Upload
ilma-almeida
View
10
Download
0
Embed Size (px)
DESCRIPTION
Orientações para o trabalho Educação e Diversidade.
Citation preview
1
EDUCAO E DIVERSIDADE Unidade I
Diversidade e diferena
DIVERSIDADE E DIFERENA: PROBLEMAS TERICOS E PEDAGGICOS
Nilton Mullet Pereira
Introduo
O Brasil um palco por onde desfila o espetculo da diferena. Um lugar marcado por
profundo sincretismo e intensa mistura tnica que tornam os brasileiros tributrios de muitas
histrias e diversas experincias. Ser brasileiro estar sendo, ao mesmo tempo, de um jeito
que o acmulo de inmeros jeitos, modos, formas, experincias. Entretanto, preciso
considerar que, no obstante os avanos notveis nos ltimos anos, a sociedade brasileira,
reconhecidamente um espao multicultural, ainda preserva importantes manifestaes de
racismo, preconceito e intolerncia.
J se foram os tempos nos quais a miscigenao, a mestiagem ou a falta de uma identidade
nacional fixa era considerada condio do nosso subdesenvolvimento. As anlises culturais
levadas a cabo por pensadores como Alfredo Bosi ou Antonio Cndido j mostravam que
um pas plural, diverso, crivado pela mestiagem e pelo sincretismo, no pode ser, por isso,
menos desenvolvido. Desde ento, a idia de uma ptria plural, no campo cultural, e de uma
identidade hbrida passaram a ser vistas como fatores altamente positivos.
O tema da diversidade cultural tem tomado os meios intelectuais, chegando muito
rapidamente televiso, ao cinema e publicidade. Facilmente verificamos tiras publicitrias
ou telenovelas que abordam positivamente o tema da diversidade, da tolerncia e do
respeito diferena. Isso quer dizer que estamos mais perto da construo de uma
sociedade que, por um lado, se reconhea como mltipla cultural e etnicamente e, por outro
lado, reconhea as diversas diferenas que, para alm do tema tnico e racial, habitam o
espao deste imenso pas. Mas, importa salientar que o convvio das diferenas no tem
sido experincia fcil, nem mesmo nos campos da mdia ou da produo cultural de massa,
que procura mais rapidamente se adequar aos novos tempos e s novas necessidades de
consumo. Na escola, o convvio ainda mais problemtico, tanto dos jovens entre si quanto
entre os professores e os jovens. Isso quer dizer que muito ainda h para ser feito, de modo
que aquilo que glorificado pelos textos e pesquisas acadmicas se converta em
experincia histrica para todos os brasileiros.
Nesse sentido, o curso que ora apresentamos quer colocar em pauta, no espao escolar,
no apenas a discusso sobre o racismo ou as diferentes etnicidades que cumprem a funo
de oferecer marcas identidade nacional e mold-la como plural, mas discutir as diferenas
nos campos do gnero, no campo das religiosidades, no interior do universo das culturas
juvenis, do tema diversidade geracional e no tema da regionalidade. Um pas continental,
caracterizado pela impossibilidade de desenhar uma nica cara para o brasileiro, se mostra
crivado pela diferena no campo das etnias, mas tambm em mltiplas mscaras atravs
2
das quais milhares de sujeitos do sentido s suas vidas e constituem um modo singular de
ser.
Nosso objetivo central, ento, consiste em oferecer possibilidades didticas para auxiliar os
professores a tornar a sala de aula e o espao da escola como o grande tubo de ensaio de
uma sociedade diversa, mltipla e plural.
AS POLTICAS DE IDENTIDADE
Os estudos pioneiros no campo do multiculturalismo afirmavam que a identidade no fixa,
ou seja, que a identidade construda historicamente, por isso, fluida, voltil e transformvel.
Uma vez estabelecida tal assertiva, a busca interminvel pela identidade verdadeira de um
determinado grupo ou indivduo se tornou uma empresa que resta intil. De toda a forma, a
questo das identidades apresenta-se como atual e cotidiana, j que no se trata mais da
tentativa de descobrir quem realmente somos ou quais as verdadeiras razes da nossa
existncia. O que est em jogo construir referncias a partir de onde os indivduos e os
grupos possam olhar a si mesmos como parte de algo que ultrapassa os limites do seu
presente. Trata-se, antes de tudo, de construir memria, passado e histria a grupos e
indivduos que, at ento, estavam fora das polticas de pertencimento. Isto , no
pertenciam a uma histria, no tinham um passado e no partilhavam com outros uma
memria a partir da qual pudessem ver a si mesmos de modo afirmativo. Interessante
lembrar que, nos bancos escolares, nas aulas de histria, estivemos acostumados a
contemplar uma histria europeia, negligenciando, ao mesmo tempo, a histria da Amrica,
a histria da frica e outras histrias que esto intimamente ligadas formao do Brasil. A
nossa memria, a nossa histria e o nosso passado foram, por muito tempo, submetidos ao
imperativo do chamado eurocentrismo. Ao olhar para ns mesmos, olhvamos para o
europeu, como se ele fosse o modelo a partir do qual construamos a nossa identidade.
As polticas de identidade, hoje, esto ligadas a disputas polticas importantes da nossa
sociedade. Lutas polticas de grupos tnicos, de gnero e outros, tm permanentemente
constrangido os poderes pblicos a elaborar estratgias de resgate da memria coletiva dos
brasileiros, das histrias especficas de cada um dos grupos identitrios. H tempos vimos
crescer vertiginosamente a chamada parada do orgulho gay que estabelece um dia
determinado para um desfile pblico com a participao de indivduos e grupos de todas as
cores e de todas as tendncias. Essa marcha toma as principais cidades do Brasil e do
mundo, num claro movimento poltico que destroa a intolerncia e registra, na memria
social, modos de ser e de viver que fogem aos padres estabelecidos pela moral crist e
burguesa. A presso poltica decorrente dessas manifestaes e de suas entidades polticas
tem tido efeitos importantes nas polticas governamentais, em decises de tribunais de
justia quanto aos direitos dos homossexuais e na luta contra a homofobia.
Indubitavelmente, tanto a mera intolerncia quanto a homofobia so colocadas em xeque,
mas, de modo algum, so pginas viradas da nossa histria. Interessante verificar toda uma
srie de decises judiciais que concedem direitos a homossexuais e condenam a homofobia,
entretanto, as decises judiciais no se convertem em leis no Brasil, como ocorre na
Argentina, por exemplo.
3
O mesmo pode ser pensado quanto aos movimentos negro e indgena. O movimento negro
j conseguiu estabelecer o dia 20 de novembro, Dia da Conscincia Negra, como feriado
municipal em diversas cidades do pas e a obrigatoriedade do ensino de Histria da frica e
da cultura afrobrasileira nos currculos escolares (vide Lei no 10.639, de 9 de Janeiro de
2003). Ademais, no podemos esquecer o fato de que o racismo j fora tipificado como
crime, previsto no cdigo penal e passvel de priso.
A legislao, em verdade, se antecipa aos currculos universitrios que, na sua maioria,
ignoravam ou ignoram a Histria da frica. Consequentemente, no que tange formao
inicial dos professores de Histria, eles ainda se debatem com a necessidade de incorporar
a Histria da frica e da cultura afrobrasileira, uma vez que, tradicionalmente, os Cursos
abordavam apenas a questo da escravido, demonstrando um completo desconhecimento
da religiosidade afrobrasileira, por exemplo. Neste caso especfico, adequado pensar que,
no obstante a crtica ao eurocentrismo e a consequente ampliao do horizonte das razes
histricas do povo brasileiro, o ensino nas escolas ainda est demasiado ligado a uma viso
pouco afirmativa dos povos africanos e dos afrodescendentes. A aula de histria e os livros
didticos em geral mostram uma histria do negro ligada s mazelas da escravido. Assim,
deixa-se de abordar as prticas afirmativas, fator que poderia ser alavanca para aumentar a
auto-estima das crianas negras. As danas, a msica, os personagens, a histria, a
religiosidade dos afrodescendentes no Brasil precisam, aos poucos, tomar o lugar de uma
histria marcada pela tortura e pela morte.
O mesmo ocorre em relao ao ensino da Histria Indgena, por anos relegada ao dia 19 de
abril, quando crianas eram fantasiadas de indgenas na quase totalidade das escolas (vide
Lei no 11.645, que estabelece a obrigatoriedade do ensino da Histria e Cultura Indgena).
Hoje, ainda podemos citar o avano significativo da educao indgena, que se prope a
ensinar as novas geraes desses povos a partir dos elementos da sua cultura.
Efetivamente, movimentos importantes de identidades tm sacudido as tradicionais
maneiras de ver e dizer o Outro, de ver e dizer a diferena. Pensar o outro exige, hoje, um
saber novo, exige uma postura poltica nova diante da possibilidade de se viver em um
mundo diverso e plural. Entretanto, apesar de verificarmos que efetivamente nossas
tradicionais formas de ver e dizer a diferena tm sido colocadas em xeque, precisamos
avanar sobremaneira para a construo de uma nova memria, que inclua novos saberes
sobre a diversidade e sobre a diferena. Nesse sentido, a escola tem um papel fundamental.
Indubitavelmente, ainda que os movimentos dos homossexuais estejam cavando espao
nas ruas, a homofobia permanece sendo uma realidade em nossa sociedade. Ainda que o
racismo seja tipificado como crime, nem o racismo, nem os esteretipos tnicos nos
abandonaram. Ainda que a histria e a cultura indgenas sejam parte obrigatria dos
currculos, professores cantam e pintam o rosto dos estudantes sem saber o significado da
pintura. Ainda que o Brasil se reconhea como uma pluralidade de formas de vida regionais,
o preconceito contra o nordestino no deixou de existir.
Ainda que a juventude tenha se tornado um conceito dos estudos acadmicos, muitos
professores se mostram incapazes de conhecer e aceitar as culturas juvenis. Enfim, no
4
obstante as polticas de identidade que se avolumam e levam a efeito uma luta poltica para
o reconhecimento das diferenas, ainda muito necessria uma inverso dos padres da
nossa memria. Sculos de histria no se movem da noite para o dia, preciso um trabalho
demorado no mbito da memria social do brasileiro a fim de destruir os esteretipos, os
modelos, os preconceitos.
Nesse sentido, o papel da escola se torna indispensvel, uma vez que, no espao escolar,
no apenas se vive diariamente o preconceito e a diversidade, mas tambm esse o espao
privilegiado para desconstruir traos cristalizados da nossa memria. Ora, atualmente a
escola acolhe a todos, sem qualquer distino. A escola para todos foi uma vitria de uma
luta de longa data, e a educao inclusiva hoje uma realidade. Isso quer dizer que no
apenas a escola est aberta a todos as diferenas possveis em nossa sociedade, mas na
escola
Piotr Lewandowski , Stock Xchng.com que essas diferenas devem ser acolhidas e
integradas a um sistema que lhes permita marcar sua singularidade em meio diversidade.
assim que vemos a escola como espao que pode permitir o aprofundamento da vida
democrtica, na medida em que ela possa se tornar um espao realmente pblico e que
ensine e enseje a construo de outros espaos pblicos, onde a diferena pode ser vivida
e experienciada sem a marca do julgamento alheio.
A ESCOLA E O ENSINO DE HUMANIDADES
A escola , desde ento, o lugar por excelncia onde se poder aprender sobre e com
diferentes identidades, isto , a escola precisa se tornar um locus de alteridade, um espao
pleno de diversidade e de tolerncia.
O currculo escolar deixou de ser visto como mero acmulo de contedos de diferentes
disciplinas. Nem mesmo se constitui em um conjunto coerente de mtodos e estratgias de
ensino. O currculo produtivo. Ele espao de constituio de identidades, lugar onde se
produz memria, modos de ser e de conviver. O currculo um territrio onde se aprende
matemticas, mas tambm formas de relaes consigo mesmo e com os outros. Esse
territrio capaz de mostrar pertencimentos identitrios ou produzir silncios; ao mesmo
tempo, ele pode construir passado e histria ou, simplesmente, apagar marcas e
singularidades; ele pode uniformizar formas de existncia ou mostrar o espetculo da
diferena. Nesse sentido, os currculos escolares podem ser vistos como lugares em
construo, assim como espaos de puros devires, de onde no se pode supor forma
acabada, marca perene. Os currculos, como espaos de devir, so o lugar da diferena,
onde no h definio prvia do que se pode ou se deve vir a ser. Assim, o currculo deixa
de ser espao de formao, de engavetamento do indivduo em um invlucro que constitui
sua identidade, mas abre a possibilidade de os indivduos terem experincias diversas.
O currculo escolar, particularmente, os currculos das chamadas humanidades, constitui-se
em espao frtil para a compreenso da diversidade, para a visibilidade do mltiplo e para
a apresentao da diferena. no interior de uma disciplina como a Histria que diversos
estudantes podem ver a si mesmos como parte de um conjunto determinado de referncias
5
culturais, reconhecendo-se como pertencentes a um grupo determinado, com uma histria
especfica e com um passado comum. Mas, a partir do currculo dessa e de outras
disciplinas como a Sociologia e a Geografia ou mesmo o Ensino Religioso, que os
estudantes podem debater-se com a diferena, com traos culturais estranhos ao seu
prprio modo de vida.
O que queremos afirmar que o currculo escolar, em geral, e das humanidades, em
particular, produtivo, na medida em que estabelece um territrio de reconhecimento e de
estranhamento, levando os indivduos tanto a um territrio quanto a um processo de
desterritorializao a partir do qual cada um se despedaa na direo da diferena. Ao
mesmo tempo em que enseja que a diversidade que reina na sala de aula possa ser vista
no interior do conjunto dos contedos gerados por cada disciplina e, nesse sentido, cada
um, na sua especificidade, ver-se no interior desse currculo, tendo respeitada sua existncia
como etnia, como gnero, como regionalidade, o estudante pode contemplar a diferena,
mirar o outro e aprender com experincias que lhe so estranhas.
Mas, a diversidade e a diferena no esto apenas no contedo apresentado pelo professor.
Estabelecer o jogo entre identidade e diferena, entre pertencimento e estranhamento,
uma atitude poltica que, em nossa contemporaneidade, se exige do professor.
Logo, pensamos que o currculo no apenas constitudo de contedos, mas de modos de
ser e fazer, de vises de mundo, de posturas pedaggicas, de formas de tratamento e de
relaes com os estudantes, isto , de lugares onde os estudantes podem se ver. Alm
disso, o currculo tambm feito de no-lugares, de possibilidades de vir a ser, de potencias
criativas que levam os indivduos a caminhos sempre incertos, mas inevitavelmente novos.
Eis o que poder permitir a produo de novos relacionamentos.
As relaes professor-aluno so constitutivas do currculo. Assim, mister compreender que
o modo como um professor se refere aos seus alunos ou a grupos determinados interfere
na formao subjetiva dos estudantes. Posies preconceituosas, despercebidas pelo
prprio professor e expressadas, sobretudo, atravs da linguagem, tm um efeito importante
na extenso e continuidade do preconceito e no desrespeito diferena. Tomemos como
exemplo as clssicas expresses em relao aos indgenas ou aos judeus ou aos negros,
que povoam fartamente nossa memria coletiva e, por vezes, a sala de aula, expresses
claras de um etnocentrismo velado e demasiado impregnado em nossa cultura.
No cotidiano da nossa linguagem se tem reproduzido, continuamente, a associao do judeu
com o mal. Clia Szniter Mentliki demonstrou como, ainda hoje, nossa linguagem est
carregada de uma percepo preconceituosa do judeu, na medida em que o portugus
coloquial utiliza o verbo judiar como fazer o mal, prolongando uma prtica social e lingustica
que pode ter aparecido no perodo inquisitorial ibrico.
Nas nossas escolas estivemos acostumados a brincar de ndio. Sempre ao dia 19 de abril,
inclusive nos dias de hoje, crianas e professores pensam celebrar os verdadeiros donos
desta terra ao criar fantasias de ndios e imitar supostos rituais indgenas ao som da
msica Vamos brincar de ndio da Xuxa. Ora, sabemos bem que a abordagem do ndio
como ingnuo e criana remonta o modo como os europeus olharam para os povos que
6
encontraram na terra onde hoje o Brasil. De Pero Vaz de Caminha aos Jesutas, se
concebeu a ideia de que os ndios no eram nem infiis, nem hereges, mas simplesmente
eram ignorantes quanto verdadeira crena religiosa. Tal como as crianas, os pobres e os
miserveis, os ndios eram, portanto, passveis de moralizao, de catequizao e de
aculturao.
As religies afro-brasileiras tm sido, ao longo do tempo, consideradas menos religies e
mais um conjunto de supersties que, via de regra, realizam cultos e oferendas com
objetivos malignos. A escola tem reforado essa ideia na medida em que os livros didticos
mostram caractersticas religiosas de gregos, romanos, persas, cristos, mas dificilmente
fazem referncia a uma religio africana ou a religies afro-brasileiras. Esse silncio
produto do estranhamento e do etnocentrismo. Se o estranhamento no pode ser
considerado nem negativo nem positivo, mas um dado do espao de dilogo cultural, o
etnocentrismo negativo na medida em que reduz a cultura do outro ao signo da
incompletude, da anormalidade e da falta.
Essa relao dual construda pelos europeus o Eu e o Outro tem funcionado ainda para
construir nossas noes acerca de culturas diversas como a dos judeus, dos negros e dos
ndios.
Se nos detivermos no caso brasileiro, percebemos que, via de regra, h expresses em
nossa linguagem que servem para estabelecer formas de ver e de dizer os nordestinos em
geral ou os baianos em particular, por exemplo. Esse preconceito velado constitui-se em
uma forma ainda bastante usada de no aceitar a diversidade e a diferena. Se sairmos do
campo especificamente cultural, podemos pensar que esse modelo que nos leva a olhar
para o Outro igualmente se aplica a toda e qualquer diferena. A lgica tem sido a de julgar
a diferena a partir de uma referncia, de um modelo.
O ensino de humanidades na escola pode muito bem se constituir em um espao pblico
privilegiado para trabalhar com esse grande patrimnio que nossa sociedade, aos poucos,
tem se acostumado a preservar a diversidade. Embora, certamente, esse seja um trabalho
que exige muito flego e pacincia, inadmissvel que no se possa tornar a escola, no
mnimo, o lugar onde se valoriza modos de vida, jeitos de fazer, experincias, grupos etc.
No podemos esquecer que vivemos no apenas em uma sociedade plural, do pondo de
vista cultural, mas vivemos e ensinamos em um mundo desigual socialmente, e essa
desigualdade precisa ser pensada pelo mesmo vis que a diversidade. Por vezes, as lutas
sociais se implicam em lutas de diversos grupos por voz e visibilidade; por vezes, no h
implicao alguma. O que importante preservar o carter transformador das lutas sociais
e, ao mesmo tempo, o carter especfico de determinadas demandas de grupos de gnero,
tnicos, regionais etc.
O ensino das humanidades pode muito bem ser o veculo de constituio de subjetividades
capazes de conviver em uma sociedade que se apresenta, ao mesmo tempo, desigual, do
ponto de vista social, e diversa, do ponto de vista cultural.
REFERNCIAS
7
http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI4958132-EI16410,00-homofobia+
tambem+e+racismo.html. Acesso em 27 de fevereiro de 2011.
HALL, S. A identidade cultural na ps-modernidade. Trad. Toms Tadeu da Silva, Guacira
Lopes Louro. 6. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. 103 p.
MENTLIKI, C. S. Histria, linguagem e preconceito: ressonncias do perodo inquisitorial
sobre o mundo contemporneo. In: Revista Histria Hoje. So Paulo, n 5, 2004, p. 01-17.
SILVA, T. T. Documentos de identidade: uma introduo s teorias do currculo. Belo
Horizonte: Autntica, 1999. 156 p.
ESTERETIPOS
Luis Fernando Verssimo
Zero Hora, 27/06/2010
Os ingleses espalharam algumas coisas boas pelo seu imprio, como o futebol e o rgbi,
alm do parlamentarismo e o ch das cinco. Em compensao, tambm inventaram e
propagaram o crquete, certamente o esporte mais aborrecido do mundo depois do beisebol
americano, aquele em que os jogadores passam mais tempo ajeitando o bon do que
jogando.
Era compreensvel que no futebol e no rgbi algumas ex-colnias inglesas acabassem
jogando melhor do que a metrpole, mas tambm no crquete um jogo feito para
cavalheiros ingleses vestidos de branco se exibirem para suas, todas elas chamadas Fiona
os nativos tomaram conta. Hoje jogado por gente de todas as cores, do Paquisto
Nova Zelndia. Aqui mesmo na frica do Sul ocupa um bom espao do noticirio esportivo
e tem suas celebridades, festejadas como as do futebol e do rgbi.
O que s prova como os esteretipos raciais e culturais valem pouco. Houve um tempo em
que, no Brasil, se atribua a superioridade do nosso futebol nossa mistura racial
(elasticidade natural do, herdada da sua convivncia ancestral com feras na frica, aquelas
bobagens) e cintura dura do resto do mundo. Quando o Brasil perdia para um time de
cintura dura era porque no jogara brasileiramente, no fizera valer o seu ritmo e a sua
ginga. O esteretipo no explicava a habilidade argentina, por exemplo, nem a surpresa da
seleo hngara do Armando Nogueira, como o Nelson Rodrigues chamava a seleo que
assombrara todo o mundo, e o Armando do que todos, na Copa de 54. Mas persistia.
Persiste at hoje, e no apenas entre brasileiros. No raro ver o time do Brasil chamado
aqui de The Samba Kings. Geralmente como preldio para a pergunta: que fim levou o
samba?
Ainda causa o mesmo espanto ver uma Eslovquia jogando como joga quanto deve ter
causado a primeira viso de um paquistans jogando crquete como um ingls. O jogo da
Holanda contra Camares, na quinta, no valia nada, mas valeu pela estreia na Copa do
jogador Robben, que estava lesionado. Robben, mais branco do que a rainha da Holanda,
8
com sua careca precoce e sua cara de professor de trabalhos manuais, seria o prottipo do
jogador sem cintura que nunca poderia jogar futebol. Joga muito.
Unidade 2
Igualdade, diferena e equidade
IGUALDADE, DIFERENA E EQUIDADE:
EQUIVALNCIAS FUNDAMENTAIS
Liane Saenger
Introduo
Tirania, democracia, academia... Palavras to utilizadas em nossos dias produziram suas
prprias histrias com os muitos significados que foram recebendo, tantos e to variados
quanto diversos os lugares e os tempos em que se foram manifestando. Como assim? Como
ligar questes polticas ao delrio da cultura fsica da atualidade? Qual o vnculo possvel
entre eles? A obsesso pela beleza da Grcia clssica? A imposio do corpo sarado nos
fazendo sentir culpados por no frequentamos algum templo da sade e nos exercitarmos?
O peso na conscincia pela pouca ao diante das lutas perdidas em prol da coisa pblica?
Estaramos nos referindo ao olhar tolerante que nos tem sido exigido para com o que nos
deixa desconfortveis? Uma relativizao absoluta dos acontecimentos?
Essa viagem inicial um convite a que nos afastemos do consagrado para nos
aproximarmos do que deveria ser sagrado: a felicidade coletiva dos sujeitos. Seriam tirania
e democracia lados opostos de uma mesma moeda? E por que academia se agrega aos
conceitos aqui apresentados?
O que segue um convite a pensar sobre o que parece bvio, a analisar o que no parece
necessrio e a gerenciar possveis dvidas em direo a algumas certezas, mas,
principalmente, a lanar olhares mais ampliados sobre possibilidades de convvio social.
DEMOCRACIA: GARANTIA DE EQUILBRIO?
Pensemos: se sempre a maioria vencer em suas demandas o que, de certo modo, a
democracia preconiza no haver injustia para com as minorias, sempre numericamente
perdedoras? Perder sempre pode ser estimulante? Poderia um tirano promover o bem estar
de uma populao?
Criado na Grcia Antiga, o conceito de Democracia carrega alguns desvios de compreenso:
se hoje ele se pretende justo, porque atendendo s demandas dos cidados de um pas, em
tempos originais o propsito era o mesmo, ainda que no contemplasse a todos,
principalmente se fossem mulheres, escravos e estrangeiros. Como assim? Falamos de um
lugar em que cada cidade o que hoje consideramos um Estado, onde a ideia de nao
ainda no se construiu e onde, portanto, o vizinho de um lugar prximo um estrangeiro.
Falamos de um lugar em que poucos teriam tempo e condies para participar das longas
discusses peridicas onde se tomavam decises associadas coisa pblica. Falamos de
um lugar em que foi grande o empenho de alguns governantes como Pricles, por exemplo,
9
em estabelecer condies para tornar possvel a participao poltica dos cidados no
governo da cidade.
Mas quem tem direito e capacidade de decidir o que melhor para sua sociedade? O que
uma sociedade se no o conjunto de conjuntos de associaes reunidas para tentar dar
suporte razovel aos seus componentes? Quando a identidade coletiva pode ser
considerada democrtica?
O individualismo, fonte de responsabilidade pessoal pela sua conduta de vida, tambm
fonte do egocentrismo. Este se desenvolve em todos os cantos e tende a inibir as
potencialidades altrusticas e solidrias, o que contribui para a desintegrao das
comunidades tradicionais (MORIN, 2005, p. 26).
Mas o individualismo, reconhecidamente de m fama, que Alain Touraine (2006, p. 95)
aponta como o princpio capaz de impedir nossas sociedades de naufragar numa extenuante
concorrncia generalizada. E o autor utiliza a obra inteira para argumentar a favor dessa
ideia, passando pela incontrolvel multiplicidade de atos e ideias que se vo apresentando
em nossos dias, atravs de colonizados obtendo sua libertao, e por minorias nem to
alienadas quanto parecia. Adota a noo de etnicidade, capacidade que um indivduo ou
um grupo tm de agir em funo de sua situao e de suas origens tnicas. Trata-se,
portanto, [...] de uma orientao da ao e no de uma situao do indivduo (Idem, p. 200-
201).
Espaos dos interesses, ou da tica pessoal, e espaos pblicos, com sua tica coletiva,
formam lados de uma balana social supostamente apoiada sobre valores de justia.
Carregam componentes fundamentados no reconhecimento e na identificao que, por sua
vez, vem sendo naturalmente pautados por elementos ligados a conflitos humanos e
distributivos. Distribuio dos custos e benesses sociais define-se segundo critrios
estabelecidos pela tradio, pelos interesses e at pela fora.
O que partilhar, e com quem, passa a caracterizar muito os processos tidos como mais ou
como menos democrticos, dependendo da concepo de justia quanto ao que pode ser
considerado igual, diferente, necessitado ou merecedor. A concepo de Democracia segue
se modificando em sua historicidade e passa a exigir que seja falada no plural: democracias,
as democracias de cada lugar em cada tempo.
TIRANIZAO DE SI E DOS OUTROS
Pensando sobre tirania comecemos pela primeira pessoa: em quais situaes nos sentimos
tiranizados? Posso gostar dessa ou daquela msica sem ser rotulado? Meu sotaque me
denuncia ou me caracteriza? Minhas vivncias me integram ou me confrontam com quem
convivo?
Temos, na palavra tirania, a ideia de algo que nos submete e maltrata. Segundo o que se
ouve por a, a maioria de ns tiranizada, entre outras muitas variveis, pelo consumo, pela
necessidade de sermos jovens, pelas avalanches de informao. Estaria algum por trs
disso, arquitetando formas de nos submeter em seu benefcio?
10
Estamos diante de situaes em que as capacidades de alguns sujeitos so desafiadas a
ampliar seu potencial de seduo ou dominao pela fora para tornar hegemnico seu
pensamento e sua forma de ver a vida. Nesse embate se agregam e distanciam os sujeitos
da coisa pblica.
Quando Tirania se torna uma forma de governo, algum se impe como dominante por
diferentes condies: prestgio pessoal, apoio militar ou de outros, fraqueza dos estamentos
inferiores, geralmente incapazes (ou assim mantidos) de protestar ou vislumbrar outro modo
de organizao poltica, sujeitos com vantagens econmicas escusas etc. s vezes at por
suas propostas agregadoras, conciliadoras ou, mesmo, progressistas (?). Mesmo inaceitvel
nos dias atuais e na maioria dos pases, esse modo de governar ainda se manifesta. Refletir
sobre ele pode trazer-nos argumentos que nos ajudem a pensar em modos de neg-lo como
ideal.
POTENCIAL DE ACADEMIA
Compreender as aes humanas e explic-las a ns mesmos um propsito da cincia
filosfica. Encontrar na palavra Academia uma forma de aproximar o que se vem lendo acima
possvel mediante a importncia da sade fsica e mental dos indivduos e dos grupos.
Ambas so estimuladas em lugares que compartilham esse ttulo, tanto por sua origem
quanto por sua atualidade: academias de cultura, como as Universidades e as de Letras, e
academias de ginstica.
Somos todos acadmicos junto s universidades, e as academias dos nossos tempos
lotam em busca do aperfeioamento corporal. Apresentam-se separados corpo e mente
como segmentado tem ficado nosso Conhecimento, nossa capacidade de compreenso do
todo e nossa viso de mundo.
DA EQUIDADE
Equidade uma proposta de relaes interpessoais, um ponto de vista inclusivo, um
comportamento intelectual que atualiza uma das questes apontadas no incio desse texto,
pondo em dvida a democracia como garantia de justia. Expresses como ser mais real
do que o rei nos lembram do quanto o bom senso deve acompanhar a aplicao das regras
para que no se cometa injustia em nome do genericamente estipulado. Justia para ambas
as partes o que a equidade produz, ainda que aplicando modos diferenciados de
tratamento.
Decises sobre a quem dar mais, de quem tirar mais, a quem considerar ou no, por serem
difceis de ser tomadas no coletivo, podem gerar poder excessivo e novas dominaes caso
no sejam pautadas pela aceitao coletiva. Mas tambm podem fazer toda a diferena
quando direcionadas a quem precisa e a quem merece.
Mesmo sem a inteno de aprofundar muito cada um dos conceitos aqui destacados, torna-
se essencial associ-los ao discurso iluminista, to interessante quanto contraditrio, pois
protesta por liberdade, igualdade e fraternidade, no entanto, pretende atingir seus ideais
impondo suas ideias.
11
disso que falam John Rawls e Frei Beto, refletindo sobre a possibilidade de justia com
equidade e trazendo mais um componente essencial a essa exposio que o fator
Liberdade.
UM FECHAMENTO IMPOSSVEL
Uma frase de Jos Saramago, citada exausto e ao ponto de se ter perdido a sua fonte
original, sacode a forma condescendente com que temos considerado tolerncia uma grande
virtude: Tolerar a existncia do outro e permitir que ele seja diferente ainda muito pouco.
Quando se tolera, apenas se concede, e essa no uma relao de igualdade, mas de
superioridade de um sobre o outro. Deveramos criar uma relao ente as pessoas, da qual
estivessem excludas a tolerncia e a intolerncia.
Educar-se aprender sobre a vida para poder viver com relativa autonomia. compreender
a existncia do outro como elemento de troca e de complementaridade. trazer para si a
tarefa de produzir-se e aos outros com vistas a criar plataformas elevadas de compreenso
de mundo. Ser livre sem eliminar a liberdade dos outros, tratar com igualdade justa aos
demais sem critrios de puro interesse pessoal, usar a fraternidade como elemento chave
da socializao pode parecer um propsito piegas, mas precisa estar entre nossas utopias.
Ns, seres humanos, sempre fazemos o que queremos, mesmo quando dizemos que somos
forados a fazer algo que no queremos. O que acontece nesse ltimo caso, que queremos
as consequncias que iro se dar se fizermos o que dizemos que no queremos fazer. Isso
assim porque nossos desejos, conscientes e inconscientes, determinam o curso de nossas
vidas e o curso de nossa histria humana [...] por isso que frequentemente no queremos
refletir sobre nossos desejos. Se no vemos nossos desejos podemos viver sem nos
sentirmos responsveis pela maior parte das consequncias do que fazemos (MATURANA,
2001, p. 196).
Educar-se passa a ser a constatao de responsabilidades para alm da aprendizagem
formal, nos tornando os seres sociais e sociveis que precisamos e devemos ser para o bem
de nossa prpria sobrevivncia.
REFERNCIAS
CORRA, V. A. A democracia moderna na concepo de Norberto Bobbio. Disponvel:
. Acesso em 16 de abril de 2011.
JARDIM, H. V. A origem da palavra academia. Disponvel:
. Acesso em 28 de abril
de 2011.
JUNGES, M. Niilismo e mercadejo tico brasileiro. Disponvel: .
Acesso em 28 de abril de 2011.
MATURANA, H. Cognio, Cincia e Vida cotidiana. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2001.
MORIN, E. O mtodo 6: tica. Porto Alegre: Sulina, 2005.
12
MOTA, R. O Iluminismo - Trevas na poca das luzes. MONTFORT Associao Cultural.
Disponvel: . Acesso em 28 de abril de 2011.
Nascimento da Democracia na Grcia Antiga. Disponvel:
. Acesso em 28 de
abril de 2011.
OLIVEIRA, A. H. S. A justia como equidade na viso filosfica de John Rawls. Disponvel:
. Acesso em 28 de abril de 2011.
O que tirania? Disponvel: . Acesso em 28
de abril de 2011.
RAWLS, John. Equidade e justia. Disponvel:
Acesso em 28 de abril
de 2011.
SILVA, V. L. S. A viso de totalidade da Biologia Humana na Educao Fsica.
Disponvel:. Acesso em 28 de abril de 2011.
TOURAINE, A. Um novo paradigma: para compreender o mundo de hoje. Petrpolis: Vozes,
2006.
13
PRECONCEITOS
Liane Saenger
Preconceitos so formas de ver as coisas e as pessoas. So adquiridos, aprendidos ou
desenvolvidos ao longo dos contatos sociais que se vai fazendo. s vezes, esto
involuntariamente presentes em nossos pensamentos e aes e podemos at nos assustar
quando os percebemos em ns mesmos. A quebra de modos de pensar e agir, mesmo
quando a consideramos necessria, pode ser traumtica ao voltar-se contra algo no qual
sempre se acreditou ou contra a forma de algum muito prximo a ns pensar e agir. Muitos
conflitos podem ser ocasionados em funo disso.
Algumas temticas em torno das questes de igualdade, diferena, equidade e, certamente,
justia social precisam ser delicadamente tratadas quando alunos, principalmente os
menores, esto envolvidos. H crianas e adolescentes que chegam escola com conceitos
dados como nicos e imutveis. No aceit-los, ou neg-los, pode inviabilizar o necessrio
respeito na relao entre professores e alunos. E pode provocar srios problemas entre a
escola e os responsveis pelos alunos. Muitas vezes, todo um trabalho anterior junto
comunidade precisa acontecer para que seja possvel a aceitao de que h diversidade de
pensamentos e de posicionamentos dos indivduos e grupos em relao a diversas
questes. Esse apenas um primeiro passo em direo a aprendizagens a partir das quais
cada pessoa e grupo podem modificar seu modo de pensar e agir, principalmente, em
relao aos outros.
No entanto, essa tarefa no significa convencimento de que sempre se devam aceitar formas
de pensar e agir de outras pessoas e grupos. Existem condies, comportamentos e valores
de ordem mais geral que extrapolam as caractersticas locais, tais como o respeito vida, e
precisam receber seu devido empenho de manuteno.
Programas de televiso, tanto de canais abertos quanto pagos, so um grande formador de
opinio. Mesmo nessa poca de sacralizao do digitalizado, grande parte do tempo livre
dos sujeitos se passa em frente a essa telinha que pode ser muito informativa, mas tambm
muito deformativa.
s vezes essa bab eletrnica exerce sua funo de acalmar crianas na mais tenra idade.
Jovens, quando com recursos um pouco maiores, a dividem com as telas de computadores,
e adultos a tm como uma vlvula de escape relaxante pelo pouco ou nada exigente que
no sentido de desenvolver raciocnios mais complexos. Mesmo assim, ela no tem sido parte
muito significativa do currculo escolar.
Ento, observar o poder de interferncia desse elemento no humano, mas altamente
significativo, na produo do pensar dos sujeitos muito importante. Aqui est um convite a
que isso ocorra de forma intencional.
14
Unidade 3
Diversidade religiosa e laicidade de estado
ESPAOS PBLICOS E ESPAOS PRIVADOS:
CONSTRUINDO REGRAS DE CONVIVNCIA E RESPEITO
Fernando Seffner
Um dos traos mais importantes da escola caracterizar-se como um espao pblico, e o
professor ou a professora, como servidores pblicos. Em geral, este o primeiro espao
pblico em que a criana transita, e nele que ela deve aprender um conjunto de regras,
disposies e valores que orientam a construo e manuteno do espao pblico. A escola
pblica brasileira cumpre papel muito importante nesta socializao das crianas e jovens
no ambiente pblico, que difere muito dos ambientes privados da casa, da famlia, das
igrejas, dos clubes fechados, dos grupos de amigos, das associaes e outras formas de
organizao de carter mais ou menos exclusivo. A construo das regras de gesto e
convvio no espao pblico, os compromissos que ele mantm com a sociedade, sua
importncia para a consolidao de regimes democrticos, sua importncia para a formao
cidad, todas estas caractersticas e muitas outras tornam a vivncia escolar uma
oportunidade de aprendizados que vo muito alm das disciplinas.
Todos temos as nossas preferncias e fomos educados para nos sentirmos mais vontade
com esta ou aquela pessoa, neste ou naquele grupo, pertencendo a um ou outro partido
poltico, confessando determinada crena religiosa (ou no confessando nenhuma crena
religiosa), comparecendo a determinadas festas na cidade em tal ou qual local, e no em
outras, preferindo pessoas da nossa idade ou de idade diferente, e assim por diante.
Podemos gostar mais de um determinado shopping, porque ali vo pessoas que tm mais
a ver conosco, e no gostamos de outro, porque no encontramos ali pessoas que nos
agradem. Preferimos bairros, ruas, cores, filmes, msicas, estilos de roupa, atores, novelas,
livros, e muito mais, e provavelmente no haver acordo possvel nisso em uma discusso,
pois a diversidade de gostos e opinies gigantesca e faz a riqueza do mundo.
Uma boa maneira para abordarmos a importncia dos espaos pblicos e privados na
sociedade brasileira pensar na casa e na rua. O que permitido fazer em casa, e que no
podemos fazer na rua? E vice versa? De que modo nos comportamos em casa, e de que
modo nos comportamos na rua? Ser que algum igual na casa e na rua? Voc acha a
casa melhor do que a rua, ou a rua melhor do que a casa? Qual a importncia que tem estes
dois grandes ambientes, casa e rua, para entender nossa discusso de espao pblico,
diversidade religiosa, laicidade e escola pblica brasileira? Vale pensar no que significam
para ns, brasileiros, casa e rua:
Quando digo ento que casa e rua so categorias sociolgicas para os brasileiros, estou
afirmando que, entre ns, estas palavras no designam simplesmente espaos geogrficos
ou coisas fsicas comensurveis, mas acima de tudo entidades morais, esferas de ao
social, provncias ticas dotadas de possibilidade, domnios culturais institucionalizados e,
15
por causa disso, capazes de despertar emoes, reaes, leis, oraes, msicas e imagens
esteticamente emolduradas e inspiradas (DA MATTA, 2000, p. 15).
A rua nos desperta certas emoes e possibilidades, e a casa, outras. Existe uma moral das
ruas, e uma moral das casas. Dentro de nossa casa, h certas leis de comportamento, na
rua h outra legislao. Muitas vezes, gostaramos que a rua fosse to bem organizada
quanto a nossa casa. Outras vezes, gostaramos que a nossa casa tivesse um pouco do
brilho e da liberdade das ruas. Quando digo a palavra rua, voc pensa num conjunto de
imagens. Quando digo a palavra casa, lhe aparece outro conjunto de imagens, bem como
de recordaes. Em nossa abordagem, como recurso de anlise, vamos aproximar o espao
da rua ao espao pblico, e o espao da casa ao espao privado, reconhecendo que a
situao mais complexa do que isso.
Quando a criana vai para escola, ela est bastante acostumada com as regras e normas
da famlia, e muitos de ns gostamos de dizer que a escola como uma famlia, que a escola
uma segunda famlia, e que a professora como se fosse uma tia. Nada mais equivocado.
A escola uma instituio pblica, e no uma famlia, e a professora uma educadora, em
geral uma servidora pblica, e no a me da criana ou sua tia. As famlias gostariam que
seus filhos fossem tratados na escola como seres especiais, tal como so tratados na famlia.
Dessa forma, uma me gostaria que a professora tratasse sua filhinha de modo especial,
com todas as atenes. Mas a professora tem que tratar a todos por igual, portanto, a
ateno que ela vai dar a uma criana deve ser igual quela que dar a outra, na medida do
possvel, mesmo reconhecendo que alguns precisam de mais ateno. A professora, como
verdadeira educadora, tem que ser justa nas atenes, e no pode dedicar todo seu tempo
a uma determinada criana, apenas porque a me desta criana veio lhe pedir isto. Sei que
esta uma frase forte, mas penso que devemos refletir bem sobre ela: na famlia, a criana
UMA criana; na escola, a criana MAIS UMA criana. No digo isso para desfazer ou
maltratar esta criana, mas esta uma marca do espao pblico: estamos nele como um
indivduo dotado dos mesmos direitos e obrigaes que os outros. As instituies pblicas
(a escola pblica brasileira, o posto de sade, a justia, o servio de previdncia etc.) devem
tratar a todos por igual, sem discriminao. Dessa forma, no podem cobrir alguns de
privilgios e atenes, e a outros reservar apenas alguns momentos de ateno.
Esta marca do espao pblico est consagrada no princpio da igualdade, expresso na
Constituio Brasileira de 1988. No temos como imaginar um pas democrtico, um estado
de direito, um pas com justia, sem lutar contra a discriminao de sexo, raa, cor, origem,
crena religiosa, idade e outros atributos. Mas podemos pensar que, em nossa casa, no
gostamos de receber pessoas de certa religio, de certa origem ou, at mesmo, de certa cor
ou orientao sexual. Temos esse direito, em nossa casa. Mas, no espao pblico, a regra
a da tolerncia, e vale lembrar que toleramos os outros para tambm sermos tolerados.
Ou seja, todos ns temos alguns atributos que podem desagradar a outros. Posso no gostar
de evanglicos, mas, se sou gordo, haver pessoas que no gostem de gordos. Posso no
gostar de quem escuta msica de forr, mas, certamente, haver muita gente que no goste
dos estilos musicais de que gosto. Nunca agradamos a todos. Nunca encontramos algum
16
que nos agrade em tudo. A vida em sociedade comporta certo grau de tolerncia e respeito
pela diversidade, e essa uma das grandes marcas dos espaos pblicos.
No Brasil, o espao pblico sofre em funo de muitos problemas. Em geral, costumamos
pensar o espao pblico como lugar da desorganizao, da sujeira, do perigo. Muitas vezes,
ns mesmos colaboramos para isso. Em casa, no cuspimos no cho nem jogamos lixo
pelos cantos. Na rua muitas vezes fazemos isto. H pessoas muito calmas e sensatas em
casa, mas, quando saem rua para dirigir seu carro, se transformam em quase guerreiros.
Para muitos de ns, a cordialidade algo que acontece entre iguais, no mundo da casa; no
na rua, onde temos que mostrar cara feia, pois no conhecemos as pessoas. A casa
limpeza, organizao, atenes. A rua sujeira, desorganizao e baguna, servios
impessoais e annimos. Mas, temos muitas experincias exitosas de boa conservao do
espao pblico e das instituies pblicas, e vale lembrar que, sem um grande espao
pblico, no conseguimos assegurar um pas justo e democrtico.
Um segundo problema que sofre o espao pblico no Brasil que gostamos de achar que
ele deve funcionar como uma famlia, uma grande famlia. Isso muito frequente na escola.
Repito o que j disse acima: a escola um espao pblico, que deve acolher a diversidade
cultural dos alunos e fazer respeitar a todos e a cada um. Logicamente, aceitar a diversidade
no significa que cada um possa fazer o que deseja na escola. A escola tem um projeto
poltico-pedaggico, um regimento. Como todo espao pblico, ela tem regras de
funcionamento, no se trata de achar que o espao, porque pblico, corresponde a uma
terra de ningum, sem lei. Dessa forma, no deve causar espanto a ningum que a escola
tenha, em seu regimento, algumas disposies com as quais muitas famlias no
concordam. A escola no um local que possa se regrar do mesmo modo que uma famlia
se regra. Certamente, algumas das regras escolares no sero do agrado de algumas
famlias, mas elas devem entender que estas regras so necessrias para que todas as
crianas possam viver com respeito no espao pblico. Estas famlias devem lembrar que,
na escola, estudam crianas muito diversas, filhas de famlias muito diferentes, e que todas
devem aprender a conviver e a se respeitar.
O que tem isso tudo a ver com o tema da diversidade religiosa e do estado laico? Na casa
e nas associaes religiosas, nos reunimos com outras pessoas por conta desta afinidade
das crenas. Buscamos um templo catlico, um terreiro afro, um centro esprita, uma igreja
protestante, um templo evanglico, um local para prtica do budismo, uma sinagoga judaica,
o salo do reino das testemunhas de Jeov, um templo mrmon, uma casa de adorao da
F Bahi, uma mesquita muulmana, um santurio, um mosteiro, uma casa de orao, ou
qualquer outro lugar consagrado ao servio de uma f religiosa. Ali estamos entre pessoas
que tm a mesma crena, acreditam nas mesmas verdades e usam os mesmos smbolos
religiosos. Alguns de ns somos mais frequentes aos templos religiosos, outros se limitam a
comparecer em algumas cerimnias, em datas festivas, outros nunca comparecem a
associaes religiosas, e outros sequer sentem necessidade da crena em um deus.
A escola pblica no est a servio de uma determinada religio. Ela acolhe alunos e alunas,
professores e professoras, que tm mais de uma crena religiosa e, por vezes, modos muito
diferentes de pertencer mesma crena religiosa. Basta ver que costumamos dividir os
17
catlicos em catlicos praticantes e no praticantes. Na atualidade, no apenas temos
grande nmero de opes de pertencimento religioso, como temos diferentes modos de
pertencer a uma religio. Alguns seguem as regras religiosas de modo mais estrito, outros
de modo mais frouxo. Temos muitas pessoas que, ao longo da vida, mudam de
pertencimento religioso um fenmeno cada vez mais frequente, e temos tambm pessoas
que pertencem a mais de uma religio ao mesmo tempo, pois sentem que, deste modo,
esto mais amparadas nos momentos difceis. E temos, alm disso, um contingente de
pessoas que no sente necessidade de pertencimento religioso numa certa fase da vida ou
por toda vida.
Todas estas diferenas esto presentes na escola pblica brasileira. E ela tem o dever de
acolher e promover o respeito entre indivduos to diferentes em termos de crenas, o que
no tarefa nada fcil. De acordo com o que est afirmado na Constituio Brasileira de
1988, o estado brasileiro laico (veja-se o Artigo 19 entre outros). Ou seja, ele no professa
nenhuma religio e deve assegurar que todos possam ter liberdade de professar a sua
religio. A escola pblica brasileira, como parte do estado brasileiro, e como legtimo espao
pblico, tem tambm este dever o de assegurar que alunos e professores tenham as mais
amplas liberdades de conscincia, de crena e de associao e manifestao religiosa. Vale
dizer que uma das possibilidades de manifestao religiosa o indivduo declarar-se ateu,
demonstrando, com isso, que tem uma posio vlida a qual deve ser respeitada no tema
das religies. Por todos estes motivos, a escola pblica brasileira no deve privilegiar uma
religio em detrimento das outras, pois o Brasil um pas que no tem religio oficial. Dizer
que uma escola pblica laica significa dizer que, nela, temos um regime social de
convivncia harmnica das diferenas de crena e de conscincia, e uma das modalidades
mais frequentes desta convivncia a tolerncia religiosa.
Mas, vale tambm lembrar que a liberdade de conscincia envolve muitos outros aspectos.
Por exemplo, a escola deve assegurar que alunos e alunas e professores e professoras de
diferentes opinies em poltica partidria convivam em regime de respeito. Dessa forma, a
escola, como tal, no pode apoiar um determinado partido poltico numa eleio, e muito
menos um candidato. Mesmo que tenhamos uma situao em que todos os alunos e
professores gostem do mesmo candidato, a escola como instituio no pode apoiar este
candidato, mas cada um pode fazer isso, pois da sua liberdade de crena e de conscincia.
O estado laico e a escola pblica laica surgem para defender a liberdade de conscincia e
de crena. Estas liberdades tm uma conexo direta com a democracia, com o estado de
direito e os regimes de justia. E isto se torna cada vez mais importante no mundo por conta
da proliferao dos contextos multiculturais e da globalizao, que coloca distintas culturas
em contato. H vinte anos atrs, no conhecamos de perto nenhuma mesquita no Brasil,
hoje temos mesquitas rabes em todas as capitais e, em muitas cidades brasileiras, os
muulmanos alugaram uma sala e ali realizam suas prticas religiosas, mesmo sem a
construo da mesquita. O estado laico protege melhor as minorias. O estado laico se liga
ao pluralismo cultural.
Termino este texto bsico, enfatizando que a escola cumpre um papel muito importante na
formao de cidadania das novas geraes, ensinando-as como se constitui e se mantm o
18
regime de diversidade, tolerncia e respeito que caracteriza o espao pblico, fundamental
para a democracia. Esta tarefa da escola , certamente, muito difcil e enfrenta as presses
das famlias. Se uma famlia fortemente catlica, vai querer, no fundo, que sua filha estude
numa sala de aula apenas com colegas catlicos, e no vai ver com bons olhos a presena
de afro religiosos, pentecostais, espritas etc. Mas dever da escola ensinar a estas
crianas, e a estas famlias, que, no espao pblico, todos tm o direito de expressar suas
crenas, sendo esta uma das salvaguardas da vida em sociedade.
REFERNCIAS
DA MATTA, R. A Casa & a Rua. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
BRASIL, Constituio Federal, 1988.
19
Unidade 4
Diversidade de gerao
ENTRE O INDIVIDUAL E O SOCIAL: TRAJETRIAS DE
VIDA, QUESTES DE GERAO E POSSIBILIDADES
PARA O DILOGO INTERGERACIONAL
Carla Beatriz Meinerz
Nenhum indivduo deve ser compreendido fora da perspectiva cultural em que se constitui.
Ao pensarmos que a diversidade uma caracterstica das relaes que se estabelecem na
contemporaneidade, tambm a ideia de fazer parte de uma gerao com caractersticas
homogneas deve ser relativizada. Os seres humanos no repetem em suas vidas um ciclo
nico e universal, categoricamente dividido em etapas, em que infncia, juventude, adultez
e velhice se sucedem em vivncias similares e independentes dos contextos em que se
desenvolvem. Ao contrrio, a vida humana a possibilidade de traar trajetrias prprias
conforme o contexto social e histrico em que se realiza. Isso implica afirmar que um sujeito
pode ser considerado jovem independente da sua faixa etria, dependendo da sociedade
em que se constitui como tal. A experincia dessa juventude ser matizada pela posio
social ocupada, assim como questes de gnero, racialidade, entre outros.
Se h uma heterogeneidade nas vivncias das variadas geraes, igualmente as relaes
intergeracionais sofrem transformaes. E justamente no mundo contemporneo que se
observam as mudanas mais expressivas na forma como se relacionam distintos grupos
nessa perspectiva. Diferentes pocas escolheram idealizar ou menosprezar determinados
perodos da vida. Atualmente, vivemos a valorizao da juventude como referncia de
melhor fase da existncia humana e um consequente desejo de prolongamento dessa
experincia nas trajetrias sociais e individuais. Partindo dessa constatao, enfatizamos,
nas reflexes a seguir, o tema da juventude para mediar a compreenso das questes
geracionais na contemporaneidade. Tal escolha revela-se importante tambm para a anlise
das relaes que acontecem no espao escolar, uma vez que o componente da convivncia
intergeracional parte da prtica cotidiana nesse ambiente.
Falaremos mais em juventude e culturas juvenis do que em jovens isoladamente, assim
como trataremos de conectar suas prticas com as experincias sociais que os envolvem,
especialmente marcadas pelas relaes com os adultos enquanto referncias vitais. O jovem
no tratado de forma isolada, mas enquanto juventude e, dentro da perspectiva da
diversidade de culturas juvenis existentes, compreendido como sintoma cultural. Atravs do
jovem pensaremos a criana, o adulto e o idoso.
Falar em juventude falar em diversidade, sendo que a mudana e a possibilidade de pensar
sobre ela so caractersticas fundamentais para a compreenso dos jovens numa
perspectiva social e histrica. A dificuldade em construir uma definio dessas categorias
vem sendo apontada por muitos autores brasileiros na rea da educao, que inovaram ao
vislumbrar, nesse campo, o jovem para alm da categoria de aluno.
20
Circulam, em nossa sociedade, diferentes representaes sobre ser jovem. O senso comum,
assim como parte da tradio cientfica moderna, tende a uniformizar tal conceito em torno
da varivel idade e da ideia de etapa transitria e conflituosa da vida humana. Ao mesmo
tempo, se reivindica a juventude como tempo ideal e se constri uma produo simblica,
especialmente atravs da mdia e dos apelos consumistas, investida de valores vinculados
a determinadas caractersticas como a beleza corporal, o estilo de se vestir, o esprito
empreendedor ou desconhecedor de limites no campo das relaes e da comunicao via
novas tecnologias. Tratando dessa reivindicao, a psicanalista Maria Rita Kehl afirma que:
O efeito paradoxal do campo de identificaes imaginrias aberto pela cultura jovem que
ele convoca pessoas de todas as idades. Quanto mais tempo pudermos nos considerar
jovens hoje em dia, melhor. Melhor para a indstria de quinquilharias descartveis, melhor
para a publicidade melhor para ns? O fato que nas ltimas dcadas viramos jovens
perenes. Por que no? (KEHL, 2007, p. 47).
H claramente a produo de objetos de consumo material e simblico nessa perspectiva
(roupas, aparelhos eletrnicos, grupos musicais, propagandas, filmes, comunidades virtuais,
entre tantos), mas h igualmente variadas formas de praticar e incorporar tal produo,
possibilitando o surgimento de diferentes grupos, tribos dentro das chamadas culturas
juvenis.
Essa idealizao est tambm relacionada com as condies econmicas e sociais
contemporneas, em que as possibilidades de ingresso no mundo do trabalho escasseiam
e a necessidade de qualificao cresce cada vez mais, acompanhada de instabilidade e
incertezas quanto ao futuro. Reconhecemos as exigncias dessa materialidade, articulando
a questo geracional com as de origem social, de gnero, de racialidade, de territorialidade,
entre outras.
Nem o critrio da idade nem a perspectiva de transitoriedade podem ser tomados como
variveis independentes. Do ponto de vista poltico-administrativo, as fronteiras entre
infncia, adolescncia, juventude e vida adulta, no Brasil, baseiam-se nos dados do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE), que confirmam a adolescncia na populao
compreendida entre a faixa etria dos doze aos dezoito anos, e a juventude, dos dezoito aos
vinte e quatro anos. Os estudos de juventude, entretanto, alargam esse tempo para os 29
anos de idade. Outro referencial importante o Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA),
que define a faixa etria dos doze aos dezoito anos incompletos para as medidas de
proteo e ateno integral criana e ao adolescente.
Quanto questo da transitoriedade, no se pode negar que a adolescncia e a juventude
esto relacionadas com a vivncia de uma experincia que oscila entre as exigncias do
mundo infantil e as do mundo adulto. Os critrios para demarcar esse perodo no so,
todavia, apenas biolgicos. As modificaes corporais aparecem mais ou menos em todas
as sociedades na mesma faixa etria. Por outro lado, a integrao do indivduo no mundo
dos adultos varia nas diferentes sociedades e, dentro delas mesmas, nas diversas
experincias e prticas socioculturais. Jovens com a mesma faixa etria vivem esse perodo
de diferentes maneiras, conforme a cultura em que esto inseridos.
21
Em quase todas as culturas existem ritos de passagem da vida infantil para a adulta, e a
antropologia nos proporciona muitos relatos sobre rituais que marcam essa mudana. O
exemplo dos ndios Tkuna do Alto Solimes, Amazonas, narrado pelo antroplogo Ari
Pedro Oro (1977), pode ser uma referncia. Segundo o autor, as crianas, a partir dos seis
ou sete anos de idade, deixam de brincar juntas e cada uma passa a participar da vida adulta
de seus sexos, at chegar o perodo do rito maior de passagem, que marca o novo
comportamento social e status, iniciando nova vida. Para as meninas, existe a Festa da
Menina-Moa.
Quando aparece a primeira menstruao, a menina recolhida e fica isolada, enquanto os
parentes preparam uma festa. Durante a comemorao ela libertada, tem seus cabelos
arrancados e recebe conselhos das ancis. A partir de ento, o grupo esperar um
comportamento adulto da moa. Embora na sociedade ocidental e contempornea, tal
passagem no tenha um tempo ou um rito nico e determinado, igualmente as famlias
possuem rituais, como o baile de debutantes ou a primeira sada para uma festa sem a
presena dos pais. A prpria escola pode ser analisada como um possvel lugar de
passagem nessa perspectiva.
A passagem, quando no bem delimitada, pode gerar uma prolongao dessa experincia
vital, criando-se um perodo em que o sujeito v postergada sua entrada no mundo adulto,
no assumindo responsabilidades vinculadas ao trabalho, constituio de famlia, entre
outras.
Historicamente, o reconhecimento de uma fase da vida, distinta da infncia e da vida adulta,
nas sociedades ocidentais crists, desenvolve-se com nitidez entre o final do perodo
moderno e a inaugurao do perodo contemporneo, surgida da revoluo industrial e das
revolues burguesas, refletida nos novos processos dentro da cincia e da escolarizao.
At o sculo XVIII, confundia-se infncia e juventude, sendo que a ltima era sinnimo de
vagabundagem e, por isso, se confirmava a necessidade social de impor educao e
trabalho s geraes mais novas, livrando-as das caractersticas negativas, vinculadas ao
cio e libertinagem. A escola recebe a tarefa de evitar tais vnculos, educando para a vida
em sociedade, ou seja, para o trabalho intelectual e manual, conforme a posio social
ocupada pelo sujeito. Somos herdeiros de um projeto pedaggico delineado sob tal
argumentao, e a maneira como lidamos com os jovens, ainda hoje, apresenta
caractersticas desse tipo de representao social. Da decorre o dilogo intergeracional
precrio que se estabelece nas relaes pedaggicas cotidianas, expresso nas dificuldades
crescentes das relaes entre professores e alunos, assim como na limitada troca de
saberes entre os mesmos.
A partir do sculo XVIII, buscou-se definir as fronteiras entre o mundo infantil e o mundo
adulto, a esfera do estudo e da preparao para o futuro, de um lado, e o mundo do trabalho
e da formao de uma famlia, de outro. O mundo da liberdade de escolha, por uma parte,
e das opes sedimentadas, por outra. A passagem, no entanto, na atualidade est
ameaada por uma nova indefinio dos limites entre esses mundos, agravada pela
desigualdade na possibilidade de escolher, de selecionar, de produzir trajetrias de vida,
dependendo da condio social do sujeito.
22
Podemos pensar que a juventude um perodo constitudo pela mudana como
centralidade, em que o corpo, a afetividade, as referncias sociais e grupais se constituem
num novo patamar da experincia vital. Somos convocados/as a dizer quem somos e quem
poderemos ser, do que gostamos, de quem gostamos, enfim, fazemos aprendizados que
so significativos para o resto da vida. A mudana contnua e, especialmente, a capacidade
de lidar com isso o que se pede ao adulto em sua experincia individual e social. Essa
perspectiva desloca a ateno dos contedos da experincia para os processos da
construo de cada sujeito ou grupo. Ao invs de descrever os contedos prprios dessa
fase da vida e explicar os sujeitos a partir deles, busca-se compreender os processos
vivenciados pelo sujeito, envolto em seu entorno cultural e histrico. Um exemplo desse
modo de compreenso dos sujeitos a importncia atribuda juventude entre os grupos
populares como tempo de opes fundamentais, uma vez que uma escolha pelo trfico de
drogas ou pela gravidez, nessa poca, pode resultar em situaes emblemticas para a vida
inteira.
Se as geraes mais novas convivem com adultos que tampouco consolidaram suas
existncias socialmente, vivendo a instabilidade e as incertezas em seu cotidiano, ou so
inbeis para lidar com as mudanas, cria-se um dilema. Esse dilema prprio do contexto
contemporneo, destacando-se que, segundo Fabrinni e Melluci,
Deve ser reconhecido, ento, que as caractersticas atribudas ao adulto maduro, que
parecem referir-se a um tipo de estabilidade adquirida e duradoura, no tm uma resposta
efetiva na experincia de nenhuma pessoa real. Os problemas que se encontram pela
primeira vez na adolescncia: escolhas, dilemas, relao com mudanas contnuas, no so
superados na adolescncia, mas iniciam a partir dela a fazer parte do panorama existencial
de cada um. So tenses atuais para cada adulto s voltas com a vida [...] (FABBRINI;
MELUCCI, 2004, p. 7).
A contradio e a mudana so parte da condio humana, cuja capacidade criativa se
revela na produo da cultura, mesmo em condies sociais adversas, na reinveno do
cotidiano e na fabricao de estratgias de sobrevivncia. Michel de Certeau (1994) uma
referncia importante para pensar nessa perspectiva da vida cotidiana enquanto mediadora
fundamental na historicidade da sociedade.
Pensar o jovem como sintoma cultural significa compreender, em suas experincias, traos
de uma sociedade que se multiplica em questes e problemticas sociais complexas.
Desloca-se a identidade juvenil historicamente vinculada gerao de problemas sociais
para a de especial vtima da sociedade em que vive. Alguns dados lanados pelas pesquisas
constitutivas do Mapa da Violncia no Brasil/2011 evidenciam a crescente vitimizao dos
jovens brasileiros. So eles que morrem em maior quantidade, assassinados ou vtimas de
acidentes de trnsito.
Dessa forma, ao mesmo tempo em que o jovem modelo ideal nas produes simblicas,
tambm representativo do grupo mais atingido pelas incertezas e problemas da nossa
sociedade. Isso porque nossa organizao social inclui uma opo de desenvolvimento em
que a criana e o velho pouco contam, por serem parcial ou totalmente improdutivos. o
23
adulto a referncia para a construo de polticas pblicas em geral, do lazer segurana e
justia. A criana, o jovem e o velho esto num segundo plano, embora algumas aes e
iniciativas floresam no tecido social mais atual. Tendemos a afirmar que o idoso aquele
que mais sofre com a experincia da falta de um lugar social reconhecido, justamente no
momento em que teoricamente o amadurecimento desse perodo da vida qualificaria
enormemente a relao com as demais geraes.
O tema das relaes intergeracionais deve ser entendido a partir da diversidade cultural das
experincias geracionais, para, ento, proporcionar alguns questionamentos sobre a
qualidade dessas relaes, no sentido do respeito e da troca de saberes entre si.
justamente na escola onde diferentes geraes tm a oportunidade de se encontrar
cotidianamente e construir a possibilidade de um dilogo qualificado. Mas isso o que
acontece? Crianas, jovens, adultos e velhos interagem no sentido do respeito mtuo e da
troca de saberes nesse ambiente? O professor age como um adulto e, portanto, uma
referncia para seus alunos? O professor v no seu aluno o jovem, a criana ou o velho em
suas experincias concretas?
A escola um espao sociocultural e as relaes sociais presentes nesse ambiente esto
conectadas com as experincias socioculturais e com a forma como os sujeitos se apropriam
das mesmas. Sabemos que a escola e seu papel social so diariamente colocados em
questo. Assim, uma das primeiras coisas a fazer reconhecer que nossas prticas se
inserem numa instituio no explicada s pelo presente, mas que tem uma tradio e uma
memria histrica que a engendram. Na cultura desenvolve-se tambm a educao. No
sculo XX, nos aproximamos de algo que podemos chamar de cultura mundial e da
possibilidade de convertermo-nos em cidados totalmente conscientes do mundo. A
antroploga Margaret Mead (1971) aponta para a constatao de que estamos vivendo uma
experincia nica na histria da humanidade. Trata-se do aparecimento de um novo tipo de
cultura em que os mais jovens assumem uma nova autoridade e representam o porvir, o
futuro ainda desconhecido. Para a autora, h culturas posfigurativas em que os jovens
aprendem dos adultos, culturas cofigurativas em que adultos e jovens aprendem juntos e
culturas prefigurativas em que os adultos aprendem dos mais novos. No mundo atual,
convivem as trs experincias culturais, mas a tendncia hegemnica de que a juventude
assuma um papel cultural fundamental o que pode ter grandes repercusses para a
instituio escolar.
A educao uma experincia antropolgica presente em qualquer cultura, independente
da existncia de instituies escolares. A escola de hoje uma resposta s necessidades
de complexificao das sociedades contemporneas, resultantes das demandas da
industrializao e da urbanizao, podendo ser reinventada na medida em que esses
processos se aceleram cada vez mais, ao passo que os sujeitos sociais agem sobre eles.
Os processos de escolarizao modernos e contemporneos esto relacionados com os
processos civilizatrios e com os processos de socializao, que incluem a adaptao do
indivduo sociedade vigente ou emergente. Porm, os seres humanos individuais ligam-se
numa pluralidade, configurando algo novo: a sociedade. A indissociabilidade de ambos e, ao
mesmo tempo, a singularidade de cada um, o que desafia a nossa compreenso. nessa
24
complexidade que devemos pensar ao tratar das relaes intergeracionais na escola,
construindo o caminho do dilogo e da troca de saberes entre diversificadas experincias de
geraes.
REFERNCIAS
CERTEAU, M. A Inveno do Cotidiano. Petrpolis: Vozes, 1994.
DAYRELL, J. A Escola Como Espao Scio-Cultural. In: ______. Mltiplos Olhares Sobre
Educao e Cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1996.
______. A Msica Entra em Cena: o rap e o funk na socializao da juventude em Belo
Horizonte. So Paulo: USP, 2001. Tese (Doutorado em Educao) Programa de
Ps-Graduao da Faculdade de Educao, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2001.
FABBRINI, A; MELUCCI, A. A Idade de Ouro. Traduo livre. [S.l.: s.n.], 2004. Texto digitado.
KEHL, M. R. A juventude como sintoma cultural. Revista Outro Olhar, Belo Horizonte, ano
V, nmero 6, 2007.
MEAD, M. Cultura y Compromiso: estudios sobre la ruptura generacional. Buenos Aires:
Granica, 1971.
ORO, A. P. Tkuna: vida ou morte. Caxias do Sul: UCS; Porto Alegre, Escola Superior de
Teologia So Loureno de Brindes, 1977.
SPOSITO, M. P. Consideraes em Torno do Conhecimento Sobre Juventude na rea de
Educao. In: ______. Juventude e Escolarizao. Braslia: INEP, 2001. (Srie
25
Unidade 5
Diversidade tnico-racial: indgenas
POVOS INDGENAS E EDUCAO AUDIOVISUAL
Cludio de S Machado Jnior
Quando pensamos nas origens da cultura brasileira, quase sempre nos remetemos noo
de miscigenao tnica e, consequentemente, destacamos a importncia das culturas
nativas americanas (denominadas comumente como indgenas), africanas e europeias.
Tudo isso de maneira bem genrica, sem considerar a diversidade existente dentro destes
grupos. Geralmente, e mesmo na contemporaneidade, ignoramos que h uma diversidade
de quase duas centenas de etnias indgenas no Brasil. Tambm desconhecemos, em grande
parcela, a diversidade cultural, religiosa e poltica que caracteriza o atual e imenso continente
africano. E, por fim, remetemos a uma ideia vaga sobre a tradio da cultura europeia,
caracterizando, na maioria das vezes, uma suposta pureza tnica, muito embasada em
teorias racistas do passado, que contrariam a prpria experincia de miscigenao e trocas
culturais da histria da Europa.
O que quase nunca fazemos uma reflexo sobre a origem de nossos pensamentos, como
estabelecemos pr-conceitos sobre aquilo que julgamos conhecer ou simplesmente
desconhecemos a existncia. No caso da caracterizao de uma cultura brasileira, como
mencionado no pargrafo anterior, muito pouco refletimos sobre a origem das constataes
sobre a nossa cultura, e quase nunca o fazemos no que diz respeito cultura dos outros.
Trata-se de um exerccio de reflexo que apontaria para um provvel sentimento de
pertencimento que temos com relao a determinadas culturas e etnias em que nos
imaginamos inseridos pela experincia cotidiana. E de onde vem esse nosso conhecimento?
Podemos pensar em algumas instituies sociais que so responsveis pela manuteno
de um denominado patrimnio cultural da humanidade, entre elas a escola e os meios de
comunicao de massa, responsveis pela difuso do conhecimento e da informao,
especialmente na contemporaneidade.
Uma provocao pode ser lanada: ser a escola, espao de nossa experincia discente e
docente, um local por excelncia da produo de conhecimento? A resposta pode ser sim.
Ou no. Se considerarmos apenas a experincia infantil, comumente as crianas brasileiras
dedicam apenas um turno para a realizao de atividades escolares. Em outros turnos,
temos uma srie de instituies que exercem influncia sobre a sua formao: suas relaes
de sociabilidade em crculos de amizade, a participao em atividades de instituies
religiosas, a influncia de jornais impressos, programas televisivos e, mais recentemente,
contedos especficos da internet. Isso para citar apenas alguns elementos com os quais a
escola disputa pela ateno da criana.
No caso de adultos, muitos deles j passaram pelos bancos escolares, alguns com Ensino
Fundamental completo, outros incompleto, valendo o mesmo para o Ensino Mdio. Nem
todos do prosseguimento aos estudos ou mesmo optam, ou no tm a oportunidade, de
26
cursar o Ensino Superior. neste sentido que gostaria de enfatizar a importncia de outras
instituies que se encontram paralelas escola e que exercem uma influncia significativa
na sociedade. Alguns sero abordados nos mdulos do presente curso. De nosso interesse
especfico, lanaremos alguns olhares sobre o cinema, espao por excelncia de projees
flmicas, e a televiso, instituio responsvel pela transmisso de contedo variado, que se
popularizou significativamente em todas as partes do mundo, especialmente no Brasil.
Nosso contraponto ser a construo de identidades especficas criadas dentro destes
recursos audiovisuais. Mais especificamente, e de nosso interesse direto, nos deteremos
nas representaes que remetem comumente s origens de nossa identidade nacional,
embasada na figura dos povos indgenas. Veremos alguns exemplos de construo de
imagens desta cultura no audiovisual: como ocorre, que esteretipo valoriza, se considera a
diversidade tnico-cultural, e se cumpre, em determinadas circunstncias, um papel
pedaggico sobre a existncia e respeito destes povos na contemporaneidade, e no
somente vinculada a uma histria do passado.
HISTRIA BRASILEIRA E LEITURAS CULTURAIS
Uma anlise sobre a construo da histria brasileira destaca os chamados documentos
histricos como fontes importantes de acesso a informaes do passado. No caso dos
primeiros anos do perodo colonial brasileiro, essas fontes constituem-se em grande maioria
por cartas e relatos de viagem, produzidos por detentores do domnio da escrita e,
consequentemente, carregadas de subjetividade a partir da experincia de quem os escreve.
Uma descrio da terra e dos povos que aqui foram encontrados no sculo XVI, portanto,
est carregada de uma subjetividade que tem como ponto de partida a prpria experincia
social e da escolarizao europeia, que, em muitos dos casos, se caracterizou como
essencialmente catlica.
As interpretaes do sculo XVI sobre os povos que habitavam a Amrica, e que foram
genericamente chamados de ndios, tinham, portanto, como ponto de partida, o juzo de
valor de quem exerceu a autoridade do discurso. E neste sentido que percebemos a
construo de uma identidade sobre o outro que parte do ponto de vista do eu, e que
caracteriza, por exemplo, o diferente, o extico, o errneo comportamental e o predisposto
converso crist. A leitura de um trecho de carta enviada Coimbra em 1549, pelo padre
jesuta Manuel da Nbrega, um dos lderes da primeira misso da Companhia de Jesus no
Brasil, deixa claro uma impresso criada sobre a cultura nativa local como vinculada a maus
costumes, que se contrapunham ideologia do comportamento condicionado catlico e
lgica da prpria organizao das instituies educacionais do sculo XVI.
Convidamos os meninos a ler e escrever e conjunctamente lhes ensinamos a doutrina christ [...],
porque muito se admiram de como sabemos ler e escrever e tm grande inveja e vontade de
aprender e desejam ser christos como ns outros. Mas somente o impede o muito que custa tirar-
lhe os maus costumes delles, e nisso est hoje toda a fadiga nossa (NBREGA apud FARIA, 2006,
p. 68).
27
Por se tratar de uma cultura muito embasada na tradio oral, alm de considerarmos
tambm a influncia do condicionamento poltico imposto pelos colonizadores, dificilmente
encontraremos documentaes de poca produzidas pelos prprios nativos brasileiros. E,
assim, temos, ao longo de toda a nossa histria, a construo de vrios discursos sobre um
segmento de nossa populao que de protagonista passou a ocupar uma posio
secundria em nossos livros didticos, carregados, muitas vezes, por um descuido de
compreenso sobre as circunstncias da criao de determinados discursos, ou mesmo
imbudos de um sentimento de discriminao e preconceito diversidade cultural, que no
nos remete necessariamente a perodos to remotos de nossa experincia social.
A observao sobre a trajetria dos documentos que referem a ideia da construo da
alteridade dos povos indgenas brasileiros remeter percepo de um discurso que se
deteve prioritariamente na forma escrita, com algumas incurses pelo universo da
representao pictrico-artstica. Assim, desenhos, pinturas e esculturas procuraram dar
conta, em algumas situaes, de uma interpretao sobre a caracterizao de nossa
sociedade. E, no que diz respeito aos povos indgenas, interessante a constatao da
criao de representaes que quase sempre se remetem a um contexto inicial de
colonizao, especialmente a partir do sculo XIX, quando a questo tornou-se um problema
que se confundia com a necessidade de incorporao de mo-de-obra rural.
ROTEIROS PARA UMA NARRATIVA: A QUESTO INDGENA
Ao observarmos a histria do audiovisual, especialmente no Brasil, encontraremos amplas
dificuldades de evidenciar um protagonismo indgena no que diz respeito sua formao.
Isso porque o nosso processo de desenvolvimento das comunicaes, ou mesmo das
telecomunicaes, indissocivel de nossa histria econmica, social e poltica. Nossa
experincia de formao passa pelos traumas de uma nao que se desenvolveu atravs
da colonizao, seja ela efetiva ou simblica. No foram criados mecanismos de integrao
social em todo o perodo colonial e imperial, e na repblica, aps mais de uma centena de
anos de experincia poltica, somente assistimos na contemporaneidade aes
governamentais, pressionadas por movimentos sociais (essencialmente), que buscaram a
valorizao da diversidade cultural e tnica, em suas mais diversas instncias.
A participao da cultura indgena no contexto do desenvolvimento do audiovisual brasileiro
se caracterizou pela condio de povos em pauta de filmagem, e no povos que realizaram
filmagens. Algo semelhante com o que ocorreu, ao longo de toda a nossa histria, com a
documentao escrita e pictrica da qual se valem muitos historiadores contemporneos e
que engendrou um ponto de vista sobre o outro sem que, necessariamente, esse outro
tivesse uma participao efetiva no discurso visual ou verbal. No vis mais tradicional e
pedaggico: uma histria indgena contada pelo europeu, e no pelos prprios povos
indgenas. A mesma situao que pode ser percebida em outras instncias tnicas, de
classe social, de origem religiosa, e at mesmo de gnero, especialmente numa sociedade
patriarcalista.
No contexto republicano, a criao, no ano de 1910, do SPILTN, Servio de Proteo ao
ndio e Localizao de Trabalhadores Nacionais, j demonstra que a questo indgena no
28
Brasil se apresentava como um problema comportamental, de necessidade de adequao
engrenagem moderna do trabalho, especialmente no interior do pas, onde a mo de obra
se fazia mais escassa. As expedies financiadas pelos governos brasileiros, e inclusive
estrangeiros, revelavam a imagem de um Brasil que, at ento, se desconhecia. A
antropologia, nesse sentido, trabalhou em prol de interesses de Estado, pelo menos em um
primeiro momento, adquirindo autonomia e criticidade de pensamento somente anos depois.
Posteriormente denominado apenas como SPI, foi somente em 1967 que o rgo foi extinto
para a criao da FUNAI, a Fundao Nacional do ndio. Contraditoriamente, como poderia
se pensar, a FUNAI surgiu justamente no perodo de no democratizao da poltica
brasileira, remontando aos acontecimentos de 1964 e consequente anulao dos direitos
constitucionais, imposta por mais de uma dezena de atos institucionais. Na legislao da
poca, cabe destacar o incio do primeiro artigo que remete sua lei de criao, conforme
consta no trecho a seguir.
Art. 1. Fica o Governo Federal autorizado a instituir uma fundao, com patrimnio prprio
e personalidade jurdica de direito privado, nos termos da lei civil denominada Fundao
Nacional do ndio, com as seguintes finalidades: I - estabelecer as diretrizes e garantir o
cumprimento da poltica indigenista, baseada nos princpios a seguir enumerados: a)
respeito pessoa do ndio e s instituies e comunidades tribais; b) garantia posse
permanente das terras que habitam e o usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas
as unidades nelas existentes; c) preservao do equilbrio biolgico e cultural do ndio, no
seu contato com a sociedade nacional; d) resguardo aculturao espontnea do ndio, de
forma que sua evoluo socioeconmica se processe a salvo de mudanas bruscas
(BRASIL, Lei 5.371 de 05/12/1967).
A questo indgena, no Brasil, foi objeto de preocupao muito grande no que concerne
questo da propriedade. A FUNAI surgiu como um rgo responsvel pela regulao e
acompanhamento deste problema que envolveu comunidades indgenas e grandes
fazendeiros, ou mesmo empreiteiros, em srios conflitos, deflagrando um confronto entre um
provvel desenvolvimento econmico e o direito terra pela tradio cultural. Anos depois,
com a abertura lenta e gradual do regime militar e a formao de uma Assembleia
Constituinte para restaurar a lei magna da nao, novamente a questo indgena retomou a
pauta de discusses polticas. E a prpria Constituio que assegurou aos povos indgenas
o direito educao especfica e diferenciada, com nfase no ensino proferido na lngua da
comunidade e na caracterizao de processos prprios de aprendizagem. Caso ainda no
conhea, segue abaixo o trecho da Constituio Brasileira sobre a questo supracitada.
Art. 210. Sero fixados contedos mnimos para o ensino fundamental, de maneira a
assegurar formao bsica comum e respeito aos valores culturais e artsticos, nacionais e
regionais. 1 - O ensino religioso, de matrcula facultativa, constituir disciplina dos horrios
normais das escolas pblicas de ensino fundamental. 2 - O ensino fundamental regular
ser ministrado em lngua portuguesa, assegurada s comunidades indgenas tambm a
utilizao de suas lnguas maternas e processos prprios de aprendizagem (BRASIL,
Constituio Federal, 05/10/1988).
29
Assegurar direitos escolares conforme a cultura de cada comunidade , de certo modo, fazer
com que as instituies de ensino se adequem aos interesses da sociedade, e no o
contrrio. Certamente, a situao contempornea do ensino pblico no Brasil suscita muitas
crticas e discusses, mas interessante saber que existem escolas no Brasil organizadas
de modo diferente no que refere questo indgena tanto nas esferas federais quanto
estaduais e municipais.
No final do sculo XX, assistimos a reformulao tambm do campo educacional brasileiro
com a elaborao e a publicao de uma terceira verso da Lei de Diretrizes e Bases da
Educao, a LDB. A lei da educao complementar prpria Constituio de 1988, que
teve seus debates ampliados e somente veio a ser promulgada em 1996. Mais de uma
dcada depois, uma nova redao foi atribuda parte da LDB, conhecida como Lei
11.645/2008, que tornou obrigatrio nas escolas a incorporao de temas relacionados
histria e cultura dos povos indgenas e afro-brasileiros. A abordagem deve ser realizada
em todas as disciplinas escolares, com destaque para as disciplinas de Histria, Educao
Artstica e Literatura.
A Lei 11.645 impulsionou a necessidade de se reestruturar a formao de professores no
Brasil que, durante toda a sua escolarizao, Bsica e Superior, no tiveram contato com
este tipo de abordagem. O presente curso fruto deste movimento de reestruturao. Algo,
infelizmente, que se fez ausente em praticamente toda a histria da educao brasileira.
Vale a pena darmos mais uma olhada na referida lei nacional.
Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino mdio, pblicos e
privados, torna-se obrigatrio o estudo da histria e cultura afro-brasileira e indgena
(Redao dada pela Lei n 11.645, de 2008). 1o O contedo programtico a que se refere
este artigo incluir diversos aspectos da histria e da cultura que caracterizam a formao
da populao brasileira, a partir desses dois grupos tnicos, tais como o estudo da histria
da frica e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indgenas no Brasil, a cultura negra
e indgena brasileira e o negro e o ndio na formao da sociedade nacional, resgatando as
suas contribuies nas reas social, econmica e poltica, pertinentes histria do Brasil
(Redao dada pela Lei n 11.645, de 2008). 2o Os contedos referentes histria e cultura
afro-brasileira e dos povos indgenas brasileiros sero ministrados no mbito de todo o
currculo escolar, em especial nas reas de educao artstica e de literatura e histria
brasileiras (Redao dada pela Lei n 11.645, de 2008) (BRASIL, Lei 9.394, 20/12/1996).
A questo indgena, portanto, tornou-se algo constitutivo do currculo escolar. No
simplesmente por ser inerente tambm prpria histria brasileira, mas por se tratar de uma
questo contempornea. Alguns se espantam, por desconhecimento, quando se fala na
existncia de mais de duzentas sociedades indgenas no Brasil atual, abarcando quase o
mesmo nmero no que diz respeito s lnguas faladas, segundo a FUNAI. A ideia, de certa
forma simples, de que todos que nascem no Brasil falam a lngua portuguesa fica sem
sustentao quando defrontada com estes dados.
Feitas algumas con