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Organização das Nações Unidas para a Educação a Ciência e a Cultura , Correio O DA UNESCO Setembro 2010 ISSN 1993-8616 Haiti: a retomada Somos todos haitianos por Wole Soyinka Renascimento haitiano por Marie-Laurence Jocelyn-Lassègue O ressurgimento do Haiti não deverá começar da estaca zero por Michèle Oriol Imprensa no Haiti: a grande virada por Roberson Alphonse Os quatro pilares da reconstrução do Haiti por Alex Dupuy A universidade na rua por Jacky Lumarque A UNESCO em ação por Mehdi Benchelah  Arquivos: René Depestre                       por Jasmina Šopova

Educação para todos: não estamos cumprindo nossas promessas

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Page 1: Educação para todos: não estamos cumprindo nossas promessas

Organização das Nações Unidas

para a Educação a Ciência e a Cultura

,

Correio O

DA UNESCO

Setembro 2010

ISSN 1993-8616

Haiti: a retomada

Somos todos haitianos

por Wole Soyinka

Renascimento haitiano

por Marie-Laurence Jocelyn-Lassègue

O ressurgimento do Haiti não

deverá começar da estaca zero

por Michèle Oriol

Imprensa no Haiti: a grande virada

por Roberson Alphonse

Os quatro pilares da

reconstrução do Haiti

por Alex Dupuy

A universidade na rua

por Jacky Lumarque

A UNESCO em ação

por Mehdi Benchelah  

Arquivos: René Depestre

                        por Jasmina Šopova

Page 2: Educação para todos: não estamos cumprindo nossas promessas

Diversidade

Muitos dos sítios sagrados ao redor do mundo

constituem locais de ligação entre a diversidade

biológica e a diversidade cultural. A UNESCO se

empenha em tornar reconhecido seu papel na

preservação do meio ambiente e das culturas.

A Organização é um dos principais atores da

implementação de dois anos internacionais

celebrados em 2010:

O Ano Internacional da Biodiversidade, cujo

objetivo principal é estimular a refl exão e a ação

em prol da proteção das riquezas animais e

vegetais, assim como seus ambientes.

www.cbd.int/2010/welcome

e

o Ano Internacional de Aproximação das

Culturas, cujo objetivo principal é favorecer

o respeito pela cultura do outro e demolir as

barreiras entre as diferentes culturas.

www.unesco.org/fr/rapprochement-of-cultures

Uma conferência internacional sobre o tema

Diversidade Cultural e Biológica foi realizado em

Montreal (Canadá) de 8 a 10 de junho de 2010.

Para mais informações:

www.cbd.int/meetings/icbcd

Ler :

Caldecott, Julian; Miles, Atlas mondial des grands

singes et de leur conservation, UNESCO, 2010

Para comprar: http://publishing.unesco.org/

details.aspx?Code_Livre=4726

Investir dans la diversité culturelle et le

dialogue interculturel

Rapport mondial de l’UNESCO, 2009

Para comprar: http://publishing.unesco.org/details.

aspx?Code_Livre=4740

Disponível online: http://unesdoc.unesco.org/

images/0018/001878/187827f.pdf

Convention sur la protection et la promotion de

la diversité des expressions culturelles

Kit d’information

http://unesdoc.unesco.org/

images/0014/001495/149502F.pdf

Qu’est-ce que le patrimoine culturel immatériel?

www.unesco.org/culture/ich/doc/src/01851-FR.pdf

Outras publicações da UNESCO :

http://publishing.unesco.org/results.

aspx?&theme=3&change=F

Foto : Pinturas rupestres da galerie Anbangbang,

dentro do Parque Nacional de Kakadu (Austrália), sítio

do Patrimônio Mundial desde 1981. A arte rupestre de

Kakadu conta 40 mil anos de história. © Our Place the World Heritage Collection

Page 3: Educação para todos: não estamos cumprindo nossas promessas

Editorial por Irina Bokova, Diretora-geral da UNESCO 5

DOSSIÊSomos todos haitianos por Wole Soyinka 8

Responsabilidade, relação entre liberdade e solidariedade por Bernard Hadjadj 11

Cultura, berço do renascimento haitiano por Marie-Laurence Jocelyn-Lassègue 13

O ressurgimento do Haiti não deverá começar da estaca zero por Michèle Oriol 15

Construir um Haiti totalmente novo por Nancy Roc 19

Imprensa no Haiti: a grande virada por Roberson Alphonse 23

Em busca de uma humanidade mais solidária por Raoul Peck 25

O círculo vicioso da economia haitiana por Gérald Chéry 27

Cultura e Desenvolvimento: os dois lados da moeda por Antonio Vigilante 29

Os quatro pilares da reconstrução haitiana por Alex Dupuy 31

A universidade na rua entrevista com Jacky Lumarque por Jean O’Sullivan 34

Evitar que as mesmas causas venham a produzir os mesmos efeitos por Jean Coulange 36

UNESCO em Ação par Mehdi BenchelahCapacitação traz sua contribuição para a reconstrução 38Programa escolar de emergência 39

Arquivos

Kêbé l’Inesko Fò 41

Entre utopia e realidade, entrevista com René Depestre por Jasmina Šopova 44

Tópicos

FocoA educação sob ameaça da crise fi nanceira por Samer Al-Samarrai 47

Foco Educação para todos: não estamos cumprindo nossas promessas por Kevin Watkins 49

Perfi lGhani Alani: a caligrafi a é o vínculo entre o ser e a letra par Bassam Mansour 51

PerspectivasIgualdade de gênero entrevista com Sam Nujoma por Hans d’Orville e Clare Stark 53

O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0 . 3

Correio O

DA UNESCO

Setembro 2010

Organizacão das Nacões Unidas

para a Educaçãoa Ciência e a Cultura

,

O Correio da UNESCO é publicado pela Organização das

Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura.

7, place de Fontenoy

75352 Paris 07 SP, França

www.unesco.org/courier

Editora-chefe : Jasmina Šopova

[email protected]

Editores:

Inglês : Cathy Nolan

Árabe: Bassam Mansour assisté par Zaina Dufour

Chinês: Weiny Cauhape

Espanhol: Luisa Futoransky e Francisco Vicente-Sandoval

Português: Ana Lúcia Guimarães

Russo: Katerina Markelova

Estagiária: Noémie Antony

Fotos : Danica Bijeljac e Fiona Ryan

Projeto gráfi co: Baseline Arts Ltd, Oxford

Impressão: UNESCO – CLD

Informações e direitos de reprodução: Fiona Ryan

[email protected]

+ 33 (0)1 45 68 15 88

Os artigos podem ser reproduzidos sob a condição de

estarem acompanhados do nome do autor e da menção

“Reproduzido do Correio da UNESCO”, precisando a data

da edição.

Os artigos exprimem a opinião de seus autores e não

necessariamente a da UNESCO.

As fotos que pertencem à UNESCO podem ser

reproduzidas com a menção ©UNESCO seguida do nome

do fotógrafo. Para obter fotos em alta resolução, favor

dirigir-se ao Banco de Fotos: [email protected].

As fronteiras retratadas nos mapas não implicam em

reconhecimento ofi cial pela UNESCO ou pelas Nações

Unidas, assim como as denominações de países ou de

territórios mencionados.

Esta edição foi publicada com o apoio do Bureau de

Planejamento Estratégico da UNESCO.

Obra do Centro Nacional de Arte, Porto Príncipe, Haiti.

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Page 4: Educação para todos: não estamos cumprindo nossas promessas

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Mau tempo. Cap-Haitiano.

NESTA EDIÇÃO

Para além dos escombros, o Haiti encara o seu

futuro com um olhar lúcido. Após a catástrofe de

12 de janeiro de 2010, os haitianos que se expressam

nesta edição do Correio da UNESCO não se

satisfazem com suas lamentações. Se eles se voltam

ao passado é para analisar melhor a situação atual

de seu país e refl etir sobre seu futuro. Se eles se

criticam por falta de visão, por serem presas de

superstições ou pegos pela vitimização é para

melhor desembaraçar o terreno sobre o qual

ele deve ser reconstruído. Junto com outros

especialistas internacionais, que participaram

do Fórum Reconstituir o Tecido Social, Cultural e

Intelectual do Haiti, organizado pela UNESCO em

24 de março de 2010, eles esperam que a

comunidade internacional os ajudem hoje de

maneira mais responsável do que ontem. Porém, os

haitianos contam antes de tudo com eles mesmos

País onde os grãos da tirania foram semeados

junto com os da primeira Revolução Negra, para

usar uma expressão do nigeriano Wole Soyinka,

prêmio Nobel de Literatura de 1986, o Haiti prepara

a sua refundação. Trata-se de se reconstruir não

somente nos planos político, econômico e social,

mas também nos planos intelectual, afetivo e

moral. Para isso, o Haiti sente a necessidade de se

apoiar especialmente na educação, que precisa

reinventar, e a cultura, sua força vital essencial. No

âmbito internacional, essas duas áreas ressaltam

as competências da UNESCO, que se engajou logo

após a catástrofe em ajudar o país a se recuperar.

Jasmina Šopova

Page 5: Educação para todos: não estamos cumprindo nossas promessas

O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0 . 5

Um país inteiro procura sarar seus ferimentos.

O país ainda estava em fase de recuperação

devido ao choque dos ciclones, quando acabou

sendo devastado por um terrível terremoto.

No dia 12 de janeiro de 2010, o Haiti viveu

uma profunda afl ição: grande número de vidas

soterradas sob os escombros, inúmeras casas

destruídas, bibliotecas e museus danifi cados,

escolas derrubadas, o edifício recém-inaugurado

da Universidade Quisqueya desmoronado, a

Catedral de Porto Príncipe reduzida a pó... essas

imagens permanecerão gravadas para sempre

em nossas memórias.

Desde o início do ano, o Haiti está de luto.

Mas, à semelhança desses “pássaros inocentes”

que “estão aprendendo, de novo, a cantar no

silêncio das pessoas”, quando “a cicatriz realiza

sua obra de ternura”1, a esperança já renascia

das próprias cinzas no momento em que visitei

o país, apenas dois meses após a catástrofe. Eu

desejava exprimir a solidariedade da UNESCO

com o povo haitiano e, ao mesmo tempo,

decidir com as autoridades governamentais a

melhor maneira de conceber a assistência a ser

garantida pela nossa Organização. Há momentos

em que é impossível encontrar toda a energia da

esperança, se falta a soli-dariedade. E a verdade

é que todos nós estamos dispostos a ajudar

esta ilha devastada: durante a Conferência

Internacional de Doadores em favor do Haiti,

realizada em Nova Yorque, em 31 de março

passado, foi anunciada a contribuição de cerca

de US$ 10 bilhões, a médio prazo, para permitir a

recuperação do país.

Em resposta à contribuição feita na Conferência,

o presidente haitiano, René Préval, lançou

o apelo em favor da educação e a UNESCO

respondeu presente: ateliês de formação

destinados às construções parassísmicas,

programa escolar de emergência e apoio

psicossocial à escola (ver páginas 38-40

CONFERIR) são alguns dos primeiros projetos

que têm recebido a ajuda da Organização, graças

à campanha de arrecadação de fundos, lançada

em 14 de janeiro.

A moldura cultural

Praticamente ao mesmo tempo em que

acontecia a Conferência de Nova Yorque,

a UNESCO lançou, em colaboração com o

Ministério da Cultura e da Comunicação do

Haiti, os alicerces do Comitê Internacional

de Coordenação em favor da Cultura (CIC). A

ideia surgiu na sede da Organização, em 16 de

fevereiro passado, por ocasião de um encontro

internacional destinado a fazer o balanço em

relação ao estado dos sítios do patrimônio e da

vida cultural no Haiti, após o terremoto.

Presidida pela ministra haitiana da Cultura

e da Comunicação, Marie-Laurence Jocelyn

Lassègue, o CIC tem a missão de coordenar

todas as intervenções no campo da cultura,

no Haiti, além de mobilizar recursos para essa

fi nalidade. Em julho passado, o Comitê se reuniu

1. Intempéries 99, poema de

René Depestre, renomado

escritor haitiano, nascido em

Jacmel, em 29 de agosto de

1926, e ex-funcionário da

UNESCO.

EditorialPor Irina Bokova

Irina Bokova, Diretora-

geral da UNESCO, e

Marie-Laurence Jocelyn-

Lassègue, ministra

haitiana da Cultura

e da Comunicação.

Porto Príncipe,

março de 2010.

Há momentos

em que não

se consegue

ter a força da

esperança

sem a ajuda

solidária. E a

verdade é que

nós estendemos

a mão para esta

ilha devastada.

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È D I T O R I A L

Fermento de uma nova era

Um país privado de poetas, contadores de histórias, músicos, pintores, cantores e artistas estaria condenado a

morrer de resfriamento, em conformidade com a afi rmação de Amadou Hampâté Bâ, grande escritor e

etnólogo malinês?

O Haiti, certamente, não irá desaparecer porque todo o mundo está retomando sua atividade:

os pintores pintam, os poetas criam poemas, os cantores compõem canções e os escritores

elaboram textos; além disso, as narrativas voltam a circular, bem rapidamente, após o desastre

de 12 de janeiro de 2010.

Fomos tentados a nos evadir, a nos refugiar no imaginário e a criar mundos maravilhosos

com a perfeição de que somos capazes. Mas, após o terremoto, houve uma mudança em

nossa postura. O recomeço de tudo é, daqui em diante, o fermento de uma nova era. Ela

induz a renovação das mentalidades projetadas para a construção de um futuro concreto

com a ajuda, evidentemente, de nossa criatividade e de nossa imaginação, exacerbadas

pela relação permanente com o sofrimento.

Mimi Barthélémy,

contadora de histórias

e escritora haitiana

UNESCO, 24 de

março de 2010

para estabelecer o “roteiro de operações”, que

incluíam recomendações como realizar um

inventário de Porto Príncipe, a capital, e de

Jacmel, cidade nomeada a fi gurar na Lista do

Patrimônio Mundial; identifi car as expressões

culturais de natureza imaterial mais ameaçadas

de desaparecimento; organizar a proteção de

arquivos, livros e outros bens móveis culturais;

além de proceder à coleta de dados e à

elaboração de ferramentas metodológicas no

setor das indústrias culturais.

Para garantir a realização das recomendações

do CIC, decidi criar um Comitê Internacional de

Doadores que irá reunir-se, no início de 2011, para

analisar as primeiras proposições de projetos.

Até agora, a UNESCO já investiu cerca de US$

450 mil de seu orçamento regular em ações no

domínio da cultura, no Haiti, incluindo o projeto

de salvaguarda do Parque Nacional Histórico, no

norte da ilha, que tem uma importância realmente

simbólica para o país; este sítio do Patrimônio

Mundial inclui, de fato, a Cidadela, o Palácio de

Sans Souci e os prédios des Ramiers, que datam

do início do século XIX, época em que a primeira

República Negra proclamou sua independência.

As ajudas já estão sendo postas em prática:

por exemplo, a de uma instituição budista da

República da Coreia que visa apoiar “peças de

teatro nos campos de desabrigados em Porto

Príncipe.” Tenho grande apreço por esse projeto

por acreditar que o uso do efeito de catarse do

teatro faz brotar as sementes da esperança, até

mesmo em situações mais afl itivas (ver destaque).

E, por acreditar que a cultura também

tem um papel de catalisador e de motor

de crescimento da sociedade, julgo que o

desenvolvimento não pode ser concebido

sem sua colaboração. É uma realidade que

está começando a ser aceita: a cultura está,

fi nalmente, penetrando “no mundo” da

economia e das fi nanças. Eis a prova: ganhou seu

lugar no Programa de Avaliação Conjunta das

Necessidades ocasionadas pelo Terremoto, que

foi lançado em 18 fevereiro, em Porto Príncipe.

Os pivôs essenciais do futuro

Imediatamente após o sismo, a UNESCO

obteve imagens de satélite para elaborar um

mapeamento detalhado da avaliação de riscos

para o patrimônio cultural, no Haiti. Este projeto

“A cultura é

o recurso que

a sociedade

precisa para

sua passagem

de hoje para

amanhã.”

Arjun Appadurai,

sociólogo indiano

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Page 7: Educação para todos: não estamos cumprindo nossas promessas

O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0 . 7

È D I T O R I A L

a ser realizado em colaboração com a Agência

Espacial Europeia faz parte de uma série de

iniciativas científi cas. Obviamente, a primeira

e mais urgente, diz respeito à água. Desde

janeiro, o Programa Hidrológico Internacional

da UNESCO (PHI) começou a elaborar um plano

de ação para a gestão dos recursos hídricos no

país. No longo prazo, preparamos uma proposta

que visa a criação de um Instituto Haitiano

de Ciência e Tecnologia para prevenção de

desastres naturais, destinado a avaliar os riscos

de acontecer novos desastres, além de traçar

e implementar planos de ação para atenuar

seus efeitos, fornecer educação e formação em

matéria de prevenção de tais catástrofes, e ao

mesmo tempo promover a conscientização do

público em geral.

Com certeza, a conscientização da população

e seu acesso à informação são preocupações

primordiais da UNESCO, que já forneceu uma

ajuda inicial de emergência para salvaguardar o

patrimônio documental em perigo. A Organização

também está implementando um projeto de

unidade multimídia móvel para permitir que

as vítimas de desastres – especialmente, os

jovens – aprendam a usar novas ferramentas

de comunicação. Sinto que tal iniciativa terá

efeitos benéfi cos não apenas para o acesso à

informação, mas também para a coesão social

no interior dos campos destinados às pessoas

desabrigadas.

Uma tarefa gigantesca nos espera também

para atuar na área das ciências sociais que,

junto com a área da educação, da cultura, das

ciências naturais e da comunicação – são pilares

essenciais (um “Poto mitan”, como se diz na

bela língua crioula) para a restauração e para

a reconstrução do Haiti. Todo o tecido social

haitiano terá de ser reconstituído para que a Ilha

renasça. E a história de um país não se escreve

em improváveis “tábulas rasas” do passado,

mas na continuidade de seus confl itos e de seus

combates, assim como de suas realizações e de

seus ensinamentos.

Eis o motivo que me levou a organizar, em

24 de março, um Fórum sobre o Haiti que reuniu

escritores, jornalistas, políticos e especialistas

internacionais. Sob a égide da UNESCO, eles

debateram as vias a serem empreendidas pelo

Haiti rumo ao desenvolvimento sustentável.

Esta edição especial do Correio da UNESCO é

uma refl exão desses debates que revelam o

papel central atribuído à cultura e à educação na

reconstrução do país. ■

Um momento de humor pode nutrir uma pessoa por vários meses

Fornecer um momento de alegria e de aconchego às pessoas

desalojadas de Porto Príncipe, além de ajudá-las a libertar-se de suas

ansiedades, posto que a maior parte delas perdeu tudo no terremoto de

12 de janeiro de 2010, é o objetivo de um projeto teatral apoiado pela

UNESCO em parceria com a companhia haitiana Zhovie. Sua primeira

apresentação aconteceu no domingo, dia 11 de abril de 2010, com

a peça “Zombi Lage”, diante de vários milhares de espectadores no

acampamento de Acra, que abriga cerca de 20.000 pessoas em tendas e

barracas improvisadas na Avenue Delmas, a principal via da capital Porto

Príncipe.

“Essa peça tem o objetivo de oferecer às vítimas do terremoto e, em

especial, aos jovens, um momento terapêutico”, explica Jean Joseph,

comediante do grupo que é professor de fi losofi a em uma escola de

ensino médio da capital. “Se queremos ajudar as pessoas, não basta

oferecer comida. Da mesma forma, não existe apenas a saúde física, mas

também a saúde mental. Como comediantes, devemos ajudar todas

essas pessoas deprimidas e desesperadas, bem como tentar despertar

de novo sua esperança. Uma recordação positiva, um momento de

humor, pode nutrir uma pessoa durante vários meses”, considera o

professor e comediante amador.

Fundada em 2004, a Zhovie é um grupo de teatro de rua composta

por 14 atores e três percussionistas. Seu espetáculo “Zombi Lage”

evoca o terremoto por meio de trechos do texto do escritor haitiano

Frankétienne, nomeado Artista UNESCO para a Paz em março de 2010.

A peça mostra as divindades do culto vodu, tais como o Barão Samedi,

o senhor dos mortos, ou personagens como o zumbi, morto-vivo

atormentado.

O grupo tem sido muito solicitado e a UNESCO pretende patrocinar

uma série de representações em outros campos de pessoas deslocadas.

M. B.

Cena do espetáculo “Zombi Lage”. Camp d’Acra, 11 de abril de 2010.

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Page 8: Educação para todos: não estamos cumprindo nossas promessas

8 . O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0

« Quando desaparece uma casa, extingue-se,

ao mesmo tempo, um sótão comlembranças»,

declara o prêmio Nobel de Literatura em 1986,

Wole Soyinka, que lança um apelo no sentido

de «restaurar o espírito» do Haiti, um país às

voltas com contradições políticas e vítima das

forças incontroláveis da Natureza.

Somos todos

haitianosPor Wole Soyinka

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Page 9: Educação para todos: não estamos cumprindo nossas promessas

Se, algum dia, uma ilha nasceu sob uma

estrela desafortunada, só poderia ter sido

aquela que, outrora, foi batizada com o nome

de «Hispaniola», e cuja metade ocidental é

denominada Haiti; esta terra é impregnada

de profundas contradições que simbolizam,

simultaneamente, a mais nobre aspiração do

espírito humano, a liberdade, e seu eterno

inimigo, a tirania. Nem sequer a espiritualidade

do continente africano – que, durante inúmeras

gerações, havia protegido seus povos contra

a decadência humana – conseguiu escapar

à conversão tirânica. O vodu tornou-se um

elemento da face obscura do folclore, aliança de

terror supersticioso com a política que confi na a

nação sob sua mortalha opaca e diabólica; aliás,

as artes cinematográfi cas tiram o maior proveito

dessa situação. Atualmente, parece que as forças

místicas da Natureza – durante tanto tempo,

violentadas – têm sido afetadas subitamente por

uma brutalidade palpável que se acrescenta à

espiral das represálias para aparvalhar os povos

e submergi-los em um estado que é a própria

imagem do pavor: a do zumbi ou do morto

vivo. O processo de ressurreição arrasta-se,

languidamente, imerso em uma dor insuportável.

«Quando se perde um livro», diz um

provérbio africano sobejamente conhecido, «é

possível substituí-lo; mas, quando morre um

ancião, é uma biblioteca que desaparece». Com

certeza, será perdoada esta ênfase atribuída a

nossas sociedades banhadas na tradição do griô

[de guiriot ‘músico ambulante da África Negra’] e

de outros guardiões orais da memória dos povos

porque ela contém uma parte de verdade. No

Haiti, anciãos pereceram, assim como jovens.

Além do desmoronamento de casas. A amplitude

dessas destruições evoca outra variante do

provérbio africano: ao desaparecer uma casa,

extingue-se, ao mesmo tempo, um sótão com

lembranças. Trata-se de uma perda para o

mundo inteiro, e não apenas para a localidade

diretamente atingida.

No Haiti, nossas perdas estão para além das

bibliotecas! Efetivamente, elas foram perdidas

e, ao mesmp tempo, os registros, as estruturas

físicas, os arquivos inestimáveis que conservam

a história de um povo: tudo virou entulho, lixo

e cinzas. Mas, ainda assim, subsistem lugares e

pedras veneráveis, a pátina ancestral das paredes

familiares, os espaços comuns: por exemplo,

mercados, caramanchões, árvores centenárias à

sombra das quais uma comunidade renova-se,

enquanto as narrativas do passado de um povo e

de uma sociedade em devir escapam-se da boca

do griô, e o saber identitário passa do corpo

dos idosos para o corpo dos jovens. Trata-se

de fi os tangíveis do tecido da continuidade

de nossa espécie, aqueles que estabelecem o

vínculo entre uma e outra geração; no Haiti,

eles foram quase todos tragados pela goela

insaciável da Natureza. Nem mesmo as estradas

pavimentadas, evocadoras do tempo passado,

as relíquias e os monumentos – testemunhas

da face não só triunfante, mas também hostil

– da história, foram poupados. Mas, a memória

transcende os monumentos. O próprio solo

em que foram semeadas as sementes tanto da

tirania, quanto da rebelião, a terra encharcada

pelo sangue tanto dos déspotas, quanto dos

mártires, fazem parte da narrativa de um povo

– capítulos, anotações e marcadores eloquentes

balizam sua marcha cotidiana, inclusive, nas

atividades mais correntes. Tudo isso encontra-se,

agora, em migalhas, pulverizado em um magma

indecifrável, despojado de sua signifi cação

comunitária. A última palavra coube ao buldôzer.

Os espaços santifi cados da Lenda acabam por se

identifi car com os desentulhos, legado garantido

de uma catástrofe que atingiu todo o mundo.

Quantas vezes o mundo letrado, sem

distinção de raças, manifestou seu regozijo

ao celebrar a vitória da resistência haitiana –

conduzida pelo governador, general Dessalines1

A memória

transcende os

monumentos.

O próprio solo

em que foram

semeadas as

sementes tanto

da tirania

quanto da

rebelião,

a terra

encharcada

pelo sangue

tanto dos

déspotas

quanto dos

mártires,

fazem parte

da narrativa

de um povo.

Toussaint Louverture

(1743-1803), fi gura

emblemática da

Revolução Haitiana

e governador de

Santo-Domingo

(nome antigo do Haiti).

O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0 . 9

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1 0 . O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0

– sobre as forças armadas que Napoleão

Bonaparte, movido por sua obsessão imperial,

enviou para a Ilha a fi m de restabelecer a

escravidão? O Haiti enfrentou e desmantelou as

pretensões da Europa no sentido de ser o viveiro

da fi losofi a das Luzes. Para além do choque das

armas, entretanto, o Haiti encarnou a vontade

suprema de um povo que culminou na criação

da primeira República Negra independente do

Planeta; a memória dos herois – por exemplo,

Toussaint Louverture2 – desse acontecimento

tem sido celebrada por poetas e dramaturgos,

além de ter sido imortalizada no mármore e nas

tapeçarias, na tela e em murais, por pintores,

tecelões e escultores animados por ardorosa

paixão, sejam eles artistas reconhecidos pelas

galerias ofi ciais ou pintores «naïfs» que expõem

nas calçadas, desde Harlem até a África do Sul!

Essas personalidades têm sobrevivido ao longo

dos séculos; atualmente, estamos enfrentando

as necessidades dos sobreviventes do tempo

presente, herdeiros diretos dessa gloriosa

história, seres vivos depositários de suas proezas,

além de inspiração para nossa criatividade.

O fardo desses antepassados é, atualmente,

o nosso, seu martírio é o nosso, sua esperança

de sobrevida é, também, a nossa. Atraiçoá-los ou

negá-los seria uma forma de aceitar a vitória da

energia cega da Natureza sobre a resiliência e a

criatividade humanas, além de nos atraiçoarmos

a nós mesmos. Nosso controle do Destino só é

possível quando dissipamos o fedor da morte

e da angústia com o golpe da varinha mágica

animada pela fé no futuro, ao darmos um

beijo de vida no rosto dos órfãos, das pessoas

machucadas e das famílias enlutadas.

O Haiti exibe uma rede de evocações

históricas totalmente desproporcionada em

relação ao seu tamanho, simultaneamente,

aspiração e advertência. O Haiti encarna a

glória e a tragédia da raça negra; no entanto,

esse povo nunca teve de enfrentar um desafi o

de tal amplitude, nem em circunstâncias

parecidas. O Haiti existe para além do símbolo,

tornando-se, para seu tempo, um formidável

terreno de experiências, relativamente

ao destino humano, no eterno combate

entre dominação e independência, poder e

liberdade. O Haiti constitui uma lição, não só

para o mundo africano, mas também para a

Humanidade. Portanto, a Natureza desferiu,

neste caso concreto, um golpe cruel, quase

irreparável: em primeiro lugar, para os povos

africanos, independentemente do lugar em que

se encontrem seus cidadãos; mas também, de

forma mais ampla, para a comunidade mundial

por toda parte em que a liberdade é objeto

de verdadeiro apreço, e em que a história, o

patrimônio e a memória são percebidos como o

liame da existência comum.

Portanto, não se deve permitir que o Haiti

venha a desaparecer, estagnar ou degenerar.

1. Jean-Jacques Dessalines

(1758-1806), líder da

Revolução Haitiana e o

primeiro Imperador do Haiti

(1804-1806) sob o nome de

Jacques I.

2. Toussaint Louverture

(1743-1803), fi gura

emblemática da Revolução

Haitiana e governador

de Santo-Domingo

(nome antigo do Haiti).

Enquanto os

médicos do

mundo inteiro

precipitam-se

para socorrer

feridos e

traumatizados,

reconstituindo

hospitais

e clínicas,

expedindo

remédios e

alimentos, os

escritores, os

artistas e os

intelectuais

devem juntar

seus recursos

para restaurar a

vida do espírito.

As oportunidades exigem, às vezes, um

preço elevado demais; ora, o Haiti já pagou

acima de sua quota e de uma só vez! Chegou

a hora de aproveitar, por nossa parte, esta

oportunidade e ajudar seus visionários a

recriar a sociedade haitiana nos planos moral,

social e intelectual. Grandes esforços têm sido

despendidos e, inclusive, parabenizamos a

reação das populações do resto do mundo

em favor do povo haitiano. Mas, não podemos

contentar-nos com o que já foi realizado. Com

efeito, ignoramos a parcela da humanidade do

Hati – nossa humanidade – que, neste exato

momento, ainda está perdida pelas ruas sem

destino, vasculhando as lixeiras ao lado de cães

e ratos à busca de alimentos, acocorada sob

abrigos improvisados, as mães embalando o

futuro em seus braços, esfomeadas, apáticas,

com seus grandes olhos esbugalhados dirigindo

um apelo silencioso para benfeitores invisíveis

e hipotéticos. Enquanto os médicos do mundo

inteiro precipitam-se para socorrer feridos

e traumatizados, reconstituindo hospitais e

clínicas, expedindo remédios e alimentos, os

escritores, os artistas e os intelectuais devem

juntar seus recursos para restaurar a vida do

espírito. É necessário encher as bibliotecas,

reconstituir os museus e fazer ressurgir as

escolas. Os escritores podem concretizar

sua ajuda pela doação de livros, os seus e

os dos outros; os pintores, seus quadros; os

arquitetos, suas competências profi ssionais;

e os professores, todas as formas de apoio

pedagógico. De uma forma mais franca, o Haiti

nunca voltará a ser a Ilha que conhecíamos;

Porto Príncipe já não exalará seu perfume

ligeiramente decadente de passado tumultuado.

Mas, a partir de seus escombros, podemos

reanimar uma entidade social

completamente nova e vibrante que

se torne um grito de solidariedade

universal, uma afi rmação do espírito

humano, sólido posto avançado

de um continente-mãe cujos fi lhos

defraudados tenham conseguido

lavar a ignomínia da escravidão, além

de terem transformado um simples

parque de mão-de-obra em uma

citadela pronta a enfrentar o desafi o

do futuro, digamos também, em certa

ideia da liberdade. ■

Wole Soyinka (Nigeria), prêmio Nobel de Literatura em 1986, é

membro do Panel de Alto Nível sobre a Paz e o Diálogo entre as Culturas,

instalado em 2010, pela Diretora Geral da UNESCO, Irina Bokova.

Romancista e autor dramático, ele é o fundador de duas companhias

teatrais: The 1960 Masks e Orisun Theatre.

Atualmente, é professor emérito de literatura comparada na Universidade

Obafemi Awolowo (Nigéria), membro emérito do Black Mountain Institute

da Universidade de Nevada, além de Professor residente na Universidade

Loyola Marymount, em Los Angeles (Estados Unidos).

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Page 11: Educação para todos: não estamos cumprindo nossas promessas

“Agredida, ostracizada, objeto de cobiça,

submetida à pressão dos canhões,

dividida, militarizada, ensanguentada”.

Eis a imagem que o historiador e

diplomata haitiano, Deve Bellegarde,

apresenta de seu país, antes de

acrescentar: “A independência do Haiti,

ameaçada incessantemente por sua

história tumultuada e caótica, conti-nua

sendo algo da natureza do milagre”.

Com efeito, a primeira República Negra

sofreu fortes pressões, externas e

internas, que tornaram sua evolução

bastante difícil: ao ostracismo das gran-

des potências que não perdoavam a

emancipação do “Pequeno polegar”

negro, acrescenta-se o advento de

regimes tirânicos baseados na exclu-são

do povo, mantido em um estado de

profunda miséria e desespero.

Por um lado, a atitude das grandes

potências foi atroz, tratando-se seja

da extorsão pela França de recursos

fi nanceiros, preciosos para um Estado

nascente, seja dos 19 anos de ocupação

norte-americana, no início do século

XX. Por outro, o longo período de

escravidão que, de maneira profunda

e indelével, marcou as relações

sociais e econômicas da sociedade

haitiana. A relação senhor-escravo

ou a separação entre as pessoas do

bô lan mè (beira-mar) e os gwo soulyé

(camponeses) – ou seja, outras tantas fra-

turas que subsistiram após a abolição da

escravatura – continuam minando, mais

de dois séculos após a independência, a

formação social haitiana.

Mas, como será possível sair real-mente

da escravidão? Uma vez passada a

exaltação da libertação, como se

constrói a liberdade? Com efeito, a esta

última, deve-se conferir um conteúdo

para que “a prova da liberdade não se

torne insustentável”, de acordo com a

afi rmação do fi lósofo francês de origem

grega, Cornélius Castoriadis, antes de

explicar: “Tal situação só ocorre na

medida em que nada se consegue fazer

com essa liberdade”.

Se o grande Toussaint Louverture e,

em sua esteira, os pais fundadores da

República do Haiti ganharam a batalha

fundamental do humanismo, convém

reconhecer que eles fracassaram na

implementação de um novo pacto social.

Liberdade

De fato, logo após a independência,

foram reproduzidas as relações de servi-

dão. Os arrendatários tomaram o lugar

dos colonos, enquanto os ex-escravos

eram submetidos ao trabalho forçado,

atrelados às plantações, permanecendo

aneu logou, ou seja, impedidos de se

exprimirem livremente, privados do

direito de deliberar e criar. A fuga,

elogiada no passado como um ato de

resistência à opressão escravagista, foi

considerada como vagabundagem e

passível de severas sanções a partir da

primeira Constituição de 1801. Esse auto-

ritarismo agrário permaneceu em vigor

vigor até 1904, ou seja, um século após

a independência do Haiti! A população

rural, segmento identifi cado como ator

da libertação, foi afastada do diálogo

indispensável à ruptura com o passado

colonial.

Pode-se facilmente compreender que

a predominância da relação senhor-

escravo difi culta a construção da liber-

dade pela lei, na medida em que solapa

em elevado grau a psicologia antilhana,

além de desarticular as estruturas

familiares. Com efeito, a fi gura do pai é

desvalorizada a partir do momento em

que seu lugar é usurpado pela posição

do patrão, o que desestabiliza a força

da lei: a fi gura ameaçadora do patrão,

“acima da lei”, símbolo de violência e

Desde sua independência

em 1804, uma sucessão

de tragédias tem marcado

a história do Haiti, de tal

modo que a construção

de sua liberdade se

tornou difícil. A atitude

irresponsável das grandes

potências e dos dirigentes

políticos deixou o país em

um impasse. Única saída:

uma ação responsável

e solidária em escala

mundial.

Personagem do Carnaval de Jacmel

simbolizando o fi m da escravidão.

Responsabilidade,

relação entre liberdade

e solidariedade

Por Bernard Hadjadj

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de confusão, opõe-se à do pai, fi ador

da ordem. “A fala do pai é uma fala que

se conforma com a lei […] enquanto a

fala do patrão limita-se a ser seu próprio

eco”, escreve o psicanalista francês,

Jacques André, em L’Inceste focal dans la

famille noire antillaise (O incesto focal na

família negra antilhana, 1987).

Nestas condições de violência política

e psicológica é que, no Haiti, se fez a

aprendizagem da liberdade. Ora, sair da

escravidão é superar a imagem negativa

que alguém tem de si mesmo, é encontrar

as luzes do saber de uma libertação

autêntica ao extrair de si – e não ao

reproduzir – as relações de dominação

vigentes nas plantações. É reencontrar a

autoestima.

Há relativamente pouco tempo, em 2004

– em uma carta enviada a seu compatriota

Carl Fombrun – o escritor haitiano, René

Depestre, falava dessa outra escravidão

que continua subjugando seu povo:

“Vamos abolir a escravidão interna que

determinadas teologias de barbárie

impõem à consciência desafortunada do

Haiti”, escreve ele. “Vamos assumir, com

uma força de ânimo sem precedentes,

o senso da responsabilidade diante do

pântano de zeros acumulados, durante

dois séculos de imperícia, à esquerda de

nosso imobilismo de zumbis!”

Responsabilidade

De acordo com suas modalidades de

organização política e de suas crenças,

uma sociedade pode facilitar ou

difi cultar o senso de responsabilidade

de seus membros. No plano político,

alguns déspotas militares e dirigentes

totalitários populistas apresentaram-se

frequentemente como salvadores

supremos, no Haiti, convencidos de terem

sido investidos de uma missão divina;

e quando o líder é considerado como

um Deus na Terra, o povo nada tem a

reivindicar.

No plano das crenças, as igrejas

protestantes incentivaram – de acordo

com a constatação do etnólogo hai-

tiano, Charles-Poisset Romain– as

explicações sobrenaturais do fenômeno

do subdesenvolvimento. “Não con-

viria criticar a Igreja por pregar e

incentivar o fatalismo, além de levar

as pessoas a renunciar a assumir suas

responsabilidades?”, escreve ele em Le

Protestantisme dans la société haïtienne

[O protestantismo na sociedade haitiana]

(1986). Ora, o fatalismo conduz à inação e

a uma atitude marcada pela passividade

e não pelo espírito crítico perante o

presente.

Acrescente-se o vodu, cujo ritual iniciático

lavé tèt é emblemático, con-sistindo em

introduzir na cabeça de um iniciantes

um Loa, ou seja, uma espécie de anjo da

guarda, um espírito protetor. De acordo

com o antropólogo francês, Roger

Bastide, “em vez da cabeça corporal

do indivíduo, ele é sua inteligência, sua

sensibilidade e sua vida psicofísica; em

poucas palavras, é o espírito em relação

à alma”. Se nos deparamos efetivamente

com o fenônemo do desdobramento

da personalidade, então, formula-se a

questão de saber quem dirige os atos

da pessoa. Em caso de delito, quem é o

culpado?

Frequentemente, ouvem-se estas frases

na boca dos haitianos: sé pa fôt mwin (a

culpa não é minha), sé pa mwin mêm (não

sou eu mesmo quem fez isso), sé de m’yé

(sou um ser duplo)… A responsabilidade,

condição indispensável para qualquer

manifestação de liberdade, torna-se assim

uma categoria totalmente relativa. O

princípio de reparação associado à justiça

é ridicularizado. É uma porta aberta à

impunidade; ora, é forçoso constatar que o

binômio violência-impunidade impregna,

até o grau de saturação, a psicologia das

massas haitianas.

“A reforma das mentalidades deve passar

pelo reconhecimento de nosso fracasso

coletivo”, escreve o educador haitiano,

Roger Péreira, em seu artigo Haiti ou a

prova da liberdade (2001). “Somos todos

parte do problema; a partir unicamente

desta condição, é que nos tornaremos

parte de suas soluções.”

Solidariedade

Com efeito, embora a responsabilidade

seja acima de tudo pessoal, convém

efetivamente compreender – na esteira

do fi lósofo judeu, Martin Buber – que o

ser humano só consegue defi nir-se como

um eu em contato com um tu. Cada eu

particular participa do binômio eu-tu

que serve de fundamento ao mundo da

relação: por defi nição, a relação é solidária.

Se existe uma condição prévia ao

desenvolvimento da solidariedade entre

os seres humanos, essa é efetivamente

a liberdade, entendida no sentido

arendtiano1, ou seja, confundindo-

se com a dimensão política – esse

espaço público em que se constrói a

convivência pelo diálogo. A liberdade

exerce-se unicamente em sociedade:

ela exprime a preocupação com o outro,

próximo ou distante, a preocupação

com o interesse geral.

O binômio liberdade-responsabilidade é

indissociável e só consegue desenvolver-se

plenamente por meio da solidariedade, sem

a qual fi caríamos reduzidos ao que o fi lósofo

francês, Jean-Claude Michéa, designa por

“mônades egoístas”, desprovidas de alma.

Um mundo não solidário eliminaria os seres

humanos.

Mais do que nunca, nos momentos terríveis

vivenciados pelo Haiti após o abalo sísmico

de 12 de janeiro de 2010, formula-se a

questão central da responsabilidade – a dos

haitianos e a da comunidade internacional

– assim como a da solidariedade em escala

nacional e mundial. A UNESCO, em sua

função de velar intelectualmente e de

divulgar os saberes e valores éticos, terá

um papel a exercer para acompanhar os

haitianos na introdução do princípio de

responsabilidade nos espaços de diálogo

no Haiti e, particularmente, na educação.

Trata-se de promover – simultaneamente

à reconstrução material do país – uma

reconstrução social e cidadã que esteja

apoiada na educação e na cultura

americana. ■1. Hannah Arendt (1906-1975), professora de Teoria Política, alemã

naturalizada norte-americana.

“Aos que se limitarem a considerar o reexame do passado sugerido neste

artigo como um trabalho intelectual, seria possível responder que tal iniciativa

é a condição sine qua non da abertura para o futuro. Em vez de procurar os

fantasmas de um passado que eles viessem a imaginar como ultrapassados,

trata-se – de acordo com a afi rmação do fi lósofo francês, Emmanuel Lévinas

– de “revigorar a radicalidade de uma memória que inscreve, nas vicissitudes

do tempo, uma tensão permanente e fecunda entre o passado e o futuro, assim

como entre o particular e o universal. – B.H.

Funcionário da UNESCO, Bernard

Hadjadj é doutor em Socioeconomia

dos Recursos Humanos. Após ter passado

10 anos na pesquisa em Ciências Sociais,

ele desempenhou funções no Ministério

francês da Cooperação, tendo sido

diretor de missão de cooperação e de

ação cultural, durante uma dezena de

anos, no Haiti, no Benin e em Djibuti.

Africano e haitiano de adoção, ele

comprovou tais qualifi cativos por meio de

depoimentos documentados e repletos

de experiências vividas em duas obras:

Les Parias de la mondialisation: L’Afrique en

marge (Os párias da globalização: a África

marginalizada, 1998) e L’An prochain à

Port-au-Prince : Sortir de l’esclavage (No

próximo ano em Porto Príncipe: sair da

escravidão, 2007).

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Reconstruir o Haiti por sua cultura – “Um desafi o?

Uma anomalia? Uma ameaça?” – para parafrasear

a expressão utilizada pelo historiador negro

norte-americano, Rayford Logan, a respeito do

surgimento inesperado do novo Estado-nação do

Haiti, em 1804.

Nenhuma anomalia, nem ameaça, mas

certamente um desafi o, pois após uma existência

histórica bicentenária, composta por avanços e

retrocessos provocados seja pelo exterior ou pelo

interior, trata-se, desde da catástrofe de 12 de

janeiro de 2010, nem mais nem menos, de fazer

renascer o Haiti. E, afi nal, por trás das centenas

de milhares de mortes e inúmeros prédios

desmoronados, o que subsiste que possa servir de

berço a esse renascimento? O que permanece, são

os recursos culturais do Haiti. No período mais difícil

da ocupação norte-americana do território haitiano,

e com uma veemência muito paternal mas salutar,

o doutor Jean Price Mars nos recordou, em sua

obra pioneira, Ainsi parla l’Oncle, [Assim falou o Tio],

publicada em 1928, que nosso país tem conseguido

viver e sobreviver mediante esses recursos.

Chegou o tempo de concretizar a fi nalidade

do desenvolvimento, ou seja, a felicidade

das pessoas; além disso, a cultura deverá ser

reconhecida como um elemento essencial

do desenvolvimento de nosso país. Não o

acessório ou o luxo – aliás, linguagem reservada

exclusivamente às elites –, mas o que tece a

sociedade, o que constitui sua força e contribui

Verdadeiro viveiro de arte, o Haiti não tira

sufi ciente proveito de seus recursos culturais

com vistas ao desenvolvimento. O novo plano

de ação cultural prevê medidas de sensibilização

e de promoção dos vetores de criatividade,

focadas particularmente nos jovens.

Cultura, berço do renascimento haitiano  

Por Marie-Laurence Jocelyn Lassègue

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André Eugène, escultor da

Grand Rue, Porto Príncipe.

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Alegoria do triunfo da arte.

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para sua melhor qualidade de vida em interação

com a economia.

Plano de ação cultural

Convencido da indispensável contribuição

da cultura para o processo de renovação e

restabelecimento, o Ministério da Cultura e

da Comunicação almeja integrar quatro eixos

ao Plano de Ação visando à recuperação e o

desenvolvimento nacional: fortalecimento

institucional; desenvolvimento econômico;

identidade, cidadania e coesão social; e

integração regional e cooperação internacional.

O fortalecimento institucional subentende,

em particular, a implementação de convenções

de parceria com diferentes ministérios para

favorecer a criação de infraestruturas de bens e

de serviços culturais, assim como para reordenar

o território respeitando o caráter patrimonial

específi co de diversos sítios.

Sabendo que as indústrias culturais e criativas

podem constituir uma parcela não negligenciável

do PIB, o projeto de nosso ministério prevê a

criação de um fundo para a criatividade que visa

os artesãos, os artistas e os empreendimentos

culturais, assim como a instalação de um dispositivo

que favoreça a formação profi ssional e a promoção

do empreendedorismo cultural no intuito de

integrar os fatores culturais ao desenvolvimento

econômico.

A identidade e a consciência de cidadania

necessárias para a coesão social são forjadas por

meio da valorização dos saberes e da transmissão de

conhecimentos. Tratar-se-á, então, de criar condições

que permitam ao povo haitiano reconciliar-se

com ele mesmo, além de continuar a renovar e

Militante feminista, Marie-

Laurence Jocelyn-Lassègue

é, desde novembro de 2009,

ministra da Cultura e da

Comunicação do Haiti. Ela já

havia assumido essa função,

entre 1991 e 1993, depois de ter

sido professora e jornalista; de

2006 a novembro de 2009, ela foi,

igualmente, ministra da Condição

Feminina e dos Direitos das

Mulheres

Trata-se, então,

de criar as

condições que

permitam ao

povo haitiano

reconciliar-se

com ele

mesmo, além

de continuar

a renovar e

enriquecer suas

tradições

Celeur Jean Herard,

escultor da Grand Rue,

Porto Príncipe, na frente

de uma de suas obras.

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enriquecer suas tradições. A dinâmica da cultura

haitiana toma suas forças na criatividade (artes

plásticas, teatro, dança, música etc.). Por conseguinte,

convém desenvolver medidas de sensibilização e de

promoção dos vetores de criatividade, focadas de

forma muito particular nos jovens, em cooperação

com o Ministério da Educação.

A criatividade haitiana dá lugar a uma

grande diversidade cultural em âmbito

nacional, reconhecida no mundo inteiro e, em

especial, na região do Caribe. Grande número

de expressões culturais haitianas exercem

uma relevante infl uência em outros países da

região, permitindo assim um fl uxo constante de

intercâmbios. Trata-se, atualmente, de dinamizar

essa partilha por meio de uma política deliberada

de integração regional e de cooperação

internacional pela cultura. Uma presença cultural

fortalecida no cenário regional e internacional

contribuirá para a melhoria da imagem de nosso

país no exterior, consolidando desta forma a

confi ança de nossos compatriotas da diáspora,

assim como de nossos parceiros internacionais e

potenciais investidores.

Um Observatório da cultura haitiana

A fi m de garantir uma maior coerência da

intervenção pública no domínio cultural, o Ministério

da Cultura deseja reunir artistas e profi ssionais

da cultura, tanto no plano nacional quanto

internacional, assim como seus dirigentes políticos e

amigos do exterior, em torno de um Fórum Nacional

sobre a Cultura Haitiana. Este Fórum será o espaço no

qual identifi caremos juntos as grandes ações a serem

empreendidas e estabeleceremos as prioridades. O

Programa oriundo desse trabalho conjunto deverá

ser monitorado e avaliado com base em indicadores,

dados e estatísticas estabelecidos em cooperação

com a UNESCO.

Tendo em conta seu mandato, a Organização

poderá desempenhar um papel de primeiro

plano no acompanhamento do Haiti, durante

a longa caminhada de sua renovação e de seu

restabelecimento, em particular, no campo

cultural e artístico. Minha sugestão é que esse

papel esteja enraizado, de forma duradoura, em

um novo projeto de Observatório da Cultura

Haitiana, indispensável em nossa opinião.. ■

Page 15: Educação para todos: não estamos cumprindo nossas promessas

No dia 12 de janeiro, assim que passou o segundo

abalo em Porto Príncipe, fi quei esperando,

angustiada, o terceiro. Nesse momento, comecei

a ouvir gritos. Os gritos que vinham dos morros

de Després e Pacot. Gritos que se elevavam de

todas as ruas dos bairros do Bas Peu de Chose:

Jesus! Jesus! Nossa Senhora! É o fi m do mundo!

Durante as três noites seguintes, toda essa

humanidade reunida na rua para fugir das casas

desmoronadas – que soterravam os cadáveres

de seus próximos – dirigiu suas preces a Jesus,

entoou cânticos, leu a Bíblia. «Em seguida, vi o

Cordeiro quebrar o sexto selo. Ocorreu um violento

terremoto. […] e todas as montanhas e ilhas foram

removidas de seus lugares» (Apocalipse - o livro

da Revelação, cap. 6, 12 e 14 Bíblia Sagrada). 

«Os espíritos de demônios reuniram os reis de

toda a terra no lugar que, em hebraico, se chama

O ressurgimento do Haiti

não deverá começar da

estaca zeroAnimismo, vodu e crenças cristãs fundamentalistas impedem

parte dos haitianos de pegar seus destinos em suas próprias mãos.

A superstição contribuiu para que o país caísse na armadilha da

vitimização. Uma análise racional do passado do Haiti e de sua

situação presente é a chave para a salvação

Por Michèle Oriol

As árvores já foram

plantadas diante da

barraca deste casal

haitiano que recomeça

sua vida do zero.

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Harmagedon. […] Houve relâmpagos, estrondos,

trovões e um terremoto tão grande como nunca

houve desde que existem seres humanos na face da

terra. A grande cidade partiu-se em três, e as cidades

de todas as nações viraram ruínas. … Todas as ilhas

sumiram e os montes desapareceram» (Apocalipse,

cap. 16, 14 e 16, 18-20).

Tudo era interpretado como um sinal:

se ocorreu o desmoronamento das igrejas,

se o Palácio Nacional virou pó, foi porque os

dirigentes políticos haviam perdido a confi ança

de Deus. «Os reis da terra, que se prostituíram

e se entregaram ao luxo com Babilônia, hão de

chorar e lamentar-se por causa dessa cidade,

quando virem a fumaça de seu incêndio. Parados

ao longe, com medo do seu sofrimento, eles

dirão: Ai, ai, Babilônia, grande e poderosa  cidade!

Afi nal, bastou uma hora para o teu julgamento!’»

(Apocalipse cap. 18, 9-10).

Vi as pessoas que, sem qualquer proteção

para as mãos, arrancavam dos escombros seus

irmãos, irmãs, pais, mães e vizinhos. Vi cadáveres

que eram içados por máquinas, jogados em

caminhões de coleta de lxo e enterrados em

fossas comuns, escavadas nos lixões municipais.

Vi uma corte interminável escalar os outeiros de

Pétion-Ville e Kenscoff , entregando a parte baixa

da cidade aos saqueadores. Essa coisa sem nome,

esse «goudougoudou», rechaçou dezenas de

milhares de haitianos aterrorizados em direção

das zonas rurais, da República Dominicana, dos

EUA ou do Canadá. «Os reis da terra, os dirigentes,

os chefes militares, os ricos, os poderosos e todos os

outros homens, escravos ou livres, esconderam-se

nas cavernas» (Apocalipse, cap. 6, 15).

E depois, à boca pequena, nas estações de

rádio, na televisão e nas reuniões de crentes, não

faltaram vozes inspiradas para anunciar o fi m de

um ciclo de 25 anos, que termina em 2011, com

a destruição total do Haiti! «A segunda desgraça

passou; eis que, em breve, chega a terceira»

(Apocalipse, cap. 11, 14).

Estamos no reino dos medos profundos que,

às vezes, fazem vibrar uma sociedade inteira,

além de exigirem explicações.

Durante oito dias, não vi nenhum homem

uniformizado na rua, seja um policial haitiano ou

um soldado da Missão das Nações Unidas para a

Estabilização no Haiti. Foi preciso esperar quatro

Quem se

considera

eternamente

vitima é incapaz

de ser dono de

seu destino.

Acorrei, contemplai estas ruínas horrorosas,

Estes escombros, farrapos, estas cinzas do infortúnio,

Estas mulheres e crianças amontoadas,

Estes membros dispersos sob estes mármores

quebrados;

Cem mil desafortunados que a terra devora,

Os quais, sangrando, dilacerados e, ainda,

palpitantes,

Soterrados sob seus tetos, terminam, sem assistência,

No horror dos tormentos, sua triste existência!

Aos gritos balbuciados por suas vozes expirantes,

Ao espetáculo pavoroso de suas cinzas fumegantes,

Direis vós: «Eis o efeito de leis eternas

Que exigem o beneplácito de um Deus livre e bom?»

Direis vós, perante esse amontoado de vítimas:

«Deus vingou-se; elas pagam com a morte seus

crimes?»

Que crime ou falta cometeram essas crianças,

No seio materno, esmagadas e ensanguentadas?

Lisboa, que deixou de ser, teria mais vícios

Que Londres e Paris, mergulhadas nas delícias?

* Poema que o escritor e fi lósofo francês François-Marie

Arouet de Voltaire (1694-1778) dedicou ao terremoto de

Lisboa. Cf. Poema sobre o Desastre de Lisboa. Tradução de

Vasco Graça Moura. Lisboa: Alêtheia Editores, 2005 [n.d.r].

Mulheres rezando na

frente de estátua sendo

repintada para a visita

do Papa João Paulo II,

Catedral de Porto Príncipe,

1982.

Igreja do Carmo, em

Lisboa (embaixo à direita),

destruída pelo terremoto

de 1755 e preservada

em seu estado de ruínas,

assemelha-se à Catedral

de Porto Príncipe hoje

(acima à direita).

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Page 17: Educação para todos: não estamos cumprindo nossas promessas

Relata-se que o pragmático primeiro

ministro, Sebastião José de Carvalho e Melo,

o marquês de Pombal, teria afi rmado: «O

que há a fazer, agora? Enterrar os mortos e

cuidar dos vivos». Ele enviou imediatamente

equipes para apagar as chamas e recolher os

cadáveres; mandou enforcar publicamente os

saqueadores, com fi ns de dissuasão; impediu a

fuga dos habitantes que tinham condições de

trabalhar… Assim, passado apenas um ano, a

cidade tinha sido limpa e a reconstrução podia

ser empreendida.

Essa catástrofe abalou a Europa e teve

incidências sobre a fi losofi a das Luzes. O homem

sentiu-se sozinho no Universo. Deixou de ser

possível falar de Providência sem pensar no

terremoto de Lisboa.

Qual será a contribuição do sismo de 2010

para a refl exão haitiana?

Para um povo animista, um terremoto não é um

fenômeno natural, mas o resultado de alguma

intenção malévola. As referências bíblicas,

situadas no contexto das igrejas protestantes

fundamentalistas e integradas por adeptos do

vodu e pelos católicos, agravam o trauma da

população. Portanto, a infl uência exercida por

esse fenômeno sobre as mentes é considerável:

eis o que deve ser levado na devida conta por

quem mostra interesse pela nação haitiana.

O Haiti era considerado como o país mais

pobre do hemisfério Norte; presentemente,

ele se considera como o mais malfadado.

Atingido pela maldição. Há muito tempo,

temos sido objeto de uma permanente

vitimização por parte de nossos dirigentes, mas

também de numerosos intelectuais haitianos e

estrangeiros; atualmente, essa vitimização é a

maior armadilha que está à nossa espreita. No

contexto institucional frágil, demasiado frágil,

que é o nosso, a ternura e a generosidade do

mundo podem induzir a dúvida em relação

à nossa capacidade de assumirmos nossa

semanas para que o chefe do Estado dirigisse a

palavra à nação; dava a impressão de que o Estado

havia desmoronado com seus prédios simbólicos.

Ainda hoje, estamos à espera das decisões e

diretrizes que já deveriam ter sido anunciadas.

Outro lugar, outra época: uma digressão pela

história

No dia 1o de novembro de 1755, às 9h40 –

portanto, na manhã da festa católica de Todos

os Santos –, um terrível terremoto atingiu Lisboa

que foi devastada no período de dez minutos.

Em seguida, um enorme tsunami submergiu o

centro da cidade; e o que havia sido poupado

pelo mar, acabou sendo devorado pelo fogo.

25% dos habitantes morreram e a grande

maioria dos prédios foram destruídos. Sob

as ruínas do Palácio Real jaziam, reduzidos a

migalhas, os 70.000 volumes de sua biblioteca e

de arquivos preciosos.

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própria responsabilidade. Temos de rechaçar

a vitimização para recuperarmos nossa auto-

estima. Quem se considere eternamente vítima é

incapaz de ser dono de seu destino.Nas últimas décadas, à medida que as

instituições haitianas perdiam sua base, que a economia se degradava, que o espectro da guerra civil se tornava cada vez mais ameaçador e que o Estado hipotecava sua soberania em decorrência tanto das intervenções de forças armadas estrangeiras, quanto de uma ajuda internacional defi cientemente coordenada, as reivindicações identitárias não cessaram de se exacerbar. E acabamos por nos voltar inteiramente para o passado, de tal modo o presente era confuso e o futuro nos parecia inacessível.

Mas o que podemos extrair desse passado? Além das imagens de Toussaint Louverture (1743-1803) e de Jean-Jacques Dessalines (c. 1758-1806) – os dois ex-escravos quase analfabetos que souberam levar o Haiti à independência, consolidar uma República, criar uma nação e, assim, permanecer uma fonte de orgulho – subsiste, sobretudo, um estribilho sinistro que continua sendo martelado: nos últimos 200 anos, todos os chefes de Estado haitianos são déspotas, assassinos e corruptos; nos últimos 200 anos, assiste-se à má gestão administrativa; nos últimos 200 anos, o país tem sido dilacerado pelas guerras civis e pelas desigualdades sociais.

Laços entre o passado e o presente

Tal difamação do passado é nefasta para o futuro. E está longe de ser inocente: ela permite desculpar os atuais detentores do poder do Estado e, ao mesmo tempo, a comunidade internacional que lhes dá cobertura. Ao condenar tão asperamente os antepassados, procura-se cobrir com um véu pudico o que se passa atualmente, à nossa frente, a saber: uma aceleração do crescimento demográfi co que, além de não ser levado em consideração pela economia, é ignorado pelos políticos; uma forma desumanizante de urbanização oriunda da destruição da economia rural; uma banalização do impacto da presença de militares estrangeiros armados; além de uma devastação ecológica, cujos primeiros responsáveis são as companhias de exportação de madeira.

A capital acabou convertendo-se em um monstro, cuja população elevava-se acima de dois milhões de habitantes: verifi cou-se a duplicação desse número, em cada década, entre 1970 e 1990, tendo triplicado entre 1990 e 2000. E, por isso, 62% de suas moradias foram construídas entre 1995 e 2000.

Portanto, não foram os antepassados que construíram, em Porto Príncipe, essas casas que mataram mais de 200.000 pessoas. A responsabilidade dessas construções compete às autoridades políticas haitianas de nosso tempo e às inúmeras missões de apoio oriundas do exterior que, nos últimos 16 anos, têm compartilhado o poder com nossos dirigentes. Em vez de criticar o passado, façamos a análise da história recente e do presente. Desde o desembarque das forças norte-americanas, sob

a bandeira da ONU, em 1994, o exercício da autoridade política é, no mínimo, ambíguo: não estamos nem totalmente sob tutela, nem somos completamente independentes. Governos sob perfusão sucedem-se e têm arrastado o Estado para um precipício sem fundo. Formulemos, portanto, claramente a questão do poder político porque ela se encontra no âmago da reconstrução.

A pretensão de fundar, de novo, o Estado

haitiano tem a ver com a tentação de começar

da estaca zero; ora, este Estado conta já com

206 anos. Em vez de voltar a fundá-lo, trata-se

de criar vínculos entre passado e presente,

de reatar com a história e de refl etir em seus

ensinamentos. Eis como voltaremos a conferir

sentido à vida do povo haitiano, reanimando sua

dignidade e sua auto-estima. ■

Socióloga e antropóloga haitiana, Michèle

ORIOL faz parte do grupo que criou a

Fondation pour la recherche iconographique

et documentaire (Fundação para a Pesquisa

Iconográfi ca e de Documentos) em Porto

Príncipe. Ela é integrante do Comité

national haïtien pour la Mémoire du monde

(Comitê National Haitiano para a Memória

do Mundo), Programa da UNESCO dedicado

à conservação e à difusão das coleções de

arquivos e de bibliotecas, no mundo inteiro.

Consultora independente junto de diversas

instituições nacionais e internacionais, ela

participou de vários projetos de desen-

volvimento rural e de proteção do meio

ambiente, além de ter dirigido uma equipe

internacional de pesquisa sobre a situação

fundiária no Haiti.

Ela é professora de Sociologia da Família

na Faculdade de Ciências Humanas da

Universidade de Estado do Haiti.

Ao condenar tão

asperamente os

antepassados,

procura-se

cobrir com um

véu pudico o

que se passa

atualmente,

à nossa frente

A ler : Haiti: paysage et

société ( Haiti: paisagem

e sociedade), de André

Marcel-d’Ans, nova edição

por Michèle Oriol. Será

lançada em janeiro de 2011.

Coedição UNESCO-Karthala.

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Page 19: Educação para todos: não estamos cumprindo nossas promessas

Para início de conversa, devemos admitir que

a reconstituição do tecido social, cultural e

intelectual do Haiti implica em um verdadeiro

desafi o. Contrariamente ao que havia sido

afi rmado nessa ocasião – a saber, o dilaceramento

do tecido social, cultural e intelectual do Haiti, em

12 de janeiro de 2010 –, esse tecido já se encon-

trava em farrapos muito antes dessa data fatídica.

No plano social, 20 anos de populismo

haviam polarizado a sociedade haitiana,

aprofundado o fosso entre as classes sociais

e acelerado uma fuga dos cérebros que tinha

começado sob o regime de François Duvalier.

«Mais de 83% da força de trabalho mais

qualifi cada, cuja formação ocorre no Haiti, acaba

por deixar o país para instalar-se no exterior»,

afi rma o Banco Mundial, indicando com precisão

que, além do Canadá, os EUA constituem o

destino preferido da grande maioria dos quadros

expatriados.

Na sequência do sismo de 12 de janeiro,

essa hemorragia para o exterior já está em via

de se acentuar e corre o risco de se agravar se

não forem empreendidas, o mais cedo possível,

ações concretas e urgentes. Contando com 90%

de desemprego, o balanço socioeconômico do

Haiti encontrava-se no vermelho muito antes do

sismo; e, aqui, é preferível abster-se de citar os

respectivos números para evitar uma outra fonte

de sofrimento.

O Haiti é um país, cujo atraso se manifesta

em todos os setores. A primeira República Negra

no mundo tornou-se o pária do continente

americano: um país que foi incapaz de se

elevar à postura de nação e que, atualmente,

depende mais do que nunca da assistência

Fuga de cérebros, privação cultural, decadência social,

irresponsabilidade, corrupção – são palavras-chaves desse

panorama muito crítico da realidade haitiana que desemboca em

propostas de reconstrução de um Haiti novo, fundado na ciência,

na inteligência, na competência, no humanismo e na humildade.

Por Nancy Roc

Construir um Haiti totalmente novo

Todo gesto, mesmo

desesperado, faz sentido.

Porto Príncipe, 12 de

janeiro de 2010.

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internacional. «Assistência» e não «ajuda para o

desenvolvimento sustentável» que, em vez de

ter permitido o ressurgimento de nosso país,

acabou por arrastá-lo, nos últimos 20 anos, para

o sorvedouro de uma miséria abismal. Além

dos haitianos que, certamente, são os principais

responsáveis por sua decadência social, os

doadores não estão isentos, de modo algum,

dessa responsabilidade. Eis a razão pela qual será

necessário que os próximos governos procedam

a escolhas esclarecidas, neste domínio, e

contem com a diáspora haitiana, cujos fundos

correspondem, anualmente, a uma soma três

vezes superior aos montantes fornecidos pela

comunidade internacional, ou seja, US$ 1

bilhão e 800 milhões, contra US$ 500 milhões,

respectivamente.

No plano cultural, os governos que se

sucederam, desde 1986, não cessaram de

proclamar que a cultura haitiana era nossa

maior riqueza. No entanto, quase nada tem sido

empreendido para valorizar essa cultura; se não

fosse a vitalidade e o talento de nossos criadores,

atualmente ela também teria desaparecido.

De fato, como explicar que, em pleno século

XXI, o Haiti não disponha de uma única sala

de espetáculos, digna desse nome? No mês de

agosto passado, foi anunciado o fechamento

da única sala de cinema da Capital; fechamento

que, simultaneamente, poderia ocasionar o

desaparecimento de uma nascente atividade

cinematográfi ca no Haiti. O Teatro Nacional e a

Escola Nacional das Artes são, há muito tempo,

prédios em ruínas ou utilizados para fi nalidades

políticas que os afastaram de qualquer vocação

artística. Se a cultura permanece viva, não há

lugares onde ela poderia se desenvolver. No

plano cultural, a privação dos meios básicos,

no Haiti, é absoluta: nenhuma sala de teatro,

nenhuma sala de cinema, nenhum museu à

altura da arte de nosso país; estruturas editoriais

no plano local sem recursos; nenhum jornal,

nenhuma revista, nenhuma estação de rádio com

vocação cultural; falta de política cultural, assim

como de uma verdadeira escola de arte. O que

teria ocorrido com o país que tanto seduziu André

Malraux (escritor e político francês, 1901-1976).

Nem tudo está perdido

Já é mais que tempo de «voltar a embaralhar

as cartas» e nem tudo, talvez, esteja perdido já

que, pela primeira vez, no Plano de Ação para

a Reconstrução e o Desenvolvimento Nacional

do Haiti (PDNA -Post-Disaster Needs Assessment),

apresentado na ONU, em 31 de março, o

governo haitiano reconhece que a cultura é

«um elemento, cuja marginalização ocasionou

o fracasso, durante vários anos, dos programas

de apoio ao desenvolvimento, praticamente,

em todos os países». Evidentemente, tal postura

supõe que o Estado venha a enviar sinais claros

que demonstrem sua vontade de contribuir para

transformar o setor cultural em um domínio

econômico viável e invejável.

Observemos que, se os haitianos sublinham

facilmente a inefi ciência do Estado, é também

inconcebível que nenhum organismo, grupo

privado ou homem de negócios no Haiti tenha

mostrado interesse em proceder a um maior

investimento na cultura. No mês de agosto

passado, em um artigo intitulado Em defesa

de uma verdadeira sala de espetáculo no Haiti,

publicado no cotidiano Le Matin e retomado por

Courrier International com o título Le spectacle

est terminé1, tentei chamar a atenção do

público haitiano para o potencial econômico

do setor cultural: para nos limitarmos ao ano

de 2007, a cultura rendeu perto de 25 bilhões

Haitianos tentam deixar

Porto Príncipe de barco.

Page 21: Educação para todos: não estamos cumprindo nossas promessas

de dólares em impostos e taxas ao governo

federal, provincial e municipal, no Canadá; ou

seja, cerca de três vezes a soma de 7,9 bilhões

de dólares investida coletivamente, em 2008,

na cultura e nas artes, pelas três entidades do

governo2. Mas, para compreender e promover

tal programação, impõe-se renunciar à

mediocridade. Quando será possível encontrar

verdadeiros mecenas e fi lantropos haitianos com

o senso de compromisso social e da dignidade?

Quando é que nossos empresários serão menos

incultos? Como se explica que, há vários anos,

o patrocínio dos maiores acontecimentos

esportivos ou culturais, no Haiti, seja garantido

principalmente pelas companhias estrangeiras

de telecomunicações? O que será que essa

constatação demonstra acerca da visão dos

homens de negócios haitianos? Estas questões

continuam aguardando resposta.

No plano intelectual, também, a

atual situação no Haiti inspira questões

constrangedoras. Como é que este Estado,

destituído da ideia de nação, se converteu,

agora, em um país sem Estado? Parece-nos que a

divisa do «cada um por si», reduplicada por uma

desconfi ança grandemente ciosa em relação

ao vizinho, encontra suas raízes na história de

nosso país, no qual o Estado nunca chegou a

encarnar nada de bom. O Haiti não tem elites

que se interessem pelo desenvolvimento do país

e do bem comum por duas razões: em primeiro

lugar, elas lançam um olhar de desdém para «a

ralé analfabeta»; em seguida, sentem uma avidez

desmesurada pelo poder. Além disso, o odor

tenaz da escravidão, na sociedade haitiana e

sem excluir nenhum de seus segmentos sociais,

não favoreceu o senso da responsabilidade. A

expressão «sé pa fot moin» (a culpa não é minha)

virou o estribilho nacional.

Ora, se o haitiano não é responsável...

eviden-temente, o culpado é o outro. Entre uma

demanda de intervenção junto a instâncias

estrangeiras e a denúncia de «ingerência» dos

estrangeiros na vida haitiana que não deixa de

aceitá-la imediatamente, a distância é tênue.

A falência das elites de nosso país reside nesta

constatação: há 200 anos, de acordo com as

palavras de Laënnec Hurbon, sociólogo haitiano,

«o sentimento de ser um cidadão deste país

não é nítido; não houve grande evolução

relativamente à mentalidade do cidadão».

A questão da cor da pele, quase sempre

instrumentalizada pelos partidos políticos no

poder, acentuou a polarização social em uma

sociedade de apartheid e, por sua vez, não

ajudou os haitianos a encontrar um consenso

em torno da noção de «convivência». Além disso,

como o populismo havia exacerbado o desdém

em relação aos intelectuais, estes acabaram

por demitir-se de suas responsabilidades

sociais. O sucesso mundial de Dany Laff erière,

Franckétienne, Lionel Trouillot, Gary Victor,

Yanick Lahens, Louis Philippe Dalembert, para

nos limitarmos a citar estes nomes, comprova

que nossos escritores são capazes de conquistar

o mundo. Aliás, alguns deles tinham participado

do «movimento do novo contrato social»,

lançado em 2004, pelo coletivo político haitiano,

denominado O Grupo dos 184, que convocava

o povo haitiano «a enfrentar o desafi o dos

óbices históricos que impediram a unidade

dos haitianos, bloquearam o desenvolvimento

e, ainda atualmente, acarreta a decadência

política, social e econômica de nosso país»; mas,

eles retiraram-se depois que o movimento foi

abandonado por seus «líderes políticos».

Identidade: uma ou várias?

De acordo com Axelle Kabou, socióloga

camaronense, «todos os povos são, em primeira

e última instância, responsáveis absolutamente

pela integralidade das respectivas histórias». É

necessário, portanto, que nossos intelectuais

possam imperiosamente formular a problemática

da identidade haitiana: o que ela é realmente,

hoje em dia? Haverá um Haiti ou parcelas de uma

identidade haitiana dispersa pelo mundo? Será

que, de fato, pode-se falar de um tronco comum

haitiano válido para todos os haitianos que

vivem em nosso país, na República Dominicana,

em Miami, Boston, Nova York, Paris e Montréal?

Como estruturar pistas de refl exão e suscitar

diferentes modalidades para abordar o assunto?

À luz desses pontos que constituem apenas

as grandes linhas dos problemas inerentes

ao dilaceramento do tecido social, cultural e

intelectual no Haiti, como mobilizar o saber e as

competências sociais para revivifi car o Haiti, hoje?

Certamente, ao considerar o contexto

exposto mais acima, não posso ter a pretensão

de possuir a resposta para uma questão tão

complexa. Todavia, tenho a possibilidade de

apresentar proposições; aliás, algumas já estão

sendo implementadas.

O papel da diáspora

Recentemente, Amos Cincir, meu colega

do cotidiano Le Nouvelliste, escrevia o seguinte:

«O país enfrenta um importante êxodo de

sua população e, de forma mais particular, de

suas elites: anualmente, desde 2000, deixam

a Ilha não menos de 10.000 haitianos, entre

os titulares de maior número de diplomas.

As migrações clandestinas terminam, muitas

vezes, em tragédias já que, por ano, um milhar

de candidatos a sair do país perecem no

alto mar. Quem consegue um emprego no

exterior torna-se o amparo das famílias que

permaneceram no país. Cerca de 40% dos

lares haitianos dependem do dinheiro enviado

pela diáspora: em 2008, as transferências para

as famílias atingiram US$ 1,8 bilhão, ou seja,

soma superior a um terço do Produto Interno

Bruto. Infelizmente, com a crise econômica

mundial, esta fonte de renda tende, por sua

vez, a reduzir-se; tais remessas de dinheiro

diminuíram, no mínimo, 30% entre 2008 e 2009.

Tal hemorragia de braços e de cérebros é tão

catastrófi ca quanto um segundo terremoto; com

efeito, os haitianos emigrantes são precisamente

aqueles que representavam a mais bem fundada

esperança de reconstrução do país». Esse êxodo vem, desastradamente,

acrescentar-se aos 83% dos quadros já exilados

No plano

cultural, os

governos que

se sucederam,

desde 1986,

não cessaram

de proclamar

que a cultura

haitiana era

nossa maior

riqueza. No

entanto, quase

nada tem sido

empreendido

para valorizar

essa cultura;

se não fosse

a vitalidade

e o talento

de nossos

criadores,

atualmente ela

também teria

desaparecido.

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do Haiti. Portanto, é claro que a reconstrução e a refundação do Haiti não poderiam realizar-se sem a participação ativa e constante da diáspora haitiana. O primeiro ministro, Jean Max Bellerive, assim como o ministro encarregado dos haitianos que vivem no exterior, Edwin Paraison, aceitaram francamente este princípio por ocasião da Conferência de Montréal (Canadá), em 25 de janeiro passado, e do Colóquio Reconstruir o Haiti - Horizonte de 2030, organizado na École Polytechnique de Montréal pelo Grupo de Refl exão e de Ação em favor de um Novo Haiti (GRAHN-Groupe de réfl exion et d’action pour une Haïti nouvelle), em 4 e 5 do passado mês de março; todavia, sabemos também que os haitianos do interior manifestaram sempre certa reticência para com seus compatriotas do exterior. Até mesmo a Constituição da República não autoriza a dupla nacionalidade; tal disposição acabou forçando, frequentemente a contragosto, a maioria dos mais bem dotados cérebros haitianos a optar pela nacionalidade do país de acolhimento. No entanto, sem sua diáspora, o Haiti já teria desaparecido há muito tempo.

Projetos que poderiam ser apoiados pela UNESCO

Atualmente, convém que a refundação do Haiti seja baseada na ciência, na inteligência, na competência, no humanismo e, também, na humildade, a fi m de construir uma sociedade mais justa e mais igualitária. Em outras palavras, é um país completamente diferente que as haitianas e os haitianos devem conceber e edifi car com este objetivo primordial: o bem comum. Para realizá-lo, a inclusão da diáspora, assim como de todas as redes sociais haitianas, é incontornável.

Tendo contado com a participação de mais de 600 pessoas oriundas do Haiti e dos quatro cantos de sua diáspora, o Colóquio Reconstruir o Haiti - Horizonte de 2030 demonstrou clara-mente que a(o)s haitiana(o)s podem formular proposições concretas às instâncias interessadas pela reconstrução de seu país, baseando-se em refl exões empreendidas a partir de uma abordagem participativa e servindo-se da contri-buição das expertises e sensibilidades disponíveis tanto no interior, quanto no exterior da Ilha.

Cerca de 45 proposições preliminares3 foram formuladas nesse Colóquio, qualifi cado como histórico.

Em matéria de educação, alguns projetos já estão em via de execução, entre os quais a implantação de uma estrutura de acolhimento permanente para os profissionais da educação da diáspora e dos amigos do Haiti; de uma estrutura de formação à distância podendo se transformar em uma Universidade aberta ou à distância, abrangendo todo o território nacional; de um programa de estágio para estudantes haitianos em empresas, cujas funções de alto nível são ocupadas por membros da diáspora; além de redes de competências da diáspora, visando a transferência de conhecimentos e o desenvolvimento econômico.

Em matéria de cultura, o GRAHN propõe, entre outras iniciativas, a criação de um fundo de preservação do patrimônio e de

desenvolvimento dos empreendimentos culturais por todo o país, assim como o lançamento de programas de exposições itinerantes e de outras ferramentas de difusão da cultura, apoiando-se nas novas tecnologias.

Eis, portanto, alguns projetos que poderiam

receber o apoio da UNESCO. Eu gostaria também

de tornar-me a porta-voz dos artistas e dos

jovens haitianos a fi m de solicitar à UNESCO

para ajudar meu país a encontrar parceiros para

fi nanciar uma verdadeira sala polivalente de

espetáculos no Haiti.

Para concluir, eu não poderia deixar

de lembrar que o Haiti de amanhã deve

absolutamente desvencilhar-se dos demônios

da corrupção em todos os níveis. Convém

ter sempre presente as palavras do jornalista

francês, Edwy Plenel: «Revelada, a corrupção

fi nanceira pode ser combatida e sancionada.

Quanto à corrupção das ideias, ela é mais

insidiosa, mais sutil e, neste aspecto, é mais

essencialmente perigosa».4■

Este artigo é extraído da intervenção de Nancy

Roc por ocasião do Fórum Reconstituir o tecido social,

cultural e intelectual do Haiti, organizado pela UNESCO,

em 24 de março de 2010. A integralidade de seu texto,

pronunciado na sede da Organização, assim como sua

gravação audiovisual, estão disponíveis no seguinte link:

http://www.unesco.org/new/fr/media-services/single-

view/news/unesco_forum_on_haiti/back/18256/

1. O espetáculo terminou.

Para ler o artigo: http://

www.courrierinternational.

com/article/2009/09/03/le-

spectacle-est-termine

2. Michel Girard, A cultura dá

grande lucro aos governos, La

Presse, Montréal (Canadá), 24

de setembro de 2008.

3. Para outras informações,

ver a síntese do Colóquio do

GRAHN: http://www.haiti-

grahn.net/public/?s=194

4. Edwy Plenel, Secrets de

jeunesse, Stock, 2001.

Journalista independente e militante em

favor dos Direitos Humanos, Nancy Roc é

integrante da Federação Profi ssional dos

Jornalistas do Quebec (Canadá) da qual

foi a laureada com a Bolsa Norte Sul, em

2008. Jornalista na CBC, Radio Canada e

TV5, ela foi a primeira haitiana a tornar-se

correspondente de CNN World Report.

Tendo desempenhado a função de adida

cultural da Delegação Haitiana na UNESCO,

entre 1991 e 1994, ao voltar ao Haiti, ela foi

nomeada diretora do gabinete de imprensa

do primeiro ministro, Smarck Michel;

seis meses depois, ela se demitiu desse

cargo e retomou suas atividades como

jornalista independente. Atualmente, ela é

a animadora, a partir de Montréal (Canadá),

do programa Metropolis (http://www.

metropolis.metropolehaiti.om/).

A refundação

do Haiti hoje

tem que estar

baseada a

ciência, na

inteligência, na

competência,

no humanismo

e na humildade

também, a fi m

de se construir

uma sociedade

mais justa e

igualitária.

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Page 23: Educação para todos: não estamos cumprindo nossas promessas

No Haiti, país em que a taxa de analfabetismo

é elevada, 94% da população possuem um

aparelho de rádio, segundo uma pesquisa

realizada pela agência Médiascom. Ora, a banda

FM está saturada e o CONATEL – agência

governamental encarregada de analisar os

dossiês técnicos de demanda de frequências –

deixou de autorizar novas concessões, enquanto

passa de 40 o número estações de rádio que

transmitem a partir da Capital. O faturamento

da publicidade está fracionado e as estações

de rádio mais bem «cotadas» – tais como

Métropole, Vision 2000, Caraïbes, Ginen, Signal ou

Kiskeya – açambacaram o melhor quinhão; por

sua vez, um grande número de outras estações,

sem recursos fi nanceiros sufi cientes, difundem

uma programação, cuja qualidade técnica é

lamentável por ser realizada, na maior parte das

vezes, por um pessoal sem qualquer formação

profi ssional. Simples caixas de ressonância, essas

estações de rádio reservam um exagerado tempo

de antena a uma atualidade política contaminada

por acusações, escândalos, calúnias, intrigas de

capelinha ou de clãs. Uma situação semelhante

ocorre com a dezena de redes de televisão que

surgiram no decorrer dos últimos três anos.

A refl exão crítica, articulada, objetiva e

rigorosa é o atributo de um número restrito de

jornalistas tarimbados. Os dois cotidianos, Le

Nouvelliste e Le Matin, que surgiram no fi nal do

século XIX, constituem sentinelas, apesar de

suas modestas tiragens (20.000 exemplares por

edição) e uma difusão bastante reduzida nas

zonas rurais.

A imprensa haitiana não conseguiu o

distanciamento necessário para ajudar a unir os

diferentes segmentos da sociedade de nosso

país. Ela não soube mobilizar as forças sociais

diante dos grandes desafi os que devem ser

enfrentados pela nação: a ameaça sísmica, a

urgência de um reordenamento do território, as

necessidades na área energética responsáveis

pela degradação do meio ambiente, a educação,

a reorganização da economia e da produção,

além da revalorização da arte e da cultura.

Tal era a situação da mídia haitiana, muito

antes do sismo de 12 de janeiro de 2010.

À semelhança do que ocorreu em outros

setores, a mídia foi severamente atingida pelo

sismo. Passados dois meses, a maioria dos

jornalistas retomou o trabalho, mas sem um

compromisso bem defi nido em relação aos novos

desafi os decorrentes da catástrofe na medida

em que não se verifi cou nenhuma mudança nos

respectivos programas. Todavia, Le Nouvelliste e Le

Matin anunciaram que eles serão mais exigentes

e, inclusive, defensores do interesse geral, além

de pretenderem tirar partido da tragédia para

«elaborarem algo de novo.»

Asfi xia da refl exão crítica

Não se trata de uma acusação contra meus

predecessores; de fato, alguns deles chegaram

a pagar com a vida o direito que tenho,

Imprensa no Haiti :

a grande viradaUma certa liberdade de expressão caracteriza

o ambiente midiático haitiano. No entanto,

os veículos de comunicação deveriam se

questionar seriamente e se desvencilhar do que

é trivial para se tornarem capazes de mobilizar

as forças sociais.

Por RobersonAlphonse

A imprensa

haitiana deve

se arriscar

a exercer a

liberdade

responsável.

O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0 . 2 3

Alegoria da asfi xia do

pensamento crítico. Cena

do carnaval de Porto

Príncipe, fevereiro de 1985.

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2 4 . O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0

atualmente, de exercer meu ofício com certa

liberdade. Estou simplesmente questionando

algumas tomadas de posição que, parecendo

às vezes exageros fanáticos, acabaram por

fortalecer as divisões, exacerbar tensões

sociopolíticas e desacreditar a imprensa.

A incapacidade da mídia inscreve-se em

uma moldura mais ampla: a sociedade haitiana

deixou de ser exigente, de valorizar o mérito

e de promover grandes ambições. Ela não

consegue sair do status quo desolador em que,

nas últimas décadas, está submersa. O saber –

que, durante muito tempo, havia sido a garantia

do poder político – não tem sido utilizado com

clarividência; pelo contrário, o Haiti é um dos

raros países em que o saber promove a divisão

entre as pessoas. Além disso, a percepção

mágico-religiosa da ciência cria situações

inverossímeis; assim, para um grande número

de meus compatriotas, a morte de umas 200.000

vítimas do 12 de janeiro não é imputável ao

desrespeito das normas de urbanismo, mas a

Deus! «Foi Deus quem decidiu esta desgraça» –

eis o que se comenta com resignação. As igrejas

continuam lotadas e os pastores esfregam as

mãos de satisfação.

Durante esse tempo, programas de

diversão, para não dizer, triviais, ocupam ainda

o essencial da pauta de algumas estações de

rádio, submersas sob o peso da publicidade para

produtos importados. O que se passa com as

verdadeiras questões? Eis a resposta: «Isso não é

o que o povo deseja escutar». Assim, continua a

asfi xia da refl exão crítica. 

Reinventar a imprensa

Hoje mais do que ontem, é urgente trabalhar

em favor de uma mudança de paradigma da

informação; por isso, impõe-se a realização dos

Estados Gerais da Imprensa. Certamente, essa

grande virada – a invenção de uma imprensa

moderna, profi ssional, audaciosa, ambiciosa,

além de desvencilhada do poder político e do

establishment econômico – é mais fácil falar do

que fazer. Mas, temos o dever de empreendê-la;

tal iniciativa vai exigir processo longo e rigoroso

com necessidade de uma parceria responsável

entre o Estado, enquanto regulador de fato e de

direito, e os atores privados do setor da mídia.

Antes do sismo, duas correntes de pensamento

enfrentaram-se em relação à necessidade, ou não,

de ter uma lei sobre a imprensa: seus defensores

sonhavam com uma entidade reguladora, tal

como o Conselho Nacional do Audiovisual, na

França; por sua vez, tendo sofrido com a ditadura

dos Duvaliers, seus opositores pressentiam,

em qualquer tentativa de estabelecer normas,

veleidades ditatoriais, o retorno do autoritarismo.

Aliás, a crença de que tudo pode ser feito sem

regras, nem limites, é um atavismo no Haiti; trata-se

de um obstáculo difícil de ser superado.

A imprensa haitiana deve, em primeiro lugar,

reformular-se antes de pretender a mobilização

das forças sociais e do saber. A curto prazo, creio

que convém elaborar programas de formação

para os jornalistas; uma vez mais, será bem-vindo

o apoio da UNESCO que mantém relações de

trabalho privilegiadas com a Associação de

Jornalistas Haitianos). O Ministério da Educação

Nacional, em colaboração com o Ministério

da Cultura e da Comunicação, as associações

de jornalistas e as associações de empresários

de imprensa deverão elaborar conjuntamente

esses currículos. Além da formação, deverá

ser abordada a questão mais espinhosa: a

valorização profi ssional. Atualmente, o salário de

base mensal do jornalista é igual a 100 euros. 

O desafi o, no domínio da comunicação,

assim como em outros setores, é enorme. Apesar

de tudo, eu acredito no futuro de meu país,

no futuro de uma nova imprensa. Eu acredito

que uma nova elite intelectual, econômica e

política acabará por emergir dos escombros;

uma elite responsável, envolvida no esforço de

construção de uma outra cidadania, de uma

outra coletividade, de um novo sentido do

termo «haitiano». A imprensa no Haiti, depois

de sua reformulação, desempenhará um papel

de primeiro plano: ela deverá, para retomar

a expressão de um amigo, «correr o risco de

exercer a liberdade responsável», estabelecer

uma nítida distinção entre os eruditos e os

políticos haitianos, em suma, ajudar o povo

soberano a escolher bem seus dirigentes. Caso

contrário, vamos deixar que, uma vez mais, se

escape o essencial. Este é o momento da ação. ■

Roberson Alphonse é jornalista no cotidiano Le Nouvelliste (Haiti),

diretor da informação da Radio Magik 9 e presidente da Comissão

encarregada da Formação Contínua na Associação de Jornalistas

Haitianos.

Desçam à terra,

jornalistas!

Eu acredito no

futuro de meu

país, no futuro

de uma nova

imprensa. Eu

acredito que

uma nova elite

intelectual,

econômica e

política acabará

por emergir dos

escombros.

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Page 25: Educação para todos: não estamos cumprindo nossas promessas

Comecemos, em primeiro lugar, por rejeitar a

ideia de que o povo haitiano esteja derrubado e

resignado ou se sinta incapaz de enfrentar sua

reconstrução. Deixemos de considerar o Haiti

como a vítima de uma catástrofe. O mundo

pode e deve extrair ensinamentos, tanto a partir

da recente tragédia que atingiu esse país de

10 milhões de habitantes, quanto de sua longa

história, para tentar uma transformação radical,

aliás, mais do que necessária no atual contexto

internacional.

Qual é, então, esse contexto? Economias

exauridas. Estados ricos excessivamente

endividados. Proposições para sair da crise

que são aleatórias e, até mesmo, inexistentes.

Desigualdades revoltantes no seio de sociedades

que se benefi ciam de uma notória prosperidade.

Segmentos mais desfavorecidos da população

que são marginalizados. Desemprego, falências,

suicídios, sentimento profundo de mal-estar e

dúvidas em relação à própria identidade são

apenas os sintomas mais ostensivos da falta de

opções para o futuro.

A verdadeira diferença – e ela é considerável

– entre os países mais ricos e os países mais

pobres reside no fato de que os primeiros

dispõem dos recursos materiais, intelectuais e

estruturais, suscetíveis de alterar tal situação.

Com a condição de que eles decidam

empreender essa iniciativa. Com efeito, o que

faz falta, manifestamente, é a vontade política.

E, talvez, a capacidade de congregar as energias.

Somos obrigados a aceitar o fato de que o

Cena do cotidiano de

Porto príncipe,

janeiro de 2010.

A falta de visão é a catástrofe mais forte que

pesa sobre o Haiti. O novo drama que o país

vivencia por tanto tempo e sem assistência,

poderá ter um papel de catalisador das

energias nacionais e internacionais.

Em busca de uma humanidade mais solidária

Por Raoul Peck

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Page 26: Educação para todos: não estamos cumprindo nossas promessas

2 6 . O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0

mundo não funciona como deveria, e temos

de nos dotar dos meios para promover uma

profunda mudança.

Um acúmulo de insucessos

Considerando os malogros que balizam os últimos

60 anos, uma transformação radical revela-se

como indispensável: fracasso da maior parte das

políticas de desenvolvimento; fracasso do ajuste

estrutural, cujo objetivo consiste em aprimorar,

de forma sustentável, as economias dos países

em desenvolvimento; fracasso, até agora, da ONU

diante dos confl itos internacionais; fracasso da

União Europeia como contrapeso ao frenesi do

capitalismo fi nanceiro; fracasso dos dois grandes

blocos ideológicos, incapazes de encontrar

respostas que passem além de suas necessidades

e de seus interesses hegemônicos; fracasso do

projeto dos países não alinhados ao proporem

uma alternativa válida à dicotomia assassina da

guerra fria; fracasso da esquerda internacional e,

em particular, da social democracia, incapaz de

contrabalançar o desequilíbrio mundial; fracasso,

enfi m, da esquerda progressista em nossos

países em desenvolvimento, frequentemente,

acuada e abandonada por seus companheiros

de luta ocidentais, preocupados pela própria

sobrevivência política.

Esse acúmulo de fracassos me leva a pensar

que a verdadeira saída, para o Haiti, só poderá

ocorrer a partir dele mesmo. Por que razão

deveríamos continuar a depositar confi ança nessa

vontade declarada de “ajudar”, hoje, o Haiti?

Por que razão deveríamos aderir cegamente a

roteiros elaborados de forma precipitada e, às

vezes, bem longe de nosso país? Um grande

número de organizações e de movimentos

haitianos denuncia o processo adotado para a

elaboração do Plano de Ação para a Reconstrução

e o Desenvolvimento Nacional do Haiti (PDNA

-Post-Disaster Needs Assessment), caracterizado

por uma exclusão praticamente total dos atores

sociais e civis haitianos. Associo-me a todos esses

agentes para deplorar essa marcha forçada que

nos impede de participar, de maneira construtiva,

na refundação de nosso país.

O cineasta, Raoul Peck, ex-ministro da Cultura do Haiti (1995-1997), é o

autor, entre outros, dos fi lmes L’homme sur les quais, Lumumba, L’aff aire

Villemin, Sometimes in April, L’école du pouvoir.

Depois de ter passado uma parte de sua infância no Congo, ele

frequenta o liceu na França e nos Estados Unidos; em seguida,

completa seus estudos de Engenharia e de Economia na Alemanha,

tendo ingressado, posteriormente, na Academia do Filme e da

Televisão de Berlim, instituição na qual ele inicia sua carreira.

Dois dias antes do terremoto de sua cidade natal, Porto Príncipe, foi

nomeado, por decreto presidencial, diretor da Escola Nacional Superior

dos Ofícios da Imagem e do Som, La Fémis, em Paris.

Reverter o paradigma atual

Nossa demanda se limita a um pouco mais de

humildade e de autocrítica. Em um artigo, datado

de 20 de março de 2010, Jonathan Katz (Associated

Press) escreveu que, no dia 10 de março, o ex-

presidente dos EUA e atual enviado especial da

ONU para o Haiti, Bill Clinton, “apresentou desculpas

públicas por ter apoiado políticas que, na década

de 1990, haviam destruído a produção haitiana

de arroz”. Ao dirigir-se à Comissão das Relações

Exteriores do Senado norte-americano, ele

declarou: “Tal procedimento, talvez, tenha sido

benéfi co para alguns de meus fazendeiros no

Arkansas (o Estado de origem de Bill Clinton), mas

não deu certo. Foi um erro”.

De fato, há 30 anos, o Haiti importava apenas

19% de seus alimentos e exportava arroz e café.

A partir de 1986, o presidente haitiano, Jean-

Bertrand Aristide, foi forçado – por Bill Clinton e

pelo FMI, entre outros –, sob pretexto de ajuste

estrutural, a reduzir nossas barreiras alfandegárias.

Atualmente, ainda de acordo com Jonathan

Katz, seis libras [uma libra: 0,450 kg] de arroz de

Riceland Foods of Arkansas, sem dúvida, a maior

usina mundial de arroz, vendem-se por US$ 3,80;

ora, a mesma quantidade de arroz produzido no

Haiti vende-se por US$ 5,12.

Além disso, não esqueçamos que, se temos de

lastimar um tão grande número de mortos, em

Porto Príncipe, é precisamente porque centenas

de milhares de camponeses, sem recursos, nem

meios de produção, incapazes de fazer concorrência

às importações ocidentais, tinham sido obrigados a

instalar-se na capital à procura de trabalho.

Tudo está ligado. Os pretensos remédios de

outrora e as catástrofes da atualidade. A pobreza

de uma parcela da humanidade cria a riqueza

da outra e vice-versa. Nossos destinos estão

ligados por problemas comuns aos quais a ajuda

internacional, por si só, não consegue fornecer a

solução. Temos necessidade de uma visão global.

As situações de drama e de luto, como aquela que

é vivenciada atualmente no Haiti, podem permitir-

nos reverter o paradigma atual, procedendo

de modo que o Haiti se torne um novo modelo

de intervenção. É tão urgente para os países do

Sul, quanto para as metrópoles ocidentais, em

que as desigualdades não cessam de crescer.

Quanto mais cedo iniciarmos essa mudança

radical, tanto mais cedo teremos a possibilidade

de nos encontrarmos no mesmo caminho e,

conjuntamente, prosseguirmos uma busca

comum de uma humanidade mais solidária, mais

justa, mais equitativa e – por que não? – mais feliz

para todos.

Projeto ambicioso, irrealista, utópico? Creio que

não. De fato, apesar de todos os seus fracassos,

a humanidade tem dado provas de uma grande

capacidade de generosidade, criatividade e

coragem – tanto no plano individual quanto no

coletivo. ■

Sob infl uência estrangeira,

a produção de arroz no

Haiti foi destruída nos

anos 1990.

Somos

obrigados a

aceitar o fato

de que o mundo

não funciona

como deveria,

e temos de nos

dotar dos meios

para promover

uma profunda

mudança.

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Page 27: Educação para todos: não estamos cumprindo nossas promessas

Não se pode construir a economia

de um país sem primeiramente

estabelecer uma política econômica e

instalar uma administração capaz de

assumir essa responsabilidade. Ora,

o Haiti não dispõe nem de um, nem

de outro. A economia é indissociável

da ideia do progresso, que também

nos faz falta. Esse é o nosso drama. O

cidadão comum haitiano não se projeta

no papel de técnico para participar

na construção de seu país, e sim fi ca

aguardando que o progresso venha do

exterior. Para ele, a prosperidade está

nas mãos de Deus.

Ainda não dispomos dos meios que

nos permitam construir nosso país e

modifi car nossa realidade. Hesitamos

em relação ao caminho a seguir

para reconstruir nossa economia.

Continuamos imobilizados na incerteza,

não sabendo o que fazer.

A catástrofe de 12 de janeiro de

2010 questiona nossa imobilidade.

Não é mais possível adiar a mudança

da regulação da economia haitiana

– que ainda sobrevive com base em

mecanismos de renda que benefi ciam

apenas a alguns. Baseada apenas em

algumas fontes de renda, no caso

concreto o café, esse tipo de economia

traz benefícios apenas para uma ínfi ma

parcela da população, excluindo a

grande maioria. A vida política haitiana

é inteiramente organizada ao redor

desse tipo de renda, esforçando-se em

proteger os raros representantes eleitos

que criam obstáculo à diversifi cação,

para preservar seus privilégios. E, para

fazer isso eles se servem de todos

os meios para ocupar importantes

posições políticas.

Neste círculo vicioso, as famílias

haitianas sofrem as mais penosas

restrições: têm de poupar durante dez

anos, no mínimo, para estarem em

condição de começar a construir uma

casa. Além disso, passam o restante

de seus dias para terminá-la. É que

a política do crédito é praticamente

inexistente no Haiti. Sua economia

funciona com base na poupança

prévia, o que conduz ao cash colateral

(crédito igual à soma existente na

conta de poupança de quem faz o

empréstimo) e, por conseguinte, à

aberração que consiste em investir

contando unicamente com as riquezas

já adquiridas.

Essa situação demonstra a ausência

de uma política monetária ou de crédito

aberta às necessidades da população,

em um país no qual as autoridades

estão interessadas, sobretudo, nos

juros de quem vive dos rendimentos.

Ela explica também o surgimento

de substitutos do governo – ONGs,

comunidade internacional e… Deus!

– que supostamente assumem a

responsabilidade pelas necessidades da

população.

O círculo vicioso da economia haitiana

O imobilismo reinante mantém viva uma economia ultrapassada

que conserva o Haiti em uma pobreza na qual uma barreira

intransponível impede o progresso. Ao invés de esperar que Deus

venha em ajuda, os haitianos deveriam abolir o sistema de renda que benefi cia

apenas alguns e paralisa o país.

Por Gérald Chéry

O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0 . 2 7

São necessários dez anos de poupança no Haiti

para se começar a construir uma casa.

© Jocelyne Beroard

Page 28: Educação para todos: não estamos cumprindo nossas promessas

Sem crédito, não há salvação

O Haiti não poderá se recuperar sem

adotar uma economia baseada no crédito.

Com efeito, se as 200.000 famílias vítimas

do terremoto têm direito a uma moradia,

é indispensável colocar à sua disposição

um crédito imobiliário reembolsável em

15 ou 20 anos. Levando em conta que,

em geral, as famílias não dispõem da

entrada correspondente a 30% da soma

da aquisição, obrigatória por lei, sua

atividade profi ssional é que se torna a

garantia do crédito.

E se é concedido um crédito

imobiliário às vítimas do terremoto,

deve-se dar a mesma possibilidade a

toda a população. É imperativo que o

sistema de crédito seja generalizado

e acessível a todos, incluindo,

especialmente, as empresas que devem

se desenvolver para permitir às famílias

encontrar trabalho e pagar sua dívida.

O crédito deverá ser baseado, portanto,

no trabalho futuro das pessoas que

solicitam o empréstimo, ou seja, em suas

competências, o que implica que elas

deverão receber formação adaptada às

necessidades do mercado. O volume

global dos créditos e dos investimentos

dependerá, assim, da capacidade de a

mão de obra ser competitiva no mercado

mundial, e não da poupança ou da ajuda

externa.

A economia de crédito não é uma

questão de boa vontade dos dirigentes

ou dos indivíduos, mas constitui um fator

fundamental do sistema produtivo de uma

nação. Se o Estado não vier a estabelecer

uma política que conceda crédito aos

diferentes atores econômicos, o país

continuará a afundar nos problemas que

tem enfrentado desde sempre.

A reconstrução do Haiti só é possível se o

Estado assumir a gestão de uma economia

aberta às necessidades de todos os grupos

sociais e não de uma elite que vive de

rendimentos.

Como gerenciar os empréstimos e as

doações?

A extraordinária solidariedade

manifestada pela comunidade

internacional em relação ao Haiti se

traduz, principalmente, nas doações

e empréstimos que, antes de mais

nada, servirão para a reconstrução das

cidades. As empresas de construção vão

compartilhar tais fundos. Os doadores e

credores, por sua vez, fi carão satisfeitos se

o programa for executado com o menor

grau possível de corrupção.

Mas, salvo a renovação de Porto

Príncipe, o impacto dessa ajuda na

economia nacional será pequeno e

momentâneo caso seja feita a opção por

uma importação maciça dos materiais de

construção. Uma vez esgotado o dinheiro,

o Estado disporá de prédios, algumas

famílias terão moradia, e a maioria da

população será deixada ao abandono. A

economia baseada em rendimentos terá

atravessado um período de prosperidade,

mas os problemas de emprego e

de fi nanciamento da produção não

estarão resolvidos. A gestão nefasta das

catástrofes naturais dos últimos seis anos

é eloquente a esse respeito.

A fi m de se benefi ciar plenamente da

ajuda externa e de construir os alicerces

de uma nova economia, os dirigentes

do país deveriam defender, junto às

instituições internacionais, condições

para permitir que o Haiti deixe de

seguir, temporariamente, algumas

regras do comércio internacional.

Eles também deveriam incentivar, a

instalação de uma primeira leva de

indústrias associadas à construção

(usinas de aço e de cimento, materiais

elétricos) e à infraestrutura e mobiliário

das casas (eletrodomésticos, aparelhos

sanitários, artigos de decoração), setores

que não foram promovidos no passado

devido a pequena demanda. Além

disso, a formação deve ser enfatizada,

porque somente a mão de obra

qualifi cada e os produtos competitivos

irão permitir que o país pague sua

dívida externa.

Outras mudanças serão necessárias

para apoiar a reconstrução do Haiti: a

descentralização e o desenvolvimento

local; uma reforma da seguridade

social que motive os trabalhadores a

optarem por carreiras em uma empresa;

reformas da política fi nanceira que

permitam mobilizar os capitais internos;

facilitação de parcerias público-privadas

para estimular o desenvolvimento das

empresas e apoiar o Estado nos setores

da economia em que sua presença

é inefi caz; e reformas universitárias,

para formar um número maior de

profi ssionais capacitados e alimentar a

administração com novas ideias sobre a

mudança econômica e social. ■

Gérald Chéry, economista, é

membro da Comissão Nacional dos

Mercados Públicos do Haiti.

2 8 . O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0

Pai leva a fi lha nas costas durante inundação de sua casa na Cité Soleil, nas proximidades de Porto

Príncipe.

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Page 29: Educação para todos: não estamos cumprindo nossas promessas

A relação entre cultura e desenvol-

vimento é objeto de um debate que está

longe de ter chegado a uma conclusão.

Tentemos defi nir as duas noções. O que

se entende por cultura? Para retomar

as afi rmações do escritor franco-libanês

Amin Maalouf, o capital cultural de um

indivíduo ou de uma comunidade é

composto por uma dimensão vertical

– a herança dos nossos antepassados

e as tradições – e por uma dimensão

horizontal, moldada por nossa época

e por nossos contemporâneos. E o

que se entende por desenvolvimento?

De acordo com o Relatório sobre o

Desenvolvimento Humano - 2004 do

Programa das Nações Unidas para o

Desenvolvimento (PNUD), ele não se

reduz apenas a um nível de vida decente

e à liberdade política. A liberdade

cultural é agora reconhecida como um

direito humano e um elemento essencial

do desenvolvimento humano.

No entanto, não existe uma relação

nítida entre a cultura e o desenvolvimento.

Assiste-se, regularmente, ao aparecimento

de ondas de determinismo cultural que

atribuem os fracassos do crescimento e da

democratização às imperfeições inerentes

a características de natureza cultural.

Para combater essas teorias perversas, é

necessário levar em conta o fato de que a

cultura não é o único fator fundamental a

determinar nossa vida e nossa identidade:

o sexo, a classe, a profi ssão, a política, os

recursos humanos e materiais são outros

tantos elementos primordiais. E pelo

fato de estarem em constante evolução,

as culturas só podem determinar em

grau reduzido o desenvolvimento

futuro de uma sociedade. Em resumo,

não existe uma grande teoria cultural

do desenvolvimento. O povo e os

artistas haitianos possuem uma

formidável criatividade que é fonte

de magia, poesia, pinturas e música,

“permitindo analisar meticulosamente

a eternidade do desconhecido”,

para retomar a expressão do escritor

boliviano, Eduardo Scott Moreno.

Porém, de acordo com a fala que ele

coloca na boca de um intelectual

haitiano – herói de seu romance, La

doncella del Baron Cementerio [A criada

do Barão do Cemitério1] –, “apesar de

tudo isso, não vislumbro nenhum futuro

social e político”.

O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0 . 2 9

O determinismo cultural

é uma concepção

perigosa que atribui

a particularidades

culturais os fracassos

do crescimento e da

democratização. Para

se tornar um fator

de desenvolvimento

humano, a noção de

identidade cultural

deve, primeiro, ser

desmitifi cada

Cultura e desenvolvimento:

os dois lados da mesma moeda

Por Antonio Vigilante

O capital cultural e criativo

deve contar com medidas

que visem a fortalecer o

capital social dos indivíduos

Centro Nacional da Arte, em porto Príncipe,

após o terremoto de 12 de janeiro de 2010. © U

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Page 30: Educação para todos: não estamos cumprindo nossas promessas

Essa fl agrante contradição indica que,

por si só, a cultura não é forçosamente

um fator crucial de desenvolvimento,

sobretudo se for interpretada unicamente

como uma criatividade e uma expressão

artística individuais. No entanto, ela

pode representar um importante trunfo

capaz de fortalecer o capital social

indispensável para a reconstrução, se

for incentivada de maneira adequada,

especialmente pelas políticas públicas.

Outro cataclismo

O Haiti reúne todas as condições

de uma perfect storm2 em matéria

de desenvolvimento, cujas causas

essenciais são a alienação da população

e a falta de instituições legítimas em

funcionamento. A ausência de um

contrato social válido e legítimo entre o

Estado e o cidadão está no âmago dessa

crise estrutural. As recentes catástrofes

naturais acabaram agravando,

de maneira dramática, esse novo

cataclismo e os sofrimentos do povo

haitiano.

Há consenso, em geral, em

reconhecer que o Haiti necessita

mais do que uma reconstrução, mas,

sobretudo, de uma refundação. Para

enfrentar esse desafi o, é necessário

atribuir um lugar à identidade cultural,

evitando torná-la em um mito, porque

para alcançar essa mudança radical será

necessária a transformação signifi cativa

da liderança política, das capacidades de

natureza institucional e dos movimentos

sociais, bem como uma compreensão

compartilhada do que se constitui a

essência do desenvolvimento sustentável

que se aspira em âmbito nacional. O

capital cultural e criativo deve contar

com medidas que visem a fortalecer o

capital social dos indivíduos, ou seja, os

valores, os mecanismos, a confi ança e

as interações que permitam otimizar o

potencial de desenvolvimento do país.

O plano de ação para o

desenvolvimento nacional preparado

pelo governo aponta alguns

caminhos favoráveis, em particular

a descentralização, os polos de

desenvolvimento territoriais e os

investimentos na cultura. Certamente,

as pessoas que participaram de sua

elaboração tinham ainda em mente o

sofrimento da população, o desespero e

o sentimento de urgência. No entanto,

é impossível concretizar um projeto

concebido em um gabinete, como é o

caso desse plano.

A primeira tarefa dessa refundação

consiste, portanto, em formar uma

liderança política, no plano nacional,

capaz de descentralizar o poder para

que a população venha realmente a

participar da formulação das prioridades

locais e nacionais. Tal liderança deve

ser capaz de conceber sistemas de

execução e de responsabilidade

política e econômica, permitindo

que os haitianos se tornem atores

comprometidos, em vez de simples

“benefi ciários”.

Acredito que o Haiti está diante

da possibilidade de começar algo

completamente novo ao defi nir um

projeto, uma vocação econômica e

social em âmbito nacional, com a qual

todos os cidadãos possam se identifi car

e no âmago da qual sua cultura e

criatividade venham a constituir uma

das ferramentas fundamentais para

associar todos os aspectos da vida. ■

Antonio Vigilante (Itália) é Diretor

da Agência das Nações Unidas e do

Programa das Nações Unidas para

o Desenvolvimento (PNUD) em

Bruxelas (Bélgica). Foi coordenador

das Nações Unidas e representante

do PNUD no Egito, Bulgária e Bolívia.

Anteriormente, havia ocupado

diversos cargos no âmbito da ONU,

em Nova Yorque, Barbados, Etiópia,

Honduras e Bolívia.

1. O Barão do Cemitério é, juntamente com o Barão

da Cruz e o Barão do Sábado, um espírito da morte

no vodu. Cf. http://www.imagick.org.br/pagmag/

sistmag/voduvampiro.html

2. The Perfect Storm é o título de um romance do

norte-americano Sebastian Junger e do fi lme

que, a partir desse texto, foi dirigido pelo alemão

Wolfgang Petersen (em Portugal: A tempestade

perfeita – no Brasil: Mar em fúria). A expressão designa

uma combinação de circunstâncias que, de maneira

dramática, tornam uma situação ainda mais grave.

3 0 . O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0

Nos anos 1970, o Haiti

importava, no máximo,

10% dos gêneros

alimentícios necessários

à sua sobrevivência,

hoje este percentual

aumentou para 60%. O

Estado delegou às ONGs

o fornecimento de 80%

dos serviços públicos.

Onde está o erro

Quadro do pintor haitiano

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Page 31: Educação para todos: não estamos cumprindo nossas promessas

Bem antes que o terremoto de

magnitude 7.0 tivesse atingido o

Haiti, em 12 de janeiro de 2010, e

arrasado a cidade de Porto Príncipe

e seus arredores, a capital haitiana

já anunciava a catástrofe. Em1950, a

cidade contava com 150.000 habitantes;

esse número elevava-se a 732.000,

em 1982, e, entre dois e três milhões,

em 2008. O problema, no entanto,

residia na infraestrutura de Porto

Príncipe que não havia se desenvolvido

proporcionalmente a esse crescimento

demográfi co exponencial e o reduzido

número de serviços fornecidos eram

defi cientemente administrados ou

destinados, em particular, aos bairros e

subúrbios mais favorecidos. Resultado:

apenas 28% dos haitianos tinham

acesso aos cuidados de saúde, 54%

à água potável e 30% aos serviços

de saneamento básico O Estado

haitiano abandonou, há muito tempo,

suas responsabilidades em relação à

maioria de seus cidadãos, tanto nas

cidades quanto nas zonas rurais, tendo

delegado aos doadores bilaterais e

multilaterais, assim como às ONGs, o

fornecimento de serviços à população,

pelo menos, desde a era Duvalier [1957].

O Haiti é o país no qual se verifi ca a

intervenção do maior número de ONGs

em todo o mundo. Nas zonas rurais,

elas fornecem até 70% dos cuidados

de saúde e 80% dos serviços públicos.

Tal situação teve como consequência

o fortalecimento da displicência do

Estado e a privatização, praticamente

total, dos serviços básicos. Infelizmente,

essa realidade não registrou nenhuma

mudança com a passagem para a

democracia.

As estimativas elevam-se a um

número de 250 a 300.000 mortos,

vítimas do terremoto. De acordo com

a avaliação do Banco Interamericano

de Desenvolvimento (BID), o balanço

material do sismo atingirá entre US$

8 e 13 bilhões, o que transforma esta

catástrofe natural na mais onerosa da

história recente. Mais de 1,3 milhão de

pessoas encontraram-se na rua e, entre

elas, apenas 50 a 60% conseguiram

um abrigo de urgência. Os geólogos

haitianos tinham prevenido, há

vários anos, as autoridades quanto à

probabilidade de um terremoto; mas,

à semelhança do que tinha ocorrido

com os furacões e com as tempestades

tropicais (em 2004 e em 2008) que

haviam provocado imensas perdas de

vidas humanas e enormes prejuízos

materiais, nenhuma medida foi tomada

para prevenir tal eventualidade. O

Estado haitiano é, simplesmente,

incapaz de responder a uma crise dessa

amplitude (ou, até mesmo, de menor

importância) porque, em particular,

os dirigentes políticos tomaram

sempre providências de curto prazo,

dando prioridade aos interesses de

uma pequena parte dos cidadãos. Em

companhia da Bolívia, o Haiti é o país

do continente americano em que as

desigualdades de renda são as mais

revoltantes. Os 10% mais ricos da

população controlam 47% da renda

nacional e apenas 2% detêm 26% da

riqueza nacional. Por sua vez, os 20%

mais pobres dispõem apenas de 1,1%

da renda nacional, enquanto 76% da

população vive com menos de US$ 2 por

dia e mais de 50% com menos de 1 dólar.

Todavia, os dirigentes locais não

criaram sozinhos tais condições: eles

têm agido em estreita colaboração

com os governos e atores econômicos

internacionais que têm, há muito

tempo, interesses no Haiti – em

particular, os que estão associados

aos países desenvolvidos (Estados

Unidos, Canadá e França), além das

instituições fi nanceiras internacionais

(Banco Mundial, Fundo Monetário

Internacional e Banco Interamericano

de Desenvolvimento). Essas

organizações transformaram o

Haiti em um fornecedor de mão de

obra extremamente barata para os

investidores locais e estrangeiros da

indústria de montagem e, no plano

Os quatro pilares da reconstrução haitiana

O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0 . 3 1

Por Alex Dupuy

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Page 32: Educação para todos: não estamos cumprindo nossas promessas

(Post-Disaster Needs Assessment, em

inglês) que foi redigido com o apoio de

membros de agências internacionais e

de instituições fi nanceiras. Este Plano,

que avalia o custo da reconstrução em

US$ 11,5 bilhões, apresenta uma visão

a curto, médio e longo prazos que faz

apelo no sentido de descentralizar o

poder, a população e a indústria de

Porto Príncipe, além de investir vários

bilhões de dólares na infraestrutura, na

indústria da construção civil, no turismo,

na proteção do meio ambiente, nos

serviços do Estado e na agricultura.

Não há sombra de dúvida de que

a maior parte dessas recomendações

deverá ser levada em consideração,

se houver a pretensão de reerguer

a economia haitiana que foi

profundamente abalada. Mas,

considerando que o governo tem sido

incapaz de tomar medidas efi cazes, na

sequência das devastações causadas

pelos furacões e pelas tempestades

tropicais de 2008, é pouco provável que,

desta vez, sua atitude seja diferente,

tanto mais que seu mandato chega, em

breve, ao fi m. Além disso, a comunidade

internacional infl igiu um voto de

desconfi ança ao governo, insistindo

para que uma Comissão Interina

de Desenvolvimento e um Fundo

Fiduciário Multidoadores sejam criados

e administrados por um Comitê Diretor

composto por 17 membros com direito

a voto: oito representantes principais da

comunidade internacional de doadores

(Estados Unidos Canadá, França, Brasil,

União Europeia, Banco Interamericano

de Desenvolvimento, Banco Mundial e

Nações Unidas), de um representante da

do continente, em um dos principais

importadores de gêneros alimentícios

provenientes dos Estados Unidos.

Essa situação é o resultado de uma

série de políticas de “ajuste estrutural”

que consiste em manter os salários

baixos, eliminar todos os obstáculos ao

livre comércio, suprimir as restrições

alfandegárias e quantitativas em relação

às importações, oferecer aos industriais

incentivos fi scais sobre seus benefícios

e suas exportações, privatizar as

empresas públicas, reduzir o número de

funcionários no setor público e cortar

nas despesas sociais para diminuir os

défi cits orçamentários.

Ao mesmo tempo, a redução das

barreiras alfandegárias e quantitativas

sobre as importações alimentares,

implantada desde a década de

1980, implicava em prejuízos para a

agricultura. Nos anos 1970, o Haiti

importava, no máximo, 10% dos

gêneros alimentícios de que o país

tinha necessidade. Atualmente, essa

porcentagem eleva-se a cerca de

60%, sendo que 80% das receitas de

exportação são necessárias para o

pagamento dessas importações. O Haiti

– outrora, autossufi ciente na produção

de arroz, açúcar, aves de criação e

carne de porco – tornou-se o quarto

maior importador mundial de arroz

e, no Caribe, o primeiro importador

de gêneros alimentícios; ora, todos

esses produtos procedem dos Estados

Unidos. Portanto, a liberalização do

comércio traduziu-se, principalmente,

pela transferência de riqueza dos

agricultores haitianos para os

agricultores norte-americanos e para o

reduzido número de empresas do Haiti

que controlam as importações na área

alimentar. À medida que a economia

nacional afundava, o Haiti tornou-se

cada vez mais dependente das remessas

de fundos, enviadas pelos emigrantes

que, em 2008, representavam 20% do

PIB do País.

As pressões em favor da anulação

da dívida do Haiti, contraída junto aos

doadores bilaterais e multilaterais, têm

sido cada vez mais insistentes. Em 2009,

as instituições fi nanceiras internacionais

reduziram-na pela metade, ou seja,

US$ 1,2 bilhão; os Estados Unidos e

o FMI declararam que continuariam

trabalhando com os outros doadores

bilaterais e multilaterais para diminuí-la

ainda mais. No entanto, essas medidas,

por mais signifi cativas que sejam,

nada modifi cam nas políticas globais

dessas instituições, nem repararam,

absolutamente, os prejuízos que têm

causado à economia haitiana, no

decorrer dos últimos 40 anos.

O destino do Haiti, de novo, nas mãos

da comunidade internacional

Mas então, quais são as medidas

a tomar? Tendo sido previstas para

fevereiro e março de 2010, as eleições

parlamentares tiveram de ser adiadas;

o presidente Préval e Edmond Mulet,

novo chefe da Missão da ONU no Haiti,

renovaram a demanda no sentido de

que tais eleições sejam organizadas

no prazo mais breve possível. Por

sua vez, as eleições presidenciais

deveriam, igualmente, desenrolar-se em

novembro, mas, por enquanto, ainda

não foi fi xada a data para sua realização.

O governo publicou, recentemente, o

“Plano de Ação para a Reconstrução

e o Desenvolvimento Nacional do

Haiti”, conhecido sob a sigla PDNA

3 2 . O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0

Cena de Cap Haitien.

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Page 33: Educação para todos: não estamos cumprindo nossas promessas

Comunidade Caribenha (Caricom), de

um representante de outros doadores

fi nanceiros e de sete representantes

haitianos. Vê-se, portanto, que a

comunidade internacional irá dispor

de um voto majoritário no que é

apresentado como um plano haitiano

de desenvolvimento e de reconstrução.

Além disso, mesmo que o PDNA

permaneça impreciso sobre as

proposições políticas, especifi camente,

nos setores industriais e agrícolas, a

comunidade internacional já havia

chegado a um acordo sobre esses

aspectos, muito antes do terremoto.

Em 2009, o Secretário-geral das Nações

Unidas, Ban Ki-Moon, solicitou a Paul

Collier, ex-economista do Banco

Mundial, para formular um Plano

de Desenvolvimento para o Haiti,

tendo encarregado o ex-presidente

dos Estados Unidos, Bill Clinton, de

coordenar sua execução. De acordo

com uma apresentação semelhante à

do PDNA, o “Relatório de Collier” sugere

a descentralização dos investimentos,

a construção da malha rodoviária e

das telecomunicações, além de criar

agrupamentos de produção industrial e

agrícola em diferentes regiões do País.

Esta última recomendação consiste

essencialmente em estabelecer novas

zonas de livre comércio no setor do

têxtil (além das zonas já existentes em

Porto Príncipe e em Ouanaminthe),

assim como agrupamentos do mesmo

tipo para a produção e exportação de

certo número de produtos agrícolas.

Repensar integralmente o modelo

Em minha opinião, se o Haiti

deve ser reconstruído com uma base

diferente, de modo que as necessidades

e os interesses da maioria pobre do

País ocupem o primeiro plano, será

indispensável repensar o modelo que

foi transformado em doutrina pelas

grandes potências, tendo sido aceito

de forma subserviente pelos sucessivos

governos pusilânimes que exerceram o

poder no Haiti. As organizações rurais e

urbanas, nas diferentes regiões, assim

como diversos setores da sociedade

civil, que haviam sido sistematicamente

ignorados ou marginalizados na

formulação do Plano Ofi cial, já

refl etiram em um novo modelo. A

alternativa proposta pode ser resumida

em quatro grandes pontos:

1. Rejeição ou renegociação de todas

as diferentes versões de políticas

de ajuste estrutural propostas pelas

instituições fi nanceiras internacionais.

2. Lançamento de um projeto nacional

de obras públicas em grande escala

para reconstruir e desenvolver a

infraestrutura do Haiti, a rede de

telecomunicações, os transportes,

as escolas públicas, as instalações de

saúde pública e a moradia social.

3. Prioridade à segurança e à

soberania alimentares de Haiti ao

subvencionar a produção destinada

ao mercado local e ao favorecer o

desenvolvimento das pequenas

e médias empresas que utilizam

produtos haitianos a fi m de fabricar

bens de consumo para o mercado

nacional e, eventualmente, para a

exportação (por exemplo, a produção

artesanal).

4. Proteção dos direitos de todos os

trabalhadores, em particular, o direito

de formar sindicatos, o direito de

entabular negociações coletivas,

o direito de greve e o direito a um

salário de subsistência.

É evidente que esses objetivos não poderão

ser implantados simultaneamente ou

imediatamente; no entanto, devem servir

de base para que a população se mobilize

em massa a fi m de impelir o governo

a empenhar sua responsabilidade e a

renegociar as relações que o Haiti mantém

com a comunidade internacional. Convém,

igualmente, esperar que nas próximas

eleições, a população mobilizada não

coloque seu destino nas mãos de falsos

profetas. ■

Professor de Sociologia na

Universidade de Wesleyan (EUA),

Alex Dupuy é reputado por

suas pesquisas no campo do

desenvolvimento social, econômico

e político do Haiti e do Caribe.

Entre suas obras, podemos citar

os seguintes títulos: Haiti in the

World Economy: Class, Race, and

Underdevelopment Since 1700, 1989;

Haiti in the New World Order: The

Limits of the Democratic Revolution,

1997; The Prophet and Power: Jean-

Bertrand Aristide, the International

Community, and Haiti, 2007.

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Page 34: Educação para todos: não estamos cumprindo nossas promessas

EduInfo é o boletim eletrônico do setor de Educação. Ele coloca à disposição de seus usuários notícias, artigos e as mais recentes publicações da área. Para outras informações: http://www.unesco.org/fr/education/eduinfo-newsletter

3 4 . O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0

Dez dias após o terremoto, que matou 17

estudantes e funcionários, a Universidade

Quisqueya organizou um sistema de

voluntariado. Qual foi o procedimento adotado

nessa ocasião?

Em um primeiro momento, os estudantes de

medicina se instalaram em uma tenda, armada

em um estacionamento. Eles começaram a

ser supervisionados pelos professores e, em

seguida, por uma equipe de médicos eslovacos

que, tendo chegado com medicamentos e

equipamentos, procuravam um lugar para

exercer suas funções. Depois, os estudantes

implantaram uma clínica móvel. Mais tarde,

foram criados pontos de distribuição de água

potável. Os alunos de engenharia e de proteção

ambiental saíram para as ruas ajudando as

pessoas a se organizarem em comitês para

gerenciar os acampamentos improvisados.

Além disso, promoveram atividades de

zoneamento, saneamento básico e gestão do

lixo. A universidade tornou-se uma enorme

organização formada por voluntários!

Outras 11 tendas foram implantadas.

Os estudantes de ciências da educação

frequentaram cursos intensivos na área da ajuda

psicossocial e, quase imediatamente, saíram para

a rua, colocando em prática os conhecimentos

adquiridos. Em uma dessas tendas, foram criados

com o envolvimento dos estudantes ateliês de

arte-terapia, destinados a cerca de 150 crianças

por fi nal de semana. Nestas circunstâncias,

cheguei a afi rmar-lhes: “Agora, a universidade de

vocês é a rua”.

Durante os fi ns de semana, os estudantes

encontravam os professores a fi m de formalizar

a educação não-formal que haviam recebido

ao longo da semana ou para colocar a teoria na

Um novo modelo de educação surgiu das ruínas da Universidade Quisqueya, no

Haiti, inteiramente destruída pelo terremoto de 12 de janeiro de 2010. Baseado no

voluntariado, tal modelo, empreendido pelo reitor Jacky Lumarque, visa também o

desenvolvimento de parcerias. Abaixo, apresentamos extratos de sua entrevista a

respeito dessa iniciativa, concedida a Joan O’Sullivan (boletim EduInfo).

A universidade na rua

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Page 35: Educação para todos: não estamos cumprindo nossas promessas

prática. Estamos em via de elaborar um sistema

que permitirá recompensar seus esforços. Para

eles, essa experiência alterou o paradigma da

educação: eles tomaram consciência de que

ensinar não acontece em um único sentido e

que não necessariamente deve se dar entre

quatro paredes com um professor que sabe

tudo e apenas comunica seus conhecimentos.

Graças a essa iniciativa de voluntariado, os

conhecimentos são adquiridos na rua e o

professor acompanha o processo. Acabamos por

“desinstitucionalizar” os conhecimentos.

Os estudantes tiveram a possibilidade de

continuar sua aprendizagem?  

Uma das tendas foi conectada à internet e

chamada de “tenda digital”. Desse modo,

foram organizadas videoconferências com

universidades de Montreal (Canadá) e de Paris

para os estudantes cursando o mestrado.

Tentamos instaurar um sistema de cursos pela

internet de modo que os alunos que estavam

quase terminando o curso pudessem fazer os

exames.  

Qual é a próxima etapa?

Considerando que cerca de 400 a 500 estudantes

não conseguiram frequentar os cursos do segundo

semestre, que deveriam ter começado no fi nal

do mês de janeiro, propomos um curso básico,

mais geral, associado a cursos mais curtos (gestão

básica, logística, primeiros cuidados, prevenção

dos riscos, organização das comunidades etc.),

com duração de 15 semanas. O grande desafi o é

fazer a universidade funcionar de maneira regular,

instaurando um sistema de patrocínio mediante o

qual os doadores venham a contribuir com cerca

de US$ 200 mensais para cada estudante. Com

isso, eles podem pagar as despesas do dia-a dia

sem deixar de lado suas atividades voluntárias.

Essa ajuda deve cobrir também a taxa de inscrição

e contribuir para as despesas associadas ao

funcionamento e ao pessoal da universidade.

Temos realmente necessidade desse patrocínio

porque nosso estabelecimento é privado e não se

benefi cia com nenhuma subvenção do Estado.  

O terremoto alterou seu ponto de vista sobre

o que deve ser feito para reconstruir o sistema

educativo haitiano?  

Completamente. Diante do estado de devastação

do sistema educativo, redigi novas proposições

para um Pacto Educativo Nacional a ser entregue

ao governo haitiano. Atualmente, a questão

não é tanto “fazer com que os alunos voltem à

escola”, mas sobretudo proceder de modo que

todas as crianças haitianas possam frequentar a

escola, incluindo os 25% de crianças com idade

compreendida entre 5 e 11 anos fora da sala de

aula antes do terremoto. Sobre este assunto,

consultei um grande número de pais, professores,

estudantes e ONGs que trabalham na área. O

orçamento da educação representa, atualmente,

9% do PIB haitiano. Eu gostaria que ele viesse a

atingir o patamar dos 25%, em 2015, e dos 30%,

em 2025. O objetivo consistiria em alcançar

uma escolarização de 100%, com um ensino

totalmente gratuito, incluindo os livros didáticos

e o material escolar, além de uma refeição quente

diária para cada criança. Para que tal sistema

venha a funcionar, é indispensável uma formação

acelerada dos professores. Essas propostas são

ambiciosas, mas é impossível continuar com

um duplo sistema educativo: um, para os ricos e

outro para o resto da população. ■

Diplomado em matemática, Jacky Lumarque é, desde 2006, reitor

da Universidade Quisqueya, fundada em 1990 por professores

universitários em parceria com um grupo de empresas haitianas.

Ex-diretor da Capital Consult, empresa privada de assessoria

especializada em economia, fi nanças e gestão, ele preside atualmente

a Comissão Presidencial para a Educação do Haiti.

Jacky Lumarque visitou

com a diretora-geral Irina

Bokova (à sua esquerda)

o campus destruído da

Universidade Quisqueya

na qual ele é reitor.

« Agora, a universidade de

vocês é a rua ».

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3 6 . O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0

Desde Toussaint Louverture, em 1801, todos os

governos haitianos, com excepção do período

de Alexandre Pétion (1806-1818), instauraram

sempre uma instância política e administrativa

encarregada da educação. O artigo 19 da

Constituição de 1805, publicado pelo imperador

Jean Jacques Dessalines, havia transformado

a educação em uma política do Estado. O rei

Henry I, mais conhecido pelo nome de rei

Christophe – que tinha formado um governo

separatista no Norte do país (1807-1820),

enquanto o Sul estava nas mãos de Alexandre

Pétion – é considerado um vanguardista na área

da educação, incluindo o ensino superior, assim

como na prática das artes e ofícios.

De 1843 a 1987, todas as Constituições

afi rmam o direito de cada criança haitiana,

menino ou menina, de se benefi ciar de uma

educação bá-sica «gratuita e comum a todos

os cidadãos», como uma prioridade e uma

obrigação. Ora, o país nunca conseguiu implantar

um sistema educacional orientado para os

valores cardeais preconizados na Convenção

Relativa aos Direitos da Criança; e, muito antes de

12 de janeiro, já se fazia sentir a necessidade de

reformular o sistema educacional.

Em vez de ensinar o respeito pelos direitos

humanos e pelas liberdades fundamentais,

a escola haitiana acabou reproduzindo uma

sociedade baseada na desigualdade e na

injustiça, composta por indivíduos desprovidos

de consciência nacional que menosprezam

seus concidadãos, excluem e coisifi cam os

outros. Nosso sistema não conseguiu extirpar os

malefícios coloniais.

Portanto, deparamo-nos, atualmente, com

um país atrasado e que, em cada dia, se afunda

mais no analfabetismo e na pobreza.

Há 200 anos a educação se comporta melhor no

papel no Haiti. Na prática, ela patina e contribui

para a reprodução de uma sociedade baseada

na desigualdade e na injustiça. Uma nova

escolha ideológica se impõe.

Evitar que as mesmas

causas venham a produzir os

mesmos efeitosPor Jean Coulanges

Page 37: Educação para todos: não estamos cumprindo nossas promessas

partidárias, nem cálculos eleitoreiros, teremos de

estabelecer outros mecanismos de governança

ao reformar, por exemplo, o sistema de

inspetoria. Devemos tomar todas as disposições

para fazer respeitar, sem opinião preconcebida,

as medidas tomadas pelo Estado haitiano

no âmbito da implantação de um sistema de

educação, no plano nacional. Será necessário,

igualmente, rever os currículos existentes em

função das necessidades do trabalho produtivo,

das preocupações ambientais, além dos valores

da cidadania, e fornecer os recursos necessários

para a realização da reforma do ensino superior.

É imperioso proceder à instalação de infra-

estruturas adequadas e elaborar planos de

carreira que permitam aos professores ganhar a

vida com dignidade.

A reformulação do sistema educacional

haitiano deverá, portanto, favorecer a formação

do homem-cidadão-produtor capaz de

aprimorar permanentemente as condições físicas

do Haiti, além de criar riquezas materiais sem

deixar de contribuir para a plena manifestação

dos valores culturais, morais e espirituais do País.

O novo sistema educacional deverá ser capaz de

desenvolver a consciência nacional, o senso das

responsabilidades e o espírito comunitário de

modo que, em seu conteúdo, sejam integrados

os dados da realidade haitiana. ■

Uma situação catastrófi ca

Uma única escola normal superior, algumas

escolas normais de professores primários e

um único centro de formação para a escola

fundamental oferecem uma formação

inicial e contínua para todos os quadros do

sistema educacional. Em um total de 60.000

professores, somente 10,64% dispõem de uma

qualifi cação no nível da escola fundamental.

Alguns profi ssionais de outros setores são

contratados como professores, sem formação

prévia em matéria de pedagogia; pior ainda,

alguns professores não têm nenhuma formação

superior. Mas, até mesmo no caso de possuírem

uma qualifi cação, eles são incapazes de

garantir um bom desempenho quando estão

encarregados de um número superior a 40 horas

de aulas por semana.

As instalações escolares deterioradas, ou

construídas fora das normas, exercem também

infl uência sobre a qualidade da educação.

No que diz respeito ao acesso à escola primá-

ria, é impossível falar de gratuidade porque cerca

de 82% dos estabelecimentos pertencem ao setor

privado (de acordo com o censo escolar de 2003).

O ensino secundário espera uma reforma,

desde 1980, e praticamente nenhum estudo

foi feito sobre esse tema. Por sua vez, o projeto

de reforma do ensino superior em geral, e da

Universidade de Estado do Haiti em particular,

arrasta-se desde 1997. Além das dissertações

dos estudantes, o número de pesquisas e de

publicações é bastante reduzido.

Como foi possível chegar a essa situação?

A ausência de visão é a razão fundamental. O

Estado, continuamente manipulado por uma

oligarquia retrógrada, sem grandes ambições,

aloca recursos precários ao setor educacional; a

esse aspecto, acrescente-se um sério problema

de governança e de corrupção. O controle real

do sistema escapa ao ministério da Educação

de modo que alguns projetos não chegam a ser

implantados.

A instabilidade política gera, também, efeitos

nefastos sobre a evolução da educação. Os

ministros dispõem de um tempo reduzido para

conceber, elaborar e instalar corretamente uma

política nacional relativa à educação. No decorrer

dos últimos 162 anos, registra-se o número de

216 ministros da Educação, ou seja, uma média

de cerca de 9,4 meses de exercício por pessoa; tal

situação engendra a impossibilidade quase total

de continuidade de ação no setor.

Uma nova escolha ideológica

Como reformular esse sistema de modo a

evitar que as mesmas causas venham a produzir

os mesmos efeitos? Fundamentalmente, temos

necessidade de uma nova escolha ideológica

que considere a educação de qualidade como

a passagem obrigatória para uma sociedade

mais desenvolvida. Sem considerações político-

Cena de carnaval em

Jacmel.

Página anterior: Criança

sonhando em ir à escola

em um bairro popular

de Bel Air. Porto Príncipe,

1982.

O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0 . 3 7

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Jean Coulanges é Secretário Geral da Comissão

Nacional Haitiana de Cooperação com a UNESCO.

As comissões nacionais, órgãos consultivos,

de ligação e de informação, mobilizam e

coordenam as parcerias com a sociedade civil,

contribuindo assim para a realização dos

objetivos da UNESCO. O Haiti, que juntou-se

à Organização em 18 de novembro de 1946, é

um de seus estados membros mais antigos.

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3 8 . O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0

Com uma pá redonda nas mãos, Jean Sprumont

se agita em largos golpes nervosos. Ao fi m de

alguns minutos, uma cratera de cimento, areia

e água se formam no pátio lotado de peneiras e

formas para trabalhos em concreto. Mostrando

a massa acinzentada, Jean Sprumont dirige-se

em crioulo aos cerca de 15 pedreiros haitianos

que participam da capacitação sobre métodos

antiterremoto:

« Sa se béton kalité. Kalité do kibon pouli é

lyben brasé » (Este é um bom concreto. Tem uma

boa quantidade de água e está bem misturado).

Jean Sprumont não é um capacitador como

os outros. O responsável pelo projeto belga vive

há 44 anos no Haiti. Estava presente em Porto

Príncipe no 12 de janeiro de 2009 e viu imóveis

inteiros desabarem em poucos segundos. “Essa

cidade foi construída com a completa ilusão de

concreto, comenta ele com amargura. Vimos

o resultado trágico”. E continua: “Foram as

construções que mataram as pessoas. Uma

enorme quantidade de água e a presença de

argila e lodo dentro do concreto são as causas da

queda de mais da metade de prédios de Porto

Príncipe quando aconteceu o tremor de terra” .

Para tentar remediar os costumes de

construção que conduziram à amplifi car a

catástrofe, o atelier-escola de Camp-Perrin,

situado no Sudoeste do pais, estabeleceu

em parceria com a UNESCO uma capacitação

intensiva de 10 dias para os pedreiros, mestres de

obras e comerciantes de sucata haitianos. “ É uma

boa capacitação, explica Herbert Montuma, que

Construir de acordo com métodos antiterremoto

é o objetivo do projeto de capacitação de

pedreiros iniciado com o apoio da UNESCO em

março de 2010, em Camp-Perrin, no Sudoeste do

Haiti. Cerca de 500 pedreiros Serão capacitados

em técnicas que permitirão salvar muitas vidas

em caso de terremoto.

Capacitação traz contribuição concreta para a reconstrução

Por Mehdi Benchelah, jornalista franco-algeriano

UNESCOem ação

Page 39: Educação para todos: não estamos cumprindo nossas promessas

dirige o atelier escola de Camp-Perrin, mesmo

não sendo em 10 dias que se pode aprender tudo

sobre construção antiterremoto”.

Michel Raoul, de 40 anos, natural de

Camp-Perrin, está fazendo a capacitação e está

convencido que ela permitirá evitar erros que

foram cometidos no passado. “ Mas o problema

é normalmente do proprietário” , acrescenta

ele depois de uma breve hesitação. “Ele nos diz

‘me proteja do cimento’ (não gaste muito com

o cimento), então, fazendo assim, ao invés de o

proteger isso pode causar a sua morte”.

Essa é a razão pela qual “além das técnicas

que estamos ensinando aos pedreiros, trata-se

de fazê-los ter consciência que quando eles são

chamados a um canteiro de obras, eles têm o

dever de fazer as coisas com profi ssionalismo e

ética”, explica Herbert Montuma.

O seminário começará em breve a sua terceira

turma de pedreiros (com 10 a 15 pessoas por

sessão de capacitação). A longo prazo, cerca de

500 pedreiros serão capacitados com técnicas

que permitirão salvar várias vidas em caso de

terremoto. Para multiplicar o numero de pessoas

formadas e permitir uma maior transmissão de

conhecimentos, os melhores capacitados de

cada turma serão encorajados a tornarem-se eles

mesmos capacitadores.

Em seguida ao seminário, uma publicação

em francês e em crioulo, contendo explicações

ilustradas por diagramas, será editada e

distribuída aos profi ssionais da construção no

país. ■

Três meses após o terremoto

que gerou centenas de

milhares de vítimas, em 12 de

janeiro de 2010, os alunos de

Porto Príncipe começaram a

voltar às aulas.

Com o apoio da UNESCO, o Ministério da

Educação Nacional e da Formação Profi ssional do

Haiti defi niu um programa especial a fi m de levar

em conta os traumas e distúrbios que atingiram

tanto as crianças quanto os professores.

O programa, implementado a partir de um

seminário realizado nos dias 25 e 26 de março,

será destinado aos 600.000 alunos dos níveis

fundamental e médio. “Trata-se de priorizar,

particularmente, os objetivos essenciais”, explica

Jackson Pleteau, diretor de Ensino Médio do

ministério. “Nesse sentido, defi nimos uma base

mínima de conhecimentos que devem ser

adquiridos pelas crianças para passar de uma série

para a outra. Estamos considerando, também,

introduzir algumas partes do conteúdo no

próximo ano, em uma série superior.”

Em virtude desse novo programa, a educação

será retomada por etapas, começando por

atividades “psicossociais”, tais como o canto,

a dança e a expressão criativa, para ajudar as

crianças a lidar com a extrema tensão da qual

foram vítimas em decorrência do terremoto. Elas

receberão um esclarecimento mais aprofundado

sobre o fenômeno, antes de retomar, mais tarde,

a aprendizagem tradicional. O ministério prevê

um programa condensado em 18 semanas para

validar o ano letivo que vai terminar em agosto. A

UNESCO providenciará o acesso livre ao programa,

via Internet, a fi m de que ele esteja disponível para

todos os professores no Haiti.

Essa volta às aulas, entretanto, refere-se a um

número limitado de estabelecimentos de ensino e

apenas poucas crianças retomaram o caminho da

escola.

Considerando que a maior parte dos

estabelecimentos fi caram em ruínas, ainda são

necessárias grandes obras de desentulho, além

da instalação de tendas para acolher os alunos

Programa escolar de emergência

Em todo o país, o

terremoto matou

aproximadamente

38.000 alunos

e estudantes,

assim como 1.300

professores e

profi ssionais da

educação. O prédio

do Ministério da

Educação Nacional

foi destruído, e

também cerca de

4.000 escolas –

cerca de 80% dos

estabelecimentos

de ensino da região

de Porto Príncipe.

O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0 . 3 9

Desentulho do bairro

Carrefour-Feuilles em

Porto Príncipe.

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Page 40: Educação para todos: não estamos cumprindo nossas promessas

4 0 . O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0

com toda a segurança. Esse é o caso da Escola

Mista Thérèse-Rouchon, no bairro de Turgeau,

que fi cou completamente destruída: no meio

dos escombros, é possível distinguir bancos de

madeira, cadernos, cópias de testes escolares e um

quadro negro no qual ainda está escrita a última

aula, dada algumas horas antes da tragédia.

Outras escolas foram benefi ciadas com uma

primeira operação de desentulho que permitiu

a recuperação de um mínimo de espaço vital,

como a Instituição de Sainte-Marie-des-Anges,

localizada no elegante bairro de Paco. O prédio

dos meninos fi cou completamente destruído. Já o

antigo edifício de tijolos, que abrigava a escola das

meninas, foi inutilizado devido às rachaduras e aos

buracos na fachada.

Para acolher os alunos no primeiro dia de escola,

o diretor, pastor Franck Petit, mandou construir um

grande galpão sob o qual foram instaladas as salas

de aulas, separadas por painéis de madeira. No

entanto, o diretor reconhece que foi difícil organizar

esse retorno: “As crianças tiveram reações diferentes.

Algumas estavam em prantos e não queriam

entrar porque tinham receio de morrer debaixo do

concreto. Foi necessário ter paciência para explicar-

lhes que as salas de aula eram de madeira. Enquanto

hasteávamos a bandeira, nessa manhã, várias

crianças choravam, talvez, a morte de um parente,

mãe, irmã... a gente não sabe. É uma situação

bastante difícil, tanto para os alunos quanto para os

professores.”

Em todo o país, o terremoto matou

aproximadamente 38.000 alunos e estudantes,

assim como 1.300 professores e profi ssionais da

educação. O prédio do Ministério da Educação

Nacional foi destruído, e também cerca de 4.000

escolas – cerca de 80% dos estabelecimentos de

ensino da região de Porto Príncipe. ■

Apoio psicossocial

Superar o trauma do terremoto e tratar

de recobrar confi ança no futuro: esses

são os objetivos de uma capacitação de

três dias organizada sob os auspícios do

Ministério da Educação Nacional haitiano

e da UNESCO voltada para o quadro de

professores do secundário no Haiti. Os

capacitados serão encarregados de formar

os demais professores para que, por sua vez,

os alunos sejam benefi ciados.

Esse tipo de apoio chamado “psicossocial”

visa a prevenir e aliviar as seqüelas morais

em seguida de catástrofes ou eventos

violentos. O conceito usa técnicas de

animação, de jogos e de trocas entre os

alunos e seus professores.

O seminário contou com a participação

de cerca de 40 inspetores, diretores de

escola e professores. A capacitação também

incluiu ensinamentos sobre fenômenos

relacionados a terremotos, a prevenção de

riscos e técnicas de sobrevivência.

A parte destinada à UNESCO contou

com a participação da Universidade

Quisqueya de Porto Príncipe. Trata-se da

primeira capacitação psicossocial destinada

a jovens do secundário.

O conjunto de alunos do secundário

do Departamento do Oeste abrangendo a

região de Porto Príncipe - cerca de 110.000

adolescentes – serão benefi ciados por

esse programa de apoio que será, a longo

prazo, estendido ao conjunto do território

nacional.

Divertimento para

combater os traumas.

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Page 41: Educação para todos: não estamos cumprindo nossas promessas

Quando o Haiti se tornou membro da UNESCO

– aliás, um dos primeiros Estados a aderir à

Organização –, o país apresentava uma taxa de

analfabetismo superior a 80%, superando até

mesmo os 90% em determinadas regiões. Tal

situação signifi cava uma população não somente

incapaz de ler e escrever, mas também ignorante

dos princípios científi cos mais elementares em

matéria de agricultura, preservação dos recursos

naturais e de higiene. Jean Dumarsais Estimé,

presidente da República na época, solicitou a ajuda

da UNESCO para elevar o nível de instrução dos

haitianos. Julian Huxley, primeiro Director Geral

da UNESCO, acabava de declarar que o acesso à

educação básica era uma condição essencial para

“a ampliação e o aprofundamento da compreensão

entre os homens, ou seja, a missão própria da

UNESCO”. A demanda foi aceita e, a partir de 1947,

a UNESCO implementou “uma experiência-piloto” de

educação fundamental, aliás, a primeira desse tipo.

Em abril de 1948, uma equipe sob a direção

do antropólogo, de origem suíça, Alfred Métraux,

O primeiro projeto piloto

de educação básica da

UNESCO no Haiti foi

implantado no distrito

rural de Marbial, no Vale de

Gosseline, ao Sul do País.

Kêbé l’Inesko Fò !Por Julia Pohle, com base em documentos dos Arquivos da UNESCO

O Haiti esteve entre os primeiros Estados a aderir à UNESCO, em

18 de novembro de 1946. Imediatamente depois, a Organização

implantou nesse país seu primeiro projeto-piloto de educação

básica, visando reduzir o analfabetismo. O projeto chegou quase a

ser abandonado, mas foi salvo pela população local.

O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0 . 4 1

Arquivos da UNESCO

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Page 42: Educação para todos: não estamos cumprindo nossas promessas

4 2 . O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0

foi enviada pela UNESCO para proceder a uma

sondagem no Haiti. O local escolhido pelo governo

haitiano para o novo projeto-piloto foi o distrito

rural de Marbial, no Vale de Gosseline, na região

Sul do país. A população do Vale foi avaliada, nessa

época, em cerca de 30.000 habitantes, dispersos

em cabanas fabricadas na encosta da montanha. A

equipe descobriu aí condições de vida desumanas:

o Vale era superpovoado, e os camponeses,

analfabetos, sobreviviam com grande difi culdade

de colheitas precárias penosamente obtidas de

uma terra devastada pela erosão, além de serem

vítimas de doenças tropicais, sobretudo, da malária.

Devido às doenças e por terem de andar, em geral,

duas horas para chegar à escola, menos de 500

alunos foram inscritos nos três estabelecimentos

que funcionavam no Vale, e somente a metade

deles frequentava com regularidade a sala de aula.

Acrescente-se ainda a temível barreira

linguística: o idioma ofi cial era o francês, mas os

habitantes de Marbial falavam apenas o crioulo.

Por conseguinte, não existiam compêndios

nesta língua, dividida entre quatro registros

diferentes. Os professores tinham à sua disposição

apenas compêndios de francês, editados há 50

anos; e ainda assim, eles obrigavam os alunos a

aprender trechos de cor sem que eles os tivessem

compreendido. Para atenuar tal diferenciação

linguística, a UNESCO fez apelo a Robert Hall,

professor e investigador norte-americano,

especialista do crioulo. A partir da sua chegada

no Haiti, Hall elaborou um alfabeto que permitiu

redigir compêndios de leitura em crioulo.

Desanimado pela aspereza da vida no Vale

e pela desolação dos camponeses de Marbial,

foi enviada pela UNESCO parra proceder a uma

Artigo sobre o projeto de

Marbial, publicado em

junho de 1949 no Correio

da UNESCO.

Foto de trás : Cena do

mercado de Marbial.

Page 43: Educação para todos: não estamos cumprindo nossas promessas

Alfred Métraux retornou à sede da UNESCO

profundamente pessimista sobre o futuro do

projeto. No entanto, quando Frederick Rex,

especialista norte-americano da educação básica,

enviado para o local, alguns meses mais tarde,

julga que o empreendimento era impraticável e

recomenda à UNESCO o abandono do projeto,

Métraux se rebela. Ele escreve para a UNESCO:

“É impossível para nós deixarmos o Haiti [...] Não

podemos abandonar essas pessoas desvalidas, pois

lhes retiraremos toda a coragem [...] Os resultados

obtidos na área da educação fi cariam sem efeito.

Tal atitude provocaria um desastre completo [...]

a experiência-piloto da UNESCO merece que lhe

dediquemos toda a nossa energia.”

Neste momento é que se verifi ca a mobilização

dos camponeses de Marbial ao fi carem

sabendo que estavam sob a ameaça de serem

abandonados. Agitando grandes bandeirolas nas

quais era possível ler – “Kêbé l’Inesko Fò!” que,

em crioulo, signifi ca: “Apoiem a UNESCO com

todas as suas forças” –, eles decidem arregaçar as

mangas. No espaço de alguns meses, reunidos em

cooperativas, eles alargam o caminho que leva à

única aldeia, constroem um Centro UNESCO e um

centro comunitário para romper seu isolamento.

Eles escavam latrinas e um poço de água potável

para eliminar uma das causas mais perigosas de

doença. O mercado de Marbial é reconstruído em

um terreno mais elevado, além de mais seco, com

um pequeno matadouro ao ar livre.

No plano educativo, esses primeiros anos

registraram progressos notáveis: foi implantado um

programa alimentar de urgência que, por semana,

servia o almoço a 400 alunos. Em setembro de

1948, o Vale contava com dez centros de instrução,

nos quais jovens e idosos podiam aprender a

ler e escrever em crioulo. Logo em seguida, por

iniciativa de membros das cooperativas, nasce um

jornal local de duas páginas, inteiramente escrito à

mão e ilustrado com desenhos simples.

Apesar de todos esses esforços da população,

a UNESCO teve de enfrentar um sério desafi o:

além de elevar o nível social e econômico da

comunidade pela instrução, ela deveria formar

professores e agentes de intervenção haitianos

para garantir o mais depressa possível a

autossufi ciência do projeto. Bem cedo tornou-se

evidente que qualquer progresso no Vale estaria

dependente da melhoria da agricultura.

Conrad G. Opper, nomeado Director do projeto

em 1950, pediu que a Organização das Nações

Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO)

se associasse à UNESCO. Ele escreveu o seguinte:

“Não há a menor dúvida de que, sem estar baseado

na valorização do solo, qualquer programa de

educação popular no Vale de Marbial será utópico

e voltado ao fracasso”. A Organização Mundial da

Saúde (OMS), igualmente, se associa ao projeto e

envia um médico e uma enfermeira. Ela contribuirá

também para a criação de uma clínica que se

tornará a primeira clínica do Vale.

No decorrer desses avanços – nem sempre

espetaculares, no entanto, reais e constantes –,

Conrad G. Opper e sua equipe fi zeram questão

de ocupar uma posição de segundo plano a fi m

de permitir que o projeto fi casse nas mãos dos

camponeses a quem ele deveria socorrer. Tal

política foi tão bem-sucedida que, em agosto

de 1950, os habitantes de Marbial formaram um

Comitê Regional de Pessoas Eruditas, encarregado

de aconselhar os funcionários da UNESCO. Essa

experiência tinha reunido várias agências da ONU

em um esforço comum para ajudar os camponeses

de Marbial a viver uma vida melhor, mas seu

sucesso apoiou-se, em primeiro lugar e sobretudo,

no povo haitiano. ■

Julia Pohle é funcionária dos Arquivos da

UNESCO.

(www.unesco.org/archives/fre/index.html)

O projeto-piloto do Vale de Marbial é apenas um exemplo, entre outros, da

ação empreendida pela UNESCO no Haiti na área da educação, cultura,

ciência e comunicação. Como se vê, essa iniciativa inicial e o apoio da

UNESCO neste início do século XXI estão em perfeita continuidade. Os

documentos, as publicações e a correspondência trocada por ocasião da

implementação do projeto no Vale de Marbial, assim como tudo o que se

refere à ação da UNESCO no Haiti, podem ser consultados nos Arquivos da

UNESCO. Contato: [email protected]  

Para saber mais:

« Éducation de base: l’expérience-témoin d’Haïti »,

Le nouveau Courrier, n° 2, UNESCO, abril 2003.

Mende (Tibor), « Marbial n’est plus la vallée

oubliée », Le Courrier de l’UNESCO, n° V, 1,

UNESCO, 1952.

L’expérience-témoin d’Haïti : première phase,

1947-1949, UNESCO, 1951 (contém o Acordo

assinado entre o governo haitiano e a UNESCO).

« Les leçons de l’expérience-témoin d’éducation

de base de l’UNESCO en Haïti », Le Courrier de

l’UNESCO, n° III, 12, UNESCO, 1951.

Jean François (Emmanuel) : Service de

l’expérience-témoin d’éducation de base de

Marbial : Haïti – Relatórios mensais, UNESCO,

1950-1951.

« En Haïti, histoire d’une expérience-témoin », Le

Courrier de l’UNESCO, suplemento, n° II, 5, UNESCO,

1949.

« Une vallée qui renaît : voici comment les

paysans de Marbial ont contribué au succès de

l’expérience d’Haïti », Le Courrier de l’UNESCO,

suplemento, n° II, 5, UNESCO, 1949.

Arquivos da UNESCO

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Page 44: Educação para todos: não estamos cumprindo nossas promessas

O senhor começou a vida de adulto e

de poeta respaldando-se no que veio a

designar, mais tarde, como “um triplo

credo contestatório”: uma negritude

ativa, o panfl eto surrealista e a ideia de

revolução. Parece que, atualmente, o

único elemento desse credo ainda em

vigor é a vertente surrealista.

Trata-se efetivamente de uma longa

história. No fi nal de 1945, André Breton

esteve no Haiti. Acontece que sua

visita coincidiu com uma exposição

do pintor Wifredo Lam e com uma

série de conferências proferidas por

Aimé Césaire – motivos sufi cientes

para infl amar a imaginação dos jovens

artistas e escritores haitianos! Nessa

época, não estávamos a par das

peripécias do movimento surrealista

na França. Para a juventude revoltada

contra a ditadura grotesca de Élie

Lescot, o surrealismo encarnava,

sobretudo, o espírito de rebelião. A

comunicação com Breton revelou-se

“contagiosa”. Na sequência de sua

primeira conferência, em uma sala de

cinema de Porto Príncipe, o diário La

Ruche (A Colmeia), que acabávamos de

fundar, publicou um número especial

em sua homenagem. Em decorrência

dessa iniciativa, fomos presos e o jornal

foi proibido.

O que Breton descobriu – e nos levou a

descobrir – no Haiti é que o surrealismo

não era somente uma doutrina estética,

mas podia ser um componente do

imaginário dos povos, e que existia um

surrealismo popular. Tal descoberta

acabou por gerar novamente confi ança

em nós mesmos. Vimos que esse

sentido do maravilhoso, que nos

suscitava secretamente certa vergonha

e era associado a uma espécie de

subdesenvolvimento, era, ao contrário,

Arquivos da UNESCO

René Depestre : entre utopia e realidadeNesta entrevista, publicada no Correio da UNESCO em dezembro de 1997, o escritor

franco-haitiano René Depestre faz um balanço de sua trajetória, respondendo às

perguntas de Jasmina Šopova. Ele volta a afi rmar sua rejeição a qualquer ideologia

totalitária e sua adesão a um civismo planetário baseado na solidariedade e no

respeito mútuo.

nossa arma. Breton nos disse: “lançamos

o surrealismo a partir de noções eruditas,

enquanto vocês o receberam no berço.” Isso

equivalia a afi rmar que o surrealismo é

algo de inato no Caribe. O vodu, oriundo

de um sincretismo franco-africano, é um

exemplo de surrealismo religioso. O

comportamento dos deuses vodus é

eminentemente surrealista.

O surrealismo mencionado pelo

senhor supera amplamente, portanto,

o quadro de um movimento literário ?

É isso mesmo. Muitos escritores

europeus, a partir do romantismo

alemão – e até mesmo anteriormente

– haviam adotado procedimentos

surrealistas. Estou certo de que, se

prestássemos a devida atenção à

cultura egípcia, japonesa ou chinesa,

descobriríamos igualmente aspectos

surrealistas. Para mim, o surrealismo é

uma forma de introduzir o maravilhoso

4 4 . O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0

René Depestre, na

UNESCO, em 2006,

por ocasião do

Cinquentenário do

Primeiro Congresso

Internacional de Escritores

e Artistas Negros

organizado em Paris © U

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Page 45: Educação para todos: não estamos cumprindo nossas promessas

no cotidiano. Ele existe, portanto, em toda a

parte. Mas alguns povos, tais como o haitiano

ou o brasileiro, conseguem manifestá-lo

com mais audácia do que outros.

Como o senhor explica a emergência

dos Duvalier em uma sociedade

impregnada pelo maravilhoso?

O maravilhoso marcou, inclusive, a

política haitiana. Na história deste

país, existem comportamentos de

ditadores relacionados a uma espécie

de desvio do maravilhoso. Um deslize

trágico. O tonton macoute, que é uma

noção folclórica – uma encarnação

do mal, uma criatura nazista, uma

espécie “de SS haitiano” –, tornou-se

assim realidade. O folclore haitiano é

permeado por um antagonismo entre

as forças do bem e as forças do mal. E

Duvalier pai apoiou-se nas forças da

magia negra para mergulhar o país em

uma situação de surrealismo totalitário.

Mas não existe apenas este aspecto

demoníaco. Desde aquela manhã de

dezembro de 1492 em que Cristovão

Colombo fi cou tomado pelo fascínio

ao descobrir a ilha, a aventura histórica

barroca do Haiti é indissociável do real

maravilhoso americano. O sentido do

maravilhoso (ou realismo fantástico

sul-americano) tornou-se um elemento

constitutivo da sensibilidade haitiana

e o provedor por excelência deste um

terço da ilha, onde o melhor e o pior

andam juntos com uma familiaridade

impressionante, quando não se

enfrentam com rara ferocidade.

Em seus poemas, o senhor tem

celebrado a utopia comunista.

Confesso que a sobrecarga de mentira e

de pesadelo policial da utopia marxista

chegou a ser predominante nos meus

trabalhos e nos meus dias de poeta até

o momento da minha ruptura com o

stalinismo. Tendo vivido em lugares que,

na tumultuada história do século XX,

tinham assumido um valor “estratégico”

considerável (Moscou, Praga, Pequim,

Hanoi, Havana), entendi que a forma de

compreender a “revolução socialista” 

nessas paragens não era o oposto do

regime de terror haitiano, mas uma

outra forma do mesmo desvio. Em

vez de fazer prosperar a herança dos

direitos do homem e do cidadão, a

“revolução” havia profanado, nesses

países, a autonomia da mulher e do

homem: à custa da população, ela

acabou afundando na mais fantástica

deturpação de ideal e de sonho registrada

em toda a história dos homens.

O que se tornou sua “ideia de revolução”

que, aliás, o conduziu do Haiti para a

Europa e, em seguida, para Cuba?

Vivi intensamente a ideia de revolução.

Ela tinha se tornado, em mim, uma

espécie de disposição natural, como

respirar, andar ou nadar. E por pouco não

deturpou para sempre minha integridade

de cidadão e de escritor. A ideia de

revolução empobreceu gravemente a

dinâmica de poesia e de ternura que,

aos 20 anos, me levava a imaginar

meus trabalhos como um estado de

encantamento e de compaixão com o

mundo. Ela transformou meu percurso

literário no trajeto de um escritor

submerso em mudança repentina de

perspectivas psicológicas e intelectuais,

em bruscas reviravoltas existenciais,

em uma espécie de acervo desconexo

de incertezas e de inconsequências,

extraviado na fúria das correntes de

ideias e de paixões do século. As ilhas do

tesouro inventadas pelas utopias e pelas

mitologias da revolução esvaíram-se

com o grande sonho dos anos de nossa

juventude: unir a ideia de transformar

o mundo (Karl Marx) com a ideia de

modifi car a vida (Arthur Rimbaud).

A palavra “utopia” empregada em

um contexto marxista é utilizada pelo

senhor com uma conotação pejorativa.

Será que o mundo não tem necessidade

de utopias?

Octavio Paz defi niu as utopias como “os

sonhos da razão”; ora, estamos saindo

precisamente de um prodigioso pesadelo

da razão. O século XIX, época crítica por

excelência, foi o gerador direto da utopia

revolucionária. Mas, o sonho – afi nal

de contas, legítimo – dos fi lósofos do

passado não se transformou na reforma

decisiva da condição humana como

eles esperavam, nem em progressos

sem precedentes de nossa espécie. As

aspirações generosas do pensamento

crítico impuseram à nossa época, sob

a falsa identidade do “socialismo real”,

um absolutismo que ainda não havia

ocorrido anteriormente.

Com essa afi rmação, não estou

menosprezando a utopia como tal. Nessa

etapa da minha vida em que a idade

avançada me dá o sentimento de que

me resta pouco tempo à minha frente e

de que devo me apressar em exprimir as

coisas que guardei, durante toda a vida,

no meu foro íntimo, com a esperança

de poder manifestá-las com elegância e

maturidade, não faço de forma alguma

uma crítica do meu percurso de nômade.

Ora, qualquer autocrítica culmina na

utopia. No entanto, como um gato

escaldado, desconfi o profundamente de

um conceito histórico que acabou sendo

aviltado pelas revoluções do século XX.

No lugar da noção de realpolitik que está

na origem da maior parte dos infortúnios

dos indivíduos e das sociedades – e

ainda usufrui de uma extraordinária

vitalidade entre os dirigentes de Estados

– proponho a noção de realutopia.

O senhor pode nos explicar esta noção?

Designo por realutopia a noção estética

que me permite integrar, em um todo

único, as diversas componentes de minha

crioulidade de escritor franco-haitiano.

Na medicina e na fi siologia, fala-se de

sinergia para indicar a conjunção de

vários fatores que contribuem para uma

função única e para um efeito global.

A ideia de realutopia me conduz a uma

O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0 . 4 5

Desfi le de « tontons macoutes », na cidade de Kenscoff , em 1984.

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Page 46: Educação para todos: não estamos cumprindo nossas promessas

civismo planetário e da moral da

solidariedade, que permitiriam a partilha

democrática de certo número de valores

e de conhecimentos adquiridos que já

constituem os bens em comum da aldeia

global.

Quem estaria em condições de

promover esse civismo planetário?

Na primeira fi la desses valores comuns

às culturas do planeta, vejo a imaginação

audaciosa dos poetas e dos escritores.

Nossos trabalhos, de acordo com a

identidade estritamente estética que

lhes é específi ca, deveriam ajudar os

cientistas e os políticos a reorientar

nosso velho sentido do bem e do mal,

a renovar o sentido do sagrado que

anda desorientado em várias regiões do

mundo, além de promover uma relação

mais balanceada entre o Norte e o Sul,

o Oeste e o Leste, de acordo com uma

nova ordem mundial na qual as regras

indispensáveis do comércio – atenuadas

por uma nova lógica do sentido e do

ideal – pudessem ser vividas como um

equilíbrio original entre a natureza e a

história. Para ser próspero sem correr o

risco de esbarrar na catástrofe, o espírito

do mercado deveria ser capaz de contar,

desde agora, com horizontes éticos tais

como os do sentido, das leis da cidadania,

de uma arte de conviver baseada no ideal

de respeito mútuo e de compaixão entre os

diversos povos e sociedades do planeta. ■

Personalidades mencionadas neste texto:

André Breton, poeta surrealista francês.

Wifredo Lam, pintor surrealista cubano.

Aimé Césaire, poeta surrealista martiniquês.

Élie Lescot, presidente do Haiti de 1941 a 1946.

Duvalier pai (François Duvalier), presidente do Haiti

de 1957 a 1971, cujo apelido era “Papa Doc”.

Karl Marx, fi lósofo, economista e militante político

alemão.

Arthur Rimbaud, poeta francês da segunda metade

do século XIX.

Octavio Paz, Prêmio Nobel de Literatura em 1990

(México).

Joseph Arthur de Gobineau (1816-1882),

diplomata e escritor francês, autor nomeadamente de

Essai sur l’inégalité des races humaines [Ensaio sobre

a desigualdade das raças humanas].

Jean-Paul Sartre, fi lósofo francês. Em seu prefácio

da primeira Anthologie de la nouvelle poésie nègre

et malgache de langue française [Antologia da nova

poesia negra e malgache de língua francesa] (1948),

ele fala de “racismo antirracista” a propósito do

movimento da negritude.

espécie de sinergia estética e literária que

faz convergir para o mesmo objetivo as

múltiplas experiências que devo ao real

maravilhoso, à negritude, ao erotismo

solar e ao onirismo crioulo dos haitianos,

que é o surrealismo dos humilhados e dos

ofendidos.

Neste caso, o abandono da negritude

não será, talvez, defi nitivo?

Sempre desconfi ei da noção de negritude

por pensar que seria impossível constituir

uma antropologia que fosse o exato

oposto da outra antropologia que acabou

por nos desvalorizar e “desclassifi car

como negros”. Para mim, era impossível

colocar em um contexto de negros o

que se dizia e se fazia em termos de

brancos. O próprio Césaire designava tal

fenômeno por “gobinismo invertido” [cf.

J. A. de Gobineau]. Eu estava consciente

de que deveríamos construir nossa

própria estética, nossa própria ideologia,

sem cair no “racismo antirracista” [Jean-

Paul Sartre]. É por isso que fi z meu luto a

respeito tanto da negritude quanto do

marxismo. Restou apenas o surrealismo.

Atualmente, ele continua sendo, para

mim, um instrumento de trabalho por

meio de seus dois aspectos: o erudito

e o popular. Mas, cuidado! Desconfi o

também do surrealismo. Breton tinha

uma tendência a se deixar levar pelo

ocultismo, a associar o surrealismo a

determinadas tradições cabalísticas e

talmudistas, a esse lado tenebroso da

história do pensamento, o que, aliás, não

deixa de ser interessante, mas retorna, em

certa medida, à procura da pedra fi losofal.

Eu não aceito de modo algum esse

aspecto. Voltei as costas a meus ideais de

juventude e, atualmente, transformei essa

experiência trágica em objeto de minha

refl exão.

Como o senhor vê o mundo atual?

A ideia de revolução foi enterrada e

a história avança com sua procissão

telemática de horrores e maravilhas.

O mito do Grand Soir do espírito e do

corpo morreu em uma grande cama

de modelo soviético, aliás, uma morte

completamente natural. O cadáver

ainda não havia esfriado e o imaginário

do Estado totalitário já tinha voltado a

aparecer sob os traços do integrismo

religioso. Todos os tipos de crueldades

etnonacionalistas em nome de um suposto

programa de renovação da sociedade

dos infi éis erguem monumentos ao

obscurantismo, ao terrorismo e a novas

extorsões do Estado. Na periferia do

Ocidente, a utopia integrista toma o lugar

da utopia da revolução.

O que a literatura pode fazer para suscitar

nos indivíduos a vontade de se lançar na

aventura de um novo renascimento?

A resposta a essa pergunta é determinada

por um contexto de abominações

integristas, de massacres interétnicos, de

violências nacionalistas e racistas. Esse

contexto é o de um planeta governado

totalmente pela lógica do mercado.

Graças aos instrumentos embasados

na razão do Estado de direito e da

democracia, a instituição do mercado

sobreviveu a todas as tempestades

urdidas contra ela. Mas, atualmente, de

acordo com uma opinião generalizada, a

democracia do mercado tem necessidade

de renovar suas bases e seu modo de

funcionamento. Caso contrário, corre o

risco de transformar a vida social em um

cassino planetário sem qualquer ponto

de referência. Assim, a ordem mercantil

triunfante tem todo o interesse em evitar

as condições caóticas e confl itantes

nas quais se elabora a globalização das

questões humanas.

Passos audaciosos devem ser tomados

para a prosperidade do partimônio

mundial que se constituem as

experiências históricas da democracia – o

tesouro das regras da civilidade e da arte

de conviver que se encontra nos acervos

das sociedades mais desenvolvidas e mais

experientes, no Ocidente, em matéria de

direito, liberdade, justiça e solidariedade.

Deveria ser possível transformar a

atual globalização desordenada em

um processo de hominização sem

precedentes das relações entre os

indivíduos e entre os Estados-nações.

A sociedade civil internacional que se

constitui na desordem e na incerteza

do amanhã precisa do oxigênio do

4 6 . O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0

Menino participa do carnaval de Jacmel,

cidade natal de R. Depestre.

« Ezili Danto », obra de Andre Eugene, de Grand

Rue, Porto Príncipe.

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Page 47: Educação para todos: não estamos cumprindo nossas promessas

Antes mesmo do início da crise, o

aumento dos preços dos gêneros

alimentícios já tinha submetido um

grande número de países pobres a

uma provação bem difícil. O coquetel

perverso composto por preços elevados

e recessão econômica tem deixado

milhões de pessoas vulneráveis em

situação precária, e por um longo

período, além de ter degradado as

condições de natureza fi nanceira que

visam a realização dos objetivos de

desenvolvimento fi xados para 2015,

incluindo os de Educação Para Todos. 

O agravamento da desnutrição

e o recrudescimento da grande

pobreza têm um impacto devastador

sobre a educação: a fome freia o

desenvolvimento cognitivo da criança,

chegando a bloquear – às vezes, de

forma irreversível – suas perspectivas

de aprendizagem. De acordo com a

Organização das Nações Unidas para

a Alimentação e a Agricultura (FAO),

o aumento dos preços dos gêneros

alimentícios fez crescer em 175 milhões

o número de pessoas desnutridas entre

2007 e 2008. A desnutrição progrediu

entre os alunos dos níveis pré-escolar

e primário em vários países. A alta dos

preços dos alimentos pesa também nas

despesas familiares com a educação:

em Bangladesh, cerca de um terço

das famílias pobres reconhecem ter

aplicado menos dinheiro na educação

devido ao aumento dos preços.

Considera-se que, em 2010, devido

à recessão econômica, outros 90

milhões de indivíduos vão conhecer

a extrema pobreza. Um maior grau

de pobreza signifi ca que os pais serão

levados a gastar menos com a educação

dos fi lhos e, às vezes, retirá-los da

escola para colocá-los no mercado do

trabalho. É o caso de numerosas famílias

atingidas pelo aumento do desemprego

nas minas de cobre da República

Democrática do Congo.

O fi nanciamento da educação ameaçado

pela diminuição da atividade econômica

Apesar de ser ainda um dado

insufi cientemente conhecido, o

crescimento econômico pesa de forma

determinante sobre o fi nanciamento

da educação. Na África Subsaariana,

entre 2000 e 2005, as despesas públicas

com a educação primária aumentaram

em 29%, contribuindo para a expansão

desse nível de ensino no conjunto da

região. Cerca de 75% desse aumento

foram atribuídos diretamente ao

incremento da economia.

A deterioração das perspectivas

econômicas corre o risco, portanto,

de pesar negativamente sobre

as despesas públicas destinadas à

educação, provocando uma diminuição

no número de escolas construídas e de

contratação de professores qualifi cados e

um aumento do número de pessoas não

escolarizadas.

Que signifi cado terá a diminuição

da atividade econômica para o

fi nanciamento na área da educação na

África Subsaariana, região que contém

cerca de metade das crianças não

escolarizadas do planeta? A estimativa

das receitas futuras dos Estados

– de acordo com as perspectivas

de crescimento, antes e depois do

surgimento da crise – dá uma ideia

do impacto: um cenário prevê a

redução anual de US$ 4,6 bilhões nas

despesas educacionais para 2009 e

2010. Estes números não passam de uma

previsão, mas ilustram perfeitamente as

pressões exercidas pela recessão sobre

o orçamento de um grande número de

países.

Os países ricos responderam à

crise fi nanceira com um investimento

maciço em programas que visam a

O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0 . 4 7

A educação sob a ameaça da crise fi nanceiraPor Samer Al-Samarrai

Após uma década de avanços favoráveis, os

progressos rumo aos objetivos de Educação Para

Todos (EPT) correm o risco de estancarem e até

mesmo de se reverterem, em decorrência dos efeitos

da crise fi nanceira mundial, da pobreza crescente, da

diminuição do crescimento econômico e da pressão

exercida sobre as fi nanças públicas. De acordo com o

Relatório Mundial de Monitoramento de Educação Para

Todos - 2010, ainda é possível conter esse perigo, com

a condição de agir rapidamente. F

oco

Jovem paquistanês no trabalho.

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Page 48: Educação para todos: não estamos cumprindo nossas promessas

relançar o crescimento, proteger os

cidadãos vulneráveis e preservar as

infraestruturas sociais. A educação teve

frequentemente prioridade: assim, nos

Estados Unidos, o American Recovery

and Reconstruction Act destinou

US$ 130 bilhões para preservar as

despesas voltadas à educação. Medidas

semelhantes acabaram por aumentar a

dívida de numerosos países ricos.

Contra a recessão, os países com

rendimentos modestos dispõem de

uma liberdade de ação menos ampla.

Nos mais pobres, as receitas fi scais

acabam sendo em geral reduzidas ou

fi cam estagnadas. Além disso, nessas

localidades é impossível conceber

o aumento da dívida. Vários países

africanos com rendimentos modestos

são obrigados, portanto, a recorrer à

ajuda internacional. 

Ajuda destinada à educação também

reduzida

Antes da crise, os recursos

destinados à educação já tinham

começado a diminuir em proporções

inquietantes. Eles progrediram em

âmbito mundial durante a primeira

metade da década, mas, em seguida,

mantiveram-se no mesmo patamar: de

acordo com os diferentes relatórios,

tal ajuda chegava a US$ 12,1 bilhões

em 2007, uma soma mais ou menos

semelhante à disponibilizada em

2004. A situação da educação básica

é particularmente preocupante: os

compromissos de ajuda fi nanceira

para esse setor aumentaram

consideravelmente entre 2000 e 2004,

mas em seguida, passaram um período

irregular, entre estagnação e quedas

brutais. A soma de US$ 4,3 bilhões

registrada em 2007 representava uma

redução, em valores reais, de 22% em

relação a 2006 – uma diferença de 1,2

bilhões. O retrocesso dos compromissos

foi mais relevante, portanto, na

educação básica.

A crise fi nanceira deixa sob

pressão o orçamento das políticas de

ajuda internacional. Alguns países

doadores – a começar pela Irlanda –

foram atingidos drasticamente pela

crise: os planos anunciados em 2009

prevêem uma redução de 22% da ajuda,

representando um retrocesso após

um período de aumento rápido. Pelo

contrário, em outros países – tais como

o Reino Unido, os EUA ou o Japão –, foi

assumido o compromisso de manter e

até mesmo de incrementar o nível da

ajuda destinada à educação.

De acordo com o Relatório Mundial

2010, seria necessário priorizar a

educação nos orçamentos nacionais

e elevar o nível dos compromissos de

ajuda internacional à soma de US$

16 bilhões para atingir os objetivos

de universalizar o ensino primário,

desenvolver os programas de educação

da primeira infância e reduzir o número

de adultos analfabetos – 759 milhões

de indivíduos, ou 16% da população

mundial – até 2015 nos países pobres.

Em 46 nações de baixa renda, o

montante atual da ajuda à educação

básica, em redor de US$ 2,7 bilhões,

continua sendo insufi ciente em relação

a essas necessidades.

Apesar de parecer colossal, esse

montante representa apenas uma

ínfi ma fração – cerca de 2% – da boia de

salvamento lançada para salvar quatro

das principais instituições fi nanceiras do

Reino Unido e dos EUA. Ao garantirem

os ativos e ao preservarem o balanço

dos bancos, os governos afi rmam,

evidentemente, que estão fazendo um

investimento; mas, apoiar a educação

no mundo é investir, também, na

redução da pobreza, na partilha da

prosperidade e em uma globalização

mais equitativa.

No prefácio para o Relatório

Mundial 2010, a Diretora-geral da

UNESCO, Irina Bokova, lança um apelo:

“Diante dessa crise, é urgente que os

governos promovam mecanismos

para proteger os pobres e as pessoas

vulneráveis. É necessário também que

eles aproveitem essa oportunidade para

construir sociedades que combatam

a desigualdade, de maneira que

todos possam benefi ciar-se com essa

prosperidade. A educação está na linha

da frente”. ». ■

Samer Al-Samarrai,economista

especializado em educação, é o

principal analista das políticas do

Relatório Mundial de Monitoramento de

Educação Para Todos - 2010

“Quando alguém perde o emprego,

pensa nos fi lhos. Eis a primeira coisa

que me ocorreu à mente: como vou

comprar o uniforme no recomeço

do ano letivo, os cadernos e o resto

do material escolar?… Como vou

alimentá-los, com os preços tão

altos… Meus fi lhos só podem contar

comigo, eu os crio sozinha….

Kenia Valle, Managua (Nicaragua)

4 8 . O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0

A educação está ameaçada.

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Page 49: Educação para todos: não estamos cumprindo nossas promessas

O dia começa cedo na escola de

Aqualaar, aldeia situada nas terras áridas

do Nordeste do Quênia. Às cinco horas,

na chegada dos alunos, o professor,

Ibrahim Hussein (18 anos), já se encontra

diante do quadro-negro, pronto para

dar seu curso de aritmética.

Em Aqualaar, a “escola” resume-se

à uma superfície arenosa à sombra

de uma acácia. O quadro-negro está

dependurado em um ramo da árvore;

não há carteiras, nem cadeiras. E, no

entanto, 30 crianças absorvem as

palavras do mestre, acompanhando a

lição e rabiscando, com uma varinha,

algarismos na areia.

Se a classe começa antes da aurora,

é por um bom motivo: às oito horas,

as crianças deixarão a escola para se

ocuparem de suas tarefas cotidianas.

Em companhia dos pais, os rapazes vão

conduzir cabras e vacas para o pasto,

enquanto as moças vão andar 10 km

com as mães para buscar água. Mas,

às cinco horas da tarde, esse pequeno

grupo voltará a ocupar seus lugares

debaixo da acácia para outras duas

horas de estudo.

De fato, a situação no universo educativo

dos criadores de gado somalis de Garissa,

uma das regiões mais desfavorecidas do

Quênia, é lamentável: menos de uma

criança em três, termina a escolaridade

primária. Apenas 10% das moças

chegam à idade adulta com mais de

dois anos de instrução.

Abandonados pelo Estado, os pais

assumem o encargo de retribuir por

sua conta, embora modestamente, o

professor Sr. Hussein – titular de um

diploma do secundário –, além de

reservarem o tempo para que os fi lhos

possam estudar. Khadija Ali – pai de

Fatima (7 anos) e de Hassan (9 anos)

que são escolarizados deste modo – não

hesitou nem um instante: “Com certeza

é difícil; no entanto, graças à educação,

meus fi lhos terão, além de uma melhor

qualidade de vida, possibilidades que

nunca tive”.

Gostaríamos que, no mundo inteiro,

os governos demonstrassem a mesma

resolução e a mesma solicitude. Há dez

anos, por ocasião de um Fórum Mundial

organizado em Dacar (Senegal), eles

assumiram o compromisso de benefi ciar

todas as crianças do mundo com uma

S E T E M B R O 2 0 1 0 . 4 9

Educação para todos: não estamos cumprindo nossas promessas Por Kevin Watkins

Por ocasião do Fórum Mundial de Educação Para Todos,

organizado em Dacar (Senegal), em 2000, os Estados-

membros comprometeram-se a benefi ciar todas as crianças

do mundo com educação básica, em um prazo de 15

anos. Cinco anos antes de chegar ao termo desse prazo, 72

milhões de crianças em idade de frequentar a escola ainda

não estão escolarizadas.F

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Sala de aula de escola em bairro desfavorecido

de Karachi (Paquistão).

Alunas da Escola Begum Hajra, durante

inundação sazonal de esgoto em Karachi.

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Page 50: Educação para todos: não estamos cumprindo nossas promessas

educação básica, em um prazo de 15

anos. Entretanto, essa promessa não

está sendo cumprida.

Cinco anos antes de chegar ao termo

desse prazo, os registros escolares são

eloquentes: enquanto a economia

mundial exige um cabedal de

conhecimentos e de competências cada

vez maior, 72 milhões de crianças em

idade de frequentar a escola ainda não

estão escolarizadas. Milhões de outras

crianças abandonam os estudos antes

do fi nal do ciclo primário. E quando

prosseguem até o secundário, muitas não

atingem o nível necessário em leitura,

escrita e cálculo – sinal da má qualidade

do ensino que receberam.

Há, mesmo assim, boas notícias. Alguns

países, entre os mais pobres, fi zeram

progressos colossais em educação.

Mas, como um aluno qualquer está em

condições de afi rmar – “uma promessa

não passa de uma promessa” –, o objetivo

de Educação Para Todos não será atingido

se prosseguir no ritmo atual: com efeito,

os números divulgados pela UNESCO,

no corrente ano, mostram que se não

acelerarmos nossos esforços ainda haverá

56 milhões de não escolarizados, em 2015.

Aprimorar este dado deveria ser a

primeira de nossas prioridades; os

governos dos países em desenvolvimento

podem abrir o caminho, tomando

medidas políticas e fi nanceiras para

acolher as crianças mais desfavorecidas.

Uma estrada pavimentada de

obstáculos

De fato, com demasiada frequência os

que teriam mais a ganhar com tais medidas

são também os que não dispõem de uma

escola pública em boas condições. Nas

favelas do mundo, de Manilha a Nairóbi,

a ausência de serviços governamentais

decentes obriga milhões de famílias

pobres – portanto, desprovidas dos

recursos necessários – a recorrer a uma

educação privada onerosa, cuja qualidade

é em geral medíocre.

Evidentemente, os problemas educativos

não são isolados, juntando-se às

calamidades mais amplas, tais como a

pobreza e a discriminação das moças e

das mulheres. No Paquistão, por exemplo,

as moças das famílias rurais pobres não

passam, em média, mais de dois anos na

escola, ou seja, menos do terço da média

nacional. 

Em matéria de educação, os governos

dos países em desenvolvimento não

são, contudo, os únicos a apresentar

resultados medíocres: os países doadores

também estão longe de cumprir

seus compromissos. Para que todas

as crianças do mundo venham a

benefi ciar-se com uma educação

básica, seria necessário desembolsar,

anualmente, US$ 13 bilhões de ajuda

suplementar, até 2015. Ora, após vários

anos de estagnação, a soma prometida

pelos compromissos de apoio à educação

básica foi reduzida no ano passado.

O contraste com a saúde é impressionante.

Os fundos alocados, em âmbito mundial,

para a luta contra o HIV/Aids e a vacinação

canalizaram a atenção política, provocando

uma intensifi cação da ajuda às

populações em situação de necessidade.

A Iniciativa de Via Rápida – um programa

mundial que opera sob os auspícios do

Banco Mundial – havia sido concebida,

no entanto, para desempenhar um papel

similar na educação. Mas ela sofreu com

a diminuição dos fi nanciamentos e com

intermináveis demoras de natureza

burocrática, de modo que alguns países

são obrigados a esperar dois a três anos,

antes de obter um apoio.

A estrada do Programa Educação

Para Todos continua pavimentada de

obstáculos: a escassez de professores e

de escolas, o desperdício de recursos,

a discriminação contra as moças, a

pobreza esmagadora e a não daptação

de determinados ensinamentos. Mas,

eles podem ser superados graças a

despesas públicas mais equitativas,

a um apoio focalizado nos mais

desfavorecidos e a políticas que venham

a atrair, formar e manter os professores

competentes.

Os bons estabelecimentos são uma

arma temível contra a pobreza,

a injustiça social e o extremismo.

Investir em uma escola de qualidade

é investir no crescimento econômico,

na prosperidade compartilhada e na

segurança. Chegou o momento em que

os governos têm de reservar à educação

o lugar que ela merece, no centro da

agenda política nacional e internacional. ■

Kevin Watkins é o Diretor do

“Relatório Mundial de Monitoramento

de Educação Para Todos - 2010”,

publicação da UNESCO lançada em 19

de janeiro de 2010.

5 0 . O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0

Cena de um pátio de escola na Libéria.

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Page 51: Educação para todos: não estamos cumprindo nossas promessas

“Nasci com a pena na mão”. Essa foi a

afi rmação inicial de nosso entrevistado.

“Nem me recordo do momento preciso

em que, pela primeira vez, tentei fazer

caligrafi a”, acrescenta. “No bairro onde

nasci, havia uma grande quantidade

de junco, material que serve para

fabricar penas.” Ghani Alani começou a

trabalhar bem cedo. “No início da minha

carreira profi ssional, fui contratado pela

companhia das estradas de ferro, em

Bagdá: durante o dia, eu limpava os

vagões e, à noite, dava prosseguimento a

meus estudos”. Entretanto, sublinha ele,

“na sexta-feira, dia de descanso semanal,

me dedicava ao estudo e à prática da

caligrafi a”.

“Meu mestre se chamava Hachem

Mohamed, mais conhecido pelo nome

de Baghdadi. Ele é o herdeiro dos

maiores mestres da caligrafi a, cuja

linhagem remonta à escola abbássida,

com 12 séculos de existência. Eu tinha

13 anos quando o conheci; durante três

anos, aprofundei o estudo da escrita.

Tendo terminado a primeira fase dos

estudos, a segunda pareceu-me mais

fácil. De fato, uma letra leva a desenhar

duas letras; em seguida, essas duas letras

formam uma palavra; e, por último, uma

frase.”

Esse mestre de caligrafi a não se

contentou em ensinar-lhe como traçar

as letras com a pena, mas incentivou-o

também a tomar consciência do vínculo

entre o ser e a letra. Na opinião de Ghani

Alani, “há na caligrafi a algo relacionado

à alma”. A pena do calígrafo nada é

além do prolongamento de seu braço,

Ghani Alani : « A caligrafi a é o vínculo entre o ser e a letra »Por Bassam Mansour, UNESCO

“No início, havia Bagdá”. É nestes termos que o

calígrafo iraquiano Ghani Alani evoca o papel de sua

cidade na história da caligrafi a árabe e muçulmana.

Trata-se do lugar de onde surgiram outras correntes

e as diversas escolas que promoveram esta arte.

Ele reconhece, contudo, que a arte da caligrafi a

desenvolveu-se em outras grandes capitais da

civilização árabe-muçulmana, desde a Andaluzia até

Bukhara (Uzbequistão).

O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0 . 5 1

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Caligrafi a de Ghani Alani.

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Page 52: Educação para todos: não estamos cumprindo nossas promessas

de seu ser por inteiro. “Meu mestre

nunca me dizia como traçar minhas

letras, mas chamava minha atenção,

sobretudo, para o vínculo entre o corpo

e a letra: “considerando que as mãos são

diferentes”, dizia ele, “seu tamanho vai

manifestar-se no momento de traçar as

letras; deste modo, a letra é o refl exo do

homem”.

“Aprendi essa arte por meio de Hachem

al Baghdadi, tal como ele a havia

herdado dos fundadores da Escola de

Bagdá. Certo dia, recebi um diploma

que ele nunca tinha entregue a nenhum

de seus alunos. Quando um professor

de caligrafi a concede tal certifi cado, ele

autoriza o aluno a assinar suas obras

com o próprio nome. O diploma assume

a forma de um documento ‘ofi cial’,

reconhecendo que o aluno atingiu

realmente o nível de excelência”. No

documento, pode-se ler o seguinte:

“Quando se tornou evidente que o

destinatário deste notável certifi cado

assimilou as regras da caligrafi a árabe

e analisou meticulosamente todas as

formas desta arte, tendo atingido a

excelência ao praticá-la, concedi-lhe o

direito de colocar sua assinatura na parte

inferior de suas preciosas escritas…”

Ghani Alani deixou Bagdá para fi xar-se

na capital francesa em 1967. “Em

Paris, prossegui o curso de direito na

universidade e obtive um doutorado”,

explica. “Eu desejava que a caligrafi a

permanecesse um lazer, mas a paixão

acabou por prevalecer. O homem de lei

abandonou a toga para transformar o

junco aguçado em seu instrumento de

trabalho. Ao entregar-nos os diplomas,

o decano da universidade de direito

disse-nos: ‘Agora, os senhores estão

preparados para o estudo do direito’.

Com essa frase, ele pretendia indicar que

nosso ensino havia fornecido os meios

para pensar. No fundo, é exatamente o

que o professor Hachem al Baghdadi nos

dizia a propósito da caligrafi a”.

“Tendo terminado o curso de direito,

tornei-me membro do Instituto de Belas

Artes de Bagdá, de acordo com o desejo

do professor”, sublinha. “No ano do meu

ingresso, um grande mestre turco em

iluminuras islâmicas, Hamad al Amidi,

foi convidado a ministrar um curso. Seus

ensinamentos foram muito importantes

para mim. Na realidade, minha prática

abrange, ao mesmo tempo, a caligrafi a e

a iluminura, o que não é muito usual.”

“Desde o início, tentei apreender

a essência da escrita na civilização

árabe. A partir da minha experiência,

trabalhei sobre as ideias de unidade e de

continuidade, cuja expressão se torna

5 2 . O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0

possível pela caligrafi a. Ela é como um

rio que é enriquecido pelas outras artes,

como se estas fossem seus afl uentes.”

Para Ghani Alani, o desenvolvimento da

caligrafi a na civilização árabe não está

associado à proibição da representação

pictórica, como é costume ouvir dizer. Ele

garante que se trata de “uma hipótese

equivocada”. “Existem desenhos na

civilização islâmica, particularmente, na

Turquia ou no Irã. Além disso, a caligrafi a

pode comportar imagens fi gurativas.

O apogeu da caligrafi a na civilização

árabe deve-se, sobretudo, ao fato de

que se trata de uma civilização baseada

na palavra, inclusive desde a era pré-

islâmica, quando a poesia era a única

arte, enquanto o poeta era o orgulho de

seu clã. E então, onde há a palavra, há o

texto escrito…”

Ele explica, assim, as origens formais da

caligrafi a: “o traçado reto e o traçado

curvo que, aliás, podem ser encontrados

desde sempre em todas as formas de

escrita do mundo: dos pictogramas aos

ideogramas, passando pela caligrafi a

’fonética’, que conferiu a estrutura

silábica à escrita cuneiforme. Desde a

invenção dessa modalidade, as escritas

assumiram essas duas formas, ou seja,

traçado reto e traçado curvo. É possível

encontrar diversas ilustrações nos

« A civilização árabe é uma civilização da palavra».

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Page 53: Educação para todos: não estamos cumprindo nossas promessas

Presidente Nujoma, o senhor é

conhecido no mundo como um

veterano das lutas em prol da

independência dos países africanos,

além de ser um defensor da igualdade

de gênero. Gostaríamos que nos

apresentasse seu ponto de vista a

respeito desse tema.

A igualdade de gênero é uma questão

realmente urgente, em particular,

nos países em desenvolvimento. No

passado, os homens e as mulheres

assumiam papéis específi cos em função

de seu sexo. Na sociedade moderna e

informatizada de hoje, esses papéis não

podem continuar sendo os mesmos:

as mulheres exercem numerosas

profi ssões que, anteriormente, eram

escritos da Mesopotâmia, tal como a

inscrição do Código de Hamurabi, cujas

letras são caracterizadas por serem retas,

contrariamente ao uso da época”.

Ghani Alani também nos confi a sua

opinião a respeito da escrita cúfi ca.

“Nunca qualifi quei a escrita reta como

cúfi ca. Os que a designaram dessa

maneira cometeram um erro relevante

ao estabelecerem que qualquer escrita

reta e angular podia ser chamada cúfi ca.

A verdade é completamente diferente.

Esta escrita é efetivamente anterior ao

surgimento da cidade de Kufa – daí,

o qualifi cativo cúfi co ou Kúfi co –, na

época dos Muallakats (os sete mais belos

poemas da era pré-islâmica, que teriam

sido inscritos na entrada da Caaba, em

Meca). Quanto a mim, prefi ro qualifi car

essa escrita como angular. É verdade

que a corrente cúfi ca trouxe melhorias e

ampliou seu uso, tanto nos manuscritos

quanto na arquitetura. A Escola de Bagdá

criou, em seguida, a escrita cursiva que

compreende vários tipos, tais como

o thuluth e o diwani, assim como o

naskhi que é o modelo adotado para a

tipografi a.”

Ghani Alani usa os Muallakats como

exemplo, apesar das dúvidas sobre

a existência dessas famosas poesias.

“Haverá sempre pessoas com dúvidas

em relação à veracidade desses

Muallakats”, explica. “Contudo, é

indiscutível que existiam, desde a

época pré-islâmica, textos escritos com

o alfabeto árabe. Foram encontrados

documentos, tratados e acordos,

gravados em tabuinhas de pedra que

são bem anteriores ao período islâmico.

Em alguns sítios arqueológicos, foram

exumados, igualmente, textos gravados

na pedra: o mais famoso documento

se encontra em Mada’in Saleh (Arábia

Saudita)”. ■

Ghani Alani é, junto com a editora

e professora universitária polonesa,

Anna Parzymies, o laureado de 2009

do Prêmio UNESCO-Sharjah em favor

da Cultura Árabe. O Prêmio, criado em

1998 por iniciativa dos Emirados Árabes

Unidos, é atribuído anualmente a duas

pessoas – uma originária de um país

árabe e outra de qualquer outro país

– cuja obra tenha contribuído para o

desenvolvimento e para a promoção da

cultura árabe. Para outras informações

sobre o Prêmio, contatar Jeannette

Tchilinguirian ([email protected]).

A igualdade de gênero: um imperativo para o desenvolvimento Por Sam Nujoma

Sam Nujoma, o homem que conduziu a República

da Namíbia à sua independência, em 1990, e foi seu

presidente por 15 anos – é um decano da política na

África. Um aspecto menos conhecido de seus combates:

o compromisso em favor da paridade entre as mulheres

e os homens. Ele explica a Hans d’Orville e a Clare Stark

o papel que atribui às mulheres, em seu país e em escala

internacional.

O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0 . 5 3

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reservadas aos homens, mas há ainda

muito a fazer neste plano. Temos

necessidade de um maior número de

homens e de mulheres para colher

plenamente os benefícios dos recursos

naturais de nosso país. É evidente que

todos devem participar de modo que

possamos erradicar a pobreza.

Qual foi o papel das mulheres no

movimento de libertação de seu país?

As mulheres desempenharam um

papel central no combate em favor

da libertação da Namíbia. Tínhamos

batalhões de mulheres; aliás, elas

eram frequentemente mais decididas

que os homens. Por ocasião do 3o

Congresso da Organização do Povo

Presidente Sam Nujoma,

na UNESCO, em 2004.

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Page 54: Educação para todos: não estamos cumprindo nossas promessas

do Sudoeste Africano (SWAPO), em

2002, adotamos uma resolução que nos

obriga a respeitar a paridade dos sexos

nas delegações regionais. O Congresso

pediu, igualmente, ao Comitê Central

para desenvolver um mecanismo que

garantisse a eleição, no mínimo, de 30%

de mulheres entre seus integrantes. O

SWAPO é dirigido por uma mulher, a

senhora Pendukeni Iivula-Ithana, nossa

Secretária Geral que também é ministra

da Justiça.

Essa política será válida, igualmente,

para o governo namibiano? Haverá

o propósito de conseguir a paridade

homens-mulheres nos ministérios?

Esse é o nosso objetivo que ainda

não foi alcançado. Por enquanto, as

mulheres ocupam 22% das cadeiras

de nossa Assembleia Nacional.

Mas, teremos de cumprir nossas

obrigações para com a Comunidade

de Desenvolvimento da África Austral

(SADEC), que é a nossa associação

econômica regional, e para com a

União Africana: esses dois organismos

estipulam que 50% dos ministros

devam ser mulheres, de hoje até 2015.

Será necessário alocar fundos

suplementares à igualdade doe

gênero no orçamento nacional, a fi m

de promover o papel das mulheres?

Penso que não há necessidade de

aumentar o orçamento nacional para

dar emprego a mulheres no governo,

mas julgo que são indispensáveis

fundos suplementares para garantir

que todas as crianças dos distritos

do SWAPO, rapazes e moças, tenham

acesso à informática para estarem mais

bem preparados e serem mais bem-

sucedidos neste mundo globalizado.  

A educação é uma das chaves do

desenvolvimento. Por ocasião da

independência, a qualidade do

ensino dependia da cor da pele e da

origem étnica; evidentemente, em tais

condições, a população branca era

privilegiada. Este sistema tinha sido

imposto pelo regime do apartheid;

assim, após a independência, fomos

obrigados a reformular todo o sistema

educativo. Aliás, o Primeiro ministro

atual, H. E. Nahas Angula – que havia

sido o ministro da Educação, da Cultura,

da Juventude e do Esporte quando a

Namíbia se tornou independente, em

1990 – é que assumiu essa reforma do

sistema educativo namibiano que, hoje

em dia, é excelente graças a ele.

Será que os projetos de

desenvolvimento namibianos têm

focado sufi cientemente nas mulheres?

Na Namíbia, as mulheres são

incentivadas a participar em todos os

aspectos do desenvolvimento do país.

Qual é sua opinião a respeito da

igualdade de gênero no sistema

multilateral? Está satisfeito com a

situação vigente ou julga que as

tendências atuais deveriam ser

fortalecidas?

Vou tomar a ousadia de afi rmar que

pelo menos 85% de todas as agências

especializadas da ONU deveriam ser

dirigidas por mulheres porque elas

dispõem de maior aptidão para tratar

das questões associadas à promoção do

desenvolvimento humano.

Hans d’Orville é Diretor geral Adjunto

para o Planejamento Estratégico.

Clare Stark é especialista de Programa,

assessora do Diretor geral Adjunto para

o Planejamento Estratégico.

Esta rubrica, lançada pela Agência do

Planejamento Estratégico da UNESCO,

aborda assuntos de prospectiva

destinados tanto ao público em geral,

quanto aos Estados membros da

Organização. Ela apresenta opiniões

de intelectuais capazes de nutrir a

refl exão, a programação e a ação da

UNESCO em seus diferentes domínios

de competência.

Atualmente, é cada vez maior o

número de mulheres que ocupam

postos de responsabilidade no

Sistema das Nações Unidas.

Em outubro de 2009, a búlgara

Irina Bokova foi eleita para

dirigir a UNESCO. A Organização

Mundial da Saúde (OMS) é

dirigida por Margaret Chan; o

Programa Alimentar Mundial

(PAM), por Josette Sheeran;

o Fundo das Nações Unidas

para a Infância (UNICEF), por

Ann Margaret Veneman; o

Programa das Nações Unidas

para o Desenvolvimento (PNUD),

por Helen Clark; e o Fundo das

Nações Unidas para a População

(UNFPA), por Thoraya Obaid.

5 4 . O C O R R E I O D A U N E S C O . S E T E M B R O 2 0 1 0

A Rede Mundial de Reservas da Biosfera

foi enriquecida com mais 13 novos sítios

em junho de 2010. A Rede conta agora

com 564 sítios distribuídos em 109

países.

As reservas da Biosfera são zonas

designadas no âmbito do Programa O

Homem e a Biosfera da UNESCO (MAB),

com o objetivo de testar abordagens

diferentes de gestão integrada da

biodiversidade e de recursos terrestres,

costeiros, marinhos ou de água doce. As

experiências são realizadas no sentido

de se obter ensinamentos visando ao

desenvolvimento sustentável.

Ler :

Lista completa das Reservas da Biosfera

2010 (em francês) www.unesco.org/mab/

doc/brs/BRList2010.pdf

Mapa da Rede Mundial de Reservas da

Biosfera 2009 (em francês)

http://unesdoc.unesco.org/

images/0018/001848/184853M.pdf

Estratégia da UNESCO para enfrentar

as mudanças climáticas (em francês).

http://unesdoc.unesco.org/

images/0016/001627/162715f.pdf

Oxapampa-Ashaninka-Yanesha, situado na

região amazônica do Peru, foi designado

Reserva da Biosfera em junho de 2010.

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Page 55: Educação para todos: não estamos cumprindo nossas promessas
Page 56: Educação para todos: não estamos cumprindo nossas promessas

5 6 . L E C O U R R I E R D E L ’ U N E S C O . S E P T E M B R E 2 0 1 0

A Comissão Oceanográfi ca

Intergovernamental celebra seu

50º Aniversário este ano.

Sua principal missão é promover

a cooperação internacional relativa

a oceanos e regiões costeiras.

www.ioc-unesco.org

El Niño em novembro de 1997 e La Niña em

março de 1999. Imagens do Oceano Pacífi co

mostrando diferentes níveis do mar

e ilustrando as interações entre o oceano

e a atmosfera que afetam o clima.

© N

asa