nunca seguir por caminhos em que aagricultura cedesse à indústria». E avaliando a situação en-quanto financeiro e enquanto ideólogo, Salazar concluiu:«Sei que pagamos assim uma taxa de segurança, um preçopolítico e económico, mas sei que a segurança e a modéstiatêm também as suas compensações».

É interessante desvendar estas origens históricas da teseda soberania alimentar, sobretudo quando os seus promoto-res actuais, no MST e nos outros movimentos de luta pelaterra, a apresentam como um programa de esquerda ou mes-mo anticapitalista. Curiosamente, aquela tese é defendidanuma época em que a altíssima produtividade conseguida pe-los maiores produtores agro-pecuários e o grande volume deexportações daí resultante asseguram pela primeira vez na his-tória um abastecimento alimentar adequado a todo o mundo.Se um país consumir exclusiva ou preferencialmente os ali-mentos ali produzidos e se isolar das redes do comércio mun-dial, a sua situação alimentar torna-se precária porque não con-segue resistir às oscilações das colheitas próprias. As fomes ca-tastróficas, que periodicamente são noticiadas pelos jornais epela televisão e servem às organizações não-governamentaispara angariar donativos, ocorrem sistematicamente em países

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ou regiões que por algum motivo estão isolados das redesmundiais de comércio. Não é a seca mas a incapacidade dese ligar ao mercado que provoca a fome. Porém, o facto deos resultados práticos da tese da soberania alimentar estarempatentes aos olhos de quem quiser ver não perturba os seusapóstolos, tanto mais que o tipo de socialismo que eles de-fendem se confunde com uma economia de escassez.

O problema é mais grave ainda porque as oscilações dascolheitas agrícolas serão tanto maiores quanto menos indus-trializado for o cultivo e quanto mais difundida for a agro-ecologia. Soberania alimentar e agro-ecologia são elementosde uma mesma nebulosa ideológica. Basta olhar para as pri-meiras páginas de qualquer atlas histórico, onde está figura-da a evolução das curvas demográficas, para se percebernum relance que o modo de produção capitalista permitiuum aumento sem precedentes não só da quantidade da popu-lação mas igualmente da esperança média de vida. A fomecrónica e as epidemias, dois factores que nos modos de pro-dução pré-capitalistas provocavam a estagnação demográfi-ca, foram em grande medida solucionadas pelo capitalismo,que possui a capacidade técnica para operar uma resoluçãocabal. Aliás, foi precisamente este o contexto material quesuscitou o aparecimento do socialismo moderno. O socialis-mo nasceu da compreensão de que a produção industrial demassa e a aplicação dos princípios da indústria ao campoproporcionam a satisfação de todas as necessidades materi-ais e tornam possível o desenvolvimento de uma civiliza-ção em que ficará ultrapassada a luta pela sobrevivência. Énesta perspectiva e nesta dimensão histórica que devemosentender a importância da agricultura industrializada e a

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sua consequência em termos de concentração do capital, oagronegócio. Mas não é no plano das realidades que vivemas boas almas ecologistas e, em nome do mito da natureza,preferem condenar a população à escassez e à iminênciadas catástrofes alimentares.

Se pegarmos numa calculadora e fizermos o exercício deatribuir aos trabalhadores agrícolas dos principais países pro-dutores de alimentos o baixo grau de produtividade que ca-racteriza os camponeses nos países e regiões onde se pratica aagricultura familiar tradicional, constataremos que se chega auma redução catastrófica da produção agrícola e pecuária. Écerto que a agro-ecologia se identifica com um socialismo damiséria; porém, a queda brutal de produtividade que seriaprovocada pela generalização desse sistema a todo o mundojá nem a miséria traria, mas o extermínio pela fome.

A experiência histórica dos fascismos, tal como a das em-presas de Henry Ford, mostra que, para não ter resultadoseconómicos negativos, a apologia do arcaísmo rural ou ficoureservada ao plano ideológico ou foi compensada por medi-das de carácter oposto. Afinal de contas, mesmo quando omito campestre surtiu efeitos institucionais, estas institui-ções tiveram a função única de servir de fachada ideológica.

Depois do que Henry Ford disse, escreveu e fez em prolda agricultura familiar, é esclarecedor que os estabelecimen-tos fabris que implantou em áreas rurais tivessem sido tãopouco numerosos que a sua mão-de-obra proveio de menosde mil famílias, o que mostra que aquelas noções tiveramapenas um valor de exemplo e foram desprovidas de conse-quências práticas. Mas mesmo enquanto exemplo estavamcondenadas a fracassar. Ford defendia que a mecanizaçãodas fainas da terra, aumentando os rendimentos das famílias

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rurais e prolongando-lhes as horas de lazer, promoveria aaquisição de bens consumo e, além disso, permitiria aosagricultores empregar-se suplementarmente nos pequenosestabelecimentos fabris dispersos pela vizinhança, o quelhes melhoraria o nível de vida. Curiosamente para um in-dustrial, ele considerou estas questões na perspectiva domercado de consumo e não na dos movimentos de mão-de-obra. Na realidade, a crescente mecanização da agricultura,diminuindo o número de pessoas necessárias no campo, pro-vocou uma debandada para as grandes cidades e pôs termoàquela sociedade rural que Henry Ford idealizara.

O efeito perverso das utopias ruralizantes verificou-se emtodos os outros casos. Apesar de o movimento estético futu-rista ter marcado o fascismo italiano com uma inconfundívelcoloração industrial e urbana, Mussolini não tinha ilusõessobre a hostilidade que lhe votava o operariado das cidades.«É necessário dar ao fascismo um carácter predominante-mente rural», declarou ele no conselho nacional do seu par-tido em Agosto de 1924, quando as repercussões do assassi-nato do socialista Matteotti punham em perigo o regime.Exaltando as pretensas virtudes bucólicas, Mussolini tomouuma série de medidas para reforçar o peso do sector rural naeconomia e na sociedade. Por um lado, a Batalha do Trigo,proclamada no Verão de 1925, procurou aumentar a produ-ção agrícola. Com o mesmo intuito foi apresentado, em Ou-tubro de 1928, um programa destinado a converter à agricul-tura vastos solos incultos e, quando conveniente, intensificaros cultivos. Por outro lado, anunciou-se em 1928 e 1929 aBatalha Demográfica, com a dupla finalidade de impedir oabandono dos campos e de colocar obstáculos à emigraçãopara as cidades. Mas os próprios promotores destas medidasconfessaram que os seus objectivos eram mais sociais do

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que económicos e se destinavam a reforçar a base conserva-dora. No plano económico foram um verdadeiro fracasso,não conseguindo suster a industrialização nem favorecer aruralização. Foram-no igualmente no plano demográfico, atal ponto que, para não se reconhecer publicamente a efec-tiva diminuição da população rural, adulteraram-se os re-sultados do recenseamento de 1936, classificando comotrabalhadoras agrícolas as mulheres do campo que no cen-so de 1931 tinham sido consideradas donas de casa e au-mentando indevidamente os números da população mascu-lina dedicada à agricultura. Afinal, o que parecia ser umapolítica económica e demográfica resumira-se a uma ence-nação com intuitos propagandísticos.

Fazendo-se eco da política agrícola mussoliniana, a Cam-panha do Trigo lançada em 1929 pelo regime fascista portu-guês parece ter evitado a ruína total de boa parte dos peque-nos produtores cerealíferos. Apesar disto, quer pelo sistemade preços praticado, quer pela organização do crédito, querpela orientação dos subsídios, os principais beneficiados fo-ram os grandes lavradores e os latifundiários, e as oportunida-des de mercado criadas favoreceram mais ainda os industriaisda moagem e dos adubos e os fabricantes de máquinas e uten-sílios agrícolas. É certo que Salazar procurou manter a peque-na propriedade rural. Mas, não lhe sendo dadas condiçõespara prosperar, agravou-se, afinal, a sua dependência relati-vamente aos grandes lavradores. Os camponeses modestos,que sempre figuraram em lugar de honra nas actividades cul-turais promovidas pelo Secretariado da Propaganda Nacionale tão frequentemente foram elogiados em termos idílicos nosdiscursos do presidente do Conselho, tinham um valor apenasideológico. Uma publicação do Secretariado Nacional de In-formação e Cultura Popular, continuador do Secretariado da

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Propaganda Nacional, proclamou que «o necessário, o verda-deiramente belo seria transformar Portugal rústico numaconstante exposição viva de arte popular». Os camponeseseram vistos como peças de museu e deviam ser mantidoscomo tal. Já num discurso pronunciado em 1935 Salazar ape-lara a que «respiremos o ar puro e saudável da natureza e dasmentalidades dos campos, longe destes sorvedouros de vidas,energias e saúde que são as cidades», e dois anos depois, naabertura da X Conferência da União Internacional contra aTuberculose, ele admitiu que «a civilização materialista donosso tempo» fosse responsável pelo recrudescimento daque-la doença e enalteceu a «alegria do trabalho», a «modéstia dosdesejos e ambições», a «satisfação das pequenas, simples esaudáveis coisas». Mas tudo somado, em 1966, num Portugalarrastado pela industrialização dos demais países, o ditador ob-soleto reconheceu que «por mim, e se tivesse de haver compe-tição, continuaria a preferir a agricultura à indústria; mas sequereis ser ricos não chegareis lá pela agricultura […] A fainaagrícola […] é, acima de tudo, uma vocação de pobreza».

Esta «vocação de pobreza» levou o salazarismo a promo-ver a formação de hortas na periferia de Lisboa e no interiordo Porto e das outras maiores cidades. Durante os ócios, quedeixavam assim de o ser, os operários eram incentivados acultivar legumes e criar pequenos animais domésticos,produzindo suplementos alimentares que compensassem osbaixos salários. Num círculo vicioso, este trabalho gratuitopressionava as remunerações no sentido da baixa, instauran-do uma forma dupla de mais-valia absoluta. Aliás, não sónos fascismos mas em todos os outros regimes capitalistas aagricultura familiar tem servido de fonte de mais-valia abso-luta, baseada no facto de o tempo de trabalho não ser contabi-lizado como custo na economia doméstica. Remeto o leitor

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para o que escrevi a este respeito num livro de fácil acesso(ver as Referências no final deste artigo). Mas é interessanteverificar que aquela modalidade de agricultura familiar esti-mada pelo salazarismo é tida hoje pela esquerda ecológicacomo a última novidade, chegando alguns ao ridículo decultivar hortas nas calçadas, quando ocupam simbolicamen-te praças por aqui e por acolá.

Outro exemplo das contradições implícitas no tema do re-gresso à natureza e da apologia da agricultura familiar foi for-necido em França pelo regime fascista conservador estabele-cido em Vichy sob a égide das autoridades militares do Ter-ceiro Reich, que ocupavam o país. Por um lado, a propagandaoficial e, mais do que tudo, os discursos do velho marechalPétain invocavam a necessidade de regenerar a França atravésdas virtudes rústicas e exaltavam como modelo o pequenocamponês. Mas, por outro lado, só pouco mais de mil e qui-nhentas famílias pediram os subsídios previstos na nova le-gislação e regressaram à actividade rural. E entretanto a reor-ganização económica do sector agrícola, em vez de obedeceraos interesses dos pequenos camponeses, foi entregue a técni-cos estreitamente ligados à grande agricultura capitalista,nomeadamente à Confederação Geral dos Plantadores deBeterraba e à Associação dos Produtores de Trigo, e a inter-venção do Estado destinou-se mais a estimular o aumento daprodutividade do que a defender a exploração familiar.

Mas é no Terceiro Reich que melhor podemos analisar o mitoda natureza e a política de promoção da agricultura familiar.

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ReferênciasA primeira citação de Henry Ford e a terceira encontram-se em Allan Ne-vins e Frank Ernest Hill, Ford. Expansion and Challenge, 1915-1933, NovaIorque: Charles Scribner’s Sons, 1957, págs. 226 e 227. Note-se que na pri-meira citação traduzi «farmer» por «homem do campo» para evitar as ambi-guidades do termo «camponês» aplicado aos Estados Unidos. A segunda ci-tação de Ford foi extraída do seu livro El Judío Internacional. Un Problemadel Mundo, Leipzig: Hammer, 1932, pág. 121 (sub. orig.). A opinião de Hi-tler sobre Henry Ford encontra-se em Mein Kampf, Londres: Pimlico, 1995,pág. 583. A primeira passagem citada do discurso de Salazar em Maio de1953 encontra-se em Fernando Rosas, Fernando Martins, Luciano do Ama-ral e Maria Fernanda Rollo, O Estado Novo (1926-1974), em José Mattoso(org.) História de Portugal, vol. VII, Lisboa: Estampa, s. d., pág. 457. As ou-tras duas passagens encontram-se em Fernando Rosas, «O Salazarismo e oHomem Novo: Ensaio sobre o Estado Novo e a Questão do Totalitarismo»,Análise Social, 2001, XXXV, nº 157, pág. 1035. As declarações de Mussoli-ni em Agosto de 1924 vêm citadas em Adrian Lyttelton, La Conquista delPotere. Il Fascismo dal 1919 al 1929, Roma e Bari: Laterza, 1982, pág. 406.A frase empregue numa publicação do Secretariado Nacional de Informaçãoe Cultura Popular encontra-se em Joaquim Pais de Brito, «O Estado Novo ea Aldeia mais Portuguesa de Portugal», em O Fascismo em Portugal. Actasdo Colóquio Realizado na Faculdade de Letras de Lisboa em Março de1980, Lisboa: A Regra do Jogo, 1982, pág. 530. A citação do discurso de Sa-lazar em 1935 pode ler-se em José Machado Pais, Aida Maria Valadas deLima, José Ferreira Baptista, Maria Fernanda Marques de Jesus e MariaMargarida Gameiro, «Elementos para a História do Fascismo nos Campos:A “Campanha do Trigo”, 1928-38», Análise Social, 1976-1978, XIV, nº 54,pág. 354. As passagens do discurso de Salazar em 1937 estão em João Ame-al (org.) Anais da Revolução Nacional, s. l.: Majesta, 1956, vol. IV, pág.182. O trecho do discurso de Salazar em 1966 encontra-se citado em Fer-nando Rosas et al., op. cit., pág. 417. O meu livro referido é Economia dosConflitos Sociais e a passagem mencionada encontra-se nas págs. 105-110da edição Cortez (São Paulo, 1991) ou nas págs. 144-150 da edição Expres-são Popular (São Paulo, 2009).

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A agricultura familiar no nazismo

O camponês foi um dos mitos centrais do Terceiro Reich,mas para compreendermos o plano em que este mito se radi-cou devemos recordar que, contrariamente à maior parte dosoutros fascismos, em que predominava o populismo social eeconómico, o fascismo hitleriano teve um carácter mais racialdo que social. Em Maio de 1930, numa acerba discussão comOtto Strasser, um dos expoentes da extrema-direita populista,Hitler proclamou que «as únicas revoluções são as revoluçõesraciais; não pode ocorrer uma revolução política ou económi-ca ou social — o que há sempre e apenas é a luta da camadamais baixa de raça inferior contra a raça superior dominante,e esta perde a partida se esquecer as leis da sua existência». Eapós ter tomado o poder, Hitler repetiu a um dignitário nazique «qualquer política que não tenha uma base biológica ouobjectivos biológicos é uma política cega».

Porém, até meados de 1934 o partido nacional-socialistateve uma vertente social, onde dominava a segunda figurado partido, Gregor Strasser, e uma vertente racial, centradana Baviera, onde dominava Hitler e pontificava Alfred Ro-senberg, o doutrinador oficial. A ascensão eleitoral dos na-zis não se deveu à ala racista de Hitler mas à ala populistade Gregor Strasser, predominante no grupo parlamentar,que formulava as propostas de política económica. Isto sig-nifica que os votos de um número crescente de alemães fo-ram mais atraídos pelo populismo do que pelo racismo. Atéo anti-semitismo comum na extrema-direita germânica foirevisto e atenuado pela ala populista do nacional-socialismo.

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Gregor Strasser não revelou nenhum tipo de racismo que odistinguisse da generalidade dos membros das classes do-minantes europeias daquela época. Por seu lado, ErnstRöhm, que durante os períodos em que chefiou as SA(Sturmabteilung, Secções de Assalto) foi uma das figurasmais influentes do partido nacional-socialista, jamais mani-festou traços de anti-semitismo, e parece ter procurado refreara política defendida por Hitler relativamente aos judeus. Maso sangrento expurgo ocorrido na noite de 30 de Junho para 1de Julho de 1934 liquidou os defensores de Gregor Strasser,que nessa altura já havia sido expulso do partido e foi assassi-nado, assim como liquidou Röhm e os seus fiéis e marginali-zou as SA em benefício dos SS (Schutzstaffeln, Esquadrõesde Protecção). Foi a partir de então que o nacional-socialismose converteu num fascismo estritamente racial.

Criados primeiro como uma milícia pessoal de Hitler, osSS resumiam-se a 100 ou 200 homens em 1926 e a poucomenos de 300 em 1929, mas eram já 2.000 em 1930, 10.000em 1931 e ultrapassavam os 50.000 por ocasião da tomadado poder, em Janeiro de 1933. Esta milícia foi convertida noprincipal instrumento de selecção biológica do nacional-socialismo. Recrutando os membros consoante critérios ra-ciais e condicionando-lhes os casamentos também segundocritérios raciais, os SS pretenderam constituir uma elite bio-lógica no interior de uma raça nórdica mais ampla, que des-se lugar a uma verdadeira raça de senhores. Racismo e eli-tismo confundiam-se numa mesma política entendida comobiologia aplicada. Podemos avaliar a dimensão deste processoao sabermos que o número de membros dos SS subiu de 210.00em 1936 para 350.000 em 1939 e 432.000 no ano seguinte,

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e que pelos Waffen SS (SS Armados), as forças militares da-quela milícia, haviam passado 750.000 homens no Verão de1942, atingindo-se os 900.000 no final da guerra.

Inicialmente foi sobretudo no campesinato que os SSpretenderam encontrar recrutas, consoante a orientação es-tipulada por Walter Darré. Amigo íntimo de Alfred Rosen-berg, o doutrinador oficial do nazismo, Darré filiara-se nopartido nacional-socialista em 1930 e fora nomeado conse-lheiro de Hitler para as questões agrícolas. Nessa época eramuito estreita a colaboração entre Heinrich Himmler, Rei-chsführer SS, ou seja, chefe supremo dos SS, e o seu su-bordinado, o Obergruppenführer SS Darré, que desde o fi-nal de 1931 ficou encarregado do Departamento Central deRaça e Colonização dos SS. Em seguida, desde o Verão de1933 até 1942, Darré foi Führer dos Camponeses do Reiche ministro dos Abastecimentos e da Agricultura.

Segundo Walter Darré, a população sedentária quecompunha o mundo agrário fora o elemento fundador daraça nórdica e continuava a fornecer-lhe o esteio maissólido e duradouro, em contacto orgânico com a terra,regada pelo sangue dos antepassados. Os camponeses eos proprietários rurais, entre quem teriam outrora surgi-do os guerreiros e os nobres, seriam ainda a força vitalda raça nórdica e deles haveria de renascer a nobreza desangue, fortalecendo-se a nova raça de senhores. «Talcomo a classe camponesa alemã é a fonte inesgotável dogermanismo, devendo por isso beneficiar de um trata-mento especial», teria declarado Darré a um grupo restri -to de dirigentes do partido nacional-socialista no Verãode 1932, «será também necessário garantir a segurança

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perpétua da nova nobreza e defendê-la da degenerescên-cia, submetendo-a às leis mais estritas da selecção bioló-gica e ligando-a à terra de maneira muito especial. […]Desde o início do novo sistema que os membros da clas-se dirigente do partido que ainda não tiverem vínculosrurais deverão assumir a direcção de uma “fazenda danova nobreza”, convertida em propriedade familiar here-ditária. Daí em diante os chefes políticos do movimentodeverão ser escolhidos unicamente entre os membrosdesta nobreza, instrumentos seleccionados do domíniomundial alemão». Já Hitler, em Mein Kampf, considerarao campesinato como o sustentáculo da raça e Rosenbergescrevera no mesmo sentido. O tema não era exclusiva-mente germânico, mas Darré converteu numa estratégiaracial o que para outros constituía apenas a resolução deum dilema social. Heinrich Himmler, ainda para maissendo agrónomo e membro do Conselho dos Campone-ses do Reich, partilhou a mesma opinião e, como disseem 1937, também ele se julgava «pelos antepassados,pelo sangue e pelo temperamento um camponês». E noano anterior afirmara que «a concepção de sangue defen-dida pelos SS está indissoluvelmente ligada à crença novalor do solo e no seu carácter sagrado».

Todavia, surgiu então uma discordância. Himmler come-çara a interessar-se pelo recrutamento sistemático dos prin-cipais empresários, dos principais gestores, dos membrosmais proeminentes das profissões liberais. E como as nor-mas de recrutamento dos SS constituíam elas mesmas umprocesso de depuração racial, não seria possível escamotearindefinidamente a contradição entre o quadro de selecção

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arcaico e rural defendido por Darré e o quadro moderno eurbano em que Himmler passara a empenhar-se. Os interes-ses específicos da tecnocracia SS, sobretudo quando ela ad-quiriu o domínio absoluto nos territórios conquistados aLeste do continente, deram azo a conflitos sérios quanto àsmodalidades de colonização e precipitaram para o planoprático hostilidades que até então haviam podido disfarçar-se em termos ideológicos, comprometendo a antiga conver-gência de pontos de vista entre Himmler e Darré. Pelo me-nos, com os dados de que disponho, é desta maneira que in-terpreto uma questão ainda controversa entre os historiado-res. Obrigado em 1942 a abandonar a direcção do Ministérioda Agricultura, Walter Darré foi também substituído na che-fia do Departamento de Raça e Colonização dos SS.

A preservação racial dos camponeses, no entanto, nuncadeixou de ser defendida até ao final do Terceiro Reich e,mesmo depois de eles terem sido secundarizados enquantobase de recrutamento da nova elite racial, a agricultura fami-liar continuou a ser promovida cultural e economicamente.

O regime nacional-socialista sustentou uma classe de pe-quenos agricultores com custos tão pesados que entre 1934 e1939, enquanto os orçamentos ministeriais aumentaram emmédia cerca de 170%, o Ministério da Agricultura viu o seuorçamento crescer cerca de 620%, ultrapassado apenas pelosministérios dedicados à preparação militar e à repressão.Mesmo depois de começada a guerra, só três ministérios dis-puseram de um orçamento superior ao do Ministério daAgricultura. Para firmar a nova ordem sobre uma base sociale racial estável foi promulgada em 1933 uma lei, completa-da por um decreto três anos depois, que instaurou o sistema

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de morgadio em terras de pequenas dimensões, e em 1938praticamente um terço da superfície cultivada obedecia aeste sistema. Mas apesar de todos os esforços o númerodos pequenos camponeses não cresceu significativamente,pois a lei de 1933 destinada a facilitar o desmembramentodas grandes propriedades apenas proporcionou a instala-ção em terras próprias de um pouco menos de cinco milfamílias em 1935 e de mil e quatrocentas em 1938. Tam-bém na organização global da economia não progrediu aparte devida ao sector rural, desfavorecido pelos movi-mentos relativos dos preços agrícolas e industriais. NoReich nacional-socialista os camponeses desempenharamum papel muito mais notável nas fábulas raciais do que navida real. «Quando os políticos idealizam o trabalho rural,estão sempre a ser hipócritas», anotou Victor Klempererna entrada de 19 de Julho de 1937 do seu diário.

Por todo o lado a mitificação do camponês serve de bi-ombo a uma política decididamente urbana e a industrializa-ção prossegue ao som da lira campestre. Em regra, quantomais uma se desenvolve no plano económico e social tantomais se faz ouvir a outra no plano ideológico. Por isso aAlemanha, o país fascista que possuía a infra-estrutura maisavançada e as técnicas produtivas mais inovadoras, foi tam-bém aquele onde a mitificação do camponês atingiu as pro-porções mais delirantes. Quem observe a pintura executadano Terceiro Reich e imposta pelo gosto oficial tem de fazerum verdadeiro esforço para recordar que se estava numa dasnações mais industrializadas do mundo e que o nazismo foraposto no poder para atingir taxas de crescimento económicomuito elevadas. Não só a indústria era geralmente excluída

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da representação pictórica, identificando-se o mundo do tra-balho com o meio rural, mas além disto os camponeses erammostrados a manejar apenas instrumentos arcaicos, nuncausando a maquinaria agrícola, sem a qual a exploração mo-derna da terra teria sido impossível. Se bastava o lugar ocu-pado pelo campesinato na pintura do Terceiro Reich paramitificar a sociedade da época, a maneira como o camponêsera figurado constituía uma mitificação suplementar. Tra-tava-se aqui estritamente de processos ideológicos.

Como não podia deixar de suceder no fascismo, onde apolítica era concebida enquanto acção estética, a ideologiaapresentava-se como uma encenação. A ecologia serviu depano de fundo no enorme palco de massas em que Hitlerconvertera o seu Reich, alcançando uma dimensão tantomaior quanto era necessário que cobrisse uma sociedadeintensamente industrializada. Até à sua morte acidental nosprincípios de 1942, Fritz Todt foi um dos principais perso-nagens do regime. Encarregado de dirigir a construção deauto-estradas e criador da colossal Organização Todt, umaempresa de obras públicas de carácter paramilitar ligada di -rectamente ao partido nacional-socialista, Todt procurouharmonizar a indústria e o meio ambiente, esforçando-sepor integrar as grandes vias de comunicação na paisagem,ao mesmo tempo que impôs normas estritas de preservaçãoda natureza e de manutenção do equilíbrio ecológico. «NaAlemanha, o objectivo final da construção de auto-estradasnão é o mero serviço de transporte», proclamou ele. «Aauto-estrada alemã deve exprimir a paisagem que a rodeiae exprimir a essência alemã».

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E que essência era essa? Foi através da ecologia queos nacionais-socialistas inseriram o racismo num quadroideológico e prático mais vasto. E de nada vale os actu-ais defensores da ecologia argumentarem que esta linha-gem não é significativa e que o movimento ecológico, oumesmo o MST e os outros movimentos de luta pela terra,recebendo um apoio de massas, estariam imunizados detendências perversas, porque convém não esquecer que ofascismo foi igualmente um movimento de massas.Quando sabemos que os eugenistas colocavam os méto-dos de aperfeiçoamento biológico da raça humana nomesmo plano das melhorias a introduzir na criação dogado e na cultura selectiva das plantas e quando recorda-mos que eram muito estreitos os contactos entre as asso-ciações de criadores de gado e as sociedades eugenistas,compreendemos a íntima relação existente entre a ecolo-gia e o racismo no Terceiro Reich.

Preservar a natureza e preservar a raça, cuidar dos ani-mais domésticos e dos escravos eslavos considerados sub-humanos, arrancar as ervas daninhas e aniquilar os judeus,tudo isto era integrado pelos nacionais-socialistas numa es-fera ideológica única. As primeiras reservas naturais na Eu-ropa foram criadas pelo Terceiro Reich, que levou a caboum conjunto de medidas que qualquer ecologista dos nossosdias não deixaria de aplaudir. Em 1935, precisamente nomesmo ano em que foram promulgadas as chamadas Leis deNuremberga, destinadas a assegurar a preservação da raça ger-mânica, publicou-se um complexo legal visando a preservaçãoda natureza, com um escopo sem precedentes. Muito clara-mente, foi uma mesma inspiração que presidiu a todas estasdisposições, e a gratidão dos ambientalistas não se fez esperar.Em 1939 estavam inscritos no partido nacional-socialista 60%

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dos membros das principais associações de protecção da na-tureza que haviam existido durante a república de Weimar.«O artificial está por todo o lado», queixou-se HeinrichHimmler, Reichsführer SS; «por todo o lado os alimentossão adulterados com ingredientes que supostamente os fa-zem durar mais tempo ou ter melhor apresentação ou que osfazem passar por “enriquecidos” ou por qualquer outra coisaem que a publicidade da indústria queira que acreditemos[…] estamos nas mãos da indústria alimentar, cujo poderioeconómico e cuja publicidade lhes permitem ditar o que po-demos e não podemos comer». E este indómito defensor dosalimentos orgânicos anunciou um futuro brilhante para quan-do o Terceiro Reich triunfasse na guerra. «Depois da guerratomaremos medidas enérgicas para evitar a ruína do nossopovo pelas indústrias alimentares».

Himmler promulgou em Dezembro de 1942 um decretoacerca da forma como o solo devia ser tratado nos territórioseslavos conquistados a Leste, em que se lê: «Os camponesesda nossa raça esforçaram-se sempre cuidadosamente por au-mentar os poderes naturais do solo, das plantas e dos ani-mais e por preservar o equilíbrio de toda a natureza. Paraeles, o respeito pela criação divina é o padrão de toda a cul-tura. Assim, para que os novos espaços vitais se tornem umapátria para os nossos colonos, uma condição prévia funda-mental é o ordenamento planificado da paisagem, de manei-ra a mantê-la próxima da natureza». Já Walter Darré haviadefendido que outros povos, como os celtas e os eslavos,não possuíam a mesma ligação entre sangue e solo quecaracterizaria os nórdicos; e quanto aos judeus, eles seriamdesprovidos de implantação na terra, já que eram um povosem raízes. O Judeu Errante não era para os nazis só uma figu-ra negativa do reino animal, mas igualmente do reino vegetal.

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No Terceiro Reich as pequenas fazendas familiares e a agri-cultura ecológica fizeram parte do mesmo quadro que levouao genocídio dos judeus e à escravização dos eslavos. Assimcomo era preciso arrancar as ervas daninhas e domesticar ogado para «aumentar os poderes naturais do solo» e «preser-var o equilíbro de toda a natureza», também — e pelas mes-mas razões — se justificavam as medidas racistas. Comoobservou Emmanuel Ringelblum na sua crónica secreta,«Eles» — na linguagem parcialmente cifrada empregue poreste historiador, «Eles», com maiúscula, designava os ocu-pantes nazis da Polónia — «comparam os judeus a umaplanta parasitária que vive doutras plantas». Darré referira-se aos judeus como «ervas daninhas», e é conhecida a com-paração estabelecida por Himmler entre os eslavos e o gadode trabalho, no aterrador discurso que proferiu em Poznan,em Outubro de 1943. «É-me completamente indiferente oque possa suceder a um russo ou um checo. […] É evidenteque nunca devemos ser brutais ou cruéis sem necessidade.Nós, os alemães, que somos o único povo no mundo a teruma atitude decente para com os animais, também assumire-mos uma atitude decente para com estes animais humanos.Mas é um crime contra o nosso próprio sangue preocu-parmo-nos com eles e darmos-lhes ideais […]».

A política racial de escravismo e genocídio foi apresenta-da pelos nazis como uma conclusão lógica do mito do equi-líbrio da natureza, que fundamenta a ecologia. Por isso, emnada nos deve espantar o facto de as repercussões ambien-tais e paisagísticas terem sido debatidas pelos tecnocratasque dirigiram a ampliação do complexo concentracionáriode Auschwitz. Entre o culto da natureza, enquanto apologiada autoridade e da tradição, e a invocação das raízes, en-quanto legitimação do massacre rácico, a ecologia e a agro-ecologia contemporânea encontram o seu quadro inspirador.

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ReferênciasA declaração de Hitler a Otto Strasser acerca da revolução racial encon-tra-se em Alan Bullock, Hitler. A Study in Tyranny, Harmondsworth:Penguin, 1972, págs. 157-158 e J. Droz, Le National-Socialisme, Paris:Centre de Documentation Universitaire (Les Cours de la Sorbonne, poli-cop.), s. d., págs. 16-17. A declaração no mesmo sentido mencionada emseguida encontra-se em Hermann Rauschning, Hitler m’a dit. Confiden-ces du Führer sur son Plan de Conquête du Monde, Paris: Coopération,1939, pág. 274. As declarações de Walter Darré no Verão de 1932 estãoreproduzidas em Hermann Rauschning, op. cit., págs. 55-56. A declara-ção de Himmler em 1937 pode ler-se em Roger Griffin (org.) Fascism,Oxford e Nova Iorque: Oxford University Press, 1995, pág. 147 e a de-claração de 1936 está em E. K. Bramstedt, Dictatorship and Political Po-lice. The Technique of Control by Fear, Londres: Kegan Paul, Trench,Trubner & Co, 1945, pág. 83. A citação do diário de Victor Klempererencontra-se em Martin Chalmers (org.) I Shall Bear Witness. The Diari-es of Victor Klemperer, 1933-1941, Londres: The Folio Society, 2006,pág. 268. A frase de Fritz Todt foi citada por Janet Biehl e Peter Stau-denmaier, Ecofascism. Lessons from the German Experience, Edimbur-go e San Francisco: AK Press, 1995, pág. 21. As declarações de Himm-ler em defesa dos alimentos orgânicos encontram-se em Jonah Goldberg,Liberal Fascism. The Secret History of the Left from Mussolini to thePolitics of Meaning, Londres: Penguin, 2009, pág. 301. A passagem dodecreto de Himmler de Dezembro de 1942 vem em Janet Biehl et al., op.cit., pág. 16. A citação de Ringelblum está em Emmanuel Ringelblum,Crónica do Ghetto de Varsóvia, ed. org. por Jacob Sloan, Lisboa: Morais,1964, pág. 42. A referência de Walter Darré aos judeus como «ervas dani-nhas» está em Janet Biehl et al., op. cit., pág. 20. Finalmente, aquela pas-sagem do discurso pronunciado por Himmler em Poznan, em Outubro de1943, vem citada em Alan Bullock, op. cit., págs. 697-698 e Martin Gil-bert, The Second World War, vol. II: From Casablanca to Post-War Reper-cussions, 1943-1945, Londres: The Folio Society, 2011, pág. 543.

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William Gillis2

Ecofascismo revisto

Sejamos explícitos: o ecocídio está em andamento.

Embora ainda possamos evitar as possibilidades mais seve-ras do colapso ecológico global, há muito a situação tem sidosombria. E não é só uma questão do capitalismo ou do Estadoestarem tomando decisões únicas e ruins, as tensões em jogosão profundas – vem do âmago do próprio homo sapiens.

A cognição humana e a colaboração social humanas cri-aram uma explosão evolutiva temporalmente separada deuma resposta significativa do seu entorno ecológico. Aevolução biológica avança ao passo de gerações e mudan-ças genéticas incrementais, mas nossos pensamentos sal-tam à frente, capazes de gerar incríveis e complexas cons-truções em um minuto apenas. Isso dá ao nosso meio ambi-ente pouco tempo para se adaptar ou reagir. A evolução tec-nológica avança muito mais rápido do que os processos bi-ológicos evolutivos possam responder de forma efetiva, e,é claro, o leviatã político e a monstruosa infraestrutura nosalienam ao ponto de não nos importarmos com qualquerresposta. Os únicos sinais que emergem das nossas técni-cas introduzidas abruptamente tendem a ser cataclísmicos:

2 Publicado no site www. humaniterations.net/2018/08/10/ecofascism- reviewed. A tradução é da Ed. Subta, revisão de Calafate.

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a extinção completa de espécies, o colapso das cadeias ali-mentares. Nossas cabeças se transformaram em pequenosecossistemas, como ilhas, acelerados em milhares de vezes,gerando doenças e criaturas (na forma de tecnologias físi-cas e culturais) que o resto da Terra está completamentedespreparado para lidar. Nossos monstros escaparam denossas cabeças e passaram a devastar o mundo físico.

Nós, seres humanos, somos parte da natureza, no senti-do de sermos fisicamente produtos de um passado biológi-co, mas estamos separados do ritmo lento dos ciclos estabi-lizantes de retroalimentação da biosfera terrestre. Todamente ativa e esforçada é uma pequena explosão cambria-na, granadas lançadas ao mundo, arrancando a carne daqui-lo que existe. Não podemos ser qualquer outra coisa semque tranquilizemos nossos pensamentos ao passo de nossoecossistema e de suas pressões glaciais evolucionárias.

A questão é profunda: nosso contexto ecológico – inclu-sive nossos corpos – são complexos demais para que possa-mos alguma vez predizer com perfeição as consequências denossas ações. Porém, desacelerar, recusar a refletir e repen-sar nossas ideias, retornar ao instinto puro irrefletido, seriamatar nossa própria consciência. Pensar, refletir, é gerar pos-sibilidades, lançando-se para além do controle de formassurpreendentes e às vezes perigosas e destrutivas. Podemosabraçar a morte que é a previsibilidade e nos tornarmos en-grenagens estúpidas num ecossistema estabilizado, ou pode-mos abraçar os riscos e perigos da liberdade, da invenção eda exploração. Podemos recuar para a segurança da identi-dade essencialista, para um papel cumprido de forma obedi-ente e irrefletida, ou podemos assumir uma responsabilidadeativa, reconhecendo que ela envolve inerentemente a criaçãode novos problemas ao lado de nossas novas soluções.

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De certo modo, toda questão política é ou uma facetadessa tensão fundamental, ou uma distração dela.

Anos atrás, durante o colapso da Resistência Verde Pro-funda (Deep Green Resistance), um primitivista, que estavagritando lixo transfóbico para aquelas de nós que confronta-vam seus amigos, de repente mudou de discurso: “Eu traba-lharia amarradão com os nazistas para parar a civilização! Éisso que importa!” Percebendo que havia perdido o público,ele decidiu fazer uma gritaria dizendo “Do What Thou Wilt”(“Faça o que tu queres!”, pois é claro que ele fez isso.

Mas, lamentavelmente – ainda que eu tenha me opostoardorosamente – ainda tenho um pouquinho de simpatiapor aquela posição.

Apesar de ter sido primeiro publicado em 1995, eu eviteifirmemente a leitura do livro Ecofascismo: Lições da Expe-riência Alemã, escrito por Janet Biehl e Peter Staudenmaier.

Existe uma visão, para muitos anarquistas que aparece-ram naquele momento, do Velho Bookchin como um vilão.Essa narrativa é bem poderosa, quase vale subir num ringuepor ela. Um esquisitão, arrogante e representante da VelhaEsquerda do Mal, declara guerra contra As Crianças, faz pa-pel de bobo, eventualmente se torna tão derrotado que ele dáum discurso sobre como não era um anarquista mesmo epara de nos atormentar com sua campanha de dominação daanarquia e de nos mandar para reuniões na prefeitura.

Mesmo aqueles mais Vermelhos tendem a vender essanarrativa como “Sei que ele tinha uns bons pontos sobre al-guma fração de pessoas de merda do outro lado, mas, ca-ramba, ele virou um maluco totalmente desconectado, e seusseguidores eram de dar vergonha.”

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Janet Biehl é uma dessas que se autointitulava de segui-dora, uma que ainda se vê orgulhosamente levando adianteo trabalho dele – chegando ao ponto de dobrar a adoção doestatismo por Bookchin, indo explicitamente mais além doque ele foi. Enquanto Peter Staudenmaier aparentementepermanece um anarquista de alguma forma, ele também se-gue solidamente a tradição de Bookchin. Isso tudo é incri-velmente relevante porque o livro Ecofascismo foi muitovisto como uma parte bastante explícita do cabo de guerraentre o círculo de Bookchin e seus críticos.

Naqueles dias remotos, o principal racha no anarquismoera entre Verdes e Vermelhos. E os Bookchinitas – devido atodo o seu falatório sobre ambientalismo – representavamfirmemente o Time Vermelho.

Nesse contexto, não havia confusão em relação a um títu-lo como “Ecofascimso” – o livro estava chamando todos osanarquistas verdes que discordavam de Bookchin, ou me-lhor, com quem ele discordava, de “fascistas”.

Então, por duas décadas nunca me preocupei de ler o li-vro. No final das contas, todo mundo sabia do que se trata-va o conteúdo. Eram apenas alguns casos escolhidos adedo, onde alguns malucos do partido nazista uma vez dis-seram alguma coisa boa sobre árvores, uma enorme merdaridícula que gerava culpa devido a associações discursivasfrágeis. Estava mais para um derradeiro insulto desespera-do do que para um livro. Quando alguém coloca cocô decachorro num pacote de papel pegando fogo na sua varan-da, você não se detém para ler o que está escrito no pacote.

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É estranho que esses instintos tribais perdurem por tantotempo e estejam tão profundamente assentados. Eu já dissepublicamente que o “nihilismo” é melhor compreendidocomo a cola anti-intelectual que sustenta criticamente ideo-logias como o fascismo. Também comparei o grupo “eco-terrorista” ITS, que fetichizava o assassinato, com os fas-cistas, perguntando que diferença ética relevante existe en-tre essas duas ideologias para que tenhamos respostas dife-rentes de cada uma delas. A reação a essas afirmações rara-mente se preocupava com coerência. As velhas narrativas,as velhas identidades tribais, falavam mais alto. Para mui-tos pós-esquerdistas, esses meus artigos vinham apenas demais um sujeito que estava substituindo Bookchin. Essecara vem atacar nossa família, nos chama de fascistas, pro-vavelmente vai tentar empurrar os antifa para nos dar umasurra já que não somos esquerdistas devotos o suficienteao seu credo. Um anarco-policial. Ou algo do gênero.Mas, sabe de uma coisa? Ainda carrego esses mesmos vi-eses tribais – aquela profunda hostilidade contra a pós-esquerda – com relação ao Ecofascismo.

E embora ele seja um texto imperfeito, lambuzado comalgumas posições ideológicas maçantes a la Bookchin, fi-quei surpreso com a simplicidade, a objetividade e o quãonão polêmico da maior parte do livro.

Antes de lê-lo, desencavei algumas reações antigas, bus-cando me precaver com uma boa dose de julgamentos críti-cos. Mas mesmo antes de ler Ecofascismo, era desalenta-dor perceber o quão porcamente se sustentavam minhasrespostas de antes. Coisas como “na real, os VerdadeirosFascistas são aqueles que estão cortando as árvores”.

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Mesmo as melhores críticas não passavam do óbvio,“Toda ideologia possui sobreposições em algum ponto comqualquer outra ideologia. Aquelas do regime nazista com oambientalismo são irrelevantes. Até mesmo apontar isso éobviamente uma tentativa de difamar por associação.”

Já de partida, ninguém queria aceitar o termo “ecofascis-ta”. E, de fato, é assombroso que a afirmação “isso não exis-te!” tenha virado uma resposta tão instintiva nos círculospós-esquerdistas. É claro que existe um monte de fascista nomovimento ecologista, mas isso não significa que você podeusar um termo para descrevê-los!

Nos círculos mais distantes dos antifascistas acadêmicos,“fascismo” é um insulto muito carregado, é “a coisa maismalvada de todas”, uma posição vazia que aparentementeestá fechada para qualquer inovação. Todo tipo de avaliaçãocrítica deve ser deixada de lado. No melhor dos casos, vocêaté pode ler um artigo, um livro, sobre fascismo só para con-firmar seu próprio viés e se recusar terminantemente a ir alémdisso. Não deveria ser uma surpresa que o discurso anarquistaverde sobre o fascismo muitas vezes se manteve fraturado demaneira ridícula e insignificante. “Pois é, nacionalismo não éessencial para o fascismo, o modernismo sim, então os meuscompadres brancos nacionalistas pagãos não são fascistas.Por definição, eles não podem ser”. Até hoje, ainda tenhomedo da pessoa que diz que Indivíduos tendendo à Selvageriasão exatamente o oposto dos fascistas porque a sua fetichiza-ção machulenta do assassinato aleatório constitui a liberaçãode paixão libidinal ao invés da sua supressão.

O que está no núcleo do fascismo obviamente seguesendo uma pergunta controversa. O que define o fascismo?

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E existem pontos ainda mais profundos em jogo aqui:como podemos distinguir e processar os conceitos em geral.O que define qualquer termo? Será que o anarquismo é umobjetivo (uma sociedade sem classes onde todas as pessoasformam comunidades e os bens são guardados em dispensascoletivas onde toda quinta-feira, de acordo com um processomodificado de consenso, acontece…), é uma filosofia ética(a busca pelo aumento da liberdade de todo mundo), é umcódigo de conduta (nunca tome a iniciativa na violênciaagressiva), uma coleção variada de rituais numa subcultura(consenso, comida ao invés de bomba, dar um pau na polí-cia…)? Será que ele é um discurso relativamente fechadoonde todo mundo lê autores semelhantes e usa termos seme-lhantes? Será que o anarquismo é aquilo que a grande maio-ria das pessoas pensa que ele é baseado no que a mídia diz(quebrar vidraças para alcançar um mundo onde todo mundose mata porque “foda-se o sistema”)?

De maneira semelhante, será que a ciência é um fenôme-no sociológico nas culturas Ocidentais Educadas IndustriaisRicas e Democráticas? Seria ela um conjunto de institui-ções? Seria uma metodologia? Ou uma direção de pensa-mento, um tipo de desejo?

É claro que cada uma dessas definições possui substân-cia, e elas podem se influenciar mutuamente e se inter-rela-cionar. Mas devemos ter cuidado com a pessoa que tentaembaralhar todas essas definições numa coisa só – e maisainda caso tente tomar essas associações como um pacoteúnico. Entender que diferentes pessoas têm diferentes defi-nições em mente – às vezes uma fusão confusa – não é a mes-ma coisa que pensar que não existe uma definição mais útil.

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Em última instância, radicais tentam usar a linguagem e osesquemas conceituais para “destrinchar a realidade pelosligamentos” – para enfatizar o que está mais profunda-mente enraizado e o que pode ser modificado. Para mape-ar não apenas particularidades míopes do existente, mas aamplitude total do possível.

Então, será que o fascismo significa ser mau ou dizerpara as pessoas não fazerem certas coisas? Será que o fascis-mo é uma gigantesca máquina industrial de mortes? Seráque o fascismo é uma forma de estatismo?

Por décadas, acadêmicos e eruditos antifa instauraramum consenso meio bruto: o fascismo é um ultranacionalis-mo palingenético anti-moderno, a ausência de empatia porestrangeiros e a fetichização de um retorno violento a umpassado mitologizado – com um arquipélago de posiçõesfrequentemente conectadas como os essencialismos patriar-cal e supremacismo branco. Porém, como corresponde aativistas pragmáticos, essa é uma definição mais políticado que filosófica ou psicológica.

Para tentar falar do fascismo como uma filosofia clara-mente será preciso deixar de lado um monte de particulari-dades arbitrárias como o antissemitismo. Mesmo a maioriados racistas não argumentaria que existe um conceito debranquitude a priori. Ao invés disso, o que resta é uma in-tensificação da ideologia do poder que já domina o mundoao nosso redor. Pessoas que enxergam as coisas exclusiva-mente em termos de coerção, identidade e hierarquia… umjogo simplista mas generalizado que elas tentam vencer.Foda-se a empatia, a ética, a compaixão, o amor e todas as

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outras formas de investigação intelectual. Foda-se até mes-mo a mente, vamos fetichizar a brutalidade da força. Certo éo poder. A tribo imediata de um contra a de todos os outros.

Entretanto, é importante que não nos lancemos muitolonge nesse tipo abrangente de compreensão filosófica en-quanto a realidade política do fascismo continua em marcha.

No discurso popular, o fascismo geralmente é apontadolevianamente como assassinato em massa e um Estado au-toritário. Porém, por mais que essas coisas sejam muito ru-ins, elas não são únicas. Será que era “fascismo” quandoGengis Khan exterminou uma grande fração da populaçãohumana? Será que era fascismo quando o rei Leopoldo es-cravizou e massacrou milhões de pessoas3? Será que a co-lonização europeia e a campanha de extermínio nas Améri-cas era fascismo? Será que o Estado de Ran Wei4, que ex-terminou os Wu Hu e os Jie, era fascista? Teria sido Mao?Será que as primeiras tribos que realizavam ataques surpre-sas em território inimigo eram fascistas?

Certamente podemos concluir que, em termos éticos,essas eram situações comparáveis – e até enfatizar seu ca-ráter fascista – sem ter que, no processo, reduzir inteira-mente o “fascismo” a essa fina sujeira. O maoismo, impe-rialismo, fascismo, todos eles podem ser horríveis cadaqual de forma única. Pode ser revelador apontar as premis-sas de pensamento fascistas que acontecem em cada um.

3 O rei Leopoldo II da Bélgica foi responsável pela morte e mutilação de 10 milhões de congoleses durante o final do século XIX.

4 O Estado de Ran Wei estendeu-se de 350 a 352 DC, e, neste curto período, caracterizou-se por decisões apressadas e execuções e migrações em massa.

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Pode ser produtivo falar em “fascismo vermelho” ou chamarcertas forças de “fascistas”. Mas também é importante reco-nhecer que as ideologias que acarretam assassinatos emmassa não são homogêneas. O autoritarismo implícito deMarx pode ter impregnado o marxismo com uma certa incli-nação em direção aos horrores do totalitarismo, mas nuncaserá possível parar seja o marxismo ou o fascismo se vocêmistura-as numa mesma papa indiferenciada de maldade.

O primitivismo é conceitualmente distinto do fascismo.

E a ecologia não é o nacional-socialismo.

Obviamente.

Existem ideias fundamentais diferentes. E elas emergemtambém de alguma forma diferente. Por exemplo, as raízesmarxistas de Zerzan são bastante óbvias – ele não chegouna sua visão política por Evola ou Schimitt. Mas, é claro,existem algumas raízes mais confusas, como aconteceucom muita gente da classe aristocrática que recuou para asartes liberais no início do século XX e que se colocou con-tra a civilização, o mundo moderno e a tecnologia. Veja porexemplo, Heidegger e muitos dos professores deKaczynski em Harvard. Mas no geral, existem ideias dis-tintas em amplos contextos sociais distintos.

Fascismo e primitivismo não são a mesma coisa.

Entretanto, existe uma aproximação bem óbvia entre eles.Existem sobreposições bastante grandes e significativas en-tre as ideologias verdes e as fascistas. E existe uma toneladade nazistas que fundamentam explicitamente suas políticas,que justificam sua filosofia, em termos ecológicos.

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Ignorar isso requer ignorar brutalmente o que é o fas-cismo – reduzindo-o a meramente um velho autoritarismoqualquer, ou adotando narrativas obviamente falsas e ul-trapassadas sobre ele ser inerentemente capitalista, mo-dernista ou formalmente estatista (como contraexemplo,veja os “anarquistas nacionalistas”).

Um retorno cataclísmico a um passado mitologizado, dire-cionar a atenção e a empatia para o que há de local, reificar aidentidade essencialista, um estado natural de ser e uma or-dem natural… Tudo isso brota e caminha lado a lado com osmesmos impulsos centrais que motivam todos os tipos depessoas que falam de um retorno à natureza. Existe a mesmadinâmica subjacente seja no fascismo, seja no primitivismo.

Um anarquista sincero como Zerzan pode ter algo bemdiferente em mente quando fala de natureza humana, masem ambos casos, o componente agencial, o ético, o compo-nente da investigação filosófica ativa é abandonado. O Bemnão é algo a ser investigado, criticado, ou descoberto maisintegralmente, mas apenas algo a ser adotado por padrão.Ele aparece completamente formado, como os mandamentosou uma bíblia sagrada – e normalmente tão arbitrária quantoambos. O que existe é apenas algum plano, algum estado deser, alguma configuração primal que persistentemente deve-mos obedecer. E nesse tipo niilista de abnegação, encontra-mos algo enquadrado como “libertação”, liberdade de pen-samento, liberdade do estresse de ter que decidir e avaliar.

As ideologias verdes dificilmente estão sozinhas nessavirada desastrosa para a falácia naturalista – daria para cer-tamente citar vários comunistas e capitalistas -, mas elas são

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vitoriosas sem concorrentes nesse âmbito. E aí é onde asideologias verdes, podemos dizer, têm algo mais em co-mum – na raiz – com as ideologias fascistas do que comas comunistas e capitalistas.

Nenhum primitivista, anticivilização ou ativista verde dequalquer naipe está clamando pela estética precisa de Aus-chwitz. Porém, podemos perceber que chamados para assas-sinatos em massa são relativamente um lugar comum. Não épreciso sair escancarando seu vizinho desequilibrado atravésde um blog que mescla merdas pagãs, primitivistas ou fas-cistas; existe uma longa história de lixo essencialista, racistae patriarcal nos círculos verdes. Mesmo Ivan Illich apoiava a“ordem natural” através de bases eugênicas para evitar a“degeneração genética” que ele acreditava caracterizar a eraatual. As merdas reacionárias trazidas à tona por figuras in-fluentes como Dave Foreman, Edward Abbey e TedKaczynski são tão numerosas que não tem como listá-las.

O meu ponto aqui é que isso reflete a tensão mais profun-da e fundamental sobre como respondemos ao pensamento eà capacidade de ação humanas e seus efeitos negativos. Seráque abraçamos ou suprimimos isso? O fascismo e muitasideologias verdes estão presas na ressaca em um dos ladosdessa questão, daí a propensão a dançarem juntos.

Em uma infame declaração defendendo uma publicaçãoreacionária em particular, uns caras perguntaram recente-mente a seguinte questão retórica importuna, “e se a Terraverdadeiramente estiver em primeiro lugar?”5

5 Referência ao movimento radical ambientalista Earth First! A terra primeiro!)

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Bom, num certo sentido, essa é uma questão particular-mente horripilante. É pegar o slogan de verdes reacionárioscomo Foreman e tentar extrapolar conclusões filosóficas ab-solutistas. E sim, as ramificações podem apenas ser algo per-to do extermínio total da vida consciente. No Instituto Selva-gemista (Wildist Institute), John Jacobi literalmente afirmouque as pedras têm mais valor que as pessoas. É a posição con-servadora mais extrema! Pensar, ser capaz de agir, em si mes-mo, isso muda as coisas e esse tipo de mudança é ruim.

Obviamente, não estou dizendo que o Partido NacionalSocialista dos Trabalhadores Alemães tinham “a extinçãohumana e a proibição da consciência” como uma platafor-ma política. Nem eles foram tão longe! Nem qualquer dospivetes da “civilização ocidental” enaltecedores da “identi-dade” da nossa era está sonhando com uma purificação ét-nica que deixasse não mais que pedras pela Europa. Masfaz sentido a rejeição niilista do pensamento engajado e daempatia em favor do essencialismo? Um violento retorno aum passado mitologizado? Claramente, essas coisas estãono ar, mesmo que ainda não tenham aterrissado.

Os tipos de viagens ideológicas presentes nos mais extre-mos círculos verdes de diversas formas se parecem com umalimpeza das mesmas forças ideológicas em jogo na Alemanhade Hitler. Será que abraçamos as complicações ocasionadaspelo pensamento, ou nos afastamos delas? Quando a razãoluta ou expõe complicações, será que redobramos a razão emsi (“foi o próprio erro que nos trouxe até aqui”) ou abandona-mos ela? Vamos escolher a liberdade ou a segurança?

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Se existe um pecado em Ecofascismo: lições da Expe-riência Alemã, é que o livro não se dedica suficientemente aessas questões mais profundas. A invectiva bookchinita atin-ge os contornos externos, mas termos como “místico” ou“irracional” não dão realmente embasamento para ou expli-cam o assunto. Frequentemente, a abordagem é um em-préstimo direto dos resmungos de Bookchin sobre o meioanarquista. E isso é perigoso, pois significa que um montede argumentos são insinuados mas não diretamente apresen-tados. O que é um pecado necessário em alguns contextos,porém ninguém que enfia goela abaixo uma crítica do “hu-manismo” como apenas uma forma de “nacionalismo huma-no”, por exemplo, irá responder bem a referências positivasao humanismo ou afirmará implicitamente que alguém quetem objeções a isso seja, portanto, um reacionário.

O que Ecofascismo: lições da experiência alemã tenta fa-zer é, em vez de trabalhar sobre um argumento mais profun-do do porquê o fascismo e a ecologia entrariam na órbita umdo outro, fornece uma lista de encontros. Aí dá para ver porque a crítica fez um tremendo alarde. Porém, os exemplosde cruzamento entre os dois que o livro aponta são muitosólidos, e na verdade formam uma coleção avassaladora.

Admito que, embora eu seja familiar com muito do que Biehle Staudenmair versaram sobre, a agudeza de alguns exemplos ea implacável tempestade deles chegaram inclusive a me chocar.

Em precursores comuns do pensamento nazista e verde,como Ernst Moritz Arndt, encontramos declarações ex-plícitas afirmando que ambos estão interconectados comouma totalidade e, portanto, um ser humano é igualmente

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importante ou desimportante quanto uma minhoca ou umapedra. Algo não muito distante de Jacobi. Capacidade deagir, consciência, e liberdade? Quem precisa delas? Esseretorno às pedras inertes chocaria muitos dos anarquistasverdes que conheço, os quais são motivados a valorizar osecossistemas como um todo devido ao dinamismo, à flui-dez e à adaptabilidade que veem neles. Porém, o “orgâni-co” que os nazistas amavam não possui essas conotações,mas pelo contrário, lança tudo como um órgão de um todo(estático) maior. Em outros reacionários extremos influen-tes como Wilhelm Heinrich Reil, encontramos um discursoliteral sobre os “direitos” das florestas.

Ambas figuras pegaram as tendências essencialistas eanti-senscientes do seu ambientalismo e levaram a conclu-sões hiper-nacionalistas e antissemitas. a TA totalidade e oespírito cósmico (Gaia?) tiveram tal influência a ponto deapagar a capacidade individual de agir e apresentaram to-das as pessoas como engrenagens dentro da grande máqui-na da natureza, de uma biorregião, de uma nação… EAquando o inimigo é o cosmopolitanismo e a racionalidade,o antissemitismo está logo atrás.

Ernst Haeckel, quem literalmente cunhou o termo “eco-logia”, ligou holismo com essencialismo biológico dentrodo racismo, nacionalismo, imperialismo. O monismo amar-rou esse hiper-autoritarismo diretamente ao ambientalismo:os seres humanos são arrogantes engrenagens cujas capaci-dades cognitivas limitadas nunca poderão jamais superar anatureza. Logo, devemos retornar ao nosso papel de engre-nagens relativamente sem pensamento. É a ordem naturalcomo uma justificativa para a ordem social.

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O que Ecofascismo: Lições da Experiência Alemã desta-ca é a forma como o socialismo nacional emergiu de ummeio alemão de movimentos conservadores e New Age quese centravam no ambientalismo e na rejeição da racionali-dade. Como exemplo do lado da New Age, o movimentojovem Wandervogel pegou o misticismo e a hostilidade àrazão como parte de uma agenda de “espíritos livres”,eventualmente transitando sutilmente da veneração da na-tureza para a veneração do Fuhrer.

Entre os filósofos reconhecidos, temos Ludwig Klages,autor de “O Homem e a Terra”, que pegou tudo isso, com-pletou com a hostilidade ao utilitarismo e a “ideologia doprogresso”, desembocando diretamente no hiper-conserva-dorismo, nacionalismo e antissemitismo. E – vejam só! –qual o grande mal que ele identificou por trás de todas ascoisas que se opunha? Nossas mentes. Todo pensamentoracional deve ser abolido.

E, é claro, todos sabemos a história de Heidegger, cujasimpatia pelos nazistas tem a ver com o essencialismo. Nosencontramos lançados no mundo, com todos os tipos de casu-alidades e “embutididades”, nossos corpos, contexto social,ambientes, nosso local de nascimento, etc, e ao invés de al-cançar qualquer distância agencial de tais arbitrariedades par-ticulares, o Grande Filósofo Nazista quer que as abracemos.Uma entrada fundamental e inextricavelmente anti-intelectu-al, ser ao invés de se tornar, identificar-se com nossas amarrassituacionais ao invés da verdadeira fluidez e agência.

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Tá, claro, então nazis e movimentos ambientalistas frequen-temente compartilham raízes em comum, e essas figuras fun-dadoras viram as políticas direitistas que nós em geral associa-mos com o termo “reacionário” como algo obviamente vincu-lado com um retorno à natureza assim como com uma valori-zação mais profunda dela. Mas isso é apenas uma parte docontexto! O período entre guerras foi complicado e confuso.Então não seria óbvio que a conexão dos nazistas com essesmovimentos ambientalistas fosse superficial, escolhida a dedo?

Bom, se pudéssemos – como os libertarianistas do Insti-tuto Mises –, de alguma forma, ignorar que o slogan centralnazista era Sangue e Solo, Staudenmaier não cede terreno,vinculando esses hiper-reacionários ano centro e ano nasci-mento do movimettno ambientalista ao passado nazista. Ri-chard Walther Darre, por exemplo, é um nazista ambienta-lista importante, em cuja história consta uma anedota queconta que ele pessoalmente convenceu Hitler e Himmler so-bre a necessidade de exterminar os judeus.

Mas talvez isso seja injusto. Que tal ouvirmos diretamente Hitler?

“Quando as pessoas tentam se rebelar contra a férrea ló-gica da natureza, elas acabam entrando em conflito comos próprios princípios aos quais elas devem suas existên-cias como seres humanos. Suas ações contra a naturezanecessariamente as levarão a sua queda.” (Minha Luta)

Não deveria surpreender ninguém que Hitler era muitochegado nas leis da natureza, nas forças da natureza, nasidentidades naturais, nos papéis naturais, tanto ao ponto deleser um ávido fã de numerosas práticas e noções ambientalis-tas. Mas mesmo que seja óbvio e conhecido por qualquerpessoa que o tenha lido, isso ainda é algo que o nosso

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discurso normal impede que reconheçamos diretamente. Enão é apenas o essencialismo humano, mas a subjugação daconsciência humana pela natureza, como aponta Robert Poisem Socialismo Nacional e a Religião da Natureza: “Por to-dos os seus escritos, não apenas de Hitler, mas da maioriados ideólogos nazistas, podemos perceber uma depreciaçãofundamental dos seres humanos em relação à natureza”.

E a coisa continua. Walter Schoenichen, chefe da Agên-cia para a Proteção da Natureza do Reich, vincula o nazismocom o organicismo e holismo ambientalista e fala de uma“sobrecivilização” de humanos. Hitler e Himmler embarca-ram entusiasticamente em todas essas coisas.

E não era algo marginal ou enfeites estéticos divorciadosda política. O Chanceler do Reich Rudolf Hess, nomeado porHitler como seu “conselheiro próximo”, o segundo depois deGoring para suceder o Fuhrer, ajudou a implementar o ambi-entalismo ideológico do partido nazista através de uma sériede leis, programas de reflorestamento, proteções legais paraespécies, bloqueios ao desenvolvimento industrial, etc. Os na-zistas criaram as primeiras reservas naturais da Europa.

Agora, pouco importa – e Ecofascismo: Lições da Expe-riência Alemã não transparece no seu título – que a históriaseja um pouco diferente na Itália, o lugar onde o “fascismo”foi lançado originalmente. As raízes primordiais do fascismolá são interessantes e – embora menos influentes que a ex-pressão socialista nacional – ainda prevalecem de diferentesformas nos meios fascistas contemporâneos. Um “modernis-mo” que quer arrancar destrutivamente todo o legado do pas-sado inicialmente combina bem com a virada de Mussolini

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para um niilismo que reverencia a violência. É claro queexistiam dezenas de futuristas que eram anarquistas e conde-naram e lutaram contra o fascismo, e também não haviadúvida que havia alguns ecologistas que combateram o regi-me nazista. O livro Ecofascismo não faz nenhuma tentativade mostrar essas complicações.

Mas vale a pena examinar o arco que vai do modernismoitaliano para a ecologia alemã. Isso porque, é claro, no final,o fascismo italiano se virou contra os futuristas – emprestan-do dos conservadores alemães críticas sobre a cultura globa-lizada, logo denunciando o futurismo como uma arte dege-nerada. Ainda assim, ao mesmo tempo que os nazistas ti-nham como apelo central o passado e o essencialismo deuma forma que conflitava profundamente com certas noções“modernistas”, eles também abraçaram edifícios artificiais,paradas militares e uma máquina de guerra gigantescos. Em-bora acadêmicos geralmente coloquem o fascismo comoprincipalmente anti-moderno, certamente alguns o viramcomo fornecedor de novas narrativas e estruturas titânicasque podiam eliminar o passado. Novas mega-narrativas e es-truturas? Parece meio esquisito em relação a um retornopara uma vida natural simples.

Mesmo assim, a despeito do seu nome, os futuristas seimportavam menos com todas essas conotações sobre “pro-gresso” do que com a destruição masculina violenta, a mas-culinidade essencializada, a violenta destruição da ordemexistente. De fato, essa adoração do novo, da gigantescaguerra mecanizada, apareceu fundada na noção de um retor-no à identidade essencial, natural. Então, mesmo nas correntes

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que mais apreciavam o horror industrial, ainda havia umafalácia naturalista que venerava um tipo de consciência e ra-cionalidade que cheiravam a violência.

Ainda, é claro que importa muito que os nazistas tenhamcriado uma máquina de guerra industrial. Eles não eram pri-mitivistas completos. Obviamente.

Os nazistas certamente acreditavam no ambientalismo ena redução drástica da “sobrepopulação” da Europa e domundo, mas eles eram tão comprometidos com a suprema-cia da raça ariana mística assim como com o projeto de Es-tado-nação e a máquina de guerra para poder realizar seusobjetivos. Os nazis demandaram a agricultura orgânica, masnão estavam destruindo todo o setor agrário. Na sua sedepor poder, construíram projetos infraestruturais gigantescoscomo a Autobahn (sistema de rodovias), e uma enorme vigi-lância burocrática para, no final das contas, fazer essa “har-monia com a natureza” não contar muito. Havia protestosinternos dos verdadeiros crentes ideológicos dentro do mo-vimento nazista contra coisas como drenagem de pântanos,mas mesmo assim isso foi levado a diante.

Os ambientalistas radicais tentaram passar a “Lei para a Prote-ção da Mãe Terra do Reich” e tiveram o apoio de todos os minis-tros menos o da economia, que estava mais preocupado com amineração e a industrialização necessárias para realizar a guerra.

Essa é mais ou menos a história do partido nazista. En-quanto uma ideologia ecológica reacionária fundamentassesuas aspirações, eles precisavam fazer as coisas para poderalcançar seus ditos fins e isso, em última instância, signifi-cava uma máquina industrial de guerra.

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Para aquelas pessoas que veem a mecanização da ma-tança no século XX como uma forte, qualitativa e objetivainterrupção com a matança generalizada do milênio anteri-or, o fascismo serve apenas como o mais emblemático dosexemplos. Nessa perspectiva, é algo mais sólido como o“modernismo” que é responsável pelo nosso senso de hor-ror com relação ao regime nazista. E certamente podemossentir um impulso para fundir marxismo, capitalismo, e ofascismo como sendo a ideologia principal, já que os meiosque elas escolhem acabam fortemente convergindo.

Porém, então, os primitivistas são familiares com essesprós e contras dos meios-e-fins. John Zerzan usava óculos.Ted Kaczynski usava tecnologia para matar pessoas. Quasesempre haverá algum pragmatismo em como alguém se en-gaja num mundo do qual não gosta, especialmente quandoquer ver uma mudança cataclísmica. Embora eu esperasseque ninguém que esteja lendo este texto aceitasse um Es-tado-nação como uma máquina industrial de guerra comosendo um meio válido, devemos admitir que sempre há operigo do utilitarismo sedutor em nossos meios.

Que o leninismo alegue, grosso modo, os mesmo valoresou objetivos que o anarco-comunismo, isso, na verdade, émotivo para parar e refletir sobre como tal divergência catas-trófica “na execução” pode acontecer e se ainda existe algu-ma semente duradoura desse tipo na ideologia anarco-comu-nista atual. Só porque perdemos o desvio para o massacre in-dustrial total levado pelo Estado-nação não quer dizer queconseguimos evitar todo tipo de corrupção. Há lugar para ascríticas de anarquistas verdes que diagnosticam tendênciascomuns entre as máquinas industriais de morte da nossa era.

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Porém, será inútil definir o fascismo meramente em ter-mos de tais meios estatistas extremos. E a miríade de fas-cistas que, desde o terceiro Reich, se posicionaram contraambos, o Estado e a sociedade industrial, deveria nos lem-brar que o fascismo é uma filosofia do mal anterior aosmeios malvados que ele escolhe. Hoje, podemos apontarpara merdas como os Lobos da Vinlândia e Augustus Invic-tus (agora ele é um grande fã do tio Ted), e em 1995 certa-mente não faltavam exemplos para Janet Beihl. Quempode, nessa era, verdadeiramente opor-se à frase de Wolf-gang Haug que diz: “A Nova Direita, com efeito, quer, aci-ma de tudo, redefinir as normas sociais para que a dúvidaracional seja encarada como decadente e seja eliminada, eque novas normas ‘naturais’ sejam estabelecidas.”

Os atuais ecologistas ocultistas que falam de uma forçavital cósmica obscura ou que divagam sobre a “naturezaselvagem” e a intuição não são desvios malucos do fascis-mo histórico, mas estão na mesma longa e contínua linha.E não é difícil ver por que o essencialismo naturalista fala-cioso e a hostilidade ao pensamento se tornaram compo-nentes comuns entre ecologia e fascismo. No livro, Book-chin é parcialmente colocado fora disso, como mostra umacitação sua: “uma ecologia que é mística, por sua vez, podese tornar uma justificação para um nacionalismo místico”.

Mas, infelizmente, quando chegamos ao contexto moder-no, Ecofascismo: Lições da Experiência Alemã lança seusataques em parte trabalhando para a agenda bookchinita.

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Na verdade, Bookchin parece bem feio de uma perspecti-va antifascista. Biehl cita uma discussão que ele teve comRudolph Bahro e dedica um bom número de páginas expon-do todas as associações e afirmações fascistas de Bahro.Tudo isso desemboca numa enorme citação onde o velhoBookchin aniquila totalmente Bahro ou algo assim apósaceitar um convite de fala dele. Pára tudo! Sim, você leucerto. Aceitou um convite pago para falar. Isso é tão altisso-nante quanto a parte que Jeff Tucker admite em seu própriolivro que um milionário nazista tentou recrutá-lo.

Podemos ter uma impressão diferente de que Bookchin –sempre propenso a uma fala paga e com sua clássica inge-nuidade Sem Plataforma, de um velho dinossauro de esquer-da – fez merda e agora a incumbência dos seus seguidores élimpar a bagunça que ele deixou, se esforçando para reen-quadrar a narrativa como antifa.

Mas talvez a atitude de Bookchin aceitar o convite de falavindo de um líder fascista – ou pelo menos bem fascho – erauma decisão estratégica bem esperta que fez mais bem do quemal. Quem sou eu, décadas depois, para julgar? Porém, certa-mente temos a impressão de que Biehl sabe que tudo isso soamuito mal e está escrevendo muito em função de reverter isso.

Enfatisei nesta resenha, muito mais fortemente que nasminhas outras resenhas de livros antifascistas, às ideologiasnão-fascistas que estavam em jogo: as amplas ideologias“eco” como primitivismo, ecologia profunda, anti-civ, selva-gismo, eco-extremismo, etc, uma misturança de posiçõesmuito próximas que tratei de uma maneira meio jogada, mastambém as posições dos atacantes aqui, o bookchinismo, a

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ecologia social, o municipalismo libertário, etc. É difícil fa-zer diferente. Esse é um livro que serviu como uma arma naguerra ideológica, mas distante do próprio fascismo, mesmosendo um livro sólido sobre fascismo.

Vale ressaltar que Bookchin se via como um verde. Ele ten-tou desenhar um caminho do meio que evitava o conflito entre acapacidade de ação e a natureza, entre pensamento e estase. Eleviu a subida histórica de Estados e hierarquias sociais como umerro profundamente irracional, um artefato de uma transição tur-bulenta da evolução biológica para a evolução social.

“Após dez mil anos de evolução social bastante am-bígua, devemos reentrar na evolução natural”, e in-staura “não menos a humanização da natureza como anaturalização da humanidade”. (Ecologia da Liberdade)

E assim,

“a evolução natural desembocará na autoconsciência,no cuidado, e na compaixão com a dor, com o sofri-mento, e com os aspectos incoerentes de umaevolução largada à própria sorte, que geralmente sedesdobra de maneira instável.

Aqui vem o pepino: e se tudo isso é impossível?

E se os seres humanos simplesmente não consegueminteragir extensivamente com a biosfera de um jeitobenéfico para ambos?

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Bookchin era péssimo na compreensão ou disputa com acomplexidade e a teoria da informação. Sua visão econô-mica era uma tremenda burocracia participatória – de inter-mináveis reuniões – que quase instantaneamente repeletoda anarquista, não importa o quão interessado ela possaestar. Era também, como é óbvio para qualquer pessoa comum mínimo de conhecimento de economia, impossível.Simplesmente não dá para fazer crescer em escala a toma-da de decisão coletiva de forma que ainda seja favorável ouque satisfaça os reais indivíduos para além de um pequenoprojeto rural. Projetos ou produtos tecnologicamente com-plexos – e menos ainda qualquer economia inovadora oufluidamente adaptativa – requer dinâmicas de mercado.

Dessa forma, será que é de se surpreender que Bookchintenha falhado em lidar com as questões de complexidade emjogo na nossa integralidade ecológica?

Os cérebros humanos não conseguem lidar ou compreen-der produtivamente a biosfera muito mais do que os planeja-dores do soviete central conseguiram lidar ou entender omercado. Mas tampouco podemos silenciar a destrutividadeinata de nossa criatividade e nossa capacidade investigativade vivermos em “harmonia” dentro da natureza puramentecomo engrenagens instintivas.

Com isso, não estou sugerindo um chamado para umaguerra de extermínio, mas um divórcio – o mais agradávelpossível, espero, e com pensão alimentícia. Uma justiçarestaurativa perfeita é impossível, mas podemos fazer omínimo essencial: retirar os pavimentos, fechar as saídasde dejetos das fábricas, replantar o Saara, recuar para cida-des fechadas, e por fim, sair da Terra.

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Pensamento ativo inerentemente significa risco, instabili-dade e ruptura. Não podemos abraçar a integralidade comoSeres enquanto, ao mesmo tempo, expandimos nossa liber-dade para o interminável processo de Vir-a-Ser. A ecologiasocial de Bookchin foi, no final das contas, uma tentativaequivocada e desesperada de unir coisas incompatíveis.

Uma vez tiradas as escolhas mais fundamentais, torna-seaparente que fascismo e primitivismo não são ideologias ab-surdamente diferentes que se misturam de forma bizarra – não,elas são muito próximas porque elas brotam da mesma raiz. Omesmo impulso reacionário a aceitar o estável e o preexistente.

Essa é uma realidade que Bookchin era péssimo emcompreender porque 1) ele era avesso a realmente exami-nar a inclinação a falácias naturalistas que ele herdou deKropotkin, e 2) porque ele certamente não era muito con-sistente com relação à liberdade.

Então, a avaliação de Bookchin permanece superficial:o problema é que os verdes maus rejeitam a bagagem his -tórica da esquerda, como o Iluminismo e a racionalidade.Porém, o problema é que termos como “modernismo”, “ra-cionalidade”, e “o Iluminismo” há muito tempo se torna-ram uma massaroca tanto de coisas boas quanto de coisasruins, permitindo que as pessoas ora usem-nos para criticar,ora para se defender. Termos como “razão” foram seques-trados e deformados em certos discursos até que conotemnão o pensamento crítico, mas a imposição de certos regi-mes de administração codificada.

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E, caramba, como Bookchin adorava umas distopias bu-rocráticas de tirania coletiva. Assim, as mesclas mais proble-máticas tornaram-se piores pelos seus defensores, envene-nando o discurso anarquista por mais de uma geração.

Ecofascismo: Lições da Experiência Alemã está profun-damente montado em toda essa história. Hoje, ele pareceum cadáver de um conflito ideológico onde nenhum doscombatentes tinha futuro. Isso é uma pena, pois diferentede livros mais rigorosos como A Política do Sangue e doSolo: Ideais Ambientalistas da Alemanha Nazista, ele foiconfeccionado de uma maneira linda para ser sucinto eacessível para o todo do movimento anarquista.

Botei um monte de lenha na fogueira falando da ideolo-gia responsável pelo livro, mas, cá entre nós, eu gostei. Oque me preocupa é que só consegui fazer uma leitura gene-rosa estando décadas afastado do conflito e tendo queimadominhas próprias pontes com o pós-esquerdismo. Duvido quemuitas outras pessoas, curtidas há tanto tempo no tribalismoda pós-esquerda, terão qualquer motivação para pegar o li-vro, ou, a essa altura, tenham qualquer coisa nas suas veias.

Hitler ser vegetariano foi por muito tempo o clássicoexemplo fácil de uma posição ideológica irrelevante.

Mas e se não era?

E se toda a papagaiada “hippie direitista” dos nazis nãoera um barulho aleatório, mas estava profundamente relacio-nada à sua ideologia fundamental? E se o, aparentemente,insano balaio de gato de posições que os nazis sustentavamfosse, na verdade, relativamente coerente?

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O livro Ecofascismo não é uma confusão de associaçõesmarginais. Ele apresenta, de maneira convincente, o papel sig-nificativo que a ecologia teve no desenvolvimento do socialis-mo nacional. A variante do fascismo de Hitler – de longe, amais influente – estava profundamente ligada às narrativas da“ecologia”, e aos essencialismos diretos e à rejeição do pensa-mento que isso proporciona. Entretanto, para entender de fatoessa forte associação, e menos para combatê-la, requer irmosalém da confusa perspectiva que Bookchin fornece.

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Carlos Taibo

Ecofascismo no Colapso

“Existem razões para estarmos inquietos, porque agorasabemos que vivemos em um tipo de sociedade que possi-

bilitou o Holocausto e que não tinha nada que pudesseevitar que o Holocausto acontecesse”

Zygmunt Bauman

“O passo da barbárie à civilização exigiu umséculo; o passo da civilização à barbárie

necessita apenas um dia”.Will Durant

Já indiquei que a contribuição dos movimentos através datransição ecossocial não é a única resposta imaginável ao co-lapso. É preciso prestar atenção, em vez disso, a uma outramuito diferente, que vem da mão do que alguns estudiososchamam de ecofascismo. Este último é baseado na intuição deque para resolver eficientemente o problema geral da escasseznão há outra solução do que propiciar um rápido e forte declí-nio no número de seres humanos que povoam o planeta.

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Tal aposta carrega, claro, a marginalização, e, neste caso,o extermínio, de boa parte da população, amparada na apli-cação de delicados critérios para determinar quem fica equem não. Se às vezes a opção de exclusão e de extermíniojustifica-se em virtude de códigos religiosos, outras invocaum mero poder material e algumas vezes se vale de presu-midas exigências naturais, ela sempre opera com base emuma ideia matriz: a de que a Terra não pode mais.

Admito que, inevitavelmente, o emprego do prefixo eco-,comumente conotado de forma positiva, acaba produzindoalguma surpresa quando usado para retratar uma realidadetão negativa como a que agora me ocupa. Terei a oportuni-dade de destacar, no entanto, que distintas manifestações daecologia estiveram presentes, de forma indelével, nas for-mulações ideológicas, e nas práticas cotidianas, de movi-mentos de corte fascista. É importante deixar claro, contudo,que hoje, ao falar de ecofascismo, não estou pensando – ounão estou pensando fundamentalmente – em eventuais ver-sões verdes de forças políticas de extrema direita, mais oumenos marginais. Penso, pelo contrário, em abordagens quevêm à luz no ceio de instâncias políticas e econômicas deprimeira ordem. Convém discutir, em qualquer caso, que,falando propriamente, o ecofascismo seja uma resposta fren-te ao colapso: na verdade, parece que ele é, pelo contrário,uma manifestação precisa deste último.

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O ecofascismo primeiro: a Alemanha hitleriana

Ecofascism Revisited (O ecofascismo revisitado), o livrode Janet Biehl e Peter Staudenmaier, é, acima de tudo, umestudo da proposta ecofascista assumida pelos nazistas ale-mães. Nas páginas dessa obra, recorda-se prontamente queno Partido Alemão Nacional Socialista operava um influentegrupo de pressão ecologista dedicado a tarefas variadas,como a adoração da natureza, o renascimento da vida ruralou o vegetarianismo. Essa corrente foi o produto de umasíntese muito singular entre naturalismo e nacionalismo deEstado, forjada ao calor da influência do irracionalismo anti-ilustrado próprio de determinadas manifestações do roman-tismo alemão. Por trás de muitas destas posições era fácilnotar, além disso, um vínculo entre pureza ambiental e pure-za racial. As tradições e a língua se relacionavam então comuma paisagem ancestral que desenhava seres humanos vin-culados a ela e outros totalmente afastados. Os primeiros sereferiam, no caso que me ocupa, à “essência alemã” da quefala Rudolf Bahro. Era preciso separar, então, em virtude dalei natural, umas culturas de outras e privilegiar, como fazHerbert Gruhl, as que possuem as melhores perspectivas emmatéria de sobrevivência. Ou seja, as que estão mais bem ar-madas e as que sabem preservar seus recursos. Desse pontode vista, e adicionando-se, claro, a noção do autoritarismo eda repressão, é possível entender o extermínio dos judeus euro-peus durante a segunda guerra mundial e a rejeição abrupta de-dicada aos imigrantes. Biehl conclui, com argumento certeiro,

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que “esta combinação de nacionalismo, autoritarismo e ad-miração por líderes carismáticos, legitimada por uma ‘eco-logia’ mística e biologicista, é potencialmente catastróficano terrenos social”. Staudenmaier aponta que a guerra tra-vada com esses fundamentos não foi apenas genocida: tevetambém um caráter ecocida plasmado num formidávelexercício de violência contra a natureza.

Biehl e Staudenmaier ressaltam que seria, contudo, umerro considerar esta corrente ecologista como um mero ador-no da parafernália tecnocratica-industrial dos nazistas. Nosfatos, e antes deles, a maioria dos ideólogos nacional-socia-listas participava de um romantismo agrário e de um anti-urbanismo que reclamava um processo de re-agrarização.Em março de 1933, foram aprovadas leis que acarretaram,em todos os níveis, programas de reflorestamento, medidasde proteção de animais e plantas, e decretos que limitavam odesenvolvimento industrial. Em 1935, ganhou corpo, poroutro lado, uma lei de proteção da natureza voltada a prote-ger a flora, a fauna e os “monumentos naturais” do Reich. Éimportante enfatizar, contudo, que o fenômeno que me atraiagora não foi de modo algum exclusivo da Alemanha hitle-rista. Se fez valer também, muito pelo contrário, na Itáliafascista, sob a forma de políticas de desenvolvimento rurali-zantes e de esforços de reflorestamento, estreitamente liga-dos, como se poderia esperar, com uma ideologia nacionalistae racista. Os exemplos mencionados nos colocam de sobrea-viso, é claro, frente a possíveis usos abjetos da ecologia.

Convém, no entanto, dar mais um passo e formular al-guma consideração relativa ao contexto em que ganhoucorpo o ecofascismo primeiro. O melhor guia a esse respeito

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é por acaso um livro de Carl Amery que leva o título de Hi-tler aus Vorläufer: Auschwitz – der Beginn des 21 Jahrhun-derts? (Hitler como precursor: Auschwitz, começa o séculoXXI?). Essencialmente, Amery ressalta que seria um gran-de erro concluir que as políticas abraçadas pelos nazistasalemães remetem a um momento histórico singularíssimo,conjuntural e, por isso, afortunadamente irrepetível. Amerynos exorta, pelo contrário, a estudar em detalhes essas po-líticas dado que elas podem reaparecer, nos próximos anos,dessa vez não defendidas por grupos ultra-marginais de ne-onazis, mas postuladas – já sugeri isso antes – por algunsdos principais centros de poder político e econômico, cadavez mais conscientes da escassez geral que se aproxima ecada vez mais firmemente decididos a preservar esses re-cursos escassos em umas poucas mãos em virtude de umprojeto de darwinismo social militarizado.

Sobram, além disso, razões para afirmar que existem es-treitos vínculos entre o nazismo, por um lado, e o racismo eo imperialismo característicos do século XIX, por outro.Zygmunt Bauman apontou muito bem que “o Holocaustonasceu e foi executado em nossa moderna sociedade racio-nal, num alto estado de nossa civilização e no auge da reali-zação cultural humana, e por essa razão é um problema denossa sociedade, civilização e cultura”. Theodor W. Adorno,por sua parte, viu no nazismo a manifestação de uma bar-bárie “inscrita no princípio mesmo da civilização”. Em todaesta trama, é muito relevante o conceito de Lebensraum (es-paço vital). Goebbels apontou que o objetivo da guerra eragarantir aos alemães “um grande café da manhã, um gran-de almoço e uma grande janta”, sem que para alcançá-lo,aparentemente, houvesse importância que as pessoas não

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alemãs morressem de fome. Essa promessa de uma vida me-lhor que se circunscrevia aos nossos reclamava, nas palavrasde Amery, um “programa assassino que seria executado porum povo superior” e que outorgaria a este o “poder e bem-estar através de uma agressão permanente, ao mesmo tempoque combatia a limitação dos recursos do planeta mediante acorrespondente submissão e dizimação dos povos escravos”.Com Hitler, também se revelou a defesa de uma espécie de“destino manifesto”, de um direito cuja legitimidade nãoprecisava ser demonstrada, já que beneficiava uma raça on-tologicamente superior. Na mesma esteira, e em seu artigoEichmann em Jerusalém, Hannah Arendt nos lembrou queos nazistas queriam “decidir quem devia e quem não deviahabitar este planeta”. Nos bastidores, e retornemos a Amery,os próprios nazistas demonstraram uma formidável capacida-de na hora de amedrontar os cidadãos alemães e transmutá-los em seres entregues à mais estrita e irracional obediência.

Entre as consequências da aposta hitleriana estavam a au-toatribuição de uma “missão civilizadora”, a implantação deuma dupla guerra – colonial, contra os eslavos, e anticolonial,contra os judeus –, um culto às raízes que se associa com umarejeição xenofóbica das pessoas que não as compartem, a de-gradação da imagem das vítimas, que muitas vezes foramconvertidas em opressores, e uma visível rejeição da imigra-ção acompanhada de uma obscena defesa da eutanásia. Comoresultado, encontraram-se natureza e política, ecossistema ehabitação, necessidade e desejo. E nesta ordem de coisas, épreciso destacar – volto ao argumento – que em muitas ocasi-ões o extermínio, ou a marginalização, não se justificou sobreas bases das necessidades do capital, mas, pelo contrário, emvirtude das restrições que se derivaram da natureza.

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Demografia e autoritarismo

O projeto ecofascista coloca em primeiro plano uma dis-cussão demográfica que tem seu fundamento maior na ideiade que na Terra estão sobrando muitos de seus habitantes.Falou-se do efeito, e por exemplo, de uma possível popula-ção planetária de 1000 a 2000 milhões de seres humanospara o ano de 2100, entendendo-se que essas cifras não sãonecessariamente o produto de um ecofascismo: elas poderi-am constituir, sem mais, a resposta da adaptação a um cená-rio marcado pelas numerosas restrições derivadas do colap-so. Para Hamilton, e numa perspectiva próxima, a reduçãoda população se produzirá com ou sem ecofascismo.

Mas também não é demais mencionar propostas comoaquela que pretendia reduzir a população do planeta a 600milhões de pessoas – um cenário compatível com a sobrevi-vência da biosfera –, presumivelmente realizada pelo cha-mado Clube Bilderberg na sequência de muitas das iniciati-vas ironicamente retratadas por Susan George no RelatórioLugano 566. George sugere que, perante uma crise geral, asautoridades mais altas teriam chegado à conclusão de que aúnica forma de salvar o sistema é uma “estratégia de redu-ção da população”. Nos encontraríamos frente a um tipo deresposta biológica do grande capital, que desfrutaria de umaadesão adicional resgatada por Amery, para quem “se estápartindo do pressuposto de que, graças às últimas inovaçõestécnico-científicas, apenas vinte por centro da populaçãoplanetária é suficiente para satisfazer toda a produção dese-jada da economia mundial”, com as consequências esperadas.

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Na mesma linha argumentativa, há que recordar as já nume-rosas teorizações que, na onda de Naomi Klein, enxergamnas catástrofes naturais uma oportunidade, não para mudardrasticamente nossas formas de vida e nossas relações, maspara, na verdade, melhorar a economia.

Destacarei que aos olhos de Milton Freidman as sequelasdo furacão Katrina em Nova Orleans ofereceram uma opor-tunidade única para reformar de maneira radical o sistemaeducativo, na medida em que retiraram muitos dos obstácu-los que dificultavam as reformas desejadas. O mesmo acon-teceu com a reconstrução do Haiti, tão proveitosa para umsem-número de empresas privadas. A própria lógica do capi-talismo verde, que concebe o meio ambiente como um negó-cio, se encaixa perfeitamente em suas considerações. Naverdade, nada retrata melhor o que significa simbolicamenteo capitalismo verde que essas gigantescas torres edificadas,no meio do deserto, em Dubai, totalmente insustentáveismesmo utilizando as técnicas mais modernas em matéria deeconomia de energia e recuperação de água.

Já apontei – e volto a fazê-lo – que se no passado a euta-násia dos pobres se justificava sobre a base das necessida-des do capital, agora se começa a acrescentar, para ci-mentá-la, um suposto compromisso com o planeta e suapreservação. É certo que os critérios de seleção de quaispessoas devem ser salvas nem sempre são claros, por muitoque sejam, isso sim, fáceis de intuir. Entre os beneficiadosestarão, com certeza, muitos dos habitantes dos países ricose as elites dos países do Sul – são frequentes os exemplosde habitações de gente abastada preparadas para o colapso,como também os de estoques de vacinas e medicamentos –,

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e entre os perdedores a maioria da população dos paísespobres, as minorias estrangeiras, os idosos e os deficien-tes. Embora se espere que o grosso da população de deter-minados espaços geográficos se salve, não cabe descartar,inclusive nestes cenários, a implementação de medidas deproibição de imigração, de estrito controle de nascimen-tos, de extensão do aborto e do infanticídio no caso demalformação, do fechamento de horizontes vitais para osidosos e da eutanásia voluntária. Em termos gerais, nãointeressarão, tirando as elites, as pessoas que nem sequerservem como força de trabalho ou, o que é quase o mes-mo, aquelas que não trabalham nem consomem.

Não surpreende a afirmação de que o ecofascismo recla-ma um projeto político manifestamente hierarquizado.

Cabe supor que seus impulsionadores, que se autointitu-lam como salvadores, serão em alguns casos líderes caris-máticos. Receberão o apoio das camadas da população quepreferirão perder direitos às custas de manter – ou de intuirque manterão – certos privilégios. Esses impulsionadores tal-vez criem novas instituições que apontarão para uma francamilitarização da vida coletiva e espalharão o terror e o medo.E não apenas isso: destacarão a ideia de que é preciso fazerfrente a um sem número de inimigos hostis. E provavelmenteestimularão as divisões religiosas, étnicas, linguísticas e declasse. É verdade, contudo, e como tenho a oportunidade derecordar em várias ocasiões nesta obra, que a quebra das rela-ções de mando e controle que virão, em uma ou outra medi-da, com o colapso será traduzida em problemas na implanta-ção de uma imaginável maquinaria ecofascista.

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Impérios e países do Sul

Parece evidente que boa parte da discussão que acabo dedesenvolver se sobrepõe a uma história que vem de longe: ados impérios e a das rédeas usadas por eles nos países doSul. Tentarei delinear alguns argumentos para explicar comoo horizonte do ecofascismo se vincula com as lógicas impe-riais e com a pilhagem desses países.

Começarei pelos impérios, hoje em dia imersos em numairrefutável fuga para frente que se manifesta, e me fio nosexemplos vinculados com o conteúdo geral deste livro, noprojeto de abrir uma nova via de comunicação marítima noÁrtico e na possível exploração de novos depósitos de maté-rias-primas. A primeira coisa que é preciso destacar em rela-ção aos impérios é a dificuldade de mantê-los, o que vai demãos dadas com a necessidade de empregar uma força quenão estará tão claramente à sua disposição em um momentode escassez geral de recursos. Vaclav Smil sublinhou que osEUA se converteram em um império em boa medida pormeio do emprego muito extenso de uma energia que obvia-mente faltará. A debilidade repentina das tecnologias a ser-viço do ecofascismo pode traduzir-se, por outro lado, numamaior violência num cenário marcado por um paradoxo: osimpérios mostram uma extrema dependência com respeitoaos territórios dominados. O que durante muito tempo deuforça aos impérios, a centralização, está a ponto de se con-verter em um problema agudo, na medida que o resultadoserá um sistema insustentável. E não parece que o tipo dedisseminação de instrumentos de intervenção que se prepara,

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amparada por uma mistura de forças armadas regulares eexércitos privados ou tropas mercenárias que funcionarãode maneira mais ou menos autônoma, permita encarar osprincipais desafios. Os impérios terão que fazer frente,além do mais, a fluxos regionais autônomos cada vez maissignificativos e, ao mesmo tempo, a uma menor ligaçãoentre as diferentes áreas do planeta.

Faz sentido identificar alguns dos problemas militaresprecisos que previsivelmente sucederão. No caso dos Esta-dos Unidos, Greer estima que os três maiores problemas se-rão o que se espera que aconteça com a dissuasão nuclear, asobrevivência de aliados como Israel e, em suma, o controleda fronteira meridional do país. Saltam à vista, de qualquerforma, as delicadas tecituras que podem se revelar no que serefere à manutenção e ao uso de armas nucleares, que neces-sitam um controle exaustivo e permanente. A isso se soma-rão, previsivelmente, a perda de informação sobre sua loca-lização e as incógnitas que se derivam da proliferação destetipo de armas. Juntamente com as cinco potências nuclearestradicionais, desponta hoje a presença de países como Israel,Índia, Paquistão ou Coreia do Norte. Quem pagará, por ou-tro lado, e num terreno próximo, os contratos dos técnicos eengenheiros encarregados de manter as usinas atômicas? Oque acontecerá com os arsenais de armas químicas e bioló-gicas? Não haverá problemas com barcos, aviões e submari-nos, dado suas altas tecnologias dificilmente sustentáveis,com a informática como um delicado calcanhar de Aquiles?Não terão sido, enfim, os sucessivos fiascos dos militaresestadunidenses no Afeganistão, no Iraque e na Síria umaprévia do que acontecerá em larga escala?

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No que concerne aos países do Sul, também encontramosparadoxos. Parece que serão o terreno, antes de mais nada,da enésima operação de rapina imperial, à mercê de uma re-novada pulsão que tanto aspirará ao controle de matérias-primas escassas como à ocupação de espaços de importânciageoestratégica. Falo, além disso, de regiões do planeta bas-tante afetadas pela mudança climática e muito vulneráveisfrente a eventuais subidas nos preços da energia. Segundouma estimativa, um aumento de 10 dólares no preço do pe-tróleo provocará um retrocesso de 3% no PIB destes Esta-dos. São países, além disso, muito mais permeáveis à expan-são de enfermidades, cenários habituais das revoltas do pão,que arrastam gravíssimos problemas sociais que afetam aci-ma de tudo as mulheres, crianças e idosos, com situaçõesparticularmente críticas nas grandes cidades e com Estadosmanifestamente falidos, dotados de instituições muito frá-geis marcadas pela corrupção e a deterioração de todas asrelações. Claro que se apresentarão circunstâncias delicadasnos países do Sul, como é o caso dos efeitos do afundamen-to do comércio mundial, dado a péssima situação para aseconomias assentadas na exportação, da presumível exten-são da pirataria, de um novo impulso experimentado pelasagressões ambientais – podemos prever, por exemplo, ofranco desaparecimento das grandes superfícies arbóreas –ou de migrações massivas em busca de regiões mais tranqui-las, comumente no norte do planeta, mas ocasionalmente,também, no sul (na Argentina e Chile, na África do Sul, naAustrália e Nova Zelândia, ou inclusive em algumas áreasda Antártida). Não faltarão, enfim, agudas confrontaçõesinternas com as pequenas ilhas protegidas – assim, e talvez,as áreas mais altas e chuvosas do continente africano – emproveito das classes abastadas.

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Porém, faria mal esquecer que existem alguns elementosque contrariam o vigor do tétrico panorama que acabo dedescrever. Embora historicamente os cenários de escasseztenham sido propícios ao desdobramento de genocídios,existem algumas razões convincentes para concluir que ocolapso pode beneficiar indiretamente os fracos, ou ao me-nos pode ser, para eles, menos prejudicial que para os pode-rosos. Como já sabemos, isso pode muito bem ser assim, emparticular, no caso de países pouco dependentes de energiasestrangeiras e tecnologias complexas, ao ponto de que nãoseria demais sustentar que, quanto mais pobre um país, me-nores serão os problemas que, não sem paradoxo, terá queenfrentar. Num tipo de mundo ao contrário 586, em muitoslugares não haverá multinacionais exploradoras nem planosde ajustes do Fundo Monetário, e as desigualdades recuarão.Kunstler afirma que, ao recuperar o controle sobre seus re-cursos e parar de sofrer a devastação cultural que o Ocidentepromove, os países pobres optarão espontaneamente por es-tilos de vida mais simples como os que, no passado, desen-volveram durante muitos séculos.

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Diante do colapso, será que os modelos autoritários servem?

Sou obrigado a encarar, mesmo que brevemente, umapergunta delicada: na hora de enfrentar o risco do colapso,ou o próprio colapso, as sociedades autoritárias e hierarqui-zadas não estarão em melhor posição do que as que nãoapresentam essa duas características? Não é mais fácil queseja a China de agora, e não as democracias liberais – supo-nhamos que não são autoritárias e não estão hierarquizadas–, a que fará frente de maneira convincente à mudança cli-mática? Há estudiosos que, cheios de razão, entendem queno mundo ocidental um dos principais problemas a esse res-peito é o fato de que as grandes empresas dificultam qual-quer abordagem séria aos elementos causadores do colapso.Cabe perguntar-se, no entanto, se em um cenário como ochinês não estão emergindo interesses e estruturas da mesmanatureza ou, na falta disso, se a competição internacional naqual a China está imersa não conduz novamente a encurralara luta contra a mudança climática ou a implementação demedidas que permitam lidar com o esgotamento das maté-rias-primas energéticas. É verdade que a China, para nãosair do exemplo, declarou em dado momento que entre 2011e 2015, e ao menos no papel, a maior preocupação das insti-tuições não seria o crescimento da economia, mas a qualida-de do desenvolvimento, e que em consequência, procurariafórmulas que garantissem um menor uso do carvão e umamaior eficiência energética. Os esforços das autoridadespara reduzir emissões se viram contrabalançados, entretanto,

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pelo rápido, e além disso irracional, crescimento da econo-mia. Não convém esquecer, isso sim, que grande parte dasemissões chinesas de CO² corresponde a produtos importa-dos pelos países ocidentais.

Rudolf Bahro, outrora representante de um singular e hete-rodoxo marxismo na República Democrática Alemã, transfor-mado num teórico importante de um tipo de ecofascismo sua-ve – permita-se-me o oxímoro – na Alemanha destes dias,acredita que a crise ecológica deve ser resolvida em virtudede mecanismos autoritários implantados por um governo desalvação ou por um “Estado-deus”. Murray Bookchin, quemdebateu na sua época com Bahro, disse que, e me junto a seuargumento, uma ditadura ecológica – em virtude de que estra-nho processo talvez surgisse? – seria qualquer coisa menosisso, ecológica, e acabaria, na verdade, com o planeta, alémde operar em proveito de umas poucas pessoas. Acarretaria aglorificação do controle social, da manipulação, da coisifica-ção dos seres humanos e da negação da liberdade, tudo issoem nome da resolução dos problemas ambientais.

Diante da resposta de Bahro, de que semelhante afirma-ção não parecia prestar atenção ao lado negativo, o do egoís-mo e da competição, da natureza humana, Bookchin se per-guntou por que haveria de canalizar esse lado negativo atra-vés de sua institucionalização pela via da força, da supersti-ção, do medo e da ameaça, e pela via, em paralelo, de ideo-logias bárbaras. Não seria razoável concluir que as institui-ções resultantes – acrescento –, longe de abraçarem qual-quer procedimento voltado para enfrentar a crise ecológica,deixariam a rédia solta – aí está a Alemanha hitlerianapara ilustrá-lo – para o lado negativo da natureza humana?

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A fórmula de Bahro não se converte em uma justificaçãosubterrânea da dominação, da exploração e da hierarquiaque estão, paradoxalmente, na origem das crises ecológicas?Não estaremos diante de uma transcrição de uma ideia mui-to difundida, de origem hobbesiana, que implica que somen-te um governo que faça uso de mecanismos coercitivos podepermitir que se enfrente os problemas que estão na origemdo risco de colapso e, mais além deles, aqueles que são apli-cados uma vez que este é verificado?

Minha franca rejeição das vias hierárquicas e autoritáriasse revela em todos os âmbitos imagináveis. Não me pareceoutra coisa a não ser uma superstição, por exemplo, a suges-tão de que os militares, por organização e disciplina, serãouma ajuda vital para lidar com o colapso. É mais fácil ima-ginar que eles se coloquem ao serviço dos projetos concebi-dos pelas classes dirigentes tradicionais. Tampouco aprecioque qualquer problema relevante seja resolvido pela defesada necessidade de abandonar uma economia de mercado emfavor de outra dirigida – seria preciso colocar-se de acordo,claro, sobre o que este adjetivo significa –, já que as econo-mias dirigidas podem estar ao serviço, também, de um pro-jeto ecofascista. Em outra direção, faz algum sentido imagi-nar que a democracia liberal, claramente subordinada aos in-teresses das grandes corporações, se torne em um mecanis-mo de salvação, no extremo, e durante urgências inevitáveis,da humanidade? Independentemente de como as coisas são,deixo o leitor nas mãos de uma pergunta provocadora: have-rá um ecofascismo ocidental e outro chinês?

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