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EDUCAÇÃO DO CAMPO: DIÁLOGOS DE SABERES E PRÁTICAS DA DOCÊNCIA NAS DIVERSIDADES EDUCACIONAIS CAMPESINAS O trabalho em questão versa sobre os saberes e as práticas mobilizadas pelos professores e pelas professoras que atuam em espaços escolares do campo no Estado do Espírito Santo. Tece análises sobre a formação inicial e continuada de professores e professoras, bem como sobre a atuação profissional em diferentes contextos campesinos e diferentes etapas de escolarização (Ensinos Fundamental e Médio). Problematiza o diálogo entre diferentes parceiros institucionais (Movimentos Sociais, Universidades, Institutos, Secretarias de Educação e Sindicatos, entre outros) e diferentes saberes sobre as diversidades educacionais do campo (instituições, sujeitos, culturas, currículos) e sua contribuição para fomentar discussões sobre os processos de desenvolvimento profissional docente (formação inicial e continuada) em projetos educacionais de transformação para o campo. Tomando por base múltiplos referenciais teóricos, tais como o conceito de geração de Mannheim (1993), a produção de sentidos em Vygotsky (2005), os processos de formação de professores e professoras em Sperandio (2013) assim como distintos referenciais teórico-metodológicos (WELLER, 2005; 2006; 2011; BERTAUX, 2010 e JOSSO; 2002), os autores e as autoras, no presente painel, buscam melhor compreender como se processa a didática e a prática de ensino por meio do diálogo de saberes, de currículos e de culturas sobre as diversidades educacionais do campo capixaba. Conclui, compreendendo que o diálogo de saberes entre diferentes sujeitos e culturas e as parcerias interinstitucionais (FOERSTE, 2005) podem contribuir para se repensar os processos de formação e trabalho de professores e professoras do campo em suas especificidades, entre as quais a multisseriação, as propostas curriculares e pedagógicas, assim como as políticas públicas de formação e trabalho. Palavras-chave: Educação do Campo. Saberes e Práticas Docentes. Diversidades Educacionais XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 10862 ISSN 2177-336X

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EDUCAÇÃO DO CAMPO: DIÁLOGOS DE SABERES E PRÁTICAS DA

DOCÊNCIA NAS DIVERSIDADES EDUCACIONAIS CAMPESINAS

O trabalho em questão versa sobre os saberes e as práticas mobilizadas pelos

professores e pelas professoras que atuam em espaços escolares do campo no Estado do

Espírito Santo. Tece análises sobre a formação inicial e continuada de professores e

professoras, bem como sobre a atuação profissional em diferentes contextos campesinos

e diferentes etapas de escolarização (Ensinos Fundamental e Médio). Problematiza o

diálogo entre diferentes parceiros institucionais (Movimentos Sociais, Universidades,

Institutos, Secretarias de Educação e Sindicatos, entre outros) e diferentes saberes sobre

as diversidades educacionais do campo (instituições, sujeitos, culturas, currículos) e sua

contribuição para fomentar discussões sobre os processos de desenvolvimento

profissional docente (formação inicial e continuada) em projetos educacionais de

transformação para o campo. Tomando por base múltiplos referenciais teóricos, tais

como o conceito de geração de Mannheim (1993), a produção de sentidos em Vygotsky

(2005), os processos de formação de professores e professoras em Sperandio (2013)

assim como distintos referenciais teórico-metodológicos (WELLER, 2005; 2006; 2011;

BERTAUX, 2010 e JOSSO; 2002), os autores e as autoras, no presente painel, buscam

melhor compreender como se processa a didática e a prática de ensino por meio do

diálogo de saberes, de currículos e de culturas sobre as diversidades educacionais do

campo capixaba. Conclui, compreendendo que o diálogo de saberes entre diferentes

sujeitos e culturas e as parcerias interinstitucionais (FOERSTE, 2005) podem contribuir

para se repensar os processos de formação e trabalho de professores e professoras do

campo em suas especificidades, entre as quais a multisseriação, as propostas

curriculares e pedagógicas, assim como as políticas públicas de formação e trabalho.

Palavras-chave: Educação do Campo. Saberes e Práticas Docentes. Diversidades

Educacionais

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10862ISSN 2177-336X

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ESPAÇOS ESCOLARES DO CAMPO NO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO:

DIÁLOGOS DE SABERES NAS DIVERSIDADES EDUCACIONAIS

Walkyria Barcelos Sperandioi

IFES campus Santa Teresa (ES)

RESUMO

Este texto apresenta um painel com as diversidades educacionais e os sujeitos coletivos

do campo existentes no estado do Espírito Santo com o objetivo de contribuir com as

discussões que pensam a educação e a formação de professores como um projeto

popular e de desenvolvimento do campo. Nessa perspectiva, argumenta-se a relevância

das escolas do campo como espaçostempos privilegiados de interação verbal e produção

de uma pedagogia própria que forma e cultiva identidades e culturas a partir da

pluralidade de saberes que são articulados aos saberes curriculares e pedagógicos a fim

de atender às necessidades da formação docente, da ação educativa e das lutas por

transformação das condições de vida no campo. Os dados apresentados são parte da

investigação realizada durante estudos de mestrado por Sperandio (2013), vinculada à

Linha de Pesquisa Cultura, Currículo e Formação de Educadores, do Programa de Pós-

Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).

Ao socializar a diversidade de escolas e de saberes do campo reafirma-se o desafio

assumido por professores/pesquisadores de produzir conhecimento referenciado no

diálogo de sujeitos situados sócio-historicamente, reconhecendo as especificidades da

educação do campo e da formação de professores como forma alternativa e de

resistência ao modelo oficial de educação.

PALAVRAS-CHAVE: Educação do Campo. Diálogo. Saberes.

1 INTRODUÇÃO

Este trabalho é parte constitutiva da dissertação intitulada Formação continuada

de professores na escola do campo: com a palavra os docentes do ensino médio

(SPERANDIO, 2013) que investiga a formação continuada de professores objetivando

compreender como esse processo se desenvolve no contexto da escola do campo. O

estudo fundamenta-se na abordagem histórico-cultural e busca no pensamento de

Bakhtin (2003, 2010, 2011) e Freire (1967, 1987, 1997, 2010) os conceitos de

linguagem, dialogismo, inacabamento e educação. O estudo de caso foi realizado com

docentes de uma escola da rede pública estadual do Espírito Santo situada na zona rural

do município de São Roque do Canaã e utilizou como procedimentos para a produção

de dados a observação, questionário, entrevista e análise documental. Os resultados

apontam marcas de posições ideológicas que desvelam a identificação pessoal e

profissional dos docentes com a escola e o modo de vida e trabalho do campo, assim

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como, a visão a cerca dos enfrentamentos necessários à escola em que trabalham e ao

lugar em que vivem. O diálogo docente articula saberes do campo aos saberes

curriculares a fim de atender às necessidades do contexto de trabalho e produz reflexões

sobre a ação educativa. A busca por acabamento e completude (FREIRE, 2010)

evidencia um processo formativo plural e contínuo originado nas iniciativas docentes no

cotidiano da escola. Argumenta-se que o professor de forma singular constitui-se sujeito

de sua formação ao reconhecer sua condição de inacabamento e necessidade de

completude pelo(s) o(s) outro(s) e se abre à reflexão de suas experiências e práticas na

escola à procura de significação de suas relações com o mundo social, cultural e

profissional frente aos desafios vividos na escola média do campo.

Este texto apresenta um painel com as diversidades educacionais e os sujeitos

coletivos do campo existentes no estado do Espírito Santo com o objetivo de contribuir

com as discussões que pensam a educação e a formação de professores como um projeto

popular e de desenvolvimento do campo.

2 RETRATOS DA EDUCAÇÃO PÚBLICA NO CAMPO

O território capixaba passou por formas distintas de produção na terra e de

formação de comunidades humanas. Essa diversidade e suas tradições, saberes e

conflitos produziram concepções de vida e experiências educativas distintas ao longo de

sua história. O Estado foi essencialmente agrícola até meados do século XX, tendo a

maior parte da sua população no meio rural, com aproximadamente 80% de analfabetos.

Vale registrar que uma defasagem educacional se instalou nas décadas de 1930 e1940

em decorrência do aumento populacional na região norte do Rio Doce, do crescimento

urbano na região de Vitória e da incapacidade de atendimento da demanda escolar

existente. O Estado recorria aos docentes de emergência, professores leigos, sem um

plano de carreira para o magistério, vencimentos baixos e orientação pedagógica

ocasional (ZUNTI, 2008).

Na década 1940 foi criada da Escola Prática de Agricultura no município de

Santa Teresa (OLIVEIRA, 2008). Outros estabelecimentos de ensino agrícola foram

criados no interior do Estado posteriormente, objetivando cumprir metas do programa

de ensino agrícola de grau elementar e médio institucionalizado pela Lei Orgânica do

Ensino Agrícola que regulamentou a criação de escolas agrícolas em regime de

internato. Em 1949 foi criada a Escola de Iniciação Agrícola no distrito de Itapina, na

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zona rural de Colatina e, em 1953, a Escola Agrícola em Alegre. Essas três instituições

em 1979 foram denominadas Escolas Agrotécnicas Federais (EAFs), e em 1993 foram

elevadas à condição de Autarquias, estando vinculadas à Secretaria de Educação Média

e Tecnológica (SEMTEC). No ano de 2008, todas as instituições de ensino federal do

Estado, incluindo-se as EAFs, constituíram o Instituto Federal de Educação, Ciência e

Tecnologia do Espírito Santo (IFES), em atendimento à política nacional de expansão e

interiorização da educação profissional. Em 2012, o IFES contabilizava dezessete campi

em funcionamento, um campus em implantação e vinte e sete polos de educação à

distância. Os campi Santa Teresa, Itapina e Alegre e os campi mais novos como Venda

Nova do Imigrante e Ibatiba atuam nas áreas profissionais da Agropecuária e do Meio

Ambiente.

Outras melhorias foram realizadas no início da década de 1960, favorecendo a

construção de escolas, grupos escolares nas sedes dos municípios do interior, ampliação

de várias unidades escolares equipadas com material escolar e didático, resultando,

sobretudo, no aumento do número de matrículas no Estado. Nesse período foram

construídas trinta escolas polivalentes com o objetivo de oferecer formação técnica

profissional, ou melhor, formação de mão de obra especializada, para movimentar o

parque industrial que estava sendo erguido no Estado (OLIVEIRA, 2008). A partir de

1967, a meta governamental visou investimentos para o desenvolvimento industrial com

grandes projetos inclusive, com projetos agroindustriais, com vistas ao crescente

processo de industrialização desencadeado no país.

Segundo Zunti (2008), nessa época, houve uma evasão nos setores agrícolas do

Estado gerando um fluxo migratório para a Grande Vitória em busca de emprego, tendo

esse fenômeno migratório se estendido durante os anos 1970. Nos anos de 1980 e 1990

os governos que se seguiram estimularam atividades de desenvolvimento científico e

tecnológico priorizando as médias e pequenas empresas.

Posteriormente a rede estadual de ensino passou por greves, insuficiência de

matrículas nos centros urbanos, precarização dos prédios escolares e das condições de

trabalho docente. Desencadeou-se nos municípios do interior um processo de nucleação

de escolas rurais que objetivou reduzir os custos com a educação resultando no

fechamento de muitas escolas multisseriadas no meio rural. As escolas que resistiram a

esse processo foram vinculadas à municipalidade. As ações e programas relacionados à

Educação do Campo implementados por elas variam de acordo com os interesses e

condições da gestão municipal e das reivindicações dos grupos sociais locais. Nos

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últimos anos, a maioria dos municípios de interior aderiu ao Programa Escola Ativa,

substituído recentemente, pelo Programa Escola da Terra.

Quanto à última etapa da educação básica, a oferta predominante é da rede

estadual de ensino e na maioria dos municípios do interior funciona sob forma de

nucleação. Como resultado, os prédios escolares foram construídos e/ou ampliados nas

sedes dos municípios para receber a demanda de estudantes oriunda do ensino

fundamental das escolas rurais.

3 RESISTÊNCIA E DIVERSIDADES EDUCACIONAIS NO CAMPO

O discurso de modernização iniciado pelo Estado em meados dos anos de 1960

atingiu o setor agrícola com uma proposição capitalista de produção na agricultura.

Paralelamente, para atender a realidade campesina marginalizada, um projeto de

educação e desenvolvimento humano foi iniciado pelo jesuíta Padre Humberto

Pietrogrande, com a criação do Movimento de Educação Promocional do Espírito Santo

(MEPES) em 1968. Em princípio, o MEPES teve como finalidade contemplar os

agricultores familiares descendentes de italianos em suas singularidades com ações

comunitárias relacionadas à saúde, ação social e educação. Aos poucos, essa iniciativa

foi ocupando lacunas da educação dos filhos de trabalhadores do campo deixadas pelo

Estado. E, em 1969, o MEPES criou a Escola Família Rural de Alfredo Chaves, a

Escola Família Rural de Rio Novo do Sul e a Escola Família Rural de Olivânia, no

município de Anchieta. Gradativamente, o MEPES foi criando novos estabelecimentos

educacionais em uma área de abrangência do sul ao norte o Estado, com o objetivo de

realizar pela intervenção educativa a promoção humana no campo (PESSOTTI, 1978).

As escolas famílias consolidaram um projeto educacional pioneiro no país, com

princípios pedagógicos de inspiração europeia que associava o aprendizado

profissionalizante ao conhecimento crítico do cotidiano comunitário, sem desvincular o

jovem do trabalho familiar na agricultura. A proposta pedagógica desenvolvida,

conhecida como Pedagogia da Alternância (PA), possui até hoje, uma forma de

organização escolar que conjuga diferentes experiências formativas que se

operacionaliza a partir da divisão sistemática do tempo e das atividades didáticas entre a

escola e o ambiente familiar e, dispõe de princípios e instrumentos didático-

pedagógicos específicos. Os professores/monitores realizam uma formação docente

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fundamentada nas especificidades desse projeto educativo no interior da própria

instituição (MAGALHÃES, 2004; GERKE JESUS, 2007).

Passados mais de quarenta anos da criação da primeira EFA no Espírito Santo,

existem dezoito EFAs vinculadas ao MEPES, atendendo ao ensino fundamental e ao

ensino médio integrado ao ensino profissional, conforme discriminado na Tabela 1.

Tabela 1 - Discriminação das Escolas Famílias Agrícolas vinculadas ao MEPES no ES, envolvendo a

denominação, localização e ano de criação.

Denominação da Escola Município Localização Criação

Escola Família Agrícola de Olivânia Anchieta Rural 1969

Escola Família Agrícola Alfredo Chaves Alfredo Chaves Rural 1969

Escola Família Agrícola Rio Novo do Sul Rio Novo do Sul Rural 1969

Escola Família Agrícola de Campinho Iconha Rural 1975

Escola Família Agrícola de Jaguaré Jaguaré Rural 1975

Escola Família Agrícola do km 41 São Mateus Rural 1975

Escola Família Agrícola do Bley São Gabriel da Palha Rural 1975

Escola Família Agrícola de Rio Bananal Rio Bananal Rural 1981

Escola Família Agrícola de Pinheiros Pinheiros Rural 1985

Escola Família Agrícola de Boa Esperança Boa Esperança Rural 1988

Escola Família Agrícola de Vinhático Montanha Rural 1988

Escola Família Agrícola de Chapadinha Nova Venécia Rural 1988

Escola Família Agrícola de São João de

Garrafão

Santa Maria de Jetibá

Rural

1999

Escola Família Agrícola de Marilândia Marilândia Urbana 1999

Escola Família de Turismo, Gastronomia e

Hotelaria Pietrogrande

Piúma

Urbana

2005

Escola Família Agrícola de Castelo Castelo Rural 2005

Escola Família Agrícola Belo Monte Mimoso do Sul Rural 2008

Escola Família de Cachoeiro de Itapemirim Cachoeiro de

Itapemirim

Rural

2010

Dados adaptados pela autora a partir de relatórios disponibilizados pela SEDU/GEIA/SEE (2012)

As discussões realizadas na década de 1980 sobre um projeto social de

desenvolvimento para o meio rural se distanciaram das perspectivas do poder político da

época e foram protagonizadas pelos movimentos sociais do campo, pela Comissão

Pastoral da Terra, Sindicato dos Trabalhadores Rurais e pelas organizações de

agricultores da região norte do Estado. Esse debate favoreceu a criação de outras

experiências educacionais inspiradas nas Escolas do MEPES, em especial nos princípios

e instrumentos da PA. A Tabela 2 discrimina nominalmente as EFAs mantidas pelo

poder público, apresentando sua localização e ano de criação.

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Tabela 2 - Discriminação das Escolas Famílias Agrícolas mantidas pelo setor público, envolvendo a

denominação, localização e ano de criação.

Denominação da Escola Município Região Criação

Escola Família Agrícola Municipal de Barra de São

Francisco

Barra de São

Francisco

Norte

1982

Escola Família Agrícola Estadual Emílio Schroeder de

Alto Santa Maria

Santa Maria de

Jetibá

Centro-

Serrana

1983

Escola Família Agrícola Municipal de São Bento do

Chapéu

Domingos

Martins

Centro-

Serrana

1985

Escola Família Agrícola Municipal de Brejetuba Brejetuba Sul 1996

Escola Família Agrícola Municipal de Mantenópolis Mantenópolis Norte 1980

Escola Família Rural Municipal de Ecoporanga Ecoporanga Norte 1985 Dados adaptados pela autora a partir dos dados disponibilizados por CALIARI (2012)

O interesse em desenvolver uma proposta educativa diferenciada para os

estudantes do campo envolveu também o município de Jaguaré, entre 1990 e 1992,

ocasião em que foram criadas três Escolas Comunitárias Rurais Municipais (ECORMs).

Apesar de essas escolas serem geridas pelo município, apresentam fundamentos,

instrumentos pedagógicos e avaliações inspirados na PA das Escolas Famílias Agrícolas

(MOREIRA, 2000; CRUZ, 2004). Com o mesmo propósito, as mobilizações populares

levaram em 2009 à criação da Escola Comunitária Rural Municipal em São Mateus. Em

2010, no Município de Nova Venécia foram criadas três Escolas Comunitárias. E, em

Colatina, em 2011, também foram criadas duas Escolas Comunitárias Rurais e em 2012,

uma passou a condição de primeira Escola Comunitária Rural Estadual de Ensino

Médio Integrado com Habilitação em Agropecuária (MENEZES, 2013).

A região norte do Estado se empenhou num movimento reivindicatório de

educação básica para os filhos de trabalhadores e a pequenos proprietários rurais

durante a década de 1980. As ações do Conselho de Desenvolvimento de Boa Esperança

apontaram que das matrículas do município aproximadamente 90% estavam centradas

nas séries iniciais das escolas multisseriadas, constatando assim, a ausência de escola

para atender outras etapas da educação básica no meio rural. Depois disso, políticas

públicas foram direcionadas para a criação do primeiro Centro Integrado Rural (CIR)

em 1982. No ano seguinte, foram criados mais dois Centros Integrados de Educação

Rural (CIERs), Vila Pavão e Águia Branca, em parceria da Secretaria de Estado da

Educação e Cultura (SEDU) com as Prefeituras Municipais e o MEC para a construção

dos prédios e aquisição dos terrenos onde foram organizadas as propriedades agrícolas,

a exemplo do que foi feito no CIR de Boa Esperança (ABREU, 1996).

Os CIERs representam um modelo alternativo de escola pública no campo no

Estado. Os centros funcionam em tempo integral, com regime de semi-internato. Até

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2008 os três centros ofereciam apenas o ensino fundamental de 5ª a 8ª séries. Desde

então, os CIERs passaram a oferecer também o ensino médio integrado à educação

profissional com o objetivo de promover a diversificação de atividades profissionais,

maior engajamento do jovem no meio, assim como, oferecer alternativas para sua

permanência no campo apoiadas em condições técnicas e intelectuais. Atualmente, três

CIERs do Espírito Santo oferecem Ensino Médio Integrado ao Ensino Técnico,

conforme discriminado na Tabela 3.

Tabela 3 - Discriminação dos CIERs do ES que oferecem Ensino Médio Integrado ao Ensino Técnico,

com identificação do curso profissional e número de matrículas.

Município Denominação da Escola Ensino Técnico Integrado Matrículas

Águia Branca CIER de Águia Branca Agropecuária 195

Boa Esperança CIER de Boa Esperança Cozinha 30

Meio Ambiente 30

Vila Pavão CEIER de Vila Pavão Agropecuária 168 Dados adaptados pela autora a partir de relatórios disponibilizados pela SEDU/GEIA/SEE (2012)

Outra forma reivindicatória de educação e desenvolvimento humano no campo

se realizou no bojo das contradições do sistema capitalista e foi assumida por

trabalhadores excluídos do processo de modernização da agricultura. Esses

trabalhadores retomaram a luta pela Reforma Agrária e deram origem ao MST no norte

do estado do Espírito Santo nos anos de 1984 a 1986. No primeiro assentamento em

1984, foi organizada a primeira escola de assentamento com a ajuda dos professores da

EFA de Jaguaré. Os assentados discutiram uma proposta pedagógica a partir de práticas

concretas, das experiências já existentes e de aprofundamento teórico em reuniões e

encontros de formação. A partir de 1988, surgiram as Escolas Populares de

Assentamentos (EPAs), inspiradas nas EFAs, financiadas pelo Estado e com

responsabilidade administrativa e pedagógica do MST (PIZZETA, 2000).

Uma das preocupações do MST quanto à implementação de seu projeto

educativo era garantir a presença de professores que fossem dos assentamentos e

acampamentos. Na concepção do Movimento, a escola é o espaço-tempo de formação

humana cujas práticas educativas realizadas pelos professores têm papel fundamental na

produção de uma educação diferente e transformadora. Para isso, a formação docente

ocupou espaço prioritário na pauta de lutas e de parcerias do MST com o objetivo de

alcançar a efetivação de uma pedagogia voltada para a realidade dos sujeitos que vivem

na e da terra.

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As escolas de assentamento e de acampamentos adquiriram estatuto de escolas

públicas e estão sob a responsabilidade administrativa e pedagógica do MST.

Atualmente, são vinte e quatro escolas de ensino infantil e fundamental no Estado, oito

funcionam de 5ª a 8ª séries em regime de alternância, conforme apresentada na Tabela

4.

Tabela 4 - Relação das Escolas em Áreas de Assentamento no ES, por Superintendência Regional de

Educação (SRE), com identificação dos municípios e denominação das Escolas.

SRE Município Escola

Carapina Santa Teresa EEUEF Maria Julita

Linhares Linhares EEUEF Paulo Damiao Tristão Purinha

EEEF Assentamento União

Conceição da Barra EEPEF São Benedito

EEEF Córrego do Cedro

EEEF Valdício Barbosa dos Santos

São Mateus Jaguaré EEEF XIII de Setembro

Pedro Canário EEEF Três de Maio

EEEF Vinte e Sete de Outubro

São Mateus EEPEF Padre Ezequiel

EEPEF Vale da Vitória

EEPEF Bela Vista

Montanha EEPEF Francisco Domingos Ramos

EEPEF Paulo Freire

EEUEF Rosangela Leite Alve

EEEF Padre Josimo

Nova Venécia Nova Venécia EEPEF Fazenda Jacutinga

EEPEF José Antônio da Silva Onofre

EEUEF Assentamento Ouro Verde

EEEF Margem do Itauninhas

Pinheiros EEPEF Maria Olinda de Menezes

EEPEF Saturnino Ribeiro dos Santos

Ponto Belo EEUEF Octaviano Rodrigues de Carvalho

Colatina Pancas EEUEF Madre Cristina Dados adaptados pela autora a partir de relatórios disponibilizados pela SEDU/GEIA/SEE (2012)

Os avanços legais ocorridos nas duas últimas décadas do século XX,

consequência das pressões sociais, trouxeram debates sobre as diversas formas e

concepções de educação de alguns grupos étnicos em nosso estado. Vale ressaltar que a

ocupação e o cultivo das terras capixabas por povos de etnias, línguas e culturas

diversas resultaram em experiências educacionais que resistiram ao tempo e à

imposição do sistema formal de ensino. Os povos indígenas, quilombolas e pomeranos

recriaram no interior de suas comunidades uma educação com características sociais,

linguísticas e religiosas específicas.

Essas conquistas motivaram a proposição de um projeto de educação escolar

para os povos indígenas no Estado constituído por especificidades da luta pela terra,

pelo reconhecimento de seus territórios, de suas tradições, as línguas e da memória

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coletiva. Aracruz é único município do Espírito Santo que possui etnias aldeadas:

Tupinikim e Guarani, esses povos lutam para retomada de suas terras e pela

revitalização de suas tradições e culturas como a língua, a religião, o artesanato e

manifestações culturais (ALMEIDA, 2012).

O Projeto de Educação Indígena Tupinikim e Guarani foi iniciado em 1994, a

partir da criação do Subnúcleo de Educação Indígena, coordenado pela Secretaria

Municipal de Educação de Aracruz, juntamente com os Subnúcleos de Saúde e de

Agricultura formam o Núcleo Interinstitucional de Saúde Indígena do Espírito Santo

(NISI-ES), tendo como base as reivindicações e demandas apontadas pelas lideranças

das comunidades indígenas (LIMA, 2002). Em 1995, foi realizado o I seminário de

Educação Indígena com a participação das comunidades Tupinikim e Guarani com o

propósito de discutir uma educação escolar própria. Os indígenas buscaram a

colaboração do NISI, em 1996, para a formação de trinta e dois educadores indígenas

em nível médio para atuação nas escolas das aldeias. A remuneração desses professores,

a manutenção das escolas das aldeias e o apoio pedagógico são assumidos pela

Secretaria Municipal de Educação de Aracruz (LIMA, 2002). A Tabela 5 apresenta a

relação de escolas indígenas do município de Aracruz.

Tabela 5 - Relação de Escolas de Educação Indígena em Aracruz.

Escola Localização

CMEII Caeira Velha Caeira Velha

EMEFI Caeira Velha Aldeia Caeira Velha

EMEFI Dorvelina Coutinho Vila do Riacho

EMPI Boa Esperança Aldeia Boa Esperança

EMPI Irajá Aldeia Irajá

EMPI Pau Brasil Aldeia Pau Brasil

EMPI Três Palmeiras Aldeia Três Palmeiras Dados adaptados pela autora a partir de relatórios disponibilizados pela SEDU/GEIA/SEE (2012)

A discussão atual no âmbito da formação dos educadores indígenas tem focado a

licenciatura. Como resposta a formulação e desenvolvimento de programas específicos

para apoiar a formação de professores em nível superior para o exercício da docência

aos indígenas, foi criado o Programa de Apoio à Formação Superior e Licenciaturas

Indígenas (PROLIND).

Apesar de a Constituição Federal de 1988 ter reconhecido os direitos das

comunidades remanescentes de quilombo e, dos desdobramentos da LDBEN com a Lei

nº 11.645/2008, que introduz a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Afro-

Brasileira e Indígena, a luta política pela terra e por uma educação de qualidade que

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

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dialogue com seus saberes e culturas tem como protagonista esse grupo étnico.

Recentemente, a Resolução nº 4/2010 trouxe na seção VII a definição da educação

escolar quilombola. O direito a Educação Escolar Quilombola nas comunidades negras

e com pedagogia própria, garantido pela legislação, se mistura no Estado à luta pelo

direito ao reconhecimento dos territórios onde essa etnia vive e se constitui.

Há aproximadamente setenta e cinco comunidades remanescentes de quilombos

no Espírito Santo, dessas, oito somente, se encontram certificadas, ou seja, reconhecidas

como comunidades Quilombolas pela Fundação Cultural Palmares, permanecendo as

demais em processo de mapeamento e reconhecimento territorial (INCRA, 2012). As

escolas vêm se adequando às exigências legais, no sentido de promover a produção de

conhecimento, o resgate da contribuição dos negros nas áreas social, econômica e

política do país. Dessa forma, pensar o currículo e as práticas pedagógicas nessas

comunidades requer considerar os saberes e fazeres da cultura afro-descendente até

então silenciados e acumulados no vivido desse coletivo (NASCIMENTO, 2011).

As escolas dos municípios com presença de grupos étnicos imigrantes, em

especial os pomeranos, sofreram perdas de toda ordem quando ocorreu a

obrigatoriedade do ensino em língua portuguesa no território capixaba. Contudo, com a

promulgação da Constituição em 1988 foram garantidos os direitos culturais dos

diversos grupos formadores da sociedade brasileira. Em atenção a essa prerrogativa, foi

implantado em 2005, o Programa de Educação Escolar Pomerana (PROEPO) em cinco

municípios capixabas colonizados por descendentes pomeranos oriundos da Europa e

que mantiveram o uso da língua pomerana em suas relações: Santa Maria de Jetibá,

Laranja da Terra, Domingos Martins, Vila Pavão e Pancas. O programa contribui na

melhoria do processo ensino-aprendizagem, pois a educação bilíngue ajuda a superar as

dificuldades linguísticas e culturais vividas por estudantes de comunidades pomeranas

no início da vida escolar. Os professores participam de uma formação contínua em que

são abordados aspectos históricos, culturais e linguísticos do povo pomerano

(FOERSTE; HARTUWIG, 2012).

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O esforço dos povos campesinos no estado do Espírito Santo por uma educação

diferenciada motivou lutas reivindicatórias e consolidou projetos alternativos de

educação, de formação de professores e de desenvolvimento humano em contextos

diversos. Ao contextualizar a diversidade educacional no campo, identificamos

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

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experiências escolares que articulam a ação educacional e a formação de professores a

saberes, identidades, modos de produção de vida e trabalho do campo. Contudo, vimos

que há uma complexidade que envolve o debate sobre a Educação do Campo e a

formação docente no contexto das políticas públicas de educação.

Ao socializar a diversidade de escolas e de saberes do campo reafirma-se o

desafio assumido por professores/pesquisadores de produzir conhecimento referenciado

no diálogo de sujeitos situados sócio-historicamente, reconhecendo as especificidades

da Educação do Campo e da formação de professores como forma alternativa e de

resistência ao modelo oficial de educação.

5 REFERÊNCIAS

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14

GERAÇÕES DE PROFESSORAS DO CAMPO: SABERES E PRÁTICAS DA

DOCÊNCIA EM ESCOLAS DE CLASSES MULTISSERIADAS

Charles Moretoii

Instituto Federal do Espírito Santo Campus Santa Teresa

Erineu Foersteiii

Universidade Federal do Espírito Santo

RESUMO

O presente artigo trata dos processos de trabalho vivenciados por diferentes gerações de

professoras de escolas de classes multisseriadas do campo do município de Santa Teresa - ES. A

partir das elaborações teóricas sobre o conceito de gerações formuladas por Karl Mannheim

(1993) e considerando as 11 (onze) professoras que participaram da pesquisa, de um universo de

13 (treze), foi possível reuni-las em dois diferentes grupos sendo: a) Grupo 01 – formado por 06

(seis) professoras nascidas na década de 1960 (mil, novecentos e sessenta) e com, no mínimo,

20 (vinte) anos de atuação em escolas de classes multisseriadas, autodenominado Grupo

“Batalhadoras do Campo”; b) Grupo 02 – formado por 05 (cinco) professoras nascidas a partir

da segunda metade da década de 1970 (mil, novecentos e setenta) e na década de 1980 (mil,

novecentos e oitenta) e que possuem, no máximo, 10 (dez) anos de atuação em escolas de

classes multisseriadas, autodenominado Grupo “Flores do Campo”. Procura explicitar, a partir

da análise dos dados produzidos por meio dos Grupos de Discussão (WELLER, 2006; 2011),

quais os saberes e as práticas mobilizadas no exercício da docência nas escolas de classes

multisseriadas no município em questão. Para tanto, utiliza o Método Documentário,

inicialmente elaborado por Karl Mannheim e reelaborado por Ralf Bohnsack (WELLER, 2005),

como método de análise das passagens e narrativas apresentadas pelas informantes. Identifica

que as informantes do grupo “Batalhadoras do Campo” apresentam uma orientação (visão de

mundo) comunitária. Por sua vez, a orientação burocrático-legalista foi identificada nas

informantes do Grupo “Flores do Campo”. Conclui destacando os desafios organizacionais e

didático-pedagógicos, bem como os saberes e as práticas mobilizadas no exercício da docência

em escolas de classes multisseriadas foram aprendidas na interação com profissionais mais

experientes e nas situações cotidianas em tais instituições.

PALAVRAS-CHAVE: Educação do campo. Trabalho docente. Método Documentário.

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Muitos estudos foram e têm sido produzidos discutindo o ingresso na profissão, a

formação e o trabalho docente a uma perspectiva de classe social, ou de gênero, ou ainda étnico-

raciais entre outras. Em um levantamento, mesmo que superficial, em portais como o Banco de

Teses e Dissertações ou o Portal Periódicos, da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de

Nível Superior – CAPES, é possível identificar uma produção significativa de trabalhos que tem

se dedicado a investigar a vida dos(as) professores(as). Contudo, em se tratando de

investigações que se voltam para pensar a docência a partir de uma perspectiva geracional, por

meio de estudos comparativos, levantamento realizado por Moreto (2015) constatou que os

mesmos são muito escassos no Brasil.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10875ISSN 2177-336X

15

Tomando como referencial teórico o conceito de geração elaborado por Mannheim

(1993), buscamos refletir sobre: quais os saberes e as práticas mobilizadas no exercício da

docência em escolas de classes multisseriadas no município de Santa Teresa – ES? Nosso

objetivo com o trabalho em tela é identificar os saberes e as práticas mobilizadas no exercício da

docência nas escolas de classes multisseriadas no município de Santa Teresa, a partir das

orientações coletivas de professoras de diferentes gerações.

O universo de nossa pesquisa compreendeu 13 (treze) professoras, com diferentes

idades e tempos de serviço, que trabalham em 07 (sete) escolas de classes multisseriadas do

município de Santa Teresa, com alunos e alunas das séries iniciais do ensino fundamental. Das

13 (treze) professoras, 11 (onze) foram inseridas em um dos grupos abaixo descritos,

considerando as discussões de Mannheim (1993) sobre o fenômeno geracional. Os grupos foram

assim constituídos: Grupo 01: formado por 06 (seis) professoras nascidas na década de 1960

(mil, novecentos e sessenta) e com, no mínimo, 20 (vinte) anos de atuação em escolas de classes

multisseriadas. Assim, tais professoras têm idades que variam de 45 (quarenta e cinco) a 50

(cinquenta) anos e trabalham em escolas de classes multisseriadas entre 20 (vinte) e 29 (vinte e

nove) anos. Tal grupo se autodenominou “Batalhadoras do Campo”; Grupo 02: formado por 05

(cinco) professoras nascidas a partir da segunda metade da década de 1970 (mil, novecentos e

setenta) e na década de 1980 (mil, novecentos e oitenta) e que possuem, no máximo, 10 (dez)

anos de atuação em escolas de classes multisseriadas. Tais professoras têm idades que variam

entre 28 (vinte e oito) e 36 (trinta e seis) anos e trabalham entre 04 (quatro) e 07 (sete) anos. Tal

grupo se autodenominou “Flores do Campo”.

Levando em consideração as proximidades entre as histórias narradas (o que pode ser

interpretado como resultado da participação de tais sujeitos - mais ou menos no mesmo período

cronológico e com faixas etárias próximas -, no destino comum da unidade histórico-social

chamada Santa Teresa e do compartilhamento dos conteúdos), consideramos tais indivíduos

como pertencentes a duas diferentes conexões geracionais com os quais realizamos dois Grupos

de Discussãoiv para produção dos dados empíricos. De acordo com Weller (2011, p. 56),

Nos grupos de discussão, o pesquisador deve assumir uma postura que

Mannheim [...] definiu como sociogenética ou funcional, ou seja, que busca

intervir o mínimo possível, que evita perguntas do tipo “o que” ou “por quê”,

buscando fomentar discussões voltadas para o “como”, ou seja, que levem à

reflexão e narração de determinadas experiências e não somente à descrição

de fatos. O objetivo maior do grupo de discussão é a obtenção de dados que

possibilitem a análise do contexto ou do meio social dos entrevistados, assim

como de suas visões de mundo ou representações coletivas (grifos da autora).

As informações produzidas foram analisadas empregando-se o Método Documentáriov

atualizado por Ralf Bohnsack, que apresenta as seguintes etapas: a) Interpretação formulada; b)

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10876ISSN 2177-336X

16

Interpretação refletida; c) Análise comparativa e; d) Construção de tipos e a análise

multidimensional.

2 SABERES E PRÁTICAS DA DOCÊNCIA EM ESCOLAS DE CLASSES

MULTISSERIADAS

Mannheim contribuiu significativamente na apresentação de um método que vai além

da análise intuitiva ou dedutiva, favorecendo a compreensão das visões de mundo de um

determinado grupo. Ainda para o autor, as visões de mundo (Weltanschauung) significam o

resultado de “[...] uma série de vivências ou de experiências ligadas a uma mesma estrutura, que

por sua vez constitui-se como base comum das experiências que perpassam a vida de múltiplos

indivíduos” (MANNHEIM, apud WELLER, 2005, p. 101).

“A reconstrução das visões de mundo e do modus operandi das ações coletivas

pressupõe uma análise da relação existente entre as representações coletivas e os contextos em

que essas experiências foram vividas e processadas” (WELLER, 2011, p. 45) ainda que elas não

se reduzam, exclusivamente, às experiências vividas em um meio e em um período específico.

A análise das ações concretas (especialmente as experiências vinculadas ao trabalho

realizado) desenvolvidas pelas professoras das escolas de classes multisseriadas de Santa Teresa

– ES foi fundamental para a reconstrução das orientações coletivas ou das visões de mundo das

mesmas. Desta forma, com base na interpretação (formulada e refletida) e na análise

comparativa dos grupos de discussão, foram evidenciados dois modelos ou tipos de orientações

coletivas. Cada um desses modelos ou tipos emergiu de um grupo de professoras (“Batalhadoras

do Campo” e “Flores do Campo”) que estamos considerando como vinculadas a duas diferentes

gerações.

Para ilustração do primeiro tipo por nós definido como orientação comunitária,

tomamos como base as passagens discursivas e narrativas do Grupo “Batalhadoras do Campo”.

Identificamos como sendo componentes de tal orientação a compreensão da função de professor

e seu trabalho como vocação; um forte senso de dever com as gestoras, as comunidades e os

alunos no desempenho de suas atividades, buscando desempenhar a função de agentes de

transformação social; a abnegação e; por fim, abertura para a busca e a oferta de ajuda a outras

professoras. Para esse grupo, o foco de seu trabalho é a comunidade e as famílias.

Quanto ao segundo tipo, nós o definimos como orientação burocrático-legalista e

tomamos como base as passagens discursivas e narrativas do Grupo “Flores do Campo”.

Identificamos como elementos componentes de tal orientação a busca de diversificação da

formação inicial (em nível médio) e a realização de múltiplos processos de formação continuada

como forma de manter sua competitividade nos processos seletivos; a construção e utilização de

um repertório de práticas pedagógicas; trabalhar sob a intensificação das exigências por

rendimentos melhores, o que tem exigido a ampliação das demandas sobre o trabalho

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10877ISSN 2177-336X

17

pedagógico. Para o grupo em questão, o foco de seu trabalho é o Estado e suas exigências

burocráticas.

2.1 A PROFESSORA “BOMBRIL!”: A MULTIFUNCIONALIDADE NO TRABALHO

DOCENTE NA ESCOLA DE CLASSES MULTISSERIADAS

Em nossas discussões viemos dialogando sobre questões referentes ao trabalho das

professoras de escolas de classes multisseriadas. Um aspecto importante de ser aqui colocado

diz respeito à constituição da identidade profissional das informantes em sua relação com tais

escolas, com todas as suas tradições e contradições, nos contextos temporal e histórico-social

aqui considerados.

Assim, trataremos mais especificamente de tal assunto, abordando-o a partir de dois

contextos. No primeiro, buscando compreender como se deu o aprendizado do trabalho a ser

desenvolvido nas escolas de classes multisseriadas. No segundo, discutindo sobre a

autopercepção das informantes, dialogando sobre o que entendem que é ser docente de/em tais

escolas (passagem a docência, linhas 573 – 599)vi:

Yvii

– É na opinião de vocês como as professoras das escolas de classe

multisseriada aprenderam a lidar com o trabalho na escola multisseriada?

Cf – @Ah, a necessidade@!

Af – L O dia a dia @(1)@

Cf - Não foi? A necessidade, né Mariana? A necessidade, né Beatriz?

Bf – Verdade!

Cf - L A necessidade fez a gente pular! (1)

Df – E até hoje!

Cf – Então (.) foi a necessidade!

Af – L As dificuldades

Df – L As dificuldades foram ocorrendo, acontecendo

Bf – L Tem

que ser artista, né? Tem que ser artista!

Mf – L Você

vai adquirindo

Cf –

L A gente vai (.) ah, eu nunca tinha trabalhado

Bf - A cozinheira Charles, a gente tem há quatro anos (.) mas, antes não!

Mf – Não tinha!

Bf – Então, você imagina (1) quatro turmas, né?

Af – L Vinte e dois anos de

serviço pra mais

Bf – L Isso!

E cozinha pra, pra né (.) E comida pra fazer e cozinha pra arrumar! (.) Nossa

Senhora! (2) Não sei como a gente dava conta, né?

Mf – Não sei vocês!

Df – L As coisas mudam! (1) Coisas de fora também pra gente (.) que isso

ali, são novidades (.) todo ano tem uma coisa diferente pra gente, né? Pra

gente aprender.

Cf – Nenhum ano é igual ao outro (.) nenhum ano, nenhum ano (3).

Como apresentado acima, buscando fomentar a discussão entre as informantes,

apresentamos às mesmas uma questão sobre como aprenderam a executar o trabalho na escola

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10878ISSN 2177-336X

18

de classes multisseriadas. Cláudiaviii

toma a iniciativa para responder a questão, sendo seguida

pelas demais professoras. Todas participam ativamente da discussão, apresentando

considerações curtas que, ora compunham um diálogo com as demais, ora externavam

conversas travadas consigo mesmas.

Para as professoras, as dificuldades surgidas no e do dia a dia das escolas, se por um

lado colocavam-se como amedrontadoras, por outro as leva a “pular” (“A necessidade fez a

gente pular! (1)”), a se colocarem em busca, tomando-as como desafios. Essa ação de “pular”,

de se “colocar em busca” pode ser compreendida como sendo de duas formas.

A primeira (e talvez mais marcante no início das carreiras, conforme narrados nas

entrevistas narrativas biográficas) foi de buscar procedimentos já criados e testados por outras

professoras (de escolas de classes multisseriadas), com vistas a solucionar problemas tais como

a manutenção e o funcionamento da escola, bem como questões de ordem didática em sala. É

muito importante destacar que uma parte muito considerável das preocupações das professoras

era com as questões relacionadas à manutenção e ao funcionamento da escola (como pode ser

observado no fragmento apresentado acima) (Como fazer para suprir as necessidades? Como

conseguir lenha? Como cozinhar, limpar e lecionar ao mesmo tempo?), sendo seguidas por

outras (também) tantas questões relacionadas à organização do espaço e do tempo da sala de

aula de modo a atender a todas as séries (Como trabalhar com quatro séries em uma mesma sala

de aula? Como distribuir o tempo? Como planejar?) e de modo a atender a todos os alunos

(Como ensinar a todos e a cada um, com suas especificidades?).

A segunda, observada também desde o início, mas com maior ênfase após um período

(cronológico) chamado por Huberman (2007) de entrada ou tateamento na carreira, e que

corresponderia ao período de ingresso até por volta dos três anos de exercício profissional, onde

as professoras também passam a criar e experimentar procedimentos organizacionais para a

escola e didático-pedagógicos para a sala de aula multisseriada. Contudo, considerando os casos

das informantes aqui compreendidas, podemos afirmar que tais criações e experimentações não

romperam com o “modelo” originalmente instituído e aprendido (com as professoras que

estavam atuando há mais tempo).

Para Dalva, as necessidades ainda fazem com que as professoras se coloquem em busca,

deixando claro que, hoje, os problemas vividos por elas no exercício da docência, também se

transformaram e ressalta que as dificuldades que ocorreram foram importantes no aprendizado

da profissão e, também, de suas identidades profissionais. Dalva afirma ainda que a escola e a

profissão professora estão em constante mudança, tanto inerentes à escola e à profissão, como

externas à elas (“L As coisas mudam! (1) Coisas de fora também pra gente (.) que isso ali, são

novidades (.) todo ano tem uma coisa diferente pra gente, né? Pra gente aprender”). Tal fala

pode ser interpretada como uma tentativa de evidenciar que tais professoras, apesar de estarem

no exercício da docência há um tempo (cronológico) suficiente para estarem em uma fase de

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10879ISSN 2177-336X

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serenidade e distanciamento afetivo e consequente conservantismo (HUBERMAN, 2007), dada

as condições de precariedade de vínculo empregatício (60% das professoras do grupo são

contratadas anualmente em regime Designação Temporária – DT) as mesmas precisam realizar

constantes formações para, entre outras coisas, obter títulos e certificados que serão utilizados

nos processos de seleção (altamente estressantes e emocionalmente desgastantes).

Apesar da situação acima tratada, as informantes tem uma percepção altamente positiva

sobre si mesmas. Nesse sentido, Beatriz afirma que o professor de escola de classe multisseriada

tem que ser como um artista. A palavra “artista” pode ser interpretada a partir de suas

características, como criativo, experimentador e em constante busca e transformação. Também

Beatriz ressalta os desafios da profissão, afirmando que há quatro anos (em 2010) que as escolas

de classes multisseriadas passaram a contar com o trabalho de cozinheiras, o que antes também

era feito pelas professoras, além do trabalho como docente em quatro turmas em uma mesma

sala de aula, corroborando o que foi dito por Andressa. Ao afirmar não saber como conseguia

“dar conta” de tantas tarefas a serem executadas, algumas concomitantemente, Beatriz (com a

concordância das demais professoras do grupo) evidenciam o problema da multifuncionalidade

e da sobrecarga de trabalho que era (ou ainda é?) atribuída à professora das escolas de classes

multisseriadas (passagem docência, linhas 605 – 633):

Y – (6) É como que vocês definem o quê que é ser professora do campo?

Professora de uma escola multisseriada?

Mf- Heroína (1)

Bf - Verdade

Mf – Nós somos heroínas!

Bf - L Artista

Cf – Nós somos Bombril!

Bf – L Supercompetentes!

Mf – @Mil e uma utilidades@!

Cf – L Bombril (.) mil e uma utilidades! (.) Nós fazemos de tudo (2) de

tudo um pouquinho

Mf – L Hm

Df - Secretária

Bf - L Pedagoga, mãe, secretária

Df - L Secretária

Cf – L Psicóloga

Df – LDiretora

Bf - L Auxiliar

Cf – L Psicóloga

Bf - L Coordenadora

Mf - Tudo

Cf – Psicóloga, lembra da psicóloga

Bf – L Psicóloga

Cf – Tudo, nós somos de tudo um pouquinho

Bf – L Tudo nós somos!

Cf – Bombril!

Df - @Mil e uma utilidades mesmo@!

Cf – É verdade!

?f - @(2)@

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10880ISSN 2177-336X

20

Dando sequência às discussões, apresentamos às informantes uma pergunta buscando

compreender como elas (as professoras) definem o que é ser professora de uma escola de classe

multisseriada do campo.

As respostas, apresentadas de forma muito curta e direta, mas significativas para a

pergunta apresentada, sintetizam suas percepções sobre si mesmas no desempenho da profissão.

Palavras como “heroínas” (Mariana), “artista”, “supercompetentes” (Beatriz) e “Bombril”

(Cláudia) são utilizadas para designarem-se como professoras de escolas de classes

multisseriadas. Tais palavras denotam visões positivas sobre si mesmas e podem ser

interpretadas, respectivamente, como mulheres protagonistas e com grande coragem

(“heroínas”); pessoas de muito talento (“artista”); com muita competência

(“supercompetentes”); e aptas para desempenhar, como de fato vieram a fazer, variadas funções

(“Bombril”).

Cláudia ratifica o que veio sendo discutido, afirmando que elas exerceram (e ainda

exercem) muitas funções na escola, visão compartilhada pelas demais professoras: secretária

(Dalva e Beatriz), pedagoga, mãe, coordenadora (Beatriz), psicóloga (Cláudia e Beatriz),

diretora (Dalva), auxiliar (Beatriz). Afirmam que as professoras de escolas de classes

multisseriadas fazem “de tudo um pouquinho” (Claúdia) e para Beatriz elas são “tudo”.

Novamente a comparação com o produto palha de aço “Bombril” é trazida e Dalva enfatiza

rindo que elas são “mil e uma utilidades” o que leva todas as entrevistadas às gargalhadas. Essa

segunda parte das respostas pode ser compreendida como uma denúncia das informantes em

relação à sobrecarga de trabalho decorrente da multifuncionalidade assumida (sem que a elas

fosse dada a opção de aceitá-la ou não) no início da carreira (aqui estamos nos referindo ao fato

de também se aterem às atividades meio da escola – limpeza, alimentação, documentação) e que

não mais acontece, com outras funções “reais” (documentação e gestão da escola) com outras

“virtuais” e que estão muito presentes no discurso do corpo docente (mãe, psicóloga).

2.2 “SE VIRA NOS 30!”: APRENDENDO A SER PROFESSORA DE ESCOLA DE CLASSE

MULTISSERIADA COM A/NA PRÁTICA COTIDIANA

Como fizemos em relação ao Grupo “Batalhadoras do Campo”, também aqui

conversaremos sobre como se deu o aprendizado do trabalho a ser desenvolvido nas escolas de

classes multisseriadas pelas professoras do Grupo “Flores do Campo”. Além disso, também

dialogaremos sobre a autopercepção das informantes sobre o que entendem que é ser professora

de escola de classe multisseriada (passagem a docência, linhas 391 – 405):

Y – Bom, na opinião de vocês, como que as professoras das escolas

multisseriadas do campo aprendem a lidar com o trabalho da escola

multisseriada do campo?

?f - @( )@

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10881ISSN 2177-336X

21

Ff – É a prática mesmo né

Gf - É

Lf – É no dia a dia (2)

Ff – Porque isso não é ensinado em lugar nenhum então a gente tem é no dia

a dia

Jf – A gente aprende com os erros (1)

Gf – Com os acertos né

Jf – Com os acertos (2) a gente busca conhecimento onde não tem

Lf – Hm (2) pesquisa muito né (2)

Jf – As, as, as formações que a Secretaria também oferece (1) as formações

Lf – Até que houve uma formação muito boa né, uns anos atrás ali né, a

Escola Ativa mesmo né (.) de certa forma ajudou a gente bem (2) enfim, no

dia a dia mesmo, não tem jeito (4)

Como salientamos, buscando fomentar a discussão entre as informantes do grupo,

apresentamos uma pergunta sobre como as professoras de escolas de classes multisseriadas

aprenderam a realizar o trabalho docente nesse tipo de instituição. Todas as informantes, de

forma bastante rápida e direta, apresentam suas respostas para a questão apresentada. Para

Flávia tal aprendizado se deu com a prática cotidiana na sala de aula, “porque isso não é

ensinado em lugar nenhum”), com os erros (Joana) e os acertos (Gilda). Fica evidente, assim,

que o aprendizado do trabalho vai sendo construído cotidianamente e de forma intuitiva. Joana e

Laura destacam também a busca das professoras pelo conhecimento, contudo não deixam claro

o que compreende por conhecimento (Joana) e por pesquisa (Laura).

Para Joana as formações oferecidas pela Secretaria Municipal de Educação também são

importantes nesse aprendizado. A esse respeito, Laura destaca a formação recebida no Programa

Escola Ativaix que, segundo ela, ajudou-as muito em seu trabalho nas escolas de classes

multisseriadas. Contudo, também não deixa clara qual foi a natureza dessa ajuda.

As professoras em questão, quando questionadas sobre o que é ser uma professora de

escola de classe multisseriada, baseiam-se em uma metáfora que pode ser compreendida como

indicadora de maestria e competência apesar da complexidade do trabalho a ser feito (passagem

a docência, linhas 406 – 436):

Y – E como que vocês definem o que que é ser uma professora de uma escola

multisseriada? (4)

Ff – Aí complicou né, eu acho que é aquele quadro do Faustão: “Se vira nos

30” @(4)@. Muitas vezes tem que se virar nos trinta, você ta numa turma e

tem que ta olhando a outra e outro já ta chamando e tomar cuidado pra não

responder a pergunta de um na fala do outro porque é assim

[...]

Jf – É uma responsabilidade muito grande, porque a gente tem que dar conta

das turmas (.) tem que dar conta dos conteúdos (.) tem que dar conta de vigiar

as crianças

Lf – É porque a gente não tem coordenador, não tem diretor, não tem

secretária (1) a gente que dá conta de tudo

Jf – É muita responsabilidade, eu vejo isso, é muita responsabilidade

Lf – Muita responsabilidade

Jf – E a gente dá conta ta (1). A gente sai doida, descabelada lá, chega em

casa com as vozes das crianças assim, mas a gente dá conta

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10882ISSN 2177-336X

22

Lf – Hm (1) e tem que dar conta

Jf – Tem que dar conta

Gf – Tem que dar conta

Jf – Agora, não sei falar uma professora só naquela escola com as turmas né,

igual, agora a gente tem duas, três professoras, tem a servente pra nos ajudar,

tem a pedagoga que às vezes vai lá né (1) mas agora uma professora só pra,

eu não sei falar

As respostas dadas pelas informantes ao questionamento apresentado por nós para

fomentar o debate, no caso em questão, ressaltam características como a responsabilidade e a

competência das professoras no trabalho em tais escolas.

Para Flávia o professor da escola de classe multisseriada é como os artistas que se

apresentam no quadro “Se vira nos 30” do programa “Domingão do Faustão” da Rede Globo.

No quadro em questão, o artista deve buscar, em 30 segundos, fazer uma apresentação que seja,

ao mesmo tempo, rápida na execução, precisa nas ações (pois não se pode perder tempo), bonita

(do ponto de vista estético) e eficaz (na forma de apresentar a mensagem e ser apreendida pelo

público). Nesse sentido, Flávia estabelece tal relação quando traz em sua fala as características

requeridas do professor que trabalha nessas escolas.

Para Joana ser professora de escola de classe multisseriada é uma grande

responsabilidade em função das várias funções que elas tem que desenvolver (“tem que dar

conta das turmas (.) tem que dar conta dos conteúdos (.) tem que dar conta de vigiar as

crianças”), considerando que não podem contar, cotidianamente na escola, com o apoio de

outros profissionais, tais como coordenador, diretor ou secretária. Laura e Gilda concordam e

Joana ressalta ainda que, hoje, elas trabalham em escolas onde as turmas são divididas entre

duas professoras, além de contarem com o apoio diário de servente e o apoio esporádico de

pedagoga da Secretaria de Educação. Ressalta não ter noção de como as professoras que vieram

antes delas conseguiam trabalhar sozinhas e tendo que realizar as atividades meio em tais

escolas, deixando, assim, evidenciado, que sob certos aspectos estão em uma “condição” de

trabalho melhor que suas antecessoras e companheiras de trabalho ainda em atividade e que

formam o Grupo “Batalhadoras do Campo”.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

As professoras de cada um dos grupos aqui considerados apresentaram os desafios

enfrentados em suas práticas cotidianas nas escolas de classes multisseriadas do campo. Todas

destacaram que um grande desafio enfrentado, especialmente no início da docência, foi

trabalhar com turmas multisseriadas, considerando que durante seus respectivos processos de

formação, tal realidade não foi abordada. Desta forma, o enfrentamento de tal desafio se deu de

uma forma muito particular a cada um dos grupos. Para o enfrentamento das dificuldades

encontradas, as professoras do Grupo “Batalhadoras do Campo” foram buscar orientações sobre

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10883ISSN 2177-336X

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como proceder para desenvolver seu trabalho com professoras que já trabalhavam em escolas de

classes multisseriadas. Assim, tanto questões de ordem didático-pedagógica como sobre a

manutenção da escola (pois a elas também cabia as atividades de limpeza, preparação da

merenda, documentação, entre outras) eram buscadas junto às professoras tidas como

referências no desenvolvimento de seu trabalho. A grande dedicação ao trabalho e a busca e a

oferta de ajuda na superação dos problemas encontrados são características muito presentes nas

professoras do Grupo “Batalhadoras do Campo”.

As professoras do Grupo “Flores do Campo” desenvolvem suas experiências nas

escolas de classes a partir das experiências vivenciadas por elas quando alunas de tais

instituições, bem como a partir de orientações recebidas pela pedagoga responsável pelo

trabalho de assessoramento das mesmas. Um aspecto que chama nossa atenção é a reprodução

do padrão unisseriado de trabalho pelas professoras dos dois grupos, onde as mesmas

trabalhavam/trabalham separadamente cada uma das séries presentes na sala, como se

estivessem em espaços isolados umas das outras.

Assim, pensar os processos de identificação e de socialização de professoras de escolas

de classes multisseriadas do campo a partir das posições e, mais especificamente, a partir das

conexões geracionais das mesmas nos propicia analisar as tendências à mudança, bem como as

tendências a permanências vividas por tais professoras (em particular) e pela profissão docente,

seja no município de Santa Teresa, bem como no contexto mais amplo da sociedade brasileira.

4 REFERÊNCIAS

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e

Diversidade. Programa Escola Ativa: projeto base. Brasília: SECAD/MEC, 2008.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e

Diversidade. Programa Escola Ativa: orientações pedagógicas para a formação de

educadoras e educadores. Brasília: SECAD/MEC, 2009.

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La Yncera. REIS – Revista Española de Investigaciones Sociológicas, n. 62, abr./jun.

1993, p. 193 – 242.

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WELLER, Wivian. Grupos de discussão na pesquisa com adolescentes e jovens: aportes

teórico-metodológicos e análise de uma experiência com o método. Educação e Pesquisa, São

Paulo, v. 32, n. 2, p. 241 – 260, maio/ago. 2006.

WELLER, Wivian. Minha voz é tudo o que eu tenho: manifestações juvenis em Berlim e São

Paulo. Belo Horizonte: UFMG, 2011.

WELLER, Wivian; PFAFF, Nicolle (Orgs.). Metodologias da pesquisa qualitativa em

educação: teoria e prática. 2.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.

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10885ISSN 2177-336X

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CULTURA, CURRÍCULO, SABERES E PRÁTICAS: UM DIÁLOGO COM A

ESCOLA MULTISSERIADA DO CAMPO

Janinha Gerke de Jesus

Faculdade Pitágoras-

Guarapari/ES

RESUMO

O texto constitui parte dos estudos de doutoramento em educação, realizado na linha de

pesquisa “cultura, currículo e formação de educadores”, do Centro de Educação da

Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), concluído em 2014. Tem como

principal objetivo apresentar uma discussão acerca dos saberes e práticas de ensino,

produzidos por uma professora de uma escola multisseriada do campo, localizada no

município de Laranja da Terra/ES. Sua perspectiva metodológica pauta-se na escuta

das narrativas de histórias de vida em situação (BERTAUX, 2010) ou histórias de vida

que pensam um projeto (JOSSO, 2002), entrelaçadas à formação e ao exercício

profissional da docência. Trata-se, de uma narrativa de vida situada, a partir de um

impulso que proporciona ao narrador e seu interlocutor o adentrar de uma história que

se faz em meio a pessoas, memórias, sentimentos, conflitos, práticas e todo um contexto

acerca do impulso de suas experiências de vida, formação e profissão. Não obstante, a

discussão coloca em cena os significativos atravessamentos dos saberes dos sujeitos

campesinos como propulsores do currículo escolar e das práticas de ensino, produzindo

nos fazeres do cotidiano sentidos (VIGOTSKI, 2005) para docentes e estudantes, estes

como produção subjetiva, temporal e singular que ecoam de suas vozes em diálogo com

seu interlocutor. Nessa perspectiva, entra em cena a necessidade do debate da

especificidade no currículo escolar e nas práticas didático-pedagógicas de ensino

instituídas pelo poder público em interface aos saberes e fazeres empreendidos pela

professora, considerando assim as particularidades, as potencialidades sociais, políticas

e culturais, bem como as demandas dos povos campesinos em seus contextos de vida,

formação e trabalho.

Palavras-chave: Saberes. Educação do Campo. Práticas.

Narrativas da prática e da formação docente: Um diálogo com a professora

Mônica O Tempo!

O tempo não dá para pegar. Ele foge sem parar. O tempo não dá para

contar. É só pegar um relógio e olhar. Más, isto não é o tempo, é só o

tempo a passar. O tempo passa o tempo todo, passa sem parar. O

tempo sempre vai a algum lugar. O tempo vai para o passado. O

tempo é um bicho danado! O tempo da gente é agora. É o tempo

presente, é a gente que sente! O tempo presente vira passado. O

tempo do depois é o futuro. O passado do futuro é o presente. Isso não

tem futuro! O tempo tem um lugar no passado. Seu nome é lembrança.

Todo mundo tem, até criança. O tempo em que uma lembrança durar,

é o tempo que a gente desejar. A lembrança mora dentro de nós. É

algo muito estranho, que não tem tamanho. E por falar em lembrança,

você se lembra do começo da história? Vá refresque a memória! Você

viu o tempo passou e tudo continuou. O tempo não para nem um

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minuto e nem um segundo! Assim aconteceu no mundo. (Ivo

Minkovicius)

Ao iniciarmos esta escrita trazemos para a abertura do texto uma história

contada pela professora Mônica da escola multisseriada do campo, do município de

Laranja da Terra/ES, no circulo de leituras diárias com os alunos. A história narrada em

versos traz o tempo como protagonista. Uma história que hoje e naquele dia, muito

sentido (VIGOTSKI, 2005) faz ao processo vivido por nós. Palavras como tempo,

lembrança e memória se presentificam em diferentes tempos neste trabalho e como o

tempo não para, buscamos nele e na voz de nossos sujeitos, no tempo de ontem e de

hoje os sentidos que nos movem na discussão da prática de ensino, da formação e da

profissão docente no campo.

Nessa perspectiva, as abordagens acerca da prática de ensino, a cultura

campesina, os saberes e formação docente são trazidas neste texto a partir da escuta das

narrativas (BERTAUX, 2010) e (JOSSO, 2002) da professora. Pelos limites desse texto,

não foi possível registrar todas as narrativas, estas encontram-se no trabalho completo

de doutoramento. Entretanto, buscamos produzir uma escrita em interface aos principais

apontamentos que nos propomos aqui pensar.

Nas palavras que abrem sua narrativa a professora Mônica nos introduz nos

sentidos de Escola e Campo, relacionando sua formação nos anos iniciais (escolinha

multisseriada) ao seu trabalho atual na escola multisseriada do campo, firmando uma

aproximação entre seus primeiros anos de vida escolar e sua profissão. O sonho de

estudar... estudar... estudar expresso em sua voz, revela a importância atribuída à

formação escolar, desmistificando a concepção preconceituosa daqueles que ainda

teimam em pensar que o estudo não é pra quem vive na roça. Sua trajetória no ensino

fundamental e médio se fez alicerçada na perseverança, na espera do tempo e das

condições mais adequadas a ela e sua família para prosseguir nos estudos, o que a levou

a outros lugares, para longe de sua terra em busca novamente do sonho de estudar...

estudar... estudar!

Ao ouvirmos essa voz nos aproximamos de Goodson (1992, p. 72) que no

trabalho com narrativas de professores concebe as experiências de vida e o ambiente

sociocultural como “ingredientes-chave da pessoa que somos hoje, do nosso sentido do

eu”.

Desta forma, entendemos que a formação transita nas narrativas de Mônica

como lugar de busca. Indissociáveis, profissão professor e vida pessoal são

amalgamados e nas narrativas igualmente surgem entrelaçadas, o que nos ajuda no

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10887ISSN 2177-336X

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diálogo e no entendimento dos sentidos (VIGOTSKI, 2005) que os atravessamentos

marcantes têm na vida dos sujeitos narradores, bem como, na produção de nossos

próprios sentidos.

O município de Laranja da Terra, por meio da Secretaria de Educação, em

função de suas demandas e das necessidades represadas ao longo de muitos anos, aderiu

aos programas de formação ofertados pelo ministério da educação e empreendeu junto

aos professores um importante trabalho que nas narrativas de Mônica se configuram,

entre outros, como propulsores da prática profissional. É a partir das formações em

Educação do Campo que ressurge o desejo e a motivação de atuar novamente numa

escola multisseriada, de fazer desse espaço um espaço para materialidade do que se

aprendia na formação continuada. Ganha sentido (VIGOTSKI, 2005) uma formação que

encontra na prática profissional locus para saberes (GERKE DE JESUS) e fazeres

pensados nos espaçostempos da formação, das discussões empreendidas nos coletivos

docentes e dos intercâmbios de experiências, que na voz de nossa narradora

configuram-se como propulsores do fazer didático pedagógico na realidade estudada.

A história da escola nas narrativas inscreve a marcas de uma realidade mais

ampla. A exemplo de muitas outras, é criada num contexto próximo às famílias do

campo e existe com as condições consideradas mínimas para o trabalho docente.

Embora a estrutura física tenha passado por uma reforma, a partir da reivindicação das

famílias que durante anos conviveram com a precariedade, a ausência de outros recursos

ainda permanece, contribuindo para as estatísticas nacionais que colocam as escolas do

campo em desprestigio e as aprendizagens de seus sujeitos num plano secundário. No

Brasil existem, segundo dados do PRONACAMPO (2012) 78.822 escolas de Educação

Básica no Campo e dentre elas, somente 3.753 unidades possuem sala de recursos

multifuncionais. A escola na qual trabalha Mônica é uma delas. A escola encontra-se

em meio aos cafezais que embelezam sua paisagem e presentificam o labor do homem

do campo e sua família. Por outro lado, a ausência de um pátio, quadra poliesportiva,

campo de futebol e demais recursos representam um débito para com os alunos e com a

possibilidade de diversificação da prática de ensino.

Em rodas de conversa com professores as condições de trabalho são sempre

relacionadas ao exercício da profissão, há clareza na relação entre ambos, uma vez que a

qualidade do trabalho e as aprendizagens dos educandos relacionam-se. O acesso às

tecnologias configura-se como direito a produção do conhecimento em convergência

com o contexto atual vivido. Como ficar alheio a este novo modo de conhecer e

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produzir conhecimento? Por que continuar negando ao estudante do campo o que lhe é

de direito? Por que trabalhar no campo é sinônimo de ausência a acessibilidade

tecnológica? Tais interrogações problematizam o debate e fertilizam nossas reflexões no

sentido propositivo de que a prática de ensino nas escolas do campo não pode prescindir

dos bens materiais necessários ao direito de aprender e por isso, são importantes

constarem na pauta das politicas publicas para o campo.

A denúncia das debilidades de recursos tecnológicos e de infraestrutura não

permite deixar de reconhecer as potencialidades encontradas na participação das

famílias e nos recursos literários. Assim narra Mônica:

Temos um conselho atuante, mesmo com nove alunos, os pais

participam e se fazem presentes na escola, quase todos os dias tem um

lá. Acho que um ponto alto desse nosso trabalho é a participação da

família. É o ponto alto é isso. Porque a família participa mesmo, todo

dia tem pai na escola, a gente conversa na entrada e não tem como

ficar de fora. Eles sempre perguntam, querem saber isso ou aquilo e

ajudam nos trabalhos, principalmente nos trabalhos com os alunos,

nas pesquisas que eles fazem em casa.

Temos muitos recursos na área de literatura, ainda mais nesses últimos

tempos... têm chegado bastante caixa do FNDE, do PDDE bastante

caixa de jogos e agora programa do Pnaic a gente tem literatura para

deleite, praticamente todos os dias a gente trabalha e vê com eles o

que você gostou, gostou muito ou não gostou. E fazemos um cartaz. E

às vezes a própria literatura acaba levando você para outras

disciplinas.

É Teve um livro “História de avô e história de avó” e ele conta

história de infância. Ele era comerciante, tinha uma loja de tecidos...

tinha uma maquininha registradora, daquelas quando as pessoas

compravam, mas o avô preferia fazer as contas dele da loja no ábaco,

e foi ai que eu tive que mudar o rumo da conversa né! Aproveitei o

ensejo para mostrar o que era o ábaco, para mostrar o que ele

realmente era, eles já conheciam mais ou menos, mas na hora eu

pensei: meu Deus como que eu vou fazer para trabalhar com o ábaco

nas 4 turmas? Aí o primeiro ano vai trabalhar com unidades, o

segundo com unidades e dezenas, o terceiro com unidades, dezenas e

centenas e o quarto com unidades, dezenas, centenas e milhar. Pedi a

eles para representarem data de nascimento, a idade deles e fui

tentando na hora então assim... interdisciplinar, foi falando de

histórias de bisa, de avós e num determinado momento eles trouxeram

músicas, que agente ficou de registrar no cartaz, o que os avós gostam,

lembram a vida de avós... tudo isso relacionado com a literatura. Só

que assim dá muito trabalho, você ir trabalhando essa parte da

sequencia. Mas a minha vontade é trabalhar por eixo (NARRATIVAS

MÔNICA APARECIDA RISSO SEIBEL, LARANJA DA

TERRA/ES, JULHO DE 2013).

Numa conversa em que um assunto puxa o outro, significativos pontos são

trazidos na a participação das famílias; o uso dos recursos literários e o trabalho

interdisciplinar e; a relação perfil do professor e identidade docente do campo. Todos os

três aspectos são reveladores de discussões realizadas na Educação do Campo e no

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

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Pnaic (Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa) e trazem os sentidos

produzidos por Mônica que participou efetivamente desses dois momentos formativos

de professores.

A participação da família é entendida como a força do trabalho da escola, que se

dá de forma particular no acompanhamento dos alunos e no compromisso com o ensino,

como também de forma coletiva e organizada por meio de um conselho. A quantidade

aqui não é determinante, com um número relativamente pequeno de alunos, a escola não

abre mão de criar mecanismos de participação, como o conselho, colegiado legítimo de

pais. É claro que quando estamos dialogando com a realidade da escola multisseriada do

campo é importante entender que o professor tem aí um papel fundamental, é ele quem

assume as questões administrativas e pedagógicas da escola, por isso, abrir as portas da

mesma para a entrada e participação das famílias está também relacionada à forma

como este docente compreende a participação. Desta forma, quando Mônica afirma que

a “participação é o ponto alto” do trabalho na Educação do Campo é colocado em cena

o sentido que ganha a participação como aliada do trabalho docente nas aprendizagens

dos alunos, na gestão da escola e na formação também das próprias famílias que, uma

vez engajadas nesta empreitada, constroem um projeto de educação em que assumem a

condição também de aprendente (FREIRE, 1996) por meio da dinâmica deste

movimento.

Narrar uma experiência bem sucedida de trabalho é algo comum na conversa

entre professores. Aqui também foi assim. O trabalho de ensino com literatura é trazido

para o diálogo como um recurso que reúne a partir de uma obra alunos de diferentes

séries que, por sua vez, aprendem conteúdos de matemática adequados, na perspectiva

da professora, às suas aprendizagens em curso. A prática de ensino narrada vai ao

encontro das proposições didático-pedagógicas assumidas pela formação de professores

do campo que vêm advogando pela multisserie como uma possibilidade e não como

sinônimo de precarização do ensino que necessita avançar para o sistema de seriação.

Discutir com os professores maneiras e formas de como articular saberes, planejar

conteúdos e sequencias didáticas com o pressuposto de que o trabalho é para uma única

turma com diferentes temporalidades tem sido um desafio.

Durante muito tempo e ainda hoje o que vimos são professores das escolas

multisseriadas organizando as turmas em pequenos grupos de acordo com a série,

dividindo o quadro com os conteúdos adequados para cada uma delas, sentando os

alunos de uma turma de costas para colegas de outra turma, pois assim o que um

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

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aprende não atrapalha o outro, enfim, ensinando separadamente a cada série um

conteúdo. Ou seja, a lógica empreendida pauta-se no entendimento de que a sala

multisseriada constitui-se numa forma precária de organização do ensino no campo e

que necessita ser superada.

Os saberes e fazeres da multissérie: Não à precariedade e Sim às possibilidades

Na contramão de uma concepção de precariedade, entretanto, sem reconhecer

que as mesmas existem, surge nos últimos anos um movimento significativo, produzido

por professores, militantes dos movimentos sociais e pesquisadores acerca das

potencialidades da escola multisseriada. Essa perspectiva, portanto, sinaliza para uma

prática de ensino integrada às diferentes temporalidades e aos conteúdos didático-

pedagógicos.

Quando a organização seriada está em crise por ser antidemocrática,

classificatória e segregadora e quando se avança tanto na compreensão

de como a mente humana aprende, dos complexos processos do

aprender humano, fica sem sentido propor que as escolas do campo,

multisseriadas ou não seriadas, virem seriadas (ARROYO, 2012, p.

12).

Nesse sentido, trazemos a experiência narrada de Mônica, bem como, as

discussões de Arroyo (2012) que os processos formativos de professores do campo e

vêm contribuindo para essa nova perspectiva de trabalho nas escolas e salas

multisseriadas. O que entra em cena é uma tentativa de reconhecer as especificidades

dos coletivos humanos (ARROYO, 2012) e suas temporalidades na organização das

aprendizagens, evidenciando a força da escola multisseriada no trabalho que transita

entre conteúdos disciplinares e idades seriadas, como uma tentativa de romper as cercas

que se colocam dentro da sala de aula.

Desta forma, Mônica ao nos contar como foi positivo o trabalho de literatura que

integrou séries, conteúdos e disciplinas, revela o compartilhar de um fazer que

transgrediu modos tradicionais de organização da sala multisseriada, como também, a

crença de que novos fazeres impõem-se no cenário vivido no campo.

Ser professor-educador do campo: saberes, cultura e identidade

Uma coisa que eu gostaria de falar também é essa história de ter perfil para

trabalhar na escola do campo, que tem que morar no campo eu acho que não. Não tem

necessariamente que morar na comunidade para ter perfil de professor do campo. Você

precisa se identificar com a cultura, com o jeito e com os costumes do campo. O jeito da

comunidade viver, as coisas, conhecer e dar valor. Eu por exemplo fui aprendendo,

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estudei na Escola família Agrícola, depois os cursos que eu fui fazendo de Educação do

campo, a Pós, o Escola Ativa, as pastorais rurais da Igreja. Acho que a vida que fui

levando, muita coisa com meu pai, aprendi com ele, com a vida dele no campo e nos

movimentos sociais... me ajudaram a ter essa identidade com o campo e a escolher o

que faço hoje (NARRATIVAS MÔNICA APARECIDA RISSO SEIBEL, LARANJA

DA TERRA/ES, JULHO DE 2013).

Um ponto de pauta que emerge do debate acerca da prática de ensino nas salas

multisseriadas refere-se ao perfil do educador do campo. Os principais questionamentos

em torno da questão são: qual é o perfil do professor do campo? É necessário residir no

campo para atuar numa escola do campo? O professor que reside na cidade e se desloca

todos os dias para trabalhar numa escola do campo tem compromisso com a

aprendizagem dos alunos e com a comunidade? Qual é a identidade do professor do

campo? Que saberes são necessários ao professor do campo? Em resposta a esses

questionamentos temos acumulado ao longo dos últimos anos uma pluralidade de

discussões e formulações teórico-práticas que caminham em diferentes direções, desde a

afirmativa de um perfil a priori para atuar até a defesa de que é no processo do trabalho

que se produz essa relação de vinculo e compromisso.

No diálogo com Mônica a relação perfil ou identidade não passa

necessariamente pela localização física e geográfica do docente, se ele reside no campo

ou na cidade, mas pelos modos como este compreende a cultura camponesa

(FOERSTE; FOERSTE, 1995). Ao afirmar que é importante o professor se identificar

com a “cultura do campo” o sentido da identidade volta-se para o reconhecimento desse

modo próprio da vida no campo e a necessidade de que essa especificidade seja

considerada na atuação docente e no processo de aprendizagem dos educandos. O que

por sua vez, contraria a defesa de muitos a favor do estabelecimento de critérios para a

seleção de professores do campo, entre eles, residirem no local de atuação.

A compreensão da identidade não como algo dado ou como produto, mas como

processo é a defesa de Nóvoa (1992, p. 16). Para ele a “identidade não é uma

propriedade, mas um lugar de lutas e conflitos, um espaço de construção de maneiras de

ser e estar na profissão docente”. A identidade ainda estaria sustentada em três A:

Adesão, Ação e Autoconsciência.

- A de adesão, porque ser professor implica sempre a adesão a

princípios e valores, a adopção de projectos, um investimento positivo

nas potencialidades das crianças e jovens;

- A de Acção, porque também aqui, na escolha das melhores maneiras

de agir, se jogam decisões do foro profissional e do foro pessoal.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10892ISSN 2177-336X

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Todos sabemos que certas técnicas e métodos “colam” melhor com

nossa maneira de ser do que outros. Todos sabemos que o sucesso e o

insucesso de certas experiências “marcam” a nossa postura

pedagógica, fazendo-nos sentir bem ou mal com esta ou com aquela

maneira de trabalhar na sala de aula;

- A de Autoconsciência, porque em última análise tudo se decide no

processo de reflexão que o professor leva a cabo sobre a sua própria

acção. É uma dimensão decisiva da profissão, na medida em que a

mudança e a inovação pedagógica estão intimamente dependentes

deste pensamento reflexivo (NÓVOA, 1992, p.16).

A concepção de Nóvoa (1992) sobre a identidade docente como espaço de

construção de uma maneira particular e ao mesmo tempo coletiva de ser e estar na

profissão encontra eco neste diálogo, uma vez que não se concebe na perspectiva de

Mônica uma identidade a priori para atuar no campo. Ou seja, “essa história de ter perfil

para trabalhar nas escolas do campo” necessita ser problematizada e a concepção aqui

exposta pode contribuir neste sentido, uma vez que corrobora numa perspectiva

processual que implica a adesão do professor à carreira docente, sua ação didático-

pedagógica na sala de aula, com fazeres e saberes pautados nas escolhas regidas por

crenças, valores, concepções e experiências, bem como, na sua reflexão autoconsciente

acerca do trabalho.

Na conversa sobre identidade e profissão docente a autonomia profissional

também se coloca. Ao ser provocada sobre a questão, Mônica nos conta:

A gente tem liberdade, acho que nesse ponto é autonomia para

escolher como trabalhar até porque nós não temos um conteúdo

programático para seguir a risca. Tipo assim essa semana, ou esse

bimestre eu tenho que dá esse conteúdo em português, isso em

matemática... não, a gente não tem necessariamente isso. Por outro

lado é ruim né, porque a gente fica um dando uma coisa aqui e outro

ali e a gente fica procurando muito, então a gente perde, maneira de

dizer, porque a gente necessita de mais tempo para escolher material,

para planejar, principalmente quando você tem quatro ou cinco turmas

na mesma classe (NARRATIVAS MÔNICA APARECIDA RISSO

SEIBEL, LARANJA DA TERRA/ES, JULHO DE 2013).

A autonomia expressa nas palavras narradas como liberdade está diretamente

relacionada ao processo identitário, que passa pela “capacidade de exercermos com

autonomia a nossa atividade, pelo sentimento de controlarmos o nosso trabalho”

(NÓVOA, 1992, p. 17). A liberdade para a escolha do que ensinar e quando ensinar

traduz em sua voz a autonomia docente no campo, que permite a produção do currículo,

a escolha das estratégias de ensino e a definição dos conteúdos a serem trabalhados. O

que nos parece “ruim” na perspectiva narrada é a desarticulação entre as práticas

docentes do campo “fica um dando uma coisa aqui, outro ali”, o que promove a

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10893ISSN 2177-336X

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necessidade dos espaçostempos de formação e planejamento colocarem em debate essa

questão e priorizarem a discussão acerca do fazer docente no campo, nas suas plurais

dimensões.

Essa perspectiva é fortalecida quando Mônica afirma:

Na pós em Educação do Campo, por exemplo, nos primeiros módulos

eu achei tudo muito teórico e eu me perguntava porque tenho que

aprender isso. São muitos teóricos. Mas por outro lado foi bom a gente

conhecer o que é a educação do campo, que tem um jeito de pensar e

de fazer. Mas, para mim o que faltou foi a prática. Como eu vou

trabalhar isso na minha prática? As vezes sinto que a Educação do

Campo ainda não é prioridade. Então a gente fica com muita dúvida, o

que podemos mexer no currículo, o que deve ser priorizado, se somos

tradicionais demais, ou como temos que fazer. Porque o pai lá da

roça... lá do campo... ele elogia o tradicional. Então quando eu ensino

números romanos eles falam: _que bom professora que você está

ensinando números romanos. As datas comemorativas e as contas a

mesma coisa. E eu sinto que os livros de hoje estão mais vazios desses

conteúdos, por isso é necessário conciliar o tradicional com o novo

(NARRATIVAS MÕNICA APARECIDA RISSO SEIBEL,

LARANJA DA TERRA/ES, JULHO DE 2013).

A formação que faz sentido e que contribui no fazer profissional docente para

Mônica é aquela que centra forças na prática de ensino. Para ela, é claro, há uma

dicotomia estabelecida entre teoria e prática, o que de fato assim é compreendido por

muitos professores, sejam do campo ou da cidade. No entanto, à medida que o cotidiano

da escola demanda saberes para um fazer que grita com suas especificidades, o docente

sente a necessidade do “como”, da experiência do outro, do diálogo que troca e que

acena para possibilidades concretas de atuação na sala de aula.

De igual modo há dicotomias estabelecidas entre o tradicional e o novo, o que

também nos sinaliza na direção de uma importante reflexão. Por outro lado, o fato dos

pais elogiarem os conteúdos considerados pela professora como tradicionais nos revela

que estes acompanham o que conhecem, o que aprenderam em sua formação escolar e

ensinar para os filhos o que aprenderam fortalece a capacidade de acompanhamento e

participação da família no trabalho da escola.

Já trazido nesta conversa em outros momentos, o cotidiano do trabalho docente e

sua sobrecarga não ficam alheios à profissão docente no campo.

Outo ponto difícil hoje em dia é o excesso trabalho que a gente tem

por conta de muitas provas, projetos... é sempre muita coisa pra gente

fazer. Tem olimpíada de matemática, projetos municipais, um montão

de provas, feiras e seminários. Tem a questão da educação especial. E

quando a gente faz um curso a gente tem sempre que mostrar o que

está aprendendo, demonstrar a nossa prática se está colocando em

prática mesmo. Então as vezes não sobra tempo pra a gente. Meu

marido é retratista, nos finais de semana tem casamento e eu nem

sempre posso ir. Fico em casa, planejo aqui, planejo ali, corrijo prova

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

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pra dar conta de tudo né... é muito difícil, muita coisa sempre! Mas é

isso, a gente também gosta muito do que faz. Pra mim tá muito bom

poder ficar nessa escola. E eu tô lá porque eu quis. Porque na escolha

tinha vaga aqui dentro da rua, mas eu preferi ir de novo para o

Córrego Adame, gostei da experiência do ano passado, a gente cria

laços e é bom de trabalhar lá. Mesmo tendo que ir de carro, fica mais

longe, mas eu gosto do trabalho de lá (NARRATIVAS MÔNICA

APARECIDA RISSO SEIBEL, LARANJA DA TERRA/ES, JULHO

DE 2013).

A voz de Mônica relaciona-se diretamente com as novas exigências postas à

escola e seus mecanismos de regulação da prática docente, o que por sua vez fragiliza

de certa forma a autonomia de seu fazer. Vivemos no Brasil e no Estado do Espírito

Santo um cenário de reformas políticas, ancoradas em novos processos regulatórios que

caminham na contramão da valorização docente e passam a contribuir na diminuição da

autonomia e no aumento da precarização das condições de trabalho (FERREIRA et al,

2012).

A necessidade da demonstração das aprendizagens, produzidas nos cursos de

formação continuada, comprovam o caminho rumo a estas novas formas de controle

impostas pelo Estado. O lugar de trabalho, da prática docente profissional passa a ser

compreendido como laboratório, lugar de experimento daquilo que se aprendeu no

curso, quando este deveria ser locus das interrogações e problematizações que

dialogicamente mantivessem uma relação com as aprendizagens produzidas nos

processos formativos, sem dualidades entre teoria e prática, escola e universidade, novo

e tradicional.

Nesse sentido, pensar no currículo do campo é pensar na vida campesina.

Colocar em cena sua cultura, trabalho, valores em interface às proposições instituídas

pelo poder público. O descompasso entre o currículo oficial e as demandas dos povos

do campo é denúncia dos professores, famílias, movimentos sociais e pesquisadores que

estão empreendendo um importante movimento de garantir nos espaços e tempos da

escola os saberes legitimados pelo sistema, bem como os saberes (GERKE DE JESUS)

que potencializam a vida com qualidade no campo. A preocupação com a expulsão dos

jovens de suas terras passa por este debate. O que se busca é uma prática de ensino que

tem como eixo a cultura e o trabalho do campo como possibilidades de permanência

digna dos povos do campo em seus territórios. Portanto, pensar Educação do Campo, as

escolas e salas multisseriadas com suas práticas de ensino é problematizar

cotidianamente saberes e fazeres que caminham dialogicamente com este pressuposto.

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Para momento...

Ouvir Mônica muito nos ensinou sobre questões diversas. Na riqueza de suas palavras

outros sentidos (VIGOTSKI, 2005), que aqueles que aqui registramos, nos escapam.

Entendemos ser esta a dinâmica, porque a produção de sentidos se faz pelo narrador ao

se expressar, por mim e pelos demais leitores de suas narrativas. O que aqui registramos

compõe a nossa produção, limitada e também potente, em diálogo com a compreensão

de sua voz e dos interlocutores teóricos. O sentido, portanto, está nas leituras que

realizamos dos textos da vida.

Referências

ARROYO, Miguel Gonzalez. Formação de Educadores do Campo. In CALDART,

Roseli Salete. PEREIRA, Isabel Brasil. ALENTEJANO, Paulo. (ORGs). Dicionário da

Educação do Campo. Rio de Janeiro, São Paulo: Escola Politécnica de saúde Joaquim

Venâncio, Expressão Popular, 2012.

BERTAUX, Daniel. Narrativas de Vida: A Pesquisa e Seus Métodos. Tradução Zuleide

Alves Cardoso Cavalcante; Denise Maria Gurgel Lavallée. São Paulo: Paulus, 2010.

FERREIRA, Eliza Bartolozzi. OLIVEIRA, Dalila Andrade. VIEIRA, Lívia Fraga.

(orgs.). O trabalho na Educação Básica no Espírito Santo. Belo Horizonte/Minas Gerais:

Fino Traço, 2012.

FOERSTE, Erineu. FOERSTE, Gerda. Maria. S. Questões Culturais na Formação de

Professores. Cadernos de pesquisa em Educação. Universidade Federal do Espírito

Santo. Centro Pedagógico. Programa de Pós-Graduação em Educação. V.7, n.14

(dez.1995).

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Saberes necessários à prática educativa. São

Paulo: Paz e Terra, 1996.

GERKE DE JESUS, Janinha. Formação de Professores na Pedagogia da Alternância:

Saberes e fazeres do campo. Vitória/ES, GM Editora, 2011.

GOODSON, Ivor F. Dar voz ao professor: as histórias de vida dos professores e o seu

desenvolvimento profissional. In: NÓVOA, António (Org.). Vidas de professores.

Porto: Porto Editora, 1992. p. 63-78.

JOSSO, Marie-Christine. Experiências de Vida e Formação. São Paulo: Cortez, 2004.

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NÓVOA, Antônio. (Org.). Vidas de Professores. Porto: Porto Editora, 1992.

VIGOTSKI, Liev Semiónovitch. Pensamento e Palavra. In L. S. Vigostki. Pensamento e

linguagem. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 200

i Professora de Ensino Básico, Técnico e Tecnológico do Instituto Federal de Educação,

Ciências e Tecnologia do Espírito Santo; Mestre em Educação pelo PPGE/UFES;

[email protected]

ii Professor do Instituto Federal do Espírito Santo Campus Santa Teresa - IFES. Doutor

em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo – UFES. Contatos:

[email protected] ou [email protected]. iii

Professor do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo – UFES.

[email protected]. iv

Para um maior aprofundamento sobre os grupos de discussão, conferir especialmente

o artigo “Grupos de discussão na pesquisa com adolescentes e jovens: aportes teórico-

metodológicos e análise de uma experiência com o método”, publicado por Wivian

Weller na Revista Educação e Pesquisa em 2006 e a Parte II “Grupos de Discussão e

Método Documentário”, do livro “Metodologias da Pesquisa Qualitativa em Educação:

teoria e prática” organizado por Wivian Weller e Nicolle Pfaff e publicado em 2011

pela Editora Vozes. Ambos os trabalhos encontram-se na seção Referências deste

trabalho. v Sobre o Método Documentário conferir, entre outros Weller (2005; 2006; 2011) e

Moreto (2015). vi

Sobre a forma das transcrições no Método Documentário, conferir os trabalhos de

Weller (2005) e Moreto (2015). vii

Nas transcrições das entrevistas dos Grupos de Discussões, as participantes foram

denominadas apenas por letras relativas à ordem alfabética (A, B, C etc.), seguido de “f”

por se tratarem de pessoas do sexo feminino. Neste caso, a professora Andressa é

identificada por Af. O entrevistador foi identificado como Y. viii

Todos os nomes das professoras de escolas de classes multisseriadas do município de

Santa Teresa que participaram desse trabalho são fictícios. ix

Sobre o Programa Escola Ativa, conferir BRASIL. MEC, 2008 e BRASIL. MEC,

2009 que tratam, respectivamente do projeto base e das orientações pedagógicas para a

formação de educadores(as).

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