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Organização das Nações Unidas
para a Educação a Ciência e a Cultura
,
Correio O
DA UNESCO
Setembro 2010
ISSN 1993-8616
Haiti: a retomada
Somos todos haitianos
por Wole Soyinka
Renascimento haitiano
por Marie-Laurence Jocelyn-Lassègue
O ressurgimento do Haiti não
deverá começar da estaca zero
por Michèle Oriol
Imprensa no Haiti: a grande virada
por Roberson Alphonse
Os quatro pilares da
reconstrução do Haiti
por Alex Dupuy
A universidade na rua
por Jacky Lumarque
A UNESCO em ação
por Mehdi Benchelah
Arquivos: René Depestre
por Jasmina Šopova
Diversidade
Muitos dos sítios sagrados ao redor do mundo
constituem locais de ligação entre a diversidade
biológica e a diversidade cultural. A UNESCO se
empenha em tornar reconhecido seu papel na
preservação do meio ambiente e das culturas.
A Organização é um dos principais atores da
implementação de dois anos internacionais
celebrados em 2010:
O Ano Internacional da Biodiversidade, cujo
objetivo principal é estimular a refl exão e a ação
em prol da proteção das riquezas animais e
vegetais, assim como seus ambientes.
www.cbd.int/2010/welcome
e
o Ano Internacional de Aproximação das
Culturas, cujo objetivo principal é favorecer
o respeito pela cultura do outro e demolir as
barreiras entre as diferentes culturas.
www.unesco.org/fr/rapprochement-of-cultures
Uma conferência internacional sobre o tema
Diversidade Cultural e Biológica foi realizado em
Montreal (Canadá) de 8 a 10 de junho de 2010.
Para mais informações:
www.cbd.int/meetings/icbcd
Ler :
Caldecott, Julian; Miles, Atlas mondial des grands
singes et de leur conservation, UNESCO, 2010
Para comprar: http://publishing.unesco.org/
details.aspx?Code_Livre=4726
Investir dans la diversité culturelle et le
dialogue interculturel
Rapport mondial de l’UNESCO, 2009
Para comprar: http://publishing.unesco.org/details.
aspx?Code_Livre=4740
Disponível online: http://unesdoc.unesco.org/
images/0018/001878/187827f.pdf
Convention sur la protection et la promotion de
la diversité des expressions culturelles
Kit d’information
http://unesdoc.unesco.org/
images/0014/001495/149502F.pdf
Qu’est-ce que le patrimoine culturel immatériel?
www.unesco.org/culture/ich/doc/src/01851-FR.pdf
Outras publicações da UNESCO :
http://publishing.unesco.org/results.
aspx?&theme=3&change=F
Foto : Pinturas rupestres da galerie Anbangbang,
dentro do Parque Nacional de Kakadu (Austrália), sítio
do Patrimônio Mundial desde 1981. A arte rupestre de
Kakadu conta 40 mil anos de história. © Our Place the World Heritage Collection
Editorial por Irina Bokova, Diretora-geral da UNESCO 5
DOSSIÊSomos todos haitianos por Wole Soyinka 8
Responsabilidade, relação entre liberdade e solidariedade por Bernard Hadjadj 11
Cultura, berço do renascimento haitiano por Marie-Laurence Jocelyn-Lassègue 13
O ressurgimento do Haiti não deverá começar da estaca zero por Michèle Oriol 15
Construir um Haiti totalmente novo por Nancy Roc 19
Imprensa no Haiti: a grande virada por Roberson Alphonse 23
Em busca de uma humanidade mais solidária por Raoul Peck 25
O círculo vicioso da economia haitiana por Gérald Chéry 27
Cultura e Desenvolvimento: os dois lados da moeda por Antonio Vigilante 29
Os quatro pilares da reconstrução haitiana por Alex Dupuy 31
A universidade na rua entrevista com Jacky Lumarque por Jean O’Sullivan 34
Evitar que as mesmas causas venham a produzir os mesmos efeitos por Jean Coulange 36
UNESCO em Ação par Mehdi BenchelahCapacitação traz sua contribuição para a reconstrução 38Programa escolar de emergência 39
Arquivos
Kêbé l’Inesko Fò 41
Entre utopia e realidade, entrevista com René Depestre por Jasmina Šopova 44
Tópicos
FocoA educação sob ameaça da crise fi nanceira por Samer Al-Samarrai 47
Foco Educação para todos: não estamos cumprindo nossas promessas por Kevin Watkins 49
Perfi lGhani Alani: a caligrafi a é o vínculo entre o ser e a letra par Bassam Mansour 51
PerspectivasIgualdade de gênero entrevista com Sam Nujoma por Hans d’Orville e Clare Stark 53
O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0 . 3
Correio O
DA UNESCO
Setembro 2010
Organizacão das Nacões Unidas
para a Educaçãoa Ciência e a Cultura
,
O Correio da UNESCO é publicado pela Organização das
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura.
7, place de Fontenoy
75352 Paris 07 SP, França
www.unesco.org/courier
Editora-chefe : Jasmina Šopova
Editores:
Inglês : Cathy Nolan
Árabe: Bassam Mansour assisté par Zaina Dufour
Chinês: Weiny Cauhape
Espanhol: Luisa Futoransky e Francisco Vicente-Sandoval
Português: Ana Lúcia Guimarães
Russo: Katerina Markelova
Estagiária: Noémie Antony
Fotos : Danica Bijeljac e Fiona Ryan
Projeto gráfi co: Baseline Arts Ltd, Oxford
Impressão: UNESCO – CLD
Informações e direitos de reprodução: Fiona Ryan
+ 33 (0)1 45 68 15 88
Os artigos podem ser reproduzidos sob a condição de
estarem acompanhados do nome do autor e da menção
“Reproduzido do Correio da UNESCO”, precisando a data
da edição.
Os artigos exprimem a opinião de seus autores e não
necessariamente a da UNESCO.
As fotos que pertencem à UNESCO podem ser
reproduzidas com a menção ©UNESCO seguida do nome
do fotógrafo. Para obter fotos em alta resolução, favor
dirigir-se ao Banco de Fotos: [email protected].
As fronteiras retratadas nos mapas não implicam em
reconhecimento ofi cial pela UNESCO ou pelas Nações
Unidas, assim como as denominações de países ou de
territórios mencionados.
Esta edição foi publicada com o apoio do Bureau de
Planejamento Estratégico da UNESCO.
Obra do Centro Nacional de Arte, Porto Príncipe, Haiti.
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Mau tempo. Cap-Haitiano.
NESTA EDIÇÃO
Para além dos escombros, o Haiti encara o seu
futuro com um olhar lúcido. Após a catástrofe de
12 de janeiro de 2010, os haitianos que se expressam
nesta edição do Correio da UNESCO não se
satisfazem com suas lamentações. Se eles se voltam
ao passado é para analisar melhor a situação atual
de seu país e refl etir sobre seu futuro. Se eles se
criticam por falta de visão, por serem presas de
superstições ou pegos pela vitimização é para
melhor desembaraçar o terreno sobre o qual
ele deve ser reconstruído. Junto com outros
especialistas internacionais, que participaram
do Fórum Reconstituir o Tecido Social, Cultural e
Intelectual do Haiti, organizado pela UNESCO em
24 de março de 2010, eles esperam que a
comunidade internacional os ajudem hoje de
maneira mais responsável do que ontem. Porém, os
haitianos contam antes de tudo com eles mesmos
País onde os grãos da tirania foram semeados
junto com os da primeira Revolução Negra, para
usar uma expressão do nigeriano Wole Soyinka,
prêmio Nobel de Literatura de 1986, o Haiti prepara
a sua refundação. Trata-se de se reconstruir não
somente nos planos político, econômico e social,
mas também nos planos intelectual, afetivo e
moral. Para isso, o Haiti sente a necessidade de se
apoiar especialmente na educação, que precisa
reinventar, e a cultura, sua força vital essencial. No
âmbito internacional, essas duas áreas ressaltam
as competências da UNESCO, que se engajou logo
após a catástrofe em ajudar o país a se recuperar.
Jasmina Šopova
O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0 . 5
Um país inteiro procura sarar seus ferimentos.
O país ainda estava em fase de recuperação
devido ao choque dos ciclones, quando acabou
sendo devastado por um terrível terremoto.
No dia 12 de janeiro de 2010, o Haiti viveu
uma profunda afl ição: grande número de vidas
soterradas sob os escombros, inúmeras casas
destruídas, bibliotecas e museus danifi cados,
escolas derrubadas, o edifício recém-inaugurado
da Universidade Quisqueya desmoronado, a
Catedral de Porto Príncipe reduzida a pó... essas
imagens permanecerão gravadas para sempre
em nossas memórias.
Desde o início do ano, o Haiti está de luto.
Mas, à semelhança desses “pássaros inocentes”
que “estão aprendendo, de novo, a cantar no
silêncio das pessoas”, quando “a cicatriz realiza
sua obra de ternura”1, a esperança já renascia
das próprias cinzas no momento em que visitei
o país, apenas dois meses após a catástrofe. Eu
desejava exprimir a solidariedade da UNESCO
com o povo haitiano e, ao mesmo tempo,
decidir com as autoridades governamentais a
melhor maneira de conceber a assistência a ser
garantida pela nossa Organização. Há momentos
em que é impossível encontrar toda a energia da
esperança, se falta a soli-dariedade. E a verdade
é que todos nós estamos dispostos a ajudar
esta ilha devastada: durante a Conferência
Internacional de Doadores em favor do Haiti,
realizada em Nova Yorque, em 31 de março
passado, foi anunciada a contribuição de cerca
de US$ 10 bilhões, a médio prazo, para permitir a
recuperação do país.
Em resposta à contribuição feita na Conferência,
o presidente haitiano, René Préval, lançou
o apelo em favor da educação e a UNESCO
respondeu presente: ateliês de formação
destinados às construções parassísmicas,
programa escolar de emergência e apoio
psicossocial à escola (ver páginas 38-40
CONFERIR) são alguns dos primeiros projetos
que têm recebido a ajuda da Organização, graças
à campanha de arrecadação de fundos, lançada
em 14 de janeiro.
A moldura cultural
Praticamente ao mesmo tempo em que
acontecia a Conferência de Nova Yorque,
a UNESCO lançou, em colaboração com o
Ministério da Cultura e da Comunicação do
Haiti, os alicerces do Comitê Internacional
de Coordenação em favor da Cultura (CIC). A
ideia surgiu na sede da Organização, em 16 de
fevereiro passado, por ocasião de um encontro
internacional destinado a fazer o balanço em
relação ao estado dos sítios do patrimônio e da
vida cultural no Haiti, após o terremoto.
Presidida pela ministra haitiana da Cultura
e da Comunicação, Marie-Laurence Jocelyn
Lassègue, o CIC tem a missão de coordenar
todas as intervenções no campo da cultura,
no Haiti, além de mobilizar recursos para essa
fi nalidade. Em julho passado, o Comitê se reuniu
1. Intempéries 99, poema de
René Depestre, renomado
escritor haitiano, nascido em
Jacmel, em 29 de agosto de
1926, e ex-funcionário da
UNESCO.
EditorialPor Irina Bokova
Irina Bokova, Diretora-
geral da UNESCO, e
Marie-Laurence Jocelyn-
Lassègue, ministra
haitiana da Cultura
e da Comunicação.
Porto Príncipe,
março de 2010.
Há momentos
em que não
se consegue
ter a força da
esperança
sem a ajuda
solidária. E a
verdade é que
nós estendemos
a mão para esta
ilha devastada.
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Fermento de uma nova era
Um país privado de poetas, contadores de histórias, músicos, pintores, cantores e artistas estaria condenado a
morrer de resfriamento, em conformidade com a afi rmação de Amadou Hampâté Bâ, grande escritor e
etnólogo malinês?
O Haiti, certamente, não irá desaparecer porque todo o mundo está retomando sua atividade:
os pintores pintam, os poetas criam poemas, os cantores compõem canções e os escritores
elaboram textos; além disso, as narrativas voltam a circular, bem rapidamente, após o desastre
de 12 de janeiro de 2010.
Fomos tentados a nos evadir, a nos refugiar no imaginário e a criar mundos maravilhosos
com a perfeição de que somos capazes. Mas, após o terremoto, houve uma mudança em
nossa postura. O recomeço de tudo é, daqui em diante, o fermento de uma nova era. Ela
induz a renovação das mentalidades projetadas para a construção de um futuro concreto
com a ajuda, evidentemente, de nossa criatividade e de nossa imaginação, exacerbadas
pela relação permanente com o sofrimento.
Mimi Barthélémy,
contadora de histórias
e escritora haitiana
UNESCO, 24 de
março de 2010
para estabelecer o “roteiro de operações”, que
incluíam recomendações como realizar um
inventário de Porto Príncipe, a capital, e de
Jacmel, cidade nomeada a fi gurar na Lista do
Patrimônio Mundial; identifi car as expressões
culturais de natureza imaterial mais ameaçadas
de desaparecimento; organizar a proteção de
arquivos, livros e outros bens móveis culturais;
além de proceder à coleta de dados e à
elaboração de ferramentas metodológicas no
setor das indústrias culturais.
Para garantir a realização das recomendações
do CIC, decidi criar um Comitê Internacional de
Doadores que irá reunir-se, no início de 2011, para
analisar as primeiras proposições de projetos.
Até agora, a UNESCO já investiu cerca de US$
450 mil de seu orçamento regular em ações no
domínio da cultura, no Haiti, incluindo o projeto
de salvaguarda do Parque Nacional Histórico, no
norte da ilha, que tem uma importância realmente
simbólica para o país; este sítio do Patrimônio
Mundial inclui, de fato, a Cidadela, o Palácio de
Sans Souci e os prédios des Ramiers, que datam
do início do século XIX, época em que a primeira
República Negra proclamou sua independência.
As ajudas já estão sendo postas em prática:
por exemplo, a de uma instituição budista da
República da Coreia que visa apoiar “peças de
teatro nos campos de desabrigados em Porto
Príncipe.” Tenho grande apreço por esse projeto
por acreditar que o uso do efeito de catarse do
teatro faz brotar as sementes da esperança, até
mesmo em situações mais afl itivas (ver destaque).
E, por acreditar que a cultura também
tem um papel de catalisador e de motor
de crescimento da sociedade, julgo que o
desenvolvimento não pode ser concebido
sem sua colaboração. É uma realidade que
está começando a ser aceita: a cultura está,
fi nalmente, penetrando “no mundo” da
economia e das fi nanças. Eis a prova: ganhou seu
lugar no Programa de Avaliação Conjunta das
Necessidades ocasionadas pelo Terremoto, que
foi lançado em 18 fevereiro, em Porto Príncipe.
Os pivôs essenciais do futuro
Imediatamente após o sismo, a UNESCO
obteve imagens de satélite para elaborar um
mapeamento detalhado da avaliação de riscos
para o patrimônio cultural, no Haiti. Este projeto
“A cultura é
o recurso que
a sociedade
precisa para
sua passagem
de hoje para
amanhã.”
Arjun Appadurai,
sociólogo indiano
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a ser realizado em colaboração com a Agência
Espacial Europeia faz parte de uma série de
iniciativas científi cas. Obviamente, a primeira
e mais urgente, diz respeito à água. Desde
janeiro, o Programa Hidrológico Internacional
da UNESCO (PHI) começou a elaborar um plano
de ação para a gestão dos recursos hídricos no
país. No longo prazo, preparamos uma proposta
que visa a criação de um Instituto Haitiano
de Ciência e Tecnologia para prevenção de
desastres naturais, destinado a avaliar os riscos
de acontecer novos desastres, além de traçar
e implementar planos de ação para atenuar
seus efeitos, fornecer educação e formação em
matéria de prevenção de tais catástrofes, e ao
mesmo tempo promover a conscientização do
público em geral.
Com certeza, a conscientização da população
e seu acesso à informação são preocupações
primordiais da UNESCO, que já forneceu uma
ajuda inicial de emergência para salvaguardar o
patrimônio documental em perigo. A Organização
também está implementando um projeto de
unidade multimídia móvel para permitir que
as vítimas de desastres – especialmente, os
jovens – aprendam a usar novas ferramentas
de comunicação. Sinto que tal iniciativa terá
efeitos benéfi cos não apenas para o acesso à
informação, mas também para a coesão social
no interior dos campos destinados às pessoas
desabrigadas.
Uma tarefa gigantesca nos espera também
para atuar na área das ciências sociais que,
junto com a área da educação, da cultura, das
ciências naturais e da comunicação – são pilares
essenciais (um “Poto mitan”, como se diz na
bela língua crioula) para a restauração e para
a reconstrução do Haiti. Todo o tecido social
haitiano terá de ser reconstituído para que a Ilha
renasça. E a história de um país não se escreve
em improváveis “tábulas rasas” do passado,
mas na continuidade de seus confl itos e de seus
combates, assim como de suas realizações e de
seus ensinamentos.
Eis o motivo que me levou a organizar, em
24 de março, um Fórum sobre o Haiti que reuniu
escritores, jornalistas, políticos e especialistas
internacionais. Sob a égide da UNESCO, eles
debateram as vias a serem empreendidas pelo
Haiti rumo ao desenvolvimento sustentável.
Esta edição especial do Correio da UNESCO é
uma refl exão desses debates que revelam o
papel central atribuído à cultura e à educação na
reconstrução do país. ■
Um momento de humor pode nutrir uma pessoa por vários meses
Fornecer um momento de alegria e de aconchego às pessoas
desalojadas de Porto Príncipe, além de ajudá-las a libertar-se de suas
ansiedades, posto que a maior parte delas perdeu tudo no terremoto de
12 de janeiro de 2010, é o objetivo de um projeto teatral apoiado pela
UNESCO em parceria com a companhia haitiana Zhovie. Sua primeira
apresentação aconteceu no domingo, dia 11 de abril de 2010, com
a peça “Zombi Lage”, diante de vários milhares de espectadores no
acampamento de Acra, que abriga cerca de 20.000 pessoas em tendas e
barracas improvisadas na Avenue Delmas, a principal via da capital Porto
Príncipe.
“Essa peça tem o objetivo de oferecer às vítimas do terremoto e, em
especial, aos jovens, um momento terapêutico”, explica Jean Joseph,
comediante do grupo que é professor de fi losofi a em uma escola de
ensino médio da capital. “Se queremos ajudar as pessoas, não basta
oferecer comida. Da mesma forma, não existe apenas a saúde física, mas
também a saúde mental. Como comediantes, devemos ajudar todas
essas pessoas deprimidas e desesperadas, bem como tentar despertar
de novo sua esperança. Uma recordação positiva, um momento de
humor, pode nutrir uma pessoa durante vários meses”, considera o
professor e comediante amador.
Fundada em 2004, a Zhovie é um grupo de teatro de rua composta
por 14 atores e três percussionistas. Seu espetáculo “Zombi Lage”
evoca o terremoto por meio de trechos do texto do escritor haitiano
Frankétienne, nomeado Artista UNESCO para a Paz em março de 2010.
A peça mostra as divindades do culto vodu, tais como o Barão Samedi,
o senhor dos mortos, ou personagens como o zumbi, morto-vivo
atormentado.
O grupo tem sido muito solicitado e a UNESCO pretende patrocinar
uma série de representações em outros campos de pessoas deslocadas.
M. B.
Cena do espetáculo “Zombi Lage”. Camp d’Acra, 11 de abril de 2010.
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8 . O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0
« Quando desaparece uma casa, extingue-se,
ao mesmo tempo, um sótão comlembranças»,
declara o prêmio Nobel de Literatura em 1986,
Wole Soyinka, que lança um apelo no sentido
de «restaurar o espírito» do Haiti, um país às
voltas com contradições políticas e vítima das
forças incontroláveis da Natureza.
Somos todos
haitianosPor Wole Soyinka
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Se, algum dia, uma ilha nasceu sob uma
estrela desafortunada, só poderia ter sido
aquela que, outrora, foi batizada com o nome
de «Hispaniola», e cuja metade ocidental é
denominada Haiti; esta terra é impregnada
de profundas contradições que simbolizam,
simultaneamente, a mais nobre aspiração do
espírito humano, a liberdade, e seu eterno
inimigo, a tirania. Nem sequer a espiritualidade
do continente africano – que, durante inúmeras
gerações, havia protegido seus povos contra
a decadência humana – conseguiu escapar
à conversão tirânica. O vodu tornou-se um
elemento da face obscura do folclore, aliança de
terror supersticioso com a política que confi na a
nação sob sua mortalha opaca e diabólica; aliás,
as artes cinematográfi cas tiram o maior proveito
dessa situação. Atualmente, parece que as forças
místicas da Natureza – durante tanto tempo,
violentadas – têm sido afetadas subitamente por
uma brutalidade palpável que se acrescenta à
espiral das represálias para aparvalhar os povos
e submergi-los em um estado que é a própria
imagem do pavor: a do zumbi ou do morto
vivo. O processo de ressurreição arrasta-se,
languidamente, imerso em uma dor insuportável.
«Quando se perde um livro», diz um
provérbio africano sobejamente conhecido, «é
possível substituí-lo; mas, quando morre um
ancião, é uma biblioteca que desaparece». Com
certeza, será perdoada esta ênfase atribuída a
nossas sociedades banhadas na tradição do griô
[de guiriot ‘músico ambulante da África Negra’] e
de outros guardiões orais da memória dos povos
porque ela contém uma parte de verdade. No
Haiti, anciãos pereceram, assim como jovens.
Além do desmoronamento de casas. A amplitude
dessas destruições evoca outra variante do
provérbio africano: ao desaparecer uma casa,
extingue-se, ao mesmo tempo, um sótão com
lembranças. Trata-se de uma perda para o
mundo inteiro, e não apenas para a localidade
diretamente atingida.
No Haiti, nossas perdas estão para além das
bibliotecas! Efetivamente, elas foram perdidas
e, ao mesmp tempo, os registros, as estruturas
físicas, os arquivos inestimáveis que conservam
a história de um povo: tudo virou entulho, lixo
e cinzas. Mas, ainda assim, subsistem lugares e
pedras veneráveis, a pátina ancestral das paredes
familiares, os espaços comuns: por exemplo,
mercados, caramanchões, árvores centenárias à
sombra das quais uma comunidade renova-se,
enquanto as narrativas do passado de um povo e
de uma sociedade em devir escapam-se da boca
do griô, e o saber identitário passa do corpo
dos idosos para o corpo dos jovens. Trata-se
de fi os tangíveis do tecido da continuidade
de nossa espécie, aqueles que estabelecem o
vínculo entre uma e outra geração; no Haiti,
eles foram quase todos tragados pela goela
insaciável da Natureza. Nem mesmo as estradas
pavimentadas, evocadoras do tempo passado,
as relíquias e os monumentos – testemunhas
da face não só triunfante, mas também hostil
– da história, foram poupados. Mas, a memória
transcende os monumentos. O próprio solo
em que foram semeadas as sementes tanto da
tirania, quanto da rebelião, a terra encharcada
pelo sangue tanto dos déspotas, quanto dos
mártires, fazem parte da narrativa de um povo
– capítulos, anotações e marcadores eloquentes
balizam sua marcha cotidiana, inclusive, nas
atividades mais correntes. Tudo isso encontra-se,
agora, em migalhas, pulverizado em um magma
indecifrável, despojado de sua signifi cação
comunitária. A última palavra coube ao buldôzer.
Os espaços santifi cados da Lenda acabam por se
identifi car com os desentulhos, legado garantido
de uma catástrofe que atingiu todo o mundo.
Quantas vezes o mundo letrado, sem
distinção de raças, manifestou seu regozijo
ao celebrar a vitória da resistência haitiana –
conduzida pelo governador, general Dessalines1
A memória
transcende os
monumentos.
O próprio solo
em que foram
semeadas as
sementes tanto
da tirania
quanto da
rebelião,
a terra
encharcada
pelo sangue
tanto dos
déspotas
quanto dos
mártires,
fazem parte
da narrativa
de um povo.
Toussaint Louverture
(1743-1803), fi gura
emblemática da
Revolução Haitiana
e governador de
Santo-Domingo
(nome antigo do Haiti).
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1 0 . O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0
– sobre as forças armadas que Napoleão
Bonaparte, movido por sua obsessão imperial,
enviou para a Ilha a fi m de restabelecer a
escravidão? O Haiti enfrentou e desmantelou as
pretensões da Europa no sentido de ser o viveiro
da fi losofi a das Luzes. Para além do choque das
armas, entretanto, o Haiti encarnou a vontade
suprema de um povo que culminou na criação
da primeira República Negra independente do
Planeta; a memória dos herois – por exemplo,
Toussaint Louverture2 – desse acontecimento
tem sido celebrada por poetas e dramaturgos,
além de ter sido imortalizada no mármore e nas
tapeçarias, na tela e em murais, por pintores,
tecelões e escultores animados por ardorosa
paixão, sejam eles artistas reconhecidos pelas
galerias ofi ciais ou pintores «naïfs» que expõem
nas calçadas, desde Harlem até a África do Sul!
Essas personalidades têm sobrevivido ao longo
dos séculos; atualmente, estamos enfrentando
as necessidades dos sobreviventes do tempo
presente, herdeiros diretos dessa gloriosa
história, seres vivos depositários de suas proezas,
além de inspiração para nossa criatividade.
O fardo desses antepassados é, atualmente,
o nosso, seu martírio é o nosso, sua esperança
de sobrevida é, também, a nossa. Atraiçoá-los ou
negá-los seria uma forma de aceitar a vitória da
energia cega da Natureza sobre a resiliência e a
criatividade humanas, além de nos atraiçoarmos
a nós mesmos. Nosso controle do Destino só é
possível quando dissipamos o fedor da morte
e da angústia com o golpe da varinha mágica
animada pela fé no futuro, ao darmos um
beijo de vida no rosto dos órfãos, das pessoas
machucadas e das famílias enlutadas.
O Haiti exibe uma rede de evocações
históricas totalmente desproporcionada em
relação ao seu tamanho, simultaneamente,
aspiração e advertência. O Haiti encarna a
glória e a tragédia da raça negra; no entanto,
esse povo nunca teve de enfrentar um desafi o
de tal amplitude, nem em circunstâncias
parecidas. O Haiti existe para além do símbolo,
tornando-se, para seu tempo, um formidável
terreno de experiências, relativamente
ao destino humano, no eterno combate
entre dominação e independência, poder e
liberdade. O Haiti constitui uma lição, não só
para o mundo africano, mas também para a
Humanidade. Portanto, a Natureza desferiu,
neste caso concreto, um golpe cruel, quase
irreparável: em primeiro lugar, para os povos
africanos, independentemente do lugar em que
se encontrem seus cidadãos; mas também, de
forma mais ampla, para a comunidade mundial
por toda parte em que a liberdade é objeto
de verdadeiro apreço, e em que a história, o
patrimônio e a memória são percebidos como o
liame da existência comum.
Portanto, não se deve permitir que o Haiti
venha a desaparecer, estagnar ou degenerar.
1. Jean-Jacques Dessalines
(1758-1806), líder da
Revolução Haitiana e o
primeiro Imperador do Haiti
(1804-1806) sob o nome de
Jacques I.
2. Toussaint Louverture
(1743-1803), fi gura
emblemática da Revolução
Haitiana e governador
de Santo-Domingo
(nome antigo do Haiti).
Enquanto os
médicos do
mundo inteiro
precipitam-se
para socorrer
feridos e
traumatizados,
reconstituindo
hospitais
e clínicas,
expedindo
remédios e
alimentos, os
escritores, os
artistas e os
intelectuais
devem juntar
seus recursos
para restaurar a
vida do espírito.
As oportunidades exigem, às vezes, um
preço elevado demais; ora, o Haiti já pagou
acima de sua quota e de uma só vez! Chegou
a hora de aproveitar, por nossa parte, esta
oportunidade e ajudar seus visionários a
recriar a sociedade haitiana nos planos moral,
social e intelectual. Grandes esforços têm sido
despendidos e, inclusive, parabenizamos a
reação das populações do resto do mundo
em favor do povo haitiano. Mas, não podemos
contentar-nos com o que já foi realizado. Com
efeito, ignoramos a parcela da humanidade do
Hati – nossa humanidade – que, neste exato
momento, ainda está perdida pelas ruas sem
destino, vasculhando as lixeiras ao lado de cães
e ratos à busca de alimentos, acocorada sob
abrigos improvisados, as mães embalando o
futuro em seus braços, esfomeadas, apáticas,
com seus grandes olhos esbugalhados dirigindo
um apelo silencioso para benfeitores invisíveis
e hipotéticos. Enquanto os médicos do mundo
inteiro precipitam-se para socorrer feridos
e traumatizados, reconstituindo hospitais e
clínicas, expedindo remédios e alimentos, os
escritores, os artistas e os intelectuais devem
juntar seus recursos para restaurar a vida do
espírito. É necessário encher as bibliotecas,
reconstituir os museus e fazer ressurgir as
escolas. Os escritores podem concretizar
sua ajuda pela doação de livros, os seus e
os dos outros; os pintores, seus quadros; os
arquitetos, suas competências profi ssionais;
e os professores, todas as formas de apoio
pedagógico. De uma forma mais franca, o Haiti
nunca voltará a ser a Ilha que conhecíamos;
Porto Príncipe já não exalará seu perfume
ligeiramente decadente de passado tumultuado.
Mas, a partir de seus escombros, podemos
reanimar uma entidade social
completamente nova e vibrante que
se torne um grito de solidariedade
universal, uma afi rmação do espírito
humano, sólido posto avançado
de um continente-mãe cujos fi lhos
defraudados tenham conseguido
lavar a ignomínia da escravidão, além
de terem transformado um simples
parque de mão-de-obra em uma
citadela pronta a enfrentar o desafi o
do futuro, digamos também, em certa
ideia da liberdade. ■
Wole Soyinka (Nigeria), prêmio Nobel de Literatura em 1986, é
membro do Panel de Alto Nível sobre a Paz e o Diálogo entre as Culturas,
instalado em 2010, pela Diretora Geral da UNESCO, Irina Bokova.
Romancista e autor dramático, ele é o fundador de duas companhias
teatrais: The 1960 Masks e Orisun Theatre.
Atualmente, é professor emérito de literatura comparada na Universidade
Obafemi Awolowo (Nigéria), membro emérito do Black Mountain Institute
da Universidade de Nevada, além de Professor residente na Universidade
Loyola Marymount, em Los Angeles (Estados Unidos).
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“Agredida, ostracizada, objeto de cobiça,
submetida à pressão dos canhões,
dividida, militarizada, ensanguentada”.
Eis a imagem que o historiador e
diplomata haitiano, Deve Bellegarde,
apresenta de seu país, antes de
acrescentar: “A independência do Haiti,
ameaçada incessantemente por sua
história tumultuada e caótica, conti-nua
sendo algo da natureza do milagre”.
Com efeito, a primeira República Negra
sofreu fortes pressões, externas e
internas, que tornaram sua evolução
bastante difícil: ao ostracismo das gran-
des potências que não perdoavam a
emancipação do “Pequeno polegar”
negro, acrescenta-se o advento de
regimes tirânicos baseados na exclu-são
do povo, mantido em um estado de
profunda miséria e desespero.
Por um lado, a atitude das grandes
potências foi atroz, tratando-se seja
da extorsão pela França de recursos
fi nanceiros, preciosos para um Estado
nascente, seja dos 19 anos de ocupação
norte-americana, no início do século
XX. Por outro, o longo período de
escravidão que, de maneira profunda
e indelével, marcou as relações
sociais e econômicas da sociedade
haitiana. A relação senhor-escravo
ou a separação entre as pessoas do
bô lan mè (beira-mar) e os gwo soulyé
(camponeses) – ou seja, outras tantas fra-
turas que subsistiram após a abolição da
escravatura – continuam minando, mais
de dois séculos após a independência, a
formação social haitiana.
Mas, como será possível sair real-mente
da escravidão? Uma vez passada a
exaltação da libertação, como se
constrói a liberdade? Com efeito, a esta
última, deve-se conferir um conteúdo
para que “a prova da liberdade não se
torne insustentável”, de acordo com a
afi rmação do fi lósofo francês de origem
grega, Cornélius Castoriadis, antes de
explicar: “Tal situação só ocorre na
medida em que nada se consegue fazer
com essa liberdade”.
Se o grande Toussaint Louverture e,
em sua esteira, os pais fundadores da
República do Haiti ganharam a batalha
fundamental do humanismo, convém
reconhecer que eles fracassaram na
implementação de um novo pacto social.
Liberdade
De fato, logo após a independência,
foram reproduzidas as relações de servi-
dão. Os arrendatários tomaram o lugar
dos colonos, enquanto os ex-escravos
eram submetidos ao trabalho forçado,
atrelados às plantações, permanecendo
aneu logou, ou seja, impedidos de se
exprimirem livremente, privados do
direito de deliberar e criar. A fuga,
elogiada no passado como um ato de
resistência à opressão escravagista, foi
considerada como vagabundagem e
passível de severas sanções a partir da
primeira Constituição de 1801. Esse auto-
ritarismo agrário permaneceu em vigor
vigor até 1904, ou seja, um século após
a independência do Haiti! A população
rural, segmento identifi cado como ator
da libertação, foi afastada do diálogo
indispensável à ruptura com o passado
colonial.
Pode-se facilmente compreender que
a predominância da relação senhor-
escravo difi culta a construção da liber-
dade pela lei, na medida em que solapa
em elevado grau a psicologia antilhana,
além de desarticular as estruturas
familiares. Com efeito, a fi gura do pai é
desvalorizada a partir do momento em
que seu lugar é usurpado pela posição
do patrão, o que desestabiliza a força
da lei: a fi gura ameaçadora do patrão,
“acima da lei”, símbolo de violência e
Desde sua independência
em 1804, uma sucessão
de tragédias tem marcado
a história do Haiti, de tal
modo que a construção
de sua liberdade se
tornou difícil. A atitude
irresponsável das grandes
potências e dos dirigentes
políticos deixou o país em
um impasse. Única saída:
uma ação responsável
e solidária em escala
mundial.
Personagem do Carnaval de Jacmel
simbolizando o fi m da escravidão.
Responsabilidade,
relação entre liberdade
e solidariedade
Por Bernard Hadjadj
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de confusão, opõe-se à do pai, fi ador
da ordem. “A fala do pai é uma fala que
se conforma com a lei […] enquanto a
fala do patrão limita-se a ser seu próprio
eco”, escreve o psicanalista francês,
Jacques André, em L’Inceste focal dans la
famille noire antillaise (O incesto focal na
família negra antilhana, 1987).
Nestas condições de violência política
e psicológica é que, no Haiti, se fez a
aprendizagem da liberdade. Ora, sair da
escravidão é superar a imagem negativa
que alguém tem de si mesmo, é encontrar
as luzes do saber de uma libertação
autêntica ao extrair de si – e não ao
reproduzir – as relações de dominação
vigentes nas plantações. É reencontrar a
autoestima.
Há relativamente pouco tempo, em 2004
– em uma carta enviada a seu compatriota
Carl Fombrun – o escritor haitiano, René
Depestre, falava dessa outra escravidão
que continua subjugando seu povo:
“Vamos abolir a escravidão interna que
determinadas teologias de barbárie
impõem à consciência desafortunada do
Haiti”, escreve ele. “Vamos assumir, com
uma força de ânimo sem precedentes,
o senso da responsabilidade diante do
pântano de zeros acumulados, durante
dois séculos de imperícia, à esquerda de
nosso imobilismo de zumbis!”
Responsabilidade
De acordo com suas modalidades de
organização política e de suas crenças,
uma sociedade pode facilitar ou
difi cultar o senso de responsabilidade
de seus membros. No plano político,
alguns déspotas militares e dirigentes
totalitários populistas apresentaram-se
frequentemente como salvadores
supremos, no Haiti, convencidos de terem
sido investidos de uma missão divina;
e quando o líder é considerado como
um Deus na Terra, o povo nada tem a
reivindicar.
No plano das crenças, as igrejas
protestantes incentivaram – de acordo
com a constatação do etnólogo hai-
tiano, Charles-Poisset Romain– as
explicações sobrenaturais do fenômeno
do subdesenvolvimento. “Não con-
viria criticar a Igreja por pregar e
incentivar o fatalismo, além de levar
as pessoas a renunciar a assumir suas
responsabilidades?”, escreve ele em Le
Protestantisme dans la société haïtienne
[O protestantismo na sociedade haitiana]
(1986). Ora, o fatalismo conduz à inação e
a uma atitude marcada pela passividade
e não pelo espírito crítico perante o
presente.
Acrescente-se o vodu, cujo ritual iniciático
lavé tèt é emblemático, con-sistindo em
introduzir na cabeça de um iniciantes
um Loa, ou seja, uma espécie de anjo da
guarda, um espírito protetor. De acordo
com o antropólogo francês, Roger
Bastide, “em vez da cabeça corporal
do indivíduo, ele é sua inteligência, sua
sensibilidade e sua vida psicofísica; em
poucas palavras, é o espírito em relação
à alma”. Se nos deparamos efetivamente
com o fenônemo do desdobramento
da personalidade, então, formula-se a
questão de saber quem dirige os atos
da pessoa. Em caso de delito, quem é o
culpado?
Frequentemente, ouvem-se estas frases
na boca dos haitianos: sé pa fôt mwin (a
culpa não é minha), sé pa mwin mêm (não
sou eu mesmo quem fez isso), sé de m’yé
(sou um ser duplo)… A responsabilidade,
condição indispensável para qualquer
manifestação de liberdade, torna-se assim
uma categoria totalmente relativa. O
princípio de reparação associado à justiça
é ridicularizado. É uma porta aberta à
impunidade; ora, é forçoso constatar que o
binômio violência-impunidade impregna,
até o grau de saturação, a psicologia das
massas haitianas.
“A reforma das mentalidades deve passar
pelo reconhecimento de nosso fracasso
coletivo”, escreve o educador haitiano,
Roger Péreira, em seu artigo Haiti ou a
prova da liberdade (2001). “Somos todos
parte do problema; a partir unicamente
desta condição, é que nos tornaremos
parte de suas soluções.”
Solidariedade
Com efeito, embora a responsabilidade
seja acima de tudo pessoal, convém
efetivamente compreender – na esteira
do fi lósofo judeu, Martin Buber – que o
ser humano só consegue defi nir-se como
um eu em contato com um tu. Cada eu
particular participa do binômio eu-tu
que serve de fundamento ao mundo da
relação: por defi nição, a relação é solidária.
Se existe uma condição prévia ao
desenvolvimento da solidariedade entre
os seres humanos, essa é efetivamente
a liberdade, entendida no sentido
arendtiano1, ou seja, confundindo-
se com a dimensão política – esse
espaço público em que se constrói a
convivência pelo diálogo. A liberdade
exerce-se unicamente em sociedade:
ela exprime a preocupação com o outro,
próximo ou distante, a preocupação
com o interesse geral.
O binômio liberdade-responsabilidade é
indissociável e só consegue desenvolver-se
plenamente por meio da solidariedade, sem
a qual fi caríamos reduzidos ao que o fi lósofo
francês, Jean-Claude Michéa, designa por
“mônades egoístas”, desprovidas de alma.
Um mundo não solidário eliminaria os seres
humanos.
Mais do que nunca, nos momentos terríveis
vivenciados pelo Haiti após o abalo sísmico
de 12 de janeiro de 2010, formula-se a
questão central da responsabilidade – a dos
haitianos e a da comunidade internacional
– assim como a da solidariedade em escala
nacional e mundial. A UNESCO, em sua
função de velar intelectualmente e de
divulgar os saberes e valores éticos, terá
um papel a exercer para acompanhar os
haitianos na introdução do princípio de
responsabilidade nos espaços de diálogo
no Haiti e, particularmente, na educação.
Trata-se de promover – simultaneamente
à reconstrução material do país – uma
reconstrução social e cidadã que esteja
apoiada na educação e na cultura
americana. ■1. Hannah Arendt (1906-1975), professora de Teoria Política, alemã
naturalizada norte-americana.
“Aos que se limitarem a considerar o reexame do passado sugerido neste
artigo como um trabalho intelectual, seria possível responder que tal iniciativa
é a condição sine qua non da abertura para o futuro. Em vez de procurar os
fantasmas de um passado que eles viessem a imaginar como ultrapassados,
trata-se – de acordo com a afi rmação do fi lósofo francês, Emmanuel Lévinas
– de “revigorar a radicalidade de uma memória que inscreve, nas vicissitudes
do tempo, uma tensão permanente e fecunda entre o passado e o futuro, assim
como entre o particular e o universal. – B.H.
Funcionário da UNESCO, Bernard
Hadjadj é doutor em Socioeconomia
dos Recursos Humanos. Após ter passado
10 anos na pesquisa em Ciências Sociais,
ele desempenhou funções no Ministério
francês da Cooperação, tendo sido
diretor de missão de cooperação e de
ação cultural, durante uma dezena de
anos, no Haiti, no Benin e em Djibuti.
Africano e haitiano de adoção, ele
comprovou tais qualifi cativos por meio de
depoimentos documentados e repletos
de experiências vividas em duas obras:
Les Parias de la mondialisation: L’Afrique en
marge (Os párias da globalização: a África
marginalizada, 1998) e L’An prochain à
Port-au-Prince : Sortir de l’esclavage (No
próximo ano em Porto Príncipe: sair da
escravidão, 2007).
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Reconstruir o Haiti por sua cultura – “Um desafi o?
Uma anomalia? Uma ameaça?” – para parafrasear
a expressão utilizada pelo historiador negro
norte-americano, Rayford Logan, a respeito do
surgimento inesperado do novo Estado-nação do
Haiti, em 1804.
Nenhuma anomalia, nem ameaça, mas
certamente um desafi o, pois após uma existência
histórica bicentenária, composta por avanços e
retrocessos provocados seja pelo exterior ou pelo
interior, trata-se, desde da catástrofe de 12 de
janeiro de 2010, nem mais nem menos, de fazer
renascer o Haiti. E, afi nal, por trás das centenas
de milhares de mortes e inúmeros prédios
desmoronados, o que subsiste que possa servir de
berço a esse renascimento? O que permanece, são
os recursos culturais do Haiti. No período mais difícil
da ocupação norte-americana do território haitiano,
e com uma veemência muito paternal mas salutar,
o doutor Jean Price Mars nos recordou, em sua
obra pioneira, Ainsi parla l’Oncle, [Assim falou o Tio],
publicada em 1928, que nosso país tem conseguido
viver e sobreviver mediante esses recursos.
Chegou o tempo de concretizar a fi nalidade
do desenvolvimento, ou seja, a felicidade
das pessoas; além disso, a cultura deverá ser
reconhecida como um elemento essencial
do desenvolvimento de nosso país. Não o
acessório ou o luxo – aliás, linguagem reservada
exclusivamente às elites –, mas o que tece a
sociedade, o que constitui sua força e contribui
Verdadeiro viveiro de arte, o Haiti não tira
sufi ciente proveito de seus recursos culturais
com vistas ao desenvolvimento. O novo plano
de ação cultural prevê medidas de sensibilização
e de promoção dos vetores de criatividade,
focadas particularmente nos jovens.
Cultura, berço do renascimento haitiano
Por Marie-Laurence Jocelyn Lassègue
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André Eugène, escultor da
Grand Rue, Porto Príncipe.
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Alegoria do triunfo da arte.
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para sua melhor qualidade de vida em interação
com a economia.
Plano de ação cultural
Convencido da indispensável contribuição
da cultura para o processo de renovação e
restabelecimento, o Ministério da Cultura e
da Comunicação almeja integrar quatro eixos
ao Plano de Ação visando à recuperação e o
desenvolvimento nacional: fortalecimento
institucional; desenvolvimento econômico;
identidade, cidadania e coesão social; e
integração regional e cooperação internacional.
O fortalecimento institucional subentende,
em particular, a implementação de convenções
de parceria com diferentes ministérios para
favorecer a criação de infraestruturas de bens e
de serviços culturais, assim como para reordenar
o território respeitando o caráter patrimonial
específi co de diversos sítios.
Sabendo que as indústrias culturais e criativas
podem constituir uma parcela não negligenciável
do PIB, o projeto de nosso ministério prevê a
criação de um fundo para a criatividade que visa
os artesãos, os artistas e os empreendimentos
culturais, assim como a instalação de um dispositivo
que favoreça a formação profi ssional e a promoção
do empreendedorismo cultural no intuito de
integrar os fatores culturais ao desenvolvimento
econômico.
A identidade e a consciência de cidadania
necessárias para a coesão social são forjadas por
meio da valorização dos saberes e da transmissão de
conhecimentos. Tratar-se-á, então, de criar condições
que permitam ao povo haitiano reconciliar-se
com ele mesmo, além de continuar a renovar e
Militante feminista, Marie-
Laurence Jocelyn-Lassègue
é, desde novembro de 2009,
ministra da Cultura e da
Comunicação do Haiti. Ela já
havia assumido essa função,
entre 1991 e 1993, depois de ter
sido professora e jornalista; de
2006 a novembro de 2009, ela foi,
igualmente, ministra da Condição
Feminina e dos Direitos das
Mulheres
Trata-se, então,
de criar as
condições que
permitam ao
povo haitiano
reconciliar-se
com ele
mesmo, além
de continuar
a renovar e
enriquecer suas
tradições
Celeur Jean Herard,
escultor da Grand Rue,
Porto Príncipe, na frente
de uma de suas obras.
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enriquecer suas tradições. A dinâmica da cultura
haitiana toma suas forças na criatividade (artes
plásticas, teatro, dança, música etc.). Por conseguinte,
convém desenvolver medidas de sensibilização e de
promoção dos vetores de criatividade, focadas de
forma muito particular nos jovens, em cooperação
com o Ministério da Educação.
A criatividade haitiana dá lugar a uma
grande diversidade cultural em âmbito
nacional, reconhecida no mundo inteiro e, em
especial, na região do Caribe. Grande número
de expressões culturais haitianas exercem
uma relevante infl uência em outros países da
região, permitindo assim um fl uxo constante de
intercâmbios. Trata-se, atualmente, de dinamizar
essa partilha por meio de uma política deliberada
de integração regional e de cooperação
internacional pela cultura. Uma presença cultural
fortalecida no cenário regional e internacional
contribuirá para a melhoria da imagem de nosso
país no exterior, consolidando desta forma a
confi ança de nossos compatriotas da diáspora,
assim como de nossos parceiros internacionais e
potenciais investidores.
Um Observatório da cultura haitiana
A fi m de garantir uma maior coerência da
intervenção pública no domínio cultural, o Ministério
da Cultura deseja reunir artistas e profi ssionais
da cultura, tanto no plano nacional quanto
internacional, assim como seus dirigentes políticos e
amigos do exterior, em torno de um Fórum Nacional
sobre a Cultura Haitiana. Este Fórum será o espaço no
qual identifi caremos juntos as grandes ações a serem
empreendidas e estabeleceremos as prioridades. O
Programa oriundo desse trabalho conjunto deverá
ser monitorado e avaliado com base em indicadores,
dados e estatísticas estabelecidos em cooperação
com a UNESCO.
Tendo em conta seu mandato, a Organização
poderá desempenhar um papel de primeiro
plano no acompanhamento do Haiti, durante
a longa caminhada de sua renovação e de seu
restabelecimento, em particular, no campo
cultural e artístico. Minha sugestão é que esse
papel esteja enraizado, de forma duradoura, em
um novo projeto de Observatório da Cultura
Haitiana, indispensável em nossa opinião.. ■
No dia 12 de janeiro, assim que passou o segundo
abalo em Porto Príncipe, fi quei esperando,
angustiada, o terceiro. Nesse momento, comecei
a ouvir gritos. Os gritos que vinham dos morros
de Després e Pacot. Gritos que se elevavam de
todas as ruas dos bairros do Bas Peu de Chose:
Jesus! Jesus! Nossa Senhora! É o fi m do mundo!
Durante as três noites seguintes, toda essa
humanidade reunida na rua para fugir das casas
desmoronadas – que soterravam os cadáveres
de seus próximos – dirigiu suas preces a Jesus,
entoou cânticos, leu a Bíblia. «Em seguida, vi o
Cordeiro quebrar o sexto selo. Ocorreu um violento
terremoto. […] e todas as montanhas e ilhas foram
removidas de seus lugares» (Apocalipse - o livro
da Revelação, cap. 6, 12 e 14 Bíblia Sagrada).
«Os espíritos de demônios reuniram os reis de
toda a terra no lugar que, em hebraico, se chama
O ressurgimento do Haiti
não deverá começar da
estaca zeroAnimismo, vodu e crenças cristãs fundamentalistas impedem
parte dos haitianos de pegar seus destinos em suas próprias mãos.
A superstição contribuiu para que o país caísse na armadilha da
vitimização. Uma análise racional do passado do Haiti e de sua
situação presente é a chave para a salvação
Por Michèle Oriol
As árvores já foram
plantadas diante da
barraca deste casal
haitiano que recomeça
sua vida do zero.
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Harmagedon. […] Houve relâmpagos, estrondos,
trovões e um terremoto tão grande como nunca
houve desde que existem seres humanos na face da
terra. A grande cidade partiu-se em três, e as cidades
de todas as nações viraram ruínas. … Todas as ilhas
sumiram e os montes desapareceram» (Apocalipse,
cap. 16, 14 e 16, 18-20).
Tudo era interpretado como um sinal:
se ocorreu o desmoronamento das igrejas,
se o Palácio Nacional virou pó, foi porque os
dirigentes políticos haviam perdido a confi ança
de Deus. «Os reis da terra, que se prostituíram
e se entregaram ao luxo com Babilônia, hão de
chorar e lamentar-se por causa dessa cidade,
quando virem a fumaça de seu incêndio. Parados
ao longe, com medo do seu sofrimento, eles
dirão: Ai, ai, Babilônia, grande e poderosa cidade!
Afi nal, bastou uma hora para o teu julgamento!’»
(Apocalipse cap. 18, 9-10).
Vi as pessoas que, sem qualquer proteção
para as mãos, arrancavam dos escombros seus
irmãos, irmãs, pais, mães e vizinhos. Vi cadáveres
que eram içados por máquinas, jogados em
caminhões de coleta de lxo e enterrados em
fossas comuns, escavadas nos lixões municipais.
Vi uma corte interminável escalar os outeiros de
Pétion-Ville e Kenscoff , entregando a parte baixa
da cidade aos saqueadores. Essa coisa sem nome,
esse «goudougoudou», rechaçou dezenas de
milhares de haitianos aterrorizados em direção
das zonas rurais, da República Dominicana, dos
EUA ou do Canadá. «Os reis da terra, os dirigentes,
os chefes militares, os ricos, os poderosos e todos os
outros homens, escravos ou livres, esconderam-se
nas cavernas» (Apocalipse, cap. 6, 15).
E depois, à boca pequena, nas estações de
rádio, na televisão e nas reuniões de crentes, não
faltaram vozes inspiradas para anunciar o fi m de
um ciclo de 25 anos, que termina em 2011, com
a destruição total do Haiti! «A segunda desgraça
passou; eis que, em breve, chega a terceira»
(Apocalipse, cap. 11, 14).
Estamos no reino dos medos profundos que,
às vezes, fazem vibrar uma sociedade inteira,
além de exigirem explicações.
Durante oito dias, não vi nenhum homem
uniformizado na rua, seja um policial haitiano ou
um soldado da Missão das Nações Unidas para a
Estabilização no Haiti. Foi preciso esperar quatro
Quem se
considera
eternamente
vitima é incapaz
de ser dono de
seu destino.
Acorrei, contemplai estas ruínas horrorosas,
Estes escombros, farrapos, estas cinzas do infortúnio,
Estas mulheres e crianças amontoadas,
Estes membros dispersos sob estes mármores
quebrados;
Cem mil desafortunados que a terra devora,
Os quais, sangrando, dilacerados e, ainda,
palpitantes,
Soterrados sob seus tetos, terminam, sem assistência,
No horror dos tormentos, sua triste existência!
Aos gritos balbuciados por suas vozes expirantes,
Ao espetáculo pavoroso de suas cinzas fumegantes,
Direis vós: «Eis o efeito de leis eternas
Que exigem o beneplácito de um Deus livre e bom?»
Direis vós, perante esse amontoado de vítimas:
«Deus vingou-se; elas pagam com a morte seus
crimes?»
Que crime ou falta cometeram essas crianças,
No seio materno, esmagadas e ensanguentadas?
Lisboa, que deixou de ser, teria mais vícios
Que Londres e Paris, mergulhadas nas delícias?
* Poema que o escritor e fi lósofo francês François-Marie
Arouet de Voltaire (1694-1778) dedicou ao terremoto de
Lisboa. Cf. Poema sobre o Desastre de Lisboa. Tradução de
Vasco Graça Moura. Lisboa: Alêtheia Editores, 2005 [n.d.r].
Mulheres rezando na
frente de estátua sendo
repintada para a visita
do Papa João Paulo II,
Catedral de Porto Príncipe,
1982.
Igreja do Carmo, em
Lisboa (embaixo à direita),
destruída pelo terremoto
de 1755 e preservada
em seu estado de ruínas,
assemelha-se à Catedral
de Porto Príncipe hoje
(acima à direita).
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Relata-se que o pragmático primeiro
ministro, Sebastião José de Carvalho e Melo,
o marquês de Pombal, teria afi rmado: «O
que há a fazer, agora? Enterrar os mortos e
cuidar dos vivos». Ele enviou imediatamente
equipes para apagar as chamas e recolher os
cadáveres; mandou enforcar publicamente os
saqueadores, com fi ns de dissuasão; impediu a
fuga dos habitantes que tinham condições de
trabalhar… Assim, passado apenas um ano, a
cidade tinha sido limpa e a reconstrução podia
ser empreendida.
Essa catástrofe abalou a Europa e teve
incidências sobre a fi losofi a das Luzes. O homem
sentiu-se sozinho no Universo. Deixou de ser
possível falar de Providência sem pensar no
terremoto de Lisboa.
Qual será a contribuição do sismo de 2010
para a refl exão haitiana?
Para um povo animista, um terremoto não é um
fenômeno natural, mas o resultado de alguma
intenção malévola. As referências bíblicas,
situadas no contexto das igrejas protestantes
fundamentalistas e integradas por adeptos do
vodu e pelos católicos, agravam o trauma da
população. Portanto, a infl uência exercida por
esse fenômeno sobre as mentes é considerável:
eis o que deve ser levado na devida conta por
quem mostra interesse pela nação haitiana.
O Haiti era considerado como o país mais
pobre do hemisfério Norte; presentemente,
ele se considera como o mais malfadado.
Atingido pela maldição. Há muito tempo,
temos sido objeto de uma permanente
vitimização por parte de nossos dirigentes, mas
também de numerosos intelectuais haitianos e
estrangeiros; atualmente, essa vitimização é a
maior armadilha que está à nossa espreita. No
contexto institucional frágil, demasiado frágil,
que é o nosso, a ternura e a generosidade do
mundo podem induzir a dúvida em relação
à nossa capacidade de assumirmos nossa
semanas para que o chefe do Estado dirigisse a
palavra à nação; dava a impressão de que o Estado
havia desmoronado com seus prédios simbólicos.
Ainda hoje, estamos à espera das decisões e
diretrizes que já deveriam ter sido anunciadas.
Outro lugar, outra época: uma digressão pela
história
No dia 1o de novembro de 1755, às 9h40 –
portanto, na manhã da festa católica de Todos
os Santos –, um terrível terremoto atingiu Lisboa
que foi devastada no período de dez minutos.
Em seguida, um enorme tsunami submergiu o
centro da cidade; e o que havia sido poupado
pelo mar, acabou sendo devorado pelo fogo.
25% dos habitantes morreram e a grande
maioria dos prédios foram destruídos. Sob
as ruínas do Palácio Real jaziam, reduzidos a
migalhas, os 70.000 volumes de sua biblioteca e
de arquivos preciosos.
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própria responsabilidade. Temos de rechaçar
a vitimização para recuperarmos nossa auto-
estima. Quem se considere eternamente vítima é
incapaz de ser dono de seu destino.Nas últimas décadas, à medida que as
instituições haitianas perdiam sua base, que a economia se degradava, que o espectro da guerra civil se tornava cada vez mais ameaçador e que o Estado hipotecava sua soberania em decorrência tanto das intervenções de forças armadas estrangeiras, quanto de uma ajuda internacional defi cientemente coordenada, as reivindicações identitárias não cessaram de se exacerbar. E acabamos por nos voltar inteiramente para o passado, de tal modo o presente era confuso e o futuro nos parecia inacessível.
Mas o que podemos extrair desse passado? Além das imagens de Toussaint Louverture (1743-1803) e de Jean-Jacques Dessalines (c. 1758-1806) – os dois ex-escravos quase analfabetos que souberam levar o Haiti à independência, consolidar uma República, criar uma nação e, assim, permanecer uma fonte de orgulho – subsiste, sobretudo, um estribilho sinistro que continua sendo martelado: nos últimos 200 anos, todos os chefes de Estado haitianos são déspotas, assassinos e corruptos; nos últimos 200 anos, assiste-se à má gestão administrativa; nos últimos 200 anos, o país tem sido dilacerado pelas guerras civis e pelas desigualdades sociais.
Laços entre o passado e o presente
Tal difamação do passado é nefasta para o futuro. E está longe de ser inocente: ela permite desculpar os atuais detentores do poder do Estado e, ao mesmo tempo, a comunidade internacional que lhes dá cobertura. Ao condenar tão asperamente os antepassados, procura-se cobrir com um véu pudico o que se passa atualmente, à nossa frente, a saber: uma aceleração do crescimento demográfi co que, além de não ser levado em consideração pela economia, é ignorado pelos políticos; uma forma desumanizante de urbanização oriunda da destruição da economia rural; uma banalização do impacto da presença de militares estrangeiros armados; além de uma devastação ecológica, cujos primeiros responsáveis são as companhias de exportação de madeira.
A capital acabou convertendo-se em um monstro, cuja população elevava-se acima de dois milhões de habitantes: verifi cou-se a duplicação desse número, em cada década, entre 1970 e 1990, tendo triplicado entre 1990 e 2000. E, por isso, 62% de suas moradias foram construídas entre 1995 e 2000.
Portanto, não foram os antepassados que construíram, em Porto Príncipe, essas casas que mataram mais de 200.000 pessoas. A responsabilidade dessas construções compete às autoridades políticas haitianas de nosso tempo e às inúmeras missões de apoio oriundas do exterior que, nos últimos 16 anos, têm compartilhado o poder com nossos dirigentes. Em vez de criticar o passado, façamos a análise da história recente e do presente. Desde o desembarque das forças norte-americanas, sob
a bandeira da ONU, em 1994, o exercício da autoridade política é, no mínimo, ambíguo: não estamos nem totalmente sob tutela, nem somos completamente independentes. Governos sob perfusão sucedem-se e têm arrastado o Estado para um precipício sem fundo. Formulemos, portanto, claramente a questão do poder político porque ela se encontra no âmago da reconstrução.
A pretensão de fundar, de novo, o Estado
haitiano tem a ver com a tentação de começar
da estaca zero; ora, este Estado conta já com
206 anos. Em vez de voltar a fundá-lo, trata-se
de criar vínculos entre passado e presente,
de reatar com a história e de refl etir em seus
ensinamentos. Eis como voltaremos a conferir
sentido à vida do povo haitiano, reanimando sua
dignidade e sua auto-estima. ■
Socióloga e antropóloga haitiana, Michèle
ORIOL faz parte do grupo que criou a
Fondation pour la recherche iconographique
et documentaire (Fundação para a Pesquisa
Iconográfi ca e de Documentos) em Porto
Príncipe. Ela é integrante do Comité
national haïtien pour la Mémoire du monde
(Comitê National Haitiano para a Memória
do Mundo), Programa da UNESCO dedicado
à conservação e à difusão das coleções de
arquivos e de bibliotecas, no mundo inteiro.
Consultora independente junto de diversas
instituições nacionais e internacionais, ela
participou de vários projetos de desen-
volvimento rural e de proteção do meio
ambiente, além de ter dirigido uma equipe
internacional de pesquisa sobre a situação
fundiária no Haiti.
Ela é professora de Sociologia da Família
na Faculdade de Ciências Humanas da
Universidade de Estado do Haiti.
Ao condenar tão
asperamente os
antepassados,
procura-se
cobrir com um
véu pudico o
que se passa
atualmente,
à nossa frente
A ler : Haiti: paysage et
société ( Haiti: paisagem
e sociedade), de André
Marcel-d’Ans, nova edição
por Michèle Oriol. Será
lançada em janeiro de 2011.
Coedição UNESCO-Karthala.
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Para início de conversa, devemos admitir que
a reconstituição do tecido social, cultural e
intelectual do Haiti implica em um verdadeiro
desafi o. Contrariamente ao que havia sido
afi rmado nessa ocasião – a saber, o dilaceramento
do tecido social, cultural e intelectual do Haiti, em
12 de janeiro de 2010 –, esse tecido já se encon-
trava em farrapos muito antes dessa data fatídica.
No plano social, 20 anos de populismo
haviam polarizado a sociedade haitiana,
aprofundado o fosso entre as classes sociais
e acelerado uma fuga dos cérebros que tinha
começado sob o regime de François Duvalier.
«Mais de 83% da força de trabalho mais
qualifi cada, cuja formação ocorre no Haiti, acaba
por deixar o país para instalar-se no exterior»,
afi rma o Banco Mundial, indicando com precisão
que, além do Canadá, os EUA constituem o
destino preferido da grande maioria dos quadros
expatriados.
Na sequência do sismo de 12 de janeiro,
essa hemorragia para o exterior já está em via
de se acentuar e corre o risco de se agravar se
não forem empreendidas, o mais cedo possível,
ações concretas e urgentes. Contando com 90%
de desemprego, o balanço socioeconômico do
Haiti encontrava-se no vermelho muito antes do
sismo; e, aqui, é preferível abster-se de citar os
respectivos números para evitar uma outra fonte
de sofrimento.
O Haiti é um país, cujo atraso se manifesta
em todos os setores. A primeira República Negra
no mundo tornou-se o pária do continente
americano: um país que foi incapaz de se
elevar à postura de nação e que, atualmente,
depende mais do que nunca da assistência
Fuga de cérebros, privação cultural, decadência social,
irresponsabilidade, corrupção – são palavras-chaves desse
panorama muito crítico da realidade haitiana que desemboca em
propostas de reconstrução de um Haiti novo, fundado na ciência,
na inteligência, na competência, no humanismo e na humildade.
Por Nancy Roc
Construir um Haiti totalmente novo
Todo gesto, mesmo
desesperado, faz sentido.
Porto Príncipe, 12 de
janeiro de 2010.
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internacional. «Assistência» e não «ajuda para o
desenvolvimento sustentável» que, em vez de
ter permitido o ressurgimento de nosso país,
acabou por arrastá-lo, nos últimos 20 anos, para
o sorvedouro de uma miséria abismal. Além
dos haitianos que, certamente, são os principais
responsáveis por sua decadência social, os
doadores não estão isentos, de modo algum,
dessa responsabilidade. Eis a razão pela qual será
necessário que os próximos governos procedam
a escolhas esclarecidas, neste domínio, e
contem com a diáspora haitiana, cujos fundos
correspondem, anualmente, a uma soma três
vezes superior aos montantes fornecidos pela
comunidade internacional, ou seja, US$ 1
bilhão e 800 milhões, contra US$ 500 milhões,
respectivamente.
No plano cultural, os governos que se
sucederam, desde 1986, não cessaram de
proclamar que a cultura haitiana era nossa
maior riqueza. No entanto, quase nada tem sido
empreendido para valorizar essa cultura; se não
fosse a vitalidade e o talento de nossos criadores,
atualmente ela também teria desaparecido.
De fato, como explicar que, em pleno século
XXI, o Haiti não disponha de uma única sala
de espetáculos, digna desse nome? No mês de
agosto passado, foi anunciado o fechamento
da única sala de cinema da Capital; fechamento
que, simultaneamente, poderia ocasionar o
desaparecimento de uma nascente atividade
cinematográfi ca no Haiti. O Teatro Nacional e a
Escola Nacional das Artes são, há muito tempo,
prédios em ruínas ou utilizados para fi nalidades
políticas que os afastaram de qualquer vocação
artística. Se a cultura permanece viva, não há
lugares onde ela poderia se desenvolver. No
plano cultural, a privação dos meios básicos,
no Haiti, é absoluta: nenhuma sala de teatro,
nenhuma sala de cinema, nenhum museu à
altura da arte de nosso país; estruturas editoriais
no plano local sem recursos; nenhum jornal,
nenhuma revista, nenhuma estação de rádio com
vocação cultural; falta de política cultural, assim
como de uma verdadeira escola de arte. O que
teria ocorrido com o país que tanto seduziu André
Malraux (escritor e político francês, 1901-1976).
Nem tudo está perdido
Já é mais que tempo de «voltar a embaralhar
as cartas» e nem tudo, talvez, esteja perdido já
que, pela primeira vez, no Plano de Ação para
a Reconstrução e o Desenvolvimento Nacional
do Haiti (PDNA -Post-Disaster Needs Assessment),
apresentado na ONU, em 31 de março, o
governo haitiano reconhece que a cultura é
«um elemento, cuja marginalização ocasionou
o fracasso, durante vários anos, dos programas
de apoio ao desenvolvimento, praticamente,
em todos os países». Evidentemente, tal postura
supõe que o Estado venha a enviar sinais claros
que demonstrem sua vontade de contribuir para
transformar o setor cultural em um domínio
econômico viável e invejável.
Observemos que, se os haitianos sublinham
facilmente a inefi ciência do Estado, é também
inconcebível que nenhum organismo, grupo
privado ou homem de negócios no Haiti tenha
mostrado interesse em proceder a um maior
investimento na cultura. No mês de agosto
passado, em um artigo intitulado Em defesa
de uma verdadeira sala de espetáculo no Haiti,
publicado no cotidiano Le Matin e retomado por
Courrier International com o título Le spectacle
est terminé1, tentei chamar a atenção do
público haitiano para o potencial econômico
do setor cultural: para nos limitarmos ao ano
de 2007, a cultura rendeu perto de 25 bilhões
Haitianos tentam deixar
Porto Príncipe de barco.
de dólares em impostos e taxas ao governo
federal, provincial e municipal, no Canadá; ou
seja, cerca de três vezes a soma de 7,9 bilhões
de dólares investida coletivamente, em 2008,
na cultura e nas artes, pelas três entidades do
governo2. Mas, para compreender e promover
tal programação, impõe-se renunciar à
mediocridade. Quando será possível encontrar
verdadeiros mecenas e fi lantropos haitianos com
o senso de compromisso social e da dignidade?
Quando é que nossos empresários serão menos
incultos? Como se explica que, há vários anos,
o patrocínio dos maiores acontecimentos
esportivos ou culturais, no Haiti, seja garantido
principalmente pelas companhias estrangeiras
de telecomunicações? O que será que essa
constatação demonstra acerca da visão dos
homens de negócios haitianos? Estas questões
continuam aguardando resposta.
No plano intelectual, também, a
atual situação no Haiti inspira questões
constrangedoras. Como é que este Estado,
destituído da ideia de nação, se converteu,
agora, em um país sem Estado? Parece-nos que a
divisa do «cada um por si», reduplicada por uma
desconfi ança grandemente ciosa em relação
ao vizinho, encontra suas raízes na história de
nosso país, no qual o Estado nunca chegou a
encarnar nada de bom. O Haiti não tem elites
que se interessem pelo desenvolvimento do país
e do bem comum por duas razões: em primeiro
lugar, elas lançam um olhar de desdém para «a
ralé analfabeta»; em seguida, sentem uma avidez
desmesurada pelo poder. Além disso, o odor
tenaz da escravidão, na sociedade haitiana e
sem excluir nenhum de seus segmentos sociais,
não favoreceu o senso da responsabilidade. A
expressão «sé pa fot moin» (a culpa não é minha)
virou o estribilho nacional.
Ora, se o haitiano não é responsável...
eviden-temente, o culpado é o outro. Entre uma
demanda de intervenção junto a instâncias
estrangeiras e a denúncia de «ingerência» dos
estrangeiros na vida haitiana que não deixa de
aceitá-la imediatamente, a distância é tênue.
A falência das elites de nosso país reside nesta
constatação: há 200 anos, de acordo com as
palavras de Laënnec Hurbon, sociólogo haitiano,
«o sentimento de ser um cidadão deste país
não é nítido; não houve grande evolução
relativamente à mentalidade do cidadão».
A questão da cor da pele, quase sempre
instrumentalizada pelos partidos políticos no
poder, acentuou a polarização social em uma
sociedade de apartheid e, por sua vez, não
ajudou os haitianos a encontrar um consenso
em torno da noção de «convivência». Além disso,
como o populismo havia exacerbado o desdém
em relação aos intelectuais, estes acabaram
por demitir-se de suas responsabilidades
sociais. O sucesso mundial de Dany Laff erière,
Franckétienne, Lionel Trouillot, Gary Victor,
Yanick Lahens, Louis Philippe Dalembert, para
nos limitarmos a citar estes nomes, comprova
que nossos escritores são capazes de conquistar
o mundo. Aliás, alguns deles tinham participado
do «movimento do novo contrato social»,
lançado em 2004, pelo coletivo político haitiano,
denominado O Grupo dos 184, que convocava
o povo haitiano «a enfrentar o desafi o dos
óbices históricos que impediram a unidade
dos haitianos, bloquearam o desenvolvimento
e, ainda atualmente, acarreta a decadência
política, social e econômica de nosso país»; mas,
eles retiraram-se depois que o movimento foi
abandonado por seus «líderes políticos».
Identidade: uma ou várias?
De acordo com Axelle Kabou, socióloga
camaronense, «todos os povos são, em primeira
e última instância, responsáveis absolutamente
pela integralidade das respectivas histórias». É
necessário, portanto, que nossos intelectuais
possam imperiosamente formular a problemática
da identidade haitiana: o que ela é realmente,
hoje em dia? Haverá um Haiti ou parcelas de uma
identidade haitiana dispersa pelo mundo? Será
que, de fato, pode-se falar de um tronco comum
haitiano válido para todos os haitianos que
vivem em nosso país, na República Dominicana,
em Miami, Boston, Nova York, Paris e Montréal?
Como estruturar pistas de refl exão e suscitar
diferentes modalidades para abordar o assunto?
À luz desses pontos que constituem apenas
as grandes linhas dos problemas inerentes
ao dilaceramento do tecido social, cultural e
intelectual no Haiti, como mobilizar o saber e as
competências sociais para revivifi car o Haiti, hoje?
Certamente, ao considerar o contexto
exposto mais acima, não posso ter a pretensão
de possuir a resposta para uma questão tão
complexa. Todavia, tenho a possibilidade de
apresentar proposições; aliás, algumas já estão
sendo implementadas.
O papel da diáspora
Recentemente, Amos Cincir, meu colega
do cotidiano Le Nouvelliste, escrevia o seguinte:
«O país enfrenta um importante êxodo de
sua população e, de forma mais particular, de
suas elites: anualmente, desde 2000, deixam
a Ilha não menos de 10.000 haitianos, entre
os titulares de maior número de diplomas.
As migrações clandestinas terminam, muitas
vezes, em tragédias já que, por ano, um milhar
de candidatos a sair do país perecem no
alto mar. Quem consegue um emprego no
exterior torna-se o amparo das famílias que
permaneceram no país. Cerca de 40% dos
lares haitianos dependem do dinheiro enviado
pela diáspora: em 2008, as transferências para
as famílias atingiram US$ 1,8 bilhão, ou seja,
soma superior a um terço do Produto Interno
Bruto. Infelizmente, com a crise econômica
mundial, esta fonte de renda tende, por sua
vez, a reduzir-se; tais remessas de dinheiro
diminuíram, no mínimo, 30% entre 2008 e 2009.
Tal hemorragia de braços e de cérebros é tão
catastrófi ca quanto um segundo terremoto; com
efeito, os haitianos emigrantes são precisamente
aqueles que representavam a mais bem fundada
esperança de reconstrução do país». Esse êxodo vem, desastradamente,
acrescentar-se aos 83% dos quadros já exilados
No plano
cultural, os
governos que
se sucederam,
desde 1986,
não cessaram
de proclamar
que a cultura
haitiana era
nossa maior
riqueza. No
entanto, quase
nada tem sido
empreendido
para valorizar
essa cultura;
se não fosse
a vitalidade
e o talento
de nossos
criadores,
atualmente ela
também teria
desaparecido.
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2 2 . O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0
do Haiti. Portanto, é claro que a reconstrução e a refundação do Haiti não poderiam realizar-se sem a participação ativa e constante da diáspora haitiana. O primeiro ministro, Jean Max Bellerive, assim como o ministro encarregado dos haitianos que vivem no exterior, Edwin Paraison, aceitaram francamente este princípio por ocasião da Conferência de Montréal (Canadá), em 25 de janeiro passado, e do Colóquio Reconstruir o Haiti - Horizonte de 2030, organizado na École Polytechnique de Montréal pelo Grupo de Refl exão e de Ação em favor de um Novo Haiti (GRAHN-Groupe de réfl exion et d’action pour une Haïti nouvelle), em 4 e 5 do passado mês de março; todavia, sabemos também que os haitianos do interior manifestaram sempre certa reticência para com seus compatriotas do exterior. Até mesmo a Constituição da República não autoriza a dupla nacionalidade; tal disposição acabou forçando, frequentemente a contragosto, a maioria dos mais bem dotados cérebros haitianos a optar pela nacionalidade do país de acolhimento. No entanto, sem sua diáspora, o Haiti já teria desaparecido há muito tempo.
Projetos que poderiam ser apoiados pela UNESCO
Atualmente, convém que a refundação do Haiti seja baseada na ciência, na inteligência, na competência, no humanismo e, também, na humildade, a fi m de construir uma sociedade mais justa e mais igualitária. Em outras palavras, é um país completamente diferente que as haitianas e os haitianos devem conceber e edifi car com este objetivo primordial: o bem comum. Para realizá-lo, a inclusão da diáspora, assim como de todas as redes sociais haitianas, é incontornável.
Tendo contado com a participação de mais de 600 pessoas oriundas do Haiti e dos quatro cantos de sua diáspora, o Colóquio Reconstruir o Haiti - Horizonte de 2030 demonstrou clara-mente que a(o)s haitiana(o)s podem formular proposições concretas às instâncias interessadas pela reconstrução de seu país, baseando-se em refl exões empreendidas a partir de uma abordagem participativa e servindo-se da contri-buição das expertises e sensibilidades disponíveis tanto no interior, quanto no exterior da Ilha.
Cerca de 45 proposições preliminares3 foram formuladas nesse Colóquio, qualifi cado como histórico.
Em matéria de educação, alguns projetos já estão em via de execução, entre os quais a implantação de uma estrutura de acolhimento permanente para os profissionais da educação da diáspora e dos amigos do Haiti; de uma estrutura de formação à distância podendo se transformar em uma Universidade aberta ou à distância, abrangendo todo o território nacional; de um programa de estágio para estudantes haitianos em empresas, cujas funções de alto nível são ocupadas por membros da diáspora; além de redes de competências da diáspora, visando a transferência de conhecimentos e o desenvolvimento econômico.
Em matéria de cultura, o GRAHN propõe, entre outras iniciativas, a criação de um fundo de preservação do patrimônio e de
desenvolvimento dos empreendimentos culturais por todo o país, assim como o lançamento de programas de exposições itinerantes e de outras ferramentas de difusão da cultura, apoiando-se nas novas tecnologias.
Eis, portanto, alguns projetos que poderiam
receber o apoio da UNESCO. Eu gostaria também
de tornar-me a porta-voz dos artistas e dos
jovens haitianos a fi m de solicitar à UNESCO
para ajudar meu país a encontrar parceiros para
fi nanciar uma verdadeira sala polivalente de
espetáculos no Haiti.
Para concluir, eu não poderia deixar
de lembrar que o Haiti de amanhã deve
absolutamente desvencilhar-se dos demônios
da corrupção em todos os níveis. Convém
ter sempre presente as palavras do jornalista
francês, Edwy Plenel: «Revelada, a corrupção
fi nanceira pode ser combatida e sancionada.
Quanto à corrupção das ideias, ela é mais
insidiosa, mais sutil e, neste aspecto, é mais
essencialmente perigosa».4■
Este artigo é extraído da intervenção de Nancy
Roc por ocasião do Fórum Reconstituir o tecido social,
cultural e intelectual do Haiti, organizado pela UNESCO,
em 24 de março de 2010. A integralidade de seu texto,
pronunciado na sede da Organização, assim como sua
gravação audiovisual, estão disponíveis no seguinte link:
http://www.unesco.org/new/fr/media-services/single-
view/news/unesco_forum_on_haiti/back/18256/
1. O espetáculo terminou.
Para ler o artigo: http://
www.courrierinternational.
com/article/2009/09/03/le-
spectacle-est-termine
2. Michel Girard, A cultura dá
grande lucro aos governos, La
Presse, Montréal (Canadá), 24
de setembro de 2008.
3. Para outras informações,
ver a síntese do Colóquio do
GRAHN: http://www.haiti-
grahn.net/public/?s=194
4. Edwy Plenel, Secrets de
jeunesse, Stock, 2001.
Journalista independente e militante em
favor dos Direitos Humanos, Nancy Roc é
integrante da Federação Profi ssional dos
Jornalistas do Quebec (Canadá) da qual
foi a laureada com a Bolsa Norte Sul, em
2008. Jornalista na CBC, Radio Canada e
TV5, ela foi a primeira haitiana a tornar-se
correspondente de CNN World Report.
Tendo desempenhado a função de adida
cultural da Delegação Haitiana na UNESCO,
entre 1991 e 1994, ao voltar ao Haiti, ela foi
nomeada diretora do gabinete de imprensa
do primeiro ministro, Smarck Michel;
seis meses depois, ela se demitiu desse
cargo e retomou suas atividades como
jornalista independente. Atualmente, ela é
a animadora, a partir de Montréal (Canadá),
do programa Metropolis (http://www.
metropolis.metropolehaiti.om/).
A refundação
do Haiti hoje
tem que estar
baseada a
ciência, na
inteligência, na
competência,
no humanismo
e na humildade
também, a fi m
de se construir
uma sociedade
mais justa e
igualitária.
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No Haiti, país em que a taxa de analfabetismo
é elevada, 94% da população possuem um
aparelho de rádio, segundo uma pesquisa
realizada pela agência Médiascom. Ora, a banda
FM está saturada e o CONATEL – agência
governamental encarregada de analisar os
dossiês técnicos de demanda de frequências –
deixou de autorizar novas concessões, enquanto
passa de 40 o número estações de rádio que
transmitem a partir da Capital. O faturamento
da publicidade está fracionado e as estações
de rádio mais bem «cotadas» – tais como
Métropole, Vision 2000, Caraïbes, Ginen, Signal ou
Kiskeya – açambacaram o melhor quinhão; por
sua vez, um grande número de outras estações,
sem recursos fi nanceiros sufi cientes, difundem
uma programação, cuja qualidade técnica é
lamentável por ser realizada, na maior parte das
vezes, por um pessoal sem qualquer formação
profi ssional. Simples caixas de ressonância, essas
estações de rádio reservam um exagerado tempo
de antena a uma atualidade política contaminada
por acusações, escândalos, calúnias, intrigas de
capelinha ou de clãs. Uma situação semelhante
ocorre com a dezena de redes de televisão que
surgiram no decorrer dos últimos três anos.
A refl exão crítica, articulada, objetiva e
rigorosa é o atributo de um número restrito de
jornalistas tarimbados. Os dois cotidianos, Le
Nouvelliste e Le Matin, que surgiram no fi nal do
século XIX, constituem sentinelas, apesar de
suas modestas tiragens (20.000 exemplares por
edição) e uma difusão bastante reduzida nas
zonas rurais.
A imprensa haitiana não conseguiu o
distanciamento necessário para ajudar a unir os
diferentes segmentos da sociedade de nosso
país. Ela não soube mobilizar as forças sociais
diante dos grandes desafi os que devem ser
enfrentados pela nação: a ameaça sísmica, a
urgência de um reordenamento do território, as
necessidades na área energética responsáveis
pela degradação do meio ambiente, a educação,
a reorganização da economia e da produção,
além da revalorização da arte e da cultura.
Tal era a situação da mídia haitiana, muito
antes do sismo de 12 de janeiro de 2010.
À semelhança do que ocorreu em outros
setores, a mídia foi severamente atingida pelo
sismo. Passados dois meses, a maioria dos
jornalistas retomou o trabalho, mas sem um
compromisso bem defi nido em relação aos novos
desafi os decorrentes da catástrofe na medida
em que não se verifi cou nenhuma mudança nos
respectivos programas. Todavia, Le Nouvelliste e Le
Matin anunciaram que eles serão mais exigentes
e, inclusive, defensores do interesse geral, além
de pretenderem tirar partido da tragédia para
«elaborarem algo de novo.»
Asfi xia da refl exão crítica
Não se trata de uma acusação contra meus
predecessores; de fato, alguns deles chegaram
a pagar com a vida o direito que tenho,
Imprensa no Haiti :
a grande viradaUma certa liberdade de expressão caracteriza
o ambiente midiático haitiano. No entanto,
os veículos de comunicação deveriam se
questionar seriamente e se desvencilhar do que
é trivial para se tornarem capazes de mobilizar
as forças sociais.
Por RobersonAlphonse
A imprensa
haitiana deve
se arriscar
a exercer a
liberdade
responsável.
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Alegoria da asfi xia do
pensamento crítico. Cena
do carnaval de Porto
Príncipe, fevereiro de 1985.
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2 4 . O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0
atualmente, de exercer meu ofício com certa
liberdade. Estou simplesmente questionando
algumas tomadas de posição que, parecendo
às vezes exageros fanáticos, acabaram por
fortalecer as divisões, exacerbar tensões
sociopolíticas e desacreditar a imprensa.
A incapacidade da mídia inscreve-se em
uma moldura mais ampla: a sociedade haitiana
deixou de ser exigente, de valorizar o mérito
e de promover grandes ambições. Ela não
consegue sair do status quo desolador em que,
nas últimas décadas, está submersa. O saber –
que, durante muito tempo, havia sido a garantia
do poder político – não tem sido utilizado com
clarividência; pelo contrário, o Haiti é um dos
raros países em que o saber promove a divisão
entre as pessoas. Além disso, a percepção
mágico-religiosa da ciência cria situações
inverossímeis; assim, para um grande número
de meus compatriotas, a morte de umas 200.000
vítimas do 12 de janeiro não é imputável ao
desrespeito das normas de urbanismo, mas a
Deus! «Foi Deus quem decidiu esta desgraça» –
eis o que se comenta com resignação. As igrejas
continuam lotadas e os pastores esfregam as
mãos de satisfação.
Durante esse tempo, programas de
diversão, para não dizer, triviais, ocupam ainda
o essencial da pauta de algumas estações de
rádio, submersas sob o peso da publicidade para
produtos importados. O que se passa com as
verdadeiras questões? Eis a resposta: «Isso não é
o que o povo deseja escutar». Assim, continua a
asfi xia da refl exão crítica.
Reinventar a imprensa
Hoje mais do que ontem, é urgente trabalhar
em favor de uma mudança de paradigma da
informação; por isso, impõe-se a realização dos
Estados Gerais da Imprensa. Certamente, essa
grande virada – a invenção de uma imprensa
moderna, profi ssional, audaciosa, ambiciosa,
além de desvencilhada do poder político e do
establishment econômico – é mais fácil falar do
que fazer. Mas, temos o dever de empreendê-la;
tal iniciativa vai exigir processo longo e rigoroso
com necessidade de uma parceria responsável
entre o Estado, enquanto regulador de fato e de
direito, e os atores privados do setor da mídia.
Antes do sismo, duas correntes de pensamento
enfrentaram-se em relação à necessidade, ou não,
de ter uma lei sobre a imprensa: seus defensores
sonhavam com uma entidade reguladora, tal
como o Conselho Nacional do Audiovisual, na
França; por sua vez, tendo sofrido com a ditadura
dos Duvaliers, seus opositores pressentiam,
em qualquer tentativa de estabelecer normas,
veleidades ditatoriais, o retorno do autoritarismo.
Aliás, a crença de que tudo pode ser feito sem
regras, nem limites, é um atavismo no Haiti; trata-se
de um obstáculo difícil de ser superado.
A imprensa haitiana deve, em primeiro lugar,
reformular-se antes de pretender a mobilização
das forças sociais e do saber. A curto prazo, creio
que convém elaborar programas de formação
para os jornalistas; uma vez mais, será bem-vindo
o apoio da UNESCO que mantém relações de
trabalho privilegiadas com a Associação de
Jornalistas Haitianos). O Ministério da Educação
Nacional, em colaboração com o Ministério
da Cultura e da Comunicação, as associações
de jornalistas e as associações de empresários
de imprensa deverão elaborar conjuntamente
esses currículos. Além da formação, deverá
ser abordada a questão mais espinhosa: a
valorização profi ssional. Atualmente, o salário de
base mensal do jornalista é igual a 100 euros.
O desafi o, no domínio da comunicação,
assim como em outros setores, é enorme. Apesar
de tudo, eu acredito no futuro de meu país,
no futuro de uma nova imprensa. Eu acredito
que uma nova elite intelectual, econômica e
política acabará por emergir dos escombros;
uma elite responsável, envolvida no esforço de
construção de uma outra cidadania, de uma
outra coletividade, de um novo sentido do
termo «haitiano». A imprensa no Haiti, depois
de sua reformulação, desempenhará um papel
de primeiro plano: ela deverá, para retomar
a expressão de um amigo, «correr o risco de
exercer a liberdade responsável», estabelecer
uma nítida distinção entre os eruditos e os
políticos haitianos, em suma, ajudar o povo
soberano a escolher bem seus dirigentes. Caso
contrário, vamos deixar que, uma vez mais, se
escape o essencial. Este é o momento da ação. ■
Roberson Alphonse é jornalista no cotidiano Le Nouvelliste (Haiti),
diretor da informação da Radio Magik 9 e presidente da Comissão
encarregada da Formação Contínua na Associação de Jornalistas
Haitianos.
Desçam à terra,
jornalistas!
Eu acredito no
futuro de meu
país, no futuro
de uma nova
imprensa. Eu
acredito que
uma nova elite
intelectual,
econômica e
política acabará
por emergir dos
escombros.
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Comecemos, em primeiro lugar, por rejeitar a
ideia de que o povo haitiano esteja derrubado e
resignado ou se sinta incapaz de enfrentar sua
reconstrução. Deixemos de considerar o Haiti
como a vítima de uma catástrofe. O mundo
pode e deve extrair ensinamentos, tanto a partir
da recente tragédia que atingiu esse país de
10 milhões de habitantes, quanto de sua longa
história, para tentar uma transformação radical,
aliás, mais do que necessária no atual contexto
internacional.
Qual é, então, esse contexto? Economias
exauridas. Estados ricos excessivamente
endividados. Proposições para sair da crise
que são aleatórias e, até mesmo, inexistentes.
Desigualdades revoltantes no seio de sociedades
que se benefi ciam de uma notória prosperidade.
Segmentos mais desfavorecidos da população
que são marginalizados. Desemprego, falências,
suicídios, sentimento profundo de mal-estar e
dúvidas em relação à própria identidade são
apenas os sintomas mais ostensivos da falta de
opções para o futuro.
A verdadeira diferença – e ela é considerável
– entre os países mais ricos e os países mais
pobres reside no fato de que os primeiros
dispõem dos recursos materiais, intelectuais e
estruturais, suscetíveis de alterar tal situação.
Com a condição de que eles decidam
empreender essa iniciativa. Com efeito, o que
faz falta, manifestamente, é a vontade política.
E, talvez, a capacidade de congregar as energias.
Somos obrigados a aceitar o fato de que o
Cena do cotidiano de
Porto príncipe,
janeiro de 2010.
A falta de visão é a catástrofe mais forte que
pesa sobre o Haiti. O novo drama que o país
vivencia por tanto tempo e sem assistência,
poderá ter um papel de catalisador das
energias nacionais e internacionais.
Em busca de uma humanidade mais solidária
Por Raoul Peck
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2 6 . O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0
mundo não funciona como deveria, e temos
de nos dotar dos meios para promover uma
profunda mudança.
Um acúmulo de insucessos
Considerando os malogros que balizam os últimos
60 anos, uma transformação radical revela-se
como indispensável: fracasso da maior parte das
políticas de desenvolvimento; fracasso do ajuste
estrutural, cujo objetivo consiste em aprimorar,
de forma sustentável, as economias dos países
em desenvolvimento; fracasso, até agora, da ONU
diante dos confl itos internacionais; fracasso da
União Europeia como contrapeso ao frenesi do
capitalismo fi nanceiro; fracasso dos dois grandes
blocos ideológicos, incapazes de encontrar
respostas que passem além de suas necessidades
e de seus interesses hegemônicos; fracasso do
projeto dos países não alinhados ao proporem
uma alternativa válida à dicotomia assassina da
guerra fria; fracasso da esquerda internacional e,
em particular, da social democracia, incapaz de
contrabalançar o desequilíbrio mundial; fracasso,
enfi m, da esquerda progressista em nossos
países em desenvolvimento, frequentemente,
acuada e abandonada por seus companheiros
de luta ocidentais, preocupados pela própria
sobrevivência política.
Esse acúmulo de fracassos me leva a pensar
que a verdadeira saída, para o Haiti, só poderá
ocorrer a partir dele mesmo. Por que razão
deveríamos continuar a depositar confi ança nessa
vontade declarada de “ajudar”, hoje, o Haiti?
Por que razão deveríamos aderir cegamente a
roteiros elaborados de forma precipitada e, às
vezes, bem longe de nosso país? Um grande
número de organizações e de movimentos
haitianos denuncia o processo adotado para a
elaboração do Plano de Ação para a Reconstrução
e o Desenvolvimento Nacional do Haiti (PDNA
-Post-Disaster Needs Assessment), caracterizado
por uma exclusão praticamente total dos atores
sociais e civis haitianos. Associo-me a todos esses
agentes para deplorar essa marcha forçada que
nos impede de participar, de maneira construtiva,
na refundação de nosso país.
O cineasta, Raoul Peck, ex-ministro da Cultura do Haiti (1995-1997), é o
autor, entre outros, dos fi lmes L’homme sur les quais, Lumumba, L’aff aire
Villemin, Sometimes in April, L’école du pouvoir.
Depois de ter passado uma parte de sua infância no Congo, ele
frequenta o liceu na França e nos Estados Unidos; em seguida,
completa seus estudos de Engenharia e de Economia na Alemanha,
tendo ingressado, posteriormente, na Academia do Filme e da
Televisão de Berlim, instituição na qual ele inicia sua carreira.
Dois dias antes do terremoto de sua cidade natal, Porto Príncipe, foi
nomeado, por decreto presidencial, diretor da Escola Nacional Superior
dos Ofícios da Imagem e do Som, La Fémis, em Paris.
Reverter o paradigma atual
Nossa demanda se limita a um pouco mais de
humildade e de autocrítica. Em um artigo, datado
de 20 de março de 2010, Jonathan Katz (Associated
Press) escreveu que, no dia 10 de março, o ex-
presidente dos EUA e atual enviado especial da
ONU para o Haiti, Bill Clinton, “apresentou desculpas
públicas por ter apoiado políticas que, na década
de 1990, haviam destruído a produção haitiana
de arroz”. Ao dirigir-se à Comissão das Relações
Exteriores do Senado norte-americano, ele
declarou: “Tal procedimento, talvez, tenha sido
benéfi co para alguns de meus fazendeiros no
Arkansas (o Estado de origem de Bill Clinton), mas
não deu certo. Foi um erro”.
De fato, há 30 anos, o Haiti importava apenas
19% de seus alimentos e exportava arroz e café.
A partir de 1986, o presidente haitiano, Jean-
Bertrand Aristide, foi forçado – por Bill Clinton e
pelo FMI, entre outros –, sob pretexto de ajuste
estrutural, a reduzir nossas barreiras alfandegárias.
Atualmente, ainda de acordo com Jonathan
Katz, seis libras [uma libra: 0,450 kg] de arroz de
Riceland Foods of Arkansas, sem dúvida, a maior
usina mundial de arroz, vendem-se por US$ 3,80;
ora, a mesma quantidade de arroz produzido no
Haiti vende-se por US$ 5,12.
Além disso, não esqueçamos que, se temos de
lastimar um tão grande número de mortos, em
Porto Príncipe, é precisamente porque centenas
de milhares de camponeses, sem recursos, nem
meios de produção, incapazes de fazer concorrência
às importações ocidentais, tinham sido obrigados a
instalar-se na capital à procura de trabalho.
Tudo está ligado. Os pretensos remédios de
outrora e as catástrofes da atualidade. A pobreza
de uma parcela da humanidade cria a riqueza
da outra e vice-versa. Nossos destinos estão
ligados por problemas comuns aos quais a ajuda
internacional, por si só, não consegue fornecer a
solução. Temos necessidade de uma visão global.
As situações de drama e de luto, como aquela que
é vivenciada atualmente no Haiti, podem permitir-
nos reverter o paradigma atual, procedendo
de modo que o Haiti se torne um novo modelo
de intervenção. É tão urgente para os países do
Sul, quanto para as metrópoles ocidentais, em
que as desigualdades não cessam de crescer.
Quanto mais cedo iniciarmos essa mudança
radical, tanto mais cedo teremos a possibilidade
de nos encontrarmos no mesmo caminho e,
conjuntamente, prosseguirmos uma busca
comum de uma humanidade mais solidária, mais
justa, mais equitativa e – por que não? – mais feliz
para todos.
Projeto ambicioso, irrealista, utópico? Creio que
não. De fato, apesar de todos os seus fracassos,
a humanidade tem dado provas de uma grande
capacidade de generosidade, criatividade e
coragem – tanto no plano individual quanto no
coletivo. ■
Sob infl uência estrangeira,
a produção de arroz no
Haiti foi destruída nos
anos 1990.
Somos
obrigados a
aceitar o fato
de que o mundo
não funciona
como deveria,
e temos de nos
dotar dos meios
para promover
uma profunda
mudança.
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Não se pode construir a economia
de um país sem primeiramente
estabelecer uma política econômica e
instalar uma administração capaz de
assumir essa responsabilidade. Ora,
o Haiti não dispõe nem de um, nem
de outro. A economia é indissociável
da ideia do progresso, que também
nos faz falta. Esse é o nosso drama. O
cidadão comum haitiano não se projeta
no papel de técnico para participar
na construção de seu país, e sim fi ca
aguardando que o progresso venha do
exterior. Para ele, a prosperidade está
nas mãos de Deus.
Ainda não dispomos dos meios que
nos permitam construir nosso país e
modifi car nossa realidade. Hesitamos
em relação ao caminho a seguir
para reconstruir nossa economia.
Continuamos imobilizados na incerteza,
não sabendo o que fazer.
A catástrofe de 12 de janeiro de
2010 questiona nossa imobilidade.
Não é mais possível adiar a mudança
da regulação da economia haitiana
– que ainda sobrevive com base em
mecanismos de renda que benefi ciam
apenas a alguns. Baseada apenas em
algumas fontes de renda, no caso
concreto o café, esse tipo de economia
traz benefícios apenas para uma ínfi ma
parcela da população, excluindo a
grande maioria. A vida política haitiana
é inteiramente organizada ao redor
desse tipo de renda, esforçando-se em
proteger os raros representantes eleitos
que criam obstáculo à diversifi cação,
para preservar seus privilégios. E, para
fazer isso eles se servem de todos
os meios para ocupar importantes
posições políticas.
Neste círculo vicioso, as famílias
haitianas sofrem as mais penosas
restrições: têm de poupar durante dez
anos, no mínimo, para estarem em
condição de começar a construir uma
casa. Além disso, passam o restante
de seus dias para terminá-la. É que
a política do crédito é praticamente
inexistente no Haiti. Sua economia
funciona com base na poupança
prévia, o que conduz ao cash colateral
(crédito igual à soma existente na
conta de poupança de quem faz o
empréstimo) e, por conseguinte, à
aberração que consiste em investir
contando unicamente com as riquezas
já adquiridas.
Essa situação demonstra a ausência
de uma política monetária ou de crédito
aberta às necessidades da população,
em um país no qual as autoridades
estão interessadas, sobretudo, nos
juros de quem vive dos rendimentos.
Ela explica também o surgimento
de substitutos do governo – ONGs,
comunidade internacional e… Deus!
– que supostamente assumem a
responsabilidade pelas necessidades da
população.
O círculo vicioso da economia haitiana
O imobilismo reinante mantém viva uma economia ultrapassada
que conserva o Haiti em uma pobreza na qual uma barreira
intransponível impede o progresso. Ao invés de esperar que Deus
venha em ajuda, os haitianos deveriam abolir o sistema de renda que benefi cia
apenas alguns e paralisa o país.
Por Gérald Chéry
O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0 . 2 7
São necessários dez anos de poupança no Haiti
para se começar a construir uma casa.
© Jocelyne Beroard
Sem crédito, não há salvação
O Haiti não poderá se recuperar sem
adotar uma economia baseada no crédito.
Com efeito, se as 200.000 famílias vítimas
do terremoto têm direito a uma moradia,
é indispensável colocar à sua disposição
um crédito imobiliário reembolsável em
15 ou 20 anos. Levando em conta que,
em geral, as famílias não dispõem da
entrada correspondente a 30% da soma
da aquisição, obrigatória por lei, sua
atividade profi ssional é que se torna a
garantia do crédito.
E se é concedido um crédito
imobiliário às vítimas do terremoto,
deve-se dar a mesma possibilidade a
toda a população. É imperativo que o
sistema de crédito seja generalizado
e acessível a todos, incluindo,
especialmente, as empresas que devem
se desenvolver para permitir às famílias
encontrar trabalho e pagar sua dívida.
O crédito deverá ser baseado, portanto,
no trabalho futuro das pessoas que
solicitam o empréstimo, ou seja, em suas
competências, o que implica que elas
deverão receber formação adaptada às
necessidades do mercado. O volume
global dos créditos e dos investimentos
dependerá, assim, da capacidade de a
mão de obra ser competitiva no mercado
mundial, e não da poupança ou da ajuda
externa.
A economia de crédito não é uma
questão de boa vontade dos dirigentes
ou dos indivíduos, mas constitui um fator
fundamental do sistema produtivo de uma
nação. Se o Estado não vier a estabelecer
uma política que conceda crédito aos
diferentes atores econômicos, o país
continuará a afundar nos problemas que
tem enfrentado desde sempre.
A reconstrução do Haiti só é possível se o
Estado assumir a gestão de uma economia
aberta às necessidades de todos os grupos
sociais e não de uma elite que vive de
rendimentos.
Como gerenciar os empréstimos e as
doações?
A extraordinária solidariedade
manifestada pela comunidade
internacional em relação ao Haiti se
traduz, principalmente, nas doações
e empréstimos que, antes de mais
nada, servirão para a reconstrução das
cidades. As empresas de construção vão
compartilhar tais fundos. Os doadores e
credores, por sua vez, fi carão satisfeitos se
o programa for executado com o menor
grau possível de corrupção.
Mas, salvo a renovação de Porto
Príncipe, o impacto dessa ajuda na
economia nacional será pequeno e
momentâneo caso seja feita a opção por
uma importação maciça dos materiais de
construção. Uma vez esgotado o dinheiro,
o Estado disporá de prédios, algumas
famílias terão moradia, e a maioria da
população será deixada ao abandono. A
economia baseada em rendimentos terá
atravessado um período de prosperidade,
mas os problemas de emprego e
de fi nanciamento da produção não
estarão resolvidos. A gestão nefasta das
catástrofes naturais dos últimos seis anos
é eloquente a esse respeito.
A fi m de se benefi ciar plenamente da
ajuda externa e de construir os alicerces
de uma nova economia, os dirigentes
do país deveriam defender, junto às
instituições internacionais, condições
para permitir que o Haiti deixe de
seguir, temporariamente, algumas
regras do comércio internacional.
Eles também deveriam incentivar, a
instalação de uma primeira leva de
indústrias associadas à construção
(usinas de aço e de cimento, materiais
elétricos) e à infraestrutura e mobiliário
das casas (eletrodomésticos, aparelhos
sanitários, artigos de decoração), setores
que não foram promovidos no passado
devido a pequena demanda. Além
disso, a formação deve ser enfatizada,
porque somente a mão de obra
qualifi cada e os produtos competitivos
irão permitir que o país pague sua
dívida externa.
Outras mudanças serão necessárias
para apoiar a reconstrução do Haiti: a
descentralização e o desenvolvimento
local; uma reforma da seguridade
social que motive os trabalhadores a
optarem por carreiras em uma empresa;
reformas da política fi nanceira que
permitam mobilizar os capitais internos;
facilitação de parcerias público-privadas
para estimular o desenvolvimento das
empresas e apoiar o Estado nos setores
da economia em que sua presença
é inefi caz; e reformas universitárias,
para formar um número maior de
profi ssionais capacitados e alimentar a
administração com novas ideias sobre a
mudança econômica e social. ■
Gérald Chéry, economista, é
membro da Comissão Nacional dos
Mercados Públicos do Haiti.
2 8 . O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0
Pai leva a fi lha nas costas durante inundação de sua casa na Cité Soleil, nas proximidades de Porto
Príncipe.
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A relação entre cultura e desenvol-
vimento é objeto de um debate que está
longe de ter chegado a uma conclusão.
Tentemos defi nir as duas noções. O que
se entende por cultura? Para retomar
as afi rmações do escritor franco-libanês
Amin Maalouf, o capital cultural de um
indivíduo ou de uma comunidade é
composto por uma dimensão vertical
– a herança dos nossos antepassados
e as tradições – e por uma dimensão
horizontal, moldada por nossa época
e por nossos contemporâneos. E o
que se entende por desenvolvimento?
De acordo com o Relatório sobre o
Desenvolvimento Humano - 2004 do
Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD), ele não se
reduz apenas a um nível de vida decente
e à liberdade política. A liberdade
cultural é agora reconhecida como um
direito humano e um elemento essencial
do desenvolvimento humano.
No entanto, não existe uma relação
nítida entre a cultura e o desenvolvimento.
Assiste-se, regularmente, ao aparecimento
de ondas de determinismo cultural que
atribuem os fracassos do crescimento e da
democratização às imperfeições inerentes
a características de natureza cultural.
Para combater essas teorias perversas, é
necessário levar em conta o fato de que a
cultura não é o único fator fundamental a
determinar nossa vida e nossa identidade:
o sexo, a classe, a profi ssão, a política, os
recursos humanos e materiais são outros
tantos elementos primordiais. E pelo
fato de estarem em constante evolução,
as culturas só podem determinar em
grau reduzido o desenvolvimento
futuro de uma sociedade. Em resumo,
não existe uma grande teoria cultural
do desenvolvimento. O povo e os
artistas haitianos possuem uma
formidável criatividade que é fonte
de magia, poesia, pinturas e música,
“permitindo analisar meticulosamente
a eternidade do desconhecido”,
para retomar a expressão do escritor
boliviano, Eduardo Scott Moreno.
Porém, de acordo com a fala que ele
coloca na boca de um intelectual
haitiano – herói de seu romance, La
doncella del Baron Cementerio [A criada
do Barão do Cemitério1] –, “apesar de
tudo isso, não vislumbro nenhum futuro
social e político”.
O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0 . 2 9
O determinismo cultural
é uma concepção
perigosa que atribui
a particularidades
culturais os fracassos
do crescimento e da
democratização. Para
se tornar um fator
de desenvolvimento
humano, a noção de
identidade cultural
deve, primeiro, ser
desmitifi cada
Cultura e desenvolvimento:
os dois lados da mesma moeda
Por Antonio Vigilante
O capital cultural e criativo
deve contar com medidas
que visem a fortalecer o
capital social dos indivíduos
Centro Nacional da Arte, em porto Príncipe,
após o terremoto de 12 de janeiro de 2010. © U
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Essa fl agrante contradição indica que,
por si só, a cultura não é forçosamente
um fator crucial de desenvolvimento,
sobretudo se for interpretada unicamente
como uma criatividade e uma expressão
artística individuais. No entanto, ela
pode representar um importante trunfo
capaz de fortalecer o capital social
indispensável para a reconstrução, se
for incentivada de maneira adequada,
especialmente pelas políticas públicas.
Outro cataclismo
O Haiti reúne todas as condições
de uma perfect storm2 em matéria
de desenvolvimento, cujas causas
essenciais são a alienação da população
e a falta de instituições legítimas em
funcionamento. A ausência de um
contrato social válido e legítimo entre o
Estado e o cidadão está no âmago dessa
crise estrutural. As recentes catástrofes
naturais acabaram agravando,
de maneira dramática, esse novo
cataclismo e os sofrimentos do povo
haitiano.
Há consenso, em geral, em
reconhecer que o Haiti necessita
mais do que uma reconstrução, mas,
sobretudo, de uma refundação. Para
enfrentar esse desafi o, é necessário
atribuir um lugar à identidade cultural,
evitando torná-la em um mito, porque
para alcançar essa mudança radical será
necessária a transformação signifi cativa
da liderança política, das capacidades de
natureza institucional e dos movimentos
sociais, bem como uma compreensão
compartilhada do que se constitui a
essência do desenvolvimento sustentável
que se aspira em âmbito nacional. O
capital cultural e criativo deve contar
com medidas que visem a fortalecer o
capital social dos indivíduos, ou seja, os
valores, os mecanismos, a confi ança e
as interações que permitam otimizar o
potencial de desenvolvimento do país.
O plano de ação para o
desenvolvimento nacional preparado
pelo governo aponta alguns
caminhos favoráveis, em particular
a descentralização, os polos de
desenvolvimento territoriais e os
investimentos na cultura. Certamente,
as pessoas que participaram de sua
elaboração tinham ainda em mente o
sofrimento da população, o desespero e
o sentimento de urgência. No entanto,
é impossível concretizar um projeto
concebido em um gabinete, como é o
caso desse plano.
A primeira tarefa dessa refundação
consiste, portanto, em formar uma
liderança política, no plano nacional,
capaz de descentralizar o poder para
que a população venha realmente a
participar da formulação das prioridades
locais e nacionais. Tal liderança deve
ser capaz de conceber sistemas de
execução e de responsabilidade
política e econômica, permitindo
que os haitianos se tornem atores
comprometidos, em vez de simples
“benefi ciários”.
Acredito que o Haiti está diante
da possibilidade de começar algo
completamente novo ao defi nir um
projeto, uma vocação econômica e
social em âmbito nacional, com a qual
todos os cidadãos possam se identifi car
e no âmago da qual sua cultura e
criatividade venham a constituir uma
das ferramentas fundamentais para
associar todos os aspectos da vida. ■
Antonio Vigilante (Itália) é Diretor
da Agência das Nações Unidas e do
Programa das Nações Unidas para
o Desenvolvimento (PNUD) em
Bruxelas (Bélgica). Foi coordenador
das Nações Unidas e representante
do PNUD no Egito, Bulgária e Bolívia.
Anteriormente, havia ocupado
diversos cargos no âmbito da ONU,
em Nova Yorque, Barbados, Etiópia,
Honduras e Bolívia.
1. O Barão do Cemitério é, juntamente com o Barão
da Cruz e o Barão do Sábado, um espírito da morte
no vodu. Cf. http://www.imagick.org.br/pagmag/
sistmag/voduvampiro.html
2. The Perfect Storm é o título de um romance do
norte-americano Sebastian Junger e do fi lme
que, a partir desse texto, foi dirigido pelo alemão
Wolfgang Petersen (em Portugal: A tempestade
perfeita – no Brasil: Mar em fúria). A expressão designa
uma combinação de circunstâncias que, de maneira
dramática, tornam uma situação ainda mais grave.
3 0 . O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0
Nos anos 1970, o Haiti
importava, no máximo,
10% dos gêneros
alimentícios necessários
à sua sobrevivência,
hoje este percentual
aumentou para 60%. O
Estado delegou às ONGs
o fornecimento de 80%
dos serviços públicos.
Onde está o erro
Quadro do pintor haitiano
Préfète Duff aut.
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Bem antes que o terremoto de
magnitude 7.0 tivesse atingido o
Haiti, em 12 de janeiro de 2010, e
arrasado a cidade de Porto Príncipe
e seus arredores, a capital haitiana
já anunciava a catástrofe. Em1950, a
cidade contava com 150.000 habitantes;
esse número elevava-se a 732.000,
em 1982, e, entre dois e três milhões,
em 2008. O problema, no entanto,
residia na infraestrutura de Porto
Príncipe que não havia se desenvolvido
proporcionalmente a esse crescimento
demográfi co exponencial e o reduzido
número de serviços fornecidos eram
defi cientemente administrados ou
destinados, em particular, aos bairros e
subúrbios mais favorecidos. Resultado:
apenas 28% dos haitianos tinham
acesso aos cuidados de saúde, 54%
à água potável e 30% aos serviços
de saneamento básico O Estado
haitiano abandonou, há muito tempo,
suas responsabilidades em relação à
maioria de seus cidadãos, tanto nas
cidades quanto nas zonas rurais, tendo
delegado aos doadores bilaterais e
multilaterais, assim como às ONGs, o
fornecimento de serviços à população,
pelo menos, desde a era Duvalier [1957].
O Haiti é o país no qual se verifi ca a
intervenção do maior número de ONGs
em todo o mundo. Nas zonas rurais,
elas fornecem até 70% dos cuidados
de saúde e 80% dos serviços públicos.
Tal situação teve como consequência
o fortalecimento da displicência do
Estado e a privatização, praticamente
total, dos serviços básicos. Infelizmente,
essa realidade não registrou nenhuma
mudança com a passagem para a
democracia.
As estimativas elevam-se a um
número de 250 a 300.000 mortos,
vítimas do terremoto. De acordo com
a avaliação do Banco Interamericano
de Desenvolvimento (BID), o balanço
material do sismo atingirá entre US$
8 e 13 bilhões, o que transforma esta
catástrofe natural na mais onerosa da
história recente. Mais de 1,3 milhão de
pessoas encontraram-se na rua e, entre
elas, apenas 50 a 60% conseguiram
um abrigo de urgência. Os geólogos
haitianos tinham prevenido, há
vários anos, as autoridades quanto à
probabilidade de um terremoto; mas,
à semelhança do que tinha ocorrido
com os furacões e com as tempestades
tropicais (em 2004 e em 2008) que
haviam provocado imensas perdas de
vidas humanas e enormes prejuízos
materiais, nenhuma medida foi tomada
para prevenir tal eventualidade. O
Estado haitiano é, simplesmente,
incapaz de responder a uma crise dessa
amplitude (ou, até mesmo, de menor
importância) porque, em particular,
os dirigentes políticos tomaram
sempre providências de curto prazo,
dando prioridade aos interesses de
uma pequena parte dos cidadãos. Em
companhia da Bolívia, o Haiti é o país
do continente americano em que as
desigualdades de renda são as mais
revoltantes. Os 10% mais ricos da
população controlam 47% da renda
nacional e apenas 2% detêm 26% da
riqueza nacional. Por sua vez, os 20%
mais pobres dispõem apenas de 1,1%
da renda nacional, enquanto 76% da
população vive com menos de US$ 2 por
dia e mais de 50% com menos de 1 dólar.
Todavia, os dirigentes locais não
criaram sozinhos tais condições: eles
têm agido em estreita colaboração
com os governos e atores econômicos
internacionais que têm, há muito
tempo, interesses no Haiti – em
particular, os que estão associados
aos países desenvolvidos (Estados
Unidos, Canadá e França), além das
instituições fi nanceiras internacionais
(Banco Mundial, Fundo Monetário
Internacional e Banco Interamericano
de Desenvolvimento). Essas
organizações transformaram o
Haiti em um fornecedor de mão de
obra extremamente barata para os
investidores locais e estrangeiros da
indústria de montagem e, no plano
Os quatro pilares da reconstrução haitiana
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Por Alex Dupuy
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(Post-Disaster Needs Assessment, em
inglês) que foi redigido com o apoio de
membros de agências internacionais e
de instituições fi nanceiras. Este Plano,
que avalia o custo da reconstrução em
US$ 11,5 bilhões, apresenta uma visão
a curto, médio e longo prazos que faz
apelo no sentido de descentralizar o
poder, a população e a indústria de
Porto Príncipe, além de investir vários
bilhões de dólares na infraestrutura, na
indústria da construção civil, no turismo,
na proteção do meio ambiente, nos
serviços do Estado e na agricultura.
Não há sombra de dúvida de que
a maior parte dessas recomendações
deverá ser levada em consideração,
se houver a pretensão de reerguer
a economia haitiana que foi
profundamente abalada. Mas,
considerando que o governo tem sido
incapaz de tomar medidas efi cazes, na
sequência das devastações causadas
pelos furacões e pelas tempestades
tropicais de 2008, é pouco provável que,
desta vez, sua atitude seja diferente,
tanto mais que seu mandato chega, em
breve, ao fi m. Além disso, a comunidade
internacional infl igiu um voto de
desconfi ança ao governo, insistindo
para que uma Comissão Interina
de Desenvolvimento e um Fundo
Fiduciário Multidoadores sejam criados
e administrados por um Comitê Diretor
composto por 17 membros com direito
a voto: oito representantes principais da
comunidade internacional de doadores
(Estados Unidos Canadá, França, Brasil,
União Europeia, Banco Interamericano
de Desenvolvimento, Banco Mundial e
Nações Unidas), de um representante da
do continente, em um dos principais
importadores de gêneros alimentícios
provenientes dos Estados Unidos.
Essa situação é o resultado de uma
série de políticas de “ajuste estrutural”
que consiste em manter os salários
baixos, eliminar todos os obstáculos ao
livre comércio, suprimir as restrições
alfandegárias e quantitativas em relação
às importações, oferecer aos industriais
incentivos fi scais sobre seus benefícios
e suas exportações, privatizar as
empresas públicas, reduzir o número de
funcionários no setor público e cortar
nas despesas sociais para diminuir os
défi cits orçamentários.
Ao mesmo tempo, a redução das
barreiras alfandegárias e quantitativas
sobre as importações alimentares,
implantada desde a década de
1980, implicava em prejuízos para a
agricultura. Nos anos 1970, o Haiti
importava, no máximo, 10% dos
gêneros alimentícios de que o país
tinha necessidade. Atualmente, essa
porcentagem eleva-se a cerca de
60%, sendo que 80% das receitas de
exportação são necessárias para o
pagamento dessas importações. O Haiti
– outrora, autossufi ciente na produção
de arroz, açúcar, aves de criação e
carne de porco – tornou-se o quarto
maior importador mundial de arroz
e, no Caribe, o primeiro importador
de gêneros alimentícios; ora, todos
esses produtos procedem dos Estados
Unidos. Portanto, a liberalização do
comércio traduziu-se, principalmente,
pela transferência de riqueza dos
agricultores haitianos para os
agricultores norte-americanos e para o
reduzido número de empresas do Haiti
que controlam as importações na área
alimentar. À medida que a economia
nacional afundava, o Haiti tornou-se
cada vez mais dependente das remessas
de fundos, enviadas pelos emigrantes
que, em 2008, representavam 20% do
PIB do País.
As pressões em favor da anulação
da dívida do Haiti, contraída junto aos
doadores bilaterais e multilaterais, têm
sido cada vez mais insistentes. Em 2009,
as instituições fi nanceiras internacionais
reduziram-na pela metade, ou seja,
US$ 1,2 bilhão; os Estados Unidos e
o FMI declararam que continuariam
trabalhando com os outros doadores
bilaterais e multilaterais para diminuí-la
ainda mais. No entanto, essas medidas,
por mais signifi cativas que sejam,
nada modifi cam nas políticas globais
dessas instituições, nem repararam,
absolutamente, os prejuízos que têm
causado à economia haitiana, no
decorrer dos últimos 40 anos.
O destino do Haiti, de novo, nas mãos
da comunidade internacional
Mas então, quais são as medidas
a tomar? Tendo sido previstas para
fevereiro e março de 2010, as eleições
parlamentares tiveram de ser adiadas;
o presidente Préval e Edmond Mulet,
novo chefe da Missão da ONU no Haiti,
renovaram a demanda no sentido de
que tais eleições sejam organizadas
no prazo mais breve possível. Por
sua vez, as eleições presidenciais
deveriam, igualmente, desenrolar-se em
novembro, mas, por enquanto, ainda
não foi fi xada a data para sua realização.
O governo publicou, recentemente, o
“Plano de Ação para a Reconstrução
e o Desenvolvimento Nacional do
Haiti”, conhecido sob a sigla PDNA
3 2 . O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0
Cena de Cap Haitien.
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Comunidade Caribenha (Caricom), de
um representante de outros doadores
fi nanceiros e de sete representantes
haitianos. Vê-se, portanto, que a
comunidade internacional irá dispor
de um voto majoritário no que é
apresentado como um plano haitiano
de desenvolvimento e de reconstrução.
Além disso, mesmo que o PDNA
permaneça impreciso sobre as
proposições políticas, especifi camente,
nos setores industriais e agrícolas, a
comunidade internacional já havia
chegado a um acordo sobre esses
aspectos, muito antes do terremoto.
Em 2009, o Secretário-geral das Nações
Unidas, Ban Ki-Moon, solicitou a Paul
Collier, ex-economista do Banco
Mundial, para formular um Plano
de Desenvolvimento para o Haiti,
tendo encarregado o ex-presidente
dos Estados Unidos, Bill Clinton, de
coordenar sua execução. De acordo
com uma apresentação semelhante à
do PDNA, o “Relatório de Collier” sugere
a descentralização dos investimentos,
a construção da malha rodoviária e
das telecomunicações, além de criar
agrupamentos de produção industrial e
agrícola em diferentes regiões do País.
Esta última recomendação consiste
essencialmente em estabelecer novas
zonas de livre comércio no setor do
têxtil (além das zonas já existentes em
Porto Príncipe e em Ouanaminthe),
assim como agrupamentos do mesmo
tipo para a produção e exportação de
certo número de produtos agrícolas.
Repensar integralmente o modelo
Em minha opinião, se o Haiti
deve ser reconstruído com uma base
diferente, de modo que as necessidades
e os interesses da maioria pobre do
País ocupem o primeiro plano, será
indispensável repensar o modelo que
foi transformado em doutrina pelas
grandes potências, tendo sido aceito
de forma subserviente pelos sucessivos
governos pusilânimes que exerceram o
poder no Haiti. As organizações rurais e
urbanas, nas diferentes regiões, assim
como diversos setores da sociedade
civil, que haviam sido sistematicamente
ignorados ou marginalizados na
formulação do Plano Ofi cial, já
refl etiram em um novo modelo. A
alternativa proposta pode ser resumida
em quatro grandes pontos:
1. Rejeição ou renegociação de todas
as diferentes versões de políticas
de ajuste estrutural propostas pelas
instituições fi nanceiras internacionais.
2. Lançamento de um projeto nacional
de obras públicas em grande escala
para reconstruir e desenvolver a
infraestrutura do Haiti, a rede de
telecomunicações, os transportes,
as escolas públicas, as instalações de
saúde pública e a moradia social.
3. Prioridade à segurança e à
soberania alimentares de Haiti ao
subvencionar a produção destinada
ao mercado local e ao favorecer o
desenvolvimento das pequenas
e médias empresas que utilizam
produtos haitianos a fi m de fabricar
bens de consumo para o mercado
nacional e, eventualmente, para a
exportação (por exemplo, a produção
artesanal).
4. Proteção dos direitos de todos os
trabalhadores, em particular, o direito
de formar sindicatos, o direito de
entabular negociações coletivas,
o direito de greve e o direito a um
salário de subsistência.
É evidente que esses objetivos não poderão
ser implantados simultaneamente ou
imediatamente; no entanto, devem servir
de base para que a população se mobilize
em massa a fi m de impelir o governo
a empenhar sua responsabilidade e a
renegociar as relações que o Haiti mantém
com a comunidade internacional. Convém,
igualmente, esperar que nas próximas
eleições, a população mobilizada não
coloque seu destino nas mãos de falsos
profetas. ■
Professor de Sociologia na
Universidade de Wesleyan (EUA),
Alex Dupuy é reputado por
suas pesquisas no campo do
desenvolvimento social, econômico
e político do Haiti e do Caribe.
Entre suas obras, podemos citar
os seguintes títulos: Haiti in the
World Economy: Class, Race, and
Underdevelopment Since 1700, 1989;
Haiti in the New World Order: The
Limits of the Democratic Revolution,
1997; The Prophet and Power: Jean-
Bertrand Aristide, the International
Community, and Haiti, 2007.
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EduInfo é o boletim eletrônico do setor de Educação. Ele coloca à disposição de seus usuários notícias, artigos e as mais recentes publicações da área. Para outras informações: http://www.unesco.org/fr/education/eduinfo-newsletter
3 4 . O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0
Dez dias após o terremoto, que matou 17
estudantes e funcionários, a Universidade
Quisqueya organizou um sistema de
voluntariado. Qual foi o procedimento adotado
nessa ocasião?
Em um primeiro momento, os estudantes de
medicina se instalaram em uma tenda, armada
em um estacionamento. Eles começaram a
ser supervisionados pelos professores e, em
seguida, por uma equipe de médicos eslovacos
que, tendo chegado com medicamentos e
equipamentos, procuravam um lugar para
exercer suas funções. Depois, os estudantes
implantaram uma clínica móvel. Mais tarde,
foram criados pontos de distribuição de água
potável. Os alunos de engenharia e de proteção
ambiental saíram para as ruas ajudando as
pessoas a se organizarem em comitês para
gerenciar os acampamentos improvisados.
Além disso, promoveram atividades de
zoneamento, saneamento básico e gestão do
lixo. A universidade tornou-se uma enorme
organização formada por voluntários!
Outras 11 tendas foram implantadas.
Os estudantes de ciências da educação
frequentaram cursos intensivos na área da ajuda
psicossocial e, quase imediatamente, saíram para
a rua, colocando em prática os conhecimentos
adquiridos. Em uma dessas tendas, foram criados
com o envolvimento dos estudantes ateliês de
arte-terapia, destinados a cerca de 150 crianças
por fi nal de semana. Nestas circunstâncias,
cheguei a afi rmar-lhes: “Agora, a universidade de
vocês é a rua”.
Durante os fi ns de semana, os estudantes
encontravam os professores a fi m de formalizar
a educação não-formal que haviam recebido
ao longo da semana ou para colocar a teoria na
Um novo modelo de educação surgiu das ruínas da Universidade Quisqueya, no
Haiti, inteiramente destruída pelo terremoto de 12 de janeiro de 2010. Baseado no
voluntariado, tal modelo, empreendido pelo reitor Jacky Lumarque, visa também o
desenvolvimento de parcerias. Abaixo, apresentamos extratos de sua entrevista a
respeito dessa iniciativa, concedida a Joan O’Sullivan (boletim EduInfo).
A universidade na rua
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prática. Estamos em via de elaborar um sistema
que permitirá recompensar seus esforços. Para
eles, essa experiência alterou o paradigma da
educação: eles tomaram consciência de que
ensinar não acontece em um único sentido e
que não necessariamente deve se dar entre
quatro paredes com um professor que sabe
tudo e apenas comunica seus conhecimentos.
Graças a essa iniciativa de voluntariado, os
conhecimentos são adquiridos na rua e o
professor acompanha o processo. Acabamos por
“desinstitucionalizar” os conhecimentos.
Os estudantes tiveram a possibilidade de
continuar sua aprendizagem?
Uma das tendas foi conectada à internet e
chamada de “tenda digital”. Desse modo,
foram organizadas videoconferências com
universidades de Montreal (Canadá) e de Paris
para os estudantes cursando o mestrado.
Tentamos instaurar um sistema de cursos pela
internet de modo que os alunos que estavam
quase terminando o curso pudessem fazer os
exames.
Qual é a próxima etapa?
Considerando que cerca de 400 a 500 estudantes
não conseguiram frequentar os cursos do segundo
semestre, que deveriam ter começado no fi nal
do mês de janeiro, propomos um curso básico,
mais geral, associado a cursos mais curtos (gestão
básica, logística, primeiros cuidados, prevenção
dos riscos, organização das comunidades etc.),
com duração de 15 semanas. O grande desafi o é
fazer a universidade funcionar de maneira regular,
instaurando um sistema de patrocínio mediante o
qual os doadores venham a contribuir com cerca
de US$ 200 mensais para cada estudante. Com
isso, eles podem pagar as despesas do dia-a dia
sem deixar de lado suas atividades voluntárias.
Essa ajuda deve cobrir também a taxa de inscrição
e contribuir para as despesas associadas ao
funcionamento e ao pessoal da universidade.
Temos realmente necessidade desse patrocínio
porque nosso estabelecimento é privado e não se
benefi cia com nenhuma subvenção do Estado.
O terremoto alterou seu ponto de vista sobre
o que deve ser feito para reconstruir o sistema
educativo haitiano?
Completamente. Diante do estado de devastação
do sistema educativo, redigi novas proposições
para um Pacto Educativo Nacional a ser entregue
ao governo haitiano. Atualmente, a questão
não é tanto “fazer com que os alunos voltem à
escola”, mas sobretudo proceder de modo que
todas as crianças haitianas possam frequentar a
escola, incluindo os 25% de crianças com idade
compreendida entre 5 e 11 anos fora da sala de
aula antes do terremoto. Sobre este assunto,
consultei um grande número de pais, professores,
estudantes e ONGs que trabalham na área. O
orçamento da educação representa, atualmente,
9% do PIB haitiano. Eu gostaria que ele viesse a
atingir o patamar dos 25%, em 2015, e dos 30%,
em 2025. O objetivo consistiria em alcançar
uma escolarização de 100%, com um ensino
totalmente gratuito, incluindo os livros didáticos
e o material escolar, além de uma refeição quente
diária para cada criança. Para que tal sistema
venha a funcionar, é indispensável uma formação
acelerada dos professores. Essas propostas são
ambiciosas, mas é impossível continuar com
um duplo sistema educativo: um, para os ricos e
outro para o resto da população. ■
Diplomado em matemática, Jacky Lumarque é, desde 2006, reitor
da Universidade Quisqueya, fundada em 1990 por professores
universitários em parceria com um grupo de empresas haitianas.
Ex-diretor da Capital Consult, empresa privada de assessoria
especializada em economia, fi nanças e gestão, ele preside atualmente
a Comissão Presidencial para a Educação do Haiti.
Jacky Lumarque visitou
com a diretora-geral Irina
Bokova (à sua esquerda)
o campus destruído da
Universidade Quisqueya
na qual ele é reitor.
« Agora, a universidade de
vocês é a rua ».
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3 6 . O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0
Desde Toussaint Louverture, em 1801, todos os
governos haitianos, com excepção do período
de Alexandre Pétion (1806-1818), instauraram
sempre uma instância política e administrativa
encarregada da educação. O artigo 19 da
Constituição de 1805, publicado pelo imperador
Jean Jacques Dessalines, havia transformado
a educação em uma política do Estado. O rei
Henry I, mais conhecido pelo nome de rei
Christophe – que tinha formado um governo
separatista no Norte do país (1807-1820),
enquanto o Sul estava nas mãos de Alexandre
Pétion – é considerado um vanguardista na área
da educação, incluindo o ensino superior, assim
como na prática das artes e ofícios.
De 1843 a 1987, todas as Constituições
afi rmam o direito de cada criança haitiana,
menino ou menina, de se benefi ciar de uma
educação bá-sica «gratuita e comum a todos
os cidadãos», como uma prioridade e uma
obrigação. Ora, o país nunca conseguiu implantar
um sistema educacional orientado para os
valores cardeais preconizados na Convenção
Relativa aos Direitos da Criança; e, muito antes de
12 de janeiro, já se fazia sentir a necessidade de
reformular o sistema educacional.
Em vez de ensinar o respeito pelos direitos
humanos e pelas liberdades fundamentais,
a escola haitiana acabou reproduzindo uma
sociedade baseada na desigualdade e na
injustiça, composta por indivíduos desprovidos
de consciência nacional que menosprezam
seus concidadãos, excluem e coisifi cam os
outros. Nosso sistema não conseguiu extirpar os
malefícios coloniais.
Portanto, deparamo-nos, atualmente, com
um país atrasado e que, em cada dia, se afunda
mais no analfabetismo e na pobreza.
Há 200 anos a educação se comporta melhor no
papel no Haiti. Na prática, ela patina e contribui
para a reprodução de uma sociedade baseada
na desigualdade e na injustiça. Uma nova
escolha ideológica se impõe.
Evitar que as mesmas
causas venham a produzir os
mesmos efeitosPor Jean Coulanges
partidárias, nem cálculos eleitoreiros, teremos de
estabelecer outros mecanismos de governança
ao reformar, por exemplo, o sistema de
inspetoria. Devemos tomar todas as disposições
para fazer respeitar, sem opinião preconcebida,
as medidas tomadas pelo Estado haitiano
no âmbito da implantação de um sistema de
educação, no plano nacional. Será necessário,
igualmente, rever os currículos existentes em
função das necessidades do trabalho produtivo,
das preocupações ambientais, além dos valores
da cidadania, e fornecer os recursos necessários
para a realização da reforma do ensino superior.
É imperioso proceder à instalação de infra-
estruturas adequadas e elaborar planos de
carreira que permitam aos professores ganhar a
vida com dignidade.
A reformulação do sistema educacional
haitiano deverá, portanto, favorecer a formação
do homem-cidadão-produtor capaz de
aprimorar permanentemente as condições físicas
do Haiti, além de criar riquezas materiais sem
deixar de contribuir para a plena manifestação
dos valores culturais, morais e espirituais do País.
O novo sistema educacional deverá ser capaz de
desenvolver a consciência nacional, o senso das
responsabilidades e o espírito comunitário de
modo que, em seu conteúdo, sejam integrados
os dados da realidade haitiana. ■
Uma situação catastrófi ca
Uma única escola normal superior, algumas
escolas normais de professores primários e
um único centro de formação para a escola
fundamental oferecem uma formação
inicial e contínua para todos os quadros do
sistema educacional. Em um total de 60.000
professores, somente 10,64% dispõem de uma
qualifi cação no nível da escola fundamental.
Alguns profi ssionais de outros setores são
contratados como professores, sem formação
prévia em matéria de pedagogia; pior ainda,
alguns professores não têm nenhuma formação
superior. Mas, até mesmo no caso de possuírem
uma qualifi cação, eles são incapazes de
garantir um bom desempenho quando estão
encarregados de um número superior a 40 horas
de aulas por semana.
As instalações escolares deterioradas, ou
construídas fora das normas, exercem também
infl uência sobre a qualidade da educação.
No que diz respeito ao acesso à escola primá-
ria, é impossível falar de gratuidade porque cerca
de 82% dos estabelecimentos pertencem ao setor
privado (de acordo com o censo escolar de 2003).
O ensino secundário espera uma reforma,
desde 1980, e praticamente nenhum estudo
foi feito sobre esse tema. Por sua vez, o projeto
de reforma do ensino superior em geral, e da
Universidade de Estado do Haiti em particular,
arrasta-se desde 1997. Além das dissertações
dos estudantes, o número de pesquisas e de
publicações é bastante reduzido.
Como foi possível chegar a essa situação?
A ausência de visão é a razão fundamental. O
Estado, continuamente manipulado por uma
oligarquia retrógrada, sem grandes ambições,
aloca recursos precários ao setor educacional; a
esse aspecto, acrescente-se um sério problema
de governança e de corrupção. O controle real
do sistema escapa ao ministério da Educação
de modo que alguns projetos não chegam a ser
implantados.
A instabilidade política gera, também, efeitos
nefastos sobre a evolução da educação. Os
ministros dispõem de um tempo reduzido para
conceber, elaborar e instalar corretamente uma
política nacional relativa à educação. No decorrer
dos últimos 162 anos, registra-se o número de
216 ministros da Educação, ou seja, uma média
de cerca de 9,4 meses de exercício por pessoa; tal
situação engendra a impossibilidade quase total
de continuidade de ação no setor.
Uma nova escolha ideológica
Como reformular esse sistema de modo a
evitar que as mesmas causas venham a produzir
os mesmos efeitos? Fundamentalmente, temos
necessidade de uma nova escolha ideológica
que considere a educação de qualidade como
a passagem obrigatória para uma sociedade
mais desenvolvida. Sem considerações político-
Cena de carnaval em
Jacmel.
Página anterior: Criança
sonhando em ir à escola
em um bairro popular
de Bel Air. Porto Príncipe,
1982.
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Jean Coulanges é Secretário Geral da Comissão
Nacional Haitiana de Cooperação com a UNESCO.
As comissões nacionais, órgãos consultivos,
de ligação e de informação, mobilizam e
coordenam as parcerias com a sociedade civil,
contribuindo assim para a realização dos
objetivos da UNESCO. O Haiti, que juntou-se
à Organização em 18 de novembro de 1946, é
um de seus estados membros mais antigos.
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3 8 . O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0
Com uma pá redonda nas mãos, Jean Sprumont
se agita em largos golpes nervosos. Ao fi m de
alguns minutos, uma cratera de cimento, areia
e água se formam no pátio lotado de peneiras e
formas para trabalhos em concreto. Mostrando
a massa acinzentada, Jean Sprumont dirige-se
em crioulo aos cerca de 15 pedreiros haitianos
que participam da capacitação sobre métodos
antiterremoto:
« Sa se béton kalité. Kalité do kibon pouli é
lyben brasé » (Este é um bom concreto. Tem uma
boa quantidade de água e está bem misturado).
Jean Sprumont não é um capacitador como
os outros. O responsável pelo projeto belga vive
há 44 anos no Haiti. Estava presente em Porto
Príncipe no 12 de janeiro de 2009 e viu imóveis
inteiros desabarem em poucos segundos. “Essa
cidade foi construída com a completa ilusão de
concreto, comenta ele com amargura. Vimos
o resultado trágico”. E continua: “Foram as
construções que mataram as pessoas. Uma
enorme quantidade de água e a presença de
argila e lodo dentro do concreto são as causas da
queda de mais da metade de prédios de Porto
Príncipe quando aconteceu o tremor de terra” .
Para tentar remediar os costumes de
construção que conduziram à amplifi car a
catástrofe, o atelier-escola de Camp-Perrin,
situado no Sudoeste do pais, estabeleceu
em parceria com a UNESCO uma capacitação
intensiva de 10 dias para os pedreiros, mestres de
obras e comerciantes de sucata haitianos. “ É uma
boa capacitação, explica Herbert Montuma, que
Construir de acordo com métodos antiterremoto
é o objetivo do projeto de capacitação de
pedreiros iniciado com o apoio da UNESCO em
março de 2010, em Camp-Perrin, no Sudoeste do
Haiti. Cerca de 500 pedreiros Serão capacitados
em técnicas que permitirão salvar muitas vidas
em caso de terremoto.
Capacitação traz contribuição concreta para a reconstrução
Por Mehdi Benchelah, jornalista franco-algeriano
UNESCOem ação
dirige o atelier escola de Camp-Perrin, mesmo
não sendo em 10 dias que se pode aprender tudo
sobre construção antiterremoto”.
Michel Raoul, de 40 anos, natural de
Camp-Perrin, está fazendo a capacitação e está
convencido que ela permitirá evitar erros que
foram cometidos no passado. “ Mas o problema
é normalmente do proprietário” , acrescenta
ele depois de uma breve hesitação. “Ele nos diz
‘me proteja do cimento’ (não gaste muito com
o cimento), então, fazendo assim, ao invés de o
proteger isso pode causar a sua morte”.
Essa é a razão pela qual “além das técnicas
que estamos ensinando aos pedreiros, trata-se
de fazê-los ter consciência que quando eles são
chamados a um canteiro de obras, eles têm o
dever de fazer as coisas com profi ssionalismo e
ética”, explica Herbert Montuma.
O seminário começará em breve a sua terceira
turma de pedreiros (com 10 a 15 pessoas por
sessão de capacitação). A longo prazo, cerca de
500 pedreiros serão capacitados com técnicas
que permitirão salvar várias vidas em caso de
terremoto. Para multiplicar o numero de pessoas
formadas e permitir uma maior transmissão de
conhecimentos, os melhores capacitados de
cada turma serão encorajados a tornarem-se eles
mesmos capacitadores.
Em seguida ao seminário, uma publicação
em francês e em crioulo, contendo explicações
ilustradas por diagramas, será editada e
distribuída aos profi ssionais da construção no
país. ■
Três meses após o terremoto
que gerou centenas de
milhares de vítimas, em 12 de
janeiro de 2010, os alunos de
Porto Príncipe começaram a
voltar às aulas.
Com o apoio da UNESCO, o Ministério da
Educação Nacional e da Formação Profi ssional do
Haiti defi niu um programa especial a fi m de levar
em conta os traumas e distúrbios que atingiram
tanto as crianças quanto os professores.
O programa, implementado a partir de um
seminário realizado nos dias 25 e 26 de março,
será destinado aos 600.000 alunos dos níveis
fundamental e médio. “Trata-se de priorizar,
particularmente, os objetivos essenciais”, explica
Jackson Pleteau, diretor de Ensino Médio do
ministério. “Nesse sentido, defi nimos uma base
mínima de conhecimentos que devem ser
adquiridos pelas crianças para passar de uma série
para a outra. Estamos considerando, também,
introduzir algumas partes do conteúdo no
próximo ano, em uma série superior.”
Em virtude desse novo programa, a educação
será retomada por etapas, começando por
atividades “psicossociais”, tais como o canto,
a dança e a expressão criativa, para ajudar as
crianças a lidar com a extrema tensão da qual
foram vítimas em decorrência do terremoto. Elas
receberão um esclarecimento mais aprofundado
sobre o fenômeno, antes de retomar, mais tarde,
a aprendizagem tradicional. O ministério prevê
um programa condensado em 18 semanas para
validar o ano letivo que vai terminar em agosto. A
UNESCO providenciará o acesso livre ao programa,
via Internet, a fi m de que ele esteja disponível para
todos os professores no Haiti.
Essa volta às aulas, entretanto, refere-se a um
número limitado de estabelecimentos de ensino e
apenas poucas crianças retomaram o caminho da
escola.
Considerando que a maior parte dos
estabelecimentos fi caram em ruínas, ainda são
necessárias grandes obras de desentulho, além
da instalação de tendas para acolher os alunos
Programa escolar de emergência
Em todo o país, o
terremoto matou
aproximadamente
38.000 alunos
e estudantes,
assim como 1.300
professores e
profi ssionais da
educação. O prédio
do Ministério da
Educação Nacional
foi destruído, e
também cerca de
4.000 escolas –
cerca de 80% dos
estabelecimentos
de ensino da região
de Porto Príncipe.
O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0 . 3 9
Desentulho do bairro
Carrefour-Feuilles em
Porto Príncipe.
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com toda a segurança. Esse é o caso da Escola
Mista Thérèse-Rouchon, no bairro de Turgeau,
que fi cou completamente destruída: no meio
dos escombros, é possível distinguir bancos de
madeira, cadernos, cópias de testes escolares e um
quadro negro no qual ainda está escrita a última
aula, dada algumas horas antes da tragédia.
Outras escolas foram benefi ciadas com uma
primeira operação de desentulho que permitiu
a recuperação de um mínimo de espaço vital,
como a Instituição de Sainte-Marie-des-Anges,
localizada no elegante bairro de Paco. O prédio
dos meninos fi cou completamente destruído. Já o
antigo edifício de tijolos, que abrigava a escola das
meninas, foi inutilizado devido às rachaduras e aos
buracos na fachada.
Para acolher os alunos no primeiro dia de escola,
o diretor, pastor Franck Petit, mandou construir um
grande galpão sob o qual foram instaladas as salas
de aulas, separadas por painéis de madeira. No
entanto, o diretor reconhece que foi difícil organizar
esse retorno: “As crianças tiveram reações diferentes.
Algumas estavam em prantos e não queriam
entrar porque tinham receio de morrer debaixo do
concreto. Foi necessário ter paciência para explicar-
lhes que as salas de aula eram de madeira. Enquanto
hasteávamos a bandeira, nessa manhã, várias
crianças choravam, talvez, a morte de um parente,
mãe, irmã... a gente não sabe. É uma situação
bastante difícil, tanto para os alunos quanto para os
professores.”
Em todo o país, o terremoto matou
aproximadamente 38.000 alunos e estudantes,
assim como 1.300 professores e profi ssionais da
educação. O prédio do Ministério da Educação
Nacional foi destruído, e também cerca de 4.000
escolas – cerca de 80% dos estabelecimentos de
ensino da região de Porto Príncipe. ■
Apoio psicossocial
Superar o trauma do terremoto e tratar
de recobrar confi ança no futuro: esses
são os objetivos de uma capacitação de
três dias organizada sob os auspícios do
Ministério da Educação Nacional haitiano
e da UNESCO voltada para o quadro de
professores do secundário no Haiti. Os
capacitados serão encarregados de formar
os demais professores para que, por sua vez,
os alunos sejam benefi ciados.
Esse tipo de apoio chamado “psicossocial”
visa a prevenir e aliviar as seqüelas morais
em seguida de catástrofes ou eventos
violentos. O conceito usa técnicas de
animação, de jogos e de trocas entre os
alunos e seus professores.
O seminário contou com a participação
de cerca de 40 inspetores, diretores de
escola e professores. A capacitação também
incluiu ensinamentos sobre fenômenos
relacionados a terremotos, a prevenção de
riscos e técnicas de sobrevivência.
A parte destinada à UNESCO contou
com a participação da Universidade
Quisqueya de Porto Príncipe. Trata-se da
primeira capacitação psicossocial destinada
a jovens do secundário.
O conjunto de alunos do secundário
do Departamento do Oeste abrangendo a
região de Porto Príncipe - cerca de 110.000
adolescentes – serão benefi ciados por
esse programa de apoio que será, a longo
prazo, estendido ao conjunto do território
nacional.
Divertimento para
combater os traumas.
UNESCOem ação
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hie
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ris
Quando o Haiti se tornou membro da UNESCO
– aliás, um dos primeiros Estados a aderir à
Organização –, o país apresentava uma taxa de
analfabetismo superior a 80%, superando até
mesmo os 90% em determinadas regiões. Tal
situação signifi cava uma população não somente
incapaz de ler e escrever, mas também ignorante
dos princípios científi cos mais elementares em
matéria de agricultura, preservação dos recursos
naturais e de higiene. Jean Dumarsais Estimé,
presidente da República na época, solicitou a ajuda
da UNESCO para elevar o nível de instrução dos
haitianos. Julian Huxley, primeiro Director Geral
da UNESCO, acabava de declarar que o acesso à
educação básica era uma condição essencial para
“a ampliação e o aprofundamento da compreensão
entre os homens, ou seja, a missão própria da
UNESCO”. A demanda foi aceita e, a partir de 1947,
a UNESCO implementou “uma experiência-piloto” de
educação fundamental, aliás, a primeira desse tipo.
Em abril de 1948, uma equipe sob a direção
do antropólogo, de origem suíça, Alfred Métraux,
O primeiro projeto piloto
de educação básica da
UNESCO no Haiti foi
implantado no distrito
rural de Marbial, no Vale de
Gosseline, ao Sul do País.
Kêbé l’Inesko Fò !Por Julia Pohle, com base em documentos dos Arquivos da UNESCO
O Haiti esteve entre os primeiros Estados a aderir à UNESCO, em
18 de novembro de 1946. Imediatamente depois, a Organização
implantou nesse país seu primeiro projeto-piloto de educação
básica, visando reduzir o analfabetismo. O projeto chegou quase a
ser abandonado, mas foi salvo pela população local.
O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0 . 4 1
Arquivos da UNESCO
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4 2 . O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0
foi enviada pela UNESCO para proceder a uma
sondagem no Haiti. O local escolhido pelo governo
haitiano para o novo projeto-piloto foi o distrito
rural de Marbial, no Vale de Gosseline, na região
Sul do país. A população do Vale foi avaliada, nessa
época, em cerca de 30.000 habitantes, dispersos
em cabanas fabricadas na encosta da montanha. A
equipe descobriu aí condições de vida desumanas:
o Vale era superpovoado, e os camponeses,
analfabetos, sobreviviam com grande difi culdade
de colheitas precárias penosamente obtidas de
uma terra devastada pela erosão, além de serem
vítimas de doenças tropicais, sobretudo, da malária.
Devido às doenças e por terem de andar, em geral,
duas horas para chegar à escola, menos de 500
alunos foram inscritos nos três estabelecimentos
que funcionavam no Vale, e somente a metade
deles frequentava com regularidade a sala de aula.
Acrescente-se ainda a temível barreira
linguística: o idioma ofi cial era o francês, mas os
habitantes de Marbial falavam apenas o crioulo.
Por conseguinte, não existiam compêndios
nesta língua, dividida entre quatro registros
diferentes. Os professores tinham à sua disposição
apenas compêndios de francês, editados há 50
anos; e ainda assim, eles obrigavam os alunos a
aprender trechos de cor sem que eles os tivessem
compreendido. Para atenuar tal diferenciação
linguística, a UNESCO fez apelo a Robert Hall,
professor e investigador norte-americano,
especialista do crioulo. A partir da sua chegada
no Haiti, Hall elaborou um alfabeto que permitiu
redigir compêndios de leitura em crioulo.
Desanimado pela aspereza da vida no Vale
e pela desolação dos camponeses de Marbial,
foi enviada pela UNESCO parra proceder a uma
Artigo sobre o projeto de
Marbial, publicado em
junho de 1949 no Correio
da UNESCO.
Foto de trás : Cena do
mercado de Marbial.
Alfred Métraux retornou à sede da UNESCO
profundamente pessimista sobre o futuro do
projeto. No entanto, quando Frederick Rex,
especialista norte-americano da educação básica,
enviado para o local, alguns meses mais tarde,
julga que o empreendimento era impraticável e
recomenda à UNESCO o abandono do projeto,
Métraux se rebela. Ele escreve para a UNESCO:
“É impossível para nós deixarmos o Haiti [...] Não
podemos abandonar essas pessoas desvalidas, pois
lhes retiraremos toda a coragem [...] Os resultados
obtidos na área da educação fi cariam sem efeito.
Tal atitude provocaria um desastre completo [...]
a experiência-piloto da UNESCO merece que lhe
dediquemos toda a nossa energia.”
Neste momento é que se verifi ca a mobilização
dos camponeses de Marbial ao fi carem
sabendo que estavam sob a ameaça de serem
abandonados. Agitando grandes bandeirolas nas
quais era possível ler – “Kêbé l’Inesko Fò!” que,
em crioulo, signifi ca: “Apoiem a UNESCO com
todas as suas forças” –, eles decidem arregaçar as
mangas. No espaço de alguns meses, reunidos em
cooperativas, eles alargam o caminho que leva à
única aldeia, constroem um Centro UNESCO e um
centro comunitário para romper seu isolamento.
Eles escavam latrinas e um poço de água potável
para eliminar uma das causas mais perigosas de
doença. O mercado de Marbial é reconstruído em
um terreno mais elevado, além de mais seco, com
um pequeno matadouro ao ar livre.
No plano educativo, esses primeiros anos
registraram progressos notáveis: foi implantado um
programa alimentar de urgência que, por semana,
servia o almoço a 400 alunos. Em setembro de
1948, o Vale contava com dez centros de instrução,
nos quais jovens e idosos podiam aprender a
ler e escrever em crioulo. Logo em seguida, por
iniciativa de membros das cooperativas, nasce um
jornal local de duas páginas, inteiramente escrito à
mão e ilustrado com desenhos simples.
Apesar de todos esses esforços da população,
a UNESCO teve de enfrentar um sério desafi o:
além de elevar o nível social e econômico da
comunidade pela instrução, ela deveria formar
professores e agentes de intervenção haitianos
para garantir o mais depressa possível a
autossufi ciência do projeto. Bem cedo tornou-se
evidente que qualquer progresso no Vale estaria
dependente da melhoria da agricultura.
Conrad G. Opper, nomeado Director do projeto
em 1950, pediu que a Organização das Nações
Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO)
se associasse à UNESCO. Ele escreveu o seguinte:
“Não há a menor dúvida de que, sem estar baseado
na valorização do solo, qualquer programa de
educação popular no Vale de Marbial será utópico
e voltado ao fracasso”. A Organização Mundial da
Saúde (OMS), igualmente, se associa ao projeto e
envia um médico e uma enfermeira. Ela contribuirá
também para a criação de uma clínica que se
tornará a primeira clínica do Vale.
No decorrer desses avanços – nem sempre
espetaculares, no entanto, reais e constantes –,
Conrad G. Opper e sua equipe fi zeram questão
de ocupar uma posição de segundo plano a fi m
de permitir que o projeto fi casse nas mãos dos
camponeses a quem ele deveria socorrer. Tal
política foi tão bem-sucedida que, em agosto
de 1950, os habitantes de Marbial formaram um
Comitê Regional de Pessoas Eruditas, encarregado
de aconselhar os funcionários da UNESCO. Essa
experiência tinha reunido várias agências da ONU
em um esforço comum para ajudar os camponeses
de Marbial a viver uma vida melhor, mas seu
sucesso apoiou-se, em primeiro lugar e sobretudo,
no povo haitiano. ■
Julia Pohle é funcionária dos Arquivos da
UNESCO.
(www.unesco.org/archives/fre/index.html)
O projeto-piloto do Vale de Marbial é apenas um exemplo, entre outros, da
ação empreendida pela UNESCO no Haiti na área da educação, cultura,
ciência e comunicação. Como se vê, essa iniciativa inicial e o apoio da
UNESCO neste início do século XXI estão em perfeita continuidade. Os
documentos, as publicações e a correspondência trocada por ocasião da
implementação do projeto no Vale de Marbial, assim como tudo o que se
refere à ação da UNESCO no Haiti, podem ser consultados nos Arquivos da
UNESCO. Contato: [email protected]
Para saber mais:
« Éducation de base: l’expérience-témoin d’Haïti »,
Le nouveau Courrier, n° 2, UNESCO, abril 2003.
Mende (Tibor), « Marbial n’est plus la vallée
oubliée », Le Courrier de l’UNESCO, n° V, 1,
UNESCO, 1952.
L’expérience-témoin d’Haïti : première phase,
1947-1949, UNESCO, 1951 (contém o Acordo
assinado entre o governo haitiano e a UNESCO).
« Les leçons de l’expérience-témoin d’éducation
de base de l’UNESCO en Haïti », Le Courrier de
l’UNESCO, n° III, 12, UNESCO, 1951.
Jean François (Emmanuel) : Service de
l’expérience-témoin d’éducation de base de
Marbial : Haïti – Relatórios mensais, UNESCO,
1950-1951.
« En Haïti, histoire d’une expérience-témoin », Le
Courrier de l’UNESCO, suplemento, n° II, 5, UNESCO,
1949.
« Une vallée qui renaît : voici comment les
paysans de Marbial ont contribué au succès de
l’expérience d’Haïti », Le Courrier de l’UNESCO,
suplemento, n° II, 5, UNESCO, 1949.
Arquivos da UNESCO
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O senhor começou a vida de adulto e
de poeta respaldando-se no que veio a
designar, mais tarde, como “um triplo
credo contestatório”: uma negritude
ativa, o panfl eto surrealista e a ideia de
revolução. Parece que, atualmente, o
único elemento desse credo ainda em
vigor é a vertente surrealista.
Trata-se efetivamente de uma longa
história. No fi nal de 1945, André Breton
esteve no Haiti. Acontece que sua
visita coincidiu com uma exposição
do pintor Wifredo Lam e com uma
série de conferências proferidas por
Aimé Césaire – motivos sufi cientes
para infl amar a imaginação dos jovens
artistas e escritores haitianos! Nessa
época, não estávamos a par das
peripécias do movimento surrealista
na França. Para a juventude revoltada
contra a ditadura grotesca de Élie
Lescot, o surrealismo encarnava,
sobretudo, o espírito de rebelião. A
comunicação com Breton revelou-se
“contagiosa”. Na sequência de sua
primeira conferência, em uma sala de
cinema de Porto Príncipe, o diário La
Ruche (A Colmeia), que acabávamos de
fundar, publicou um número especial
em sua homenagem. Em decorrência
dessa iniciativa, fomos presos e o jornal
foi proibido.
O que Breton descobriu – e nos levou a
descobrir – no Haiti é que o surrealismo
não era somente uma doutrina estética,
mas podia ser um componente do
imaginário dos povos, e que existia um
surrealismo popular. Tal descoberta
acabou por gerar novamente confi ança
em nós mesmos. Vimos que esse
sentido do maravilhoso, que nos
suscitava secretamente certa vergonha
e era associado a uma espécie de
subdesenvolvimento, era, ao contrário,
Arquivos da UNESCO
René Depestre : entre utopia e realidadeNesta entrevista, publicada no Correio da UNESCO em dezembro de 1997, o escritor
franco-haitiano René Depestre faz um balanço de sua trajetória, respondendo às
perguntas de Jasmina Šopova. Ele volta a afi rmar sua rejeição a qualquer ideologia
totalitária e sua adesão a um civismo planetário baseado na solidariedade e no
respeito mútuo.
nossa arma. Breton nos disse: “lançamos
o surrealismo a partir de noções eruditas,
enquanto vocês o receberam no berço.” Isso
equivalia a afi rmar que o surrealismo é
algo de inato no Caribe. O vodu, oriundo
de um sincretismo franco-africano, é um
exemplo de surrealismo religioso. O
comportamento dos deuses vodus é
eminentemente surrealista.
O surrealismo mencionado pelo
senhor supera amplamente, portanto,
o quadro de um movimento literário ?
É isso mesmo. Muitos escritores
europeus, a partir do romantismo
alemão – e até mesmo anteriormente
– haviam adotado procedimentos
surrealistas. Estou certo de que, se
prestássemos a devida atenção à
cultura egípcia, japonesa ou chinesa,
descobriríamos igualmente aspectos
surrealistas. Para mim, o surrealismo é
uma forma de introduzir o maravilhoso
4 4 . O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0
René Depestre, na
UNESCO, em 2006,
por ocasião do
Cinquentenário do
Primeiro Congresso
Internacional de Escritores
e Artistas Negros
organizado em Paris © U
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no cotidiano. Ele existe, portanto, em toda a
parte. Mas alguns povos, tais como o haitiano
ou o brasileiro, conseguem manifestá-lo
com mais audácia do que outros.
Como o senhor explica a emergência
dos Duvalier em uma sociedade
impregnada pelo maravilhoso?
O maravilhoso marcou, inclusive, a
política haitiana. Na história deste
país, existem comportamentos de
ditadores relacionados a uma espécie
de desvio do maravilhoso. Um deslize
trágico. O tonton macoute, que é uma
noção folclórica – uma encarnação
do mal, uma criatura nazista, uma
espécie “de SS haitiano” –, tornou-se
assim realidade. O folclore haitiano é
permeado por um antagonismo entre
as forças do bem e as forças do mal. E
Duvalier pai apoiou-se nas forças da
magia negra para mergulhar o país em
uma situação de surrealismo totalitário.
Mas não existe apenas este aspecto
demoníaco. Desde aquela manhã de
dezembro de 1492 em que Cristovão
Colombo fi cou tomado pelo fascínio
ao descobrir a ilha, a aventura histórica
barroca do Haiti é indissociável do real
maravilhoso americano. O sentido do
maravilhoso (ou realismo fantástico
sul-americano) tornou-se um elemento
constitutivo da sensibilidade haitiana
e o provedor por excelência deste um
terço da ilha, onde o melhor e o pior
andam juntos com uma familiaridade
impressionante, quando não se
enfrentam com rara ferocidade.
Em seus poemas, o senhor tem
celebrado a utopia comunista.
Confesso que a sobrecarga de mentira e
de pesadelo policial da utopia marxista
chegou a ser predominante nos meus
trabalhos e nos meus dias de poeta até
o momento da minha ruptura com o
stalinismo. Tendo vivido em lugares que,
na tumultuada história do século XX,
tinham assumido um valor “estratégico”
considerável (Moscou, Praga, Pequim,
Hanoi, Havana), entendi que a forma de
compreender a “revolução socialista”
nessas paragens não era o oposto do
regime de terror haitiano, mas uma
outra forma do mesmo desvio. Em
vez de fazer prosperar a herança dos
direitos do homem e do cidadão, a
“revolução” havia profanado, nesses
países, a autonomia da mulher e do
homem: à custa da população, ela
acabou afundando na mais fantástica
deturpação de ideal e de sonho registrada
em toda a história dos homens.
O que se tornou sua “ideia de revolução”
que, aliás, o conduziu do Haiti para a
Europa e, em seguida, para Cuba?
Vivi intensamente a ideia de revolução.
Ela tinha se tornado, em mim, uma
espécie de disposição natural, como
respirar, andar ou nadar. E por pouco não
deturpou para sempre minha integridade
de cidadão e de escritor. A ideia de
revolução empobreceu gravemente a
dinâmica de poesia e de ternura que,
aos 20 anos, me levava a imaginar
meus trabalhos como um estado de
encantamento e de compaixão com o
mundo. Ela transformou meu percurso
literário no trajeto de um escritor
submerso em mudança repentina de
perspectivas psicológicas e intelectuais,
em bruscas reviravoltas existenciais,
em uma espécie de acervo desconexo
de incertezas e de inconsequências,
extraviado na fúria das correntes de
ideias e de paixões do século. As ilhas do
tesouro inventadas pelas utopias e pelas
mitologias da revolução esvaíram-se
com o grande sonho dos anos de nossa
juventude: unir a ideia de transformar
o mundo (Karl Marx) com a ideia de
modifi car a vida (Arthur Rimbaud).
A palavra “utopia” empregada em
um contexto marxista é utilizada pelo
senhor com uma conotação pejorativa.
Será que o mundo não tem necessidade
de utopias?
Octavio Paz defi niu as utopias como “os
sonhos da razão”; ora, estamos saindo
precisamente de um prodigioso pesadelo
da razão. O século XIX, época crítica por
excelência, foi o gerador direto da utopia
revolucionária. Mas, o sonho – afi nal
de contas, legítimo – dos fi lósofos do
passado não se transformou na reforma
decisiva da condição humana como
eles esperavam, nem em progressos
sem precedentes de nossa espécie. As
aspirações generosas do pensamento
crítico impuseram à nossa época, sob
a falsa identidade do “socialismo real”,
um absolutismo que ainda não havia
ocorrido anteriormente.
Com essa afi rmação, não estou
menosprezando a utopia como tal. Nessa
etapa da minha vida em que a idade
avançada me dá o sentimento de que
me resta pouco tempo à minha frente e
de que devo me apressar em exprimir as
coisas que guardei, durante toda a vida,
no meu foro íntimo, com a esperança
de poder manifestá-las com elegância e
maturidade, não faço de forma alguma
uma crítica do meu percurso de nômade.
Ora, qualquer autocrítica culmina na
utopia. No entanto, como um gato
escaldado, desconfi o profundamente de
um conceito histórico que acabou sendo
aviltado pelas revoluções do século XX.
No lugar da noção de realpolitik que está
na origem da maior parte dos infortúnios
dos indivíduos e das sociedades – e
ainda usufrui de uma extraordinária
vitalidade entre os dirigentes de Estados
– proponho a noção de realutopia.
O senhor pode nos explicar esta noção?
Designo por realutopia a noção estética
que me permite integrar, em um todo
único, as diversas componentes de minha
crioulidade de escritor franco-haitiano.
Na medicina e na fi siologia, fala-se de
sinergia para indicar a conjunção de
vários fatores que contribuem para uma
função única e para um efeito global.
A ideia de realutopia me conduz a uma
O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0 . 4 5
Desfi le de « tontons macoutes », na cidade de Kenscoff , em 1984.
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civismo planetário e da moral da
solidariedade, que permitiriam a partilha
democrática de certo número de valores
e de conhecimentos adquiridos que já
constituem os bens em comum da aldeia
global.
Quem estaria em condições de
promover esse civismo planetário?
Na primeira fi la desses valores comuns
às culturas do planeta, vejo a imaginação
audaciosa dos poetas e dos escritores.
Nossos trabalhos, de acordo com a
identidade estritamente estética que
lhes é específi ca, deveriam ajudar os
cientistas e os políticos a reorientar
nosso velho sentido do bem e do mal,
a renovar o sentido do sagrado que
anda desorientado em várias regiões do
mundo, além de promover uma relação
mais balanceada entre o Norte e o Sul,
o Oeste e o Leste, de acordo com uma
nova ordem mundial na qual as regras
indispensáveis do comércio – atenuadas
por uma nova lógica do sentido e do
ideal – pudessem ser vividas como um
equilíbrio original entre a natureza e a
história. Para ser próspero sem correr o
risco de esbarrar na catástrofe, o espírito
do mercado deveria ser capaz de contar,
desde agora, com horizontes éticos tais
como os do sentido, das leis da cidadania,
de uma arte de conviver baseada no ideal
de respeito mútuo e de compaixão entre os
diversos povos e sociedades do planeta. ■
Personalidades mencionadas neste texto:
André Breton, poeta surrealista francês.
Wifredo Lam, pintor surrealista cubano.
Aimé Césaire, poeta surrealista martiniquês.
Élie Lescot, presidente do Haiti de 1941 a 1946.
Duvalier pai (François Duvalier), presidente do Haiti
de 1957 a 1971, cujo apelido era “Papa Doc”.
Karl Marx, fi lósofo, economista e militante político
alemão.
Arthur Rimbaud, poeta francês da segunda metade
do século XIX.
Octavio Paz, Prêmio Nobel de Literatura em 1990
(México).
Joseph Arthur de Gobineau (1816-1882),
diplomata e escritor francês, autor nomeadamente de
Essai sur l’inégalité des races humaines [Ensaio sobre
a desigualdade das raças humanas].
Jean-Paul Sartre, fi lósofo francês. Em seu prefácio
da primeira Anthologie de la nouvelle poésie nègre
et malgache de langue française [Antologia da nova
poesia negra e malgache de língua francesa] (1948),
ele fala de “racismo antirracista” a propósito do
movimento da negritude.
espécie de sinergia estética e literária que
faz convergir para o mesmo objetivo as
múltiplas experiências que devo ao real
maravilhoso, à negritude, ao erotismo
solar e ao onirismo crioulo dos haitianos,
que é o surrealismo dos humilhados e dos
ofendidos.
Neste caso, o abandono da negritude
não será, talvez, defi nitivo?
Sempre desconfi ei da noção de negritude
por pensar que seria impossível constituir
uma antropologia que fosse o exato
oposto da outra antropologia que acabou
por nos desvalorizar e “desclassifi car
como negros”. Para mim, era impossível
colocar em um contexto de negros o
que se dizia e se fazia em termos de
brancos. O próprio Césaire designava tal
fenômeno por “gobinismo invertido” [cf.
J. A. de Gobineau]. Eu estava consciente
de que deveríamos construir nossa
própria estética, nossa própria ideologia,
sem cair no “racismo antirracista” [Jean-
Paul Sartre]. É por isso que fi z meu luto a
respeito tanto da negritude quanto do
marxismo. Restou apenas o surrealismo.
Atualmente, ele continua sendo, para
mim, um instrumento de trabalho por
meio de seus dois aspectos: o erudito
e o popular. Mas, cuidado! Desconfi o
também do surrealismo. Breton tinha
uma tendência a se deixar levar pelo
ocultismo, a associar o surrealismo a
determinadas tradições cabalísticas e
talmudistas, a esse lado tenebroso da
história do pensamento, o que, aliás, não
deixa de ser interessante, mas retorna, em
certa medida, à procura da pedra fi losofal.
Eu não aceito de modo algum esse
aspecto. Voltei as costas a meus ideais de
juventude e, atualmente, transformei essa
experiência trágica em objeto de minha
refl exão.
Como o senhor vê o mundo atual?
A ideia de revolução foi enterrada e
a história avança com sua procissão
telemática de horrores e maravilhas.
O mito do Grand Soir do espírito e do
corpo morreu em uma grande cama
de modelo soviético, aliás, uma morte
completamente natural. O cadáver
ainda não havia esfriado e o imaginário
do Estado totalitário já tinha voltado a
aparecer sob os traços do integrismo
religioso. Todos os tipos de crueldades
etnonacionalistas em nome de um suposto
programa de renovação da sociedade
dos infi éis erguem monumentos ao
obscurantismo, ao terrorismo e a novas
extorsões do Estado. Na periferia do
Ocidente, a utopia integrista toma o lugar
da utopia da revolução.
O que a literatura pode fazer para suscitar
nos indivíduos a vontade de se lançar na
aventura de um novo renascimento?
A resposta a essa pergunta é determinada
por um contexto de abominações
integristas, de massacres interétnicos, de
violências nacionalistas e racistas. Esse
contexto é o de um planeta governado
totalmente pela lógica do mercado.
Graças aos instrumentos embasados
na razão do Estado de direito e da
democracia, a instituição do mercado
sobreviveu a todas as tempestades
urdidas contra ela. Mas, atualmente, de
acordo com uma opinião generalizada, a
democracia do mercado tem necessidade
de renovar suas bases e seu modo de
funcionamento. Caso contrário, corre o
risco de transformar a vida social em um
cassino planetário sem qualquer ponto
de referência. Assim, a ordem mercantil
triunfante tem todo o interesse em evitar
as condições caóticas e confl itantes
nas quais se elabora a globalização das
questões humanas.
Passos audaciosos devem ser tomados
para a prosperidade do partimônio
mundial que se constituem as
experiências históricas da democracia – o
tesouro das regras da civilidade e da arte
de conviver que se encontra nos acervos
das sociedades mais desenvolvidas e mais
experientes, no Ocidente, em matéria de
direito, liberdade, justiça e solidariedade.
Deveria ser possível transformar a
atual globalização desordenada em
um processo de hominização sem
precedentes das relações entre os
indivíduos e entre os Estados-nações.
A sociedade civil internacional que se
constitui na desordem e na incerteza
do amanhã precisa do oxigênio do
4 6 . O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0
Menino participa do carnaval de Jacmel,
cidade natal de R. Depestre.
« Ezili Danto », obra de Andre Eugene, de Grand
Rue, Porto Príncipe.
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Antes mesmo do início da crise, o
aumento dos preços dos gêneros
alimentícios já tinha submetido um
grande número de países pobres a
uma provação bem difícil. O coquetel
perverso composto por preços elevados
e recessão econômica tem deixado
milhões de pessoas vulneráveis em
situação precária, e por um longo
período, além de ter degradado as
condições de natureza fi nanceira que
visam a realização dos objetivos de
desenvolvimento fi xados para 2015,
incluindo os de Educação Para Todos.
O agravamento da desnutrição
e o recrudescimento da grande
pobreza têm um impacto devastador
sobre a educação: a fome freia o
desenvolvimento cognitivo da criança,
chegando a bloquear – às vezes, de
forma irreversível – suas perspectivas
de aprendizagem. De acordo com a
Organização das Nações Unidas para
a Alimentação e a Agricultura (FAO),
o aumento dos preços dos gêneros
alimentícios fez crescer em 175 milhões
o número de pessoas desnutridas entre
2007 e 2008. A desnutrição progrediu
entre os alunos dos níveis pré-escolar
e primário em vários países. A alta dos
preços dos alimentos pesa também nas
despesas familiares com a educação:
em Bangladesh, cerca de um terço
das famílias pobres reconhecem ter
aplicado menos dinheiro na educação
devido ao aumento dos preços.
Considera-se que, em 2010, devido
à recessão econômica, outros 90
milhões de indivíduos vão conhecer
a extrema pobreza. Um maior grau
de pobreza signifi ca que os pais serão
levados a gastar menos com a educação
dos fi lhos e, às vezes, retirá-los da
escola para colocá-los no mercado do
trabalho. É o caso de numerosas famílias
atingidas pelo aumento do desemprego
nas minas de cobre da República
Democrática do Congo.
O fi nanciamento da educação ameaçado
pela diminuição da atividade econômica
Apesar de ser ainda um dado
insufi cientemente conhecido, o
crescimento econômico pesa de forma
determinante sobre o fi nanciamento
da educação. Na África Subsaariana,
entre 2000 e 2005, as despesas públicas
com a educação primária aumentaram
em 29%, contribuindo para a expansão
desse nível de ensino no conjunto da
região. Cerca de 75% desse aumento
foram atribuídos diretamente ao
incremento da economia.
A deterioração das perspectivas
econômicas corre o risco, portanto,
de pesar negativamente sobre
as despesas públicas destinadas à
educação, provocando uma diminuição
no número de escolas construídas e de
contratação de professores qualifi cados e
um aumento do número de pessoas não
escolarizadas.
Que signifi cado terá a diminuição
da atividade econômica para o
fi nanciamento na área da educação na
África Subsaariana, região que contém
cerca de metade das crianças não
escolarizadas do planeta? A estimativa
das receitas futuras dos Estados
– de acordo com as perspectivas
de crescimento, antes e depois do
surgimento da crise – dá uma ideia
do impacto: um cenário prevê a
redução anual de US$ 4,6 bilhões nas
despesas educacionais para 2009 e
2010. Estes números não passam de uma
previsão, mas ilustram perfeitamente as
pressões exercidas pela recessão sobre
o orçamento de um grande número de
países.
Os países ricos responderam à
crise fi nanceira com um investimento
maciço em programas que visam a
O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0 . 4 7
A educação sob a ameaça da crise fi nanceiraPor Samer Al-Samarrai
Após uma década de avanços favoráveis, os
progressos rumo aos objetivos de Educação Para
Todos (EPT) correm o risco de estancarem e até
mesmo de se reverterem, em decorrência dos efeitos
da crise fi nanceira mundial, da pobreza crescente, da
diminuição do crescimento econômico e da pressão
exercida sobre as fi nanças públicas. De acordo com o
Relatório Mundial de Monitoramento de Educação Para
Todos - 2010, ainda é possível conter esse perigo, com
a condição de agir rapidamente. F
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Jovem paquistanês no trabalho.
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relançar o crescimento, proteger os
cidadãos vulneráveis e preservar as
infraestruturas sociais. A educação teve
frequentemente prioridade: assim, nos
Estados Unidos, o American Recovery
and Reconstruction Act destinou
US$ 130 bilhões para preservar as
despesas voltadas à educação. Medidas
semelhantes acabaram por aumentar a
dívida de numerosos países ricos.
Contra a recessão, os países com
rendimentos modestos dispõem de
uma liberdade de ação menos ampla.
Nos mais pobres, as receitas fi scais
acabam sendo em geral reduzidas ou
fi cam estagnadas. Além disso, nessas
localidades é impossível conceber
o aumento da dívida. Vários países
africanos com rendimentos modestos
são obrigados, portanto, a recorrer à
ajuda internacional.
Ajuda destinada à educação também
reduzida
Antes da crise, os recursos
destinados à educação já tinham
começado a diminuir em proporções
inquietantes. Eles progrediram em
âmbito mundial durante a primeira
metade da década, mas, em seguida,
mantiveram-se no mesmo patamar: de
acordo com os diferentes relatórios,
tal ajuda chegava a US$ 12,1 bilhões
em 2007, uma soma mais ou menos
semelhante à disponibilizada em
2004. A situação da educação básica
é particularmente preocupante: os
compromissos de ajuda fi nanceira
para esse setor aumentaram
consideravelmente entre 2000 e 2004,
mas em seguida, passaram um período
irregular, entre estagnação e quedas
brutais. A soma de US$ 4,3 bilhões
registrada em 2007 representava uma
redução, em valores reais, de 22% em
relação a 2006 – uma diferença de 1,2
bilhões. O retrocesso dos compromissos
foi mais relevante, portanto, na
educação básica.
A crise fi nanceira deixa sob
pressão o orçamento das políticas de
ajuda internacional. Alguns países
doadores – a começar pela Irlanda –
foram atingidos drasticamente pela
crise: os planos anunciados em 2009
prevêem uma redução de 22% da ajuda,
representando um retrocesso após
um período de aumento rápido. Pelo
contrário, em outros países – tais como
o Reino Unido, os EUA ou o Japão –, foi
assumido o compromisso de manter e
até mesmo de incrementar o nível da
ajuda destinada à educação.
De acordo com o Relatório Mundial
2010, seria necessário priorizar a
educação nos orçamentos nacionais
e elevar o nível dos compromissos de
ajuda internacional à soma de US$
16 bilhões para atingir os objetivos
de universalizar o ensino primário,
desenvolver os programas de educação
da primeira infância e reduzir o número
de adultos analfabetos – 759 milhões
de indivíduos, ou 16% da população
mundial – até 2015 nos países pobres.
Em 46 nações de baixa renda, o
montante atual da ajuda à educação
básica, em redor de US$ 2,7 bilhões,
continua sendo insufi ciente em relação
a essas necessidades.
Apesar de parecer colossal, esse
montante representa apenas uma
ínfi ma fração – cerca de 2% – da boia de
salvamento lançada para salvar quatro
das principais instituições fi nanceiras do
Reino Unido e dos EUA. Ao garantirem
os ativos e ao preservarem o balanço
dos bancos, os governos afi rmam,
evidentemente, que estão fazendo um
investimento; mas, apoiar a educação
no mundo é investir, também, na
redução da pobreza, na partilha da
prosperidade e em uma globalização
mais equitativa.
No prefácio para o Relatório
Mundial 2010, a Diretora-geral da
UNESCO, Irina Bokova, lança um apelo:
“Diante dessa crise, é urgente que os
governos promovam mecanismos
para proteger os pobres e as pessoas
vulneráveis. É necessário também que
eles aproveitem essa oportunidade para
construir sociedades que combatam
a desigualdade, de maneira que
todos possam benefi ciar-se com essa
prosperidade. A educação está na linha
da frente”. ». ■
Samer Al-Samarrai,economista
especializado em educação, é o
principal analista das políticas do
Relatório Mundial de Monitoramento de
Educação Para Todos - 2010
“Quando alguém perde o emprego,
pensa nos fi lhos. Eis a primeira coisa
que me ocorreu à mente: como vou
comprar o uniforme no recomeço
do ano letivo, os cadernos e o resto
do material escolar?… Como vou
alimentá-los, com os preços tão
altos… Meus fi lhos só podem contar
comigo, eu os crio sozinha….
Kenia Valle, Managua (Nicaragua)
4 8 . O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0
A educação está ameaçada.
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O dia começa cedo na escola de
Aqualaar, aldeia situada nas terras áridas
do Nordeste do Quênia. Às cinco horas,
na chegada dos alunos, o professor,
Ibrahim Hussein (18 anos), já se encontra
diante do quadro-negro, pronto para
dar seu curso de aritmética.
Em Aqualaar, a “escola” resume-se
à uma superfície arenosa à sombra
de uma acácia. O quadro-negro está
dependurado em um ramo da árvore;
não há carteiras, nem cadeiras. E, no
entanto, 30 crianças absorvem as
palavras do mestre, acompanhando a
lição e rabiscando, com uma varinha,
algarismos na areia.
Se a classe começa antes da aurora,
é por um bom motivo: às oito horas,
as crianças deixarão a escola para se
ocuparem de suas tarefas cotidianas.
Em companhia dos pais, os rapazes vão
conduzir cabras e vacas para o pasto,
enquanto as moças vão andar 10 km
com as mães para buscar água. Mas,
às cinco horas da tarde, esse pequeno
grupo voltará a ocupar seus lugares
debaixo da acácia para outras duas
horas de estudo.
De fato, a situação no universo educativo
dos criadores de gado somalis de Garissa,
uma das regiões mais desfavorecidas do
Quênia, é lamentável: menos de uma
criança em três, termina a escolaridade
primária. Apenas 10% das moças
chegam à idade adulta com mais de
dois anos de instrução.
Abandonados pelo Estado, os pais
assumem o encargo de retribuir por
sua conta, embora modestamente, o
professor Sr. Hussein – titular de um
diploma do secundário –, além de
reservarem o tempo para que os fi lhos
possam estudar. Khadija Ali – pai de
Fatima (7 anos) e de Hassan (9 anos)
que são escolarizados deste modo – não
hesitou nem um instante: “Com certeza
é difícil; no entanto, graças à educação,
meus fi lhos terão, além de uma melhor
qualidade de vida, possibilidades que
nunca tive”.
Gostaríamos que, no mundo inteiro,
os governos demonstrassem a mesma
resolução e a mesma solicitude. Há dez
anos, por ocasião de um Fórum Mundial
organizado em Dacar (Senegal), eles
assumiram o compromisso de benefi ciar
todas as crianças do mundo com uma
S E T E M B R O 2 0 1 0 . 4 9
Educação para todos: não estamos cumprindo nossas promessas Por Kevin Watkins
Por ocasião do Fórum Mundial de Educação Para Todos,
organizado em Dacar (Senegal), em 2000, os Estados-
membros comprometeram-se a benefi ciar todas as crianças
do mundo com educação básica, em um prazo de 15
anos. Cinco anos antes de chegar ao termo desse prazo, 72
milhões de crianças em idade de frequentar a escola ainda
não estão escolarizadas.F
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Sala de aula de escola em bairro desfavorecido
de Karachi (Paquistão).
Alunas da Escola Begum Hajra, durante
inundação sazonal de esgoto em Karachi.
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educação básica, em um prazo de 15
anos. Entretanto, essa promessa não
está sendo cumprida.
Cinco anos antes de chegar ao termo
desse prazo, os registros escolares são
eloquentes: enquanto a economia
mundial exige um cabedal de
conhecimentos e de competências cada
vez maior, 72 milhões de crianças em
idade de frequentar a escola ainda não
estão escolarizadas. Milhões de outras
crianças abandonam os estudos antes
do fi nal do ciclo primário. E quando
prosseguem até o secundário, muitas não
atingem o nível necessário em leitura,
escrita e cálculo – sinal da má qualidade
do ensino que receberam.
Há, mesmo assim, boas notícias. Alguns
países, entre os mais pobres, fi zeram
progressos colossais em educação.
Mas, como um aluno qualquer está em
condições de afi rmar – “uma promessa
não passa de uma promessa” –, o objetivo
de Educação Para Todos não será atingido
se prosseguir no ritmo atual: com efeito,
os números divulgados pela UNESCO,
no corrente ano, mostram que se não
acelerarmos nossos esforços ainda haverá
56 milhões de não escolarizados, em 2015.
Aprimorar este dado deveria ser a
primeira de nossas prioridades; os
governos dos países em desenvolvimento
podem abrir o caminho, tomando
medidas políticas e fi nanceiras para
acolher as crianças mais desfavorecidas.
Uma estrada pavimentada de
obstáculos
De fato, com demasiada frequência os
que teriam mais a ganhar com tais medidas
são também os que não dispõem de uma
escola pública em boas condições. Nas
favelas do mundo, de Manilha a Nairóbi,
a ausência de serviços governamentais
decentes obriga milhões de famílias
pobres – portanto, desprovidas dos
recursos necessários – a recorrer a uma
educação privada onerosa, cuja qualidade
é em geral medíocre.
Evidentemente, os problemas educativos
não são isolados, juntando-se às
calamidades mais amplas, tais como a
pobreza e a discriminação das moças e
das mulheres. No Paquistão, por exemplo,
as moças das famílias rurais pobres não
passam, em média, mais de dois anos na
escola, ou seja, menos do terço da média
nacional.
Em matéria de educação, os governos
dos países em desenvolvimento não
são, contudo, os únicos a apresentar
resultados medíocres: os países doadores
também estão longe de cumprir
seus compromissos. Para que todas
as crianças do mundo venham a
benefi ciar-se com uma educação
básica, seria necessário desembolsar,
anualmente, US$ 13 bilhões de ajuda
suplementar, até 2015. Ora, após vários
anos de estagnação, a soma prometida
pelos compromissos de apoio à educação
básica foi reduzida no ano passado.
O contraste com a saúde é impressionante.
Os fundos alocados, em âmbito mundial,
para a luta contra o HIV/Aids e a vacinação
canalizaram a atenção política, provocando
uma intensifi cação da ajuda às
populações em situação de necessidade.
A Iniciativa de Via Rápida – um programa
mundial que opera sob os auspícios do
Banco Mundial – havia sido concebida,
no entanto, para desempenhar um papel
similar na educação. Mas ela sofreu com
a diminuição dos fi nanciamentos e com
intermináveis demoras de natureza
burocrática, de modo que alguns países
são obrigados a esperar dois a três anos,
antes de obter um apoio.
A estrada do Programa Educação
Para Todos continua pavimentada de
obstáculos: a escassez de professores e
de escolas, o desperdício de recursos,
a discriminação contra as moças, a
pobreza esmagadora e a não daptação
de determinados ensinamentos. Mas,
eles podem ser superados graças a
despesas públicas mais equitativas,
a um apoio focalizado nos mais
desfavorecidos e a políticas que venham
a atrair, formar e manter os professores
competentes.
Os bons estabelecimentos são uma
arma temível contra a pobreza,
a injustiça social e o extremismo.
Investir em uma escola de qualidade
é investir no crescimento econômico,
na prosperidade compartilhada e na
segurança. Chegou o momento em que
os governos têm de reservar à educação
o lugar que ela merece, no centro da
agenda política nacional e internacional. ■
Kevin Watkins é o Diretor do
“Relatório Mundial de Monitoramento
de Educação Para Todos - 2010”,
publicação da UNESCO lançada em 19
de janeiro de 2010.
5 0 . O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0
Cena de um pátio de escola na Libéria.
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“Nasci com a pena na mão”. Essa foi a
afi rmação inicial de nosso entrevistado.
“Nem me recordo do momento preciso
em que, pela primeira vez, tentei fazer
caligrafi a”, acrescenta. “No bairro onde
nasci, havia uma grande quantidade
de junco, material que serve para
fabricar penas.” Ghani Alani começou a
trabalhar bem cedo. “No início da minha
carreira profi ssional, fui contratado pela
companhia das estradas de ferro, em
Bagdá: durante o dia, eu limpava os
vagões e, à noite, dava prosseguimento a
meus estudos”. Entretanto, sublinha ele,
“na sexta-feira, dia de descanso semanal,
me dedicava ao estudo e à prática da
caligrafi a”.
“Meu mestre se chamava Hachem
Mohamed, mais conhecido pelo nome
de Baghdadi. Ele é o herdeiro dos
maiores mestres da caligrafi a, cuja
linhagem remonta à escola abbássida,
com 12 séculos de existência. Eu tinha
13 anos quando o conheci; durante três
anos, aprofundei o estudo da escrita.
Tendo terminado a primeira fase dos
estudos, a segunda pareceu-me mais
fácil. De fato, uma letra leva a desenhar
duas letras; em seguida, essas duas letras
formam uma palavra; e, por último, uma
frase.”
Esse mestre de caligrafi a não se
contentou em ensinar-lhe como traçar
as letras com a pena, mas incentivou-o
também a tomar consciência do vínculo
entre o ser e a letra. Na opinião de Ghani
Alani, “há na caligrafi a algo relacionado
à alma”. A pena do calígrafo nada é
além do prolongamento de seu braço,
Ghani Alani : « A caligrafi a é o vínculo entre o ser e a letra »Por Bassam Mansour, UNESCO
“No início, havia Bagdá”. É nestes termos que o
calígrafo iraquiano Ghani Alani evoca o papel de sua
cidade na história da caligrafi a árabe e muçulmana.
Trata-se do lugar de onde surgiram outras correntes
e as diversas escolas que promoveram esta arte.
Ele reconhece, contudo, que a arte da caligrafi a
desenvolveu-se em outras grandes capitais da
civilização árabe-muçulmana, desde a Andaluzia até
Bukhara (Uzbequistão).
O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0 . 5 1
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Caligrafi a de Ghani Alani.
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de seu ser por inteiro. “Meu mestre
nunca me dizia como traçar minhas
letras, mas chamava minha atenção,
sobretudo, para o vínculo entre o corpo
e a letra: “considerando que as mãos são
diferentes”, dizia ele, “seu tamanho vai
manifestar-se no momento de traçar as
letras; deste modo, a letra é o refl exo do
homem”.
“Aprendi essa arte por meio de Hachem
al Baghdadi, tal como ele a havia
herdado dos fundadores da Escola de
Bagdá. Certo dia, recebi um diploma
que ele nunca tinha entregue a nenhum
de seus alunos. Quando um professor
de caligrafi a concede tal certifi cado, ele
autoriza o aluno a assinar suas obras
com o próprio nome. O diploma assume
a forma de um documento ‘ofi cial’,
reconhecendo que o aluno atingiu
realmente o nível de excelência”. No
documento, pode-se ler o seguinte:
“Quando se tornou evidente que o
destinatário deste notável certifi cado
assimilou as regras da caligrafi a árabe
e analisou meticulosamente todas as
formas desta arte, tendo atingido a
excelência ao praticá-la, concedi-lhe o
direito de colocar sua assinatura na parte
inferior de suas preciosas escritas…”
Ghani Alani deixou Bagdá para fi xar-se
na capital francesa em 1967. “Em
Paris, prossegui o curso de direito na
universidade e obtive um doutorado”,
explica. “Eu desejava que a caligrafi a
permanecesse um lazer, mas a paixão
acabou por prevalecer. O homem de lei
abandonou a toga para transformar o
junco aguçado em seu instrumento de
trabalho. Ao entregar-nos os diplomas,
o decano da universidade de direito
disse-nos: ‘Agora, os senhores estão
preparados para o estudo do direito’.
Com essa frase, ele pretendia indicar que
nosso ensino havia fornecido os meios
para pensar. No fundo, é exatamente o
que o professor Hachem al Baghdadi nos
dizia a propósito da caligrafi a”.
“Tendo terminado o curso de direito,
tornei-me membro do Instituto de Belas
Artes de Bagdá, de acordo com o desejo
do professor”, sublinha. “No ano do meu
ingresso, um grande mestre turco em
iluminuras islâmicas, Hamad al Amidi,
foi convidado a ministrar um curso. Seus
ensinamentos foram muito importantes
para mim. Na realidade, minha prática
abrange, ao mesmo tempo, a caligrafi a e
a iluminura, o que não é muito usual.”
“Desde o início, tentei apreender
a essência da escrita na civilização
árabe. A partir da minha experiência,
trabalhei sobre as ideias de unidade e de
continuidade, cuja expressão se torna
5 2 . O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0
possível pela caligrafi a. Ela é como um
rio que é enriquecido pelas outras artes,
como se estas fossem seus afl uentes.”
Para Ghani Alani, o desenvolvimento da
caligrafi a na civilização árabe não está
associado à proibição da representação
pictórica, como é costume ouvir dizer. Ele
garante que se trata de “uma hipótese
equivocada”. “Existem desenhos na
civilização islâmica, particularmente, na
Turquia ou no Irã. Além disso, a caligrafi a
pode comportar imagens fi gurativas.
O apogeu da caligrafi a na civilização
árabe deve-se, sobretudo, ao fato de
que se trata de uma civilização baseada
na palavra, inclusive desde a era pré-
islâmica, quando a poesia era a única
arte, enquanto o poeta era o orgulho de
seu clã. E então, onde há a palavra, há o
texto escrito…”
Ele explica, assim, as origens formais da
caligrafi a: “o traçado reto e o traçado
curvo que, aliás, podem ser encontrados
desde sempre em todas as formas de
escrita do mundo: dos pictogramas aos
ideogramas, passando pela caligrafi a
’fonética’, que conferiu a estrutura
silábica à escrita cuneiforme. Desde a
invenção dessa modalidade, as escritas
assumiram essas duas formas, ou seja,
traçado reto e traçado curvo. É possível
encontrar diversas ilustrações nos
« A civilização árabe é uma civilização da palavra».
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Presidente Nujoma, o senhor é
conhecido no mundo como um
veterano das lutas em prol da
independência dos países africanos,
além de ser um defensor da igualdade
de gênero. Gostaríamos que nos
apresentasse seu ponto de vista a
respeito desse tema.
A igualdade de gênero é uma questão
realmente urgente, em particular,
nos países em desenvolvimento. No
passado, os homens e as mulheres
assumiam papéis específi cos em função
de seu sexo. Na sociedade moderna e
informatizada de hoje, esses papéis não
podem continuar sendo os mesmos:
as mulheres exercem numerosas
profi ssões que, anteriormente, eram
escritos da Mesopotâmia, tal como a
inscrição do Código de Hamurabi, cujas
letras são caracterizadas por serem retas,
contrariamente ao uso da época”.
Ghani Alani também nos confi a sua
opinião a respeito da escrita cúfi ca.
“Nunca qualifi quei a escrita reta como
cúfi ca. Os que a designaram dessa
maneira cometeram um erro relevante
ao estabelecerem que qualquer escrita
reta e angular podia ser chamada cúfi ca.
A verdade é completamente diferente.
Esta escrita é efetivamente anterior ao
surgimento da cidade de Kufa – daí,
o qualifi cativo cúfi co ou Kúfi co –, na
época dos Muallakats (os sete mais belos
poemas da era pré-islâmica, que teriam
sido inscritos na entrada da Caaba, em
Meca). Quanto a mim, prefi ro qualifi car
essa escrita como angular. É verdade
que a corrente cúfi ca trouxe melhorias e
ampliou seu uso, tanto nos manuscritos
quanto na arquitetura. A Escola de Bagdá
criou, em seguida, a escrita cursiva que
compreende vários tipos, tais como
o thuluth e o diwani, assim como o
naskhi que é o modelo adotado para a
tipografi a.”
Ghani Alani usa os Muallakats como
exemplo, apesar das dúvidas sobre
a existência dessas famosas poesias.
“Haverá sempre pessoas com dúvidas
em relação à veracidade desses
Muallakats”, explica. “Contudo, é
indiscutível que existiam, desde a
época pré-islâmica, textos escritos com
o alfabeto árabe. Foram encontrados
documentos, tratados e acordos,
gravados em tabuinhas de pedra que
são bem anteriores ao período islâmico.
Em alguns sítios arqueológicos, foram
exumados, igualmente, textos gravados
na pedra: o mais famoso documento
se encontra em Mada’in Saleh (Arábia
Saudita)”. ■
Ghani Alani é, junto com a editora
e professora universitária polonesa,
Anna Parzymies, o laureado de 2009
do Prêmio UNESCO-Sharjah em favor
da Cultura Árabe. O Prêmio, criado em
1998 por iniciativa dos Emirados Árabes
Unidos, é atribuído anualmente a duas
pessoas – uma originária de um país
árabe e outra de qualquer outro país
– cuja obra tenha contribuído para o
desenvolvimento e para a promoção da
cultura árabe. Para outras informações
sobre o Prêmio, contatar Jeannette
Tchilinguirian ([email protected]).
A igualdade de gênero: um imperativo para o desenvolvimento Por Sam Nujoma
Sam Nujoma, o homem que conduziu a República
da Namíbia à sua independência, em 1990, e foi seu
presidente por 15 anos – é um decano da política na
África. Um aspecto menos conhecido de seus combates:
o compromisso em favor da paridade entre as mulheres
e os homens. Ele explica a Hans d’Orville e a Clare Stark
o papel que atribui às mulheres, em seu país e em escala
internacional.
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reservadas aos homens, mas há ainda
muito a fazer neste plano. Temos
necessidade de um maior número de
homens e de mulheres para colher
plenamente os benefícios dos recursos
naturais de nosso país. É evidente que
todos devem participar de modo que
possamos erradicar a pobreza.
Qual foi o papel das mulheres no
movimento de libertação de seu país?
As mulheres desempenharam um
papel central no combate em favor
da libertação da Namíbia. Tínhamos
batalhões de mulheres; aliás, elas
eram frequentemente mais decididas
que os homens. Por ocasião do 3o
Congresso da Organização do Povo
Presidente Sam Nujoma,
na UNESCO, em 2004.
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do Sudoeste Africano (SWAPO), em
2002, adotamos uma resolução que nos
obriga a respeitar a paridade dos sexos
nas delegações regionais. O Congresso
pediu, igualmente, ao Comitê Central
para desenvolver um mecanismo que
garantisse a eleição, no mínimo, de 30%
de mulheres entre seus integrantes. O
SWAPO é dirigido por uma mulher, a
senhora Pendukeni Iivula-Ithana, nossa
Secretária Geral que também é ministra
da Justiça.
Essa política será válida, igualmente,
para o governo namibiano? Haverá
o propósito de conseguir a paridade
homens-mulheres nos ministérios?
Esse é o nosso objetivo que ainda
não foi alcançado. Por enquanto, as
mulheres ocupam 22% das cadeiras
de nossa Assembleia Nacional.
Mas, teremos de cumprir nossas
obrigações para com a Comunidade
de Desenvolvimento da África Austral
(SADEC), que é a nossa associação
econômica regional, e para com a
União Africana: esses dois organismos
estipulam que 50% dos ministros
devam ser mulheres, de hoje até 2015.
Será necessário alocar fundos
suplementares à igualdade doe
gênero no orçamento nacional, a fi m
de promover o papel das mulheres?
Penso que não há necessidade de
aumentar o orçamento nacional para
dar emprego a mulheres no governo,
mas julgo que são indispensáveis
fundos suplementares para garantir
que todas as crianças dos distritos
do SWAPO, rapazes e moças, tenham
acesso à informática para estarem mais
bem preparados e serem mais bem-
sucedidos neste mundo globalizado.
A educação é uma das chaves do
desenvolvimento. Por ocasião da
independência, a qualidade do
ensino dependia da cor da pele e da
origem étnica; evidentemente, em tais
condições, a população branca era
privilegiada. Este sistema tinha sido
imposto pelo regime do apartheid;
assim, após a independência, fomos
obrigados a reformular todo o sistema
educativo. Aliás, o Primeiro ministro
atual, H. E. Nahas Angula – que havia
sido o ministro da Educação, da Cultura,
da Juventude e do Esporte quando a
Namíbia se tornou independente, em
1990 – é que assumiu essa reforma do
sistema educativo namibiano que, hoje
em dia, é excelente graças a ele.
Será que os projetos de
desenvolvimento namibianos têm
focado sufi cientemente nas mulheres?
Na Namíbia, as mulheres são
incentivadas a participar em todos os
aspectos do desenvolvimento do país.
Qual é sua opinião a respeito da
igualdade de gênero no sistema
multilateral? Está satisfeito com a
situação vigente ou julga que as
tendências atuais deveriam ser
fortalecidas?
Vou tomar a ousadia de afi rmar que
pelo menos 85% de todas as agências
especializadas da ONU deveriam ser
dirigidas por mulheres porque elas
dispõem de maior aptidão para tratar
das questões associadas à promoção do
desenvolvimento humano.
Hans d’Orville é Diretor geral Adjunto
para o Planejamento Estratégico.
Clare Stark é especialista de Programa,
assessora do Diretor geral Adjunto para
o Planejamento Estratégico.
Esta rubrica, lançada pela Agência do
Planejamento Estratégico da UNESCO,
aborda assuntos de prospectiva
destinados tanto ao público em geral,
quanto aos Estados membros da
Organização. Ela apresenta opiniões
de intelectuais capazes de nutrir a
refl exão, a programação e a ação da
UNESCO em seus diferentes domínios
de competência.
Atualmente, é cada vez maior o
número de mulheres que ocupam
postos de responsabilidade no
Sistema das Nações Unidas.
Em outubro de 2009, a búlgara
Irina Bokova foi eleita para
dirigir a UNESCO. A Organização
Mundial da Saúde (OMS) é
dirigida por Margaret Chan; o
Programa Alimentar Mundial
(PAM), por Josette Sheeran;
o Fundo das Nações Unidas
para a Infância (UNICEF), por
Ann Margaret Veneman; o
Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento (PNUD),
por Helen Clark; e o Fundo das
Nações Unidas para a População
(UNFPA), por Thoraya Obaid.
5 4 . O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0
A Rede Mundial de Reservas da Biosfera
foi enriquecida com mais 13 novos sítios
em junho de 2010. A Rede conta agora
com 564 sítios distribuídos em 109
países.
As reservas da Biosfera são zonas
designadas no âmbito do Programa O
Homem e a Biosfera da UNESCO (MAB),
com o objetivo de testar abordagens
diferentes de gestão integrada da
biodiversidade e de recursos terrestres,
costeiros, marinhos ou de água doce. As
experiências são realizadas no sentido
de se obter ensinamentos visando ao
desenvolvimento sustentável.
Ler :
Lista completa das Reservas da Biosfera
2010 (em francês) www.unesco.org/mab/
doc/brs/BRList2010.pdf
Mapa da Rede Mundial de Reservas da
Biosfera 2009 (em francês)
http://unesdoc.unesco.org/
images/0018/001848/184853M.pdf
Estratégia da UNESCO para enfrentar
as mudanças climáticas (em francês).
http://unesdoc.unesco.org/
images/0016/001627/162715f.pdf
Oxapampa-Ashaninka-Yanesha, situado na
região amazônica do Peru, foi designado
Reserva da Biosfera em junho de 2010.
© C
esa
r La
ura
5 6 . L E C O U R R I E R D E L ’ U N E S C O . S E P T E M B R E 2 0 1 0
A Comissão Oceanográfi ca
Intergovernamental celebra seu
50º Aniversário este ano.
Sua principal missão é promover
a cooperação internacional relativa
a oceanos e regiões costeiras.
www.ioc-unesco.org
El Niño em novembro de 1997 e La Niña em
março de 1999. Imagens do Oceano Pacífi co
mostrando diferentes níveis do mar
e ilustrando as interações entre o oceano
e a atmosfera que afetam o clima.
© N
asa