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CC 39 – Título: História, Cultura e Representações Coordenadora: Edilece Souza Couto SANTA BÁRBARA: DEVOÇÃO E FESTA NOS MERCADOS DE SALVADOR (1860-1940) Edilece Souza COUTO 1. Bárbara: a santa dos mercados Entre a segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do Brasil republicano, Salvador era uma cidade plena de contrates. Época da visita de inúmeros estrangeiros que deixaram registradas em suas crônicas impressões de deslumbramento e espanto diante das desigualdades da cidade tropical. Desigual na geografia – dividida em cidade alta e baixa, possuía ainda arrabaldes quase rurais – na distribuição de renda e na vivência religiosa. É justamente a diversidade da vivência religiosa que nos interessa nesse texto. O catolicismo implantado no Brasil pelos colonizadores portugueses era íntimo, familiar, leigo e de profunda devoção. Na Bahia, até as primeiras décadas do período republicano, o culto aos santos era organizado pelas irmandades – associações formadas por grupos voluntários de fiéis para fins piedosos e de caridade. Para se formar uma irmandade era preciso reunir um certo número de devotos, de acordo com os critérios de cor da pele e condição social; escolher um santo patrono; encontrar uma igreja que acolhesse a imagem do santo em um altar lateral até a construção de um templo próprio; estabelecer o Compromisso – regras submetidas às autoridades eclesiásticas, que determinavam os objetivos da associação, forma de admissão dos membros, seus direitos, deveres e obrigações. As irmandades de devoção tinham como principal objetivo venerar um santo, manter seu culto e promover sua festa. Os leigos se responsabilizavam pela parte devocional, sem a interferência do clero. A homenagem a um santo poderia ser individual, com a realização de orações e novenas diante do oratório particular de cada família. No entanto, considerava-se que a celebração tinha mais força quando realizada de forma coletiva e espetacular. A rivalidade entre as irmandades contribuiu para a realização de festas espetaculares na cidade do Salvador. Entretanto, nem todos os santos eram homenageados exclusivamente por essas associações. Santos tradicionais, como Santa Bárbara, mesmo quando não eram patronos de irmandades, eram homenageados com pompa em outros espaços, como nos mercados. O seu dia – 4 de dezembro - era celebrado com procissão, queima de fogos de artifício, banquetes e divertimentos populares no adro da igreja que acolhesse seus fiéis para os atos litúrgicos e diante do nicho no mercado. Santa Bárbara, mártir da Igreja Católica e invocada pelos cristãos para afastar o perigo dos raios e trovões desde o século III, começou a ser cultuada em Salvador pelos colonizadores portugueses. Sua devoção era mantida pelos comerciantes, trabalhadores brancos e negros escravos ou libertos que trabalhavam nos mercados de Santa Bárbara e São João, localizados próximo ao porto, na Cidade Baixa. Por isso, a mártir era considerada a “Santa dos Mercados”. Nesse texto darei ênfase ao Mercado de Santa Bárbara por se tratar de um local de culto. O referido mercado foi construído, segundo Afonso Costa (1952:9), em 1641 pelo casal português Francisco Pereira Lago e Andreza Araújo. Eles compraram um imóvel situado à rua Portugal, em cujas dependências estabeleceram vários pontos comerciais que funcionavam em regime de aluguel. Os portugueses estabelecidos na Bahia tinham o intuito de assegurar bens como

Edilece Souza Couto

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CC 39 – Título: História, Cultura e Representações

Coordenadora: Edilece Souza Couto

SANTA BÁRBARA: DEVOÇÃO E FESTA NOS MERCADOS DE SALVADOR(1860-1940)

Edilece Souza COUTO∗∗∗∗

1. Bárbara: a santa dos mercados

Entre a segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do Brasil republicano, Salvador era uma cidade

plena de contrates. Época da visita de inúmeros estrangeiros que deixaram registradas em suas crônicas impressões de

deslumbramento e espanto diante das desigualdades da cidade tropical. Desigual na geografia – dividida em cidade alta e

baixa, possuía ainda arrabaldes quase rurais – na distribuição de renda e na vivência religiosa.

É justamente a diversidade da vivência religiosa que nos interessa nesse texto. O catolicismo implantado no Brasil

pelos colonizadores portugueses era íntimo, familiar, leigo e de profunda devoção. Na Bahia, até as primeiras décadas do

período republicano, o culto aos santos era organizado pelas irmandades – associações formadas por grupos voluntários de

fiéis para fins piedosos e de caridade. Para se formar uma irmandade era preciso reunir um certo número de devotos, de

acordo com os critérios de cor da pele e condição social; escolher um santo patrono; encontrar uma igreja que acolhesse a

imagem do santo em um altar lateral até a construção de um templo próprio; estabelecer o Compromisso – regras

submetidas às autoridades eclesiásticas, que determinavam os objetivos da associação, forma de admissão dos membros,

seus direitos, deveres e obrigações.

As irmandades de devoção tinham como principal objetivo venerar um santo, manter seu culto e promover sua festa.

Os leigos se responsabilizavam pela parte devocional, sem a interferência do clero. A homenagem a um santo poderia ser

individual, com a realização de orações e novenas diante do oratório particular de cada família. No entanto, considerava-se

que a celebração tinha mais força quando realizada de forma coletiva e espetacular.

A rivalidade entre as irmandades contribuiu para a realização de festas espetaculares na cidade do Salvador.

Entretanto, nem todos os santos eram homenageados exclusivamente por essas associações. Santos tradicionais, como

Santa Bárbara, mesmo quando não eram patronos de irmandades, eram homenageados com pompa em outros espaços,

como nos mercados. O seu dia – 4 de dezembro - era celebrado com procissão, queima de fogos de artifício, banquetes e

divertimentos populares no adro da igreja que acolhesse seus fiéis para os atos litúrgicos e diante do nicho no mercado.

Santa Bárbara, mártir da Igreja Católica e invocada pelos cristãos para afastar o perigo dos raios e trovões desde o

século III, começou a ser cultuada em Salvador pelos colonizadores portugueses. Sua devoção era mantida pelos

comerciantes, trabalhadores brancos e negros escravos ou libertos que trabalhavam nos mercados de Santa Bárbara e São

João, localizados próximo ao porto, na Cidade Baixa. Por isso, a mártir era considerada a “Santa dos Mercados”.

Nesse texto darei ênfase ao Mercado de Santa Bárbara por se tratar de um local de culto. O referido mercado foi

construído, segundo Afonso Costa (1952:9), em 1641 pelo casal português Francisco Pereira Lago e Andreza Araújo. Eles

compraram um imóvel situado à rua Portugal, em cujas dependências estabeleceram vários pontos comerciais que

funcionavam em regime de aluguel. Os portugueses estabelecidos na Bahia tinham o intuito de assegurar bens como

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garantia econômica para os filhos. Os proprietários desse imóvel mandaram erguer uma capela no fundo do terreno, em

cujo altar colocaram uma imagem da mártir e aquele ponto comercial passou a ser chamado Morgado de Santa Bárbara.

Após o morgado ter seu título de propriedade transferido aos herdeiros, foi vendido e transformado em centro

comercial com barracas e armazéns de secos e molhados e passou a ser identificado como Mercado de Santa Bárbara.

Durante a segunda metade do século XIX vários incêndios, ocorridos na zona comercial, provocaram ou colaboraram para

as mudanças arquitetônicas e o traçado das linhas de transporte urbano na Cidade Baixa. Praticamente, todo ano os sinos da

igreja da Conceição da Praia davam o alerta de sinais de fogo. Os incêndios atingiam casas comerciais, mercados e

edifícios religiosos.

O ano de 1899 foi particularmente difícil para a Igreja e os fiéis que viram duas importantes

igrejas serem atingidas pelo fogo. O monsenhor Manoel Barbosa (1970:145-147) nos informa que em

15 de setembro a população acordou durante a madrugada com o toque dos sinos da matriz da

Conceição. Estava acontecendo um incêndio na rua Santa Bárbara. O fogo destruiu o prédio onde

funcionava o Hotel das Nações e atingiu o telhado da capela do mercado. Os trabalhadores daquele

quarteirão conseguiram retirar as imagens e alfaias e levá-las para a igreja do Corpo Santo. Mas esse

templo também não seria poupado. Em 1º de dezembro do mesmo ano, um incêndio iniciado na rua

Conselheiro Dantas atingiu o quarteirão onde estava localizada essa igreja.

O poder público utilizava esses acontecimentos para justificar a necessidade de melhoramentos

no bairro comercial, principalmente a abertura de avenidas. Os terrenos ocupados pelas igrejas, quase

sempre consideradas como empecilhos à modernização, seriam mais fáceis de serem usados após um

incêndio no edifício religioso, uma vez que a destruição em parte ou total do templo já havia

acontecido. Em 7 de janeiro de 1902, o relatório do intendente José Eduardo Freire de Carvalho Filho

afirmava a necessidade de “abertura de uma artéria ligando o Largo das Princezas à rua de Santa

Bárbara”. Segundo o intendente,

Causas diversas retardaram esse consentimento, não sendo de menos alcance a necessidade de um

grande corte em parte da Igreja do Corpo Santo, ponto inicial de uma das ruas (...). O pavoroso

incêndio de 1º de dezembro de 1899 simplificou em parte o projeto que me animou (...). Para removê-

la, porém, confiava nos intuitos progressistas e patrióticos do eminente pastor da Igreja Bahiana, o

Exmo. Revmo. Sr. D. Jerônimo Tomé da Silva , em que encontrou esta administração precioso auxílio,

pois, graças ao prestígio de sua Excia. Revma., concedeu a Cúria Romana a indispensável permissão

(Apud Barbosa, 1970: 147).

É lógico que os problemas causados pelos incêndios e as intervenções da administração

municipal tiveram influência direta no funcionamento do comércio e na organização do culto aos

santos. Os mercados da Cidade Baixa entraram em decadência. Os comerciantes foram aos poucos se

transferindo para um mercado na Baixa dos Sapateiros, que já funcionava desde 1º de março de 1874,

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e também recebeu o nome de Santa Bárbara. A constante mudança de local da celebração dos ritos

litúrgicos em honra da mártir, contribuiu para que os negociantes e trabalhadores do novo mercado

optassem por levar a imagem da santa para o nicho construído no local. Anísio Félix (1982:8) afirma

que a transferência da imagem da igreja do Corpo Santo aconteceu por volta de 1912.

2. Santa Bárbara, a Igreja e a modernidade

Nos primeiros dias de dezembro o Mercado de Santa Bárbara era preparado para a festa do dia

4. Segundo Hildegardes Vianna (1983:37), o local recebia um tratamento especial com limpeza dos

estabelecimentos e reforma do nicho que acolhia a imagem da santa. Além disso, bandeirolas, palmas

de coqueiro e folhas de pitanga faziam parte da ornamentação. Na manhã do dia festivo uma procissão

percorria as principais ruas do comércio até a igreja do Corpo Santo. Finalizada a missa, a imagem e os

fiéis retornavam ao mercado. Após a transferência dos comerciantes para a Baixa dos Sapateiros, o

cortejo saía do mercado, na rua J.J. Seabra, subia a Ladeira do Aquidabã, percorria as ruas dos

Marchantes e Cruz do Paschoal, subia a Ladeira do Carmo até chegar a rua do Paço, em cuja igreja

seria celebrada a missa. De acordo com a programação de 1919, publicada pelo jornal Diário de

Notícias em 3 de dezembro, depois dos atos litúrgicos, uma nova procissão deveria fazer o mesmo

percurso para retornar ao mercado, onde a festa teria continuidade com queima de fogos, banda de

música e samba.

Pierre Verger (1999:73) afirma que a festa de Santa Bárbara passava um pouco desapercebida do grande público

porque era realizada no meio da novena de Nossa Senhora da Conceição da Praia. Porém, acredito que outros fatores

contribuíram para que a homenagem à padroeira do Império, cultuada em 8 de dezembro na igreja que traz o seu nome,

tivesse maior visibilidade.

Como foi exposto acima, as irmandades foram as principais responsáveis pela organização das devoções e pela

realização das faustosas homenagens aos santos, verdadeiros espetáculos exteriores da fé. A devoção a Santa Bárbara em

Salvador não era realizada por irmandade e nem existia igreja exclusiva para o seu culto. Essa característica provocou,

inclusive, mudanças nas celebrações litúrgicas do dia 4 de dezembro. Tiveram início no morgado do século XVI e foram

transferidas para a capela do Corpo Santo no final do século XIX em função dos incêndios ocorridos no antigo mercado.

Em 1912, com a expansão do comércio na Baixa dos Sapateiros, a missa passou a ser celebrada na igreja do Paço e, a partir

de 1935, na igreja da Saúde. Atualmente, a celebração é realizada na igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, no

Pelourinho, local de saída da procissão.

O clero também foi responsável por demonstrações de maior interesse e divulgação das festas cujo cenário

principal era um templo católico. A partir de 1860, as festividades religiosas passaram a ser criticadas pela Igreja. A

romanização do catolicismo brasileiro pretendia cristianizar a vida cotidiana, vigiar a conduta moral e religiosa dos

católicos e promover a separação entre o sagrado e o profano. Kátia Mattoso (1992:405) destaca os meios utilizados pela

hierarquia da Igreja para afastar o povo da superstição e ignorância e atraí-lo para a ortodoxia:

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Antes de mais nada, ela (Igreja) desvalorizava o catolicismo dos leigos,assumindo o controle das festas tradicionais (outrora organizadas porconfrarias religiosas dirigidas por leigos) e dos centros de peregrinaçãopopulares (que passaram a ter padres residentes). Em seguida, ela substituiudevoções antigas (Santo Antônio, Santa Bárbara, São Benedito, etc.) por novas,então na moda na Europa, como as do Sagrado Coração de Jesus e do mês deMaria (maio).

Certamente esse era um dos motivos pelos quais as celebrações em honra de Santa Bárbara não tivessem muito

incentivo por parte dos padres. Eles tinham conhecimento de que, após os atos litúrgicos na igreja, os fiéis cantavam,

dançavam e consumiam a comida ritual do culto de Iansã dentro do mercado. As devoções praticadas nos mercados

estavam mais livres da interferência dos padres e, portanto, mais suscetíveis à mistura com rituais de origem africana. Se

não era possível destruir tais manifestações, era mais prudente não incentivá-las.

Há ainda que se levar em consideração o fato de que o culto a Santa Bárbara era praticado por uma população de

baixo poder aquisitivo, que não possuía recursos suficientes para festejar com fausto e oferecer banquetes aos profissionais

da imprensa local. Os colunistas dos principais jornais da cidade eram os divulgadores dos editais e programas das festas

religiosas. A presença deles nos festejos organizados pela irmandade de Nossa Senhora da Conceição, cujos membros

faziam parte da elite baiana, era a garantia de descrições, inúmeros elogios e congratulações aos promotores desses eventos,

ao mesmo tempo religiosos e de propaganda.

Nos dias que antecedem 4 de dezembro encontramos poucas referências aos festejos de Santa Bárbara nos jornais.

Esse silêncio não pode ser destituído de significado e permanecer sem reflexão. Quando a festa é anunciada, trata-se apenas

de pequena nota sobre os atos litúrgicos. O jornal Diário de Notícias de 3 de dezembro de 1918, por exemplo, traz a

seguinte aviso: “Os negociantes do Mercado da Baixa dos Sapateiros, em cumprimento à devoção que têm, mandam

celebrar amanhan, na egreja da Rua do Paço, às 9 horas, missa festiva à Santa Bárbara e para cujo acto recebemos convite,

que agradecemos”.

Algumas vezes até mesmo o dia de Santa Bárbara era esquecido pela imprensa. A partir de 1920 é comum

aparecer nos jornais uma pequena biografia e comentários sobre o santo do dia. É interessante notar que às vezes, como fez

o jornal Diário da Bahia de 4 de dezembro de 1923, a mártir é substituída por São Francisco Xavier. Esse jesuíta foi

considerado pelo Papa Urbano VIII como o Apóstolo das Índias e do Japão por seu trabalho de missionário. Ele morreu em

2 de dezembro de 1552 e foi canonizado por Gregório XV em 1624. Nada na sua biografia justifica considerá-lo como o

santo do dia 4 de dezembro. Mesmo sendo o padroeiro de Salvador, normalmente ele só era lembrado e homenageado nos

momentos de ocorrência de epidemias, como em meados do século XIX quando a Bahia tentava vencer a febre amarela e o

cólera.

Essas tentativas de substituições de cultos e manifestações culturais tradicionais eram freqüentes durante as duas

primeiras décadas do período republicano. A elite nacional divulgava, por intermédio da imprensa, os ideais de

modernidade, progresso e civilização. Na Bahia, políticos, médicos – sanitaristas e higienistas – educadores e jornalistas

queriam que Salvador seguisse os rumos das cidades mais ricas, populosas, modernas e civilizadas do país: Rio de Janeiro e

São Paulo. Inúmeros projetos foram elaborados com o objetivo de reordenar o espaço urbano e resolver os problemas

causadores do atraso: saneamento básico, abastecimento de água, serviços de esgoto, deficiente coleta de lixo, precárias

condições de higiene e saúde.

Havia a preocupação com as reformas da infraestrutura urbana, porém, a modernização possuía dimensões sociais

e culturais. Civilizar implicava na necessária mudança de hábitos e na moralização dos costumes. Tentava-se impedir a

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mendicância, os cultos místicos ou religiosos que não fossem católicos e as diversas formas de manifestações lúdicas

populares. Foi realizada, por meio dos jornais, uma verdadeira campanha contra o hábito de acender fogueiras e soltar

fogos – buscapés, bombas, roqueiras – durante as festas religiosas, sobretudo, as realizadas no mês de junho. O editorial do

jornal Diário de Notícias de 22 de junho de 1912 afirmava que essa brincadeira era “um vestígio da barbaria, da selvageria,

da brutalidade, das eras coloniaes, quando aqui ainda era, quase, tudo matta brava, quando aqui ainda era povoado de

indígenas ferozes e de colonos também ferozes”.

Portanto, a festa de Santa Bárbara não passava desapercebida por parte dos seus fiéis. Apesar

das tentativas da Igreja romanizada e da elite modernizadora de substituir essa tradição, as

homenagens eram realizadas com pompa, alegria e entusiasmo pelos seus devotos. Os festejos eram

pouco noticiados e incentivados pela imprensa baiana, mas a fé na protetora contra raios e trovões

continuou inabalável.

3. Iansã e a festa no mercado

O início do mês de dezembro era o período de reformas e limpeza do Mercado de Santa

Bárbara. Era preciso manter a higiene porque, após as homenagens católicas, os comerciantes,

trabalhadores e devotos em geral reuniam-se para o banquete. Como nos informa Hildegardes Vianna

(1983:37):

Após o retorno da pequena Santa Bárbara para o seu nicho no Mercado, eraservido, à farta, caruru acompanhado de aberém, acarajé e outros quitutes.Corria muito aruá de milho maduro, gengibirra e a inevitável cachaça.Formavam-se rodas de samba e de batuque, interrompidos por pequenasarruaças.

Era chegado o momento de consumir as bebidas de origem africana, feitas com cascas de

frutas, gengibre e milho fermentado. A programação da festa de 1919, divulgada pelo jornal Diário de

Notícias no dia 3 de dezembro, dizia que “No dia 3, ao meio dia, terá uma salva de tiros, e serão

queimadas diversas gyrandolas de foguetes. Em um lindo coreto tocará uma banda de música da

Brigada Policial e às 6 horas subirão aos ares foguetes e foguetões”. Para o dia 4 o programa

anunciava também a presença de banda de música, além da queima de diferentes tipos de fogos.

O dia de Santa bárbara era também o dia de Iansã. Após as celebrações católicas e a queima de

foguetes, o mercado se transformava em espaço de música, dança e rituais africanos. Os devotos

degustavam a comida afro-brasileira, principalmente os pratos favoritos de Iansã: caruru e acarajé. As

baianas – mulheres ligadas ao candomblé, algumas sendo mães-de-santo – vestiam blusas e saias

bordadas nas cores vermelho e branco e carregavam turbantes na cabeça. No pescoço traziam colares e

a guia (colar de contas na cor do seu orixá). Ali também se formavam as rodas de samba e batuque.

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Durante o samba, muitas vezes cantado em iorubá, os fiéis incorporavam Iansã. Tigelas contendo água

de cheiro – água perfumada pela infusão de flores e folhas – eram dispostas no mercado para que os

devotos pudessem aspergir-se com o propósito de purificar o corpo e o espírito.

Caribé (1969: 23), ao escrever sobre a Bahia, afirmou que essa não é uma terra de contrastes,

uma vez que tudo está alinhavado, misturado. “Tudo aqui se interpenetra, se funde, se disfarça e volta

à tona sob os aspectos mais diversos, sendo duas ou mais coisas ao mesmo tempo, tendo outro

significado, outra roupa, até outra cara”. O mesmo autor diz ainda:

Se fosse outra noite, se fosse uma noite de trovoada, por uma boca tirarialadainhas para Santa Bárbara e pela outra cantaria para Iansã, bonita como oque, enfrentando corisco com o seu alfange de ouro. Dançando ao som dospipocos, porque ela não tem medo de relâmpagos nem de Eguns do outromundo. Dança na cabeça levando o fogo que roubou de Xangô enquanto achuva derrete o barro vermelho que vira sangue vale abaixo até ir atingir ocomeço do mar.

Sabemos que o tráfico de escravos, o trabalho forçado e esforço de conversão dos negros ao

catolicismo empreendido pelo clero no Brasil, provocaram a criação de correspondências simbólicas

entre santos católicos e orixás. Características e atribuições de funções similares foram utilizadas para

fazer a equivalência.

A santa católica que possui os caracteres mais parecidos com os de Iansã é Santa Bárbara. Elas

possuem em comum o poder de criar e/ou controlar trovões e tempestades. Ambas são cultuadas por

navegantes de águas doces e salgadas para que possam afastar as tormentas. São, ainda, guerreiras que

protegem seus filhos nas guerras e demais batalhas que precisem enfrentar no cotidiano.

As homenagens realizadas no mercado em torno da imagem de Santa Bárbara e os rituais do

candomblé em honra de Iansã demonstram a força das devoções populares e do pluralismo religioso

existente na Bahia. Os descendentes de africanos encontraram nesse local as condições necessárias

para cultuar seus orixás. Esse espaço estava mais livre da ação do clero. A preocupação maior era com

os ritos católicos dentro dos templos e com a ordem e a disciplina que deveriam existir nas igrejas, nos

seus adros e no percurso das procissões. Quando a festa acontecia na área comercial, os fiéis do culto

afro-brasileiro aproveitavam as datas do calendário cristão para confundir as autoridades civis e

religiosas e homenagear seus orixás.

Uma leitura parcial dos relatos da festa de Santa Bárbara pode indicar uma total mistura entre

os ritos católicos e os do candomblé. No entanto, nem todas as características utilizadas para a

correspondência entre santos e orixás são pertinentes. Os fiéis, submetidos à rígida iniciação no

candomblé jamais confundiram Santa Bárbara, a mártir e virgem que morreu em nome do catolicismo,

com Iansã, a divindade dos ventos, das tempestades, do rio Niger, de temperamento forte, audacioso e

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sensual. Os devotos demonstram ter consciência de que foram atribuídos pontos de analogia para que o

culto africano no Brasil fosse ao menos tolerado, mas sempre souberam que um santo e um orixá não

formam uma mesma divindade.

O seguinte trecho da música 4 de dezembro, de autoria do compositor popular Tião Motorista,

demonstra que na igreja e na procissão as homenagens eram para Santa Bárbara. Ela deveria receber

flores e ser exaltada por sua condição de guerreira. Porém, no momento em que a imagem voltava para

o nicho, os trabalhadores do mercado festejavam Iansã, sua verdadeira padroeira.

Dia 4 de dezembroVou no mercado levarNa Baixa dos SapateirosFlores pra santa de lá.Bárbara, santa guerreira,Quero a você exaltarÉ Iansã verdadeira,A padroeira de lá.

Assim, era preciso ocupar os espaços dos mercados para realizar os rituais do candomblé em

dia de festa católica, dissolver as práticas africanas, como a distribuição do caruru, nos ritos católicos.

Aparentemente havia uma mistura entre os dois cultos, mas é possível também perceber as suas

especificidades. Esse pluralismo religioso serviu também para que as tradicionais festas em

homenagem aos santos permanecessem até os nossos dias. Nessa batalha para modificar os costumes

do povo baiano, travada entre o final do século XIX às primeiras décadas do período republicano,

lutavam, de um lado, a Igreja, o poder público e a elite intelectual, que usavam como armas as leis

eclesiásticas e civis e os textos publicados nos jornais locais. Do outro lado, os fiéis, sejam eles

católicos ou adeptos do candomblé, resistiam burlando as normas e realizando seus festejos. Desse

combate saiu vencedora a devoção popular.

Fontes impressas:

Jornais:

Diário de Notícias (1912, 1918, 1919)

Diário da Bahia (1923)

Referências bibliográficas:

BARBOSA, Manoel de Aquino (Mons.). Efemérides da freguesia de Nossa Senhora da Conceição daPraia. Salvador, Beneditina, 1970.

CARIBÉ. As sete portas da Bahia. São Paulo, Martins Editora, 1969.COSTA, Afonso. “O morgado de Santa Bárbara e o seu instituidor”. In: Revista do Instituto

Genealógico da Bahia. Salvador, Oficina Tipográfica Manu, ano VII, nº 7, 1952.

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FÉLIX, Anísio. Bahia pra começo de conversa. Salvador, Prefeitura Municipal de Salvador, 1982.MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Bahia, Século XIX. Uma Província no Império. Rio de Janeiro,

Nova Fronteira, 1992.VERGER, Pierre. Notícias da Bahia – 1850. Salvador, Corrupio, 2ª edição, 1999.VIANNA, Hildegardes. Calendário de Festas Populares da Cidade do Salvador. Salvador, Prefeitura Municipal, 1983.

Palavras-chave: Santa Bárbara; Festa religiosa; Religiosidade popular

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LOUCOS E PECADORES: O SUICÍDIO NA BAHIA NO SÉCULO XIX

FERREIRA, Jackson André da Silva!

O presente texto está baseado em análises preliminares de uma pesquisa mais ampla no mestrado em História

Social da UFBA, onde procuramos compreender as representações e as práticas sociais em torno do suicídio no Recôncavo

baiano na segunda metade do século XIX.

O estudo do suicídio não constitui apenas uma análise histórica sobre um tipo específico de morte e suas

representações, mas expressa também uma tentativa de melhor compreender as condições de vida de dezenas de pessoas

que procuraram no suicídio uma alternativa extremada de escapar das dificuldades impostas pela sociedade. Neste trabalho

estão presentes personagens das diferentes camadas sociais baianas: senhores de engenho, comerciantes, lavradores,

trabalhadores livres e escravos.

Ao afirmar que o estudo do suicídio também constitui uma investigação sobre as condições de vida da população

baiana, queremos dizer que ele revela as relações sócio-econômicas na Bahia oitocentista. Como bem afirmou Durkheim, o

suicídio não pode ser visto apenas a partir de causas individuais. As relações sociais são extremamente importantes para a

compreensão do mesmo. Sendo o suicídio um fato social, devemos então pensar como ele se processou na Bahia na

segunda metade do Oitocentos, principalmente levando-se em conta as dificuldades econômicas e sociais enfrentadas pela

maioria de seus habitantes. Em seu estudo sobre a mendicância, Walter Fraga Filho mostra com grande propriedade as

dificuldades enfrentadas por essa população, constituída na sua maioria por negros e afro-descendentes, face à pobreza e as

dificuldades econômicas. Kátia Matosso informa que, durante todo século XIX, a Bahia passou por períodos que oscilaram

entre fracas recuperações e graves depressões econômicas.i Estando a economia baiana fundada na produção agrícola e nas

atividades comerciais sempre dependentes do mercado externo, não é de se admirar que qualquer turbulência nesses setores

atingisse diretamente a população mais pobre, levando-a à miséria, desfazendo projetos de vida.

O Suicídio, obra escrita nos fins do século XIX, que enquadra Durkheim como um dos autores fundamentais na

construção da sociologia como ciência, é uma referência central para o presente trabalho, pois nela podemos encontrar a

discussão de diversas teorias correntes no período, cruciais para que possamos entender o embate entre os saberes médico e

religioso na Bahia produzidos e divulgados nos periódicos da época, assim como nas teses da Faculdade de Medicina, que

versam sobre o assunto. O título se inspirou justamente nestas fontes. Enquanto pessoas ligadas à Igreja afirmavam que o

suicídio não tinha nenhuma – ou tinha pouca – relação com a loucura, sendo fruto apenas da irreligiosidade e do pecado, a

filosofia médica afirmava que o suicídio era na maioria das vezes causado por problemas mentais.

Até o presente momento, a maioria dos artigos publicados e na época por mim localizados demonstra claramente

a utilização do suicídio como argumento religioso para fazer frente à crescente influência do saber médico-filosófico. O

ponto de partida dessa disputa encontra-se no século XVIII, principalmente no período do Iluminismo. Antes, tanto a Igreja

Católica quanto as crenças protestantes procuraram legislar de forma absoluta sobre o suicídio.Todavia, não foi fácil para a

Igreja realizar essa tarefa, visto que em suas fileiras existiam casos de mortes voluntárias.ii O suicídio foi assunto de alguns

concílios, os quais estabeleceram sanções no intuito de punir o suicida e educar os vivos para que estes não tomassem a

mesma resolução. Para isso, foi constantemente utilizada a associação entre o suicida e o Diabo, a alma do suicida e o

Inferno. Entre os concílios que discutiram formas de punir este crime destacam-se o de Arles (452), que condenou o

suicídio de escravos e servos, considerando-o como prova da ação demoníaca; o de Braga (563), que proíbe a realização de

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cerimônias cristãs para os suicidas; e o de Nîmis (1284), por ser o primeiro a produzir um documento escrito proibindo a

concessão de sepulturas eclesiásticas aos suicidas.

A segunda metade do século XIX se caracterizou por transformações significativas na

sociedade brasileira. Insere-se neste quadro de mudanças o crescimento das teorias medica e o declínio

da influência da religião na sociedade. Os debates produzidos em torno do suicídio enquadram-se

nessas disputas pelo saber e pelo poder. Contudo, os documentos até aqui encontrados vêm mostrando

que tais debates, ao que tudo indica, também se deram em um período de crescimento nos índices de

suicídio. No artigo publicado no Noticiador Catholico de 1849, intitulado Um mal horrivel que se

desenvolve no meio da população brasileira, o padre Mariano deixa-nos justamente esta impressão.

Segundo este religioso: “Admira em verdade o grande numero de suicídios que relatão os jornais do

tempo”.iii Até o presente momento, as fontes consultadas têm demonstrado oscilações nos índices de

suicídio o que não nos permite ainda tecer considerações seguras sobre esta questão.

As opiniões da época identificavam o suicídio como sendo fruto de três causas principais: o progresso da

civilização, a irreligiosidade e a loucura. Em 1858, Francisco Julio de Freitas e Albuquerque defendeu na Faculdade de

Medicina da Bahia tese intitulada A Monomania, onde dissertou sobre as diversas formas de monomania. De acordo com

Albuquerque, esta patologia caracterizava-se como uma doença mental fruto de “delirios da intelligencia com predominio

de uma ideia fixa, de um sentimento ou uma paixão”. Entre os diferentes tipos de monomania encontrava-se a Taedium

Vitae ou Monomania Suicida. Os indivíduos afetados pela monomania suicida eram levados a pôr fim à própria vida “para

se livrarem d’um estado physico ou moral”, “para gosarem com felicidade suprema, que só terminando a vida podem

adquirir”, e “para evitarem uma morte deshonrosa e de lamentos”. A monomania suicida, assim como as outras, poderia

aparecer lenta ou rapidamente, e mesmo ser “raciocinante” ou “instinctiva”, pela qual o indivíduo suicidava-se “unicamente

pelo desejo, que tinha de terminar os seus dias”. Albuquerque chama atenção para o fato de que não se deve confundir o

suicídio praticado pelo monomaníaco com o praticado pelo homem “a quem uma paixão violenta, uma grande desgraça ou

a miseria levou a esse acto de morte”. O suicídio praticado pelo monomaníaco seria fruto de problemas de saúde, uma

doença, enquanto o segundo representava problemas no relacionamento do indivíduo com a sociedade.iv

O monomaníaco suicida, assim como os demais, poderia ser identificado a partir de algumas

características sintomáticas que alteravam o comportamento e a fisionomia: voz rouca; olhar vivo,

fixo, sombrio e ameaçador; temperamento galhofeiro, triste, taciturno e incomunicável; respiração

fétida; pele quente, pulso acelerado. A associação do suicídio a problemas mentais era bastante

corrente no século XIX. Tais teorias serviram para descriminalizar o suicídio.

Na Bahia, Albuquerque não foi o primeiro a interpretar o suicídio como fruto da loucura. Em 1845, o Dr. Sabino

Olegário Ludgero Pinho defendeu, em tese intitulada Considerações acerca da musica e sua influencia sobre o organismo,

que o suicídio afetava o indivíduo que sofresse de perfeito estado de loucura. Infelizmente, não foi possível encontrar a

referida tese no Memorial de Medicina da Bahia, temos sido informados sobre seu ponto de vista a partir de dois artigos

publicados no jornal O Crepúsculo, ambos com o título “O Suicídio”. O primeiro, de autoria do redator do jornal Tiburtino

Moreira Prates, publicado em dezembro de 1845, produziu-se a partir de uma crítica ao lente da Faculdade de Medicina M

L. Aranha Dantas. Este quando da defesa da tese de Olegário Ludgero Pinho, havia se oposto à idéia de que a causa

primeira do suicídio residia na loucura, opinando que seus motivos deveriam ser buscadas na crescente irreligiosidade

presente na sociedade e nos indivíduos. Prates defende veementemente a idéia de que o suicídio se daria através da loucura

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e não a partir do fraco zelo religioso dos indivíduos. Afirma ainda que o fanatismo religioso e as penitências, que

expunham os indivíduos às “pestíferas exhalaçoes cadavericas” dos templos, eram sim causas de suicídio.v Em janeiro do

ano seguinte, o Dr. Aranha Dantas defende-se das acusações, reafirmando sua posição de que o suicídio se dava

principalmente devido à irreligiosidade da população, apesar de algumas vezes produzir-se em perfeito estado de loucura.vi

Em geral, os artigos procuram identificar o suicídio como sendo causado não apenas pela irreligiosidade e a

loucura, mas também pela degradação da vida social, fruto do avanço da civilização. Num artigo publicado em 1854 no

Noticiador Catholico intitulado “A frequencia do suicídio”, o autor esboça justamente esta idéia: “dirais que na corte a

civilisação é maior: porque ahi vides maior numero de suicidas. Vedes como os nossos sertões são poucos civilisados; mas

como lá domina mais a religião, raro é lá o suicídio”.vii As opiniões que ligavam o suicídio ao avanço da civilização não

eram exclusividade dos periódicos consagrados aos interesses da religião, como se autodenominava o Noticiador

Catholico. Em relatório da Presidência da Província em 1861, Antonio da Costa Pinto afirmava que as estatísticas tinham

demonstrando que o suicídio ia “augmentando a medida do correr do tempo, e por tanto das conquistas da civilisação”.viii

Anos antes, em 1848, o desembargador João José de Moura Magalhães, então presidente da Província, expressava sua

opinião no seguinte tom: “esta molestia, a que os moralistas Filósofos assignão tantas, e tão variadas causas, vai-se

tornando frequente entre nós. Parece que para ella muito contribui o augmento da civilisação, se quizermos attender, que

entre povos barbaros são raros os suicidios.”ix O relatório registrou, para o ano anterior, 21 casos de suicídios e tentativas,

menos da metade dos registrados no de Costa Pinto.

Salvador, como capital da província e exemplo dos supostos efeitos do progresso da civilização, quando

comparada às demais cidades da Bahia, apresentava um número muito maior de suicídios. Dos 152 casos de tentativas e

suicídios encontrados até aqui para os anos de 1851 a 1860, 122 ocorreram em Salvador, 7 em Cachoeira, estando os outros

23 casos espalhados nas outras cidades. Só para o ano de 1851 encontrei 29 casos, sendo 27 somente na capital. Tamanha

diferença entre o espaço urbano e o rural parece justificar as impressões dos contemporâneos em relação aos efeitos da

civilização. Na capital da Província da Bahia, concentrava-se um grande contingente populacional constituído na sua

grande maioria por africanos e afro-descendentes, que viviam no limiar da pobreza. São esses indivíduos que mais

aparecem nos relatos policiais, especialmente os escravos, o que vai contra a preposição do próprio Costa Pinto de que a

prova da influência da civilização sobre o aumento do suicídio explicava-se pelo fato de serem “as classes mais illutradas”

aquelas que forneciam o maior número de suicidas.x

Resta saber até que ponto o progresso da civilização contribuiu para a incidência do suicídio naBahia. Seria porque a “alma” do homem vivia, no período, devorada “de desejos de ambições, depesares e de magoas”, ou seriam os “martirios da escravidão” que provocavam o aumento do suicídiona Bahia? Analisando os números apresentados no relatório de Costa Pinto, somos levados a pensarque ambas as razões tiveram relevância. Dos 43 casos registrados para o ano de 1860, 24 era dehomens livres (sendo 4 estrangeiro) e 19 de escravos (constituídos na sua maioria por africanos).xi Nosmaços policiais até aqui consultados para o mesmo período foi encontrado um número menor de casos:29, sendo 17 livres e/ou libertos e 12 escravos. Comparando percentualmente os números apresentadospelos dois tipos de fontes, obteremos resultados semelhantes. No relatório de Costa Pintoencontraremos 55,8% de livres e 44,2% de escravos; nas fontes policiais, 58,6% de livres e 41,4% deescravos.

Apesar dos números serem importantíssimos para uma análise do tema, não devemos nos aterapenas a eles. Devemos buscar nos próprios relatos as prováveis causas que motivaram centenas deindivíduos a tentar e/ou conseguir por termo a sua existência, e analisá-los na busca de explicações quenos ajudem a entender as representações culturais e as relações entre os indivíduos e a sociedade. Sãocasos o de Firmino Lourenço, crioulo, solteiro, 25 anos, pedreiro, estando internado no Hospital daCaridade no curato da Sé, lançou-se da janela da enfermaria de S. José, morrendo imediatamente;xii ode Athanasio Joaquim Cordeiro Bastos, que em 1887 foi encontrado morto no cemitério da Quinta dos

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Lázaros, junto a carneira de sua filha que havia sido ali sepultada, tendo o subdelegado respectivoachado ao lado do mesmo cadáver um frasco contendo uma substância tóxica, com a qual se supôs tero infeliz cometido suicídio;xiii ou o de uma mucama, escrava do acadêmico Antonio Vicente Andrade,que, segundo seu senhor a escrava “soffria de alienação em certas phases da lua”, cujo corpo foiencontrado boiando em frente ao trapiche Barnabé, na freguesia do Pilar.xiv

Outro aspecto importante sugerido nos artigos é a tentativa de negar o caráter humano do suicídio, muitas vezes

demoniazando-o. Para a Igreja, a alma do suicida estava destinada ao Inferno e todos os seus tormentos: “Considera que

recebeste a vida sob a condição de soffrer e esperar; espera e soffre... senão vae-te com Satanaz, que es um monstro”,

propõe um pequeno artigo publicado na A Marmota Fluminense de 1854.xv Na concepção eclesiástica e popular, a morte

não significava necessariamente o término da vida e sim a passagem para uma outra, o que dependeria de como foi

conduzida a vida terrena e como se processou a morte.

Existia uma boa e uma má morte. Na Bahia, considerava-se como uma das condições de uma boa morte, morrer

conforme as tradições, obedecendo entre outras coisas às condições de espaço (morrer entre os seus), de tempo (já com

uma certa idade) e de circunstâncias (morte natural e/ou sem moléstias repentinas).xvi Os baianos conviviam cotidianamente

com a morte e suas representações, são diversos os cultos de santos relacionados a ela e a exaltação que estes trazem ao

sofrimento e resignação diante da dor, características da vida na terra segundo os contemporâneos: Nossa Senhora da Boa

Morte, Senhor Morto, Crucificado, Jesus Ressuscitado, Nossa Senhora dos Dores, Senhor do Bomfim, para citar apenas

algumas invocações de Jesus Cristo e Nossa Senhora, verdadeiros exemplos de fé. Nos artigos sobre suicidio encontramos

essa mesma exaltação ao sofrimento como forma de obter a salvação da alma. Não suportar a dor e procurar no suicídio a

solução era um crime.

A desumanização e demonização do suicídio nos parecem indicar a tentativa de dominá-lo. José Carlos Rodrigues

afirma que a sociedade tende a temer aquilo que não consegue dominar, aquilo que está próximo e, ao mesmo tempo, fora

do nosso controle.xvii Além disso, manter o suicídio sob controle representaria também controlar a vida dos vivos. Na

Bahia, as medidas coercitivas legalmente utilizadas, pelo menos em tese, eram as sanções fúnebres. Em artigo

anteriormente citado, o padre Mariano reafirmava as punições impostas pelos concílios, a imutabilidade das leis da Igreja e

de Deus. O mesmo se mostra temeroso quanto aos efeitos do suicídio para a sociedade. Para ele, o homem que se matava

dava um “esemplo funesto”, sendo justo que tivesse punições, que não tinha o sentido de punir “á elle que so punido pode

ser por Deos” mas sim para afastar os vivos do mau exemplo e da imitação. Era por esse motivo que se dava a punição ao

suicida, privando-o “de sepultura em lugar sagrado”.xviii

J. J. Reis lista um grande número de situações em que era terminantemente proibido fornecer sepultura sagrada:

apostasia, cisma, blasfêmia, usura, excomunhão e suicídio. Os enquadrados em algumas dessas situações apenas teriam

direitos a enterro cristão “caso reparassem material e/ou espiritualmente suas faltas” (grifos meus). (REIS, p.174). A lei

existia, mas não era cumprida. É o próprio padre Mariano quem nos fornece informações a esse respeito, em um tom de

indignação:

No nosso paiz desgraçadamente como que se tem desprezado esta lei – por ambição ou commiseração.

Não sabemos, mas o certo he que temos visto os suicidas enterrados no meio dos Templos, com todas as

pompas funebres, e honras que a Igreja nega á quem desvairado vai contra os Mandamentos Divinos

(grifos meus).xix

Apesar de algumas mudanças que podem ter ocorrido em relação às atitudes diante da morte na

segunda metade do século XIX, na sociedade baiana, não acredito que elas tenham sido profundas a

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ponto de mudar a relação dos baianos com as concepções de bem morrer e a busca da salvação da

alma. Apesar da proibição dos enterros nos templos e a conseqüente ida dos mortos para os cemitérios

intramuros, as sepulturas ainda parecem simbolizar um espaço sagrado. Garantir sepultura e

cerimônias cristãs para os morto era uma forma dos vivos de preservar uma maior possibilidade de

salvação da alma do defunto. Reis afirma que os vivos tudo faziam para que seus entes mortos

tivessem enterros eclesiásticos. Acreditava-se que aqueles que morressem fora dos padrões de bem

morrer e em circunstâncias trágicas poderiam virar almas penadas, e os vivos não queriam isso para

seus mortos. Isso deve ter contado para que os irmãos da Ordem Terceira de São Domingos

concedessem sepultura a José Maria de Almeida Pinto, que em 1840 suicidou-se por envenenamento.xx

Minois assinala que muitas vezes a loucura era uma das estratégias empregadas pelos vivospara que seus mortos voluntários escapassem dos tabus religiosos e civis.xxi Esta opinião é defendidatambém por Reis, que afirma que “os suicidas não tinham direito ao sepultamento eclesiástico, a nãoser que fossem loucos. E os vivos se empenhavam em proteger seus mortos dessa desgraça adicional”(REIS, p. 192). Talvez tenha sido este o caso de Celsa de Andrade Gomes, 17 anos, moradora nafreguesia de Santana, que na tarde de 24 de julho de 1854 se envenenou com arsênio, segundo seusparentes ela foi levada a esse ato de desespero devido a “um accesso de alienação mental, que lhesobreveio”.xxii Também os senhores do africano José e o crioulo João, ambos escravos suicidas,alegaram que os mesmos sofriam de alienação mental.xxiii Nem todos escravos tiveram a mesma sorte,ou azar, de poder contar com a benevolência dos seus senhores e companheiros, em buscar lhesgarantir uma desculpabilização.

Os suicídios de escravos devem ser analisados com uma atenção especial, em particular os dosafricanos, e à luz da nova historiografia da escravidão. Os motivos assinalados para estes suicídios iamdesde a alienação mental até a idéia, muitas vezes forçada pelos historiadores tradicionais a exemplode José Olímpio Goulart, de que os escravos o utilizavam como uma forma de retornar à África.xxiv

A teoria do suicídio como retorno à África era corrente no período. Ela está presente no

relatório policial apresentado ao presidente da província em 1850, quando do suicídio do africano

Othelo, escravo de João Baptista de Castro Rebello, que declarou não ter havido motivo para tal

suicídio e que a única causa provável era “a superstição muito usual que si apodera de taes indivíduos,

de que morrendo, vão viver em seo Paiz”.xxv Esse argumento pode muito bem ter sido usado pelo

senhor para esconder castigos praticados contra Othelo. Não podemos deixar de pensar que, pela

concepção de muitos africanos a morte representaria uma fuga e um retorno, mas será que realmente,

levando-se em conta a grande diversidade de nações, todos os africanos tinham esse pensamento?

Uma primeira leitura dos relatos dos suicídios de escravos até aqui encontrados nos mostra que

o desespero face à escravidão e aos castigos contribuiu muito para a decisão do escravo de pôr fim à

vida. Segundo Eduardo Silva as fugas eram a unidade básica da resistência escrava, constituindo-se

num ataque frontal ao direito de propriedade.xxvi A visão do suicídio como um ato de desespero não

exclui o analisarmos como um ato de resistência, na medida em que a morte do escravo possibilitava

sua libertação do cativeiro. Alguns casos parecem ter representado contestações veladas à escravidão,

como o caso do enforcamento ocorrido em Salvador em julho de 853 na freguesia da Santo Antonio,

da escrava Joaquina, parda ainda moça. Joaquina estava grávida, e pelas averiguações e exames

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realizados, reconheceu-se que a “infeliz tinha horror ao captiveiro, e dizia não querer augmnetar o

numero dos escravos produzindo-os”.xxvii

Se por um lado o suicídio pode ter representado um recurso extremado por parte dos escravos para a obtenção da

liberdade e assim um fracasso na negociação entre cativos e senhores, por outro as tentativas ou as ameaças de suicídio

podem ser vistas como uma estratégia para forçar uma negociação. Luiz, africano, escravo de Antônio Martinho, morador

de Santo Amaro, se utilizou desse expediente para ser vendido. Ao ser preso em Salvador na freguesia de Santo Antonio

em março de 1854, Luiz declarou ao delegado que, como seu senhor “por forma alguã o queria dispor, e que por isso fugira

afim de que qual quer senhor o comprasse”, assegurando ao delegado que “se enforcaria se fosse obrigado a tornar para o

puder do mesmo senhor”. Luiz foi recolhido à Casa de Correção e ainda não sabemos qual foi seu destino.xxviii Talvez Luiz

tenha tido a mesma sorte de Camila, africana, 30 anos, escrava do casal de libertos Domingos e Guilhermina, também

africanos. Em setembro de 1864, Camila tentou se afogar no dique com seu filho Marcos de 5 meses, sendo salvos e

levados à presença do delegado da freguesia de Santana, Camila declarou que seus senhores a maltratavam e exigiam

serviços e ganhos que não podia realizar, e que, não podendo suportar os castigos e maus-tratos, “desesperada tinha em

mente matar-se e ao filhinho”. Sendo chamado à presença do delegado para explicar os fatos, Domingos resolveu pô-los à

venda, para “evitar outras conseqüências”.xxix

Ainda muitas coisas precisam ser buscadas para se compreender o suicídio na Bahia. Todavia,

já está claro que, ao falarmos das representações culturais em torno do suicídio, não analisar um

conjunto diversificado de casos e atores sociais sem especial atenção às suas especificações. Na Bahia

do século XIX, escravos, livres e libertos responderam de formas diferentes às mazelas advindas da

ordem estabelecida pela sociedade e pela religião. Enfim, mostraram que eram agentes históricos,

atores principais e não simples figurantes no teatro em que viver na vida poderia representar também

viver na morte.

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OS CRISTÃOS NOVOS E A OCUPAÇÃO HOLANDESA DE 1624*

BEHRENS, Ricardo Henrique Borges**

Introdução

Durante onze meses entre os anos de 1624-25, a Bahia, capital da América portuguesa, foi atacada e ocupada pelos

holandeses1. Foram meses de desestruturação para a administração da colônia brasileira como um todo, de lutas e de

nenhum avanço para os holandeses – que passaram da condição de sitiantes a sitiados, sofrendo perdas humanas quase

sempre que tentavam ultrapassar os limites “urbanos”.

Este episódio, fez parte das disputas entre luso-espanhóis e holandeses que marcaram o século XVII. Desde 1580,

como resultado da crise dinástica em decorrência da morte do rei D. Sebastião, Portugal tinha sido anexado pela coroa

espanhola, dando início ao que Serrão (1994) chama de Monarquia dualista, na qual se reconhecia a existência de duas

coroas nas mãos de um mesmo soberano, regime que durou até 1640 e a historiografia designa por União Ibérica.

Conseqüência da União Ibérica, os inimigos da Espanha tornaram-se inimigos de Portugal. Assim, as retaliações

impostas pela Espanha à Holanda eram adotadas por Portugal e suas colônias do ultramar. O historiador Pedro Puntoni

salienta que as relações entre comerciantes holandeses e luso-brasileiros datavam de longo tempo e tenderam a continuar,

em detrimento da política espanhola. E, a partir do ano de 1609, quando holandeses e espanhóis assinaram uma trégua, que

ficou conhecida como Trégua dos Doze Anos, os holandeses intensificaram seus interesses pelos gêneros do Brasil

(PUNTONI,1999, p.47). De acordo com Boxer (1973, p.55), o Brasil exportou nesse período para a Holanda, anualmente,

cerca de quarenta a cinqüenta mil caixas de açúcar.

Com o fim da Trégua dos Doze Anos, a ansiedade passou a dominar as partes envolvidas e o temor de um ataque

holandês ao Brasil crescia a cada dia. Não foi à toa que o décimo segundo governador geral do Brasil, Diogo de Mendonça

Furtado, que havia chegado à Bahia em

* Este trabalho é resultado de pesquisas preliminares sobre a invasão holandesa na Bahia (1624-25), e foi financiado pelaCAPES.** Mestrando em História Social – UFBa / E-mail: [email protected] Das 17 Províncias que formavam os Países Baixos, 7 proclamaram sua independência da Espanha em 1581. Desdeentão, passaram a ser designadas Províncias Unidas dos Países Baixos. (AZEVEDO, 1997, p.312). Sendo a Holandaa mais importante das 7 Províncias, é comum se referir às Províncias Unidas como Holanda, também adotarei essaterminologia.

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12 de outubro de 1621, teve como preocupação primeva a conferência do armazém das armas (SALVADOR, 1982, p.354).

Pois naquele mesmo ano foi fundada a Companhia das Índias Ocidentais2, cuja primeira ação veio a ser a invasão da Bahia.

Até o momento, pouco foi pesquisado sobre a presença holandesa na Bahia. Provavelmente os vinte e quatro anos

em que os holandeses permaneceram em Pernambuco, deixando naquela Capitania uma marca incontestável da sua

passagem, abafaram os onze meses de ocupação baiana. Entretanto, uma análise mais cuidadosa demonstrará que existem

materiais inéditos sobre o episódio baiano, e nuanças a serem esclarecidas. Uma delas, a atuação dos cristãos novos.

Para alguns autores e principalmente para os cronistas espanhóis do Seiscentos, os cristãos novos tiveram

participação fundamental na invasão da Bahia, fornecendo informações estratégicas para o sucesso holandês. Assim, os

cristãos novos foram acusados de terem traído os portugueses. É sobre este aspecto da presença holandesa na Bahia que

tratará este artigo. Para tanto, farei uma breve análise acerca da história dos cristãos novos no Brasil, em especial na Bahia,

uma discussão da relação entre cristãos novos e holandeses e a utilização da inquisição enquanto mecanismo de vigilância

sobre os cristãos novos, finalizando com uma análise de alguns relatos produzidos no Seiscentos.

Os cristãos novos atravessam o Atlântico

Foi no contexto da descoberta da América que surgiu o cristão novo, filho da conversão forçada ao catolicismo, o

cristão novo não era nem judeu nem católico, ao mesmo tempo que era considerado judeu pelos católicos e católicos pelos

judeus. Sob esse dilema os indivíduos identificados como cristãos novos eram obrigados ainda a conviver com a

Inquisição. Perseguidos por esta instituição católica que muitas vezes lhes tiravam a privacidade, os bens, a vida... Os

cristãos novos buscaram migrar para áreas onde o poder inquisitorial não atuasse, ou

2 A idéia de uma Companhia de comércio holandesa voltada para as Índias ocidentais se fez presente desde o final doséculo XVI e teve em Willen Usselinx seu grande idealizador. Porém, com a assinatura da Trégua em 1609, o projeto teveque esperar. Só em 1621,com o reinicio das hostilidades entre Holanda e Espanha, foi possível levar a efeito a fundação detal Companhia. Assim, em 21 de junho de 1621, foi fundada a West Indian Company, daqui em diante WIC (WATJAN,1938, p. 23).

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só existisse na teoria. Nesse sentido, migraram para os países do norte europeu e para o Novo Mundo. Este último passaria

de distante lugar de degredo do século XVI, para uma espécie de Terra Prometida no século XVII 3.

Daquele cristão novo, convertido no final do século XV para o cristão novo do século XVII, que vivia na Bahia no

momento da invasão holandesa, existe uma grande distância. O cristão novo do Seiscentos tinha criado raízes no Novo

Mundo, constituiu famílias, miscigenou-se com os nativos, conseguiu cargos na administração – coisa inaceitável para um

cristão novo, considerado de sangue impuro, especialmente porque comparado com o cristão velho sem ascendência

judaica4 - , enfim, o cristão novo que vivia na Bahia nas primeiras décadas do século XVII já tinha se encaixado na

sociedade colonial, sabendo inclusive como lhe dar com a perseguição que sofriam, sempre suspeitos de tudo,

principalmente em momentos difíceis como o da invasão holandesa5.

Apesar das perseguições e preconceitos existentes contra os cristãos novos, incluindo aí a

política preconceituosa do próprio Estado português, eles foram um elemento importante na sociedade

baiana, e fundamentais para a economia. Conectados ao comércio açucareiro, os cristãos novos foram

proprietários de engenhos, lavradores, mercadores e, em alguns casos, como mencionei acima,

ocuparam cargos públicos. Foi o caso de “Manuel Serrão Botelho, filho de Lope Botelho, um cristão

novo que servira na África com D. Sebastião. Manuel Serrão Botelho requereu e foi considerado para

um cargo na Bahia...” (SCHWARTZ, 1979, p.88).

Sobre a ocupação dos cristãos novos na Bahia, Anita Novinsky fez um criterioso levantamento

nas fontes inquisitoriais e chegou aos seguintes números para os anos de 1620 a 1660: 31% eram

mercadores e homens de negócio, 14% senhores de engenho, 11% exerciam funções administrativas,

10% eram artífices em geral, 8% eram bacharéis, licenciados ou solicitadores de causas, 7% militares,

6% eram lavradores, 5% pequenos comerciantes, 4%

cirurgiões e boticários, 2% religiosos e 2% eram homens do mar (NOVINSKY, 1992, Apêndice 2).

Desses números podemos inferir a importância dos cristãos novos na sociedade colonial, na qual

participava em diversas atividades, com especial afinco nas atividades comerciais, o que os colocava

em contato direto com o trato açucareiro e, por assim dizer, com os compradores europeus, portanto

com os holandeses. Sem dúvida, o conhecimento público do contato entre holandeses e cristãos novos

contribuiu para a acusação de traição.

De maneira geral, notamos que os cristãos novos conquistaram seu espaço no Novo Mundo e tornaram-se peça

chave para o próprio funcionamento da colônia na medida em que penetraram na vida comercial, cuidaram da terra e

muitas vezes tornaram-se homens de posse, recebendo sesmarias. Como homens de posses, os cristãos novos adquiriram

poder e prestígio e, de certa forma, se igualaram ao grupo dirigente (NOVINSKY, 1992, p.60-1).

3. Nas palavras do cristão novo Diogo Lopes Ulhoa: “E... esta terra se fez para nós e nossos antepassados” (NOVINSKY,1992, p.58).4 Através da construção do mito da pureza de sangue, a parcela menos favorecida da sociedade passou a apoiar a elitedirigente, pois encontrava nesta mitificação o mecanismo de ascensão, no qual qualquer miserável estava acima do maisprospero cristão novo. (NOVINSKY, 1992, 9).5 “A Inquisição criou o mito do judaizante, recriou-o continuamente, mas o judaizante foi uma realidade que também serevitalizou, na maior parte, não como participante consciente da comunidade religiosa judaica, mas enquanto homemcondicionado por uma situação que o identificava com os judeus através da exclusão.” (NOVINSKY, 1992, p.6-7)

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Foram esses homens, fortalecidos pela perseguição, vivendo tão integrados à sociedade e economia colonial

mesmo sob olhares suspeitos, com suas redes comerciais estabelecidas, que foram acusados de terem traído os portugueses.

Diante das conquistas que alcançaram no Brasil, colaborar com os holandeses não seria trair a si mesmos?

Cristãos novos e holandeses

Sem dúvida, o alvo maior da Inquisição Ibérica foram os cristãos novos. Certamente o motivo de sua extensão

para a colônia estava ligado ao aumento do número de marranos6 no além mar. Porém, questões de ordem políticas devem

ter contribuído para a vinda da Inquisição ao Brasil. Em 1591, quando da primeira visitação do Santo Ofício, o rei decretou

a proibição do comércio com os holandeses nos portos portugueses e espanhóis. Já em 1618, por ocasião da segunda

visitação, nova ordem real determinava a expulsão dos estrangeiros do Brasil. Pode ser pura coincidência, mas também

pode não ser, e neste caso, temos que admitir a existência de um trabalho sincronizado que visava restringir a presença de

comerciantes holandeses no Brasil. Dessa forma, podemos situar as visitações do Santo Ofício ao Brasil, ao menos as duas

mencionadas, na confluência dos interesses deste último com os interesses da Coroa.

Dada a importância das fontes inquisitoriais para o conhecimento da história dos cristãos

novos, utilizarei, para pensar as relações entre cristãos novos e holandeses, as confissões da Segunda

Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil (1618-1620). Como foi dito anteriormente, os principais

refúgios dos cristãos novos foram o norte da Europa e o Brasil. Assim, é comum encontrarmos

membros de uma mesma família habitando nos dois lugares e muitas vezes constituindo uma rede

comercial familiar. Nesse sentido foi comum a existência de holandeses no Brasil, e de portugueses em

Antuérpia e Amsterdã, de cristãos novos na Bahia e nos Países baixos, enredados todos no tráfico

Atlântico. Provavelmente o mapeamento dessas relações foi uma das preocupações da visitação de

1618.

Nas confissões, período da visitação em que se concedia a graça aos que confessassem seus pecados, encontramos notícias

das relações entre cristãos novos e holandeses. É o caso de João d’Araujo, cristão novo holandês que morava na casa do

também cristão novo e mercador Diogo Lopez Franco (SEGUNDA, 1973, p.433-5). Aparecendo diante do inquisidor em

16 de setembro de 1618, João d’Araujo declarou que tinha escondido sua nacionalidade, declarando-se inglês, por temer

que o expulsassem do país caso descobrissem que era holandês. Durante sua confissão deixou claro que tinha conhecimento

da ordem real que expulsava os estrangeiros do país e que tinha sido educado na religião calvinista e não aprendera o

catolicismo por falta de quem o ensinasse. O curioso dessa confissão é o fato de que mentindo que era inglês conseguiu se

manter no Brasil. A lei de 1618 era de que fossem expulsos os estrangeiros, mas parece que estrangeiro naquele tempo era

sinônimo de holandês.

Outra confissão interessante e que dá conta das idas e vindas dos cristãos novos pelo norte europeu é a de Luiz

Alvarez, solteiro e natural do Porto (SEGUNDA, 1973, p.352-4). Quando perguntado pelo inquisidor se teve algum contato

com lugar ou gente suspeita da fé, respondeu que andara por Flandres durante quatro anos e aprendera a língua flamenga.

Esta interpenetração entre a Bahia e os Países Baixos significava a presença de holandeses na Bahia e de gente da Bahia

nas cidades do norte europeu. Gente como o flamengo João Pore Montafaux que se encontrava na Bahia por ocasião da

visitação de 1618 (SEGUNDA, 1973, p.489), ou como o cristão novo Manuel Homem de Carvalho, que declarou ter ido a

6 Marranos eram os descendentes de Judeus que viviam na Península Ibérica ou nas suas colônias.

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Flandres e ter encontrado por lá outros cristãos novos que tinham morado na Bahia e passaram a residir naquela cidade

(SEGUNDA, 1973, p.507-11). Flamengos e holandeses aparecem na Bahia desde finais do século XVI, e em Amsterdã ou

Antuérpia encontravam-se cristãos novos que nos trópicos tinham vivido.

Apesar de ter evidenciado uma conexão freqüente com flamengos e holandeses, o resultado das

confissões e das denunciações de 1618 não foram alarmantes. Não encontramos nenhuma evidência de

que algo estivesse sendo tramado em conjunto, ao contrário, as informações nos levam a concluir que a

presença de holandeses na Bahia foi uma constante e que portanto deveriam conhecer muito bem os

caminhos da cidade e seu sistema defensivo. O que tornaria desnecessário o auxílio dos cristãos novos.

Analisando alguns relatos Seiscentistas

Certamente os relatos seiscentistas constituem um material singular para analisar a ocupação holandesa da Bahia.

Escritos por holandeses, espanhóis e portugueses, em geral redigidos por padres e homens da guerra, contam com detalhes

as lutas travadas na Bahia naqueles onze meses de agonia.

Com relação à atuação dos cristãos novos durante a presença holandesa, os relatos trazem informações

divergentes. Notamos que o cristão novo é focado de acordo com a nacionalidade do cronista. Vejamos alguns casos.

Apesar da escassez de relatos holandeses traduzidos para a língua portuguesa, o relato do provável médico das

forças holandesas traz informações desde a partida da armada na Holanda até sua rendição em 1625. Narrando

detalhadamente cada passo dos holandeses, não encontramos nele nenhuma referência ou indício que faça crer que tenha

havido colaboração dos cristãos novos com a investida holandesa. Ao narrar a entrada na cidade, o cronista informa: “Na

mencionada cidade de S. Salvador, não encontramos outra gente senão negros...” (ALDEMBURG, 1961, p.173).

Outro documento produzido pelos holandeses, este anterior à invasão, dava conta das vantagens de invadir o

Brasil, vejamos o que diz uma delas:

“Os portugueses que oferecerão maior resistência ou defesa são, na sua maior parte, dareligião judaica, e, alem disto, inimigos natos e jurados da nação espanhola, razão porque sesubmeterão de boa vontade a V. Ex., ou facilmente serão levados a isto (...) Para conseguirtal coisa é absolutamente necessário que a Companhia se mostre muito amigável e cortezpara com a mesma nação, deixando a cada um liberdade de religião, fazendo aí boas leis ebom policiamento, administrando a cada um direito e justiça.” (MOERBEECK, 1942, p.29-30)

Como podemos perceber do trecho transcrito, não há nenhuma afirmação de que os cristãos novos colaboraram

com alguma coisa. Pelo contrário, monta-se uma estratégia para atraí-los, bem como para atrair a quem quisesse se

submeter ao governo holandês. O autor do relato supõe facilidade em conquistar apoio dos cristãos novos em função destes

não gostarem do rei espanhol, não por haver algum contrato firmado com eles, ou por possuírem relações preestabelecidas.

Já os relatos espanhóis são contundentes e veementemente acusam os cristãos novos de terem colaborado com os

holandeses. Antes de analisar os textos espanhóis, é preciso que se diga que estes últimos foram produzidos a partir da

restauração, ao contrário dos relatos holandeses, que foram escritos antes da invasão ou durante a ação. Esse detalhe parece

importante para analisar os relatos, pois notamos a mudança do discurso não só em função da nacionalidade, mas também

20

de acordo com a posição do cronista. Embora os relatos produzidos a partir da restauração sejam mais bem elaborados, não

são tão empolgantes, nem parecem tão verdadeiros quanto os que foram escritos - ou pensados - no calor das ações. Os

primeiros têm uma forma de relatório oficial para ser entregue ao rei e portanto uma elaboração que procura, de certa

forma, fornecer algumas explicações e encontrar culpados.

Vejamos por exemplo o que relata o espanhol Juan de Valencia y Guzman (s.l., s.d.), que ofereceu o seu relato ao

Capitão D. Fernando Porres e Toledo, sobrinho do Capitão Geral da Armada espanhola, D. Fradique de Toledo Osório. De

acordo com o cronista em questão, os holandeses tiveram notícias das riquezas do Brasil e da facilidade que teriam em

conquistá-lo por haverem poucas prevenções com a guerra e porque sabiam que os cristãos novos estavam torcendo por

alguma novidade para que pudessem professar a lei de Moisés sem a perseguição da Inquisição7. Ao narrar a entrada dos

holandeses na cidade em 10 de maio de 1624, Guzman afirma que os invasores souberam que a cidade estava vazia através

do cristão novo Diego Lopes de Abrantes8. Ou seja, os cristãos novos não só estavam esperando por uma novidade, como

se empenharam por ela.

Outra fonte espanhola de grande riqueza é a peça teatral do padre Lope da Vega (1957). Assinada pelo autor em 23

de outubro de 1625, portanto 7 meses após a restauração da Bahia, a peça foi encenada na corte de Felipe II. De acordo

com seu texto, a ocupação holandesa é interpretada como uma aliança entre cristãos novos e holandeses heréticos,

representada pelo casamento entre Guiomar (cristã nova) e Leonardo (mercador holandês protestante), enfatizado com

desdém nas palavras do luso-espanhol Machado: “Lindo casamento farão um herege com uma cristã nova”9.

Mas não só na união desse casal podemos perceber o discurso que associa cristãos novos e holandeses. Para o pai

de Guiomar, o cristão novo Bernardo, a chegada dos holandeses acenava uma sorte melhor do que agüentar o tratamento

rigoroso dos portugueses10. As falas de outros personagens apontam o mesmo caminho, o da traição dos cristãos novos.

Que teriam até brindado pela saúde do capitão holandês.

Em relação aos relatos produzidos pelos portugueses, não encontramos, até o momento

nenhuma menção a cristãos novos como traidores.

Na tentativa de compreender a relação estabelecida entre cristãos novos e invasores, Eduardo

França (1970) também recorreu aos cronistas da época, dividindo-os em dois grupos, de um lado

portugueses e holandeses, do outro os espanhóis. “Os primeiros mal escondem suas simpatias pelos

cripto-judeus, enquanto que os últimos talvez buscassem a custa deles justificar perante os portugueses

e a Europa, o insucesso de suas armas” (FRANÇA, 1970, p.25). Embora a afirmação pareça

verdadeira, é preciso minimizar a palavra simpatia Este tipo de sentimento pode até ter ocorrido entre

holandeses e marranos, porém entre estes últimos e portugueses é mais complicado. Acredito que os

cronistas portugueses não relataram a participação dos cristãos novos simplesmente por terem

desconhecido qualquer atitude que lembrasse traição.

7 “...se fue a Olanda don- / de dio larga cuenta a los dichos estados Rebel- / des de la tierra y sus riquesas y finalmente /quan facil se podia ganar poe el descuido com que / en ella vivian las pocas precvenciones de guerra / q’havia los muchosX’ptianos nuevos de la na- / cion hebrea q’la habitavan desseosos de intentar / alguna novidad de q’ poder sacar elprofescar la / Ley de Moyses al seguro de la santa Inquisicion...” . (GUZMAN, s.d., p.71).8 “...despues de aver tenido abisso el inimigo de la fuga / de los de la cidad (...) y quien dio el abisso, fue un X’ptiano /nuevollamado Diego Lopes de Abrantes...”. (GUZMAN, s.d., p. 91).9 “Lindo casamiento harón / un hereje y una hebréia”. (VEGA, 1957, p.267)10 “... mejor / entregarmos a holandeses que sufrir que portugueses / nos traten com tal rigor.”. (VEGA, 1957, p.265)

21

Conclusão

O principal argumento para a ligação entre os cristãos novos e a invasão holandesa advém da

perseguição que os primeiros sofriam por parte da inquisição. Esse braço da repressão católica não deu

sossego aos marranos nem no Novo Mundo. Daí a interpretação de que a invasão da Bahia e até

mesmo a criação da Companhia das Índias Ocidentais tiveram amplo apoio dos cristãos novos. Para

Boxer (1961, p.13), não passa de um exagero considerar que o capital dos cristãos novos foi

fundamental para a criação da Companhia das Índias Ocidentais11. Essa idéia é reforçada por Anita

Novinsky, que considera a participação dos marranos “virtualmente desprezível” (NOVINSKY, 1992,

p.117).

De fato os cristãos novos viviam a fugir da opressão católica, entretanto, dificilmente teriam se

unido com o fim de se oporem ao catolicismo. Como anotou Salvador, os cristãos novos estavam

“Unidos entre si, via de regra, por laços étnicos, cada um seguia os ditames da sua consciência ou o

que mais convinha. Havia entre eles o agnóstico, o protestante, o católico, o apóstata e outros (...). A

sinagoga não absorve[ia] a todos e ninguém há[via] que lhes domine[asse] o pensamento. Até nos

negócios existe[iam] disparidade. O dinheiro os incompatibiliza[va], como aos demais homens. Se uns

lutam[vam] pelos Felipes, outros os detestam[vam]. Uns são[eram] pelos holandeses, outros se

batem[iam] pelos portugueses...” (SALVADOR, 1976, p.336)

Por parte do holandeses, como foi colocado antes, eram bons mercadores, possuindo grande

trânsito nos entrepostos comerciais, conhecendo muito bem o terreno em que estava pisando e

familiarizados com os portos brasileiros. Fato que nos leva a concluir que não precisavam da ajuda de

cristãos novos para guiá-los. O que não anula a idéia de que se visse, a ajuda seria bem vinda.

Além do mais, autores como Stuart Schwartz (2000) e José Salvador (1976) alertam para a

prática corrente no período colonial de culpar os cristãos novos por todas as mazelas. No caso da

ocupação da Bahia, tudo indica que o mesmo expediente foi usado. Daquela vez pelos espanhóis

havidos em justificar a queda da “cabeça” da América portuguesa e calar as vozes que se levantavam

contra a União Ibérica que não dispensaram a oportunidade de acusar a Coroa espanhola de

negligência para com as pocessões portuguesas.

No campo hipotético, creio que além do que já foi dito, outro fator que contribuiu para a

acusação de traição dos cristãos novos - evidenciada pelos relatos espanhóis - , foi o caráter cruzadista

11“Além do total de cerca de 3 000 000 de florins subscritos pelos cidadãos de Amsterdam para o capital inicialda Companhia das Índias, entraram os judeus apenas com 36000 florins...”. (BOXER,1961, p.14)

22

que tomou conta dos que vieram na jornada restauradora. O inimigo que vinham combater era o

mesmo herege que colocava em risco o poder do rei católico na Europa. Era preciso exterminar o mal

que naquele momento atravessara o Atlântico. Esse parece ter sido o sentimento que dominou os

homens que lutaram contra os holandeses na Bahia e que permitiu um clima favorável à acusação de

que os cristãos novos colaboraram com os hereges.

Outra informação é a de que os cristãos novos não estavam a espera dos holandeses. Só

entraram na cidade ocupada quando os invasores ofereceram garantias, que não se restringiam a esse

ou aquele grupo, pelo contrário, abarcavam toda a população. Fato que fez

retornarem à cidade 200 habitantes, os quais não eram todos cristãos novos, embora esses

representassem, a maioria. É inegável que após a invasão os cristãos novos passaram, em sua grande

maioria, para o lado dos invasores. Entretanto, não faltaram portugueses que tomaram a mesma atitude

com o intuito de garantir seus bens e mesmo participar do comércio com os holandeses, que

sabiamente estimularam tal atitude.

Enfim, parece que o que havia por traz dessa fama de traidores que pesa sobre os cristãos novos

foi a necessidade de um bode expiatório que eximisse de culpa a administração espanhola, associado

ao preconceito de luso-espanhóis que se encontravam em erupção no século XVII, e uma certa

precipitação dos autores que concordaram com tal acusação. Porém, fazendo coro com França (1970,

p.71), mesmo que alguns cristãos novos tenham colaborado com os holandeses, não podemos

considerar traição o comportamento de alguns.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALDEMBURG, Johann Gregor. Relação da conquista e perda da cidade do Salvador pelos holandeses em 1624-1625.Salvador: (s.n.), 1961.

AZEVEDO, Antônio Carlos do Amaral. Dicionário de nomes, termos e conceitos históricos. Rio de Janeiro: NovaFronteira, 1997.

BOXER, C. R.. Os holandeses no Brasil: 1624-1654. Tradução de Oliveira Pinto. São Paulo: Ed. Nacional, 1961.

_____. Salvador de Sá e a luta pelo Brasil e Angola. São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1973.

FRANÇA, Eduardo D’Oliveira. Um problema: a traição dos cristãos novos em 1624. Revista deHistória. Nº83. São Paulo, 1970. pp. 22-71.

GUZMAN, Juan de Valencia y. Compendio historial de la jornada del Brasil, Ano 1625. [s.l.]: Pool Editorial, [s.d.].

MOERBEECK, Jan Andries. Motivos porque a Companhia das Indias Ocidentais deve tentar tirar aoRei da Espanha a terra do Brasil. In: RODRIGUES, José Honório (Org.). Os holandeses no Brasil.Rio de Janeiro: Instituto do Açúcar e do Álcool, 1942.

23

NOVINSKY, Anita. Cristãos novos na Bahia: a Inquisição. São Paulo: Editora Perspectiva, 1992.

PUNTONI, Pedro. A Mísera Sorte. A escravidão africana no Brasil holandês e as guerras do tráfico noAtlântico Sul, 1621-1648. São Paulo: Hucitec, 1999.

SALVADOR, José Gonçalves. Os cristãos-novos: Povoamento e conquistas do solo brasileiro, 1530-1680. São Paulo: Pioneira, 1976.

SALVADOR, Vicente do [Frei]. História do Brasil: 1500-1627. Belo Horizonte: Itatiaia, 1982.

SCHWARTZ, Stuart. Burocracia e sociedade no Brasil colonial. São Paulo: Editora Perspectiva, 1979.

______. When Brazil was Jewish: New Sources on the Fall of Bahia, 1624, in the Context of Portugal’s Political andSocial Conditions in the Seventeenth century. In: CROUZET; BONNICHON; ROLLAND (orgs.). Pour I’histoire duBrésil. Hommage à Katia Quirós Mattoso. França: [s.n.], p.245-60, 2000.

SEGUNDA visitação do Santo Ofício às partes do Brasil, livro das confissões e ratificações da Bahia: 1618-1620, in. Anaisdo Museu Paulista. Tomo XVII, São Paulo, 1973.

SERRÃO, Joaquim Veríssimo. O tempo dos filipes em Portugal e no Brasil (1580-1668). Lisboa: Colibri, 1994.

VEGA, Lope da. El Brasil Restituodo. ARCA, P. Nuúñez (org). São Paulo: Gráfica e Editora“EDGRAF”, 1957.

WATJAN, Hermman Julius Eduard. O domínio hollandez no Brasil; um capítulo da história colonialdo séc. XVII. São Paulo: Editora Nacional, 1938.

24

REPRESENTAÇÕES E PRÁXIS SOCIAL

Eugenio Domingos da Silva∗∗∗∗

“A denominação barbarismo representa(...)valoração de caráter cultural, expressandodiferenças entre culturas”. (LAS CASAS )

No ato da leitura de textos, elaborados por lusitanos, sobre os nativos habitantes da “América

portuguesa”, falando de suas formas de vida, devemos ficar atentos às representações usadas na sua

produção, pois estas são reveladoras do contexto histórico e do imaginário de seus autores.

Para este trabalho escolhemos a: “Carta a El-Rei Dom Manuel Sobre o Achamento do Brasil”, de

Pero Vaz de Caminha – e o “Tratado Descritivo do Brasil de 1587” de Gabriel Soares de Sousa – ambos

textos-discursos de autores portugueses do século XVI, os quais são fontes obrigatórias para o estudo de

História do Brasil no primeiro século de colonização.

Estes textos e seus autores são clássicos da historiografia brasileira, amplamente utilizados como

fontes para produção de outros textos, tanto de história como de outras áreas do conhecimento,

contribuindo, desta forma, para a difusão de suas imagens e conceitos.

Na tentativa de perceber como as representações contidas nestes textos-discursos produziram seus

efeitos na práxis social dos envolvidos na sua produção, é que fizemos uma releitura destes clássicos,

As representações contidas nestes textos-discursos são relevantes para compreendermos o

processo histórico de formação identitária do “índio” e, em parte, do povo brasileiro.

Roger Chartier elaborou o conceito de Representação em dois níveis: a) A representação como

dando a ver uma coisa ausente, o que supõe uma distinção radical entre aquilo que apresenta e aquilo que

é representado; b) A representação como exibição de uma presença pública de algo ou de alguém. No

primeiro, faz ver um objeto ausente através de sua substituição por uma imagem capaz de o reconstituir

em memória e de o figurar tal como ele é. No segundo sentido, as representações são pensadas num

registro diferente; o da relação simbólica que consiste na representação moral através das imagens ou das

propriedades das coisas naturais ou culturais12.

Chartier aponta as lutas de representações como sendo estratégicas para compreendermos os

mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção de mundo social, os valores

que são seus e o domínio sobre o outro.

As representações do mundo social são sempre determinadas pelos interesses do grupo que as

constituem. As representações não são de forma alguma discursos neutros, pois produzem estratégias,

∗ Eugenio Domingos da Silva é graduado em História (UESC-1995); Pós-graduado (Especialização) em FilosofiaContemporânea (UESC-1998) e em História do Brasil (UESC-2000). Professor da Rede Pública Estadual de Ensino (BA)[email protected] CHARTIER, Roger. A História Cultural - Entre Práticas e Representações. Trad. M. M. Galhardo. Col. Memória eSociedade. Lisboa: DIFEL, R. de Janeiro: Bertrand Brasil. 1990, p. 20.

25

práticas sociais e políticas que tendem a impor uma autoridade à custa de outras por elas menosprezadas,

a legitimar um projeto, a justificar para os próprios indivíduos as suas escolhas e condutas, ou seja, as

representações produzem práxis sociais que facilitam a construção das diferenças, a afirmação das

identidades, a idéia de superioridade /inferioridade étnica ou social de um grupo sobre o outro.

As representações devem ser entendidas como matrizes de discursos e práxis sociais diferenciadas

que se concretizam na existência prática no momento em que comandam atos que tenham por objetivos a

construção do mundo social, e como tal, a definição contraditória das identidades, tanto a dos outros,

aqueles que são transformados em objetos dos discursos; como a dos sujeitos dos discursos.

A noção de representações coletivas, entendidas no sentido que lhe atribui R. Chartier, permite

conciliar as imagens de representações claramente articuladas com os esquemas interiorizados, as

categorias incorporadas que geram e estruturam o pensamento coletivo.

O conceito de símbolo serve para todos os signos, graças aos quais a consciência constitui a

realidade. A função simbólica de Representação constrói o mundo como representação por meio de signos

lingüísticos, figuras mitológicas ou da religião e de conceitos do conhecimento científico.

A relação entre o signo e a coisa representada, entre as representações socioculturais e seus

membros representados, colocam as bases de uma questão histórica, a do estudo cuidadoso dos textos-

discursos sobre os outros, ao longo da história da humanidade, com suas idéias, conceitos e preconceitos.

A História Cultural revela as representações do mundo social que seus atores traduzem em

posições e interesses confrontados, ao descreverem a sociedade tal qual pensam que ela seja, ou gostariam

que fossem. Todas estas representações têm em vista fazer com que a identidade do ser representado não

seja outra coisa senão a aparência da representação.

Alteridade é um outro conceito importante, sobre os qual nos apoiamos para melhor

esclarecermos como se deram as práxis sociais entre aqueles diferentes grupos étnicos na luta para a

imposição de suas representações da realidade social.

Por alteridade devemos entender como sendo a característica do que é outro – o último termo

sendo quase impossível de se definir, mas geralmente opondo-se à idéia de mesmo, semelhante, idêntico.

A alteridade é o outro, aquele (a) com quem estou em relação.

Para André. Lalande as melhores definição para alteridade são: “A – Característica do que é outro.

Opõe-se a identidade.. B – (...) Característica do que é outro que não eu. (Este sentido lhe é próprio).” 13

A noção de alteridade é, do ponto de vista lógico, uma relação simétrica e intransitiva. Ela é assim

definida como negação pura e simples da identidade.

Neste sentido, poderíamos dizer que sujeito seria o meu pensamento próprio. O objeto, um golpe

vindo de fora. O objeto é o outro: uma sensação, uma tração, um empurrão, uma fricção, uma dor.

Surgindo daí a relação entre Alteridades: O Eu; e o Outro.

26

“Seria necessário, parece, para a correspondência dos termos, restabelecer a ordem seguinte:

Identidade, Distinção, Determinação.”14

Na definição de nosso objetivo surge uma dificuldade, o silêncio, deixado pela ausência de textos,

ou outras formas de documentos produzidos pelos “índios” da América Portuguesa, contendo suas versões

dos contatos e da vivência com os colonizadores portugueses, durante o primeiro século da colonização

do Brasil. Esta dificuldade foi possível de ser superada quando fizemos uma leitura crítica e uma análise

dos textos-discursos compreendidos como formas textuais de representação do político, como sugere a

Análise do Discurso.

A Análise do Discurso relaciona a linguagem com a ideologia, visando, por este meio, revelar a

historicidade dos textos. Permite esclarecer os contextos históricos contidos nos textos discursos, perceber

e apontar o confronto de sentidos presentes nas representações, como aquelas; bárbaro, gentil, animal,

selvagem, bestial, canibal, demoníaco entre outras, presentes nos textos-discursos que vamos analisar.

Além de possibilitar uma melhor visualização do embate de forças políticas e ideológicas utilizadas para

representar o “índio”.

A investigação do campo semântico daquelas representações conceituais estará apoiada em uma

redes de relações de; identidade, oposição e associação, por meio das quais classificaremos as

representações colhidas nos respectivos textos.

Desta maneira, procuraremos verificar como o “índio” tomou forma, adquiriu traços identitários

nos discursos por meio das representações conceituais histórica e ideologicamente marcadas pelos

padrões intelectuais de seus autores, dos grupos e interesses aos quais estavam histórico e culturalmente

ligados.

.

NAS RELAÇÕES DE IDENTIDADE; Aproximações e Distanciamentos

Tanto Pero Vaz de Caminha quanto Gabriel Soares Sousa iniciam, nos seus textos discursos, o

processo de representação do outro, a partir de elementos que funcionarão como relações de

identidade. O primeiro passo foi descrever a aparência, a exterioridade dos nativos, ou seja, descrever

o biótipo, e alguns hábitos socioculturais particulares dos habitantes da terra, “descoberta” e

colonizada. Neste ponto verifica-se uma aproximação entre os autores.

“A feição deles é de serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes,

bem feitos (...) traziam arcos nas mãos e suas setas. Andam nús sem nenhuma cobertura. Não fazem

13 LALANDE, A. Vocabulário Técnico e Científico da Filosofia. (vv. trad.) 2ª ed. S. P.: Martins Fontes, 1996, p. 47.14 LALANDE, A., op. cit., p. 47.

27

caso de cobrir ou mostrar suas vergonhas. E o fazem com tanta inocência como mostram os rosto (...)

traziam os beiços de baixo furados e metidos por eles ossos brancos”15.

“(...) E lá andavam outros quartejados de cores, metade da sua própria cor e a outra metade de

tinta negra, maneira azulada e outros quartejados d’escasques”16.

Ou então, “os Tupinambá são homens de meã estatura, de cor muito baça (...) muito alegres de

rosto; têm as pernas bem feitas, os pés pequenos; trazem o cabelo da cabeça sempre aparados; em toda

as outras partes do corpo os não consentem (...); são homens de grande força”17.

Nestas duas descrições podemos verificar que no ato aparentemente simples de descrever

apenas os traços físicos do outro, estes vão carregados de valores estéticos, morais e utilitários da

cultura do sujeito que a realiza, ou seja, vão carregados de ideologia.

Nas relações de identidade em Caminha estão presentes esforços em identificá-los aos animais.

Para isso fez uma leitura da resistência dos nativos em não quererem manter contatos com os estranhos

“visitantes”, como sendo atitudes de “gente bestial” ou “alimárias monteses”.

“Eles (...) são como aves ou alimárias monteses que lhes faz o ar melhor pena e melhor cabelo

às mansas”18, ou ainda quando fala de um velho nativo e de dois jovens que o capitão teve nas naus

“(...) nunca aqui mais apareceram.. De que tiro ser gente bestial e de pouco saber e por isso são assim

esquivos”19.

Com Gabriel S. Sousa são introduzidas novas categorias conceituais de representação que

distanciam seu discurso do de Caminha ao identificar os “índios” Tupinambá como gentio – por

estarem fora da esfera de influência do cristianismo, logo, sob o império do maligno – e como canibais

e luxuriosos – por decorrência do estado de ignorância das “verdades reveladas”.

O termo gentio, enquanto categoria conceitual de representação, é utilizado muitas e repetidas

vezes por Gabriel S. Sousa, para referir-se aos Tupinambá no seu texto discurso. Não os

quantificamos nem oferecemos este dado informativo, por considerar este recurso metodológico menos

apropriado para os objetivos que se pretende alcançar com este texto. A quantificação fez parte das

metodologias da história cultural dos anos 1960-70, não sendo mais utilizado quanto naquela época. A

nossa proposta dispensa este recurso preferindo desvelar o contexto e o sentido das representações.

Quanto às categorias conceituais, canibais e luxuriosos, são estas representações recursos

visivelmente marcados pelos imaginário de uma moral religiosa que certamente indignaria o

moralismo cristão sexofóbico de S. M. e mais facilmente se conseguiria o apoio para a grandiosa

expedição sertões a dentro.

15 Caminha, P. V. “Carta a el Rei D. Manuel sobre o Achamento do Brasil” p.6 e 7.16 Ibdem, Idem. P. 9.17 SOUSA, G. S. “Tratado Descritivo do brasil em 1587” p..300.18 CAMINHA, P. V. Op. Cit. p. 13.19 Ibdem, Idem. P. 13.

28

Aqueles gentios “comiam-se uns aos outros”20, e dramatiza, referindo-se ao ritual da matança,

que no momento oportuno “lhe faz a cabeça em pedaços com sua espada; e como se acaba esta

execução, (...) se costuma repartir esta carne”21 (...) “cozem e assam para comer; e reparte-se a carne

por (...) todos da aldeia”22. “São os Tupinambá tão luxuriosos que não há pecado de luxúria que não

cometam (...) É este gentio tão luxurioso que (...) não se contentam com uma mulher, têm muitas (...) e

não contente (...) são afeiçoados ao pecado nefando”23.

Caminha narra o que observou em apenas 09 dias, o que chamaríamos de um olhar das

caravelas sobre o litoral, Gabriel S. Sousa o que viveu e ouviu em 17 anos de contatos com os

Tupinambá o que seria um olhar das potencialidades do litoral e dos sertões para os interesses da

metrópole.

NAS RELAÇÕES DE OPOSIÇÃO; Semelhanças e Diferenças

Caminha, mesmo sem querer, permitiu-nos a percepção da resistência dos “índios” aos

interesses dos homens brancos, mesmo não lhes dando voz, como foi e ainda é regra, sendo esta pois a

semelhança básica entre os discursos, mas deixando o “silêncio dos vencidos”, seus sentidos,

transparecer no seu texto discurso.

Em nenhum momento é dada a palavra aos “índios” para falarem a partir de suas posições.

“Tornamos e eles mandaram o degredado e não quiseram que ficasse com eles”24.

“E como foi tarde fizeram-nos logo todos tornar e não quiseram que lá ficassem nenhum”25.

P. V. Caminha aponta, a partir das circunstâncias do seu olhar, observações que opõem

frontalmente os dois modelos socioculturais em encontro/confronto pela primeira vez. Ao escrever

sobre a relação avanço/atraso técnico, em que os portugueses dispunham de recursos tecnológicos bem

mais aperfeiçoados que os Tupiniquim. Alias, foi principalmente este aspecto da cultura material dos

portugueses que favoreceu a sua dominação e puderam por este meio auto-reconhecerem-se em

vantagens sobre os “índios”.

“Muitos deles vinham ali estar com os carpinteiros, e creio que faziam mais por verem a

ferramenta de ferro (...) Porque eles não tem coisa que sejam de ferro e cortam sua madeira e paus

com pedras feitas como cunha”26.

20 SOUSA, G. S. op. cit. p. 300.21 Ibdem, Idem . p. 327.22 Ibdem. Idem. P.328.23 Ibdem, Idem. P. 308-309.24 CAMINHA. P. V. op. cit. p. 10.25 Ibdem. Idem. P. 14.26 Ibdem. Idem. P. 14.

29

Como também pela relação presença/ausência de práticas similares de agricultura ou pecuária.

“Eles não lavram nem criam nem há aqui nem boi nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha nem

nenhuma outra alimária que seja acostumada ao viver dos homens”. E quando comenta de seus hábitos

alimentares apontam outros aspectos da diferença e oposição, não só da dieta como dos efeitos

nutricionais benéficos da dos “índios” em relação às suas, “nem comem senão desse inhame (...)

sementes e frutas (...) e (...) andam tais e tão rijos (...) o que não somos nós tanto com quanto comemos

de trigo e legumes”27.

Um último argumento de Caminha, que cuida da oposição entre os modelos socioculturais dos

portugueses e Tupiniquim, é apontado ao descrever as povoações de casas quanto à urbanização,

arquitetura e modalidade de acomodação. “Foram-se (...) a povoação de casas em que havia nove ou

dez casas, as quais (...) eram tão compridas (...) como esta nau capitânia. E eram de madeira e das

ilhargas de tábuas e cobertas de palha de razoável altura e todos em uma só casa sem nenhum

repartimento (...) e de esteio a esteio uma rede atada, (...) em que dormiam. E debaixo, para se

aquentarem faziam seus fogos. E tinham cada casa duas portas pequenas, uma em uma extremidade e

outra na outra”28. Pense no choque que este tipo de moradia e acomodações coletivas causou, uma vez

que o modelo ocidental é diferente não só na arquitetura como, nas acomodações por famílias com

repartições privativas e individualizadas.

Vejamos como Gabriel S. Sousa cuida de apontar as oposições entre o modelo cultural dos

colonizadores e dos colonizados, aqui também tentando perceber as semelhanças e diferenças entre o

seu texto discurso e o de Caminha.

Gabriel S. Sousa, vê na divisão social do trabalho por sexo, a oportunidade de ressaltar a

diferença entre as tarefas das mulheres européias portuguesas e as americanas Tupinambá. Afirma ele,

“as mulheres deste gentio não cozem, nem lavam; (...) não sabem tecer”29. E nos papéis especializados

da sociedade, aponta a ausência e/ou fusão de atribuições de médico e pajé “ (...) e não há entre este

gentio médico assinalado (...) quais são os feiticeiros grandes médicos”30.

Apresentar os Tupinambá como belicosos, que vivem em guerras contínuas aos seus

contrários, inclusive aos “pacíficos” colonos sem lhes deixar falar, é no que percebemos mais

claramente a semelhança entre os discursos, pois esta era uma forma eficiente de justificar a

necessidade das chamadas “guerras justas”; aquelas que foram empreendidas pelos colonizadores até a

dizimação dos Tupinambá, mas “guerras justas”, contra estes injustos, impiedosos e indolentes

guerreiros, que resistiam a escravização, a catequese, a colonização, logo, ao processo civilizador, ao

27 Ibdem. Idem. P.14.28 Ibdem., Idem. P.14.29 SOUSA, G. S. op. cit. p. 312.30 Ibdem, Idem. P. 319.

30

progresso, daí então estava justificada a necessária intervenção dos colonizadores europeus na

América.

“Os Tupinambá são muito belicosos, todos os seus fundamentos são como farão guerra aos

seus contrários”31. E para que as representações ganhem tons mais hediondos, são lhes acrescentados

os hábitos de infanticídios acompanhados de antropofagia. “(...) cria a criança até idade que se pode

comer (...) que oferece para isso ao parente mais chegado, (...) o qual lhe quebra a cabeça em terreiro

(...) e como a criança é morta a comem assada com grande festa, e a mãe é a primeira a comer desta

carne”32. Esta intervenção portuguesa deverá, no entender dos colonizadores, redimensionar a vida e os

valores deste gentio, bárbaro decaído, mesmo que seja através de guerras “justas”, dominação em

nome do Senhor e exploração pelo progresso da humanidade, inclusive destes bárbaros.

Caminha ressalta os seguintes aspectos na sua construção: a relação avanço/atraso técnico, a

presença/ausência de práticas similares de agricultura e a questão dos hábitos alimentares, entre os dois

modelos culturais. Pelo outro lado, Gabriel S. Sousa apega-se no critério da divisão social do trabalho

por sexo levantando um aspecto da questão do trabalho feminino, apontando ainda, uma diversidade de

papéis sociais desempenhados por um mesmo indivíduo quando se tratava de atividades aparentemente

inconciliáveis aos olhos de um português do século XVI.

NAS RELAÇÕES DE ASSOCIAÇÃO; Continuidades e Rupturas

Caminha cria logo de saída uma associação quanto aos nativos da América portuguesa, como

sendo estes, bestiais e idiotas. Eram homens que não participavam das mesmas convenções

socioculturais de valor de troca, daí então: “Eles davam desses arcos com suas setas por qualquer coisa

que lhes davam”33. São estes gestos de troca realizados fora das convenções de valor do português e da

civilização ocidental, que foram usados como respaldo para representá-los e associá-los a bestiais e

idiotas, e em contra partida, os portugueses, espertos.

Uma outra associação criada por Caminha, que foi muito útil para a formulação de um projeto

político colonizador para a “Terra de Vera Cruz”, foi aquela em que os nativos passam apresentar

grandes potencialidades e inclinações para o cristianismo, daí então, representá-los como possíveis

cristãos tuteláveis. Representação esta, indicada e sugerida com bastante ênfase.

Na ocasião em que disse missa o padre Frei Henrique, “ali estiveram conosco a ela obra de

cinqüenta ou sessenta deles, assentados todos em joelhos assim como nós. E quando veio ao

Evangelho que nos erguemos todos em pé com as mãos levantadas, eles se levantaram conosco e

alçaram as mãos, estando assim até ter acabado. (...) E quando levantaram a Deus que nos pusemos

31 Ibdem, Idem. P.320.32 Ibdem, Idem p. 325.

31

em joelhos, eles se puseram todos assim como nós estávamos com as mãos levantadas”34; (...) segundo

o que a mim e a todos pareceu, esta gente não lhe falece outra coisa para ser cristã, senão entenderem-

nos, porque assim tomavam aquilo que nos viam fazer como nós mesmos”35.

As moças Tupiniquim foram associadas às prostitutas de Portugal, e para criar o ambiente

mental favorável para que a representação fosse eficiente, narrou. “Ali andavam entre eles três ou

quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas espáduas e suas

vergonhas tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de nos muito bem as olharmos, não tinham

nenhuma vergonha”36.

Caminha também associa a inocência, e o nudismo dos nativos da terra, à idéia de paraíso,

introduzindo os primeiros elementos para os discursos edenizadores da natureza e povos da América

portuguesa, associando as matas e o modo de vida dos Tupiniquim com o conteúdo do texto bíblico

denominado “Gêneses”. “Assim Senhor, que a inocência desta gente é tal que a de Adão não seria

mais, quanto à vergonha”37.

Gabriel S. Sousa associou as mulheres Tupinambá a fêmeas de animais, pois estas para parirem

não tomavam os cuidados das portuguesas.

“Quando estas índias entram em dores de parir, não buscam parteiras, não se guardam do ar,

nem fazem outras cerimônias, parem pelos campos e em qualquer outra parte como uma alimária”38.

Mas querendo continuar utilizando a mão-de-obra escravizada das Tupinambá as associam às

empregadas domesticas. “As moças deste gentio que se criam e doutrinam com mulheres portuguesas,

tomam muito bem o cozer e lavar, e fazem todas as obras de agulha que lhes ensinam, (...) e fazem-se

extremadas cozinheiras”39. E seguindo a mesma linha de Caminha, estas potenciais empregadas

domésticas são associadas também, a suas amantes, apontando outras habilidades requeridas para

melhor desempenharem o papel de “domésticas”, junto as honradas famílias portuguesas. “(...) mas são

muito namoradas e amigas de terem amores com os homens brancos”40.

Entre as associações de Gabriel S. Sousa, as que melhor caracterizaram o contexto de produção

de seu texto discurso, a sua mentalidade e seus interesses de classe, são as que colaboraram para o

processo de demonização dos Tupinambá, em contraposição ao discurso perovaziano (edenizador),

fruto de outro contexto, circunstâncias e interesses.

33 CAMINHA, P. V. op. cit. p.12.34 Ibdem, Idem. P. 17.35 Ibdem, Idem. P. 17.36 Ibdem, Idem. P. 9.37 Ibdem, Idem. P. 17.38 SOUSA, G. S. op. cit. P. 306.39 Ibdem, Idem. P. 315.40 Ibdem, Idem. P.315.

32

Pois de tantas bestialidades e bizarrices que fazem “parecem os demônios”41, temerosos a seus

contrários. “Entre este gentio (...) há grandes feiticeiros (...) que falam com os diabos (...). Muitas

vezes acontece aparecer o diabo a este gentio em lugares escuros, e os espanca (...). Qualquer

desgosto(...) determinam de morrer; o que põem-se a comer terra (...) o que afirmam que lhes ensinou

o diabo”42.

Ao estabelecer relações de associação na sua carta, Caminha desenvolve duas idéias que terão

continuidade no Tratado (...) de Gabriel S. Sousa. Na primeira: associa os nativos da América

portuguesa aos idiotas, bestiais, por não comungarem dos mesmos critérios de valor ao realizarem

trocas com os portugueses. A segunda: quando as moças Tupiniquim são associadas às prostitutas

portuguesas, uma vez que aquelas não demonstravam sinais de “vergonha”- acanhamento, pudor nem

timidez – diante dos homens “civilizados” ao olharem para suas “vergonhas” – genitália. Enquanto

Gabriel S. Sousa da continuidade a estas representações ao associá-las às suas criadas domesticas e à

suas amantes.

Ao mesmo tempo que, lança outras duas representações que não terão continuidade no Tratado

(...), as quais, por sua vez, irão servir como elementos de ruptura entre estes discursos. Uma destas

rupturas surge na representação perovaziana dos “índios” como potenciais cristãos tuteláveis, os quais

para Gabriel S. Sousa eram vistos como bárbaros e gentios irremediáveis. A outra ruptura se dará com

o discurso edenizador da natureza e dos povos em Caminha , por um discurso demonizador em Gabriel

S. Sousa.

Caracterizando os sinais hora de continuidade, hora de ruptura, entre os discursos aqui

revisitados podemos nos referir ao exemplo da passagem em que Gabriel S. Sousa associa as mulheres

Tupinambá à fêmeas de animais, reforçando em seu texto discurso a continuidade desta representação

e, ao mesmo tempo, rompendo com os limites da Carta de Caminha, aprofunda suas observações

chegando a referir-se a detalhes da privacidade feminina quando comenta da hora de parirem.

Esta foi a forma que encontramos para tentar esclarecer os sentidos embutidos nas

representações dos textos-discursos de Caminha e Gabriel S. Sousa. Agora, buscaremos os

fundamentos que justificarão as práxis sociais decorrentes daquelas representações.

A FUNDAMENTAÇÃO DAS PRÁXIS SOCIAIS

Para Aristóteles, esta categoria conceitual – BARBARO – deveria ser entendida a partir da

idéia da escravidão natural. Então os bárbaros seriam como uma espécie humana inferior, pois apenas

os gregos possuíam os atributos próprios da verdadeira humanidade. A natureza havia destinado esses

41 Ibdem, Idem. P. 307.42 Ibdem, Idem. P. 314-15.

33

indivíduos à funções de obedecer, sendo portanto escravos naturais. Os bárbaros deveriam sujeitar-se a

um senhor, capaz de guiá-lo segundo o princípio da razão. Pois a natureza dotou os escravos de um

corpo robusto e perfeito para as atividades manuais.

.Durante a baixa Idade Média o termo referia-se aos mais diversos povos ainda não convertidos

ao cristianismo, sendo aqueles seres humanos imperfeitos.

Com as grandes navegações e o processo de expansão européia “o barbarismo atravessou o

Atlântico e encontrou solo fértil nas narrativas de viagens”43.

Com o “descobrimento do Brasil”, já no texto perovaziano e posteriormente nos textos de

viajantes, religiosos e colonos, entre estes últimos o de Gabriel S. Sousa, “Bárbaros eram os índios de

corpos nús, bárbaros eram os canibais na faina de esquartejar corpos e devorar a carne do inimigo.

Bárbaros eram os guerreiros e seus embates eternos, seres sem Lei, sem Rei, sem Fé”44.

Para Nóbrega os nativos eram como páginas de papel em branco, pois acreditava na

maleabilidade e flexibilidade espiritual do gentio. Afinal, em Caminha já constavam bases para esta

visão, “porque e certo que esta gente é boa e de boa simplicidade. E imprimir-se-á ligeiramente neles

qualquer cunho que lhes quiserem dar pois, Nosso Senhor lhes deu bons corpos e bons rostos como a

bons homens”45.

Foi neste contexto de debates, embates de interesses e de afirmação de sentidos que as

categorias conceituais de representação Bárbaro e Gentio, produziram seus efeitos de longa duração no

imaginário individual e coletivo, tanto dos forjadores e aplicadores das representações sobre os

nativos do Brasil; como também, sobre aqueles que as assimilaram, principalmente suas posteridades

brasilianas, cristalizando-se e interiorizando-se como parte de suas identidades.

Uma vez assimiladas e incorporadas, as representações regem a estrutura do pensamento e das

atitudes individuais ou coletivas.

Como expressão da continuidade desta linha de pensamento e sobrevivência destas

representações , temos nos anos 1850, a publicação da obra “História Geral do Brasil” de Francisco

Adolfo Varnhagen. Nesta obra “Varnhagen representa o pensamento dominante durante o século XIX,

(...) faz o elogio da colonização portuguesa e defende a continuidade luso-brasileira, caminho pelo

qual, de fato, optaram as elites brasileiras”46.

“O olhar de Varnhagen sobre a história do Brasil é, portanto, o olhar do colonizador

português”47. Esta corrente de interpretação e de representação historiográfica sobre o Brasil articulará

os sentimentos e interesses dos “descobridores do Brasil”, submetendo-o à sua lógica.

43 RAMINELLI, Ronald. “Imagens da Colonização – A Representação do Índio de Caminha a Vieira”. Rio de Janeiro,Zahar – Edusp, 1996., p. .54.l44 Ibdem, Idem, p. 54.45 CAMINHA, P. V. p.16.46 REIS, José C. “As Identidades do Brasil; de Varnhagen a F.H.C.” 2ª ed – Rio de Janeiro: FGV, 1999. p.33.47 Ibdem, Idem. p.33.

34

Na luta colonial, os brancos venceram militarmente os nativos, conquistaram o seu território, os

escravizaram e os dizimaram; sentindo-se superiores impuseram a idéia da sua superioridade étnica,

cultural e religiosa.

Como decorrência dos embates ocorridos nestes campos de concorrência e de competições das

representações, “a jovem nação quer ser também vencedora e se identificar étnica, social e

culturalmente com o branco. Foi este quem trouxe a civilização européia superior – a lei, o rei, a fé, a

razão. Os brancos são portadores de tudo aquilo de que uma nação precisa para se constituir

soberanamente. Aos vencidos resta a exclusão, a escravização, a repressão e a assimilação pela

miscigenação, isto é, pelo branqueamento racial e cultural”48.

José C. Reis no seu texto “As Identidades do Brasil; de Varnhagen a F.H.C”, mostra-nos como

Varnhagen via os “indígenas”, aqueles “homens exóticos”.

“Eram, segundo ele, uma gente nômade (...) moravam em aldeias transitórias, (...) violentos,

mantinham guerras de extermínio entre si, bárbaros, não nutriam os altos sentimentos do patriotismo

(...) essa gente vagabunda, em guerra constante constituíam no entanto uma só raça, falavam dialetos

de uma só língua – a geral ou tupi. Era uma unidade de raça e língua que poderia tê-los levado a

constituição de uma nação. Mas mantiveram-se fragmentados e hostis entre si (...) os laços de família

(...) eram muito frouxos (...). No amor, não havia sentimentos morais. As delicias da verdadeira

felicidade doméstica quase não podiam ser apreciadas e saboreadas pelos homens no estado selvagem.

Rodeados de feras e de homem-feras, não podem nele desenvolver-se a parte afetuosa de nossa

natureza, a amizade, a gratidão, a dedicação. Se eram favorecidos no dotes do corpo e nos sentidos, o

mesmo não ocorria com o espirito. Eram falsos e infiéis, inconstantes, ingratos, desconfiados,

impiedosos, despudorados, imorais, insensíveis, indecorosos. Eram fleumaticamente brutais! (...)

passavam a vida habitual, entrecortada pelos sobressaltos da guerra, festas e pajelanças (...) Possuíam

vários vícios: a hostilidade, a antropofagia, a sodomia, a vingança comiam terra e barro”49.

A intenção de uma ruptura com esta linha de pensamento concretiza-se só no século XX,

quando em 1907, Capistrano de Abreu inaugura uma nova tendência dentro da historiografia brasileira,

a dos “Redescobridores do Brasil”. Na sua obra, “Capítulos de História Colonial”, Capistrano

diferencia-se de Varnhagen na perspectiva que terá de tais dados. “Se Varnhagen concebia a história

do Brasil como continuação da história portuguesa, Capistrano vê, nos portugueses, estrangeiros.

Português ‘estranho ao continente’, ao qual se juntaria o negro, ‘também alienígena’, vale dizer”50.

“Para Capistrano, alienígenas, exóticos são os europeus e africanos, e não o indígena e a terra do

Brasil, que vêem chegar novos e desconhecidos elementos. Ele olha da praia para o oceano cheio de

48 Ibdem, Idem. p. 34.49 Ibdem. Idem. p. 36.50 VAINFAS, Ronaldo. Capítulos de História Colonial in: “Introdução ao Brasil – Um Banquete no Trópico” , p. 179.

35

caravelas, enquanto Varnhagen olhava da caravela de Cabral para a praia, e via uma terra exótica

povoada por alienígenas”51.

Apesar das batalhas historiográficas travadas entre os “Descobridores do Brasil” e os

“Redescobridores do Brasil”, a tendência que tem conseguido maior êxito na produção, divulgação e

assimilação de suas representações é aquela pela qual as elites nacionais optaram: a da continuidade,

da dependência e do subdesenvolvimento.

No entanto, cabe ressaltar que, esta questão não esta resolvida. Durante todo o século XX,

novos esforços foram feitos na direção da afirmação do povo brasileiro, da superação da dependência,

pela emancipação e pela autonomia nacional, tomando consciência cada vez mais ampla de seus

limites e possibilidades históricas reais.

Trabalhos como os de Sérgio B. Holanda “Raízes do Brasil”, nos anos 30; de Caio Prado Jr.

“Formação do Brasil Contemporâneo”, nos anos 60; Florestam Fernandes “A Revolução Burguesa no

Brasil”, nos anos 70; Ronald Raminelli “Imagens da Colonização- A Representação do Índio de

Caminha a Vieira”, Laura de Melo e Sousa “O Diabo e Terra de Santa Cruz – Feitiçaria e

Religiosidade Popular no Brasil Colonial”, Ronaldo Vainfas “A Heresia dos Índios – Catolicismo e

Rebeldia no Brasil Colonial”, José Carlos Reis “As Identidades do Brasil – de Varnhagen a FHC, nos

anos 90; entre tantos outros, são apenas alguns dos exemplos de trabalhos historiográficos preocupados

com o “Redescobrimento do Brasil”, com a construção e a afirmação de uma identidade nacional. Não

podemos deixar de nos referir também à onda de trabalhos monográficos e publicações recentes que

se constituíram em um privilegiado campo de concorrência e de competições de representações e de

produção de sentidos, que esta acontecendo dentro e fora do Brasil em torno dos 500 anos do

“Descobrimento do Brasil”, cabendo aos leitores, é claro, o cuidado de distinguir e identificar dentre

estes e aqueles discursos.

Apesar dos esforços recentes no sentido de reverter os danos causados pelos efeitos de longa

duração no imaginário do brasileiro, resultantes de uma tradição historiográfica filiada aos

“Descobridores do Brasil”, infelizmente o que ainda vemos prevalecer no nosso cotidiano são as

práxis sociais de um projeto político de dominação construído no século XVI, que apenas vem sendo

reelaborado e aperfeiçoado para garantir a sua continuidade, conforme as circunstâncias do novo

momento histórico em que seus defensores/aplicadores vêem ocasião de implantá-lo.

MANIFESTAÇÕES COTIDIANAS ATUAIS

51 Ibdem, Idem. p. 98.

36

Para verificarmos como estas práxis sociais se manifestam no cotidiano brasileiro, chamamos a

atenção para estes casos emblemáticos de intolerância nas relações entre alteridades, verificados em

nossos dias, que têm ligação direta com a questão que estamos tratando.

Em Brasília, capital da República, na madrugada de 20 de abril de 1997, um grupos de 05

jovens de classe média alta – Antônio Novély C. de Villanova, Eron Chaves de Oliveira, G. A. J.,

Max Rogério Alves e Tomás Oliveira de Almeida – iguais a tantos outros jovens brasileiros, se

divertiam pelas ruas da cidade e resolveram “dar um susto em um mendigo”52, como disse um deles.

Ao avistarem dormindo em um ponto de ônibus, um dos muitos excluídos da sociedade

brasileira, atearam fogo e assassinaram o indivíduo, demonstrando a aversão que o cidadão brasileiro

tem em conviver com estes marginais sociais, afinal eles são os representantes da permanência

daqueles seres que “encontravam-se no limbo”, “degenerados”, ou melhor dos “bárbaros”. E se

quisermos atualizar esta representação conceitual, tomaríamos a licença em acrescentar o prefixo neo,

tão em voga em nossos dias, e teríamos então, o Neobárbaro.

Aquele neobárbaro era um “índio”. O Pataxó Hã Hã Hãe, Galdino Jesus dos Santos, cuja aldeia

esta localizada na reserva Paraguaçú Caramurú nas imediações da cidade de Pau Brasil, no Sul da

Bahia. “O índio Galdino tinha ido a Brasília para exigir a devolução das terras Pataxó griladas por

fazendeiros”53 locais. O problema de terra no Brasil, assim como as representações conceituais

lançadas sobre nativos, no período colonial, são fenômenos que têm demonstrado uma enorme

longevidade. Haja vista, as lutas ainda acontecendo pela demarcação das terras dos “índios” e o M. S.

T. (Movimento dos Sem Terra), pela reforma agrária, entre outras tantas lutas populares por cidadania.

“O ato desses rapazes (...) envolve uma questão maior que é viver em uma sociedade que

valoriza o individual e descarta o outro”54, na avaliação da psicóloga Rosely Sayão. O outro deste

caso, era descendente daqueles outros bárbaros e gentios “índios” do século XVI – apenas mais um

dos muitos “neobárbaros” da sociedade brasileira contemporânea.

“Esses rapazes, isoladamente, são bons (...). Mas, quando se juntam, quem pensa é o grupo e a

ética tribal é outra”55, comenta o ex-diretor da faculdade em que um daqueles jovens brasileiros

estudavam. Assim, a noção de representações coletivas, entendidas no sentido que lhe atribui R.

Chartier, permite conciliar as imagens de representações claramente articuladas com os esquemas

interiorizados, as categorias incorporadas que geram e estruturam o pensamento e as atitudes

coletivas, ou seja, as práxis sociais.

As representações conceituais são fenômenos de longa duração capazes de modelar a

identidade dos que passarem a ser representados por ela, como por exemplo, bárbaro e gentio, que

52 Revista Isto É. Nº 1439, 30 de abril, 1997. “Dignidade Incendiada”, HOLANDA, E. e ANDRADE, P., p. 21.53 Revista Veja. Ed. 1493, ano 30, nº 17, 30/04/1997. “Planalto Selvagem”, PINHEIRO, D. e CAMAROTTI, G., p. 28.54 Revista Isto É, op. cit., p. 23.55 Revista Isto É, op. cit., p. 21.

37

foram lançadas aos nativos do Brasil colonial e que continuam tendo sua vitalidade. Da mesma forma,

a atitude tomada por aqueles rapazes brasileiros foi classificada como “um crime bárbaro e

premeditado”56.Entretanto aquelas representações foram assimiladas, incorporadas ao imaginário e

aplicadas, tanto por brasileiros sobre outros brasileiros, como por estrangeiros sobre nós, nestes 500

anos.

A reflexão sobre estas representações e as práxis sociais delas decorrentes, possibilitaram que

indivíduos e grupos sociais sensíveis à causa dos povos “indígenas” mobilizassem a opinião pública

atreves dos diversos meios de comunicação a ponto de pressionar o Poder Judiciário brasileiro a

condenar aqueles rapazes a cumprirem pena de reclusão pelo crime cometido.

Para finalizar, fica a denúncia da continuidade das práxis sociais que visam o extermínio dos

povos “indígenas” no Brasil, e especificamente no Sul da Bahia. Entre os anos 1980 a 2002, foram

assassinados 14 (quatorze) Pataxó Hã Hã Hãe – sendo o último deles, o jovem guerreiro Milton

Saúba, em janeiro de 2002 – todos, atuando nos enfrentamentos e outras estratégias de luta utilizadas

para conservação ou retomada de suas terras, novamente invadidas por grileiros, que a exemplo dos

“descobridores”/ colonizadores continuam reproduzindo as mesmas práxis sociais inauguradas no

período colonial, que estão readaptadas ao novo contexto de Brasil na “Nova República”.

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∗ Mestre e doutoranda em História pela Universidade Estadual Paulista – UNESP; Professora doDepartamento de História da Universidade Federal da Bahia – UFBa; e-mail: [email protected]

! Mestrando em História Social pela Universidade Federal da Bahia. E-mail. [email protected]."" Agradeço a CAPES por permitir a realização do projeto.* * * Siglas: APEB, Arquivo Público do Estado da Bahia; AMMB, Arquivo do Memorial de Medicina da Bahia; PRB,Provincial Reports Bahia, wwwcrl.uchicago.edu/info/brazil/BAH.html.i Cf. MATTOSO, Katia M. de Queirós. Bahia, século XIX: uma província no Império. Tradução Yadda de MacedoSoares. 2ª edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992, e. FRAGA FILHO, Walter. Mendigos, moleques e vadios naBahia do século XIX. São Paulo/Salvador: HUCITEC/EDUFBA, 1996.ii Cf.: MINOIS, Georges. História do suicídio: a sociedade ocidental perante a morte voluntária. Tradução SerafimFerreira. Lisboa: Teorema, 1998. p. 27-32.iiiAPEB, O Noticiador Catholico, Bahia, 10 de março de 1849, p. 266-300.iv ALBUQUERQUE, Francisco Julio de Freitas e. A Monomania. Tese (Medicina). Bahia, Typographia de Carlos Paggetti,1858. (AMMB).v APEB, O Crepusculo, Bahia, 25 de dezembro de 1845, p. 160-62.vi APEB, O Crepúsculo, 10 de janeiro de 1846, p.172-75.vii APEB, O Noticiador Catholico, 2 de setembro de 1854, p. 109-10´.viii PRB, Relatório do Presidente da Província da Bahia, 1861, p. 19.ix PRB, Relatório do Presidente da Província da Bahia, 1848, p. 21.x PRB, Relatório da Presidente da província da Bahia, 1861, p. 19.xi PRB, Ibid..xii APEB, maço 6206 (1869-70), Correspondências recebidas de delegados.xiii APEB; maço 3139-73 (1887), Correspondências recebidas da secretaria da polícia.

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xiv APEB; maço 3139-43 (1871), Correspondências recebidas da secretaria da polícia.xv APEB, A Marmota Fluminense, Bahia, 1 de agosto de 1854, p. 3.xvi Cf. RODRIGUES, José Carlos. Tabu da morte, Rio de Janeiro: Achiamé, 1983, p 28-9 e REIS, João José. A morte éuma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 89-91.xvii RODRIGUES, op. cit., p. 97-111.xviii APEB, O Noticiador Catholico, Bahia, 10 de março de 1849, p. 266-300.xix APEB, O Noticiador Catholico, Bahia, 10 de março de 1849, p. 266-300.xx REIS, op. cit., p. 194.xxi MINOIS, op. cit. p. 51-3xxii APEB, maço 3139-14 (1854), Correspondências recebidas da polícia.xxiii REIS, op. cit. p. 193.xxiv SILVA, Eduardo: “Fugas, revoltas e quilombos”. IN. REIS, J. J & SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: aresistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 62-78.xxv APEB, maço 5689 (1849-53), Relatório para o Presidente da Província.xxvi SILVA, op. cit., p. 62-78.xxvii APEB, maço 5689 (1849-53), Relatório para o presidente da província.xxviii APEB, maço 6231 (1854-58), Correspondências recebidas de subdelegados.xxix APEB, maço 6199 (1864); Correspondências recebidas de delegados.