Educação Do Campo - Semiárido, Agroecologia, Trabalho e Projeto Político Pedagógico - Prefeitura Municipal de Santa Maria Da Boa Vista – PE, 2010

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  • 1Educao do Campo: Semirido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Poltico Pedaggico

  • 2 Educao do Campo: Semirido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Poltico Pedaggico

  • 3Educao do Campo: Semirido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Poltico Pedaggico

    Coleo Cadernos Temticos

    Educao do Campo:Semirido, Agroecologia, Trabalho e Projeto Poltico Pedaggico

    Santa Maria da Boa Vista/PE

    Setembro, 2010

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    PREFEITURA MUNICIPALDE SANTA MARIA DA BOA VISTA - PE

    PREFEITOLeandro Rodrigues Duarte

    SECRETRIA MUNICIPAL DE EDUCAONeuma Maria de Vasconcelos Freitas

    SECRETRIA ADJUNTA DE EDUCAOVera Lcia

    DIRETORA PEDAGGICAIara Reis

    COORDENADOR MUNICIPAL DA EDUCAO DO CAMPORivanildo Adones dos Santos

    EXPEDIENTE

    PRODUOPrefeitura Municipal de Santa Maria da Boa Vista - PE

    Secretaria Municipal de EducaoCoordenao da Educao do Campo

    ORGANIZAOErivan Hilrio

    COLABORAOMaria Neuma de Vasconcelos Freitas

    Rivanildo Adones dos Santos

    DIAGRAMAOFbio Carvalho

    IMPRESSOGrfica Progresso

    TIRAGEM1.000 exemplares

    FOTOSGilmar Arajo

    Arquivo Coord. Educao do CampoWllyssys Wolfgang

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    PREFCIOClarice Aparecida dos Santos

    APRESENTAO

    Educao do Campo: notas para anlise de percursoRoseli Salete Caldart

    O Semirido BrasileiroSilvana Lucia da Silva Lima

    O Trabalho como processo educativo/formativoErivan Hilrio

    Agroecologia e Educao do CampoAloisio Souza da Silva e Leandro Feij Fagundes

    Projeto Poltico Pedaggico: concepo e elementos para construoJoelma de Oliveira Albuquerque e Nair Casagrande

    POEMAS PARA CAMINHADA

    ANEXOS(documentos sobre Educao do Campo)

    Resoluo do CNE/CB1, de 3 de Abril de 2002

    Declarao final da II Conferencia Nacional de Educao do Campo 2004

    Carta do II Seminrio Nacional de Educao do Campo

    Resoluo CNE, CEB n 02, de 28 de Abril de 2008

    Resoluo CEE/PE n 02, de 31 de Maro de 2009

    Documento final do I Seminrio Munucipal de Educao do Campo

    SUMRIO

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    51

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    PREFCIO

    Nunca diga, nordestino,Que Deus lhe deu um destino...

    Patativa do Assar

    Os educadores de Santa Maria da Boa Vista e da Regio temem mos um livro importante. Trata-se do Caderno Temtico sobreEducao do Campo: Semirido, Agroecologia, Trabalho e Projeto Poltico-Pedaggico, de iniciativa da Prefeitura Municipal de Santa Maria daBoa Vista - PE.

    A publicao de um subsdio terico-pedaggico acerca detemas to caros para a educao, e especialmente para a educao naregio do semirido nordestino, , por si s, um feito louvvel. Nummundo que tem dizimado as regionalidades e suas humanidades,eliminando-as, a servio do desenvolvimento e da expanso do modelovigente, utilizando-se de projetos educacionais, uma iniciativa comoesta como uma flor de mandacaru no meio da caatinga. Bela,exuberante e mostra da esperana de que a vida pode sempre florescer,mesmo na adversidade.

    Temos vivido tempos difceis e ao mesmo tempo tempos demuita produo, neste campo da Educao do Campo, o que indicavivermos um perodo de contradies, e esta a riqueza destes tempos.

    Quando penso num Caderno que tem a pretenso de servircomo subsdio terico aos educadores que trabalham nas escolas dascomunidades rurais, assentamentos, quilombos, devo necessariamentepensar quem so.

    So os educadores que trabalham e dedicam seu tempo educao das crianas e adolescentes, filhos e filhas de camponesesque, pelo fato de terem nascido no campo, foram condenados, pelahistria e pelos homens que a fazem, a viver nas condies mais adversasque qualquer populao poderia viver. Poderiam ter-se rendido a estasituao que muitos (desavisada ou preconceituosamente) denominamnordestinados. Mas estes camponeses que aqui vivem no se renderamao destino para o qual se encaminhavam. E ao fazerem, mudaram asua prpria histria e a do seu municpio, da sua regio. E ao faz-lo,esto a provar que tudo na vida e no mundo pode ser mudado pelafora coletiva da solidariedade e da organizao social.

    Importante para ns, que nos denominamos educadores, que compreendamos esta primeira lio fundamental que a histria

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    deve ser a base sobre a qual pensamos o nosso Projeto PolticoPedaggico, bem tratado num captulo deste livro, como o eixoorganizador da escola, como o articulador dos processos educativos queali iro se desenvolver e sem o qual a escola e ns, educadores, nostornamos refns das receitas fceis vendidas a peso de ouro aosadministradores pblicos, como a redeno das mazelas sociais. Soaqueles projetos de empresas privadas, de organizaes nogovernamentais que, aparentemente cheias de boas intenes, no fazemmais do que pensar o Brasil e suas necessidades a partir do eixo Braslia-Rio-So Paulo, do centro para a periferia do Brasil.

    Sendo assim, queremos um Projeto Poltico Pedaggico quetenha como horizonte uma escola capaz de projetar-se como uma novapossibilidade de sociabilidade humana, como nova possibilidade paraas crianas e para a juventude. Uma escola alternativa a esta queconhecemos e que est a nos destruir. E est a nos destruir precisamenteporque o modelo de convivncia social que a escola tradicional elaboroue implementou est falido. Os fatos confirmam esta falncia. Est falidoo modelo educacional e est falido o modelo social. E est falido o modeloeducacional porque est falido o modelo social que o moldou.

    No fosse isso, no teramos tantos problemas em manter osadolescentes e jovens na escola, prazerosamente. Vo por obrigao, porpresso da famlia e da sociedade. Vo para uma escola pensada damesma forma, para todos, independente do lugar onde vivam, da suahistria, da histria social onde est inserida. Uma escola-padro paratodos, mas que no seu interior se incumbe de selecionar aqueles quetero um ou outro destino.

    Vejam bem, isso no feito intencionalmente peloseducadores. Mas os educadores, ao no perceberem este processo, soutilizados pelo sistema educacional para reproduzi-lo. E, mesmomovidos pelas melhores intenes, perversamente, o modelo os tornainocentes teis.

    Nesta perspectiva, as melhores escolas (tradicionais) no tmfeito mais do que reproduzir uma educao necessria s novasnecessidades do capital, em cada regio do pas, inclusive no semirido.Um exemplo disso, que nas escolas tcnicas, no caso do semirido, asmelhores intenes no campo da formao profissional no tm feitomais que reproduzir a formao de um tcnico funcional expanso econsolidao da fruticultura de exportao, baseada num modelo deproduo agressivo ao solo e gua da regio, comprometendo adisponibilidade destes recursos para as geraes futuras e reproduzindoum padro de explorao do trabalho com um grau de alienao to

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    perverso quanto ao no ter trabalho, pois no permite aos trabalhadorespensarem a possibilidade de fazerem de forma diferente. Fazer de formadiferente significaria organizarem-se para produzir de acordo com asnecessidades alimentares do povo, pelo seu trabalho, cujo resultadofosse distribudo para si mesmos, de forma organizada, e com recursospblicos para seu financiamento. Assim como h financiamento, a rodo,para as grandes empresas.

    Como pensar, ento, um projeto pedaggico e uma escolanoutra perspectiva, qual seja a da emancipao humana pelaemancipao do trabalho? Qual educao e qual processo educativoescolar oferecero as necessrias condies s crianas e juventude dosemirido nordestino, para que estas possam projetar o seu destino emvez de render-se s velhas e novas armadilhas armadas pelo modelovigente, como se destino fosse? Nosso amor e nossa dedicao s crianas,adolescentes e jovens de nossas comunidades nordestinas nos exigemque reflitamos sobre isso e passemos ao.

    Os trabalhadores rurais desta regio j comprovaram serpossvel reorganizar seus destinos, na luta pela Reforma Agrria, naluta por reconhecimento dos territrios quilombolas, na luta peloreassentamento das famlias atingidas pelas grandes hidreltricas daregio. E se colocaram noutro padro de exigncia em relao sautoridades pblicas municipais, estaduais e nacionais. Agora, queremtambm estabelecer outro padro educacional para seus filhos e filhas.Para isso, querem contar com a nossa participao, como educadoresda escola.

    Aproveitemos este espao importante que conquistamos nopoder pblico municipal em Santa Maria da Boa Vista, o reconhecimentopblico das lutas dos trabalhadores rurais junto com educadores dascomunidades rurais, para nos colocarmos junto com estes na construode outro padro educacional, comprometido com as causas de nossopovo da regio.

    Clarice Aparecida dos SantosMestre em Educao do Campo pela UnB e

    Coordenadora Nacional do Programa Nacionalde Educao na Reforma Agrria.

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    APRESENTAO

    Madrugada camponesa,faz escuro ainda no cho,

    mas preciso plantar.A noite j foi mais noite

    a manh j vai chegar.Thiago de Mello

    com muita alegria e, principalmente, compromisso comuma Educao de qualidade, que ns da Prefeitura Municipalde Santa Maria da Boa Vista-PE, por meio da Secretaria deEducao e da Coordenao de Educao do Campo,apresentamos a Coleo Cadernos Temticos". Esta Coleoque aqui inauguramos tem por objetivo contribuir na formaodos educadores e educadoras com temticas importantes quepermitem dilogos pedaggicos na perspectiva de socializar erefletir sobre as prticas educativas nas escolas da rede municipalde ensino.

    Esse primeiro nmero intitulado de Educao doCampo: Semirido, Agroecologia, Trabalho e Projeto PolticoPedaggico rene uma coletnea de textos e artigos sobretemticas que so relevantes para o aprofundamento e debatepor parte dos educadores, gestores que atuam na Educao doCampo nas diversas comunidades de Santa Maria da Boa Vista.

    O presente caderno nasce fruto de um trabalho que estamosdesenvolvendo em nosso municpio em torno da Educao doCampo e tem por objetivos: a) subsidiar os debates sobreEducao do campo nas escolas pblicas vinculadas ao sistemamunicipal de ensino; b) contribuir com o processo permanentede formao dos educadores/as do campo e c) oportunizarmomentos de reflexo e compreenso do significado da escolano campo, bem como das relaes econmicas, sociais e polticasque se desenvolvem neste territrio.

    O primeiro texto, Educao do Campo: notas para uma anlisede percurso, da Profa. Dra. Roseli Carldart, traz presente umbalano poltico pedaggico da Educao do Campo, debate quej passa de uma dcada. A mesma situa para o leitor como sedeu a constituio originria da Educao do Campo, aprofunda

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    a concepo e aponta desafios.

    O segundo, O Semirido brasileiro, da Profa. Dra. Silvana Lima,aborda a questo do semirido sobre a perspectiva de entender ocontedo da questo regional hoje e a formao scio-econmica dosemirido nordestino. Para isso, contextualiza esse debate na histriae no modelo de desenvolvimento excludente que foi implantado naregio Nordeste.

    O terceiro, O Trabalho como processo educativo/formativo, do Prof.Erivan Hilrio, nos d uma viso geral da concepo de trabalhoenquanto dimenso que possibilita processos de aprendizadosfundamentais para a formao do ser humano. Para isso, situahistoricamente o trabalho e traz presente de maneira breve aproblemtica em torno do trabalho infantil.

    O quarto, Agroecologia e Educao do Campo, dos ProfessoresAlosio Souza da Silva e Leandro Feij Fagundes, traz presente asprincipais transformaes ocorridas na agricultura, destacando osprocessos de industrializao, bem como desenvolvendo reflexo emtorno da concepo da Agroecologia a partir de um debate terico-prtico. Por fim, fazem um anlise sobre Educao do Campo,Agroecologia e territrio campons.

    O quinto, Projeto Poltico Pedaggico: possibilidades das escolas do/no campo, da Doutoranda Joelma de Oliveira Albuquerque e da Profa.Dra. Nair Casagrade aborda o PPP como Plano de Vida, como umaconstruo coletiva que deve necessariamente ter a participao detodos e todas que esto envolvidos no processo poltico pedaggicodas Escolas do Campo.

    Poemas para caminhada uma parte deste Caderno que criamospara oportunizar o acesso a poemas, poetas e poetizas que eternizaramsuas obras ao longo da nossa histria. Vai desde poetas nordestinos,como o campons Patativa do Assar, a nomes como o de CoraCoralina e do Dramaturgo Alemo Bertold Brecht.

    Por fim, disponibilizamos documentos e resolues sobre aEducao do Campo, desde as Diretrizes para Educao Bsicas nasEscolas do Campo ao documento final do nosso I Seminrio Municipalde Educao do Campo.

    Esperamos, assim, que este caderno possa contribuir naformao de todos e todas. Ele no um material para estudo

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    individual e, sim, para que nossas Escolas, ao reunir os seus Coletivos deEducadores e Educadoras, possam planejar com carinho o Estudo e debatede cada texto que a est. Que possamos seguir avanando na construocotidiana de uma Educao de qualidade para toda populao do nossomunicpio.

    Um bom estudo, debate e reflexo.

    Abraos fraternos,

    Leandro Rodrigues DuartePrefeito

    Neuma Maria de Vasconcelos FreitasSecretaria Municipal de Educao

    Santa Maria da Boa Vista - PESetembro de 2010

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    Educao do Campo:notas para uma anlise de percurso*

    Roseli Salete Caldart

    Coordenadora da Unidade de Educao Superior do InstitutoTcnico de Capacitao e Pesquisa da Reforma Agrria (Iterra) e

    integrante da equipe de coordenao pedaggica do curso deLicenciatura em Educao do Campo, parceria entre Iterra e

    Universidade de Braslia. Doutora em Educao pelaUniversidade Federal do Rio Grande do Sul.

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    Discutir sobre a Educao do Campohoje, e buscando ser fiel aos seus objetivosde origem, nos exige um olhar detotalidade, em perspectiva, com umapreocupao metodolgica sobre comointerpret-la, combinada a umapreocupao poltica, de balano dopercurso e de compreenso das tendnciasde futuro para poder atuar sobre elas.

    momento de perguntar, passados10 anos deste batismo: que objeto deestudo, de prticas, de poltica este queatende pelo nome de Educao doCampo? Tratamos de qual realidade e emqual contexto ou sobre que movimento eem que quadro? Por que a Educao doCampo j se configura como um fenmenoda realidade brasileira que exige tomadade posio, prtica e terica? Por que temcausado desconforto em segmentos

    politicamente diferentes ou mesmocontrapostos? Qual o movimento do realprovocado ou expresso pela Educao doCampo que incomoda e j instiga debatessobre sua significao: que tipo deprticas e de polticas podem mesmo serdesignadas como tal? Por que Educaodo Campo e no Educao Rural? E, afinal,qual o balano deste movimento darealidade? E qual o significado histricoque j possvel apreender da emergnciada Educao do Campo no contexto daeducao brasileira contempornea e daslutas dos trabalhadores, do campo e dacidade, por uma educao emancipatriae, mais amplamente, pela superao dasrelaes sociais capitalistas?

    Sem dvida nossa retrovisohistrica ainda muito pequena para darconta de uma anlise mais profunda do

    O sentido do nosso movimento no anterior nossa interveno: instaurado por ns, dentro dos limites que nos so impostospelo quadro em que nos inserimos.Leandro Konder, 2003

    * Notas iniciadas a propsito do II Encontro Nacional de Pesquisa sobre Educao do Campo, Braslia/DF, 6 a 8 de agosto 2008 econcludas a partir da exposio feita no minicurso sobre Educao do Campo na 31 Reunio Anual da ANPED, programao doGrupo de Trabalho Movimentos Sociais e Educao, Caxambu 20 e 21 de outubro de 2008 e para debate no Coletivo Nacional deEducao do MST em reunio realizada de 11 a 14 de novembro 2008, Guararema, SP. Elaborao concluda em novembro 2008.

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    processo de construo prtico-terica daEducao do Campo. Mas a necessidadede tomada de posio imediata e de umpensamento que ajude a orientar umainterveno poltica na realidade de quetrata nos exige pelo menos umaaproximao analtica nesta perspectiva.Vivemos em um tempo de urgncias:densas e radicais como so as questes davida concreta, de pessoas concretas,especialmente as questes de vida por umfio, nos seus vrios sentidos. E noestamos fazendo esta discusso sobre opercurso da Educao do Campo em ummomento qualquer, mas exatamente nomomento onde estas urgncias eclodemem um cenrio de crise estrutural dasociedade capitalista, o que se de um ladodificulta ainda mais uma anlise objetiva,de outro nos instiga a balanos projetivosque possam ajudar a reorganizar nossaatuao poltica diante de velhos e novoscenrios1.

    Podemos dizer sobre a Educao doCampo, parafraseando Emir Sader(prefcio a Mszros, 2005, pg. 15) quesua natureza e seu destino estoprofundamente ligados ao destino dotrabalho no campo e, conseqentemente,ao destino das lutas sociais dostrabalhadores e da soluo dos embates deprojetos que constituem a dinmica atualdo campo brasileiro, da sociedadebrasileira, do mundo sob a gide docapitalismo em que vivemos. E ainda quemuitos no queiram, esta realidadeexige posio (terica sim, mas sobretudoprtica, poltica) de todos os que hojeafirmam trabalhar em nome da Educaodo Campo.

    Busco desenvolver este texto naperspectiva de construo de uma chavemetodolgica para interpretao dopercurso e da situao atual da Educaodo Campo, orientando-me por doispressupostos tericos bem antigos, donosso velho camarada Marx: o primeiro o de buscar compreender o movimentoe os aspectos contraditrios do real,muito mais do que afirmar e repetirobstinadamente princpios abstratos(Lefebvre,1981), o que me parece aindamais importante se o que pretendemos justamente tomar posio diante dequestes relacionadas transformao darealidade. E o segundo o da crtica comoperspectiva metodolgica ou como guiada interpretao terica. Crtica aqui nono sentido simplificado de denncia deuma determinada situao, mas sim deleitura rigorosa do atual estado de coisas, oudo movimento real de sua transformao 2.

    O momento me parece propciopara retomada destes pressupostos, tantopelo embate geral de idias ou dereferenciais de interpretao da realidadeque tende a ficar mais forte neste perodode crise, como pela particularidade dasituao atual da Educao do Campo. Hhoje uma diversidade de sujeitos sociaisque se colocam como protagonistas daEducao do Campo, nem sempreorientados pelos mesmos objetivos e porconcepes consonantes de educao e decampo, o que exige uma anlise maisrigorosa dos rumos que estas aessinalizam.

    De outro lado, comeam a surgir,especialmente no mundo acadmico,

    1Este texto est sendo finalizado no momento em que a Via Campesina, movimento mundial de organizaes camponesas, aodivulgar os documentos finais de sua V Conferncia Internacional, realizada em Maputo, Moambique, de 19 a 22 de outubro de2008, reafirma diante da crise global do sistema capitalista seu compromisso de resistncia e de luta pela vida e pela agriculturacamponesa, definindo a soberania alimentar e a Reforma Agrria genuna e integral como bandeiras de luta fundamentais para oenfrentamento da crise desde a perspectiva da classe trabalhadora. Aqui estamos ns, camponeses e camponesas do mundo, e nosnegamos a desaparecer. Soberania Alimentar j! Com a luta e a unidade dos povos! (Carta de Maputo, outubro 2008). Como a Educaodo Campo se mover em relao a esta agenda poltica?2 Sobre a crtica como princpio metodolgico em Marx, tomo por base especialmente a interpretao de Enguita, 1993.

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    algumas interpretaes sobre o fenmenoda Educao do Campo, que tm ficadoexcessivamente centradas nos discursos dedeterminados sujeitos, priorizando adiscusso lgica do uso ou da ausncia deconceitos ou de categorias tericas,buscando identificar as contradies noplano das idias ou, ainda maisrestritamente, no plano dos textosproduzidos com esta identificao deEducao do Campo. Estes exercciosanalticos so importantes, desde que nose descolem da materialidade objetiva dossujeitos, humanos e coletivos, queconstituram e fazem no dia a dia a lutapela educao da classe trabalhadora docampo. Existem sim tenses de concepestericas entre os sujeitos hoje envolvidoscom a Educao do Campo e importanteapreend-las, discuti-las, mas no podemosperder de vista que os parmetros dodebate das idias devem ser dados pelaanlise do movimento da realidadeconcreta, sob pena de no participarem deleou, pior, ajudarem a fortalecer posiespolticas conservadoras, sobre o campo esobre a educao dos trabalhadores.

    Em sntese o que gostaria dedefender/reafirmar a necessidade e aimportncia, poltica, terica, decompreender este fenmeno chamado deEducao do Campo em sua historicidade,o que implica em buscar apreender ascontradies e tenses que esto narealidade que a produziu e que a move, eque ela ajuda a produzir e mover; queesto no estado da coisa, afinal, e noapenas nas idias ou entre idias sobre oque dela se diz.

    Entendo que uma das caractersticasconstitutivas da Educao do Campo ade se mover desde o incio sobre um fiode navalha, que somente se conseguecompreender pela anlise das contradiesreais em que est envolvida e que, nunca demais repetir, no so as contradiesdo territrio estrito da pedagogia, mas daluta de classes, particularmente de como

    se desenvolve hoje no campo brasileiro,em todas as dimenses de sua realidade.

    Este fio de navalha precisa seranalisado, pois, no terreno das tenses econtradies e no das antinomias, estasltimas muito mais prprias ao mundodas idias do que ao plano da realidadeconcreta, das lutas pela vida real em umasociedade como a nossa: sim! a Educaodo Campo toma posio, age, desde umaparticularidade e no abandona aperspectiva da universalidade, masdisputa sua incluso nela (seja nadiscusso da educao ou de projeto desociedade). Sim! ela nasce da experinciade classe de camponeses organizados emMovimentos Sociais e envolve diferentessujeitos, s vezes com diferentes posiesde classe. Sim! a Educao do Campoinicia sua atuao desde a radicalidadepedaggica destes Movimentos Sociais eentra no terreno movedio das polticaspblicas, da relao com um Estadocomprometido com um projeto desociedade que ela combate, se coerente forcom sua materialidade e vnculo de classede origem. Sim! a Educao do Campo temse centrado na escola e luta para que aconcepo de educao que oriente suasprticas se descentre da escola, no fiquerefm de sua lgica constitutiva,exatamente para poder ir bem alm delaenquanto projeto educativo. E uma vezmais, sim! a Educao do Campo se colocaem luta pelo acesso dos trabalhadores aoconhecimento produzido na sociedade eao mesmo tempo problematiza, faz acrtica ao modo de conhecimentodominante e hierarquizaoepistemolgica prpria desta sociedadeque deslegitima os protagonistasoriginrios da Educao do Campo comoprodutores de conhecimento e que resistea construir referncias prprias para asoluo de problemas de uma outra lgicade produo e de trabalho que no seja ado trabalho produtivo para o capital.

  • 19Educao do Campo: Semirido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Poltico Pedaggico

    Neste texto busco exercitar essaperspectiva metodolgica de compreen-der o movimento real da Educao doCampo, discutindo-o atravs de trsquestes que me parecem importantes naconstituio dessa anlise, ainda que aquias aborde sem a pretenso de esgot-lasnem de j estar dando-lhes o tratamentoterico necessrio. A primeira questo dizrespeito constituio originria, material,prtica da Educao do Campo. Asegunda trata de apreender algumastenses e contradies principais do seupercurso e a terceira, pensando que preciso incidir nos rumos da ao polticacom a urgncia que nosso tempo noscoloca, se relaciona ao esforo deidentificar alguns impasses e desafios domomento atual da Educao do Campo.

    Na seqncia algumas notas sobrecada uma das trs questes, no intuitoprincipal de provocar um debate que nosd indicaes para uma construo maiscoletiva desta chave de leitura.

    Sobre a constituio originria daEducao do Campo

    Ainda no fizemos uma narrativaescrita e refletida dessa histria com maisrigor de detalhes (desafio de pesquisa). Hregistros esparsos, fragmentados. E j hverses que alteram seus sujeitosprincipais, deslocando o protagonismodos Movimentos Sociais, dos camponeses,colocando a Educao do Campo como umcontinuum do que na histria da educaobrasileira se entende por educao ruralou para o meio rural. Nestas notas destacoalgumas idias-fora para nosso debate de

    interpretao da constituio de origem daEducao do Campo3:

    A Educao do Campo comoCrtica

    A Educao do Campo nasceucomo crtica realidade da educaobrasileira, particularmente situaoeducacional do povo brasileiro quetrabalha e vive no/do campo.

    Esta crtica nunca foi educao emsi mesma porque seu objeto a realidadedos trabalhadores do campo, o quenecessariamente a remete ao trabalho e aoembate entre projetos de campo que tmconseqncias sobre a realidadeeducacional e o projeto de pas. Ou seja,precisamos considerar na anlise que huma perspectiva de totalidade naconstituio originria da Educao doCampo.

    E tratou-se primeiro de uma crticaprtica: lutas sociais pelo direito educao, configuradas desde a realidadeda luta pela terra, pelo trabalho, pelaigualdade social, por condies de umavida digna de seres humanos no lugar emque ela acontea. fundamentalconsiderar para compreenso daconstituio histrica da Educao doCampo o seu vnculo de origem com aslutas por educao nas reas de ReformaAgrria4 e como, especialmente nestevnculo, a Educao do Campo no nasceucomo uma crtica apenas de denncia: jsurgiu como contraponto de prticas,construo de alternativas, de polticas, ouseja, como crtica projetiva detransformaes.

    3 No texto Sobre Educao do Campo de outubro de 2007 desenvolvo um pouco mais o que chamo de materialidade deorigem da Educao do Campo.4 Precisamos ter presente que a educao na Reforma Agrria, especialmente nas prticas e reflexes do Movimento dos TrabalhadoresRurais Sem Terra (MST), no pode ser vista hoje como outra coisa, mas sim uma particularidade dentro do prprio movimentoda Educao do Campo; s que no qualquer particularidade porque justamente a sua materialidade de origem e hoje o querepresenta a explicitao mais forte da perspectiva de luta e de identidade de classe para a Educao do Campo.

  • 20 Educao do Campo: Semirido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Poltico Pedaggico

    Uma crtica prtica que se fez tericaou se constituiu tambm como confrontode idias, de concepes, quando pelobatismo (nome) assumiu o contraponto:Educao do Campo no EducaoRural, com todas as implicaes edesdobramentos disso em relao aparadigmas que no dizem respeito e nemse definem somente no mbito daeducao5.

    A Educao do Campo surgiu emum determinado momento e contextohistrico e no pode ser compreendida emsi mesma, ou apenas desde o mundo daeducao ou desde os parmetros tericosda pedagogia. Ela um movimento realde combate ao atual estado de coisas:movimento prtico, de objetivos ou finsprticos, de ferramentas prticas, queexpressa e produz concepes tericas,crticas a determinadas vises de educao,de poltica de educao, de projetos decampo e de pas, mas que sointerpretaes da realidade construdasem vista de orientar aes/lutas concretas.

    ento desde esse parmetro que aEducao do Campo deve ser analisada eno como se fosse um ideal ou um ideriopoltico-pedaggico a ser implantado ou aoqual a realidade da educao deve sesujeitar. Talvez isso incomode a alguns: aEducao do Campo no uma propostade educao. Mas enquanto crtica daeducao em uma realidade historicamentedeterminada ela afirma e luta por umaconcepo de educao (e de campo).

    Para analisar um fenmeno que seconstitui como uma crtica material a umdeterminado estado de coisas, nada maisprprio, pois, do que buscarmos construir

    uma crtica de perspectiva materialista6, oque inclui uma exigncia de anliseobjetiva: qual o balano crtico quefazemos da realidade educacional dasfamlias trabalhadoras do campo,passados dez anos deste movimento delutas e de prticas de Educao doCampo? Esta anlise pode tambm serdesdobrada nas questes especficas sobreas quais a crtica da Educao do Campotem se voltado: que crtica tem sidoafirmada no debate da Educao do Camposobre a formao de educadores, sobre aeducao profissional, sobre o desenhopedaggico das escolas do campo, sobreos objetivos e contedos da educao doscamponeses,...? At que ponto as questesda realidade da educao dos camponeses,dos trabalhadores do campo, tmefetivamente pautado o debate daEducao do Campo entre seus principaissujeitos: Movimentos Sociais, Governos eInstituies Educacionais (especialmenteas Universidades)?

    Os Movimentos Sociais comoprotagonistas da Educao do Campo

    Os protagonistas do processo decriao da Educao do Campo so osmovimentos sociais camponeses emestado de luta, com destaque aosmovimentos sociais de luta pela ReformaAgrria e particularmente ao MST.

    O vnculo de origem da Educaodo Campo com os trabalhadores pobresdo campo, trabalhadores sem-terra, semtrabalho, mas primeiro com aqueles jdispostos a reagir, a lutar, a se organizarcontra o estado da coisa, para aos poucosbuscar ampliar o olhar para o conjunto dostrabalhadores do campo.

    5 Para uma anlise histrica da educao rural e o que representa importante uma retomada dos documentos principais daarticulao nacional por uma Educao do Campo e suas referncias bibliogrficas principais, a comear pelo texto de Calazans,Maria Julieta Costa. Para compreender a educao do Estado no meio rural traos de uma trajetria, (Therrien e Damasceno, 1993).6 ... a crtica h de se construir sobre a base de que no existem nem o homem abstrato, nem o homem em geral, mas o homem quevive dentro de uma dada sociedade e num dado momento histrico, que est determinado pela configurao social e pelodesenvolvimento histrico concretos, independentemente de que, por sua vez, possa e deva atuar sobre eles (Enguita, 1993, p. 79).

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    Talvez esta seja a marca maisincmoda da Educao do Campo(inclusive para certas ortodoxias deesquerda) e sua grande novidade histrica:os sujeitos que pe em cena comoconstrutores de uma poltica de educaoe de uma reflexo pedaggica. como seouvssemos de diferentes lugares polticosinterpelaes como as seguintes (ainda quenem sempre ditas nestes termos):

    Como assim desgarrados da terra,como assim levantados do cho7 exigindodireitos, cobrando polticas especficas, discutindoeducao, produzindo conhecimento? Puxandoa frente das lutas, buscando transformaosocial? Ento os camponeses tambm queremestudar? E pretendem conceber sua escola, seuscursos? Discutir com professores deUniversidade?

    S podem ser baderneiros, bandidos,terroristas...

    Mas algum j no disse que camponesesso sempre reacionrios e no so capazes de seorganizar e agir como classe?

    E o proletariado, a classe operria, ospartidos polticos que deveriam lhes dar direo?Como ousam agir politicamente em nome daclasse trabalhadora?

    Talvez seja este protagonismo queo percurso da Educao do Campo, feitodesde as condies objetivas dodesenvolvimento histrico concreto,questiona/tensiona e que tantos buscamdeslocar, ainda que com objetivos em tesepoliticamente contrrios: deslocar dosmovimentos sociais, dos trabalhadores, doscamponeses, dos oprimidos...

    Na sua origem, o do da Educaodo Campo tem a ver com esseprotagonismo: no para e nem mesmocom: dos trabalhadores, educao do

    campo, dos camponeses, pedagogia dooprimido... Um do que no dado, mas queprecisa ser construdo pelo processo deformao dos sujeitos coletivos, sujeitosque lutam para tomar parte da dinmicasocial, para se constituir como sujeitospolticos, capazes de influir na agendapoltica da sociedade. Mas que representa,nos limites impostos pelo quadro em quese insere, a emergncia efetiva de novoseducadores, interrogadores da educao,da sociedade, construtores (pela luta/presso) de polticas, pensadores dapedagogia, sujeitos de prticas.

    Do ponto de vista metodolgico ede balano poltico importante noperder a questo que nos pode ajudarnuma anlise em perspectiva: o que jhouve de semelhante na histria daeducao brasileira e o que isso projeta emrelao s tendncias da educao dofuturo? E para a anlise do momento atual preciso perguntar sobre as tendncias deavano ou de recuo do protagonismo dosMovimentos Sociais no mover-se daEducao do Campo hoje.

    A Educao do Campo continuauma tradio pedaggica emancipatria

    A Educao do Campo,fundamentalmente pela prxis pedaggicados Movimentos Sociais, continua e podeajudar a revigorar a tradio de umaeducao emancipatria, retomandoquestes antigas e formulando novasinterrogaes poltica educacional e teoria pedaggica. E faz isso, diga-senovamente, menos pelos ideaispedaggicos difundidos pelos seusdiferentes sujeitos e mais pelas tenses/contradies que explicita/enfrenta no seumovimento de crtica material ao atualestado de coisas.

    7 As expresses como assim, desgarrados da terra e levantados do cho se referem indagao irnica da poesia militantede Chico Buarque de Holanda na cano Levantados do Cho feita para o MST, tambm homenageando a obra de JosSaramago e a exposio Terra do fotgrafo Sebastio Salgado.

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    A Educao do Campo retoma adiscusso e a prtica de dimenses oumatrizes de formao humana quehistoricamente constituram as bases, ospilares da pedagogia moderna maisradicalmente emancipatria, de basesocialista e popular e de referencialterico marxista, trazendo de volta osentido de uma modernidade dalibertao (Wallerstein, 2002, pg. 133-50). Refiro-me como pilares ao vnculoentre educao e trabalho, (no comopreparao para da pedagogia liberal,mas como formao desde da pedagogiasocialista), centralidade dada relaoentre educao e produo (nos mesmosprocessos que produzimos nosproduzimos como ser humano), aovnculo entre educao e cultura, educaoe valores ticos; entre conhecimento eemancipao intelectual, social, poltica(conscientizao). Trata-se, afinal, derecolocar para discusso da pedagogia aconcepo da prxis como princpioeducativo, no sentido de constituidorafundamental do ser humano (Marx).

    E esta retomada vem exatamente daexigncia do pensar a especificidade:considerar a realidade do campo naconstruo de polticas pblicas e depedagogia significa considerar os sujeitosda educao e considerar a prtica socialque forma estes sujeitos como sereshumanos e como sujeitos coletivos. E nopretender que a educao/a pedagogiavalha e se explique por e em si mesma.

    Uma retomada que tambm arecuperao de uma viso mais alargadade educao, algo que j aparece comotendncia de muitas prticas e reflexesneste novo sculo: no confundireducao com escola nem absolutizar aeducao escolar, como fez no discurso a

    pedagogia moderna liberal, para que ocapital pudesse educar mais livrementeas pessoas em outras esferas (umaarmadilha em que muitos pedagogos deesquerda tambm caram). precisopensar a escola sim, e com prioridade, massempre em perspectiva, para que se possatransform-la profundamente, na direode um projeto educativo vinculado aprticas sociais emancipatrias maisradicais8.

    Parece, alis, que essa relao daEducao do Campo com a escolaincomoda a alguns: nasceu lutando porescolas e escolas pblicas (atravs do MSTfazendo a luta por escolas nosacampamentos e assentamentos), continuacentrada nisso, e ao mesmo tempo nasceu,desde a radicalidade da Pedagogia dosMovimentos Sociais, afirmando queeducao mais do que escola...,vinculando-se a lutas sociais por umahumanizao mais plena: luta pela terra,pelo trabalho, pela desalienao dotrabalho, a favor da democratizao doacesso cultura e a sua produo, pelaparticipao poltica, pela defesa do meioambiente...

    Desde os Movimentos Sociais aEducao do Campo nasceu trazendonovas (e velhas) interrogaes polticaeducacional e teoria pedaggica prpriasdos tempos modernos (isso tambmincomoda a uns quantos).

    Do ponto de vista da poltica deacesso educao talvez o que maisincomode a idia do direito coletivoversus a idia liberal do direito individual. s pensar na reao que hoje se manifestaem relao s turmas do PRONERA9 em

    8 Aqueles que defendem a educao na perspectiva da classe trabalhadora, mas que sem vacilao acreditam ainda hoje que dizereducao igual a dizer escola (ou que a escola a referncia necessria para pensar qualquer processo educativo mais avanado)sentem-se desconfortveis em relao Educao do Campo. E que bom que seja assim. Porque se o do campo for entendido comoum tipo especfico de escola poder justificar estragos considerveis na educao dos trabalhadores (sentido que certamente nocorresponde viso dos prprios trabalhadores em questo).9 Programa Nacional de Educao na Reforma Agrria, criado em 1998, no mesmo contexto de luta dos Movimentos Sociais queconstituram a Educao do Campo.

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    diversos setores da sociedade. O coletivopressiona mais o sistema e sendo estecoletivo originrio dos pobres do campovolta a reao: como assim? E o direitocoletivo interroga com mais fora ocontedo das polticas e da prpriaeducao. No qualquer acesso. No qualquer formao. Ou seja, a Educao doCampo ao tratar de uma especificidade, epelo jeito de faz-lo, configura-se comouma crtica forma e ao contedo do quese entende ser uma poltica pblica e aomodo de constru-la em uma sociedadecindida socialmente como a nossa.

    Do ponto de vista da teoriapedaggica h interrogaes importantesque merecem ser aqui ao menosbrevemente indicadas:

    1) Os Movimentos Sociaistrouxeram a discusso sobre a suadimenso educativa. Os MovimentosSociais Camponeses vm formulando areflexo sobre uma Pedagogia doMovimento10, afirmando a luta social e aorganizao coletiva (constituidoras doMovimento Social) como matrizesformadoras. Essa formulao em boamedida j est em Marx na sua concepode prxis ao mesmo tempo como produoe transformao do mundo (que tem notrabalho sua centralidade, mas que vaialm dele), porm no tinha sidodesdobrada/elaborada pela rea dapedagogia (que se centrou mais na reflexosobre o trabalho e a cultura), a no serindiretamente, com outra nuance, em

    Paulo Freire, na sua Pedagogia doOprimido11.

    Que implicaes esta experinciaformativa de quem participa deMovimentos Sociais traz no pensar umapedagogia emancipatria e com objetivosde formar os sujeitos da transformaosocial? Que lies de pedagogia possvelapreender da vivncia em processos deluta social e organizao coletiva paradiferentes prticas pedaggicas, inclusiveaquelas desenvolvidas na escola?

    2) O vnculo entre educao etrabalho, central na concepo de umaeducao emancipatria, e na prpriaconcepo da prxis como princpioeducativo, quando se desdobrou nareflexo especfica sobre uma pedagogiado trabalho, teve como objeto central dereflexo terica o trabalho na sua formaurbano-industrial (Gramsci, Makarenko,Pistrak,...). Da mesma forma hoje, quandose reflete sobre integrao entre educaobsica e formao especfica para otrabalho, o olhar se coloca para a lgicado trabalho que predomina nas cidades.

    A Educao do Campo ao retomaresta reflexo sobre a relao entreeducao e trabalho se pergunta einterroga a teoria pedaggica: o quesignifica pensar a relao educao etrabalho, e fundamentalmente osprocessos de formao humana ou deproduo do ser humano, tendo por baseos processos produtivos e as formas de

    10 Considerar que a Pedagogia do Movimento foi na origem da Educao do Campo sua mediao fundamental, enquantoconcepo pedaggica, de educao.11 Desenvolvo uma reflexo sobre a Pedagogia do Movimento e sua relao com a concepo de prxis como princpio educativono texto Teses sobre a Pedagogia do Movimento (2005): na concepo da prxis como princpio educativo em Marx cabemdiferentes matrizes pedaggicas: o trabalho, a cultura, a luta social, a organizao coletiva. E seu raciocnio nos ajuda a compreenderque nenhuma matriz pedaggica deve ser vista isoladamente ou deve ser absolutizada como matriz central ou nica (de uma vezpara sempre, a qualquer tempo e lugar); nenhuma das matrizes tem fora material suficiente para dar conta sozinha da complexidade(que se revela cada vez maior) da formao humana. O ser humano se forma pela ao combinada, que s vezes tambmcontraditria, de diferentes matrizes pedaggicas; dependendo das circunstncias a influncia principal pode vir de uma ou deoutra matriz, mas nunca a educao de uma pessoa, ou de um coletivo, ser obra de um nico sujeito pedaggico. verdade queexistem diferenas de natureza entre as matrizes formadoras. O trabalho a prtica social bsica de constituio do ser humano(embora no a esgote) e para Marx tem centralidade na prpria conformao da prxis.

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    trabalho prprias do campo? Qual apotencialidade formadora e deformadoradas diferentes formas de trabalhodesenvolvidas atualmente pelostrabalhadores do campo? E queconhecimentos so produzidos por estestrabalhadores (e so deles exigidos notrabalho) que se subordinam lgica daagricultura industrial e de negcio e, nocontraponto, por aqueles que hojeassumem o desafio de reconstruoprtica de uma outra lgica de agricultura,a agricultura camponesa do sculo XXI,que tenha como princpios organizadoresa soberania alimentar, o direito dos povoss sementes e gua, a agroecologia, acooperao agrcola? No mbito especficoda discusso sobre formao profissional,por exemplo, pensar na lgica daagricultura camponesa no pensar emum trabalho assalariado, que a formadesde a qual se pensa hoje, inclusive doponto de vista crtico, (nos debates domdio integrado desde a concepo dapolitecnia), a questo da formao dostrabalhadores para sua insero nosprocessos produtivos.

    3) Na reafirmao da importncia dademocratizao do conhecimento, do acessoda classe trabalhadora ao conhecimentohistoricamente acumulado, ou produzidona luta de classes, a Educao do Campotraz junto uma problematizao mais radicalsobre o prprio modo de produo doconhecimento, como crtica ao mito dacincia moderna, ao cognitivismo, racionalidade burguesa insensata; comoexigncia de um vnculo mais orgnico entreconhecimento e valores, conhecimento etotalidade do processo formativo.

    A democratizao exigida, pois, no somente do acesso, mas tambm da

    produo do conhecimento, implicando emoutras lgicas de produo e superando aviso hierarquizada do conhecimentoprpria da modernidade capitalista. Asquestes hoje da construo de um novoprojeto/modelo de agricultura, porexemplo, no implicam somente no acessodos trabalhadores do campo a uma cinciae a tecnologias j existentes. Exatamenteporque elas no so neutras. Foramproduzidas desde uma determinada lgica,que a da reproduo do capital e no a dotrabalho. Esta cincia e estas tecnologias nodevem ser ignoradas, mas precisam sersuperadas, o que requer uma outra lgicade pensamento, de produo doconhecimento. No caso do desafio atual emrelao agricultura camponesa,efetivamente no se trata de extenso, masde comunicao (Freire, 2001) com e entreos camponeses para produzir oconhecimento necessrio.

    Esta compreenso sobre anecessidade de um dilogo de saberesest em um plano bem mais complexo doque afirmar a valorizao do saberpopular, pelo menos na discussosimplificada que predomina em meioseducacionais e que na escola se reduz porvezes a um artifcio didtico vazio. O queprecisa ser aprofundado a compreensoda teia de tenses envolvida na produode diferentes saberes, nos paradigmas deproduo do conhecimento. E do pontode vista metodolgico isso tem a ver comuma reflexo necessria sobre o trabalhopedaggico que valorize a experincia dossujeitos (Thompson)12 e que ajude nareapropriao (terica) do conhecimento(coletivo) que produzem atravs dela,colocando-se na perspectiva desuperao da contradio entre trabalho

    12 Experincia aqui utilizada no sentido trabalhado por Thompson em suas obras, e particularmente no texto Educao eexperincia (2002).

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    manual e trabalho intelectual, que prpria do modo de organizao daproduo capitalista.

    Alguns intelectuais tm alertadopara o risco desta reflexo cair em umaespcie de relativizao do conhecimentoou da luta histrica da classe trabalhadorapelo acesso cincia, ao conhecimento queajuda a produzir pelo seu trabalho, masdo qual alienado. H sim este risco de secair numa postura relativista, embora hojebem mais presente em determinadosposicionamentos intelectuais do que nasprticas e lutas concretas dostrabalhadores. Porm preciso perguntarse negar a contradio produzida pelocapitalismo no modo de produo doconhecimento, que absolutizou a cinciaou a racionalidade cientfica, ou uma formadela, ao mesmo tempo em que a fez refmde uma lgica instrumental a servio dareproduo do capital e definiumecanismos de alienao do trabalhadorem relao ao prprio conhecimento queproduz pelo seu trabalho, no um riscoainda maior para nossos objetivos desuperao do capitalismo.

    Do ponto de vista de um balanoprojetivo da Educao do Campo nestaquesto especfica da tradio pedaggicaque assumiu continuar, precisoperguntar at que ponto esta mensagemest chegando aos educadores e seducadoras do campo e se estas novasinterrogaes esto entrando em algumamedida na agenda da elaborao terica edo debate pedaggico da educao dostrabalhadores de nosso tempo.

    Afirmao das Escolas do Campo

    Uma questo especfica colocadapela Educao do Campo tanto polticaeducacional como teoria pedaggica diz

    respeito concepo de escola e discusso sobre uma escola do campo.

    Novamente escutemos umainterpelao freqente: como assim umaescola do campo? Ento a escola no escola em qualquer lugar, em qualquertempo, seja para quem for? E por que nuncase fala de uma escola da cidade? Poracaso a Educao do Campo defende umtipo de escola diferente para as famliasdos trabalhadores do campo? E nossodebate histrico sobre a escola unitriaonde fica?

    No. A crtica originria daEducao do Campo escola (ou ausncia dela) nunca defendeu um tipoespecfico de escola para os trabalhadoresdo campo. Sua crtica veio em doissentidos: - sim, a escola deve estar em todosos lugares, em todos os tempos da vida,para todas as pessoas. O campo um lugar,seus trabalhadores tambm tm direito deter a escola em seu prprio lugar e a serrespeitados quando nela entram e noexpulsos dela pelo que so... Como lugarde educao a escola no pode trabalharem tese: como instituio cuja forma econtedo valem em si mesmos, emqualquer tempo e lugar, com qualquerpessoa, desenvolvendo uma educao a-histrica, despolitizada (ou falsamentedespolitizada), assptica...

    O do campo, neste caso, retoma avelha discusso sobre como fazer umaescola vinculada vida real, no nosentido de apenas colada a necessidades einteresses de um cotidiano linear e desuperfcie, mas como sntese de mltiplasrelaes, determinaes, como questes darealidade concreta. Retoma a interrogaosobre a necessidade/possibilidade devnculo da escola, de seu projetopedaggico, com sujeitos concretos nadiversidade de questes que a vida reallhes impe. Uma escola cujos profissionais

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    sejam capazes de coordenar a construode um currculo que contemple diferentesdimenses formativas e que articule otrabalho pedaggico na dimenso doconhecimento com prticas de trabalho,cultura, luta social. 13

    Trata-se de uma reflexo que podenos ajudar a relembrar que continuamos simdefendendo e lutando pela escola unitria,mas que o unitrio no pode ser um falsouniversalismo (porque abstrato ou porquede alguma forma imperial, ou seja, tratarde uma particularidade como se ela fosseuniversal). O unitrio a sntese dodiverso e o campo historicamente no temsido considerado nessa diversidade. Porisso j h quem afirme que hoje no Brasil aconstruo da escola unitria passa pelaEducao do Campo.

    Como afirmou Walter Benjamin, epenso que vale para toda esta primeiraquesto de compreenso da constituiooriginria da Educao do Campo, averdade est na tenso entre o particulare o universal. Vale ento frisar/reafirmar:a Educao do Campo no nasceu comodefesa a algum tipo de particularismo,mas como provocao/afirmao destatenso entre o particular e o universal: nopensar a transformao da sociedade, oprojeto de pas, a educao, a escola... 14

    No mesmo raciocnio talvez sejaimportante reafirmar tambm que as lutase as prticas originrias da Educao doCampo nunca defenderam ou secolocaram na perspectiva de fortalecer acontradio inventada pelo capitalismoentre campo e cidade. A questo dereconhecer a especificidade dos processosprodutivos e formadores do ser humano

    que acontecem no campo, compreendercomo historicamente essa relao foiformatada como sendo de oposio,exatamente para que se explicitem ostermos sociais necessrios superaodesta contradio.

    Sobre as tenses/contradies dopercurso da Educao do Campo

    preciso considerar, como afirmeino incio destas notas, que o percurso curto e nossa capacidade de retrovisohistrica por isso ainda pequena. Mastalvez j seja possvel identificar algumasexpresses importantes do movimento darealidade, particularmente nestes 10 anosdo batismo, ou seja, identificar asprincipais tenses e contradiesconstituidoras deste percurso, para tentarperceber os principais desafios domomento atual.

    Destaco dois grandes focos detenses ou de concentrao dascontradies: o primeiro e principal estna prpria dinmica do campo dentro dadinmica do capitalismo e do acirramentodas contradies sociais que vem domovimento de expanso do capital,brutalmente acelerado no campo nestesltimos anos. O segundo diz respeito relao tensa (que na sociedade capitalistano tem como no ser contraditria) entrePedagogia do Movimento e polticaspblicas, relao entre Movimentos Sociaiscom projeto de transformao da sociedadee Estado.

    Note-se que no se trata decontradies da Educao do Campo emsi mesma, ou criadas pelo seu movimento

    13 Do ponto de vista do nosso balano projetivo da Educao do Campo cabe perguntar se essa a reflexo predominante hoje nasassim chamadas escolas do campo ou como se move o debate pedaggico feito em torno delas, pelos seus diferentes sujeitos.14 No se confunda esta posio com a viso de um ps-modernismo que defende a eliminao do universal em favor doparticular, o que a prpria expresso da armadilha ideolgica do neoliberalismo: cultuo o particular matando-o como possibilidadede ser includo no universal, j que supostamente a universalidade no mais importa...

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    especfico, mas sim as contradies queestando presentes no contexto de suaorigem foram delineando seu percurso, aomesmo tempo que tem sido explicitadas emexidas por ele. Por isso no podemdeixar de ser consideradas na interpretaoe no debate de balano e projeo daEducao do Campo.

    Educao do Campo e luta declasses

    O desenvolvimento da Educao doCampo acontece em um momento depotencial acirramento da luta de classes nocampo, motivado por uma ofensivagigantesca do capital internacional sobrea agricultura, marcada especialmente pelocontrole das empresas transnacionais sobrea produo agrcola, que exacerba aviolncia do capital e de sua lgica deexpanso sobre os trabalhadores, enotadamente sobre os camponeses15. Nocaso brasileiro, podemos observar comoesta lgica se realiza atravs de diferentese combinados movimentos, apenasaparentemente contraditrios entre si,porque integram uma mesma lgica:expulsa trabalhadores do campo aomesmo tempo em que promete inclu-losna modernidade tecnolgica doagronegcio; subordina a todos, dealguma forma, ao modelo tecnolgico quevem sendo chamado de agriculturaindustrial e mantm seus territrios detrabalho escravo.

    A ofensiva do capital no campo(talvez mais violenta na proporo daprpria crise estrutural do capital) esttornando mais explcitas as contradies dosistema capitalista, contradies que so

    sociais, mas tambm ambientais erelacionadas ao futuro do planeta, dahumanidade. O debate mundial que estsendo feito hoje sobre a crise alimentar emblemtico, inclusive para mostrar arelao campo e cidade. 16

    O agronegcio, representaoeconmica e poltica do capital no campo,tem feito tambm uma ofensiva de disputaideolgica na sociedade: sim, dizem osempresrios do campo, preciso acabar como latifndio improdutivo, mas atravs doagronegcio, da modernizao da agricultura,do campo e no da Reforma Agrria e dosMovimentos Sociais atrasados que ainda lutampor ela: o agronegcio que vai resolver osproblemas da produo de alimentos, de trazermais divisas ao pas... Mas por via dasdvidas, os grandes proprietrios no tmficado somente neste plano de luta:alegando que precisam de maistranqilidade para trabalhar (explorar otrabalho), tm promovido cada vez maisinvestidas de criminalizao dosMovimentos Sociais, ainda que nessecontexto de enfraquecimento do plo dotrabalho, dos trabalhadores, suas lutassejam hoje muito mais de resistncia doque de enfrentamento direto ao capital.Perigoso ser se alguns setores dasociedade passarem a escutar osMovimentos Sociais dando-se conta que adefesa do meio ambiente, por exemplo,exige o combate lgica de produo dealimentos prpria do agronegcio. Maiorperigo ainda se as organizaes ou osMovimentos Sociais aprofundarem suaatuao sobre as contradies do modeloatual, agora mais visveis pela crisemundial do capitalismo.

    A lgica de expanso do capitalismono campo, ou a lgica de pensar o campo

    15 Uma anlise da ofensiva das empresas transnacionais sobre a agricultura, j dentro dos marcos da crise recente do capitalfinanceiro pode ser encontrada no texto produzido por Joo Pedro Stedile, do MST, para a V Conferncia Internacional da ViaCampesina, outubro 2008.16 Algumas referncias para este debate especfico: Stedile, maio 2008, Carvalho, julho 2007 e Christoffoli, 2008.

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    como lugar de negcio, no inclui, noprecisa das escolas do campo, masparece j estar exigindo que a questo daeducao, e particularmente da educaoescolar dos trabalhadores do campo entre(ou volte) agenda poltica do pas:primeiro porque a chamadareestruturao produtiva chegandoagora ao campo requer uma mo-de-obramais qualificada, pequena verdade (eno estritamente formada para o trabalhoagrcola em si), mas numa demanda quej justifica o interesse dos empresriosrurais em discutir formao ou educaoprofissional, reajustes na vocao dasescolas agrotcnicas, novos currculospara os cursos de agronomia, cursossuperiores voltados diretamente gestodo agronegcio.

    Segundo, porque nesse contexto demodernizao da agricultura, onde achamada agricultura familiar deve seinserir para sobreviver (sobrevivero osmelhores, os mais modernos, aafirmao) j no parece to ruim que estesagricultores tenham acesso escolarizaobsica: espcie de exrcito de reservapara as demandas das empresas quecomandam os negcios agrcolas: mas issosem excessos, claro, porque afinal sempre bom poder contar com aalternativa do trabalho escravo em algunslugares (!) e o Estado precisa darprioridade s demandas especficas docapital e no gastar recursos na construode um sistema pblico de educao noprprio campo, que necessariamenteatenderia as demandas do plo dotrabalho.

    Terceiro, onde afinal existiremescolas para as famlias trabalhadoras docampo seja pela presso dos MovimentosSociais ou por concesso de empresashumanitrias, elas podem ser (j foramem outros tempos) um bom veculo dedifuso da ideologia do agronegcio:

    atravs da nova gerao modernizar asmentes para a nova revoluo verde, ados transgnicos, da tecnologiaterminator, da monocultura paranegcio, dos insumos qumicosindustriais, da maquinaria agrcolapesada, completamente submetida lgicada reproduo do capital. Em muitosestados este tipo de investida j tem sematerializado em materiais didticos oupara-didticos produzidos pelas prpriasempresas, muitas vezes com recursospblicos.

    E se tudo isso puder acontecer commais facilidade e agilidade porque hojeexiste nos governos a pasta da Educaodo Campo, viva a Educao do Campo!Apenas preciso tratar de afast-la dessesagitadores pr-modernos, ou de MovimentosSociais como o MST, que ainda continuamempunhando a bandeira da ReformaAgrria, da soberania alimentar eenergtica, da biodiversidade, do respeitoao meio ambiente...

    Nesse mesmo movimento darealidade h pelo menos outros doiselementos importantes: aumentou apresso dos Movimentos Sociais sobre osetor pblico, cobrando especialmente odireito de acesso escolarizao pblica,bsica e superior. Aumentou porque foramentrando novos movimentos ou gruposnessa presso: outras organizaes da ViaCampesina Brasil (o Movimento dosAtingidos por Barragens MAB, oMovimento das Mulheres Camponesas MMC, O Movimento dos PequenosAgricultores MPA, a Pastoral daJuventude Rural PJR, A ComissoPastoral da Terra CPT e a Federao dosEstudantes de Agronomia FEAB), omovimento sindical do campo(especialmente o vinculado Confederao Nacional dos Trabalhadoresda Agricultura CONTAG e Federaodos Trabalhadores da Agricultura Familiar

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    FETRAF). E aumentou porque o trabalhodos Movimentos Sociais e as suasconquistas destes anos, ainda que apenasde polticas focais, como o PRONERA, porexemplo, ajudaram a ampliar a conscinciado direito, mexer com o imaginrio doscamponeses: pensando bem, no verdadeque ns camponeses no precisamos de estudo eque no podemos continuar estudando... Almdisso, h todo um trabalho especfico coma militncia, feito por alguns MovimentosSociais, sobre o dever de estudar parapoder compreender melhor acomplexidade do momento atual da lutade classes. Por isso aumenta o nmero decursos de formao, em que pese o refluxoorganizativo e das lutas sociais de massa.

    O outro elemento diz respeito auma caracterstica da sociedade brasileiraque prima por discursos e documentosavanados, no plano de um ideriorepublicano e de uma democracia liberal,ainda que na prtica os desminta a todomomento: assim que temos, por exemplo,o ECA (Estatuto da Criana e Adolescente)h 18 anos, elogiado no mundo inteiro, edescumprido desavergonhadamente emcada esquina. nesta mesma lgica quefica difcil afirmar publicamente quedeterminada parcela da populao temmenos direito educao pblica do queoutros. Direito universal, individual(virtual, claro). E no caso da crtica de queveio tratando a Educao do Campo nestesdez anos, h um ingrediente a mais: afinalno fica bem para um pas emergentecomo o Brasil ter ndices de analfabetismoe de acesso educao bsica que sopuxados para baixo por culpa dapopulao rural e, ainda pior, o governofederal nem dispor de dados estatsticos

    especficos desta situao e que permitampelo menos anunciar sua disposio de teralgumas polticas nessa rea17.

    Este processo, nesses e noutrosaspectos que precisam ser complementa-dos em um esforo de anlise maiscompleta e rigorosa, talvez expliqueporque afinal a Educao do Campovingou, existe, entrou na agenda deGovernos, Universidades, MovimentosSociais; virou questo, embora no tenhase tornado poltica pblica, e menos aindapoltica de Estado. Na prtica, os governostm combinado polticas focais(importantes) de ampliao do acesso educao bsica e de formao deeducadores do campo com a manutenode polticas de fechamento de escolas oua retomada de programas aliengenascomo o da Escola Ativa, por exemplo.

    Algo que precisamos aprofundarem nosso debate que a tendncia defuturo, considerada a correlao de foraspolticas do movimento atual, parece sera de retrocesso ao outro plo dacontradio, pelo menos do ponto de vistada poltica de governos: um retorno educao rural, ou seja, de uma polticasim para a educao dos trabalhadores docampo, frise-se, para eles, a servio da novafase do capitalismo no campo, o quesignifica dizer, voltada para os interessesdo avano do capitalismo financeiro e dasempresas transnacionais sobre todos osaspectos da agricultura e do sistemaalimentar dos pases e do mundo (ViaCampesina, 2008, pg. 1).

    Ser este ento o principal balanodos dez anos de Educao do Campo: oque afinal conseguimos foi trazer de volta

    17 Especialmente a partir de 2003 comearam iniciativas do governo federal para garantir levantamento de dados especficos sobrea situao educacional da populao do campo. A partir de 2005 as pesquisas do INEP (Instituto Nacional de Estudos ePesquisas Educacionais Ansio Teixeira), vinculado ao Ministrio da Educao, incluem tambm o recorte de dados sobre escolasde assentamentos de Reforma Agrria.

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    agenda da poltica educacional do pasa educao rural, que na poca da primeiraConferncia Nacional de Educao doCampo em 1998, j tinha sido descartadacomo residual, atrasada, pelos governosneoliberais mais autnticos?

    O que naquele perodo no erapossvel enxergar como hoje, que o quadroem que o debate da Educao do Campoestava se inserindo era o de transio demodelos econmicos, que implicaria em umrearranjo do papel da agricultura naeconomia brasileira (capitalista), passandoa ter um lugar de maior destaque, s quepelo plo do agronegcio e projetando umamarginalizao ainda maior da agriculturacamponesa, da Reforma Agrria, ou seja, dasquestes e dos respectivos sujeitosoriginrios deste movimento18. Por issoalguns aliados que conseguimos em 1998para recolocar o rural na agenda do pas noso necessariamente aliados hoje na tomadade posio sobre que rural deve estar naagenda, inclusive da educao, entre oprojeto do agronegcio e o projeto daagricultura camponesa, de convivncia cadavez menos possvel no cenrio dereproduo (desenfreada ou desesperada?)do capital.

    Menos ainda podamos sabernaquele momento que dez anos depois estaprpria hegemonia estaria em crise e quesua primeira expresso mais explosivadiria respeito questo dos alimentos,explicitando que a ofensiva do capital sobrea agricultura est pondo em risco apossibilidade de alimentar o grandecontingente de pessoas do nosso planeta.

    Pedagogia do Movimento ePoltica Pblica

    O segundo grande foco de tensese contradies no percurso da Educao

    do Campo diz respeito relao entrePedagogia do Movimento e polticapblica ou na relao entre MovimentosSociais e Estado. No outro foco nosentido que acontea separado doprimeiro, bem ao contrrio. A distinoaqui para olhar o mesmo movimento darealidade desde um outro ngulo,relacionado aos sujeitos originrios daEducao do Campo.

    A Educao do Campo se construiupela passagem da poltica produzida nosMovimentos Sociais para o pensar/pressionar pelo direito do conjunto doscamponeses ou dos trabalhadores docampo. Isso implicou em um envolvimentomais direto com o Estado na disputa pelaformulao de polticas pblicasespecficas para o campo, necessrias paracompensar a histrica discriminao eexcluso desta populao do acesso apolticas de educao, como a tantasoutras. No tipo de sociedade em quevivemos bem se sabe em que jogo polticoisso se insere, ou seja, em que correlaode foras e opo de classe se move esteEstado.

    A dimenso da poltica pblica estna prpria constituio originria daEducao do Campo, mas suaconfigurao e mesmo sua centralidadefoi definida no processo, com a ampliaodos sujeitos envolvidos e das articulaespolticas, e pelas novas possibilidadesabertas por um governo federal como ode Lula da Silva. No por acaso a IIConferncia Nacional de Educao doCampo de 2004 que confirma a foraassumida pela luta por uma polticapblica de Educao do Campo, atravsdo lema aprovado pelos seusparticipantes: Educao do Campo:direito nosso, dever do Estado.

    18 importante ter presente que a Educao do Campo se desenvolve exatamente no perodo do capitalismo em que se consolidao predomnio do capital monetrio (ou financeiro) que, como nos ajuda a analisar Virgnia Fontes (2008), uma forma bastantepeculiar de fuso dos diferentes tipos de capital (industrial, comercial, bancrio) que traz implicaes fundamentais sobre aforma das relaes sociais necessrias para a reproduo do capital e que atingem, particularmente hoje, a agricultura.

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    importante ter presente umasutileza que marca a Educao do Campo:o MST desde o seu incio lutou por escolaspblicas, mas at o momento de entradana Educao do Campo no tinha colocadoem sua agenda de debates e de lutas aquesto da poltica pblica, de pensar aeducao para alm de si mesmo, ou paraalm da esfera dos Movimentos Sociais, depressionar o Estado a garantir direitos parao conjunto da populao do campo, debuscar interferir, afinal, no desenho dapoltica educacional brasileira.

    O percurso da Educao do Campofoi desenhando a dimenso da polticapblica como um dos seus pilaresprincipais, na tenso permanente de queesta dimenso no engolisse a memriae a identidade dos seus sujeitos originrios,tenso tanto mais acirrada pela lgica dapoltica pequena que domina ogerenciamento do Estado brasileiro, algono de todo compreendido pelosMovimentos Sociais (agora talvez umpouco mais do que antes...).

    Esta focalizao de lutas, dearticulaes, de prticas, em torno dapoltica pblica vem representando aomesmo tempo um avano e um recuo, umalargamento e um estreitamento,radicalizao e perda de radicalidade napoltica dos Movimentos Sociais do Campoem relao educao. um salto dequalidade no sentido de superaodialtica do momento anterior, sobre o quede fato ainda no se tem condiesobjetivas (tempo histrico) de analisar commais profundidade, mas em torno dasquais j possvel arriscar algumaspercepes.

    Em termos ainda elementares deanlise, podemos afirmar que o avano, ouo salto de qualidade, tem a ver com anecessria articulao entre os prpriosMovimentos Sociais, dos MovimentosSociais com outras foras, outros sujeitos,materializando uma perspectiva muitasvezes defendida no iderio de cada

    Movimento, mas difcil de concretizar, que a de romper com corporativismos,particularismos, interesses imediatos. Issoimplica em outro avano, que o depensar o pblico recuperando o seusentido originrio de um espao prprioaos interesses do povo, da maioria dapopulao (e no como um lugar ou umapoltica subordinada a um Estado declasse); espao, nesse sentido, dedemocratizao da participao poltica(governo do povo). Para os MovimentosSociais, lutar pela Educao do Campo passar a pensar na educao do conjuntoda classe trabalhadora e buscar pautardessa forma, em uma perspectiva declasse, a questo da poltica educacional.E no especfico de organizaes como oMST, significa passar a compreender quea ocupao da escola pelo Movimentoprecisa ser feita/pensada comoapropriao da escola pelos trabalhadores,pelo seu projeto histrico e no apenaspelos interesses imediatos da organizao,por mais justos, politizados e amplos queeles possam ser.

    Entrar na disputa de forma econtedo de polticas pblicas, comobuscam fazer os sujeitos da Educao doCampo, de fato entrar em uma disputadireta e concreta dos interesses de umaclasse social no espao dominado pelaoutra classe, com todos os riscos (inclusivede cooptao) que isso implica, mastambm com essas possibilidades dealargamento de compreenso da luta declasses e do que ela exige de quemcontinua acreditando na transformaomais radical da sociedade, na superaodo capitalismo.

    Esta a radicalizao, e nestaradicalizao talvez a grande novidadehistrica da Educao do Campo, mas quepode implicar, j tem implicado nestepercurso to breve, em perda deradicalidade. A radicalizao tem a ver,pois, com o alargamento de perspectiva:no h como construir um projetoalternativo de campo em nosso pas semampliar as lutas, sem ampliar o leque de

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    alianas, inclusive para alm do campo; eno tem como avanar em transformaesimportantes sem incluir na agenda de lutasa questo da democratizao do Estado,com todas ou por todas as contradies queisso encerra. E para cada Movimento Socialem particular, no h justificativa paraocupar-se da educao, e da educao doconjunto dos trabalhadores, se no for porobjetivos relacionados a lutas mais amplas.

    A perda de radicalidade, por sua vez,tem a ver com concesses e estreitamentos,que tambm podem ser entendidos comorecuos, retrocessos. Na sociedade em queestamos e numa correlao de foras todesfavorvel aos trabalhadores e prpriaidia de transformaes sociais maisradicais, no se espere que o Estadobrasileiro, e nem mesmo que os governosde planto, aceitem (1) uma poltica deeducao que tome posio (prtica) por umprojeto popular de agricultura, dedesenvolvimento do campo, do pas, queajude a formar os trabalhadores para lutarcontra o capital e para construir outro sistemade produo, outra lgica de organizaoda vida social (que exatamente o objetivooriginrio da Educao do Campo). E (2)que aceitem os Movimentos Sociais comoprotagonistas da Educao do Campo, queaceitem os trabalhadores pobres do campocomo sujeitos da construo (forma econtedo) de polticas pblicas, ainda queespecficas para sua prpria educao. Sefosse assim, a hegemonia do Estado jseria outra.

    O estreitamento que vem sendopercebido no percurso da Educao doCampo , pois, de tentativa, especialmentedos governos, de fazer uma assepsiapoltica, especialmente pelo deslocamento

    dos seus protagonistas originrios: afinal,parecem pensar muitos gestores pblicos,para que continuar ouvindo osMovimentos Sociais se sua bandeira j estincorporada nos discursos e documentosdos governos? melhor que o sistemacuide da Educao do Campo porque jsabe como fazer isso. Ademais, osMovimentos tem o mau costume depolitizar a educao e isso no bom parao sistema! E deslocar a centralidade dosMovimentos Sociais no debate daEducao do Campo acaba sendo tambmuma forma de alterar seu contedopoltico-pedaggico de origem, buscandoenfraquecer ou relativizar ao mximo umapossvel influncia de concepes deeducao sobre outros sujeitos,notadamente sobre os educadores dasescolas do campo19.

    H um outro detalhe significativoneste estreitamento: na lgica dominantede formulao de polticas pblicas emesmo do sistema educacional, poltica deeducao s pode ser poltica de educaoescolar. Da a tenso permanente: para osistema Educao do Campo trata deescolas, o que representa um recuo radicalna concepo alargada de educaodefendida pelos Movimentos Sociais, pelaPedagogia do Movimento. No mbito daspolticas isso se tenta resolver lutando pordiferentes polticas, relacionadas produo, cultura, sade. Precisa teruma pasta de Educao do Campo quaseem cada ministrio (ou secretaria deestado) para garantir fragmentos querelembrem a viso de totalidade originriana esfera dos direitos.

    Alm disso, estreita-se peloenquadramento: a presso social trouxe

    19 preciso levar em conta que a tradio pedaggica vinculada a processos sociais emancipatrios historicamente teve poucainfluncia sobre os educadores brasileiros, especialmente sobre os professores de escola e sobre as instituies responsveis pelasua formao inicial. Neste sentido, no algo pouco importante que atravs da Educao do Campo certas reflexes e certostextos da tradio pedaggica socialista e popular sejam no apenas retomados, mas passem a ser conhecidos por educadoresque de outra forma no teriam acesso a eles.

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    ao debate a idia da especificidade, masno momento da formulao de umapoltica a tendncia nunca o especfico(pela novidade do contedo) alterar aforma, mas sim o especfico ter que seenquadrar na forma j instituda, ainda queseja a forma que contribuiu para a exclusoe a discriminao que justificaram adiscusso da especificidade (!). Algo umpouco diferente se admite hoje em algumaspolticas focais, recortadas no tempo, noespao, nos sujeitos, mas que ento no seconfiguram como polticas efetivamentepblicas, de perspectiva universalizante.

    Diga-se de passagem, estas polticasfocais20 tm sido marca do governo atual,notadamente o federal e preciso dizer queso importantes no jogo poltico, porquefazem emergir as contradies estruturais,e por isso mesmo so to, e cada vez mais,combatidas pelas foras polticasdominantes.

    Nos Movimentos Sociais do Campo,ou pelo menos em alguns deles, estaquesto das polticas pblicas, ou de darprioridade luta pela democratizao doEstado a favor dos interesses sociais dostrabalhadores tem sido foco de tenses emotivado debates intensos. s vezes chegaa parecer para alguns que se trata de umaescolha: ou ficamos com a Educao doCampo (entendida ento como polticapblica) ou com a Pedagogia doMovimento como se as contradiespudessem se resolver no plano do iderioe no da realidade; como se no houvessecircunstncias objetivas condicionando ocaminho seguido at aqui.

    Nesta mesma perspectiva, j integrao percurso da Educao do Campo ummovimento de crtica terica vindo de

    setores de esquerda, notadamenteacadmicos. Algo que precisa ser analisadocom mais rigor, mas que me atrevo a dizerque em alguns casos acaba se somando sforas que buscam reviver a lgica perversada educao rural, sem precisar brigar poresse nome (como ainda fazem algunsgovernos mais retrgrados como o do RioGrande do Sul, por exemplo). Estou mereferindo a dois tipos de crticas que tmaparecido em alguns textos ou exposiesmais recentes, pontuais: uma a de que aEducao do Campo seria politicamenteconservadora por se misturar com oEstado (burgus) e ento no ter comoportar objetivos de transformao social. Ea outra de que a especificidade a condena aser divisionista da classe trabalhadora e,pior, trabalhando com a parcela doscamponeses, s pode ser reacionria.

    Estas posies, alm de fortementeidealistas parecem retomar, sem explicitar,aquela viso de como assim, camponeses?Porque talvez isso de fato estranhe amuitos: como entender que umMovimento Social, como o MST, de basesocial camponesa, radicalize as lutas deenfrentamento direto ao capital e ao mesmotempo aceite participar de debates deformulao de polticas de governo, aindaque depois no seja considerado nelas?Uma anlise mais histrica das prpriastransformaes na luta pela ReformaAgrria, provocadas pela prpriadinmica contraditria do capitalismo,certamente colocaria a questo muito maisno plano dos impasses do que no daestranheza ou mesmo da incoerncia.

    fundamental no perdermos natrajetria da Educao do Campo acentralidade da dimenso da crtica prticaque somente assegurada pelos seussujeitos mais diretos: os trabalhadores do

    20 Polticas focais no sentido de programas especficos que se colocam na perspectiva de polticas, a exemplo hoje do PROCAMPO(cuja ao principal a Licenciatura em Educao do Campo) e do Programa Saberes da Terra.

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    campo, no movimento real (contraditrio)de formao de sua conscincia, deconstruo de seu projeto, inclusiveeducativo. Se deslocarmos estacentralidade em nome da afirmaoobstinada de princpios abstratos,poderemos, sem querer, estar ajudando aeliminar as contradies no plano dasidias, o que na prtica significa hoje,repetindo e no repetindo a histria,reforar politicamente o plo daeducao rural.

    Sobre impasses e desafios do mo-mento atual

    Nestas notas penso, sobretudo, nosimpasses relacionados atuao dosMovimentos Sociais em relao Educaodo Campo, pela importncia atual daretomada deste protagonismo e,especialmente na relao com o Estado, dodesafio de manter vivo o contraponto daPedagogia do Movimento. Desafio queno apenas dos prprios MovimentosSociais, mas de todos os sujeitoscomprometidos com o projeto poltico-pedaggico originrio da Educao doCampo, atravs de uma ao polticaarticulada e no por fragmentos, como seest tendendo a fazer hoje.

    Uma questo que me parece crucialpara o debate dos impasses do momentoatual que estamos diante de um riscoefetivo de recuo da presso dosMovimentos Sociais por polticas pblicasde Educao do Campo seja pelo refluxogeral das lutas de massas, econseqentemente o enfraquecimento dosMovimentos Sociais, acuados pelanecessidade de garantir sua sobrevivnciabsica, seja pelo receio de contaminaoideolgica ou de cooptao pelo Estado,ou at pela falta de consenso sobre o papelda educao na luta de classes e nestemomento histrico em particular. Entendo

    que este recuo seria um retrocesso histricopara a classe trabalhadora e para a histriada educao brasileira.

    Um recuo quantitativo e qualitativo.No meio de todas as contradiesmencionadas e dos limites prticos que acorrelao de foras impe ao projeto dostrabalhadores, talvez se possa afirmar quenunca estivemos no pas numa situaocomo a atual em relao ampliao danoo/conscincia do direito educaoentre os camponeses (pelo menos entreaqueles com alguma aproximao aorganizaes coletivas) e aoreconhecimento deste direito pelasociedade.

    Nesse sentido o desafio para osMovimentos Sociais aumentar a pressopela massificao das lutas para alm dostrabalhadores que os integram, mostrandona prtica a falcia do discurso liberal dauniversalizao do acesso educao. Evincular esta luta a outras lutas sociais queassumem o carter de luta de classes,mantendo a contradio instalada.

    importante ter presente que orecuo dos Movimentos Sociais na luta pelaeducao significa uma diminuiodrstica da presso pela conquista dedireitos j reconhecidos pela sociedade,pelo retorno dimenso do direitoindividual, abstratamente universal,diminuindo a tenso entre o particular e ouniversal, entre direitos individuais esujeitos coletivos de direitos.

    O impasse tem a ver com atendncia crescente (e compreensvel pelalgica da sociedade em que aindavivemos) de fortalecer na discusso eimplementao (precria) da polticapblica de Educao do Campo a lgicado sistema em geral, pressionando peloesvaziamento do seu contedoemancipatrio originrio e pela ampliaoda dimenso regulatria, buscando detodo modo enquadrar na ordem dadademandas que so da contra-ordem.

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    Esse impasse est nos MovimentosSociais e no governo atual, especialmenteo federal, ainda que por motivosdiferentes e com um contedo diferente.Se a presso dos Movimentos Sociaisdiminuir o governo no conseguiravanar sequer nas polticas focais earranhar polticas pblicas que lhepermitam alterar estatsticas, ficar bem nafoto da universalizao dos direitosliberais. Porque o agronegcio podeatender suas demandas de outra forma, oque historicamente tambm tem includoo uso do sistema pblico para formaode seus quadros (atravs das escolastcnicas e agrotcnicas federais, porexemplo). Tenta usar a Educao doCampo a seu favor, mas no precisa de umsistema pblico de educao no campopara isso (at porque ele pode ser perigosoaos seus interesses, em mdio prazo). Poroutro lado se os governos no tiram dofoco da Educao do Campo osMovimentos Sociais, seu protagonismo, huma traio lgica estrutural da polticainstituda e ao projeto de classe do Estadoque representam. Algo que no ousam (ounem pensam) fazer em outras reas,tampouco ousariam nessa.

    Para os Movimentos Sociais deprojeto poltico mais radical o impasseparece estar no seguinte: seu potencial deavano corporativo est em vias deesgotamento, nessa rea da polticaeducacional como em outras. E enquantono se vislumbram mudanas maisestruturais na sociedade, seu avano (ousobrevivncia) no pode prescindir daslutas (que podem ser mais ou menosradicais) pela democratizao do Estadoem favor dos trabalhadores. No h comomassificar o acesso da base social dosMovimentos, e muito menos do conjuntodos camponeses, educao bsica sem amediao hoje da Educao do Campo(com este nome ou outro), na suadimenso de poltica pblica (plena ou

    parcial). E parece cada vez mais difcilavanar na formao poltica dostrabalhadores para compreender arealidade do capitalismo brasileiro semuma base geral de educao anteriorfornecida pela educao escolar, ainda quede contedo pouco emancipatrio.

    Por outro lado, conformar-se com aregulao do Estado parece incoerentecom os objetivos polticos dessesMovimentos e mais, pode ter mesmo umefeito despolitizador de sua base ou de suamilitncia se no houver um trabalhopedaggico adequado, uma poltica deformao que permita entender o quemesmo est em questo quando se faz estarelao com o Estado. E na prtica, j sedisse antes, no to simples manter-sefiel Pedagogia do Movimento quando setenta ser sujeito de polticas pblicas numasociedade como a nossa, ainda que se saibaque exatamente o contedo da primeiraque pode pressionar pela alterao daforma da segunda.

    Um grande desafio para osMovimentos Sociais na superao dessesimpasses no confundir a Educao doCampo com a Pedagogia do Movimento eao mesmo tempo no trabalh-las em umaviso antinmica, como coisas separadas.Se os Movimentos Sociais entenderem aEducao do Campo somente na suadimenso de poltica pblica e deeducao escolar e continuarem a presso,mas apenas pelo direito, recuando nadisputa pelo contedo da poltica e pelaconcepo de campo e de educao,estaro abrindo mo da identidade queajudaram a construir e estaro eliminandoa contradio pelo plo da educao ruralmodernizada.

    Por outro lado, preciso entenderque a luta pela Educao do Campo nosubstitui a construo histrica daPedagogia do Movimento, e da construodo projeto de educao de cada Movimento

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    Social, naquele sentido alargado de umaeducao vinculada a processos de lutasocial organizada, capaz de mexer naestrutura de valores, na viso de mundodos camponeses, de modo que assumam aperspectiva de construo de um projetode campo que se situe para alm docapital (Mszros, 2005), e que essaeducao deve ser feita de forma menostutelada e escolarizada e desde asdemandas prprias da formao dosmilitantes da organizao, mas nanecessria perspectiva de classetrabalhadora unificada na luta contra ocapitalismo. Se no for assim faltar oacmulo de radicalidade para a prpriadisputa do contedo e do destino histricoda Educao do Campo.

    Juntando os dois movimentos, o quese busca afinal uma ampliao deperspectiva, necessria para alimentarlutas sociais conseqentes pelatransformao das condies de vida dostrabalhadores e pela projeo de relaessociais menos degradantes do ser humano.

    A retomada do protagonismo dosMovimentos Sociais na Educao doCampo hoje um grande desafio e quepassa por uma interpretao mais rigorosae pela difuso ampliada da compreensodesse momento da luta de classes, queinclui o debate das contradies da faseatual do capitalismo e as conseqnciasque traz para a agricultura e para a vida(ou morte) dos camponeses, bem comopara o conjunto da sociedade. Estamosentrando em um perodo muito propciopara esse debate, e a questo da produode alimentos pode ser uma boa porta de

    entrada discusso da realidade ou doquadro em que nossas aes educativasse inserem. Este debate precisa ser feitocom os diferentes sujeitos da Educao doCampo, mas especialmente com osprprios trabalhadores e suas famlias, ecom os educadores das escolas do campo.

    O mesmo desafio passa pelaretomada ou pelo fortalecimento dovnculo orgnico da Educao do Campo(enquanto crtica, enquanto prticas eenquanto disputa poltica) com as lutas deresistncia dos trabalhadores do campo ea construo de um projeto de agriculturaque tenha outra lgica que no esta quepassou a dominar o mundo, que a daagricultura com o objetivo do negcio,fazendo dos alimentos e da terra umobjeto a mais da especulao do capitalfinanceiro, em detrimento das pessoas(Via Campesina, 2008). Esta outra lgica hoje identificada pelo contraponto daagricultura camponesa21, comprometidacom uma forma de produo que garantaa alimentao dos povos do mundo, decada povo, de todas as pessoas,desafiando-se tambm a repensar aconcepo tradicional de agricultura dosprprios camponeses, agricultoresfamiliares, trabalhadores rurais.

    O vnculo da Educao do Campocom o projeto da agricultura camponesa seu destino de origem, mas no estdado e ao contrrio, somente serconstrudo no enfrentamento concreto dastendncias projetadas pelas contradiesem que seu percurso foi constitudo,potencializando as contradies da

    21 preciso ter presente nesta discusso um aspecto que no ser aprofundado neste texto, mas que integra a agenda de estudose debates da Educao do Campo: a identificao camponesa indica aqui um contraponto poltico e econmico de lgicas deproduo e de insero social, que no se compreende sem a ressignificao ou mesmo a rediscusso do conceito de campons queintegra o debate atual sobre projetos de campo. Ou seja, a agricultura camponesa entendida como uma categoria terica e polticano contexto do confronto de projetos (agronegcio X agricultura camponesa) e no em si mesma.

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    realidade social mais ampla explicitadaspelo momento de crise estrutural docapitalismo, um enfrentamento quedificilmente ser protagonizado por outrossujeitos que no os Movimentos Sociaisque hoje assumem o embate de projetoscomo sua ao poltica principal.

    A insero neste embate implica emcolocar na agenda poltica e pedaggicadas lutas e das prticas de Educao doCampo questes como crise alimentar,crise energtica e crise financeira, soberaniaalimentar, reforma agrria (incluindo nelao debate da propriedade social),agroecologia de perspectiva popular,biodiversidade, direito s sementes e gua como patrimnio dos povos,cooperao agrcola, descriminalizao dosMovimentos Sociais, direitos sociais doscamponeses e das camponesas, crianas,jovens, adultos, idosos. Trata-se de umaagenda e uma disputa que vo muito almdo campo das polticas pblicas, mas queno o exclui, significando nele presso decontedo, concepo, especialmente noque se refere ao direito educao, mastambm de tomar parte na definio sobreque educao, destacando-se a disputa/nova elaborao sobre que formao parao trabalho no campo.

    Finalizando sem concluir

    Este um debate que est em curso,buscando acompanhar o movimento dareali- dade que expressa. Finalizo estasnotas cha- mando nossa ateno para odesafio poltico, ao mesmo tempo prticoe terico, que temos hoje em relao Educao do Campo.

    Do ponto de vista da construo deuma chave metodolgica de interpretao,que foi o objetivo primeiro da produodeste texto, insisto na importncia deapreendermos o movimento real da crticada educao em que se constituiu aEducao do Campo, e com o cuidado deno eliminar o movimento dialticonecessrio: somente chegamos realidadeatravs de categorias, mas essas precisamser capazes de explic-la em suacomplexidade, o que exige muitas vezescriar novas categorias. No podemos fazerum movimento de encaixe da realidades categorias ou s teorias a qualquer custo,porque isso falseia a realidade e empobrecea teoria.

    Talvez no seja pouco buscarapreender a novidade (nos dias de hoje)de uma prxis que tenta negar asantinomias e constituir a radicalidade (deatuao poltica e pedaggica) entrando najaula do tigre para apanhar suas crias (comocostuma nos dizer Gaudncio Frigotto,referindo-se a uma metfora de Mao Tse-Tung), correndo sim o risco, e grande, deser comido pelo tigre, mas pelo menosno deixando de enfrentar o risco de fazera histria...

    Do ponto de vista de projetar aatuao neste movimento da realidade,destaco os dois grandes desafios postospara os diferentes sujeitos que seidentificam com a constituio originriada Educao do Campo. O primeiro o deintensificar a presso por polticas pblicasque garantam o acesso cada vez maisampliado dos camponeses, do conjuntodos trabalhadores do campo, educao22. preciso disputar a agenda do Estado, preciso sobrecarregar o sistema(Wallerstein, 2002, pg. 220) com as

    22 Acesso ampliado no duplo sentido: de massificao, ampliao quantitativa e de dimenses da educao: escolarizao, mastambm acesso s produes culturais e a atividades diversas de formao ao longo da vida e relacionadas s diferentes matrizesde educao do ser humano.

  • 38 Educao do Campo: Semirido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Poltico Pedaggico

    demandas do plo do trabalho (demandasde acesso que so de forma e contedo)para que, no mnimo, as contradiesapaream com mais fora.

    O segundo desafio o de radicalizara Pedagogia do Movimento, entendendo-afundamentalmente como um processoformativo de base dos trabalhadores querecupere sua humanidade roubada(Paulo Fr